Gabriel García Márquez:: jornalismo e ficção
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Pré-visualização do livro
Gabriel García Márquez: - Maria Cecília Guirado
Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos
Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Bibliotecária: Fátima Silvério Biz Accorsini – CRB 820/9
G118 Gabriel García Márquez: jornalismo e ficção / Maria Cecília Guirado (organizadora). – Londrina : Eduel, 2023.
1 livro digital ; 23 cm.
Disponível em: http://www.eduel.com.br
Vários autores.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-89814-87-0
1. García Márquez, Gabriel, $d 1928-2014 – Crítica e interpretação. 2. Literatura colombiana. 3. Jornalismo e literatura. 4. Imprensa. I. Guirado, Maria Cecília. II. Título.
CDU 070:82
Enviado em: Recebido em:
Parecer 1 25/01/2019 17/06/2019
Parecer 2 04/02/2019 04/03/2019
Parecer 3 19/08/2019 22/08/2019
Aprovação pelo Conselho Editorial em: 10/02/2020
Direitos reservados à
Editora da Universidade Estadual de Londrina
Campus Universitário
Caixa Postal 10.011
86057-970 Londrina – PR
Fone/Fax: 43 3371 4673
e-mail: eduel@uel.br
www.eduel.com.br
sumário
PREFÁCIO
UMA CONVERSA INFINITA ENTRE
FICÇÃO E REALIDADE
APRESENTAÇÃO
I A REALIDADE MÁGICA DO
CARIBENHO GARCÍA MÁRQUEZ
II CEM ANOS DE SOLIDÃO:
ENTRE A IMAGEM E O TEXTO
III MACONDOS DA AMÉRICA LATINA
IV EM BUSCA DO MÉTODO DO REPÓRTER GABO
V LIÇÕES DE JORNALISMO
EM RELATO DE UM NÁUFRAGO
VI PROCESSO DE CRIAÇÃO DOS CONTOS PEREGRINOS
VII O HOMEM DA RUA NAS AVENIDAS VIRTUAIS
VIII UM JORNALISMO QUE CONSTRÓI REALIDADES
POSFÁCIO ERA TUDO VERDADE
Post Scriptum A DONA DO MORTO
Aos estudantes de Jornalismo da
Universidade Estadual de Londrina.
PREFÁCIO
UMA CONVERSA INFINITA ENTRE
FICÇÃO E REALIDADE
José Maschio¹
A vida cotidiana na América Latina nos demonstra
que a realidade está cheia de coisas extraordinárias.
Gabriel García Márquez
A ficção nunca supera a realidade. O alerta, ou mesmo a advertência, deve ser cotidiana para o repórter. Isso se o editor, ou o chefe de reportagem, for preocupado com o jornalismo. Ou seja: não for um desses maluquetes que permeiam redações de jornais a serviço do baronato da imprensa adestrada da América Latina.
Esse alerta serve aos esquentadores
de notícias em busca de um sensacionalismo sempre desnecessário. É muito mais que isso no universo latino-americano. É que na espoliada América (não a do Norte, espoliadora) o cotidiano é sempre um misto de fantasia, de magia e de coisas tão extraordinárias que o fio que separa realidade e ficção é quase imaginário.
Gabriel García Márquez, o Gabito que virou Gabo, viveu toda a sua vida a tentar, tal qual equilibrista de circo que ele tanto adorava, se manter sobre esse fio imaginário, seja como contista, romancista ou a exercer o melhor ofício do mundo
como definia seu trabalho na reportagem jornalística.
Não que na vida pessoal Gabo transitasse por outros fios. Sua história também era permeada pela mistura constante entre realidade e imaginação. A influência do avô, na primeira infância, foi sobrepujada pelas mulheres fortes, pitorescas, senão mágicas, quase bruxas. Mulheres que terão importância fundamental em sua vida e obra. Influência que preocupava o pai, o primeiro Gabo. A presença de mulheres fortes na vida do filho incomodava. E o próprio pai duvidava da masculinidade
de Gabito. Recorreu a uma trampa
para que o filho tivesse sua experiência sexual. E o então adolescente garrou
gosto. Dizem as boas línguas, e no fantástico realismo mágico da América Latina não convém duvidar, que a conversão de Mario Vargas Llosa ao neoliberalismo se deu por galanteios de Márquez à então mulher de Llosa, Patrícia, em 1976. Depois disso, nunca mais se falaram. E Llosa cada vez mais se afastou de ideias humanitárias.
Essa lenda
literária latino-americana nunca foi confirmada. De concreto houve, isso registrado, um soco do peruano em García Márquez, em fevereiro de 1976. A mulher de Gabo, Mercedes, à época, atribuiu o soco ao ciúme doentio de Mario Vargas Llosa. É fato também que o casal García-Barcha interferiu, especialmente Gabo, em crises constantes entre o peruano e a mulher. A história, que faria a delícia de jornais especializados em fofocas de celebridades, reflete, no entanto, a importância que Gabo dava às mulheres em sua vida. Não poderia entender minha vida, tal como é, sem a importância das mulheres
, afirmava.
É simbólico, senão extraordinário, o fato de Gabo ter escrito, em 1996, Notícia de um sequestro e, 22 anos depois, uma sobrinha-neta, Melissa Martinez García, ter sido vítima de sequestro. Sequestrada em agosto (pelo mesmo grupo de paramilitares descrito no livro), foi resgatada em 17 de novembro de 2018. Uma mulher, das tão prezadas mulheres de Gabo.
Mulheres sempre aparecem com força em seus romances, são quase baluartes. Algumas delas são recorrentes em sua obra e isso é avaliado e dissecado ao longo deste livro, em análises primorosas pelo time que Maria Cecília Guirado (a Ciça) reuniu para escrever e pensar a obra de García Márquez. E é preciso alertar: este livro, que trata com carinho e nos encanta sobre o jornalista e literato Gabo, não é definitivo. É, antes de tudo, um início de conversa sobre uma das personalidades mais marcantes de nossa América Latina de veias sempre abertas. É só o começo de uma conversação infinita. Uma conversa infinita entre ficção e realidade, que diz muito mais sobre o nosso caráter latino-americano do que muitos tratados filosóficos ou de antropologia.
Boa leitura!
¹ Repórter que conta histórias. Na vida fez de tudo. Até coisas bem-feitas. Foi catador de osso (em um tempo que usavam ossos para fazer botões), boia-fria, pacoteiro, bancário, professor universitário. Trabalhou em redações de jornais alternativos, jornais legais e jornalões. Hoje dedica-se à militância social e a escrever livros. Os dois últimos: Crônica de uma grande farsa (em parceria com Luiz Taques) e o romance Tempos de cigarro sem filtro. E-mail: josemaschio@gmail.com
APRESENTAÇÃO
Para compreender as palavras de Gabriel García Márquez, o mágico Gabo, foi idealizado um projeto de pesquisa, em 2012, na Universidade Estadual de Londrina. Incentivado a beber do bom jornalismo em fonte literária, o grupo Imagens midiáticas da América Latina nos textos jornalístico-literários de Gabriel García Márquez
lançou uma oficina para estudar algumas obras e o processo de criação do colombiano. No ano seguinte a ideia cresceu, dando lugar ao projeto de adaptação de Doze contos peregrinos para a linguagem radiofônica, cuja produção extrapolou os objetivos e transformou-se no Conto falado da literatura para o rádio: imagens da América Latina
, veiculado pela Rádio UEL-FM, entre abril e julho de 2014.
Alguns participantes da pesquisa embrenharam-se pela iniciação científica, outros levaram a experiência gabiteira
adiante para criar outras estéticas. O grupo do Gabo - como passou a ser chamado na UEL - gerou trabalhos de conclusão de curso, dissertação de mestrado, participações em congressos, artigos científicos e matérias jornalísticas. A esse material somou-se a produção acadêmica dos alunos que frequentaram a disciplina A realidade mágica na obra jornalística de García Márquez
, ministrada durante estágio de pós-doutorado, em 2017, no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo, na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Desse modo, a coletânea Jornalismo e ficção materializou-se com o propósito de despertar novas reflexões sobre o melhor ofício do mundo
, como dizia García Márquez.
O livro, concluído em 2019, repousou em silêncio durante a pandemia da Covid-19, mas o Grupo Gabo de Pesquisa encontrou no jornalismo digital afluentes para a criatividade. O BlogdoGabo, criado em 2018, transformou-se na revista Jornalismo & ficção: América Latina e Caribe, disponível em www.jornalismoeficcao.com, que conta com três categorias de produção: jornalismo, literatura e academia. Além de incorporar o hipertexto aos segmentos contíguos de audiovisual, mídia sonora e criações experimentais de imagens, a publicação está conectada às redes sociais. Postados em pequenas e deliciosas doses, breves textos em série, batizados de folhetinstas - folhetim adaptado ao Instagram - remetem o leitor aos romances, às reportagens, aos contos ou aos textos acadêmicos e o instigam a desfrutar do conteúdo completo na revista online.
Sempre buscando aberturas possíveis entre jornalismo, literatura e a elegância do texto acadêmico essa recolha de estudos sobre o processo de criação de Gabo circula em elipses imantadas por uma sequência que se pretende complementar, mas que podem ser apreciadas em particular ou em outra ordem desejada. Jornalismo e ficção, com prefácio do repórter e escritor José Maschio, pretende mostrar A realidade mágica do caribenho García Márquez
(Maria Cecília Guirado) como jornalista iniciante e colecionador de histórias. "Cem anos de solidão: entre a imagem e o texto (Lucia Helena Bahia) reforça a insistência de ícones biográficos, ao passo que as
Macondos da América Latina" (Marcionize Elis Bravaresco) ligam os pontos metafóricos da violência autorizada.
Este livro também anda Em busca do método do repórter Gabo
(Magali Moser) e encontra algumas "Lições de jornalismo em Relato de um náufrago (Caroline Souza). Mostra a carpintaria do
Processo de criação dos contos Peregrinos (Criselli Maria Montipó), desembocando na figura globalizada de O homem da rua nas avenidas virtuais
(Mariane Pires Ventura). O caribenho, discípulo de García Márquez, fala de Um jornalismo que constrói realidades
(David Lara Ramos). No posfácio (Linda Bulik) e post scriptum (Sara Bozzi), duas damas do Jornalismo e das Letras brindam por essa homenagem a Gabo. Em tais escrituras e representações de ideias e de ideais, os autores de Jornalismo e ficção entregam um pouco do que perceberam de Gabriel García Márquez e contam, cada um da sua forma, como interpretaram o escritor.
Londrina, agosto de 2022.
Maria Cecília Guirado
I
A REALIDADE MÁGICA DO
CARIBENHO GARCÍA MÁRQUEZ
Maria Cecília Guirado²
Soy un periodista [...] mis libros son libros de periodista aunque se vea poco. Pero esos libros tienen una cantidad de investigación de datos y de rigor histórico, de fidelidade a los hechos, que en el fondo son grandes reportajes novelados o fantásticos, pero el método de investigación y de manejo de la información y los hechos es de periodista (Entrevista concedida a Darío Arizmendi, em 1991).³
A narrativa cuidadosa e detalhista do cotidiano mostra um texto polido, que encadeia fatos reais e imaginários. Seria simples descrever, desse modo, o estilo do jornalista e escritor Gabriel García Márquez (GGM), aclamado como o maior romancista latino-americano do século XX. Compreender a carpintaria literária, somada às técnicas jornalísticas, demanda atenção especial sobre a vida e a obra do autor. Desde as primeiras crônicas para a imprensa, em 1948, o colombiano buscou um estilo ímpar de representar o universo que se esconde entre as dobras da realidade e da ficção. Como repórter transcreveu, com a graça de um homem das letras, as agruras do continente imerso em regimes autoritários, violências, explorações e preconceitos de toda ordem - apesar da beleza e alegria pulsantes de suas raças mestiças. Como literato utilizou a experiência jornalística da apreensão, da investigação e da tradução do real para criar em seus leitores a hesitação entre uma história mágica, que parecia ser verdadeira, ou uma história verdadeira, recheada de elementos mágicos. É, pois, a partir de suas primeiras crônicas que se percebe a transposição da experiência jornalística para a ficção, revelada nesse caldeirão mestiço de espanhóis, árabes, índios e negros que habitam as margens do Mar do Caribe.
A notícia de que um latino-americano arrebatara o Nobel de Literatura, em 1982, ecoou pelos quatro cantos do mundo. O prêmio sustentou-se no sucesso de Cem anos de solidão, com tiragem inicial de 8.000 exemplares, em 1967. Atualmente traduzida para quase 50 línguas, atingindo cerca de 50 milhões de leitores, é a segunda maior obra da literatura hispânica, cedendo o primeiro lugar para Dom Quixote de La Mancha, de Miguel Cervantes y Saavedra. O sucesso literário de Gabo⁴ continuou crescendo até 2004, quando ele encerra sua faina criativa com Minhas putas tristes. Porém, reportagens, crônicas e artigos publicados por ele em vários jornais, ao longo de cinquenta anos, não eram do conhecimento da maioria de seus leitores. O mundo ainda não havia entrado na tela globalizada. García Márquez jornalista é desvendado por Jacques Gilard, em 1981, com a publicação de Textos costeños (1948-1952): obra periodística I, seguida pela publicação da extensa produção, que só chegou ao Brasil em 2006, pelo Grupo Editorial Record, em cinco fartos volumes, sob os títulos: Textos caribenhos (1948-1952), Textos andinos (1954-1955), Da Europa e da América (1955-1960), Crônicas (1961-1984) e Reportagens políticas (1974-1995). Pouco explorados por estudiosos da área, esses textos guardam tesouros para aqueles que se debatem com as possíveis representações da palavra impressa, radiofônica, televisual ou digital.
No jornalismo, viveiro predileto de sua linguagem
, como afirma Feliciano (2012, p. 23), Gabo constrói representações metafóricas da vida na América Latina. Generoso, descreve, em minúcias, as imagens para seu leitor. Imagens que são transmutadas em palavras, que se organizam em frases, em parágrafos, em histórias trabalhadas com iluminação adequada para cada detalhe. Pode-se dizer que sua técnica narrativa, desde os primeiros textos caribenhos, explora a realidade desfigurada em algum ponto, fazendo com que a descrição do real ganhe aparência de um real anamorfósico. Essa imagem da coisa distorcida, ou ampliada em algum vértice, parece ser típica do realismo mágico⁵, cuja natureza permite a convivência civilizada entre o real e o imaginado: La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla
(GGM, 2002, p. 7)⁶. A epígrafe do livro de memórias de García Márquez traz a chave que abre seu mágico baú. Aos jornalistas, parece dizer que a realidade não é a que se apresenta aos olhos, mas aquela que o repórter recorda e como a recorda para traduzi-la em texto.
Cartagena, às margens do Caribe
Na imprensa, García Márquez começa, em 21 de maio de 1948, na redação do El Universal, em Cartagena de Índias. Seu primeiro texto no tenía nada que ver con lo que yo había escrito. [...] Todavía me pregunto cómo habría sido mi vida sin el lápiz del maestro Zabala y el torniquete de la censura, cuya sola existencia era un desafío creador
(GGM, 2002, p. 388-9)⁷.
Los habitantes de la ciudad nos habíamos acostumbrado a la garganta metálica que anunciaba el toque de queda. El reloj de la Boca del Puente, empinado otra vez sobre la ciudad [...] había perdido su categoría de cosa familiar, su irremplazable sitio de animal doméstico. [...] Diariamente, a las doce, oíamos allá afuera la clarinada cortante que se adelantaba al nuevo día como otro gallo grande, equivocado y absurdo, que había perdido la noción de su tiempo. Caía entonces sobre la ciudad amurallada un silencio grande, pesado, inexpresivo. [...] Pero éste era diferente. Parecido en algo a ese silencio hondo, imperturbable, que antecede a las grandes catástrofes. Hundidos en él sólo oíamos el ruido rebelde, impotente, de nuestra respiración, como si allí afuera en la bahía, estuviera aún Francis Drake, con sus naves de abordaje (GGM, 2015, p. 71, sem grifos no original).⁸
O fascínio pelas aventuras hediondas da pirataria devem ser lembranças de quando a avó, Tranquilina, contava histórias dos piratas do Caribe atacando Riohacha, a capital da Guajira. Num desses ataques, sua bisavó se queimou toda por baixo ao sentar-se em um fogão em brasas, atordoada com o susto do bombardeio dos canhões do pirata-mor:
Cuando el pirata Francis Drake asaltó a Riohacha, en el siglo XVI, la bisabuela de Úrsula Iguarán se asustó tanto con el toque de rebato y el estampido de los cañones, que perdió el control de los nervios y se sentó en un fogón encendido. Las quemaduras la dejaron convertida en una esposa inútil para toda la vida (GGM, 1982, p. 24)⁹.
Temas, personagens e histórias são recorrentes na obra de Gabo. Sempre amarrados por um fio à realidade, saltam com leveza de uma plataforma a outra, de um conto para um romance, de uma crônica jornalística para a literatura, como se tivessem vida própria. Francis Drake aparece em muitas outras crônicas caribenhas. Numa delas, Gabo compara as atividades ilícitas dos piratas com o saqueamento dos espanhóis, no período colonial. Em Cem anos, a figura de Drake cresce em importância, servindo como ponto de ligação no final do romance, no redemoinho poeirento de Macondo:
Solo entonces descubrió que Amaranta Úrsula no era su hermana, sino su tía, y que Francis Drake había asaltado a Riohacha solamente para que ellos pudieran buscarse por los laberintos más intrincados de la sangre, hasta engendrar el animal mitológico que había de poner término a la estirpe (GGM, 1982, p. 402-403)¹⁰.
No El Universal, ainda em 1948, Gabo passa a assinar a coluna Punto y aparte
. Matricula-se em Direito, na Universidade de Cartagena, mas não vai às aulas, porque, na época, perambula pelas noites animadas do mercado municipal com os colegas da imprensa, no centro da cidade colonial. Aos pais, informa que ganharia o bastante para sobreviver, mas não era verdade. Dormiria algum tempo no depósito do jornal sobre as bobinas de papel ou em algum banco do calçadão dos Mártires. Así sobreviví a suerte y azar, comiendo de lo que hubiera y durmiendo donde Dios quería
(GGM, 2002, p. 392)¹¹.
Em Cartagena das Índias, após um ano de trabalho, acomodou-se com os editoriais, pois o gênero estava mais para literatura do que para jornalismo. Devorou a biblioteca do novo amigo, Gustavo Ibarra Merlano, da roda de intelectuais que frequentava com Rojas Herazo e Clemente Zabala. Para além de patrocinar as tertúlias, Gustavo deu-lhe um grande conselho, levado à risca por Gabo: Podrás llegar a ser un buen escritor [...], pero nunca serás muy bueno si no conoces bien a los clásicos griegos
(GGM, 2002, p. 395)¹². Muito aquém da literatura clássica, o cotidiano nutre a imaginação do jovem que ouve sobre o padre sem cabeça e um outro espectro que escreve na redação do jornal, até de madrugada:
Entre los periodistas que trabajaron durante los últimos años que El Universal permaneció en aquella casa de la calle San Juan de Dios, circulaban las historias de los múltiples fantasmas de la casa, entre ellos el de un cura sin cabeza y de alguien que escribía con las máquinas hasta la madrugada (ARANGO, 1995, p. 86)¹³.
No dia 16 de dezembro de 1948, Gabo leva ao aeroporto, em Barranquilla, o domador de leões Emilio Razzore. O homem do circo aguardava, na cidade amuralhada, pelo transatlântico Euskera, que havia saído de Havana com a família, mas desaparecera no mar. Aproveitando a viagem, Gabo visita a redação do jornal El Nacional onde trabalhavam Gérman Vargas e Álvaro Cepeda Samudio, amigos dos amigos de Cartagena. Em seguida, na Livraria Mundo, conhece também Alfonso Fuenmayor. É o início da grande amizade dos quatro que, tempos depois, formariam o Grupo de Barranquilla. Gabo volta para Cartagena como quem acabara de desvendar os segredos do mundo.
Ao final de três meses, ele deixa a coluna Punto y aparte
e se refugia nos editoriais do El Universal, para não ter que assinar textos. Às vezes abandona a redação e some. Zabala, o chefe de redação, pede para alguém trazê-lo de volta. Gabo quer fazer reportagens, mas o editor não lhe passa pautas. Em 1949, ao abrirem as criptas do Convento Santa Clara para construir um hotel, um boato corre pela cidade amurallhada: os cabelos de uma menina enterrada há dois séculos continuavam crescendo. Nunca me imaginé que iba a volver el tema cuarenta años después para contarlo en una novela romántica con implicaciones siniestras
(GGM, 2002, p. 410)¹⁴. Essa é a trama Del amor y otros demonios que esperaria até 1994 para fazer parte do universo ficcional. A capital do Departamento de Bolívar, fundada em 1533 pelos espanhóis, ainda estava distante do cosmopolitismo naqueles anos difíceis. Em 1950, o país estava em estado de sítio,
la actividad literaria se hacía solamente a través de las notas de periódicos que leían en grupos, haciendo anotaciones sobre el estilo, la sintaxis, el enfoque, etc., a manera de un taller literario. Los amigos vagaban con libros bajo el brazo buscando sitios tranquilos para discutir sus lecturas [...] en una ciudad increíblemente anclada a la orilla del pasado (MATHIEU, apud USTA, 2015, p. 39).¹⁵
Numa madrugada cartageneira, muito bêbado, dormiu num banco de praça e encharcou-se de chuva: Estuve dos semanas en el hospital con una pulmonía refractaria a los primeros antibióticos conocidos
(GGM, 2002, p.411)¹⁶. É despachado para Sucre para se restabelecer dos excessos de trabalho
, como acreditavam os pais. No El Universal saem notas de despedida ao excelente jornalista e escritor
. Atribuem a ele o romance Ya cortamos el heno, texto que nunca escreveu; mamagallismo
dos parceiros, como chamam a zombaria no Caribe colombiano.
Sucre
,
o país das águas
Ao chegar a Sucre, Gabo pede aos amigos de Barranquilla para lhe enviarem livros. Foram seis meses de recuperação, de largas leituras e convivência com mitos e lendas do país das águas. Apesar da pneumonia, não deixou de fumar e se divertia em serenatas com amigos do povoado, cercado de rios e pântanos, a uma noite e um dia de navegação de Barranquilla. A família morava em Sucre, município do departamento de mesmo nome, desde que Gabito tinha 9 anos. Gabriel Eligio, seu pai, ex-telegrafista, atuava como farmacêutico e, a seguir, como médico homeopata, graças a um curso intensivo. Os antepassados paternos eram dessa região da costa colombiana. O bisavô, García, era um camponês de nome Aminadab, descendente de árabes, e vivia em Sincé, no Departamento de Sucre.
Enquanto o garoto frequentava o ginasial no Colégio São José, em Barranquilla, ou o Liceo Nacional de Zipaquirá, a uma hora de trem da capital, Sucre era o destino de férias. Numa dessas viagens, soube que aparecera, no consultório do seu pai, um homem que dizia ter um macaco na barriga, por conta de bruxarias. "Lo que me importó, sin embargo, no fue la bestia del vientre