Convém sonhar
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Sobre este e-book
Em CONVÉM SONHAR, Miriam faz uma seleção desses pequenos privilégios. Insights na vida de milhões de brasileiros. Reunidas, aqui, estão as crônicas marcantes, publicadas ao longo de seus mais de vinte anos de carreira. Colunista de economia, Miriam não se atém ao tema, mas avança por outras áreas: há espaço para o jornalismo, as questões sociais e ambientais, e até mesmo, para textos de viagens — como sua ida ao Parque Grande Sertão Veredas, contada na coluna O senhor tolere.
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Convém sonhar - Miriam Leitão
Mariana e Uriel, meus pais,
me ensinaram a trabalhar e sonhar.
A eles, este livro e minha saudade.
Sumário
Qual é o tema?
Profissão: repórter
O jornalismo
Repórteres de um tempo louco
Atores e papéis
Adeus, Lênin
Jornal de amanhã
A notícia vive
Flagrantes da vida do Real
Os caras fizeram tudo direitinho
Brasil Velho, Brasil Novo
Por quem toca a sirene de Tatuapé
Papel do consumidor
Única solução
Confusão telefônica
Fundos polêmicos
O voto econômico
Crise existencial
Balanço FHC I
No fundo, no fundo
A vitória do grampo
Pedras no caminho
Só o Brasil salva o Brasil
Escalada fiscal
Tempo do medo
Em resumo
O processo
A Vale e o óbvio
Volta ao passado
O risco é nosso
Depois da travessia
Memória dos dados
Tudo é tão desigual
Retrato do consumo
Vida que segue
Para que serve?
Ainda anormal
Polêmicas agências
O risco do dano
Voltas do mundo
A reforma da vez
Lições do acerto
Herói e vilão
Dinheiro dos outros
Só a bailarina
Dois mundos
Desde aquele dia
Crise sem fim
Estado vivo
Lei das Crises
Zorra total
Crime impune
Sentimento de país
Sentimento de país
Namorando o olho do furacão
O mal absoluto
Erro nas reparações
Senhor juiz
Elos da cadeia
País hipotético
O inexplicável
Mãe das batalhas
Senhores usineiros
Os jovens
Medo da rotina
Mundo, vasto mundo
Breve história
Uma vez, em Paris
No Miraflores
Aos onze do nove
Crise de valores
Bela senhora
Verso e reverso
O sim e o não
Adeus, Bush
Era Obama
A escolha é nossa
Histórias da política
O jogo da franqueza
Amor avesso
Um dia com Covas
Os sem-grupo
Festa do direito
Vitória do Brasil
Ser esquerda é...
O Inca é alerta
Pensar e falar
O desencanto
Inaceitável
Vingança do invisível
O tempo do avesso
Tudo, menos nada
Marco supremo
Terra alheia
Terreno fino
Bolsas e famílias
Democracia partida
Mundos paralelos
Além da nossa dor
Derrubar fronteiras
Meu Rio
Aviso da tragédia
Preto no branco
Brasil, abre a cortina do passado
Escolher o negro
Viva o debate
Rosa de Alabama
Teses e truques
Ora, direis!
O tom da cor
A voz dos senhores
Terra nossa
O Rei da Mata Atlântica
Você decide
Começo do futuro
É um lixo só
Terra nossa
O velho e o bispo
Grandes tarefas
O velho e o novo
Como se desmata
Os rios voam
Como voam os rios
Futuro incerto
Visita das águas
Das mulheres
Nada de menos
Desonrada
Histórias de mulher
Cortina aberta
O senhor tolere
Elas carregam trens
Tão bonita manhã
O senhor tolere
O mestre da música
Papéis de Machado
Às Marianas
Convém sonhar
Qual é o tema?
Haverá um país, talvez a Suíça,
onde falte tema a um colunista.
Mas esse país, definitivamente,
não é o Brasil.
Ter uma coluna diária é um exercício inigualável de disciplina. Um desafio que, a princípio, assusta. A vida tem inesperados; o humor oscila; emergências acontecem. Mas a coluna tem seu prazo inegociável. É também um extraordinário privilégio: um espaço diário reservado para análises, notas, notícias, debates, reflexões.
Escrevo coluna desde 1986, com apenas um breve intervalo. Comecei no Jornal do Brasil e, na época, recebi do professor Mário Henrique Simonsen um conselho:
— Faça estoque regulador, nem todo dia haverá notícia.
No Globo, estreei em 1991 e nele firmei minha carreira de colunista. Inicialmente, era uma coluna de notas; depois evoluiu para um texto corrido. Foi devagar. A primeira nota foi crescendo até ocupar o espaço todo. Fui amadurecendo no meio desse longo caminho. Nunca quis fazer coletânea. Algumas vezes, tentei organizar; depois achava que o material de jornal devia ficar nos arquivos, pois são instantâneos, retratos de um momento apenas. Recebi pedidos de leitores para que publicasse algumas em livros e a todos os que me solicitaram isso, agradeço o carinho. Ainda hoje me acanho, pensando se vai ser mesmo de alguma valia para o leitor ver retratos antigos; flagrantes de tempos passados.
Sou colunista de economia, mas avanço por necessidade — ou atrevimento — em outras áreas, por isso o livro foi dividido em assuntos. Há espaço para jornalismo, economia, política, questões sociais, ambientais. Há algumas crônicas, relatos de viagens que fiz, como a ida ao Parque Grande Sertão Veredas, contada na coluna O senhor tolere
. Há histórias minhas, quando considerei que elas traziam algum valor universal, como a que dá título a este livro: Convém sonhar.
A ideia de organizar assim, e com uma pequena frase, extraída de alguma coluna, indicando o tema, é da jornalista Débora Thomé. Ela brigou para que o livro fosse publicado. Teve um trabalho insano de pesquisa, afinal escrevi milhares de colunas. Fez várias versões, entregava-as prontas em minha mão, e eu fugia. Ela não desistia e trazia nova versão atualizada. Insistiu até vencer; nunca saberei como agradecê-la.
Tive, ao longo dos 19 anos de coluna no Globo, vários assistentes, aos quais agradeço o esforço para corrigir meus erros e me ajudar na apuração. O sucesso profissional deles na vida me encanta e me enche de orgulho. O jornal me entregou o espaço de papel passado. Tenho tido absoluta liberdade, o que, registre-se, faz com que os erros sejam meus.
Não se faz jornalismo, não se faz coluna diária sem fontes. Eu as tenho, felizmente. Às vezes, um texto parece ser apenas o colunista pensando. Engano. Escrever exige conversas com especialistas que sustentam, corrigem e ilustram o pensamento. A todos aos quais liguei, perturbei, entrevistei, pedi estudos, estatísticas, tempo e ajuda, meu agradecimento e aviso: continuarei em contato.
Meus filhos, Vladimir e Matheus, eram meninos quando comecei a vida de colunista. Aprenderam a, antes de me interromper por algum problema, ou algum pedido de ajuda, perguntar: Já fechou a coluna?
Hoje são meus colegas de profissão, dos quais me orgulho, e eu é que pergunto se é hora de interromper.
Sérgio Abranches tem sido o maior incentivador que uma pessoa pode ter. Foi ele quem sugeriu fazer coluna de texto corrido, deixar meu estilo fluir, escrever textos mais analíticos, ousar. Certas vezes, ele ouvia uma explosão de indignação com uma questão nacional, ou a expressão de uma aflição, ou até mesmo uma história de vida e dizia: Isso dá uma coluna.
Pelo incentivo, inspiração e amor, a gratidão da vida toda.
Uma coluna é nada sem o leitor. Se não for lida, morre. Por isso, agradeço a você que me leu ontem e me lê agora. Fico na esperança de continuar sendo lida, porque hoje fazer coluna diária, para mim, é mais do que um desafio e um privilégio: é paixão.
Profissão: repórter
Somos parte do sistema
respiratório da sociedade.
O jornalismo
9.4.2004
Há mais de trinta anos não penso em outra coisa, desde o dia em que, pouco mais que adolescente, entrei — por acaso, e para sempre — numa redação de jornal. Nasci num dia 7 de abril, dia do jornalista. Mais que profissão, essa é a minha sina. É um ofício complexo. Não há um conjunto de regras que, se seguido à risca, produzirá um bom profissional. Uma coisa é certa: todo governo achará que não estamos sendo leais, todos vão querer ênfase nas boas notícias. O que diferencia os governos é a índole autoritária de alguns.
Mesmo no regime democrático, aparecem autoridades convencidas de que sabem determinar o que devemos escolher para ressaltar a cada dia, como devemos relatar um episódio ou que opinião devemos ter. Alguns governantes guardarão respeitosamente essa avaliação e resistirão ao impulso de intervir. São os verdadeiros democratas. Outros pensarão em formas de restringir, orientar e até manipular nosso trabalho. Destes, devemos manter o máximo de distância. São perigosos, estejam eles na esquerda ou na direita, sejam de que partidos forem, tenham o passado que tiverem ou mesmo o mais meritório dos fins.
Erramos diariamente. Em qualquer veículo, o jornalismo é exercido sob intensa pressão do tempo. Nas novas mídias, o ritmo é ainda mais acelerado. No jornal, o mais lento dos veículos, pela manhã, não sabemos como será o produto que, dentro de algumas horas, terá que estar pronto. Não há adiamento possível. Trabalhamos com um limite tão definitivo, que só a palavra inglesa deadline (linha da morte) define bem.
Se erramos, por que não ouvir o que dizem os oráculos de Brasília? Porque erramos e nos corrigimos, diariamente, e mais erraríamos se nos curvássemos à vontade dos governantes de ocasião. Se algum jornalista errou mais, o outro, concorrente, teve chance de acertar. O que se equivocou será cobrado e aprenderá mais uma lição nesse longo e interminável aprendizado do exercício de uma profissão que muda a cada dia, cujo produto é difuso e tem como aliado o inesperado.
Todas as teorias conspiratórias sobre as intenções e armações da imprensa esbarram numa dificuldade operacional: não há quem possa controlar e planejar um produto feito de forma tão caótica. E mesmo que, em algum veículo, o dono e os editores consigam amarrar todos os profissionais na sua teia de interesses ou convicções, o veículo concorrente vai se aproveitar disso. O produto insosso que resultará de tal prática mandonista acabará perdendo espaço, leitores e prestígio. Estamos sob o escrutínio diário de quem escolhe vencedores e vencidos nesse mercado. Com a ajuda da internet, os jornalistas vivem hoje quase que em assembleia permanente com seus consumidores. Agradamos e desagradamos todos os dias a grupos diferentes; e eles cobram, elogiam, criticam, protestam e até ofendem.
Da nossa experiência com os governos militares, aprendemos sobre o que não deve existir no país. Ficou, nos que viveram aqueles tempos, a convicção de que nada, nada, é pior que a ausência da liberdade. Na democracia, estamos, a cada novo governo, a cada novo ano, aperfeiçoando a utilização de todas as ferramentas que temos à nossa disposição. O jornalismo investigativo foi um aprendizado lento, que poupou o primeiro governo civil, porque os jornalistas estavam reaprendendo a viver em liberdade. Depois da experiência-limite do governo Collor, os repórteres ficaram mais eficientes na técnica de puxar fios condutores que nos levam a fatos que tentaram esconder da sociedade.
O contraditório é uma das nossas mais importantes matérias-primas. Ao explorarmos o contraditório, em todos os campos — nas ideias, na política, na economia, na sociedade e no governo — estamos cumprindo uma de nossas funções mais importantes. A partir da exposição dos opostos e das divergências, damos elementos para que se forme a opinião pública, que, não raro, é completamente diferente daquela que o jornalista tem para si mesmo.
Eterno debate haverá, entre os jornalistas e na sociedade, sobre a busca interminável e jamais atingida da neutralidade. A técnica de ouvir as opiniões divergentes ajuda nessa procura pelo ideal da verdade pura. Jornalistas, estamos condenados a buscar eternamente a verdade absoluta sem ser possível encontrá-la. A meta é inatingível, mas a busca deve ser uma obrigação diária.
Somos controlados externamente pelas leis do país, pelos poderes da República e temos ainda sobre nós uma arcaica e discricionária lei do regime de exceção. Sobretudo, somos controlados por quem nos ouve, lê ou assiste. Internamente, o ambiente é sempre de debate, discordâncias e muita concorrência. As redações são um espaço de discussão intensa, de produção de ideias e de troca de informações.
A profissão é apaixonante, e o seu exercício será sempre controverso e gerador de polêmicas. Uma imprensa independente e crítica é parte inseparável do melhor de todos os sistemas de governo que a civilização já desenvolveu. Governos que prezam o patrimônio de liberdade conquistado pela sociedade brasileira devem resistir à tentação de arquitetar formas de controlar a imprensa que não as previstas na própria instituição da democracia. Os que governam o Brasil já têm poder bastante. Não precisam, não devem e não podem estender seus tentáculos sobre a imprensa. Somos parte do sistema respiratório da sociedade; no jornalismo o país se vê, se revê, se corrige, se aprofunda e se aperfeiçoa a cada dia. Senhores governantes, por favor, governem. Os jornalistas continuarão fazendo jornalismo.
Repórteres de um tempo louco
18.04.1993
Há dias em que o jornalista de economia fica muito aflito. Temos sido, ao longo dessa interminável crise, testemunhas de um tempo em que várias vezes a inflação esteve para fugir de qualquer controle e, como uma besta, sair devorando o país.
Ao fim do ano de 1989, por exemplo, estávamos todos estressados. O Brasil esteve, nos últimos meses do governo Sarney, no limite entre alguma ordem e a hiperinflação. Neste pano de fundo, a tarefa diária do repórter fica mais difícil. Há momentos em que o Brasil é tomado pela histeria de um único boato. No Brasil seria preciso inclusive criar uma palavra para substituir boato
, com algo de farsa e fiapos de verdade: etimologicamente equidistante do rumor e do fato.
Há suspeitas sobre a extrema facilidade com que o mercado descobre, antes de todo mundo, o que o governo faz ou pensa fazer. Pode ser informação privilegiada ou a perícia com que o mercado projeta e prevê. O certo é que este ser, chamado genericamente de mercado, já antecipou vários planos e decisões do governo. Muitas vezes o que parecia delírio confirmava-se. Outras vezes ficava claro que era parte da luta financeira entre comprados
e vendidos
em determinada operação. Por isso há instituições interessadas em boatos ruins
, tanto quanto instituições querendo espalhar boato bom
. É um jogo de profissionais.
Mercado e imprensa vivem de informação, mas têm objetivos diversos. Não é à toa que os agressivos e modernos bancos parecem redações de jornais. Não há mais diretores inacessíveis, instalados em salas austeras e protegidos por ranzinzas secretárias. Os jovens executivos se cercam, quando muito, de paredes de vidro. O espaço é aberto para que a informação circule sem barreiras. A diferença entre uma redação e uma mesa de open é que numa as informações estão sendo captadas para serem distribuídas ao leitor, e na outra para garantir investimentos.
O mercado tem sua função. Rotular todos de especuladores como fazem os integrantes do governo é atitude pouco inteligente. É preciso conviver com ele. E ouvi-lo porque ele acerta; duvidar dele, porque ele tem interesses, e entender o seu funcionamento para se proteger dele.
Consumidores da mesma matéria-prima, jornalistas e analistas de mercado se falam constantemente e essa é a origem de diversas aflições. É preciso aprender a decantar o que há de informação na guerra dos rumores. Como um garimpeiro à cata de pepitas. Como um agricultor colhendo trigo num campo de joio.
Nos momentos como o desta semana, em que a maioria das instituições apostava em novo choque, todo o cuidado é pouco. O governo vai sempre negar. Ambos já tiveram razão no passado. Nenhuma informação pode ser afastada, em princípio.
Trabalha-se muito nas editorias de economia nesses dias em que o país se transforma na praça de guerra do boato. Antes, acontecia pontualmente às quintas-feiras. Até que inventaram semanas que só têm quintas-feiras: as batalhas ocorrem em qualquer dia em um campo cada vez mais minado, de uma economia cada vez mais frágil.
Há momentos extremos, quando o descontrole parece iminente: é quando surge uma espécie de conspiração pelo choque
. Espalham-se especulações de que haverá um choque, as instituições se protegem da eventualidade de o boato se confirmar, essa proteção custa caro, aí a instituição começa a realmente precisar de que o choque aconteça. Passa a pedir por ele. Isso realimenta o boato. Agrava a crise e começa a tornar inevitável que o governo faça alguma coisa.
O centro da aflição do jornalista é: falar do problema às vezes agrava o problema; ignorá-lo é não cumprir a missão de informar; ser veículo do nervosismo do mercado é ingenuidade; ser ventríloquo do governo é um equívoco; contaminar-se pela tensão, um amadorismo.
Cada informação falsa que um jornal levar a sério pode beneficiar alguém no mercado. Há informações que vão agravar a crise, mas que a imprensa não pode deixar de dar.
Há momentos em que parece que os sintomas da doença econômica do Brasil atingiram a notícia. Os fatos se sucedem com a mesma rapidez da desvalorização da moeda. O que era fato de manhã, morre à tarde, renasce de outra forma à noite. Ao dar a última versão, omitimos do leitor a visão toda do processo. Outro dia os jornais deram em manchete o desmentido de uma notícia que não havia sequer sido noticiada. É a inflação da notícia no tempo acelerado da crise brasileira.
No dia a dia da cobertura econômica aprende-se uma lição mais importante que as outras: a de que a crise não é fruto dessa ou daquela disfunção monetária, mas o resultado da soma dos erros nacionais, síntese de velhos equívocos. O Brasil enfrenta nessa fase terminal do seu curto-circuito econômico uma grande hora da verdade em todas as áreas. O nosso papel é ao mesmo tempo pequeno e relevante.
O desafio está em saber exatamente a fronteira entre ser repórter de um tempo louco ou parte da engrenagem que fomenta a loucura.
Atores e papéis
5.8.2000
Fajuta a democracia brasileira não é. Pelo contrário, é um bem valioso, conquistado a duras penas, numa batalha na qual o senador Pedro Simon, que hoje a chama de fajuta, foi um lutador. A democracia brasileira já foi testada e comprovou-se sólida. Não há dúvida que precisa de aperfeiçoamentos. O episódio da obra do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo — com denúncia de superfaturamento nas obras — mostra falhas no comportamento de várias instituições. Corrigi-las tornará nossa democracia melhor e mais forte.
Procuradores e jornalistas têm objetivos comuns. Sempre trocarão informações. Mas cada um deve seguir sua pauta de trabalho. Do contrário, podem ser rasgados os manuais de boa conduta de ambos. A pressa inerente ao jornalismo não pode ser desculpa para o profissional deixar de cumprir todas as etapas do processo de apuração. Por isso, o Correio Braziliense transformou o erro desta semana (quando acusou sem provas o ex-secretário-geral da presidência, Eduardo Jorge) em uma rara demonstração de coragem. Pôs em destaque acima da manchete o título "O Correio errou".
Do mesmo modo, procuradores não podem informar aos jornalistas quando há suspeitas apenas, para que eles façam o trabalho de investigação. Nem podem se contentar apenas com o que leem nos jornais. A relação tem feito um movimento circular: indícios são passados aos jornalistas como se provas fossem; a imprensa considera a palavra do procurador a expressão da verdade e a divulga. Com base nas publicações, os procuradores iniciam processos. Quando as acusações são inconsistentes, há o risco de fazer uma de duas coisas: condenar um inocente ou inocentar o culpado. Ninguém tirará de Fernando Collor de Mello o argumento de que ele foi inocentado pela mais alta corte do país
, como costuma dizer. E se pode dizer isso é porque o Ministério Público não construiu elementos convincentes e sólidos de acusação, apesar de tudo o que vimos e foi revelado.
Ministério Público não pode ser partidário. Não pode escolher a oposição
, ensinou o senador Roberto Freire. Referia-se à reunião preparatória que houve entre senadores da oposição e procuradores na véspera do depoimento de Eduardo Jorge.
Palavras como as de Roberto Freire ajudam na construção de uma democracia melhor, em que cada um tenha consciência do seu papel institucional.
A reunião mostrou que os procuradores não tinham nas mãos mais do que recortes de jornais.
Quem se lembra da sessão da CPI que interrogou o juiz Nicolau sabe o poder demolidor que tem um interrogatório bem conduzido. Naquele dia, o senador Paulo Souto tinha em mãos documentos que desmascararam o juiz e o fizeram cair em contradição. Foi uma sessão magistral. O senador, com firmeza e provas, mas sem perder os bons modos, mostrou os erros e as culpas do juiz.
O problema não é a falta de poderes da subcomissão. É que os senadores não se prepararam para fazer as perguntas que tinham que fazer. O senador Pedro Simon demonstrou que nem sequer sabia que cargo ocupara Eduardo Jorge. O senador criticou o presidente da República por ter dado o título de ministro ao seu secretário particular
.
Eduardo Jorge tomou notas e esperou a vez para faturar mais uma: lembrou que fora secretário-geral da Presidência.
O senador Artur da Távola fez uma reflexão importante a certa altura. Disse que em momentos como aquele o papel dos parlamentares tinha que ficar mais claro.
— Somos acusadores, inquiridores ou julgadores?
Tem ficado claro, nesse e em outros momentos, que o Parlamento brasileiro precisa aperfeiçoar seus métodos e definir seu papel para melhor servir à democracia. Mas outros têm falhado ao exercer sua função.
O país ainda não conhece o rosto nem o nome dos técnicos do TCU que, em 1992, constataram irregularidades nas obras do TRT de São Paulo. São anônimos defensores do dinheiro público. Seu zelo foi inútil. A auditoria só foi levada a sério pelo Tribunal em 1998.
Na tentativa de se livrar das suspeitas pelos excessivos contatos com o juiz Nicolau, o ex-secretário da Presidência mostrou uma parte das feias entranhas do poder. O Judiciário tem autonomia para gerenciar uma obra de forma desastrosa, enquanto o Executivo tem autoridade para nomear um exército de juízes classistas — 58 juízes em quatro anos! — escolhidos com critérios estabelecidos por um burocrata que queria formar uma nova filosofia jurídica
.
Procuradores não são políticos, senadores não são juízes, juízes não administram obras, jornalistas não são auxiliares de procuradores, assessores do presidente não decidem que filosofia jurídica devem ter os tribunais, ministros de tribunais de contas não esperam seis anos para acreditar na apuração dos seus auditores, funcionários poderosos que saem do governo não usam o prestígio que tiveram para facilitar negócios e fechar contratos. Democratas não fazem pouco da democracia, chamando-a de fajuta
. Lutam para aperfeiçoá-la.
A democracia precisa que cada um saiba o seu papel e o execute. Precisa de regras, normas, ritual. A democracia é uma construção coletiva. Será fajuta se todos formos fajutos.
Adeus, Lênin
7.8.2004
Numa semana, duas ameaças: uma agência para controlar a produção cultural e um conselho para fiscalizar o jornalismo. A ideia da agência, que diante dos protestos foi recolhida ao estaleiro, nasceu na Casa Civil. No caso do jornalismo, a Federação Nacional dos Jornalistas propôs a criação de um conselho para a profissão, mas a exposição de motivos do ministro Ricardo Berzoini deixa clara a intenção controladora. Diz o ministro que não há hoje instituição para fiscalizar e punir as condutas inadequadas dos jornalistas
.
O ministro está errado. O que nos pune, caso tenhamos condutas inadequadas, é o conjunto das leis brasileiras, o Judiciário brasileiro. Sobre o nosso trabalho, recai ainda o peso de uma lei do período ditatorial: a Lei de Imprensa.*
No projeto para a criação da Ancinav — agência que deverá controlar cinema, televisão, TV paga, rádio e outras empresas que atuam no setor audiovisual — o governo nem disfarça sua inclinação autoritária.
Artigo primeiro: Compete à União organizar a exploração das atividades cinematográficas e audiovisuais. Parágrafo único: a organização inclui o planejamento, a regulação, a administração e a fiscalização das atividades cinematográficas e audiovisuais.
Esse início é revelador. O governo deve regular e fiscalizar. Isso está correto. Mas as tarefas de planejar e administrar cabem às empresas. Tudo neste governo é assim: ele não se contenta em exercer as funções que estão destinadas ao Estado. Na cultura, como na economia, o mesmo DNA do autoritarismo, da centralização excessiva, de regras pouco claras, das perigosas ambiguidades aparece em cada iniciativa.
Há frases no texto que parecem singelas, como a do artigo oitavo: A liberdade será a regra.
Parece estar confirmando as garantias constitucionais da república democrática que o Brasil escolheu ser, mas aí vem o fim da frase: Constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do setor público.
Leia-se ao inverso e se verá o tamanho da ameaça: estão autorizadas, portanto, as proibições, restrições e interferências.
O artigo todo é abusivo. No terceiro parágrafo, diz que o proveito coletivo gerado pelo condicionamento (da intervenção estatal) deverá ser proporcional à privação que ele impuser
. Ou seja, é possível sacrificar a liberdade se isso for, na interpretação do governo, de proveito coletivo? Liberdade não tem porém. Liberdade não se condiciona a nenhum outro objetivo. Isso aprendemos, dolorosamente.
A Ancinav, Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual, como foi proposta, terá o direito de interpretar as leis e decidir em casos omissos — e suas decisões serão irrecorríveis. Admite apenas o recurso ao conselho diretor da própria Ancinav. Vai também articular os vários elos da cadeia produtiva da indústria cinematográfica e audiovisual brasileira
, fomentar
alguns produtos estrangeiros, expedir certificados, apreciar os comportamentos suscetíveis de configurar violação das normais legais aplicáveis à exploração de atividades cinematográficas e audiovisuais, inclusive a produção, programação, distribuição, exibição, veiculação
. E é ela também que decidirá sobre os casos de defesa da concorrência, função da Secretaria de Direito Econômico e do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). A lista das atribuições é tão interminável quanto inconstitucional.
E quem exercerá esse poder todo? Cinco pessoas. Ou melhor, três pessoas, porque o conselho diretor terá cinco diretores, mas decidirá por maioria simples. Esse triunvirato terá o direito de, no caso em que a divulgação colocar em risco a segurança do país, violar segredo protegido ou a intimidade de alguém
, fazer reuniões secretas e manter seus registros em sigilo. A Ancinav terá também o direito de requerer qualquer informação técnica, operacional, econômico-financeira e contábil
de qualquer empresa que atue no mercado.
E quem está submetido a ela? Todos os que se enquadrarem nesta estranha definição: Conteúdo audiovisual é o produto da fixação ou transmissão de imagens, com ou sem som, que tenha a finalidade de criar a impressão de movimento, independentemente dos processos de captação, da tecnologia empregada, do suporte utilizado inicial ou posteriormente para fixá-las ou transmiti-las, ou dos meios utilizados para sua veiculação, reprodução, transmissão ou difusão.
A poderosa Ancinav também tributa. Aumentou a taxação que recai sobre o setor por meio da contribuição para o desenvolvimento da indústria cinematográfica e audiovisual brasileira
e dá uma lista enorme de fatos geradores sobre os quais recairá a taxa, a Condecine
.
O pior momento da peça está nos artigos 42 e 43. No primeiro, diz que vai exigir das prestadoras de serviços no setor respeito aos valores éticos, sociais e morais da família
, sem dizer que tipo de manual de costumes vai consultar. No 43, outorga-se o direito de dispor sobre a responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação
. Triste é ver o imenso Gilberto Gil aceitar um texto que ele não redigiu e que, em tantas notas, desafina na sua biografia.
Tudo no projeto lembra outra época, outro mundo, cujos muros já desabaram há 15 anos, um mundo em que o poder central planificador decidia, julgava, condenava, organizava e administrava por obscuros e subjetivos conceitos, e transformava os produtores culturais em peças da máquina de propaganda estatal. O governo recolheu o texto e diz que vai refazê-lo. O melhor destino para esse texto é o lixo.
Nota
* A Lei de Imprensa só foi revogada pelo Supremo Tribunal Federal em 2009.
Jornal de amanhã
6.1.2007
No final da década de 1980, visitei o Wall Street Journal. Lá perguntei ao editor-chefe por que eles nunca tinham pensado em mudar a primeira página, que todo dia parecia ser a mesma. Quem vende dois milhões de exemplares por dia tem que mudar?
, perguntou, coberto de razão e circulação. Esta semana, o jornal conservador estreou cara nova. O que mudou? Tudo. E tudo continuará mudando nas comunicações, na maneira de fazer circular informação.
O WSJ quer reduzir o uso de papel e, por isso, fez uma página mais estreita. Boa providência nestes tempos em que cortar desperdício de recursos, em geral, e de papel, em particular, faz todo o sentido, por motivos empresariais e ambientais. Quer atrair mais o leitor que, depois da internet, busca informação de forma mais rápida e mais atraente. No fim de 2005, visitei novamente o Wall Street Journal, e o problema que os editores enfrentavam era como cobrar pelo conteúdo on-line, lutando contra a ideia de informação sem custo que a internet havia disseminado.
Dilemas assim vão continuar acontecendo em toda a imprensa, mas o melhor caminho é seguir em frente, surfando a vertiginosa era da mudança que nos atinge a todos. Tempos revolucionários são mesmo desafiadores. Ano passado, a revista The Economist publicou uma reportagem de capa com o título: Quem matou o jornal?
Ele está vivo e passa bem, mas o mundo está mudando rapidamente. A circulação dos jornais tem caído em muitos países, mas o consumo de informação tem aumentado. As previsões sobre o fim dos jornais continuam sendo feitas, como antigamente se imaginava que o rádio morreria por causa da televisão. O jornalista Philip Meyer, no livro The Vanishing Newspaper, seguiu a tendência da queda do número de leitores para prever que o último jornal será editado em 2043. Os dados são claros: os jovens leem mais jornal na internet que em papel; o erro é achar que jornal é aquilo que sai impresso. A plataforma vai continuar mudando; o negócio de procurar, processar, oferecer, circular, comentar e interpretar a informação permanecerá existindo. O erro é fazer análise com categorias estáticas num mundo em vertiginosa transformação.
Hoje metade dos leitores do britânico The Guardian, na sua versão na internet, está nos Estados Unidos, informa a Economist. Qualquer um que esteja procurando informação está mais bem equipado que nunca
, diz a revista. Por isso é que cada mídia aprende com a outra, e os jornais têm sites, blogs, podcasts, áudio-slide shows. Um realimentando o outro. Não tem que haver uma competição entre o on-line e o impresso quando está ocorrendo fusão, mudança, influência recíproca de um e outro formato. Se há uma previsão que pode ser feita é que o mundo da comunicação vai continuar mudando.
Passei uma parte da folga de fim de ano de 2006 atracada com o livro Pulitzer Prize Feature Stories, organizado pelo jornalista e professor de jornalismo David Garlock. O livro traz todas as reportagens que ganharam o Pulitzer na categoria "feature (matérias especiais) desde 1979, quando foi instituída a premiação para esse estilo. Quem lê conclui que a reportagem nunca vai morrer, qualquer que seja sua forma de apresentação. O primeiro dos textos,
Mrs. Kelly’s monster", escrito por Jon Franklin para o Baltimore Evening Sun, é sobre uma cirurgia no cérebro. Qualquer pessoa pode achar que o assunto não atrairia a atenção do público em geral. Nem o editor avaliou bem, porque não fez chamada de primeira página e obrigou o autor a dividi-la em duas, para ser publicada com continuação. Jon Franklin teve que se esmerar para prender a atenção do leitor por 24 horas, para que ele quisesse ler a sequência. Escrita há 28 anos, a reportagem ainda hipnotiza até a última linha.
Reportagem em forma de feature é um dos inúmeros estilos jornalísticos. A forma de fazer uma reportagem na televisão é espantosamente diferente de contar a mesma história no jornal impresso. A forma como a internet trata a notícia é totalmente distinta. Rádio e revistas são dois produtos inteiramente diversos. São múltiplos os caminhos, as formas, os estilos e as plataformas para se fazer a mesma coisa: buscar informação e oferecê-la aos consumidores. Nada disso vai morrer, pelo contrário, nunca se consumiu tanta informação.
Na carta do diretor do Wall Street Journal aos leitores explicando o novo desenho gráfico, L. Gordon Crovitz diz que ele tenta unir tradição e mudança
. O jornal, fundado em 1889, passou por uma mudança em 1940 e agora chegou à sua terceira versão. Internamente, é chamada de Journal 3.0. A versão impressa procurará ser o que a notícia significa
, com mais análise e avaliação das consequências do fato. A versão on-line será o que está acontecendo agora e como será o jornal de amanhã
. O WSJ tem hoje tiragem de 1,7 milhão de exemplares; no ano passado, teve um aumento de 10%. Tem também 800 mil assinantes on-line. Eles estão convencidos de que os leitores estão demonstrando querer consumir cada vez mais jornal; na forma impressa, na versão on-line ou em qualquer outra forma digital. E que, no mundo atual, de mudanças tecnológicas, complexidades globais, incerteza econômica, escândalos e dúvidas
, o fundamental é ter a confiança dos leitores. O resto é apenas a forma como o produto é entregue. A embalagem.
A notícia vive
14.6.2009
Tudo está se movendo ao mesmo tempo no mundo da transmissão da notícia. Tanto que nem sei por onde começar esta coluna. A Newsweek, em edição recente, avisou que aquele era o primeiro número de uma nova revista, reformulada diante do fato de que a internet está fazendo muito bem o trabalho de dar notícias e análises instantâneas
. O que sobra para um veículo lento como uma revista?
A Newsweek acha que sobra o espaço para reportagens exclusivas e grandes ensaios que tenham um argumento claro e inédito. A