CP 080174
CP 080174
CP 080174
O MOMENTO MONARQUIANO
O MOMENTO MONARQUIANO
Rio de Janeiro
2007
O Momento Monarquiano 3
Agradecimentos
A elaboração de uma tese de doutorado é uma longa jornada durante a qual passamos
por vários lugares e encontramos muitas pessoas. Seria imperdoável, por isso, deixar de
agradecer a algumas pessoas que, de variadas formas, colaboraram para que este trabalho
chegasse ao seu termo.
verdadeira música de câmara, com suas exposições elegantes e cristalinas que diluíam a
enorme erudição subjacente. Para completar, o professor do Colégio de França me deu um
salvo-conduto que, abrindo todas as bibliotecas da cidade, me permitiu contornar os
funcionários que pretendessem me negar acesso aos embolorados livros de que carecia.
Assisti também a cursos de outros professores, como o de Patrice Gueniffey, expoente dos
estudos da Revolução Francesa, e com quem conversei por diversas vezes, sem formalidades
ou horas marcadas. Outra personalidade de quem não esqueço é Marcel Gauchet, alto, magro,
os olhos pequenos, atravessando apressado o portão do Boulevard Raspail a pé, de jeans,
paletó e mochila nas costas; a sala de aula repleta, gente sentada no chão, na beirada da janela,
ou assistindo as aulas em pé, ouvindo em silêncio a leitura de seus manuscritos. Foram mais
três anos escrevendo esta tese, desde o esboço do terceiro capítulo que entreguei ao prof.
Rosanvallon, antes de partir.
Hoje, dia em que lhe ponho termo, vejo o quão inferior teria sido o resultado, caso não
tivesse contado com um orientador amigo e atento como o prof. Marcelo Jasmin. Durante
meu tempo na França, mantivemos contato pela internet, em longas conversas nas manhãs de
domingo. Sua marca intelectual distintiva é a de ser mestre absoluto de seu campo, que é o da
historiografia política, conhecimento sedimentado ao longo de uma carreira muito sólida, que
lhe deu a completa maîtrise du métier. Sua orientação foi crucial quando, voltando da Europa,
e sendo hora de começar a aprumar o amontoado de informações, o prof. Marcelo me incluiu
entre os apresentadores do Quarto Congresso Internacional de História Conceitual. A surra
serviu de para que, no decorrer das reuniões do Grupo da História e das Idéias e dos
Conceitos Políticos, no próprio IUPERJ, eu levasse a sério o estudo metodológico. Lá, pude
conhecer colegas dedicados como Maria Elisa Mäder, Bernardo Ferreira e Luísa Rauter.
Outras pessoas também colaboraram com sugestões e incentivos, como o prof. João Feres,
sempre próximo e com quem prenuncio parcerias produtivas. Foram tardes inteiras
conversando com meu colega de doutorado, Ivo Coser, com quem a discussão sobre os
debates do Império recriava, como que por mágica, a sensação familiar de um tempo não
vivido. Não esqueço também de Rogério Dultra dos Santos, outro companheiro de debates,
nem de Samuel Rodrigues Barbosa, ex-colega do Departamento de Direito Público da UFF,
hoje na USP. Last but not least, agradeço aos membros de minha banca de doutorado,
Antônio Carlos Peixoto, Gildo Marçal Brandão, César Guimarães e, de novo, Luiz Werneck
Vianna, professores experientes cujas sugestões melhoraram a estrutura da tese, quando de
seu definitivo depósito.
O Momento Monarquiano 5
Resumo
Dialogando com o pensamento político brasileiro e com a história das idéias políticas, a
presente tese pretende contribuir na compreensão dos discursos, conceitos e representações
por meio das quais, no contexto das revoluções ibero-americanas, o Brasil ingressou na
modernidade política. Esta tese se debruça sobre dois temas principais: a formação do
conceito de Poder Moderador e a centralidade do discurso monarquiano no debate sobre a
construção do Estado nacional. Remonto aos principais conceitos e discursos da tradição
política européia pós-renascentista para, num segundo momento, verificar como eles se
adaptaram ao governo representativo brasileiro, acomodando-se às estratégias das lutas
políticas entre os setores socialmente relevantes, aos vaivens de alianças partidárias e às
sucessivas teorias do governo representativo formuladas no decorrer do século dezenove.
Dentre as matrizes discursivas do debate brasileiro, destaco as que mais duradouramente se
enfrentaram – o discurso monarquiano, recepcionado pela direita, e o liberalismo vintista da
esquerda, enriquecidos posteriormente com as novas contribuições ideológicas inglesas,
francesas ou americanas, sem perderem seu original caráter de antagonismo.
O Momento Monarquiano 7
Sumário
Introdução.
Conclusão.
Referências Bibliográficas.
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Introdução
viram também herdeiros de uma tradição liberal rica, embora minoritária frente àquelas que
guardavam uma concepção absoluta da soberania1. De alguns anos para cá, tem-se especulado
sobre uma terceira onda revolucionária, que englobaria os acontecimentos que marcaram o
advento do liberalismo no mundo ibérico europeu e americano, e que vem sendo
impropriamente denominada de revoluções hispânicas (1808-1825) 2. Seu estudo autônomo
permitiria compreender aspectos da modernidade política que teriam ficado obscuros nas
experiências anteriores, como a “questão do tamanho das nações, como é feito o seu recorte, e
o vínculo do velho e do novo, das formas sociais antigas com uma integralidade liberal, o
vínculo entre o cidadão e a comunidade” (ROSANVALLON, 2006). Embora envolva alto
grau de complexidade, dado o arco de nações envolvidas e suas grandes diferenças
geográficas, étnicas e históricas, o desafio tem sido enfrentado à altura, com a realização de
congressos internacionais que reúnem acadêmicos de quase todas elas3. Esperam-se
contribuições significativas dos debates que terão início com o bicentenário da invasão
napoleônica da Península Ibérica, em 2008, e que se estenderão pelos quinze anos seguintes,
articulando, numa perspectiva comparada, as histórias políticas dos países ibero-americanos.
1
A Revolução americana (1774-1787) foi estudada por Gordon Wood, Bernard Baylin, Isaac Kramnick e John
Pocock, que dela deixaram obras como A Criação da República Americana, As Origens Ideológicas da
Revolução Americana, Republicanismo e Radicalismo Burguês e O Momento Maquiaveliano. Os estudos sobre a
Revolução Francesa (1789-1815), por suas vezes, foram renovados por François Furet, Marcel Gauchet, Pierre
Rosanvallon e Keith Michael Baker, que deixaram, entre outras obras, A Revolução Francesa, A Revolução dos
Direitos Humanos, O Modelo Político Francês e Inventando a Revolução Francesa.
2
Seu marco fundador teria sido a obra Modernidade e Independências, de François Xavier Guerra, seguida pelo
esforço de autores como José Maria Portillo e Javier Fernández Sebastián para expandir as análises já adiantadas
do movimento liberal espanhol para o conjunto do universo ibero-americano.
3
Refiro-me especialmente ao congresso El linguaje de la modernidad en Iberoamérica - conceptos políticos en
la era de las independências, organizado por Javier Fernandez Sebastián em Madri em setembro de 2007 e que
reuniu pesquisadores da Espanha, Portugal, Brasil, Argentina, Chile, Peru, Colômbia, Venezuela e México.
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É no âmbito deste debate que se insere a presente tese. Ela pretende examinar os
discursos, conceitos e representações por que o Brasil ingressou na modernidade política, no
contexto das revoluções ibero-americanas, e como sua cultura política foi por eles estruturada
durante o século dezenove. Dois temas entrelaçados lhe servem de fio condutor: o conceito de
Poder Moderador e o discurso político monarquiano. O caráter polissêmico do primeiro
sempre me pareceu fértil para examinar a recepção dos demais e suas interações com a luta
política, designando por extensão poder pessoal, centralização, poder excepcional, primado
do Estado, bem comum, neutralidade. Já a expressão monarquiano, que emprego para
designar o discurso da direita brasileira no período da independência, não é sinônima de
monarquista ou monárquica. Ela se originou do grupo dos patriotas moderados que teve
destacada atuação no primeiro ano da Revolução Francesa, e que, reunidos num clube
denominado Sociedade dos Amigos da Constituição Monárquica, foram conhecidos como
monarquianos (monarchiens), expressão que dali por diante ficou associada a este grupo4. Foi
a concepção monarquiana de poder que, trasladada ao outro lado do Atlântico, permitiu ao
governo constitucional representativo adaptar-se pragmaticamente à herança do despotismo
ilustrado na América Portuguesa. Ao saudar no monarca o primeiro representante da
soberania nacional, o monarquianismo permitiu veicular o liberalismo possível numa terra
cuja fragilidade social impunha ao Estado forjar a nova ordem como condição das reformas
preconizadas pelo espírito da ilustração; ela daria à alta burocracia brasileira a incumbência de
organizar, num quadro liberal, a defesa da centralização política em torno do poder pessoal do
Imperador, assim como proceder à abolição do tráfico de escravos, à civilização dos índios e à
imigração estrangeira5.
4
A fim de preservar essa distinção em português, relevante para não confundi-lo com agremiações monarquistas
de orientações diversas, achei de melhor alvitre reproduzir a expressão monarquianos, adotada por Henrique de
Araújo Mesquita em sua tradução do Dicionário Crítico da Revolução Francesa (FURET, 1989).
5
As expressões direita e esquerda são aqui empregadas menos como ideologias do que como lugares do
espectro político, ou seja, programas contrapostos que traduzem contrastes de idéias e, portanto, de interesses e
valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade. Enquanto lugares, direita e esquerda exprimem
O Momento Monarquiano 12
Do outro lado do espectro político estava o discurso liberal vintista que, na esteira de
Cádiz, brandia as doutrinas de Sieyès para fazer da Assembléia, e não do Imperador, o
representante da soberania nacional. Defensores de um Estado absenteísta, da livre
concorrência e das leis do mercado, o liberalismo de esquerda visava a circunscrever a esfera
pública ao antigo círculo de senhores de terra, perpetuando a assimetria social do Antigo
Regime pela criação de uma Nação de cidadãos aristocratas. Persistiria durante todo o
regime monárquico essa oposição entre um liberalismo de Estado, de caráter intervencionista,
que queria extinguir a escravidão e integrar o povo pela via tutelar, e um liberalismo
oligárquico, que pretendia intensificar a escravidão e restringir os benefícios da ação do
Estado ao âmbito da elite rural (SANTOS, 1978). Essa oposição se refletiu em duas diferentes
formas de interpretar a Constituição que, sem perderem seu caráter polêmico, se enriqueceram
com as contribuições do liberalismo europeu e se acomodaram às lutas políticas, aos vaivens
dos partidos e às novas teorias de governo 6. Sobrevivendo na República em forma
historiográfica, a ideologia monarquiana saquarema foi reaproveitada nas décadas de 1920 e
1930 pelos tenentes e pela burocracia para centralizar novamente o país em torno do chefe de
Estado e viabilizar uma democratização pelo alto da sociedade brasileira (WERNECK
VIANNA, 1997; CARVALHO, 2001; LYNCH, 2004). Ao sedimentar um modo específico de
pensar o país, a ideologia monarquiana criou raízes nas representações da sociedade brasileira
e exerceu, na formação da sua cultura política, impacto análogo àquele do republicanismo
clássico na formação da cultura norte-americana.
divergências inarredáveis, que existem em qualquer sociedade e não têm como desaparecer (BOBBIO, 1995:33).
Adoto assim, como critério de distinção da esquerda e direita, sua maior ou menor propensão a aceitar a
igualdade como um dado social. No primeiro caso está a direita, aceitando em alguma medida o habitual, a
tradição, a força do passado, ao passo que a esquerda tende “de um lado, a exaltar mais o que faz os homens
iguais do que os que os faz desiguais, e de outro, em termos práticos, a favorecer as políticas que objetivam
tornar mais iguais os desiguais” (BOBBIO, 1995:110).
6
Não se confere aqui idêntica atenção aos grupos urbanos radicais, compostos de pequenos comerciantes,
profissionais liberais e empregados dos anos da independência ou do começo da Regência, cuja importância
política e ideológica é freqüentemente sobreestimada. Pipocando na forma de um partido exaltado entre 1821 e
1824 e, depois, entre 1831 e 1834, o radicalismo insurrecional nunca teve representação parlamentar e, salvo os
espasmos da Praieira (1848) ou da Revolta do Vintém (1881), desapareceu do cenário político imperial. Esse é o
principal motivo por que, algo na contramão dos estudos atualmente realizados, a deixo os grupos urbanos em
segundo plano para me focar na aristocracia rural e na alta burocracia urbana, considerando-os os únicos
segmentos socioeconômicos relevantes para a recepção dos discursos políticos europeus até a década de 1880.
Foram eles que, durante esse período, deram longa e estável sustentação a formas moderadas de liberalismo e
conservadorismo, refletidas no sistema bipartidário - pouco estudados, porém, a pretexto de sua vacuidade
ideológica Esta obra pretende provar justamente a relatividade dessa proposição. É o que explica, por fim, por
que considero aqui os discursos parlamentares mais importantes que os jornais e periódicos. Discuto de forma
mais detida este tema na primeira seção do capítulo 2, quando trato dos segmentos sociais brasileiros que
atuaram como agentes de recepção das linguagens políticas modernas.
O Momento Monarquiano 13
Em síntese, é este o objeto desta obra e que lhe justifica o título - O Momento
Monarquiano. Sua elaboração se beneficiou das obras de qualidade que têm sido publicadas
nas últimas décadas sobre a cultura política da independência - marco fundador da
sociabilidade política brasileira, em que suas primeiras representações institucionais se
revelaram como diferentes projetos de Nação7. Por outro lado, eu estava convencido que
precisava apreender o Poder Moderador não apenas como conceito, mas como instituição.
Para além do que me parecia feito no campo historiográfico, era preciso adensar a dimensão
teórica e política do campo, percorrendo a trajetória inversa àquela perfeita pelas idéias
políticas para compreender o Poder Moderador como um tipo ideal. Esboçada assim uma
teoria da discricionariedade regulada do poder soberano, pude retornar às suas abordagens
conceituais no debate político europeu dos séculos XVIII e XIX, para, ao cabo, examinar o
meio pelo qual sua recepção ou tradução lhe permitiu encarnar-se das formas como encarnou
no Brasil. Essa preocupação se deve à interpelação do chamado pensamento político
brasileiro, que faz da reflexão sobre os nossos clássicos um instrumento para interpelar a
sociedade e a história que os produziu (BRANDÃO, 2005:235). Aqui me beneficiei
principalmente de três autores. De Wanderley Guilherme dos Santos hauri a noção de uma
linhagem do pensamento brasileiro que diagnostica a invertebração da sociedade nacional e
vê, na existência de um Estado autônomo, a condição necessária para promover reformas que
apressem o advento de uma ordem liberal plena (SANTOS, 1978). De José Murilo de
Carvalho extraí a interpretação geral do processo político imperial, bem como sua preciosa
caracterização das elites e dos partidos monárquicos (CARVALHO, 1998). Luiz Werneck
Vianna, por fim, me fez compreender o peso ulterior da experiência imperial, evidente na
organização do Estado Novo, e a necessidade de examinar as matrizes ideológicas de cada
período à luz, não do discurso, mas do processo efetivo de democratização, deflagrado
somente na década de 1920 na forma de uma revolução passiva (VIANNA, 1997) 8.
7
Refiro-me, entre outras, a Teatro de Sombras e A Construção toda Ordem, de José Murilo de Carvalho; O
Tempo Saquarema, de Ilmar Rohloff de Mattos; Corcundas e Constitucionais, de Lúcia Bastos; A Cultura Luso-
Brasileira, de Maria Beatriz Nizza da Silva; Insultos Impressos, de Isabel Lustosa; O Pacto Imperial, de Miriam
Dohlnikoff; e Idéias em Movimento, de Ângela Alonso.
8
A contribuição destes autores - e também de outros, como Bolívar Lamounier, com sua visão contraposta à de
Wanderley Guilherme (LAMOUNIER, 1997) - se refletiu na ascensão do campo no quadro das ciências sociais.
Hoje ele se acha infalivelmente presente em seminários e congressos da Associação Brasileira de Ciência
Política (ABCP), da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e da Associação Nacional de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (ANPOCS), para não falar da história e da antropologia. No que toca à produção bibliográfica,
basta aludir aos trabalhos que lhe têm sido dedicados da parte de especialistas como Ângela de Castro Gomes,
Werneck Vianna, Marcelo Jasmin, Maria Alice Rezende de Carvalho, Gildo Marçal Brandão, Elide Rugai
Bastos, Bernardo Ricupero, Gláucia Villas-Boas, Gabriela Nunes Ferreira e André Botelho, entre muitos outros.
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funcionar sob o signo das teorias do governo misto e da separação de poderes, que fazem do
regime uma espécie de monarquia presidencial. Em 1837 se inicia o segundo período com a
inauguração do modelo político saquarema, adaptado da teoria do governo parlamentar
elaborada durante a Monarquia de Julho e caracterizado, entre nós, pela tutela do Imperador,
reputada essencial por seus criadores para estruturar de cima para baixo as novas instituições.
O terceiro período começa em 1878/1881, quando, deslegitimado pela teoria do
parlamentarismo democrático, o modelo saquarema foi substituído, na prática, por um
parlamentarismo aristocrático, porque organizado e dominado pela grande propriedade rural.
O processo de abolição da escravatura apoiada pela Coroa entre 1884-1888 frustrará o novo
modelo, impondo à grande propriedade rural a necessidade de se livrar da monarquia e tentar
se organizar, a partir de 1889, como uma república aristocrática.
Já uma história das idéias políticas brasileira deve também levar em conta as
circunstâncias históricas, geográficas, econômicas e culturais que contribuíram para que, a par
das semelhanças, houvesse diferenças de ênfase ou de conteúdo entre os tópicos centrais do
nosso debate constitucional e aqueles travados nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na
França. Acima de tudo, a principal preocupação de um historiador das idéias políticas
brasileiras deve ser o de levá-las a sério, conferindo-lhes a mesma dignidade conferida às das
histórias dos países ditos centrais. Embora a condição periférica do Brasil não permitisse
maior projeção de seus doutrinadores no século dezenove, políticos como Hipólito da Costa,
Gonçalves Ledo, o Marquês de Caravelas, Evaristo da Veiga e Bernardo de Vasconcelos
elaboraram uma teoria política de caráter pragmático; teoria formulada a partir da polêmica
aclimatação das idéias liberais na sociedade pós-colonial. Uma boa seleção de discursos
parlamentares e de artigos de jornal bastaria para desmentir o velho clichê da inferioridade do
pensamento brasileiro frente, por exemplo, ao norte-americano (penso aqui no Federalista); e
demonstrar que a maior ou menor divulgação de um e outro se deve principalmente a causas
que não se prendem à qualidade da teoria produzida, mas a fatores acidentais como o êxito
político, militar ou econômico do país e sua projeção no restante do mundo. Estes são fatores
que em nada diminuem a riqueza e a importância da teoria política brasileira para conhecer
nossa história política e pensar os seus dilemas, ou os de outros países novos. Isto é
particularmente verdadeiro num momento como o atual, em que o Brasil caminha para se
tornar um importante ator do cenário internacional e já é visto na Europa, por exemplo, como
uma das futuras potências econômicas do século, ao lado da China, da Índia e da Rússia.
Por isso, é preciso tirar da cabeça a idéia de que a história das idéias no Brasil foi ou é
mero reflexo do debate dos países centrais, ou que o teria sido em grau superior ao que foram
os demais, como Portugal, Espanha, Itália, Bélgica, México ou Argentina. A autonomia
conferida às idéias por conta de sua abstração, de um lado, e a concretude da luta política de
cada país, de outro, permitem uma extraordinária emancipação dos conceitos de seus
contextos originários, o que os torna armas de argumentação e compreensão das realidades
locais. O peso retórico dos argumentos estrangeiros não banaliza ou esvazia o debate na
periferia – ao contrário, torna o seu estudo mais complexo e delicado, por apresentar
constantemente sobre problemas da recepção conceitual. Além disso, a ciência, pelos atores,
do lugar e da história do Brasil, assim como das particularidades de sua formação nacional,
deu origem a argumentos que não são redutíveis àqueles vindos de fora, fato que aconselha a
adoção de alguns procedimentos metodológicos diferentes daqueles que se presume ser o dos
O Momento Monarquiano 19
Por fim, entendo que um exame do debate político não pode dispensar um casamento
com a história política e social. Não se deve perder de vista o quadro de fundo em que o
debate se trava, o modo como a Nação se acha composta e o que pensam dela seus diversos
setores. Isso é particularmente necessário quando a modernidade política chega num meio
marcado pela exclusão social, em que as dimensões identitárias transmitidas por conceitos
como povo e nação são praticamente monopolizadas pelas elites. Há setores sociais inteiros
que não têm condições de se manifestar no debate político por estarem reduzidos ao silêncio,
pelo analfabetismo ou outra qualquer razão, mas que nem por isso podem ficar sem registro
(FERES JR., 2005). Dispensar a história social para ficar restrito à dimensão lingüística dos
conceitos, nesse caso, dissiparia excessivamente as diferenças existentes entre os países,
vistos em perspectiva comparada. Ignorado o fato da escravidão e restrito o exame do debate
àquele linguisticamente registrado, por exemplo, o debate brasileiro se percebe muitíssimo
semelhante ao português e o espanhol. Por outro lado, ficam sem possibilidade explicativa
questões relevantes que dizem respeito à nossa condição nacional – entender, por exemplo,
por que uma monarquia tão estável quanto a brasileira cai diante de um golpe militar para
nunca mais voltar, enquanto a espanhola, sacudida por dezenas de pronunciamentos,
revoluções e guerras civis, encontra sua almejada estabilidade exatamente quando aquela
entra em crise.
Daí que um dos maiores desafios deste estudo seja tentar relacionar por que
determinados conceitos ou discursos são recepcionados em detrimento de outros, ou têm mais
repercussão, em relação à sociedade onde eles originalmente se achavam. Essa tarefa exige
O Momento Monarquiano 20
cumulativamente com o Executivo, desde que interpretado à luz dos artigos doutrinários que
assegurassem a primazia do Imperador na representação da soberania nacional.
Iniciada por Heródoto (485 A.C. – 420 a.C.), a teoria clássica das constituições ou
formas de governo se funda na aspiração de encontrar uma forma de governo que seja justa
para o conjunto da comunidade política, ou seja, onde predomine o bem comum. Seu
principal formulador grego, Aristóteles (384 a.. C. – 322 a.C.), fixou na sua Política dois
critérios gerais que as definiriam. Pelo primeiro, de cunho quantitativo, as formas são
definidas a partir do número de governantes. Temos assim a monarquia, que é o governo de
um (o monarca); a aristocracia, governo de alguns (os melhores, isto é, os aristocratas); e a
democracia, governo do povo (isto é, de todos). Já o segundo critério seria qualitativo: a
excelência das formas puras de governo dependeria das virtudes pessoais dos governantes. Se
os governantes forem virtuosos – sejam eles monarcas, aristocratas ou democratas -, o
governo deles atenderá ao bem comum e, portanto, será justo. Entretanto, quando a virtude
desaparece e os governantes se entregam às paixões e aos vícios, isto é, aos interesses
particulares, a forma de governo se corromperia, gerando injustiça. Assim, caso o monarca
O Momento Monarquiano 25
Para além desses dois critérios, a teoria clássica das formas de governo compreendia
um elemento dinâmico – uma teoria cíclica da história, caracterizada por dois grandes
postulados. De acordo com o primeiro, cada uma das constituições corrompidas cederia
cronologicamente lugar à seguinte forma de governo virtuosa. Ou seja, à tirania, por exemplo,
sucederia a aristocracia; à demagogia, a monarquia. De acordo com o segundo postulado,
todas as formas virtuosas tenderiam fatalmente a se corromperem, dados os vícios e às
paixões da natureza humana. Isso significava que as constituições eram instáveis, oscilando
constantemente entre bons e maus governos. Constituição boa, a monarquia tendia a
degenerar em tirania, governo ruim. Inconformadas com o jugo do tirano, as grandes famílias
terminariam por depô-lo para assumirem a direção política. Passava-se desse modo à
aristocracia, constituição positiva que, corrompendo-se, por sua vez, nas mãos dos
descendentes de seus fundadores, tornava-se uma oligarquia. Derrocada afinal pelo povo
oprimido, a oligarquia cedia lugar à democracia que, decaindo pela hegemonia do populacho
e pela ambição de seus tribunos, passava à condição de demagogia ou oclocracia.
Dissolvendo-se esta na anarquia e na guerra civil, a paz e a ordem voltavam pelas mãos de um
general vitorioso que, passando a governar, acarretava ipso facto no restabelecimento da
monarquia, ou seja, do bom governo de um. Fechava-se um ciclo; começava-se outro,
destinado a percorrer idêntico caminho... Frente à falibilidade moral dos homens, as formas
ou constituições puras de governo colocavam um problema a todos que se preocupavam com
o estabelecimento de um governo justo. Era possível evitar ou adiar a corrupção das formas
boas de governo, de maneira a perpetuá-los ou, pelo menos, estabilizá-los?
A solução encontrada foi o chamado governo misto ou constituição mista. Crendo que
todo o bem jazia no meio, Aristóteles afirmara que o governo ideal seria um misto de
oligarquia com democracia: a divisão do poder entre ricos e pobres, segundo ele, remediaria a
mais importante causa de tensão social, que era a luta dos despossuídos contra os proprietários
– principalmente se, entre ambos, houvesse uma classe média significativa. Sem interesse na
alteração do governo para oligárquico (como teriam os ricos), nem para democrático (como
teriam os pobres), o predomínio dessa classe intermediária ajudaria a preservar a forma de
O Momento Monarquiano 26
governo contra as tentativas de sua subversão. Entretanto, a ênfase de Aristóteles recaía mais
sobre o equilíbrio social do que institucional. Ele não acreditava que as instituições, por si só,
tenham força; era preciso que elas tivessem respaldo na estratificação da sociedade
(ARISTÓTELES, 1997). Por isso, foi o general e historiador Políbio (203 a.C. – 120 a.C.) o
primeiro defensor do governo misto propriamente dito, que a seu ver consistia em combinar
elementos de todas as três formas – o monárquico, o aristocrático e o democrático – e
equilibrá-las, aproveitando o que nelas havia de positivo e rejeitando o que as inclinava ao
conflito. Era o que Roma fizera, ao proclamar-se república: o elemento monárquico se
sujeitava ao controle do povo, elemento democrático; por outro lado, este último ficaria
controlado pelo senado, isto é, pelo ramo aristocrático. Os três elementos se controlariam
reciprocamente, resultando daí um equilíbrio que favoreceria mudanças lentas e graduais.
Reconhecendo a dificuldade de um governo misto perfeitamente equilibrado entre seus
elementos, Políbio recomendava em História o fortalecimento do senado, ou seja, do
elemento aristocrático que, posicionado entre os demais, favoreceria o equilíbrio sistêmico.
Na medida em que dessa mescla surgiria um governo mais estável e duradouro, e como tal,
mais resistente à corrupção, a doutrina do governo misto proclamava a sua superioridade
como forma de governo face aos três tipos puros de governo, que eram a aristocracia, a
democracia e a monarquia (POLIBIO, 1996:348).
O cerne daquela questão residira em estabelecer meios de decidir qual das duas
supremas autoridades sobre a Terra, a temporal (o Imperador) ou a religiosa (o Papa), era
competente para decidir numa situação excepcional em que a cristandade estivesse ameaçada
de perigo iminente (SKINNER, 1996:38). A querela acerca de qual deles poderia decidir
excepcionalmente na hipótese de uma grave ameaça à comunidade deu origem ao conceito de
soberania (KRITSCH, 2002), que acabou, todavia, sendo de mais valia aos reis do que aos
seus contendores originais. No âmbito externo, juristas como Marines estenderam aos
monarcas a categoria de princeps, presente nos manuais de direito romano, para afirmar sua
supremacia e negar sua necessária subordinação ao Papa e ao Imperador (BIGNOTTO,
2001:38). Dois elementos eram novos, contudo, na nova doutrina da excepcionalidade do
poder. O primeiro consistia na secularidade do ofício: “o bom rei é antes aquele que conhece
os meios de manter a coesão social do que os de submeter os cristãos à lei divina” (SAINT-
BONNET, 2002:118). O segundo residia na categoria da necessidade, que permitia ao
príncipe pôr de lado excepcionalmente as normas usuais e exercer de maneira discricionária
os poderes indispensáveis à salvação do Reino. A justificativa era simples: necessitas non
habet legem. Os três caracteres políticos do estado de exceção fixaram-se então: a
excepcionalidade da ocasião, a necessidade de uma ação pronta e a finalidade de salvação do
Estado. A doutrina do estado de exceção permitiu aos reis remover os obstáculos de ordem
moral e material que lhe impediam de aumentar tributos, requisitar força armada, legislar,
expropriar, com o que em longo prazo estenderam o seu poder sobre todo o território do
Reino. Na medida em que a escalada de guerras dos séculos quinze e dezesseis confundiu, nos
reinos europeus, estado de exceção e estado ordinário, o poder excepcional do monarca
acabou incorporado ao seu patrimônio permanente com prejuízo dos demais elementos do
governo misto, como a Igreja e a nobreza.
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Bodin sustentava que, se fosse permitido repartir o poder, “não haveria rei, nem harmonia alguma”. Um
“regime misto” era um verdadeiro disparate, porque uma soberania compartilhada era conceitualmente
inadmissível (BODIN, 1993:71, 181). Para Hobbes, essa forma de governo só era possível enquanto durasse o
frágil acordo entre os estamentos; quando ele se desfazia, “o Estado retorna à guerra civil e ao direito do gládio
privado, o que seguramente é muito pior do que qualquer tipo de sujeição” (HOBBES, 1998:122). Em opúsculos
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Os discursos por meio dos quais se exprimiam desde o século dezesseis os críticos da
monarquia absoluta, e que contribuíram decisivamente para formar um conceito de
Constituição identificado com o governo limitado, foram o do humanismo ou republicanismo
cívico, clássico ou neo-romano, e o do constitucionalismo antiquário (MADDOX, 1989:59).
Ambos pleiteavam a limitação do poder por meio de constituições mistas cujas leis
submetessem igualmente governados e governantes. Guiava-os principalmente a idéia de que,
“se você deseja manter sua liberdade, deve assegurar-se de que vive sob um sistema político
no qual não há elemento de poder discricionário, e, portanto, nenhuma possibilidade de que
seus direitos civis possam ser dependentes da boa vontade de um governante, ou grupo
governante, ou qualquer outro agente do Estado” (SKINNER, 1999:65). Assim, republicanos
como James Harrington (1611-1679), John Milton (1562-1647) e Algernon Sidney (1623-
1682) se debruçaram na Inglaterra sobre os meios de distribuir justiça numa cidade onde
todos fossem governados por consentimento, e as liberdades, protegidas por um governo
misto contra a ameaça de corrupção dos costumes (POCOCK, 2002:89); ao passo que
constitucionalistas antiquários como Sir Edward Coke (1552-1634), William Prynne (1600-
como A Anarquia de uma Monarquia Limitada ou Mista e A Necessidade do Poder Absoluto dos Reis, Filmer
justificava teologicamente a necessidade do poder monárquico absoluto. “Políticos, filósofos, sacerdotes e
historiógrafos sábios têm vivamente recomendado a monarquia, como superior a todas as outras formas de
governo. Não é para agradar ao príncipe que eles sustentam essa opinião, mas para a felicidade e a segurança dos
súditos. Caso contrário, se eles limitassem e restringissem a soberania absoluta do monarca (...), a soberania não
teria alicerces sólidos, e eles conseguiriam assim uma confusão popular ou uma miserável anarquia, que é a
praga de todos os estados e repúblicas” (FILMER, 1991:181).
O Momento Monarquiano 30
ao dilema de escolher, diante do perigo premente, entre duas alternativas igualmente ruins - o
legalismo suicida e a discricionariedade tirânica.
* * *
correspondia à teoria lockeana do poder político, que até cerca de 1760 obteve a adesão de
poucos radicais (DICKINSON, 2002:8). A linguagem mais popular, todavia, era o do
constitucionalismo antiquário, para o qual a Constituição era “um conjunto de leis,
instituições e costumes, derivados de certos princípios fixos de razão, que compõe o sistema
geral, de acordo com os quais a comunidade concordou em ser governada” (In: MADDOX,
1989:59). O republicanismo e o contratualismo já haviam cumprido seus objetivos com a fuga
dos Stuarts e a ascensão do partido whig, tornando-se perigosos para a classe política na
medida em que a oposição poderia mobilizar o conceito de soberania popular para justificar
um novo movimento revolucionário (DICKINSON, 2004:4). Por esses motivos, a explicação
da Constituição inglesa como um governo misto caracterizado pela “balança de poderes”, isto
é, um sistema de freios e contrapesos, granjeou a adesão esmagadora da literatura política e da
opinião pública no início do século dezoito11. A ênfase dessa ideologia judiciária, cujo
primeiro grande expoente havia sido Sir Edward Coke, radicava na idéia de gradualismo, de
mudança imperceptível pelo hábito, de consentimento tácito, de prescrição e adaptação
(POCOCK, 1987:19). Os antiquários sustentavam que, trazida a Constituição pelos saxões, os
conquistadores normandos teriam jurado obedecer-lha ao chegarem, aceitando-a, como seus
antecessores, como reguladora de seus poderes e fonte dos direitos dos súditos (HILL,
1992:303). Consagrados por sua longevidade e espontaneidade, os usos e costumes
decorrentes da Constituição e aplicados pelos tribunais reais constituíam um conjunto de
normas não escritas cuja validade independia da vontade do monarca. Era assim que o
constitucionalismo se valia da história para neutralizar a política; sintomaticamente, a
deposição de Jaime II era explicada como uma bem sucedida tentativa de preservar a “antiga
Constituição” contra o absolutismo, ao baixo preço de “um pequeno e temporário desvio da
ordem estrita de sucessão hereditária regular” (BURKE, 1986:101).
11
Eis como o governo inglês foi descrito por um pesquisador contemporâneo: “As unidades primordiais da
política (...) eram as três ordens básicas da sociedade correspondentes às três ordens básicas de governo: realeza,
a nobreza e os comuns. Esses estratos formais eram distintos em composição e em interesses. A realeza era única
em sua inviolabilidade e poder prerrogativo; representava a ordem e autoridade e simbolizava e unificava o
Estado. Os comuns tinham o poder dos números e da produtividade; eram únicos na promoção da liberdade e na
defesa da expressão individual. A nobreza, centralmente importante para a constituição, tinha uma
independência vigorosa garantida pela riqueza e pelo status herdados e que a habilitava a mediar os poderosos
conflitos gerados acima e abaixo dela; agia como um contrapeso, evitando que os comuns, por um lado,
transformassem a sociedade num populacho licencioso, e a Coroa, por outro, se tornasse tirânica. Cada um deles
era essencial, e igualmente essencial, para alcançar o equilíbrio no governo que traz tranqüilidade e felicidade a
todos; mas qualquer um deles, livre das pressões contrárias dos outros, degeneraria – tornando-se um tirano, ou
uma oligarquia auto-engrandecedora, ou uma democracia anárquica, destrutiva, no fim, da liberdade como
também da propriedade” (BAILYN, 2003:250).
O Momento Monarquiano 34
O mais célebre deles foi esboçado em 1748 por Charles-Louis de Secondat, Barão de
Montesquieu (1689-1755), que consagrou uma teoria que substituía o conceito de soberania
pela idéia-força da moderação. De fato, nas mais de quinhentas páginas de O Espírito das
Leis, a palavra soberania não é veiculada uma única vez. Outras expressões, como soberano
O Momento Monarquiano 39
ou poder soberano, são empregadas meia dúzia de vezes numa chave puramente formalista,
como sinônimo de poder superior, mas não absoluto. Nem o monarca, nem o déspota, são
jamais qualificados por Montesquieu como soberanos. Da mesma forma, ele recusa o
fundamento do jura imperii que tanto futuro teria na tradição administrativa francesa. Embora
tivesse retirado, depois das primeiras edições, a confissão de que escrevera O Espírito das
Leis como uma espécie de negativo do Testamento Político de Richelieu, ainda assim
persistiram críticas abundantes a ele e a quase todos os monarcas associados ao exercício
absoluto do poder (MONTESQUIEU, 1979: 31 401 e 44). Nesse quadro, não poderia ser
melhor a sorte da discricionariedade regulada: embora reconhecesse que a salvação o povo é
a suprema lei, devendo-se, excepcionalmente, “pôr-se um véu sobre a liberdade, tal como se
esconde a estátua dos deuses”, Montesquieu a invocava, não para justificar o poder
excepcional ou permanente do príncipe, mas para legitimar a resistência do povo ao tirano.
Ainda que, contendo remissões a Políbio, Maquiavel e Harrington, O Espírito das Leis
contivesse a mais formidável descrição até então efetuada da forma de governo republicana, o
tema central da ditadura romana era relegado a um segundo plano. Ela não teria passado de
um meio arriscado e violento de que se valia a aristocracia romana para manter a liberdade
contra os excessos do demos, cujo emprego pervertia os costumes ao invés de salvaguardá-
los. Tanto assim, que era à ditadura que ele atribuía a responsabilidade “pela derrubada da
república” – ou seja, da instituição que ela, em tese, estava encarregada de preservar.
“Magistraturas terríveis”, a censura, a ditadura e a inquisição não passavam de remédios
anacrônicos, violentos e ineficazes de preservação da liberdade (MONTESQUIEU, 1979:34,
68 e 78). O único mecanismo de discricionariedade regulada reconhecido como legítimo era o
da Constituição Inglesa, ou seja, a suspensão temporária da garantia de habeas corpus
(MONTESQUIEU, 1979: 405 e 150).
demais tipos de governo, ao estamento nobiliárquico cabia filtrar os excessos do poder desde
a sua fonte (o Rei) até seus destinatários (o povo). Por sua condição privilegiada do ponto de
vista civil e sua colocação estratégica entre o povo e o monarca, a nobreza e seus tribunais de
justiça, os Parlements proporcionavam as condições “físicas” e sociais da liberdade da
constituição monárquica. Tudo estava aí de acordo com a “voz da natureza” - a maior
complexidade da estrutura política, a autonomia da sociedade frente ao governo, a
compatibilidade dos direitos com o progresso econômico, o esclarecimento dos homens e o
papel da lei como moderadora dos conflitos. Reconceitualizado à luz da razão, o
constitucionalismo antiquário era alçado por Montesquieu à categoria de um universal, e a
monarquia gótica, obra-prima do governo misto, reputada “o melhor governo que os homens
puderam imaginar” (MONTESQUIEU, 1979:175).
torrente das paixões e dos interesses, era evidente a superposição dos elementos antiquários e
republicanos. Concebida a sociedade como lugar de diversidade de interesses conflitantes,
mas legítimos, a divisão estamental entre monarquia, aristocracia e democracia era
encapsulada pela concepção institucionalista de separação de poderes eqüipotentes por
especialização em Executivo e Legislativo. Ao aniquilar a soberania para converter a
monarquia, de tipo puro, num governo do direito e da pluralidade, Montesquieu difundiu a
primeira teoria sistemática do constitucionalismo moderno, estabelecendo a Constituição
Inglesa como paradigma de um governo representativo. Cerca de trinta anos depois, ao
declararem sua independência, o esquema de Montesquieu seria adotado pelas treze colônias
inglesas ao se organizarem como os Estados Unidos da América.
* * *
Essa não foi, todavia, a trajetória do Estado de direito na Europa continental, onde o
discurso republicano e o constitucional antiquário haviam sido esmagados pelo absolutismo
durante o século dezessete. Refugiados na Holanda e na Suíça, os antiquários e republicanos
cívicos continuaram a imprimir libelos, de pouca repercussão, todavia (WRIGHT, 2002). Na
primeira metade do século seguinte, porém, o ambiente já estava impregnado por uma
mentalidade que condenava o passado em nome da razão e popularizava uma interpretação do
político pelo direito público. O que até então fora história se tornara abstração metafísica: os
homens gozavam de direitos naturais que a ordem social não podia revogar. A tendência do
racionalismo foi sustentar a defesa dos direitos fundamentais por leis que limitassem o poder
do Estado, mas que espelhassem a vontade esclarecida de um soberano nacional, uno e
indivisível. Para compreender como se chegou a esse paradoxo, é preciso remontar ao
discurso político francês anterior a Revolução.
13
Em meados do século, outros constitucionalistas antiquários, como Durey de Meinères e Le Paige,
aperfeiçoaram o argumento com pesquisas históricas, postulando que os Parlements eram sucessores diretos das
assembléias dos francos. Os tribunais aristocráticos espalhados pelo país, por suas vezes, seriam integrantes de
um único corpo judiciário encabeçado pelo de Paris e que, tendo por missão servir de intermediário entre o povo
e o rei, eles eram uma parte tão inviolável e integral da antiga Constituição Francesa quanto a própria monarquia
(BAKER, 1990:38).
O Momento Monarquiano 45
que a nobreza tentava “revestir de algum brilho a torpeza de sua origem” (VOLTAIRE, 2001:
202 e 69). Em Do Espírito, Helvétius criticava a constituição inglesa como má e irracional,
verdadeira anarquia de interesses particulares; e a restauração da monarquia gótica,
restabelecendo o poderio feudal da nobreza, interromperia todo o progresso racional adquirido
pelo movimento das Luzes. (HELVÉTIUS, 1973 b: 228). A experiência francesa comprovara
que um poder absoluto, fora do alcance das facções e das paixões, era a única força capaz de
vencer a resistência da nobreza e de criar um pólo alternativo aos interesses privados, em
torno do bem comum. Era o que ele vaticinava nas suas Cartas sobre o Espírito das Leis:
somente “enfraquecendo a estúpida veneração dos povos pelas leis e usos antigos, que se
põem os soberanos em condição de purgar a terra da maioria dos males que a desolam”
(HELVÉTIUS, 1973b: 225). Por isso, ao invés de desconcentrar o poder, as reformas
deveriam elevar a potência discricionária do monarca e orientá-lo a agir conforme as leis da
natureza, para que ele pudesse esmagar mais prontamente os focos feudais remanescentes
representados pelo clero e pela aristocracia e concretizar uma ordem em que os direitos
individuais fossem respeitados. Daí que “um rei verdadeiramente bom é o mais belo presente
que o céu pode oferecer à terra” (VOLTAIRE, 2001:81).
14
Guillaume-Joseph Saige não se inclui nessa radicalização do pensamento republicano. Embora reconhecesse a
O Momento Monarquiano 48
assembléia como depositária da vontade geral, ele explicava a constituição legítima do Reino a partir do governo
misto. O Executivo seria bifronte: teria um Rei hereditário e um senado ou "corte de França" - na verdade, a rede
de Parlements. As tarefas de que o Executivo estava encarregado, para Saige, eram substancialmente maiores do
que para Rousseau e Mably. Da mesma forma, ele incluía, entre os direitos sagrados do cidadão, o de
propriedade (SAIGE, 1787:84); era econômico nas referências à Antigüidade; era simpático aos tribunais
nobiliárquicos e não falava da discricionariedade regulada, tendo gosto antiquário (BAKER, 1990:128).
O Momento Monarquiano 49
A ditadura não apenas fazia aqui a sua reentrada como, graças à sua longeva
tradição, servia de referência às outras instituições. Segundo Rousseau, o governo ditatorial
surgia da impossibilidade de previsão legal das eventualidades da fortuna e da necessidade se
salvar a república em ocasiões de grave e iminente perigo. Quando a ameaça não exigisse o
completo “adormecimento das leis”, haveria uma concentração administrativa do Executivo
nas mãos de um ou dois magistrados (ROUSSEAU, 1997a: 225); entretanto, se a ameaça
fosse premente e de monta, a assembléia nomearia uma autoridade suprema que concentrasse
os poderes e suspendesse as leis na forma de uma ditadura comissariada (SCHMITT, 1968).
Neste ponto, havia divergências entre os dois principais autores republicanos franceses, sendo
a cautela legalista de Mably proporcional à sua desconfiança em relação ao radicalismo de
Rousseau. Embora reconhecesse que o a necessidade requeria, por vezes, o regime
discricionário, Mably contemplou apenas a hipótese de invasão estrangeira e só quando
esgotados os demais meios de salvação pública. Extintas as causas que lhe deram origem, o
Legislativo deveria imediatamente encerrar a ditadura e restabelecer o quadro constitucional
para evitar que “vias extraordinárias, à força de usá-las (...) se convertam em vias ordinárias”
(MABLY, 1789:357). Apesar de constatar a imprescindibilidade de prazos curtos e
preestabelecidos (ROUSSEAU, 1997a: 226), para Rousseau era impossível definir
juridicamente todas as hipóteses de auto-suspensão do ordenamento jurídico para as ditaduras.
O Momento Monarquiano 51
Mably também previu um órgão como este, nos mesmos moldes, imaginando uma
ditadura corregedora de caráter extraordinário e periódico encarregada de examinar a
legalidade dos atos governamentais. Como o autor de Dos Direitos e Deveres do Cidadão não
acreditava que a educação, o governo e os legisladores fossem capazes de combater os males
da degenerescência, ele sugeria que, a cada vinte ou vinte e cinco anos, a assembléia
instalasse um comitê extraordinário de poderes discricionários que verificasse se os
governantes haviam exorbitado e apurasse os atentados às leis. Mably tinha a esperança de
que “essa sábia precaução impediria que costumes novos se difundissem e todos os abusos
seriam reprimidos antes de adquirirem força o bastante para destruir os princípios do
governo”. Além disso, esse poder corregedor supremo seria “a esperança dos bons cidadãos e
conterá os maus. Ele excitaria em todos os espíritos uma fermentação útil, e forçando a
recordação das leis, impedirá que elas caiam no esquecimento” (MABLY, 1789:356).
Para compreender sua gestação, porém, é preciso antes examinar como o triunfo da
via gálica republicana produziu e vivenciou o desastre das experiências constitucionais de
1791 e de 1793. Entre a reunião dos Estados Gerais, em 1789, e a queda da República
Jacobina, em 1795, a dinâmica da Revolução Francesa impôs o reconhecimento do povo
como único soberano legítimo da França e, da direita para a esquerda, derrotou todas as
propostas que envolvessem tentativas de fragmentação do poder em instituições de igual
valor. Grosso modo, as três propostas derrotadas corresponderam às três diferentes
modalidades de governo misto: a constitucional antiquária, defendida pela nobreza togada e
de espada; a dos monarquianos, apoiada pela burocracia e elaborada no cruzamento do
despotismo ilustrado com a interpretação da Constituição Inglesa; e a girondina, apoiada por
profissionais liberais que simpatizavam com o modelo estadunidense recém-instalado. Neste
trabalho, vamos aqui examinar somente as duas primeiras.
francesa cedo decidiu rejeitar toda a experiência pretérita do país para reconstruir a ordem
política a partir da razão e da unidade da soberania nacional. A primeira queda foi a do
discurso constitucional antiquário, que preconizava o retorno à “antiga constituição”. Esta era
entendida como “uma 'comunidade de obrigações' formadas pelos usos e consagradas pelo
tempo que, por vezes, nela introduz algumas modificações (...), produzidas quase sempre por
'forças naturais', as primeiras das quais são a razão comum, a experiência de muitos e o
interesse de todos” (FURET & HALÉVI, 1996:39). Para o Conde de Antraigues (1753-1812),
a liberdade pedida pelo povo não exigia “a destruição das ordens que, pela sua resistência
mútua, asseguram a liberdade nacional”. Reunidos “em torno desse monarca sucessor de
tantos reis pelos quais nossos antepassados sacrificaram suas vidas”, ele alegava que a Coroa
abusara dos seus poderes e que cabia aos Estados Gerais “reconduzi-lo aos limites que a
constituição fixou em torno do trono”. (ANTRAIGUES, 1996:296). Mas a impotência do Rei
em fazer cumprir as formas deliberativas tradicionais e a resolução da nobreza de reunir-se ao
Terceiro Estado em Assembléia Nacional frustrou o intento dos constitucionalistas
antiquários. A extinção dos privilégios nobiliárquicos e dos próprios Parlements, quando da
reorganização do judiciário nacional, sepultou-a para sempre.
15
Cabe aqui uma observação acerca do termo empregado para designar o partido dos patriotas moderados, que
grande atividade teve no início da Revolução Francesa. Do fato de se reunirem então num clube denominado
Sociedade dos amigos da constituição monárquica (Societé des Amis de la Constitution Monarchique), surgiu o
apelido por que ficaram conhecidos, monarchiens, expressão então sinônima de monarchistes (monarquistas),
mas que ficou daí por diante historicamente associada àquele grupo político. A fim de preservar essa distinção
em português, relevante para não confundi-lo com agremiações monarquistas de orientações diversas, achei de
melhor alvitre reproduzir a expressão monarquianos, adotada por Henrique de Araújo Mesquita em sua tradução
do Dicionário Crítico da Revolução Francesa (FURET, 1989).
O Momento Monarquiano 55
argumentavam que, ao exprimir suas aspirações nos cahiers de doléances, a Nação não
pretendera atribuir aos eleitos a exclusividade de sua representação, revelando-se sempre
afeita à monarquia e às suas prerrogativas. “Os franceses não são um povo novo, saído
recentemente do fundo das florestas para formar uma associação”, alegava Mounier, “mas
uma grande sociedade que quer reestreitar os vínculos que unem todas as suas partes; que
quer regenerar o Reino, para quem os princípios da verdadeira monarquia serão para sempre
sagrados” (MOUNIER, 1996:315). A tarefa da Constituinte não era, portanto, a de refundar a
sociedade, mas tão somente o de reformar seu sistema político, convertendo a monarquia
absoluta num governo constitucional e representativo, como era o da Inglaterra.
A primeira grande fonte dos monarquianos era a tradição despótica ilustrada filtrada
pela fisiocracia, e cuja ambição magna era a de erigir um Executivo forte como o prussiano,
que superasse os impasses do Antigo Regime e modernizasse o Reino. Formulada e divulgada
por philosophes como Voltaire, Helvétius e Diderot, o discurso do despotismo ilustrado foi
transformado pelos fisiocratas numa ciência do Estado ao ser dotado de uma concepção
administrativista do Estado e economicista da sociedade. Forma francesa de liberalismo
econômico, a fisiocracia entendia que, contra a resistência da tradição, da ignorância, dos
estamentos e dos privilégios, a economia de mercado só poderia ser introduzida pelo Estado,
isto é, por um monarca versado nas leis da natureza (ROSANVALLON, 2002b). O sucesso da
fisiocracia a converteu numa ideologia da nova burocracia, à frente da qual estavam os
ministros da Fazenda de Luís XVI (1754-1793), como Turgot, Charles-Alexandre Calonne
(1734-1802) e Loménie de Brienne (1727-1794). Na medida em que aspiravam “racionalizar
e de unificar o sistema político reforçando a autoridade administrativa central em relação aos
interesses regionais ou particularistas”, os monarquianos eram herdeiros desse reformismo
ministerialista; da forma, eles transporiam para o contexto de um governo representativo
constitucional “um poder monárquico reforçado, capaz de representar a nação como um todo
e inteira, às expensas das pretensões da assembléia de querer encarnar a soberania nacional”
(GRIFFITHS, 1988: 41 e 87). Eles viam o Parlamento como uma arena de representação dos
interesses privados, útil e necessário para ser consultado pelo governo na formulação de
políticas públicas, mas perigoso na medida em que também ameaçava encapsulá-lo com suas
facções. Como era a Coroa que encarnava o interesse público, os monarquianos rechaçavam
qualquer idéia que resultasse na fragmentação do poder - tanto à esquerda, contra os que
queriam fortalecer o Legislativo, como à direita, contra os que queriam fortalecer as
corporações estamentais.
O Momento Monarquiano 56
Por outro lado, a inspiração bolingbrokeana dos monarquianos os induzia a crer que
cabia ao monarca proteger o povo e sua constituição mista contra as oligarquias políticas,
ministeriais ou parlamentares. Para tanto, ele precisava ser forte. Já na década de 1720, o
próprio Voltaire registrara numa de suas Cartas Filosóficas que, além de governante, o
monarca britânico exercia um papel de árbitro entre os lordes e os comuns, o que evitava os
conflitos civis entre plebeus e patrícios ocorridos em Roma (VOLTAIRE, 1961:21). A obra
deixada por Bolingbroke sobre a Constituição Inglesa também havia sido decisiva, como se
viu, na descrição efetuada por Montesquieu em O Espírito das Leis, tendo merecido
numerosas edições desde que passou a ser publicada em 1754 (KRAMNICK, 1968:37).
Também impactou a interpretação do republicano genebrino Jean-Louis de Lolme (1741-
1806), cuja obra homônima, publicada em 1771, obteve estrondoso sucesso, contando mais de
cinqüenta edições subseqüentes.
“Pode-se dizer com razão que os deputados escolhidos nos diferentes distritos não
são os únicos representantes do povo; que o Rei é o seu primeiro delegado; que
ele é também representante do povo em todas as outras partes da autoridade que
lhe foi confiada, e que o povo os encarregou conjuntamente de exprimir a vontade
geral; que assim, quando o Rei não dá sua sanção, ele não resiste à vontade geral,
que ainda não está formada” (MOUNIER, 1996:400).
meios aos fins justificava, pois, não o equilíbrio, mas a subordinação de todas as atividades
dos poderes Executivo e Judiciário à autoridade do Legislativo, considerado a fábrica da
vontade geral. Complicado maquinário montado para coibir ou amenizar as sobrevivências da
opressão feudal, a doutrina anglo-americana de equilíbrio dos poderes não se justificava na
França, onde a ruptura com a feudalidade estava inscrita no programa da Revolução. As
diferenças entre os dois partidos acabaram de ficar evidentes quando os monarquianos
apresentaram seu projeto constitucional na comissão de Constituição da Assembléia, ocasião
em que Sieyès objetou que o bicameralismo e o veto absoluto eram contrários aos princípios
do governo representativo. Não sendo eleito, nem pertencendo à assembléia, o Rei não
poderia interferir no processo legislativo, atividade exclusiva do órgão depositário da
soberania nacional. E indagava:
“Teria sido tirada dos verdadeiros princípios a idéia de separar o poder legislativo
em três partes (câmaras alta e baixa, veto do Rei), das quais uma só falaria em
nome da Nação? Se os senhores e o Rei não são representantes da Nação, também
não são nada no Poder Legislativo, pois apenas a Nação pode querer e,
conseqüentemente, por si mesma criar leis. Qualquer um que entre no corpo
legislativo só tem competência para votar pelos povos se tiver sua procuração”
(SIEYES, 2001:41).
Primeiro dos cidadãos, a vontade do Rei não poderia “jamais ser separada, mesmo
em idéia, da Nação que ele representa com toda a majestade” (SIEYES, 1996:406). Não sendo
eleito, o poder monárquico só podia ser concebido como uma parcela da autoridade da própria
assembléia. Considerando era esta última a verdadeira depositária da soberania, o monarca, se
quisesse, poderia dela participar durante as deliberações, detendo um único voto, todavia. A
representação por eleição era visto por Sieyès como um mecanismo para identificar a
assembléia única à unidade da soberania – e não para distinguir-se dela, como a é da natureza
da representação moderna (MANIN, 1996). Daí que o direito de veto legislativo e de
dissolução da Câmara do Rei, se aprovados, comporiam um “mecanismo estranho” na
Constituição; um mecanismo que, uma vez exercido, representaria uma “verdadeira lettre de
cachet lançada contra a vontade nacional” (SIEYES, 1996:408). Também lhe parecia absurda
a idéia de que o Legislativo pudesse ser mais perigoso do que o Poder Executivo, que era
armado e hereditário; ou de que ele deveria ser fracionado em dois, para criar um senado
moderador. Para os monarquistas republicanos, não poderia haver qualquer órgão superior ao
Legislativo, intérprete supremo da vontade geral. Eram os ecos de Rousseau e Mably: apenas
O Momento Monarquiano 62
uma instituição extraordinária, que pairasse sobre os poderes constituídos, poderia resolver as
questões atinentes às crises constitucionais - uma convenção constituinte (SIEYES,
1996:414).
Por seu turno, o Judiciário encontrava-se tão ou mais manietado que o Executivo (In:
DUPUY & MORABITO, 1996:235). Imersos no absolutismo democrático, os constituintes
cultivavam uma visão do direito e da política para a qual o primeiro estava subordinado à
segunda, expressão da vontade do soberano. Consagrado no art. 6º. da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, esse legicentrismo era oposto à concepção anglo-
americana de que o direito era o lugar do não-político, e que prevalecera na Constituição de
1787, na forma de um controle normativo e judicial da constitucionalidade. Além disso, o
O Momento Monarquiano 63
fantasma dos Parlements também inviabilizava toda e qualquer idéia de governo fiscalizado
por decisões e precedentes judiciários. Para o presidente da comissão de reforma judiciária,
conceder aos juizes o poder de interpretar as leis ou anulá-las, a pretexto de inconstitucionais,
era o mesmo que seqüestrar a vontade geral parlamentarmente representada: “Uma Nação que
exerce o Poder Legislativo por um corpo permanente de representantes não pode deixar aos
tribunais executores dessas leis, e submetidos à sua autoridade, a faculdade de revisar tais
leis” (THOURET, 1991:473). Submetidos ao Legislativo, os tribunais deveriam simplesmente
aplicar a lei, eximindo-se da interpretá-la. Em caso de dúvida, os juízes deveriam consultar a
assembléia, que fixaria o seu sentido por uma interpretação autêntica. Daí a restrita
competência atribuída à Corte de Cassação: colocada “ao pé do corpo legislativo” para “evitar
que os órgãos judiciários invadissem a esfera do poder legislativo, subtraindo-se à estreita e
textual observância das leis” (CAPPELLETTI, 1992:40), a Corte de Cassação exercia um
mero controle formal da legalidade, que não era material nem constitucional (FURET &
18
HALÉVI, 1996:213) . Essa drástica teoria da separação dos poderes daria origem ao sistema
de dualidade de jurisdições, em que o Poder Judiciário só deveria processar e julgar as causas
que versassem sobre interesses particulares. Aquelas que envolvessem interesse do Estado
seriam da competência de uma Justiça Administrativa, cujo órgão máximo era o Conselho de
Estado.
18
A cassação se limitava a anular as sentenças que julgasse contrárias ao texto da lei, sem substituí-las por
outras, o que deveria ser feito pelo proprio juízo a quo. Caso este persistisse no seu entendimento, a Corte
deveria endereçar consulta obrigatória à assembléia, para que estabelecesse a interpretação legal definitiva. A lei
napoleônica que passou a permitir a interpretação e a apreciação material da Corte de Cassação não chegou a
permitir-lhe o exame da constitucionalidade, tendo perdurado até a metade do século XX o principio da
onipotência do legislador.
O Momento Monarquiano 64
como tal, não carecia ser legalmente previsto. Dois argumentos justificavam essa postura. De
um lado, ao enunciar que “a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos humanos”
eram “as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governos” (In: RIALS,
2001:3), o preâmbulo da declaração de direitos supunha que, proporcionando a almejada
harmonia social, a consagração constitucional dos ideais de justiça tornaria desnecessária a
adoção de medidas discricionárias contra os cidadãos. Por outro lado, entendia-se que,
devendo-se combater todas as ameaças contra-revolucionárias, era evidente que a
Constituição ficaria ipso facto suspensa nesses casos, o que também justificava a previsão
expressa de sua suspensão por desnecessária: salus populi suprema lex19. Até mesmo a
possibilidade de revisão constitucional era inviável para flexibilizar emergencialmente a
Constituição: respeitadas as formalidades, a revisão só poderia acontecer no século seguinte.
Sem instituições reguladoras do poder discricionário, num quadro de conflagração social e
política generalizada, o regime assumiu os contornos de “um absolutismo representativo
mesclado aos espasmos insurrecionais da democracia direta” (GUENNIFEY, 1993: IV). Não
por acaso, o debate sobre a conveniência de um Poder Moderador continuou depois de
promulgada a Constituição (GAUCHET, 1995:80).
19
As duas justificativas podem ser hauridas em Sieyès, possivelmente sem contradição Por um lado, Sieyès
repetia o argumento presente nas Considerações sobre o Governo da Polônia ao afirmar que, “quando a salvação
da pátria é necessária para todos os cidadãos, vai-se perder tempo perguntando-se quem tem o direito de
convocar (a assembléia)? Seria melhor perguntar: quem não tem o direito? É o dever sagrado de todos os que
podem fazer alguma coisa” (SIEYES, 2001:57). Por outro, ele sustentava que “uma boa constituição de todos os
poderes públicos é a única garantia capaz de preservar as nações e os cidadãos desse mal extremo (a opressão).
O soldado não deve jamais ser empregado contra o cidadão, e (...) a ordem interior do Estado deve ser
estabelecida de tal forma, que em nenhum caso seja necessário recorrer ao poder militar, senão contra o inimigo
externo” (SIEYES, 1996:325).
O Momento Monarquiano 65
20
No art. 1º. de seu título III, ela enunciava que “a soberania pertencia à Nação” e era “una, indivisível,
inalienável e imprescritível”, ao passo que o preâmbulo da declaração de direitos declarava que ela devia ser
“constantemente apresentada a todos os membros do corpo social” para “recordá-los incessantemente de seus
direitos e deveres, a fim de que os atos do Poder Legislativo e aqueles do Executivo, podendo ser comparados a
cada instante com o objetivo de toda instituição política, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações
dos cidadãos (...) concorram sempre à manutenção da constituição e à felicidade de todos”. Por fim, o art. 2o.
enumerava, além da liberdade, da propriedade e da segurança, resistência à opressão como direito natural
(RIALS, 2002). Sieyès não somente chancelava este último direito como entendia que, mesmo sem ele, a nação
não ficava presa aos compromissos constitucionais por assumidos, porque permanecia no estado de natureza
(SIEYES, 2001:51).
O Momento Monarquiano 66
objeto das medidas e o prazo de sua duração. Por fim, os inimigos do constitucionalismo
monárquico forçaram uma situação de salvação pública para, investidos de poderes
discricionários, melhor combater os inimigos da Revolução. Entremeados por rebeliões e
massacres populares, a declaração de guerra, a promulgação da constituição civil do clero e a
tentativa de fuga da Família Real resultaram num golpe que suspendeu Luís XVI de suas
funções e convocou uma convenção nacional, ignorando a inviolabilidade monárquica e o
procedimento de revisão constitucional. Sem qualquer preocupação ulterior com a Carta de
1791, a Convenção derrubou a monarquia. Embora mecanismos de intermediação entre
governo e soberano continuassem a ser propostos (GAUCHET, 1995:107), nem a própria
Constituição republicana aprovada pela Convenção entrou em vigência. Com o argumento de
que, “em circunstâncias revolucionárias, a vontade geral ordena e aprova tacitamente ou
expressamente os atos de rigor exercidos para a salvação de todos, para a conservação da
liberdade de todos, que alguns querem destruir” (In: GUENIFFEY, 2000:178), a Convenção
jacobina decretou que o governo revolucionário era absoluto por tempo indeterminado e
instituiu tribunais para prender indefinidamente os suspeitos e fuzilar os “inimigos do povo”.
O balanço do período terrorista é estimado em torno de duzentos e cinqüenta mil mortos –
pouco menos de um décimo da população francesa da época.
(SIEYES, 1990:281). Essa conveniência de conciliar os poderes se explicava pelo fato de não
ser sua divisão garantia automática de sua harmonia, razão pela qual ela deveria ser garantida
por um tribunal que julgasse as demandas políticas e representasse a unidade do poder
nacional num plano superior. Composto de 108 membros, renovado pelo terço a cada ano
mediante cooptação (BREDIN, 1996:513), esse tribunal político de procedimentos
jurisdicionais seria a “chave de abóbada” da República, proporcionando-lhe a estabilidade de
que carecera até então, resolvendo-se, com seu prudente arbítrio, o segundo dos problemas
suscitados por Clermont-Tonnerre – o conflito entre a declaração constitucional dos direitos e
sua efetiva sua concretização. Nesse ponto, Sieyès explicava ao plenário a diferença entre
arbitrariedade e discricionariedade:
segurança interna e externa do Estado (art. 145). Essa valorização normativa do estado de
sítio, depois da experiência da ditadura extraconstitucional jacobina, é mostra tanto do
elevado grau de discricionariedade que a Convenção termidoriana reputava necessário para
enfrentar os desafios de consolidação do novo regime de governo, quanto do seu desejo de
erigi-lo em meio de defesa das instituições. Por outro lado, a rejeição de uma forma de
controle repressivo e material da constitucionalidade pode explicar institucionalmente a
instabilidade crônica do regime. Para evitar a ascensão dos monarquistas e o retorno dos
jacobinos, por duas vezes o governo tentou por duas vezes manipular as eleições e, dada a
insuficiência do expediente, recorreu a golpes militares seguidos de amplos expurgos de
convencionais. A veloz desmoralização do regime o levou por fim ao golpe de 18 de
Brumário de 1799, quando dissolveu o Legislativo manu militari e cometeu eutanásia,
entregando a República ao Exército e ao bonapartismo.
o fracasso de seu desempenho durante o Império napoleônico, guiado por uma lógica mais
próxima pelo despotismo ilustrado do que aquela celebrada pelos ideólogos21..
Nesse quadro, a figura de Benjamin Constant é especial, pois sua teoria do governo
constitucional representativo ocupou até pelo menos a década de 1860 um lugar de absoluta
centralidade no panorama do liberalismo franco-continental e ibero-americano. Admirador de
Condorcet, Benjamin Constant concordava que as sucessivas destruições da teocracia, da
escravidão, do feudalismo e dos privilégios da nobreza comprovavam que a marcha da
história coincidia com aquela da igualdade e da liberdade. O movimento democrático vinha
de muito longe e, por isso, a única opção sensata a tomar era tentar acompanhá-lo
(GAUCHET, 1980:36); entretanto, Constant sabia perfeitamente que o mundo atravessava um
período de umbral epocal. A sombra da soberania absoluta continuava saliente no horizonte e,
por isso, certamente seriam funestas quaisquer tentativas de precipitar os acontecimentos pela
via autoritária (CONSTANT, 1997:289). Em Das Reações Políticas, datado do período
termidoriano, Constant afirmava que o grande desafio posto aos políticos comprometidos com
as novas idéias de seu tempo passava, pois, por consolidar o terreno ainda precário da
liberdade contra os riscos do anacronismo e, desse modo, encerrar a traumática transição para
a modernidade política representada pela acefalia revolucionária. Para tanto, os políticos
deveriam filtrar a verdade abstrata e universal contida nos princípios absolutos que norteavam
a Revolução, como a liberdade e a igualdade, por meio de princípios intermediários que
pudessem encadeá-los e concretizá-los conforme as circunstâncias de tempo e o lugar
(CONSTANT, 2002:101).
condenável quando exercido num governo constitucional, porque fazia paródia da legalidade
ao desmoralizar os princípios que o embasavam. Uma vez admitidos, argumentos como o do
interesse do Estado, perigo na lentidão das decisões e salvação pública serviam para que o
governo evitasse o debate público, condenasse sem julgamento e eliminasse seus opositores.
O mesmo valia para a variante modernizadora do governo discricionário, que era o
despotismo ilustrado aggiornado dos tecnocratas napoleônicos. Apressar de maneira artificial
e discricionária um aperfeiçoamento que o tempo traria naturalmente acarretava ao povo mais
males que bens. Com efeito, a experiência provava que, das três, uma: ou o povo se revoltava
contra o arbítrio do governante; ou o governante se frustrava com o baixo desempenho de sua
política modernizadora, como ocorrera José II da Áustria (1741-1790); ou ele acabava vítima
do próprio veneno, como quase se dera com o Marquês de Pombal (1699-1782). As inovações
deveriam ser promovidas pelo Estado cautelosamente, de modo a acompanhar a evolução da
opinião pública, que era sempre gradual. Num governo constitucional representativo, em que
a liberdade reinante permitia conhecer o pensamento público, as leis e as instituições se lhe
acomodavam naturalmente, esclarecendo o povo sem constrangê-lo (CONSTANT, 1997:280,
284/285).
combatê-lo por medidas excepcionais, alegando que o Estado devia ainda aí observar todas as
formalidades prescritas. Tratava-se de uma verdadeira reviravolta na tradição política
continental: como os procedimentos eram “as divindades tutelares das associações humanas”
e, como tais, serviam de bitola para a marcha do Estado, sua supressão o deixava
desgovernado, sem prumo, a se encaminhar célere na direção do abismo. Daí a fórmula
peremptória com que Constant reagiu contra o estado de exceção nos Princípios de Política:
“Os poderes constitucionais, não existindo senão por conta da Constituição, não podem
suspendê-la” (CONSTANT, 1997:487, 251 e 783). Cumpria banir esse filho espúrio do
absolutismo monárquico com a modernidade política, reconhecendo que o Estado e a vontade
geral encontravam seus limites na linha que dividia as esferas pública e privada. Daí que o
Estado deveria ser organizado por uma Constituição sucinta, que declarasse os direitos dos
cidadãos e se estabelecessem os distintos poderes públicos (CONSTANT, 1991:426).
naquele país (BARANGER, 1999). Frisando em diversas obras sua conveniência em todos os
governos constitucionais, fossem republicanos ou monárquicos, esse poder neutro deveria
evitar o descolamento entre os interesses de governantes e governados e, assim, preservar
assim a livre expressão da sociedade civil (CONSTANT, 1861:179; 1991:359, 387;
1997:325). Se a espécie humana era progressiva, e o Estado, estacionário, era indispensável
um mecanismo que impedisse os poderes políticos de bloquearem a penetração do interesse
público com seus interesses peculiares; do contrário o governo não representaria o conjunto
da opinião pública (CONSTANT, 1991:426). A natureza representativa do regime impunha
via de mão dupla nas relações entre Estado e sociedade: assim como, na qualidade de
representantes do soberano, os poderes públicos deveriam velar para que os cidadãos
observassem a lei, os cidadãos últimos, na qualidade de membros do soberano, deveriam
dispor de meios para assegurar que os poderes públicos fossem fiéis à vontade que os
constituíra. O povo carecia de um órgão geral e imparcial de fiscalização que, exterior aos
poderes constituídos, conferisse visibilidade à unidade de sua soberania; daí que o Poder
Moderador estivesse simultaneamente acima e entre os demais poderes (CONSTANT,
1997:327). Ocorre que a mera prática eleitoral dificilmente poderia satisfazer essa exigência:
refletindo os interesses particulares no seio do eleitorado, as eleições no máximo produziam
maiorias e nunca a sonhada unanimidade que o dogma da unidade da soberania deveria
exprimir. Daí que, para exprimir a unidade da soberania nacional, ele paradoxalmente não
poderia ser eleito pela Nação.
Além disso, este órgão imparcial, detentor de um poder discricionário, deveria ser
organizado de forma a exercê-lo apenas para impedir os poderes constituídos de exorbitar
suas funções quando essa ameaça se apresentasse. Só essa força de inércia não causaria “nem
abalos, nem revoluções, nem desordens” (CONSTANT, 1997:319). Assumindo todos os
contornos de um poder judiciário, Constant não acreditava, todavia, que juízes pudessem,
como nos Estados Unidos, exercer esse papel. Retomando a díade política/direito que
marcava a tradição francesa, Constant deixa entrever que a estabilidade política era primeira
condição da estabilidade normativa; por isso, de nada adiantaria um tribunal que se limitasse a
anular os atos normativos praticados pelos poderes públicos, sem que dispusesse de meios
coercivos para eventualmente desarmá-los, obrigando-os a observar a Constituição. Antes de
procurar manter sua unidade normativa, era preciso garantir sua unidade estrutural, o que só
ocorreria se houvesse harmonia entre os poderes do Estado. A questão não era de direito, mas
de política; daí que a estabilidade estrutural e não apenas normativa da Constituição exigisse
O Momento Monarquiano 76
um órgão que tivesse o interesse político e não apenas jurídico de impedir os golpes do
Executivo ou a tirania legislativa. Ademais, quem dizia política dizia poder discricionário;
daí que, para eliminar os conflitos privados e restabelecer a paz, esta nova instituição
precisasse dispor de alguns recursos próprios do estado de exceção – ainda que restritos a
certos e determinados casos (CONSTANT, 1991:400/401). Daí que, embora o Poder
Moderador tivesse uma função análoga à judiciária, dirimindo conflitos de modo imparcial
(CONSTANT, 1861:181), a natureza política de suas atribuições o impedia de ser exercido
pelo próprio Poder Judiciário, limitado apenas a aplicar as leis: era “impossível fazer uma
autoridade adstrita às formalidades exercer uma autoridade discricionária” (CONSTANT,
1991:381). Ao declarar a supremacia da Constituição como veículo da expressão da soberania
popular, criar um quarto poder como seu guardião e voltar sua potência discricionária em
favor da legalidade, Constant desenvolveu já nos Fragmentos uma forma de controle, nem
jurisdicional, nem normativa (como o norte-americano), mas política e estrutural da
constitucionalidade.
“Em todos os governos, é preciso que haja uma autoridade, não ilimitada, mas
discricionária. Essas duas coisas foram confundidas; e dessa confusão resultaram
muitos males. É preciso que essa autoridade discricionária jamais se dirija aos
homens, pois os homens devem sempre estar a salvo do arbítrio. Ela deve dirigir-
se aos poderes e deve retornar às mãos de quem não possa jamais apoderar-se
deles ou deixá-los às suas criaturas. Assim, o poder preservador não pode ser
encarregado de nenhuma eleição, para que ele jamais tenha interesses a desbancar.
Assim, sua autoridade discricionária será puramente preservadora” (CONSTANT,
1991:451/452).
escolhidos pelos diversos departamentos do país entre candidatos que contassem mais de
quarenta anos de idade e determinado tempo de experiência administrativa. A imparcialidade
dessa assembléia seria reforçada pela inelegibilidade de seus integrantes para o exercício de
quaisquer outras funções públicas; em compensação, ser-lhes-iam concedidos farta
remuneração e títulos honoríficos. Eles teriam por missão decidir acerca da dissolução das
assembléias legislativas; da destituição dos membros do executivo; do exercício do direito de
graça; receber petições contra a administração e, por fim, sancionar emendas à Constituição
(CONSTANT, 1991:430, 403 e 441). No entanto, Constant nunca ficou satisfeito com a
fórmula de transposição da Constituição Inglesa para o regime republicano. A confiança numa
instituição não era matéria apenas de engenharia institucional, mas de um poder simbólico
inscrito na tradição. Na monarquia inglesa, a respeitabilidade conferida ao chefe de Estado
pela identificação de sua família com o interesse nacional e por sua posição de completo
alheamento às paixões dos cidadãos ordinários tornava-o sobremaneira interessado em manter
a estabilidade institucional (CONSTANT, 1980: 280). Na Inglaterra, esse imenso poder
simbólico da Coroa era devido, paradoxalmente, à sua pouca densidade ética, o que permitia a
adesão dos cidadãos às instituições, sem comprometer suas concepções de bem.
Desestimulado para o exercício arbitrário do poder, o monarca hereditário inglês se convertia
num símbolo perfeito da unidade do povo; casca vazia do grande uno soberano a serviço do
pluralismo e da legalidade.
23
Testemunha dessa luta é o livro I dos Fragmentos de uma Obra Abandonada sobre a Possibilidade de uma
Constituição Republicana num País de Grandes Proporções, todo dedicado a convencer o leitor – e o próprio
autor – de que a hereditariedade era um critério anacrônico, ineficiente e injusto frente ao princípio eletivo para
qualquer espécie de provimento de cargo (CONSTANT, 1991:115). Num momento, Constant encampa a idéia
(muito comum, como vimos) de que o governo inglês não era passível de reprodução no continente, porque fruto
de circunstâncias particularíssimas (CONSTANT, 1991:190); noutro, ele reclamava que, para desatar o nó
górdio institucional, era preciso aceitar todas as novidades que ele propunha. Do contrário, “que nos resignemos
com a monarquia: ela tem muitos inconvenientes, mas evita uma porção de dificuldades” (CONSTANT,
1991:380). Em 1814, encantado com o constitucionalismo britânico, Constant não somente apoiaria a
hereditariedade para a chefia do Estado, como admitiria, mesmo que não definitivamente, a legitimidade desse
critério para a composição da câmara alta (CONSTANT, 1997:344).
O Momento Monarquiano 78
A separação entre as duas agências era fundamental para saber onde começavam e
terminavam as esferas de ação das autoridades responsáveis, de um lado, e invioláveis, de
outro; por isso mesmo, nela estava o fiat lux da monarquia constitucional, “a chave de toda a
organização política” (CONSTANT, 1980:280). Era aí que a concepção monarquiana de
Poder Moderador mais se afastava daquela de Constant: enquanto os monarquianos
defendiam a cumulação do Executivo e do Moderador pela Coroa, para Constant o Rei tinha
bens mais valiosos a defender “que este ou aquele detalhe da administração, este ou aquele
exercício parcial da autoridade. Sua dignidade é um patrimônio de família, que ele retira da
luta, ao abandonar seu ministério” (CONSTANT, 1980:285). Nem por isso ele ignorava que,
para além da ficção da inviolabilidade, o chefe de Estado pudesse na prática ser criticado
pelas decisões tomadas no exercício do Poder Moderador. Apesar de monarca, ele poderia se
deixar eventualmente levar pelas “afeições e fraquezas da humanidade”. Mas Constant
argumentava que a ficção da inviolabilidade era pela essencial para conciliar a ordem com a
liberdade, pois do contrário o chefe de Estado deixava de ser visto como imparcial; uma vez
responsável perante o Legislativo, ele ficaria sujeito à política partidária e, então tudo seria
“desordem e guerra eterna entre o monarca e as facções” (CONSTANT, 1980:343). Ele
reconhecia também a possibilidade de ministros que descobrissem ao Coroa, ou seja, que, ao
O Momento Monarquiano 79
invés de assumirem a responsabilidade por seus atos, quisessem dela eximir-se, alegando que
obedeceram à “coação moral” do príncipe; e que aquele projeto de lei decorria de sua vontade
e não do gabinete. Essa postura dos ministros abalava a credibilidade do árbitro hereditário da
Constituição e, com ela, as próprias instituições. Mas Constant objetava que, à margem de
disputas partidárias ou governamentais e ordinariamente cobertos pelo ministério, o monarca
só seria passível de censura caso, ao invés de demonstrar imparcialidade, agisse como o
representante de uma facção, “seja rebaixando o poder do monarca ao nível do Poder
Executivo, seja elevando o Poder Executivo ao nível do monarca” (CONSTANT, 1997:327).
sobre o poder régio, ainda que numa terminologia diversa daquela de nossa Constituição, está
perfeitamente conforme seu espírito” (CONSTANT, 1861:169).
24
“Ninguém combateu a hereditariedade mais vivamente do que eu (...). Mas, enfim, a república caiu. Desde
então resolvi aplicar todas as faculdades do meu espírito para descobrir como seria possível conciliar monarquia
e liberdade. Convenci-me de que a conciliação não era impossível e que com a neutralidade completa e
formalmente reconhecida do poder régio, uma monarquia constitucional não se opunha a essa liberdade que
convém particularmente aos tempos modernos. Uma vez persuadido a esse respeito, tive que também me
resignar a todas as condições que a monarquia impõe. A de hereditariedade de uma classe, servindo de anteparo
O Momento Monarquiano 82
Por último, havia a relação do Poder Moderador com o Judiciário, que para garantir
os direitos dos jurisdicionados contra o arbítrio dos governantes carecia de prerrogativas
como independência e inamovibilidade. Para melhor assegurar sua imparcialidade, os juízes
togados deveriam ser nomeados pelo chefe do Estado que, enquanto árbitro dos árbitros,
haveria necessariamente de errar menos. Já o direito de graça, isto é, de criar exceções à regra
da coisa julgada no processo penal, era explicado pela necessidade de – para me valer da
expressão de Sieyès - um juízo de eqüidade natural: a lei, por seus caracteres genéricos, nunca
seria capaz de prever toda a latitude de comportamentos ou situações, podendo ser justa em
sua elaboração geral e abstrata, mas injusta na aplicação particular e concreta. Daí que a
discricionariedade deveria ser empregada para sanar os próprios erros judiciários e fazer
justiça: “Quanto mais uma lei é geral, mais ela se afasta das ações particulares sobre as quais
ela deve incidir. Uma lei não pode ser perfeitamente justa senão para uma única circunstância:
assim que ela se aplique a duas circunstâncias, que distinga a diferença mais leve, ela é mais
ou menos injusta num dos dois casos. Os fatos têm infinitas nuanças; as leis não podem seguir
todas as nuances. O dilema que trouxemos é, portanto, errôneo. A lei pode ser justa, como lei
geral, isto é, pode ser justa ao atribuir tal pena a tal ação e, no entanto, a lei pode não ser justa
em sua aplicação a um dado caso particular (…). O direito de agraciar não pode deixar de ser
legalmente indefinível. O direito de agraciar nada mais é que a conciliação da lei geral com a
eqüidade particular” (CONSTANT, 1997:423). Era o mesmo argumento de Maquiavel e
Locke para justificar um poder discricionário regulado.
* * *
Três anos depois, era o Conde de Lanjuinais, (1753-1827), antigo termidoriano, que
defendia a tese do papel do chefe de Estado como um poder neutro. Refutando a tese
reacionária de que o Rei fosse “mestre e senhor”, e recordando que o poder absoluto era
contrário à natureza, Lanjuinais frisava nas Constituições da Nação Francesa a natureza
moderadora da prerrogativa régia. “Para que haja uma liberdade regular, é necessária uma
autoridade mediadora diretiva, moderadora, neutra a certos aspectos, absoluta em outras
relações, enfim irresponsável, uma autoridade que previna ou termine toda luta perniciosa,
que propicie ou restabeleça a harmonia necessária entre as grandes autoridades. Eis o que
apenas o Rei pode fazer, propondo as leis, recusando ou concedendo sanção às resoluções das
duas câmaras, nomeando os pares, e criando novos pares; convocando, adiando, ou
dissolvendo as câmaras; usando de seu direito de agraciar e comutar as penas, nomeando e
O Momento Monarquiano 84
teoria do governo parlamentar para sustentar que o rei reinava, mas não governava. A terceira
ameaça veio do discurso bonapartista, para quem o monarca plebiscitado governava
diretamente pela vontade do povo e só respondia diante dele, estando por isso acima das
demais instituições. Esse último desafio seria enfrentado na década de 1860, quando os
liberais substituíram as teorias do governo misto e da separação de poderes, que ainda
sustentavam o governo parlamentar, pelas da democracia e do parlamentarismo. Essas
mudanças na compreensão do paradigma legítimo de governo acompanharam o processo de
democratização que tinha lugar na Inglaterra, tendo direta repercussão no debate brasileiro,
como teremos a oportunidade de ver.
O Momento Monarquiano 86
latifundiária e escravista que a caracterizara desde os começos da colonização e que, por isso,
impusera “a adequação de instrumentos arcaizantes de controle político” (JANCSO, 2002:5).
Além dessa identidade social com a nobreza européia, a elite rural brasileira era em
grande medida reconhecida pela legislação do Antigo Regime. É certo que, constituindo uma
aristocracia de riqueza e de poder que exerceu vários dos papéis da nobreza portuguesa, os
senhores de terra brasileiros não conseguiram se transformar num estamento hereditário à
semelhança daquela. Mas isso não quer dizer que a Coroa não outorgava outras mercês de
O Momento Monarquiano 89
25
Os principais caracteres da feudalidade, sociologicamente considerada, são: primeiro, uma sociedade
extremamente hierarquizada, formada por vínculos de dependência homem a homem, com uma classe de
guerreiros especializados ocupando os escalões superiores dessa hierarquia; segundo, um fracionamento
extremado do direito de propriedade; uma hierarquia de direitos sobre a terra, nascidos desse fracionamento,
hierarquia esta correspondendo, em grande medida, à hierarquia de vínculos de dependência pessoal a que se
referiu acima; um parcelamento do poder público que cria, dentro de cada região, uma hierarquia de instâncias
autônomas e exercendo, em seu proprio interesse, poderes normalmente atribuídos ao Estado (GANSHOF,
1982:9).
O Momento Monarquiano 90
e a importância que podiam advir do fato de ser dono e explorador de vastas extensões de
terra” (CANNABRAVA, 1985: 201). Podemos concluir, portanto, que a aristocracia brasileira
era ao mesmo tempo nobiliárquica no etos político e civil, mas capitalista na atividade
econômica. Para além das intermináveis controvérsias históricas ou sociológicas que
opuseram ambas as perspectivas como reciprocamente excludentes, esta é uma posição
conciliadora presente já na Introdução à História da Economia Pré-Capitalista do Brasil; aí,
Oliveira Viana já destacava que, “apesar de sua origem e formação mercantilista”, a
“burguesia do dinheiro” brasileira assimilava rapidamente os hábitos “da velha nobreza dos
senhores territoriais” (VIANA, 1958:52). Este posicionamento foi reiterado recentemente por
João Fragoso e Manoel Florentino, para quem o comércio e a acumulação de capital não eram
percebidos como um fim em si pelos comerciantes de grosso trato, e sim como um meio que
lhes permitiria adquirir terras e viver como grandes senhores, o que lhes traria o
reconhecimento nobiliárquico (FRAGOSO & FLORENTINO, 1998: 107). Daí a acuidade
com que também Florestan Fernandes se referiu a um “paralelismo econômico estrutural, tão
orgânico e profundo quanto persistente”, que levava o senhor agrário a projetar seu etos
estamental e patrimonial em todas as atividades que desempenhava, seja como morador,
proprietário ou capitalista (FERNANDES, 2006: 104). O modo capitalista com que a elite
rural brasileira conduzia seus negócios, por meio de cálculos de perdas e ganhos, conciliava-
se dessa maneira sem maiores atritos com seu etos aristocrático - mesmo porque era o meio de
sua obtenção e manutenção.
26
Em 1819, a população escrava brasileira chegava a 38 % dos habitantes do Brasil, ao passo que a Argentina,
por exemplo, cerca de 20 anos antes, apresentava taxas que variavam em torno de 29 % em Córdoba, 25 % em
Buenos Aires, 20 % em Salta e apenas 1 % em Corrientes. Ao passo que os novos países da América Espanhola
encaminharam seus processos de abolição da escravidão ainda no início daquele século, no Brasil, ao contrário, o
boom cafeeiro provocou a intensificação do tráfico negreiro, que se extinguiria apenas em 1850 (FAUSTO &
DEVOTO, 2004:42/43).
O Momento Monarquiano 91
tinham direitos civis, ao passo que a população pobre e livre não tinha inserção
socioeconômica. Uma vez que o trabalho manual era exercido preferencialmente pelos
escravos, os pobres livres viviam sem fixidez, errantes, sobrevivendo nas rebarbas do sistema
escravocrata como agregados, vendeiros ou capangas das fazendas, absolutamente
dependentes do senhor (FRANCO, 1997:112/113). Nas cidades, os artesãos e proletários
sofriam a concorrência da multidão de escravos que se dedicava às mesmas atividades,
depreciando o valor dos salários, rebaixando seu status e tornando-os irrelevantes enquanto
segmento social (SCHWARTZ, 1988:264). O trabalho manual ficou assim estigmatizado:
Vilhena explicava que, como eram os negros escravos que cuidavam de “todas as obras servis
e mecânicas, poucos são os mulatos e raros brancos que nelas se querem empregar, sem
excetuar aqueles mesmos indigentes que em Portugal nunca passaram de criados de servir, de
moços de tábua e cavadores de enxada” (VILHENA, 1922:140). Por fim, a ruralização da
sociedade com o boom da cana, no século dezessete, deslocou quase todos os artífices para os
engenhos de açúcar, onde se isolaram uns dos outros enquanto categoria profissional e se
tornaram assalariados do senhor (MELLO, 2000:83). Sob o império da exportação de
produtos tropicais, a menor importância do mercado interno ligou o alto comércio urbano à
aristocracia rural, tornando-o parte da engrenagem nobiliárquica.
No que toca aos escravos, eles não eram, como os servos, vassalos da mesma
comunidade que trabalhavam num regime de dependência, mas coisas, “máquinas de
trabalho”. O escravo não era juridicamente reconhecido como integrante da comunidade, mas
como uma propriedade estrangeira, porque africana, sobre o qual o senhor tinha direito
potestativo. Eram de eficácia muito limitada os poucos direitos que a lei lhe reconhecia –
como o de casar e não ser separado da mulher –, porque eram impostos unilateralmente pelo
Estado sobre o vácuo de costumes sociais dos sertões da colônia e limitados pelo direito de
propriedade do senhor (SCHWARTZ, 1988:124). O maior problema era mesmo a precária
capilaridade do Estado devido ao colossal território brasileiro. Mal alojados, mal alimentados
e mal vestidos, o índice de mortalidade dos cativos no campo era três vezes maior que o da
população livre, o que tornava a lavoura visceralmente dependente do tráfico negreiro. Além
disso, os escravos eram queimados ou chamuscados com cera quente, marcados na face ou no
peito, torturados com ferros em brasa, decepados orelhas ou nariz, abusados sexualmente
(SCHWARTZ, 1988:289 e 123). Além disso, libertado por determinação legal ou carta de
alforria, o ex-escravo já começava sua vida civil estigmatizado pela cor. Ao se referir ao
“bárbaro, cruel e inaudito modo como a maior parte dos senhores tratam os seus desgraçados
escravos de trabalho”, concluía o próprio Vilhena, aterrado: “Eu duvido que os mouros sejam
assim cruéis com seus escravos” (VILHENA, 1922; 188).
Não quero dizer, com isso, que todo o discurso liberal e/ou democrático, produzido
no período, exprimisse um anseio da aristocracia rural; nem que não houvesse quem aspirasse
por um regime sinceramente liberal e/ou democrático, isto é, com preponderância da opinião
pública das cidades. Também não nego que surgiu um espaço público depois da Revolução do
Porto, e que ele se ampliou gradativamente no correr do século, alcançando maior visibilidade
na década de 1880. Mas, como o peso dos segmentos urbanos continuava muito baixo em
termos eleitorais, já que pouca gente habitava as cidades e tinha o direito de voto,
especialmente depois de 1881, a força dos órgãos representativos dos advogados, médicos,
jornalistas, poetas ou professores, ou seja, da “sociedade civil”, ou “opinião pública”
propriamente dita, deve ser relativizada, por mais barulho que tenha feito. Assim como o
conservadorismo não era privativo da lavoura, o liberalismo não era privativo dos
profissionais liberais; por isso, as idéias brandidas pelos setores intermediários só adquiriram
importância política quando suas críticas ao modelo político aproveitavam às pretensões da
lavoura, servindo de cortina de fumaça para seus propósitos oligárquicos. Este é um fato que
uns poucos iluminados, como Joaquim Nabuco, perceberam antes de 1889. Na medida em
O Momento Monarquiano 95
27
Essa ilusão de ótica, que toma a vitalidade dos movimentos intelectuais como proporcionais à força política
efetiva dos que o lideram, tem produzido trabalhos que induzem o leitor a crer que a abdicação de Pedro I
resultou de uma demanda popular refletida nos artigos de Evaristo da Veiga na Aurora Fluminense ou de
Ezequiel Correia dos Santos na Nova Luz Brasileira; ou que a monarquia caiu por causa das charges da Revista
Ilustrada, ou dos editoriais de outros jornalistas, republicanos, positivistas ou evolucionistas, que teriam minado
junto ao “povo” a confiança no regime. Esses historiadores esquecem de se perguntar por que, numa perspectiva
mais alongada, as críticas desses mesmíssimos setores às oligarquias rurais, depois de 1889, levariam mais
quarenta anos até conseguir derrubá-las do poder. Já numa perspectiva comparada, não se perguntam por que as
outras gerações de 1870 foram incapazes de pôr abaixo a monarquia em Portugal, na Espanha ou na Itália.
28
Conforme percebido por outro autor, “a ‘classe popular’, definida por Vergueiro, representava na realidade
social da Província de São Paulo uma elite e uma minoria possuidora de fortunas e participante do processo
político. As ‘classes privilegiadas’, expressão empregada no plural, associava-se, através de uma linguagem
ilusória, às lexias de ‘povo’ e ‘todos os cidadãos’, mas, conforme a realidade, representava os homens livres
(cidadãos brasileiros), pertencentes às facções políticas da burguesia mercantil da província” (CONTIER,
1979:175).
O Momento Monarquiano 96
Neste caso, a adesão do aristocrata cidadão à ordem política imperial dependia tanto da parte
que a monarquia lhe concederia na direção do Estado, como do compromisso por ela
assumido de não tocar na grande propriedade rural; nem a nada a ela relacionado, como o
tráfico negreiro, a mão-de-obra escrava, seu acesso aos cargos políticos locais e seu domínio
pessoal sobre os habitantes livres de suas regiões.
29
As memórias publicadas pelo político e historiador José Maria Belo em 1958 são muito elucidativas a este
O Momento Monarquiano 97
respeito e comprovam a persistência do etos aristocrático, um século ainda depois do período em tela. Na
qualidade de “filho, neto, bisneto, trineto, pentaneto de senhor de engenho”, Belo lembra que, por mais
decadentes que estivessem na sua infância, os aristocratas rurais continuavam “extremamente ciosos de sua
progênie de ‘fidalgotes’ e muito sensíveis em certos ‘pontos de honra’”. Embora as casas grandes já padecessem
de certo desconforto, os senhores faziam ostentação dos “custosos cavalos de sela, dos selins ingleses, das botas
de verniz, dos arreios de prata, dos pajens”. A despeito do desregramento moral decorrente da escravidão,
acrescenta Belo: “Salvou os ‘aristocratas’ da cana-de-açúcar o forte sentimento da honra pessoal e da dignidade
da casta. Do seu meio saiu no Império e na República a maior parte das elites dirigentes do país (...), imbuídos de
cultura jurídica, de fundo romântico, da época, e em Pernambuco, especialmente, de espírito liberal; não raras
vezes inclinados ao radicalismo revolucionário” (BELO, 1958: 11/13).
O Momento Monarquiano 98
aspiração de, emancipado, ter plena liberdade de explorar a mão-de-obra pobre ou escrava,
isto é, o poder de baixo, tendo em vista seus interesses econômicos. Como se percebe, a
democracia liberal a que aspirava a lavoura contra o trono era a uma típica democracia para o
povo dos senhores (LOSURDO, 2006:137). Não por acaso, de passagem pelo Rio de Janeiro
em 1846, um jovem e talentoso político do Rio da Prata, Domingo Faustino Sarmiento (1811-
1888), relatava grande dificuldade de aí encontrar o cidadão brasileiro meio à multidão de
escravos e estrangeiros:
“No Rio de Janeiro, procurei em vão o brasileiro, sem poder encontrá-lo senão por
raras amostras que me fizeram desconfiar que deve existir em alguma parte. O
brasileiro de origem é nobre, embora às vezes mulato, condecorado com cruzes de
diamantes, ministro, aduaneiro, empregado ou fazendeiro, em cuja função tem a
ver com o português (...). É o sonho dourado do moderno Império, que se
envaidece de ter como Roma sete colinas na capital, escravos que lavram a terra
como antigamente e a missão de dominar a América com suas esquadras, sua
diplomacia e seu comércio” (SARMIENTO, 1983: 108/109).
2.2.. A recepção das linguagens liberais pela a esquerda brasiliense e pela direita
coimbrã.
Publicado entre 1808 a 1823 em Londres, onde Hipólito se refugiara da perseguição das
autoridades policiais portuguesas, o jornal que tinha ampla circulação no Brasil. Das páginas
de seu periódico circularam pela primeira vez artigos defendendo a liberdade de imprensa e a
exigência de reformar a monarquia à inglesa. A liberdade “de escrever e de imprimir” era
qualificada por Hipólito como “a liberdade de falar ou comunicar os pensamentos dos
homens, o que é de direito natural, e somente proibido pelos governos, que têm razão para
temer que as suas ações sejam examinadas”. Sem essa liberdade de “falar e escrever”,
ajuntava, “a nação não prospera, porque os dons e vantagens da natureza são poucos para
reparar os erros do governo e porque se alguém descobre o remédio ao mal, não lhe é
permitido indicá-lo”. Hipólito estava preocupado com os meios de viabilizar um governo
liberal no Brasil, onde não havia sequer, como em Portugal, a lembrança de uma constituição
estamental para combater os excessos do poder: “Logo não pode haver dúvida, que o governo
do Brasil é pior do que o de Portugal; visto que é mais despótico, não tendo nenhuma
contrabalança popular, nem na prática, nem na teoria” (COSTA, 1977).
parte da aristocracia rural, desejosa de aderir a uma ordem liberal e federalista que lhe
permitisse liberdade para tocar seus negócios escravistas e controlar a política provincial.
Entre nós, embora atraíssem muitos letrados e comerciantes das cidades costeiras, o
liberalismo também atraía o grosso dos senhores rurais, porque lhes permitiria limitar o poder
do Estado sobre o mercado e a mão-de-obra - o que lhes interessava como empresários -, bem
como converter seu prestígio social em poder político efetivo – o que lhes interessava como
nobreza rural. A tensão entre pretensão regulatória da Coroa e resistência da lavoura havia
sido uma característica do Antigo Regime que se acentuara depois das reformas pombalinas.
Por seguidas vezes, por exemplo, a Coroa tentara resolver o problema da escassez de
alimentos nas cidades obrigando os senhores a reservar parte das terras ao cultivo de
mandioca, que deveria alimentar os escravos e abastecer de farinha os mercados. Entretanto,
aproveitando-se da vastidão do território e da reduzida capilaridade do Estado, os senhores
descumpriam a lei para dedicarem-se exclusivamente ao plantio da cana, argumentando que
era “um absurdo renunciar à melhor cultura do país pela pior que nele há” (In: SCHWARTZ,
O Momento Monarquiano 102
“Um povo, quando chega ao ponto de fazer as eleições dos seus representantes ou
dos seus soberanos, já não é uma multidão desenfreada ou um povo propriamente
no estado de anarquia (...). Esta distinção de povo e povo desenfreado, solto e
desligado, é absolutamente necessária para não se dar jamais ocasião a que
qualquer multidão de assassinos e ladrões, arrogando a si o nome da nação ou de
povo legitimamente congregado, pretenda fazer respeitar como justos os seus
roubos e assassinatos” (In: SANTOS, 1999:56).
30
Em 1801, por conta da alta geral do preço do açúcar, a lavoura toda da Bahia abandonava a produção de outros
gêneros agrícolas, levando a uma crise do abastecimento de farinha de mandioca em Salvador. Depois de
recordar as leis que obrigavam a aristocracia açucareira a também plantar a mandioca, em especial para sustentar
os próprios escravos, Vilhena notava nenhum senhor de engenho seguia a lei no Recôncavo. Ficava assim o povo
sujeito a “morrer de fome na Bahia, como sucedeu há sete ou oito anos em Pernambuco, onde morreram
centenas de pessoas (...) porque não há recurso para os vizinhos” (VILHENA, 1922:158/160).
O Momento Monarquiano 103
idade adulta, nas décadas de 1790 e 1800, já estava familiarizada com os sucessos da
Revolução Francesa, enxergando, nos ideais constitucionais e representativos, oportunidades
para tomarem o poder em nome da Nação, desbancando a equipe de burocratas que o
monopolizava no Antigo Regime. Foi a primeira geração, em síntese, a ostentar
voluntariamente a bandeira do constitucionalismo no Brasil, seja na sua primeira adesão ao
vintismo português, seja na sua posterior americanização.
Evidentemente, nem por isso esta elite não era toda homogênea nem formava um
mesmo grupo político - até porque cada província possuía mais de um. Da mesma forma, o
seu grau de adesão ao vintismo português variou conforme o humor para com as notícias
chegadas do Rio. Evaldo Cabral de Mello mostra que os brasilienses pernambucanos, cuja
capital tinha um peso político considerável na província, podiam passar de uma postura mais
moderada, ligada ao vintismo dos grandes proprietários rurais, a outra, mais exaltada, própria
do radicalismo urbano em geral (MELLO, 2004). Já os brasilienses paulistas, cuja província
era majoritariamente rural, tendiam - como demonstrou Miriam Dohlnikoff - a permanecer
mais duradouramente moderados em seus posicionamentos31. Seja como for, ligados ao
campo, à cidade ou a ambos; mais moderados ou radicais, todos esses grupos eram tributários
do liberalismo vintista português e, como tal, queriam que a Constituinte brasileira
consagrasse um modelo constitucional assemelhado ao da monarquia republicana. O único
ponto que os afastava doutrinariamente do vintismo era a paixão descentralizadora, por que
acreditavam que viriam governar suas províncias sem a interferência da Corte; nesse ponto, e
só nesse, eram americanistas antes de vintistas. Como queria o Frei Caneca, um governo
unitário seria fatalmente “arbitrário, iliberal, despótico e tirânico, tenha o nome que tiver,
venha revestido da força que vier” (In: MELLO, 2004:137). Havia sido o unitarismo e o
regime de favor comercial imposto pelas Cortes de Lisboa que os haviam alienado do projeto
de união luso-brasileira; por conseguinte, não seria o unitarismo em torno do Rio de Janeiro,
com que acenava José Bonifácio, que as convenceria a pactuar.
31
O grupo brasiliense de São Paulo foi recentemente descrito também como aristocracia rural por outra autora:
“Compunham o grupo liberal paulista grandes proprietários de terras que cultivavam cana-de-açúcar ou criavam
gado, e que mais tarde se tornariam cafeicultores. O padre Feijó tornara-se, graças à herança materna, senhor de
engenho, enquanto Vergueiro, português de nascimento, era proprietário de várias fazendas, graças ao casamento
com uma rica herdeira paulista. Paula Sousa era, como Feijó, proprietário de grandes engenhos de açúcar em Itu,
onde nascera. Tobias de Aguiar, nascido em Sorocaba, importante entroncamento viário, ali se dedicava ao
comércio de muares, principal suporte do transporte comercial. Dos quatro, apenas Vergueiro estudou em
Coimbra. Os demais foram educados em São Paulo” (DOHLNIKOFF, 2006:31).
O Momento Monarquiano 104
32
Mais do que em citações, a presença de Sieyès se percebe sempre que os brasilienses buscam definições. Era o
caso do conceito de Nação: “O que é Nação? É a grande reunião de povos, que obedecem a uma mesma lei, e a
um mesmo sistema de governo. As classes privilegiadas, que gozam foro, e exceções da lei, não constituem
nação, são pequenas frações da grande massa, em quem só reside a força, o poder e a soberania. (...) Nós
detestamos as agitações populares, mas quem são os que a promovem? Não são, por certo, nem os publicistas,
nem os filósofos, que, dissipando as trevas do erro, patenteiam as fontes da verdade; são sim os abusos do poder,
que cavam os abismos da miséria pública (...). O governo é na moral o que no físico é um relógio: cumpre atrasá-
lo, ou adiantá-lo, e o povo é o relojoeiro, a quem compete compassá-lo pelo cronômetro da vontade geral”
(BARBOSA & LEDO, 1822:145).
O Momento Monarquiano 105
obrigado a fazê-lo na medida em que, com seu “iliberal projeto”, as Cortes haviam se
desviado “do sistema do liberalismo começado; abusou da boa fé do Brasil e quis recolonizá-
lo” (In: LYRA, 1994:222). Os brasilienses fluminenses foram assim obrigados a deslizar à
direita para agradar o Príncipe Regente, empenhado pela preservação de seu poder no Brasil
contra as tentativas das Cortes de esvaziá-lo. Em questão de fundamentos da ordem política,
por exemplo, os excessos da vontade geral rousseauniana foram temperados com a doutrina
termidoriana de que nenhuma soberania era ilimitada. A fim de evitar “os escolhos da
democracia pura e os ferros do aborrecido despotismo”, o Revérbero transigiu com um
modelo mais equilibrado de governo misto que admitia para a Coroa não só poderes
excepcionais “para acudir às imprevistas e urgentes necessidades do Estado”, mas também o
Poder Moderador para “manter o equilíbrio de todos os poderes entre si”. No entanto,
Januário Barbosa e Gonçalves Ledo continuaram a frisar que o elemento democrático deveria
prevalecer sobre o aristocrático. Essa postura transparecia nas reservas feitas pelo Revérbero à
Constituição da Inglaterra e na sua oposição decidida a qualquer tipo de câmara alta vitalícia
ou hereditária, que fatalmente haveria de favorecer a burocracia da Coroa em seu detrimento
(BARBOSA & LEDO, 1822, II: 122, 67, 130 e 201).
empregar os recursos públicos em seu proveito, no Brasil ele foi empunhado pela própria
aristocracia rural para ocupar o Estado e direcioná-lo para o negócio agroexportador, o que
requeria a intangibilidade e o incremento do tráfico negreiro. O ascendente da aristocracia
rural escravocrata desembocava num projeto nacional que, por conta da prevalência do
econômico sobre o político, estreitava a esfera pública a fim de, estrangulando no berço o
Estado nacional e excluindo os trabalhadores da sociedade política, ajustar o manto da
emergente Nação para que o espaço da sociedade política coincidisse com o do círculo
senhorial. Ao sustentarem que o melhor dos governos era a monarquia representativa, porque
reunia “a virtude das repúblicas, com a honra das monarquias”, Januário Barbosa e Gonçalves
Ledo exprimiram à perfeição o ideal aristocrático dos brasilienses fluminenses, que ocupavam
a esquerda do espectro político: uma sociedade política monopolizada por um grupo de
grandes proprietários e comerciantes, que queriam ser cidadãos frente ao poder monárquico –
o poder de cima, que ameaçava a liberdade –, e aristocratas frente às pretensões do povo – o
poder debaixo, que ameaçava a ordem.
fabricar constituições, assembléias, tribunais e secretarias de Estado – e, como tal, também era
liberal, no sentido de que se opunha à continuidade do Antigo Regime. Do ponto de vista
retórico, o desafio conservador era o de construir um discurso alternativo ao republicanismo
francês e ao federalismo estadunidense. O que a distinguia da esquerda era o temor de que os
excessos do constitucionalismo de Cádiz e do federalismo, com suas pretensões de fazer
tabula rasa da ordem, levassem à anarquia e à desagregação das antigas capitanias e vice-
reinados. Ser de direita ou conservador na América Ibérica era, portanto, coisa diversa de ser
conservador à inglesa, com Edmund Burke (1729-1797), ou reacionário à francesa, com o
Visconde de Bonald (1754-1840). Implicava afastar-se dos extremos ideológicos para aceitar
a novidade radical da ordem liberal, salientando, porém, com certo realismo ou pessimismo,
uma autoridade forte que, no vácuo do poder monárquico, fornecesse um centro estabilizador
à nova sociedade, como condição da liberdade pleiteada pela esquerda. Ou seja, havia uma
contradição entre as exigências ideológicas e sociológicas dos novos países ibero-americanos:
se por um lado a adoção de um governo moderno, constitucional e representativo era um
imperativo imposto pela criação das novas nações, por outro o estado de atraso, dispersão e
amorfia não recomendavam a fragmentação de poder política que decorria da construção de
um Estado liberal. Daí a necessidade de equilibrar a aspiração por progresso e liberdade com
a exigência da ordem e da autoridade.
A solução monárquica foi ensaiada em lugares tão diferentes quanto o Rio da Prata, no
Chile e no México. No Congresso de Tucumã, em 1816, Manuel Belgrano (1770-1820)
argumentou que a adoção de uma monarquia constitucional seria útil tanto política como
diplomaticamente, diante da desordem americana e do novo clima político europeu decorrente
do Congresso de Viena. José Francisco de San Martín (1779-1850) manteve contatos com a
Rainha de Portugal e do Brasil, Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830), irmã do Rei da
Espanha, Fernando VII (1784-1833). Seu propósito era o de transportá-la até o Rio da Prata
na qualidade de regente daquele vice-reinado. A preferência era por infantes da própria Coroa
espanhola; todavia, diante das dificuldades postas por Fernando VII para a cessão de algum
membro de sua família, passou-se a aceitar cabeças coroadas de outras dinastias. Ocorre que a
França e a Inglaterra não se entendiam sobre um nome aceitável, quando esse consenso era
necessário para o reconhecimento da independência. Essas dificuldades levaram os
conservadores a ensaiar uma solução caseira. Na Nova Espanha tentou-se uma saída
napoleônica, aclamando-se um plebeu como Imperador o general criollo Agustín de Itúrbide
(1783-1824), herói da independência, e conferindo-lhe o título de Agostinho I. No Rio da
Prata, Belgrano propôs entronizar um descendente dos reis incas33.
33
O problema é que Itúrbide estava longe de granjear a legitimidade de que Bonaparte gozara vinte anos antes na
França; além disso, um monarca criollo não apresentava qualquer tradição dinástica que legitimasse sua
pretensão de exercer um papel de arbitragem ou de neutralidade sobre os demais caudilhos mexicanos. No caso
de Belgrano, a aristocracia criolla rejeitou a sugestão por desprezar os índios (SAFFORD, 2001:344). A idéia
monárquica permaneceria no horizonte da América hispânica até pelo menos meados da década de 1860. Basta
lembrar a ascensão de Maximiliano de Habsburgo ao trono do México, apoiado maciçamente pelo Partido
Conservador daquele país. Na mesma época, desesperado da causa republicana, Alberdi cogitou da instauração
de uma monarquia centralizadora na Argentina, que tivesse o Segundo Império francês por referência. “O
Império”, escrevia ele então, “não é a reação da revolução; é a maneira revolucionária de conciliar a ordem com
a liberdade revolucionária, quer dizer, com a liberdade não experimentada, que se educa, e que é violenta pela
falta de maturidade. É o governo revolucionário, como remédio à liberdade revolucionária” (In: BOTANA,
2005:398).
O Momento Monarquiano 111
para anjos; a decadência cívica provocada pela modernidade do luxo, que corrompera a
virtude e a substituíra pelo egoísmo; a ignorância de uma humanidade abandonada por suas
elites inescrupulosas. Nesse contexto, a exemplo do que se dava com os monarquistas, a
autoridade de Montesquieu passava a ser invocada pelos republicanos com mais constância,
especialmente as passagens do Espírito das Leis que exprimiam, de um lado, a dificuldade de
implantar a república num país de grandes proporções; e, de outro, a maior conveniência de
um regime autoritário em nações marcadas por grandes desigualdades de costumes. Era a
mística da Constituição Inglesa que, mais uma vez, acenava com a possibilidade de resolver o
problema, aparentemente insolúvel, da conciliação entre ordem com a liberdade. Por fim, os
republicanos conservadores sentiam-se atraídos pela recordação de Napoleão Bonaparte
(1769-1821) como cônsul da República Francesa. Napoleão encarnava o ideal de uma
república forte, cujos poderes deveriam se concentrar nas mãos de um chefe de Estado militar
que, pela sua energia e virtude, garantisse a coesão das Forças Armadas e a obediência dos
cidadãos.
O representante por excelência dessa linha de pensamento foi Simon Bolívar que,
patriota, modesto, pessimista, se apresentava no Discurso de Angostura como encarnação do
legislador ou do ditador rousseauniano. Mantida sob o jugo do vício, da ignorância e da
tirania, o povo sul-americano estava despreparado para a liberdade e na ignorância do que
fosse a virtude, sem a qual a república democrática e federalista não tinha como vingar. Era
preciso, portanto, nem que de forma tática, adaptar aquele ideal republicano às condições das
sociedades saídas do regime colonial, organizando um governo republicano, mas forte, cujas
instituições se prestassem de âncora e anteparo às tendências desagregadoras do meio. Bolívar
imaginava agir como o próprio Rousseau, que deixara nas Considerações sobre o Governo da
Polônia um exemplo de adaptação do ideal republicano do Contrato Social às realidades de
cada sociedade. Era nesse ponto que o paradigma da Constituição Inglesa e de seu governo
misto vinham em auxílio dos conservadores, numa adaptação ainda mais monárquica do
projeto republicano, do que a efetuada pelos pais da pátria estadunidenses. Além da
centralização política, eram duas as instituições encarregadas de servir de âncora da ordem:
primeiro, um senado hereditário, elemento estabilizador das estruturas constitucionais; e
segundo, uma presidência forte, necessária à preservação da ordem e da unidade do Estado. O
caráter instrumental desse arranjo fica patente no fato de Bolívar insistir na criação de um
tribunal de censores, encarregado de difundir os bons costumes e a educação cívica por sobre
as disputas e egoísmos das facções. A pragmática constituição equilibrada de Montesquieu era
O Momento Monarquiano 112
assim mobilizada para manter o Estado estável, até que, pela ação desse Poder Moral, fosse
possível instaurar a virtuosa república rousseauniana.
juventude conhecera a França de Luís XVI, conversara com Raynal e admirara os esforços de
Necker para modernizar o Estado e instaurar o sistema representativo (FUNCHAL,
1908:193). Linhares acreditava na possibilidade de “luminosas reformas executadas por
homens inteligentes e capazes de formar sistemas bem organizados, e cuja utilidade seja por
todos sentida e experimentada” (In: MAXWELL, 2001:235).
Ao conceber uma única nacionalidade portuguesa por referência ao elemento que lhe
conferia unidade - a monarquia dos Braganças -, a burocracia orientada por Linhares
constituía o único grupo dentro do Império que suplantava a rede de fidelidades políticas
inscritas no registro regional ou local das pátrias, ou no registro atlântico do pertencimento à
América ou à Europa34. Por isso mesmo, diante da impotência da realeza frente à Revolução
de 1821, foram políticos ligados à burocracia joanina formada sob Linhares que, no Rio de
Janeiro, se dedicaram à formulação de um projeto que seguisse o projeto reformista de um
grande império brasileiro. Formados quase todos em Coimbra, em Direito sob o Antigo
Regime, haviam sofrido já adultos e na Europa o choque da Revolução Francesa, experiência
que lhes foi traumática por contrariar todo o seu aprendizado de reforma ilustrada dentro da
ordem e da monarquia. Rejeitando, inicialmente, os valores revolucionários franceses e os
ideais do governo constitucional e representativo, os acontecimentos ulteriores - o Império
napoleônico, a invasão da península ibérica e a independência das antigas colônias
espanholas, tornadas repúblicas hispânicas – acabaram por convencê-los de sua
inexorabilidade e da necessidade de encontrar uma fórmula de acomodação, ainda que num
misto de resignação e ceticismo. Seja como for, esses burocratas sempre rejeitariam
publicamente a força, a revolução ou a violência como meios de ação política.
Em contraste à elite brasiliense, designarei este grupo de altos funcionários como elite
coimbrã (CARVALHO, 1996; BASTOS, 2003). Pelo menos dez anos mais velha, essa elite
era composta de brasileiros que, oriundos das diversas capitanias da América Portuguesa,
haviam sido subsidiados e protegidos na mocidade pelo Conde de Linhares. Incluo aqui José
Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), Hipólito José da Costa, José Joaquim Carneiro de
Campos (1768-1836), Manuel Jacinto Nogueira da Gama (1765-1847), Antônio Carlos de
Andrada Machado (1773-1845) e José Feliciano Fernandes Pinheiro (1774-1847), formando-
se ainda sob o Antigo Regime. Geralmente em dificuldades financeiras para se sustentarem e
34
Para ele, o reformismo permitiria assegurar – em suas próprias palavras - “o sacrossanto princípio da unidade,
primeira base da monarquia que se deve conservar com o maior ciúme, a fim de que o português nascido nas
quatro partes do mundo se julgue somente português; e não se lembre senão da glória e grandeza da monarquia,
a que tem a fortuna de pertencer, reconhecendo e sentindo os felizes efeitos da reunião de um só todo, composto
de partes tão diferentes que, separadas, jamais poderiam ser igualmente felizes” (In: LYRA, 1994:69).
O Momento Monarquiano 114
35
Tendo servido também de preceptor dos filhos de Linhares ao chegar a Portugal, Carneiro de Campos seguiria
carreira nas secretarias de Fazenda e Justiça (SISSON, 1999:201). Nomeado diretor literário da Tipografia
Régia, Hipólito da Costa retribuiria anos depois a proteção de Linhares pelas páginas do Correio Brasiliense:
“Enquanto o Príncipe Regente de Portugal adornar os lados de seu trono com homens tão beneméritos como D.
Rodrigo de Souza Coutinho, pode estar seguro, que o seu nome será estimado pelos estrangeiros e respeitado
pelos nacionais. (...). Sua Alteza Real não tem em seu serviço nenhum Ministro, nem mais inteligente, nem mais
desinteressado do que D. Rodrigo” (COSTA, 1977:28).
36
O fato de terem alguns deles se ligado a negociantes da Corte e recebido sesmarias no Vale do Paraíba -
conforme a estratégia de Dom João VI de melhor enraizar os interesses do Estado na agricultura - parece antes
ter tido o efeito de consolidar sua identidade primária com a Coroa do que o de atraí-los para o da aristocracia
rural tradicional. Alcir Lenharo sugeriu, de forma persuasiva, que Dom João teve o propósito de costurar os
interesses da burocracia da Corte com a o alto comércio preexistente, distribuindo sesmarias no Vale do Paraíba
e mesmo as sementes de café que dariam origem ao boom da década de 1830. Dois desses personagens
agraciados teriam sido o citado Manuel Jacinto Nogueira da Gama, futuro Marquês de Baependi, e Paulo
Fernandes Viana, Intendente de Polícia (LENHARO, 1979:66). Cecília de Salles Oliveira desenvolveu essa
hipótese, afirmando que a oposição dos brasilienses fluminenses se fundava no fato de que, representantes da
nobreza da terra no recôncavo da Guanabara e na região de Campos dos Goitacases, sentirem-se prejudicados
pela formação de um grupo concorrente na capital da colônia, amparado nas benesses da Coroa. Entretanto, está
por se fazer um estudo que melhor esmiúce as relações entre os ocupantes do segundo escalão da administração
joanina, os negociantes do grosso trato e a formação da aristocracia cafeeira do Vale do Paraíba. Apoiada em
Lenharo, Salles Oliveira toma por garantido que os demais membros da burocracia joanina (à exceção dos
Andradas) teriam também sido agraciados pela Coroa (OLIVEIRA, 1999: 85 e 92). No entanto, o que Lenharo
afirma é sua certeza de que isso também ficaria claro caso outras personagens (como Carneiro de Campos)
tivessem suas biografias dissecadas (LENHARO, 1979:69). Ou seja, trata-se de uma hipótese não confirmada e
que enfrentará não poucas dificuldades, porque as poucas informações disponíveis sobre Carneiro de Campos
apontam no sentido de que ele morreu “não deixando fortuna alguma, porque, rígido observador dos deveres da
honra, contentou-se com os honorários de conselheiro de Estado e senador, que apenas chegavam para uma
decente subsistência” (SISSON, 1999, II: 203). Também Inhambupe é referido como tendo deixado família
pobre (SISSON, 1999, II: 68). O ponto fundamental é esclarecer as relações do grupo burocrático com a questão
escravocrata. Em princípio, a aliança matrimonial com a família do comerciante Carneiro Leão induz a crer na
O Momento Monarquiano 115
“A ciência do governo (...) consiste em indagar o que pode ser um Estado para
corresponder aos seus mais altos fins; em conhecer todos os seus recursos
presentes e futuros, e todas as suas faltas atuais. Quando todas as forças
individuais dos vassalos se dirigem e se empregam no bem geral do Estado, se as
circunstâncias físicas e morais dos povos devem servir de norma para os meios
assunção de compromissos com o tráfico negreiro. Ocorre que toda a política da Coroa e de seus conselheiros no
período aponta, ao contrário, na intenção de adotar medidas inibitórias do tráfico (como a adoção de um imposto
sobre o tráfico, instituído pelo próprio Fernandes Viana). Essa tendência fica clara nos posicionamentos tomados
por coimbrões como José Bonifácio, Severiano Maciel da Costa (futuro Marquês de Queluz) e pelo próprio Dom
Pedro I. Uma possível hipótese explicativa, penso, é que, em caso de conflitos de interesses, esses novos
proprietários rurais se definissem, antes por sua ligação primária com a Coroa, do que com a aristocracia rural.
O Momento Monarquiano 116
aplicados, nunca podem ser obstáculos invencíveis; porque o homem que obedece
à razão pode vencer a natureza e o costume. Mas sem boa legislação não
conseguem os Estados tal ventura; porque as leis são as regras que encaminham as
nossas ações; os preceitos pelos quais o homem, esta criatura dotada de razão e de
vontade, deve dirigir suas nobres faculdades para a sua maior felicidade. No
coração humano gravou a Divindade os princípios do honesto e do útil, para que a
sabedoria e a experiência melhor pudessem depois desenvolvê-los e aplicá-los. Se
as leis humanas vão contra estes princípios sagrados, são sujeitas e danosas, e não
merecem a nossa estima; porque deles recebem todo o seu valor e autoridade. Mas
como essas leis; que poderíamos chamar da natureza, são poucas e geris, viram-se
as nações obrigadas a ampliá-las, e aplicá-las conforme requerem o estado das
sociedades, os progressos da cultura e riqueza, e a posição local. Daqui veio a
necessidade de haver um poder supremo em cada Estado, que pudesse fazer novas
leis, sábias e justas, quando assim cumprisse” (ANDRADA E SILVA, 2002: 101).
suas funções como chefe da execução, e a sua dignidade, como regulador da máquina
política” (ANDRADA E SILVA, 2002:265, 181 e 174).
Mas quem possuía a visão mais articulada do problema era mesmo José Bonifácio,
que propunha suprir a carência de mão-de-obra com os imigrantes europeus e os índios que,
depois de civilizados, seriam incorporados como cidadãos ao mercado de trabalho. Na
perspectiva oposta à dos brasilienses fluminenses, que justificavam a usurpação das terras
O Momento Monarquiano 118
Eram, assim, duas diferentes propostas para o país recém-saído do status colonial. De
retórica realista, tributária do despotismo ilustrado, unitária e interventora, a proposta coimbrã
elaborada pela alta burocracia não reconhecia a preexistência de uma Nação e, arrogando-se o
papel de criá-la, fundava a representação da soberania nacional na autoridade monárquica –
numa palavra, era um projeto onde o político prevalecia sobre o econômico. De retórica
idealista, tributária do liberalismo de tendência democrática, federalista e liberista, a proposta
brasiliense da grande propriedade protestava pela preexistência de uma Nação cuja extensão
coincidia com a de sua própria classe; e por isso fundava a representação da soberania na
autoridade parlamentar - em suma, um discurso onde o econômico prevalecia sobre o político.
Essa polarização entre autoritarismo, intervencionismo e abolicionismo, do lado coimbrão, e
ultraliberalismo político, laissez faire e escravismo, do lado brasiliense, nada tinha de
contraditória. Quarenta anos antes, o conservador inglês Josiah Tucker já acusara os
insurgentes estadunidenses de associarem liberdade e república a escravismo. O próprio
O Momento Monarquiano 119
Adam Smith reconhecera que o governo despótico podia mais facilmente suprimir o
escravismo do que um regime da liberdade política e econômica que, naquele contexto, só
beneficiava o senhor em detrimento do escravo, que ficava mais completamente em suas
mãos (LOSURDO, 2006: 18). O mesmo ocorria no Brasil, naquele momento de transição do
Antigo Regime para o governo constitucional representativo: aqueles que com mais afinco
mais defendiam o liberalismo estavam comprometidos com o latifúndio e a escravidão, ao
passo que aqueles que se lhes opunham eram favoráveis a um governo interventor e dotado de
autoritário (JANCSO e PIMENTA, 2000:191).
* * *
remédio para evitar revoluções, é que os ministros se conformem com as idéias do tempo e
daqueles que podem destruir o governo atual. Tudo está em dar-lhes uma Constituição. Seja
esta mais despótica que liberal - pouco importa, por então” (In: SANTOS, 1999: 214). Por
isso, os coimbrões teriam invariavelmente de recorrer a algum discurso monárquico em torno
da excelência da Constituição Britânica, pela via de sua recepção francesa. Foi então que o
projeto político coimbrão veio, por afinidade e contingência, a recepcionar o projeto e a
ideologia dos monarquianos. A perspectiva da reunião da Constituinte, por si só, já punha os
coimbrões na mesma posição outrora ocupada pelo partido monarquiano – a de defender o
príncipe contra a teoria do poder constituinte de Sieyès, que fazia da assembléia a depositária
exclusiva da soberania, e sua proposta constitucional da monarquia republicana.
Na medida em que atendia aos seus desejos de um governo monárquico forte, dentro,
porém, da moldura constitucional e representativa de um governo misto, foi a leitura da
Constituição Inglesa feita por Mounier, Malouet, Lally e Clermont Tonnerre, disponível então
em diversas coletâneas de discursos da Revolução, que ganhou as simpatias de José
Bonifácio, Carneiro de Campos e dos demais governistas. Em setembro de 1822, Hipólito da
Costa já havia apresentado no Correio Brasiliense um projeto que repartia o poder político
entre o monarca, uma câmara alta e uma câmara baixa (COSTA, 1977: 542 e 620). Invocando
o exemplo da Constituição Inglesa contra os precedentes revolucionários franceses, ele
alertava novamente em dezembro que a Constituinte deveria se limitar a confeccionar a Carta,
não exercendo atribuições legislativas nem se metendo nos negócios do governo –
principalmente quando as circunstâncias excepcionais recomendavam concentração de
poderes executivos (COSTA, 1977:624). Em fevereiro de 1823, o Imperador pleiteava na
imprensa uma Constituição curta e prática, “adaptada ao país” (VIANA, 1967:58); no mês
seguinte, um projeto nessas bases foi apresentado na Loja Maçônica do Apostolado. O
próprio Pedro I, os Andradas e Carneiro de Campos declararam então sua adesão a uma
proposta que “conciliasse os direitos do povo com os do seu imperante, sem ofender as
formas essenciais e constitutivas de uma verdadeira monarquia mista”; repetindo, com
Mirabeau, que o direito de veto era “o maior escudo da liberdade e da segurança pública” (In:
BARATA, 2007: 365 e 367). Na Fala do Trono com que abriu a Constituinte a 3 de maio, o
Imperador reivindicou “uma Constituição sábia, justa, adequada e executável” em que “os três
poderes sejam bem divididos” e cujas bases dessem “uma justa liberdade aos povos”, sem,
todavia, retirar “a força necessária ao Poder Executivo” (AACB, 03/06/1823). Por fim, num
artigo publicado em setembro na imprensa da Corte, o secretário particular do Imperador,
O Momento Monarquiano 121
Francisco Gomes da Silva, o Chalaça (1791-1852), colocaria o dilema político com toda a
clareza e impaciência: “Ou queremos monarquia constitucional, isto é, um governo misto, ou
queremos uma monarquia republicana” (In: VIANA, 1967:174).
37
De fato, apesar do ódio de sua família, Dom Pedro admirava Napoleão por sua tripla competência militar,
política e administrativa; além disso, por conta de seus dois casamentos – o primeiro, com uma irmã de Maria
Luísa da Áustria; o segundo, com uma neta de Josefina -, o príncipe se tornara seu parente, o que muito o
agradava (SOUSA, 1972).
O Momento Monarquiano 122
que não jurasse fidelidade à constituição a ser elaborada pela Constituinte, José Bonifácio
frustrou o plano arquitetado por Ledo e seus amigos de sujeitar o príncipe à futura assembléia,
na qual esperavam prevalecer (In: SANTOS, 1999: 286). Na medida em que, desse modo,
Dom Pedro foi aclamado sem qualquer outro compromisso, que o do governar como
Imperador Constitucional, o Patriarca difundiu a tese de que, naquele momento, de corpo
presente, a massa da Nação fizera do príncipe o primeiro representante de sua soberania; que
ela lhe havia delegado diretamente, sem intermediação, o exercício do poder soberano
indispensável para que, naquela qualidade, o Imperador pudesse velar pelos seus interesses; e
que correspondia, naturalmente, ao conjunto de prerrogativas que cabiam à Coroa, em
qualquer verdadeira monarquia constitucional. Segundo José Bonifácio, havia sido celebrado
em três etapas o pacto entre príncipe e Nação soberana. A primeira se delas ocorrera em
janeiro de 1822, quando o Senado da Câmara do Rio de Janeiro, em nome de toda a Nação,
ofertara ao Regente o sugestivo título de Defensor Perpétuo do Brasil. Depois da
independência, a Nação reiterara de forma expressa e inequívoca sua vontade de constituir
Dom Pedro o primeiro representante de sua soberania, ao aclamá-lo Imperador constitucional,
no Campo de Santana. De sorte que a cerimônia de sagração e coroação, a 1º de dezembro,
havia sido a solenidade última por que se tornara perfeita e acabada a manifestação daquela
vontade soberana. O príncipe não governava, portanto, porque era herdeiro do trono do Reino
de Portugal, mas porque a Nação brasileira assim o quisera, exprimindo-se num ato público
que desvelara a vontade divina. Daí que, na conformidade da fórmula que antecederia todos
os atos imperiais, Dom Pedro seria “por graça de Deus e unânime aclamação dos povos,
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil”. Essa teoria cesarista da origem
democrática da autoridade do príncipe brasileiro fulminava qualquer tentativa de reproduzir o
modelo da monarquia republicana.
jurar de antemão fidelidade à futura constituição, Pedro I declarou que a defenderia desde que
ela fosse digna dele e do Brasil. Emprestada de Luís XVIII (In: ROSANVALLON,
1994:250), a expressão queria dizer que, na condição de defensor primeiro e perpétuo dos
interesses da Nação, por livre vontade dela e não de direito divino, o Imperador poderia
exercer um direito de veto sobre anteprojeto, caso o julgasse atentatório ao interesse público
ou ao bem comum, tendo legitimidade para dissolver a assembléia e convocar uma nova. Sem
tirar nem pôr, era o mesmo argumento, visto no capítulo anterior, com que Malouet justificara
em 1789, o direito que, no seu entender, tinha Luís XVI de vetar o futuro projeto elaborado
pela assembléia nacional francesa. Seria com base nele, portanto, que os coimbrões
justificariam como perfeitamente legítima e constitucional a decisão de Dom Pedro de
dissolver a assembléia, em novembro de 1823, sem recorrer às fundamentações reacionárias
de Bonald, então em voga na Europa.
Até que tal ocorresse, haveria indeterminação e luta. Suscitada a questão das relações
entre Constituinte e Imperador às vésperas da abertura da assembléia, por conta da preparação
do respectivo cerimonial, o referido Antônio Carlos de Andrada Machado já dava o tom de
defesa das prerrogativas monárquicas. Aos que acreditavam na soberania da assembléia, ele
advertiu que o poder dela e o da Coroa decorriam de delegação da autoridade da soberana
verdadeira, que era a Nação. Se havia que se falar em superioridade de algum dos poderes
constituídos, este certamente seria o do Imperador, porque sua influência sobre os demais
órgãos do Estado era “da essência da monarquia constitucional”. Contra a teoria do poder
constituinte, que atribuía exclusividade à assembléia na representação da soberania, Antônio
Carlos alegava que a Nação constituíra o Imperador seu primeiro representante; que havia
sido ele quem convocara a Constituinte e que, por isso, os deputados não poderiam questionar
a precedência da Coroa, o que importaria em usurpação da soberania (AACB, 02/05/1823).
Dois dias depois, discutindo a Fala do Trono, durante a qual Pedro I condicionara sua adesão
ao futuro projeto de Constituição, Antônio Carlos repetiu a lição: “A Nação elegeu um
imperador constitucional, deu-lhe o Poder Executivo e o declarou chefe hereditário; nisto não
podemos nós bulir. O que nos pertence é estabelecer as relações entre os poderes, de forma,
porém, que se não ataque a realeza; se o fizermos, será a nossa obra digna do imperador,
digna do Brasil e da assembléia” (AACB, 06/05/1823). Depois de repetir o mote de Mirabeau
para sustentar que o povo brasileiro não era composto de selvagens que vinham nus para
formar uma sociedade, José Joaquim Carneiro de Campos repetiu que o pacto social
brasileiro já estava “ajustado e firmado” desde o ano anterior, cabendo à assembléia somente
“especificar as condições indispensáveis para fazer aquele pacto profícuo, estável e firme”.
Na primeira dessas visões, o Poder Moderador era apresentado por Antônio Carlos
de Andrada Machado (1773-1845) menos como um poder político de conteúdo definido do
que como um lugar privilegiado e inalcançável ocupado pelo chefe do Estado, cuja posição
imporia aos deputados cercá-lo de cerimonioso respeito. O monarca era “o poder influente e
regulador, a coluna mestra da sociedade”. Ele era “superior a todos os outros poderes, a quem
nenhuma das manifestações de submissão, de deferência e de respeito jamais pode ser
degradante”. Detendo, “acima das nossas fraquezas e paixões” (AACB, 30/04/1823), o
monopólio do interesse público, o monarca, como “ser metafísico”, era o único estadista em
condições de regular o funcionamento dos demais poderes, por ser “distinguir o verdadeiro
interesse da sociedade e de se guiar por ele” (AACB, 22/05/1823). E distinguia desse modo a
monarquia constitucional da monarquia absoluta:
imprensa afrontaria aquele princípio, derivado do Poder Moderador, Pedro I julgava merecer
mais respeito da oposição38.
38
Escrevia então Pedro I: “Não posso levar à paciência que todos queiram e gritem Constituição e não queiram a
inviolabilidade do monarca em toda a sua extensão ilimitada, como deve ser. Eu sou constitucional por princípio,
já o era antes de se proclamar em Portugal; não sou como muitos que querem a Constituição e sabem tão pouco o
que ela é (...). Depois estive na Inglaterra e vi o bem executado sistema, ainda mais constitucional fiquei, vi que
o Rei é um ente moral respeitadíssimo como tal e por isso inviolável. (...) Sendo o Rei o Poder Moderador, era
mister que ninguém lhe pudesse pedir contas, seus ministros é que são responsáveis por tudo, mas não de
bagatelas, como é agora moda no sistema constitucional de 1791” (In: VIANA, 1967:96).
O Momento Monarquiano 129
deveria ser classificado como mais próximo da monarquia; no segundo, a constituição seria
mais inclinada para a república.
“Esses olhos, esses braços, são as autoridades provinciais, que vêem e tocam por
ele e com ele estão em contínuo contato; relações estas que não quadram aos
membros do poder judiciário, que deve ele mesmo ser vigiado, sobreroldado (...).
Não há, senhores, outro meio nenhum de governar um grande país: dividir a
guarda e a vigia da observância das leis por tantas autoridades subalternas, quanto
bastem para o feliz desempenho; premiar os zelosos e exatos; punir os infiéis e
negligentes” (AACB, 1823, V:164).
Entretanto, registre-se que, como outrora na França, os coimbrões não falaram para
um auditório passivo. A doutrina da paridade ou da precedência do Imperador frente à
assembléia foi contestada pela oposição brasiliense com a teoria do poder constituinte,
apoiando-se nos monarquistas republicanos contra os argumentos monarquianos de seus
adversários e praticamente replicando o embate travado na França em 1789. “Alguém
duvidaria que esta Assembléia é soberana, constituinte e legislativa, por ser representante da
Nação, cujas prerrogativas não poderiam ser comunicadas em virtude de sua indivisibilidade
originária ?”, perguntava o deputado José Custódio Dias. “Sou reconhecido ao Imperador
constitucional, a quem respeito e cuja figura farei respeitar, mas nos limites da lei (...). O resto
é servilismo” (AACB, 02/05/1823). Além dessa rejeição geral da teoria metaconstitucional
dos coimbrões, o deputado pernambucano Francisco de Paula de Almeida e Albuquerque
(1800-1869) também refutou o argumento do Poder Moderador que permitiria ao Imperador
vetar os projetos legislativos elaborados pela Constituinte. Embora concordasse
expressamente com a ponderação de Malouet para reconhecer que “o chefe da Nação é o
guarda nato da felicidade geral; é aquele a quem pertence vigiar sobre todos os outros
poderes”, Albuquerque defendia que o direito de veto defendido por aquele monarquiano só
aproveitaria ao Imperador depois de promulgada a Constituição, pois era a assembléia que, na
posse da soberania nacional, deveria fixar como e quando o monarca deveria exercer aquela
prerrogativa (AACB, 26/06/1823). No entanto, curiosamente, nenhum deputado atacou o
O Momento Monarquiano 133
Poder Moderador como instrumento do despotismo. Isso não significa que os brasilienses não
adivinhassem o cavalo de Tróia; significa que eles encontraram dificuldades para
fundamentar, de forma adequada, a alegação de que a teoria de Constant estava sendo
mobilizada para fins contrários àquilo que eles percebiam como verdadeiramente
constitucional. Foi o deputado Henriques de Resende, todavia, quem com mais veemência
combateu os argumentos monarquianos mobilizados pelos coimbrões:
Severiano Maciel da Costa, Manuel Jacinto Nogueira da Gama, Luís José Carvalho e Melo
(1764-1826) e Antônio Luís Pereira da Cunha. Pelas páginas do jornal O Tamoio, os
Andradas acusavam o governo de ter tendências pró-lusitanas ou, pelo menos, de
indesculpável neutralidade em matéria de nacionalismo, conveniente para continuarem a fruir
das benesses do Estado. No fundo, porém, tratava-se de uma briga de família – tanto que, se O
Tamoio apostava no discurso xenófobo das folhas do vintismo radical urbano, dirigidas por
Cipriano Barata e João Soares Lisboa, estava longe, porém, de partilhar de seu projeto
político, que era o mesmo de Caravelas. Ou seja, era um monarquianismo nacionalista39.
39
Por um lado, os Andradas criticavam o gabinete Caravelas como integrante de um “partido neutro ou do
ventre”, “absolutamente indiferente ao futuro político do Brasil”; que só tinha em mira “a conservação de suas
fortunas, ordenados, pensões, ou o acréscimo de novas”. Por outro, criticavam Cipriano Barata, para quem a
deputação constituinte se achava coarctada: “Toda a gente desta capital sabe a excelente harmonia em que
marcham os supremos poderes da Nação, o Imperador e a Assembléia, toda ela conhece os sentimentos de um e
a liberdade com que a outra discorre e delibera (...). Não nos admira o desaforado descaramento com que o
Barata mente e anarquiza os povos”. O jornal de Barata, o Sentinela de Pernambuco, só cuidaria de “comunicar
aos povos incautos a sua labareda revolucionária” (In: LIMA SOBRINHO, 1973:58/59).
40
Na ocasião, Antônio Carlos convidou o povo para descer das galerias e ocupar o plenário da assembléia a fim
de, lado a lado com os demais deputados, ouvissem seu discurso jacobino contra os inimigos do Brasil: “Não
somos nada, se estúpidos vemos, sem os remediar, os ultrajes que se fazem, ao nobre povo do Brasil,
estrangeiros que adotamos nacionais e que assalariamos para nos cobrirem de baldões (...). Os cabelos se me
eriçam, o sangue ferve-me em borbotões à vista do infando atentado; e quase maquinalmente grito: vingança!
(...) Poderei ser assassinado: não é novo que os defensores do povo sejam vítimas do seu patriotismo; mas meu
sangue gritará vingança, e eu passarei à posteridade como o vingador da dignidade do Brasil”. Para seu irmão
Martim Francisco, ex-ministro da Fazenda, havia se tornado crime “amar o Brasil, ser nele nascido e pugnar pela
sua independência e pelas suas leis”. O orador foi interrompido por deputados e populares que, do plenário e das
galerias, aplaudiram o discurso com entusiasmo. O pedido do Presidente da Assembléia para que se fizesse o
silêncio exigido pelo regimento interno caiu no vazio. Nesse meio tempo, foi informado por vários deputados de
que receavam por suas vidas, pois havia populares armados de pistolas e punhais entre os populares do plenário.
“Crescendo o sussurro e ajuntando-se às vozes do povo as dos senhores deputados, que chamavam à ordem”, o
presidente decidiu encerrar antecipadamente a sessão (AACB, 10/11/1823). Indagando sobre a sessão da
Constituinte naquele dia a constituintes sobreviventes, como Lourenço Viana e o Visconde de Maranguape, José
de Alencar receberia do primeiro o testemunho de que o discurso dos Andradas se dirigia efetivamente contra
Carneiro de Campos, que estava presente: “A sessão se tornou sobremaneira tempestuosa e revolucionária a
ponto de muitos deputados tremerem da sua existência, por se dizer que muita gente do povo, que invadiu o
O Momento Monarquiano 135
próprio recinto da assembléia, estava armada de punhais; e tão verossímeis eram essas vozes, que ainda hoje
existe o oficial da Segurança da Justiça (José Tibúrcio), que me disse, que temendo também pela vida do
deputado seu tio, o Marquês de Caravelas, se foi postar por detrás da cadeira dele com uma pistola para o
defender contra qualquer tentativa de agressão”. Além disso, como que antecipando o que estava por vir, “saíam
de hora em hora avisos ao Imperador pedindo-lhe que salvasse a ordem pública ameaçada pela desenfreada
demagogia”. Já Maranguape disse que o deputado Sousa França pedira a Maciel da Costa que encerrasse a
sessão depois da oração de Antônio Carlos, por ter visto, por detrás de sua cadeira, “um homem armado de uma
pistola, cujo cabo estava todo ele de fora”. Diante disso, o presidente e os secretários da assembléia concluíram
que, antes que se verificasse “algum fato deplorável”, deveriam levantar a sessão, (ALENCAR, 1973b: 157 e
162).
O Momento Monarquiano 136
presença dos demais conselheiros de Estado, o novo projeto de Constituição foi subscrito,
entre outros, por Carvalho e Melo, Maciel da Costa, Vilela Barbosa, Pereira da Cunha e
Nogueira da Gama – a cúpula da burocracia imperial. Aprovado num esboço de referendo por
quase todas as câmaras municipais do país, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro requereu
que o governo dispensasse uma nova Constituinte e mandasse observar o projeto Caravelas
como Constituição do Império. Foi o que Dom Pedro fez, a 25 de março de 1824. Embora
pela força – mas uma força absolutamente legítima para eles -, triunfava no Brasil a pretensão
monarquiana de fundar a autoridade principesca diretamente sobre a soberania nacional que a
aclamara – exatamente ao inverso do que se dera na França de 1789.
Tal como Napoleão havia governado pela “graça de Deus e das Constituições” (In:
RIALS, 2001:44), a dinastia de Bragança passava oficialmente a imperar no Brasil pela
“graça de Deus e unânime aclamação dos povos”. Na verdade, o Império brasileiro fundava
sua legitimidade a meio caminho do cesarismo bonapartista e da monarquia tradicional de
direito divino. Comparadas às suas contemporâneas, a Constituição monárquica de 1824 era a
mais liberal de seu tempo (CARVALHO, 1993:25): Espanha e Portugal já haviam retornado
ao absolutismo, ao passo que a França era regida por uma Carta mais concisa, mas também
O Momento Monarquiano 137
mais vaga, cuja fonte de legitimidade se fundava nos desígnios da divina Providência
(ROSANVALLON, 1994). Em contraste, a Constituição brasileira estava na sua maior parte
em consonância com suas malogradas predecessoras ibéricas: consagrava a soberania
nacional (art. 12), a divisão de poderes (art. 9), a responsabilidade ministerial (art. 102, 132 e
133), o sistema representativo (art. 3º) a censo pecuniário baixo e amplo (art. 90 a 95) e uma
extensa declaração de direitos fundamentais (art. 179). Além disso, como na tradição
francesa, ela adotava o legicentrismo em matéria judiciária: o Supremo Tribunal de Justiça
seria uma corte de cassação, cabendo ao Legislativo interpretar as leis de modo autêntico e
exercer o controle normativo da constitucionalidade (art. 15 VIII e IX). O poder de decretar o
estado de exceção, que se limitava à suspensão de algumas garantias constitucionais “nos
casos de rebelião ou invasão, pedindo a segurança do Estado”, era atribuído à Assembléia
Geral e, na falta dela, ao governo, se o perigo fosse iminente (art. 179 XXXV). A influência
particular de Benjamin Constant ficava patente nos artigos doutrinários referentes à divisão de
poderes (art. 9), ao Poder Moderador (art. 98) e ao procedimento de revisão constitucional;
neste caso, a Constituição distinguia entre suas partes formais e materiais, exigindo uma
câmara revisora apenas quando se tratasse de reformar artigos atinentes à organização do
Estado e aos direitos fundamentais; no mais, a reforma se daria por lei ordinária (art. 178).
À luz dessas questões, torna-se possível opor pelo menos três objeções ao argumento
de que, por não haver consagrado o parlamentarismo inglês, a Constituição de 1824 teria
traído a doutrina de Constant para operar uma verdadeira “constitucionalização do
absolutismo” (BONAVIDES e ANDRADA, 1991:96). Em primeiro lugar, todas as
Constituições monárquicas do século XIX, inclusive as ibéricas, designavam o monarca como
titular do Executivo. Durante os Cem Dias, durante os quais redigiu para Napoleão uma
Constituição liberal, o próprio Constant se esquivou de exprimir as relações entre o Executivo
e o Legislativo em termos de separação de poderes. Certo de que, deixando o texto mais
flexível e mais aberto, com o tempo se formaria um consenso em torno do espírito liberal dos
seus Princípios de Política, Constant preferiu propositadamente expressões imprecisas como
Imperador, governo, ministros e câmaras (In: RIALS, 2001:45). Além disso, já vimos que o
Poder Moderador não precisava ser formalmente consagrado no texto como um quarto poder:
a adaptação do governo às mudanças da opinião pública imporia naturalmente interpretações
constitucionais mais conformes ao espírito liberal do que à letra da lei, sem necessidade de
desencadear constantes processos de revisão constitucional, o que era sempre disruptivo.
Assim, durante os quinze anos de vida que lhe restaram, o autor de Adolphe sempre
interpretou o papel constitucional do Rei da França de acordo com sua teoria do poder neutro,
deixando a literalidade dos enunciados normativos da Carta de 1814, que atribuíam vastos
poderes ao príncipe, em segundo plano. Isto posto, o fato de se atribuir ao monarca o
exercício do Poder Executivo (como se fizera na França, na Espanha, em Portugal, na
Holanda e na Bélgica) não consistia em óbice para a prática de sua teoria, desde que os
negócios ordinários da administração fossem geridos por um ministério responsável. Nesse
ponto, a Constituição brasileira foi muito mais cuidadosa do que a daqueles países, ao não
confundir o Imperador com o próprio Poder Executivo, fazendo-o apenas o seu chefe e
acrescentando que ele apenas o exercia por meio de seus ministros (art. 102), sem cuja
referenda seus atos não teriam executoriedade (art. 132).
dependente do príncipe. A responsabilidade dos ministros diante das câmaras era puramente
jurídica ou criminal na forma de impeachment, e não política, como é característica dos
governos parlamentares, tendo o próprio Constant dificuldade em dissociar uma da outra
(ROSANVALLON, 1994:87). O que os liberais pleiteavam contra a resistência conservadora
era um intercâmbio de vistas entre governo e parlamento, o que estava longe do governo
parlamentar ou do parlamentarismo (LAQUIÈZE, 2001). Esse quadro só foi alterado na
década de 1830, quando a teoria da separação de poderes foi atenuada e se impôs a teoria do
governo parlamentar, que partilhava a responsabilidade do ministério entre chefe de Estado e
Parlamento. Criada por seus adversários com cunho pejorativo, a palavra parlamentarismo,
por sua vez, somente se difundiria na década de 1850, para designar a pretensão parlamentar
de organizar os gabinetes à revelia da Coroa. Nesse caso, abandonavam-se definitivamente as
teorias da separação de poderes e do governo misto pelas de parlamentarismo e de
democracia. Daí o equívoco dessa interpretação historiográfica sobre a transposição da teoria
do Poder Moderador para a Constituição: sustentar que Constant tivesse em mente o
parlamentarismo, é exigir deles dons adivinhatórios, que ele não poderia ter.
esfera do Poder Executivo, o que a levava a perder seu caráter discricionário, por sujeitá-la ao
controle dos ministros. Todas essas alterações foram efetuadas no sentido de tornar ainda
mais liberais as atribuições do Poder Moderador e de proporcionar uma maior possibilidade
de controle qualitativo do seu exercício, impondo a obrigatoriedade da oitiva prévia do
Conselho de Estado (art. 142), o que não fora previsto por Constant, que deixava o chefe de
Estado completamente livre.
do Poder Moderador. Ora, Constant distinguia entre autoridade inviolável (o Rei) e autoridade
responsável (ministério), entre outros motivos, para afastar o príncipe do exercício direto do
governo, tornando-o, não o chefe partidário da administração pública, mas o árbitro
reconhecido do governo constitucional. Daí porque ele qualificava a distinção entre os
Poderes Moderador e Executivo como “a chave de toda a organização política”, ou seja, a
abóbada do arcabouço institucional (CONSTANT, 1997:324). É sintomático que, tendo
guardado fidelidade à transposição jurídica das atribuições do Poder Moderador, os
conselheiros de Estado o tenham feito conceituar na Constituição, entretanto, de modo
doutrinariamente diverso daquele assinalado nos Princípios de Política. Pela redação do art.
98, “a chave de toda a organização política” deixava de ser a distinção entre os aqueles dois
poderes para se tornar o próprio Moderador (“O Poder Moderador é a chave de toda a
organização política...”).
governo forte e um regime da mais ampla liberdade – muito pelo contrário, a liberdade dos
cidadãos era diretamente proporcional ao da autoridade encarregada de garanti-la (LYNCH,
2007).
41
Já que as listas tríplices contiveram mais de um mesmo candidato por província (TAUNAY, 1998:24), a
primeira leva senatorial refletiu a orientação unitarista da Coroa e do Conselho de Estado. Os ministros poderiam
participar de algumas reuniões do Conselho, mas não como conselheiros; quando, ao contrário, os conselheiros
poderiam vir a ser nomeados ministros, aumentando a autonomia daquele órgão que, nomeado vitaliciamente
pelo Imperador, estava fora do controle do Parlamento. Nem mesmo o desenvolvimento das praxes
parlamentares, como ocorrera na Inglaterra, permitiria fundir o Conselho de Estado no gabinete, então
controlado pelo Poder Legislativo (LIRA, 1979:78).
O Momento Monarquiano 145
canalha” (In: SOUSA, 1972, II, 307). Em maio daquele ano, depois de sustentar que os bons
governos eram os que se ajustavam às características de cada povo, Queluz pôs em dúvida a
viabilidade do sistema representativo num país de grandes dimensões, como o Brasil:
“Lembrou já alguém aconselhar ao Imperador da Rússia que fizesse o seu governo
monárquico constitucional representativo?” (ASI, 09/05/1829). Entretanto, em outubro,
quando Pedro I voltou a reunir o Conselho de Estado para deliberar sobre uma rebelião de
quatro mil pessoas que, no Norte do país, tinha por intuito restaurar no país o absolutismo
monárquico, todos os conselheiros, sem exceção, acompanharam então o voto de relator.
Todos concordaram então que era “indispensável sustentar a todo custo o sistema
constitucional, evitando os excessos da democracia ou absolutismo, que eram igualmente
nocivos” (ACE, 28/10/1829). Nem por isso deixavam, todavia, de defender um governo forte
que contivesse as facções. Daí sua postura crítica frente à assimilação das idéias estrangeiras
avançadas, que deveriam ser filtradas para rejeitar os modismos inconsistentes e as
proposições incompatíveis com o “estado de civilização” do país.
9/6/1829). Embora timbrasse em declarar sua adesão em tese aos princípios políticos
enunciados por seus adversários mais radicais, o Marquês de Caravelas sempre salientava
que, ao menos por enquanto, eles não podiam ter aplicação em toda a sua extensão na
sociedade brasileira; eles precisavam ser adaptados para surtir efeitos positivos.
“Eu sou da opinião que as doutrinas que o ilustre senador apresentou são boas;
estou por elas e as adotaria, se visse que a Nação brasileira já tinha todas as luzes
precisas. Nesse caso, eu diria que sim, que fosse como diz o ilustre senador. Mas,
como estou persuadido disto (ou estarei enganado); por isso, digo que as leis
devem ser outras; devem ser acomodadas às circunstâncias. Virá tempo em que
possa dar-se essa amplidão; talvez que não seja nos nossos dias, mas será para os
que vierem depois. Nós não queremos pôr peias, mas também não queremos uma
total liberdade” (ASI, 9/5/1829).
Havia mais razões de ordem sociológica para justificar essa defesa de um liberalismo
moderado e realista. Na Europa, ponderava Carneiro de Campos, fora a elevação do grau de
civilização proporcionado pelo Iluminismo que desencadeara a transformação da sociedade,
seu desejo de participar da atividade política e o advento do sistema constitucional
representativo, cuja marca era a emancipação dos interesses individuais. Ocorre que, por
conta da economia escravista, da colonização e das divisões sociais produzidas no convívio
das diferentes etnias, os discursos de modernidade agiam no Brasil de modo muito seletivo,
levando à coexistência de duas temporalidades distintas. A primeira era a da elite agrária,
abastada e escravocrata, que exigia para si um governo constitucional para ficar pari passo
com a modernidade política européia. A segunda era a da maioria esmagadora da população,
assentada no campo à sombra das casas grandes, desocupada nas poucas cidades, ignorante e
depauperada, atrasada até para os padrões de Antigo Regime. Numa sociedade carente, pois,
de instrução e de opinião pública - ou seja, luzes -, não era possível forjar uma ordem política
idêntica da Inglaterra ou da França, sem arriscar que liberdade se tornasse licença, levando os
interesses individuais ao centrifuguismo, à dispersão e à anarquia. Por isso, os legisladores
brasileiros deveriam “olhar para os homens como eles são, sujeitos às paixões, e tendo sempre
em vista o seu interesse particular” (ASI, 18/06/1832), devendo as leis de um país “ser
acomodadas às circunstâncias em que ele se acha, devem ter estreita relação com o seu tempo
e os costumes dos seus habitantes” (ASI, 24/05/1826).
Esse liberalismo moderado e realista deveria ser ministrado por uma representação
nacional esclarecida, que exercesse uma espécie de tutela ou liberdade vigiada. Na falta de
O Momento Monarquiano 147
intelectuais, cabia à representação política exercer o papel que eles haviam exercido no
Iluminismo europeu; era a representação, na forma de uma elite qualificada, que deveria
instruir o povo sobre seus direitos e deveres e formar, pela sua ação pedagógica, uma opinião
pública esclarecida. Tratava-se de pensar a representação como um movimento em que o
representado elegia o representante e este, por sua vez, tutelava o representado, devolvendo-
lhe em razão ou qualidade o que este lhe fornecera em número ou quantidade. Daí a
relevância que Carneiro de Campos conferia a todas as oportunidades que tinham os
legisladores de se comunicarem com o povo. Contrário àqueles que julgavam dispensáveis as
exposições de motivos das leis, ele as defendia como meios valiosos de mostrar ao povo a
utilidade das providências legislativas (AACB, 20/09/1823). Por outro lado, cientes de que a
ordem constitucional tinha uma natureza experimental, diante da realidade de perigos e
vicissitudes, Carneiro de Campos e seus companheiros estavam perfeitamente conscientes de
que uma ordem jurídica perfeita era impossível e que a característica do mundo era a
precariedade - ao contrário dos liberais, que se posicionavam de forma eloqüente e normativa
(ASI, 1832, I: 326). Enquanto ele entendia que, “em casos extraordinários, não devemos olhar
para formalidades” (ASI, 1832, II: 320), o Visconde de Cairu e o Marquês de Inhambupe
lançariam mão dos termos interregno e ditadura ao se referirem aos vácuos de poder
decorrentes das mudanças de governantes – ao contrário da esquerda liberal, que falaria em
revolução42.
Mudanças impostas pela força eram infelizmente da ordem da política e a elas era
preciso se submeter; entretanto, enquanto houvesse Constituição, esta deveria ser observada
fielmente, como expressão da legalidade e da autoridade legítima. Daí outro traço dos
coimbrões - a observância literal dos comandos constitucionais; procedimento exegético
tipicamente conservador. Do ponto de vista da interpretação institucional, os realistas
interpretavam a Carta conforme o discurso monarquiano, ou seja, que o Estado brasileiro se
revestia das características de um governo misto, resultante da exata composição e equilíbrio
dos elementos monárquico, aristocrático e democrático da sociedade, expressas na
distribuição do poder entre Coroa, Senado vitalício e da Câmara dos Deputados. Como o êxito
do governo e representativo dependia de ancorá-lo em bases mais amplas, para além da elite
42
Eis como Inhambupe descreveu sua postura diante do movimento de 7 de abril no Senado: “Eu me dispunha,
na qualidade de Conselheiro de Estado mais antigo, e a quem competia presidir a Regência Provisória, pela
vocação da Lei Fundamental, entender-me com o General das Armas, para a organização do Governo - por ser
naquele momento a autoridade que eu considerava como no exercício de uma necessária ditadura, por estar o
Estado em perfeito interregno” (ASI, 1831, I: 57). Ao se opor em 1832 ao projeto de se converter a Regência
trina em uma, Cairu também se referiria ao “perigo do interregno, durante a eleição do Regente” (ASI, 1832, II:
63).
O Momento Monarquiano 148
Daí que a insistência de Caravelas para que o príncipe fosse cercado da mais completa
consideração e aparato, ou seja, de toda a simbologia do poder e da hierarquia para continuar
a infundir o respeito geral. Esse poder simbólico da monarquia era necessário, porque, devido
à sua falta de ilustração, o povo era geralmente incapaz de compreender racionalmente os
motivos pelos quais deveria respeitar o governo constitucional e colaborar para a ordem
pública. A natureza braçal e a longa duração dos trabalhos exercidos pela maioria da
população deixavam-na sem tempo nem discernimento para se dedicar às questões públicas, e
43
O Poder Moderador era delegado privativamente ao Imperador (art. 98) como chefe de Estado, que deveria
exercê-lo ouvindo previamente o Conselho de Estado (art. 142). Como chefe de Governo, o Imperador era a
cabeça do Executivo, que exercia por meio de seus ministros e da referenda deles (art. 102 e 132). Havia um
espaço intermediário entre as duas esferas – a das relações internacionais e, no âmbito da política interna, “os
negócios graves e medidas gerais da pública administração”. Embora fossem tais atribuições fossem conferidas
ao Imperador como chefe de Governo, e exercidas, repito, por meio do conselho de ministros (arts. 102 VI, VII,
VIII, IX, XIV, XV), a Constituição impunha que, nesses casos, fosse também ouvido o Conselho de Estado (art.
142). Ao fazer do Imperador chefe deste poder, e não simplesmente seu titular (como havia sido o caso do Poder
Moderador), a intenção de Caravelas havia sido a de distinguir entre as duas esferas de ação. Como chefe de
Estado, o Imperador decidiria direta e pessoalmente, auxiliado pelo Conselho de Estado, nas atribuições do
Poder Moderador e naquelas do Poder Executivo, que versassem sobre política internacional - tradicional
competência exclusiva dos monarcas -; e, como chefe de Governo, decidiria indiretamente, por meio e com a
sanção do Conselho de Ministros, nas demais competências do Poder Executivo. Na prática, essa sutileza não foi
observada pelo voluntarismo do Imperador: não só todos os gabinetes do reinado de Pedro I contaram com
políticos realistas, como nenhum deles - salvo a curta experiência do ministério do Marquês de Barbacena
(1829/1830), do qual Carneiro de Campos participou - pediu o apoio da Câmara dos Deputados como condição
para governar.
O Momento Monarquiano 149
a conseqüência era que ela acabava por se deixar conduzir politicamente, não por idéias, mas
por sensações. O poder simbólico da monarquia era, assim, o elemento primário de coesão
social num meio de precária opinião pública e de potencial manipulação do povo pelas
facções. Explorando argumentos semelhantes aos de Benjamin Constant (CONSTANT,
1997), Carneiro de Campos explicava que o aparato da Coroa deveria ser inversamente
proporcional ao enfraquecimento de sua força ocorrido na passagem do Antigo Regime para o
governo constitucional (AACB, 28/07/1823). O trono deveria ser apresentado de modo a
cativar a imaginação da população, infundindo-lhe “o mais profundo respeito e alta
consideração, para que apertando assim os misteriosos laços da subordinação, promova a
maior docilidade na obediência legal” (AACB, 28/07/1823). Tanto aqui como no caso da
Igreja, os argumentos de Caravelas eram essencialmente pragmáticos: conseguir estabilizar a
ordem monárquica constitucional: “Tenhamos sempre presentes estes princípios, que são
axiomas de Direito Público: Não há liberdade sem um poder que a sustente – Não há poder
sem respeito” (AACB, 28/07/1823). A Igreja e a Coroa eram, em síntese, os elementos do
Antigo Regime que deveriam ser aproveitados no Brasil para permitir a preservação da
unidade política dentro da pluralidade ou da multiplicidade inaugurada pela ordem liberal,
garantindo a adesão do povo à nova ordem pelo apelo a uma mística a que ela estava
habituada e era capaz de compreender.
tão abominável comércio”, sendo “feliz com um sistema regular de colonização” (ASI, 1830,
I: 50). No entanto, nas duas vezes em que convocou extraordinariamente a Assembléia Geral,
Pedro I lamentava a demora da Câmara dos Deputados na ultimação dessas tarefas: “Muito
lamento ter a necessidade de recomendá-lo pela quarta vez a esta assembléia. Claro é, a todas
as luzes, o estado miserável, a que se acha reduzido o tesouro público, e muito sinto
prognosticar que, se nesta sessão extraordinária, e no decurso da ordinária, a assembléia, a
despeito das minhas tão reiteradas recomendações, não arranja um negócio de tanta monta,
desastroso deve ser o futuro, que nos aguarda” (In: JAVARI, 1993:114). Na qualidade de
Defensor Perpétuo e de sua condição de primeiro representante da Nação, o próprio
Imperador não deixaria dúvidas quanto à sua qualidade de intérprete máximo da soberania
nacional:
Toda a força exibida pela Coroa em seus discursos estava, porém, muito aquém de
seu poder real. Por diversos motivos – entre os quais a escandalosa vida privada do Imperador
e a atenção que ele dava aos conselhos de áulicos do Paço -, sua margem de manobra
parlamentar era estreita. Entre os eleitos para a primeira legislatura estavam dezenove ex-
constituintes, número que subiu a um quarto da casa, sete anos depois da dissolução (In:
JAVARI, 1962:279 e seguintes). Metade do partido oposicionista, intitulado partido
brasileiro, patriota ou liberal, se compunha de antigos brasilienses proprietários de terras,
como os padres Diogo Antônio Feijó, José Bento Ferreira de Melo (1785-1844) e Martiniano
de Alencar. Se, conforme a lógica monarquiana, os coimbrões ou realistas entendiam que os
golpes de força contra a Constituinte e a Confederação do Equador haviam sido legítimos,
esta não era a opinião dos antigos brasilienses. Embora nem se comparasse aos massacres
promovidos por “libertadores da América” como Bolívar e O’Higgins, o combate à
insurreição pernambucana, com o fuzilamento do Frei Caneca, foi considerado
O Momento Monarquiano 151
A outra parte do partido liberal era liderada por jovens magistrados, como Pedro de
Araújo Lima, Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1800), José da Costa Carvalho (1796-
1860) e Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856). Eles pertenciam a uma geração que, na
média, tinha vinte anos menos que a monarquiana coimbrã, formada sob o Antigo Regime, e
pelo menos dez anos menos que a do vintismo brasiliense. Apesar da afinidade ideológica
com os realistas, eles os hostilizavam por identificarem-nos com o domínio português
(BARMAN, 1984:66). Suas experiências em Coimbra tinham sido muito diferentes das de
Caravelas ou Baependi: ao invés de protegidos e socializados na burocracia imperial por um
ministro carismático como o Conde de Linhares, esses moços haviam experimentado o
desmantelamento do Estado português no bojo da ocupação napoleônica; a presença militar
britânica; o advento tumultuário do vintismo; a distinção entre reinóis e brasileiros; a
independência da América portuguesa e, por fim, a reação absolutista da Abrilada – tudo isso
entremeado por motins e paralisações da universidade de Coimbra. Por outro lado, ao
contrário dos brasilienses, os ilustrados deputados ligados à magistratura não simpatizavam
com o federalismo no mesmo grau que seus colegas do interior, nem se exprimiam na mesma
O Momento Monarquiano 152
civilizado entre partidos que defendessem princípios contrários, mas equilibrados; que se
revezassem no poder, alternando sucessivamente a defesa da autoridade e da liberdade, para
que o progresso se desse dentro da ordem. Em terceiro e último lugar, os liberais franceses
defendiam que a Câmara dos Deputados deveria possuir a mesma influência junto ao governo
que, acreditavam, possuía a Câmara dos Comuns, do outro lado da Mancha, junto ao governo
britânico. Através de uma interpretação evolucionária do texto constitucional, essa teoria
flexibilizava o princípio da separação de poderes para reivindicar para a câmara baixa o
direito de despachar os gabinetes que julgasse indignos de sua confiança. Do contrário, a
opinião pública por ela representada não possuiria meios de influir os negócios públicos,
comprometendo o governo representativo. A Coroa deveria assim, antes de escolher seus
ministros, entrar em inteligência com a corrente majoritária da Câmara dos Deputados, que
sem dúvida era quem melhor poderia exprimir os anseios da sociedade. Como queria o Farol
Paulistano, só deixando que “a força da opinião pública” elevasse sua voz “ao trono
constitucional”, teriam fim os “ministérios péssimos” que desde 1822 governavam o Brasil
(CONTIER, 1979:44).
explicar os negócios de suas pastas e debatê-los com os deputados, a fim de que, dirimidas
dúvidas e objeções, estes pudessem se posicionar sobre os projetos do governo. A nova
dinâmica permitiria à Câmara pressionar e criticar o Executivo na pessoa do ministério,
respeitando-se o dogma da inviolabilidade do monarca.
brasileiros (ASI, 1830, I: 297,302); por isso, ele propôs em contrapartida que as terras
públicas só pudessem ser vendidas e que o tráfico durasse ainda treze anos para além do
combinado com a Inglaterra (BETHELL, 1970: 57). Das páginas de seu jornal, o paulista
Costa Carvalho também sustentava que o governo não deveria se meter com o que os
lavradores faziam em suas terras, devendo ocupar-se apenas da construção de estradas que
permitissem o escoamento dos produtos agrícolas até os portos e garantir para os plantadores
“um bom preço no mercado” (In: CONTIER, 1979:128).
“Nunca o Partido Liberal, político, ainda nos seus áureos dias, proclamou, como
tese de sua doutrina e aspiração prática – a emancipação – nas circunstâncias do
país. Ainda nesses tempos primitivos (...) dos Evaristos, Paula Sousa, Vergueiros,
Feijós, Manuel Alves Branco e Vasconcelos, nunca se falou em emancipação,
porque, se eles eram sistemáticos e inexoráveis opositores do governo, eram
também fiéis representantes do país, mediam as circunstâncias reais do país” (In:
SILVA, 1988:396).
era uma Suprema Corte à americana, como passaria a ser na República, mas uma típica Corte
de Cassação francesa. Durante a discussão, no Senado, do projeto de lei que criou o Supremo
Tribunal, Francisco Carneiro de Campos também deixara clara a sua posição: “As bases da lei
são fundadas mesmo nos princípios do Tribunal de Cassação, que é conceder revistas, quando
se ver que foi ferida a lei na sua letra, e quando as fórmulas em toda a qualidade de processos
forem dispensadas” (ASI, 1828, II: 56). Embora favorável a um Judiciário independente,
ponderava o Marquês de Caravelas que, ao contrário do que faziam os estadunidenses, ele não
deveria ser colocado acima dos demais poderes: “Eu quero viver seguro na lei, e não na
esperança de que o juiz há de proceder desta ou daquela forma” (ASI, 1828, I: 55). Do mesmo
modo, a oposição não esperava que, também dominado pelos realistas, o Senado pudesse
exercer o papel arbitral que Hipólito da Costa imaginara no Correio Brasiliense: “o de corpo
intermediário entre o monarca e os representantes imediatos do povo”, destinado a manter “o
justo equilíbrio entre as pretensões de uns e outros, evitando a aceleração na fatura das leis, e
o demasiado desejo de inovação, que sempre existe mais ou menos nas assembléias
populares; e contendo os abusos do Executivo, pelo respeito, que lhe deve inspirar uma
corporação com atribuições mais duradouras e permanentes do que a mera cooperação
legislativa” (COSTA, 1977:598).
necessário tocar, para pô-la em movimento”. Antes que se concluísse a construção do novo
Estado, fatalmente as velhas instituições continuariam a se chocar com as novas; nesse meio
tempo, “é melhor que perdoemos todas as nossas faltas, que fechemos os olhos aos erros”
(ACD, 1829, IV: 127). Polemizando violentamente com Vasconcelos, o Marquês de
Baependi apresentou projeto ao Senado que subtraía à Câmara dos Deputados o direito
unilateral de instaurar o procedimento acusatório contra os ministros (ASI, 1830, I: 434-437).
Todavia, esse episódio foi apenas o primeiro de uma longa série. No encerramento da
primeira legislatura, em 1829, o Imperador simplesmente não dirigiu a palavra à deputação.
Sem nada que as entremeasse, a Fala do Trono se limitou às duas únicas sentenças de praxe -
a do vocativo, que precedia a locução imperial ("Augustos e digníssimos representantes da
nação brasileira”) e aquela que decretava o encerramento da sessão (“Está fechada a sessão”).
No ano seguinte, a Câmara pediu à Coroa a “destituição de um ministério, que havia perdido a
confiança pública por contínuas violações da constituição e da lei, e pelo terror incutido de
volta do absolutismo, senão real, ao menos aparentemente justificado por muitos atos” (In:
JAVARI, 1993:130). A pressão da Câmara não se restringiu à Coroa, avançando também
sobre o Senado. Nesse caso, diante do desacordo manifesto em torno dos projetos reclamados
pelo governo, os deputados liberais reclamaram a fusão das câmaras prevista no art. 61 da
Constituição como meio de resolver o impasse. O problema é que, mais uma vez, a
interpretação dos artigos constitucionais dava azo à disputa: os deputados defendiam que a
reunião das duas câmaras implicava não apenas deliberação, mas também votação conjunta,
como se a Assembléia nessas ocasiões funcionasse como câmara única. Haja vista que o
número de deputados era o dobro daquele de senadores, esta interpretação os favorecia
sobremaneira. Por isso mesmo, os senadores – Caravelas à frente – recusavam essa
interpretação, alegando que a reunião implicava apenas a deliberação conjunta. A
interpretação dos deputados era teratológica na medida em que, caso triunfasse, impediria o
Senado de resistir à vontade da maioria da Câmara, derruindo o caráter misto que
caracterizava a monarquia constitucional brasileira (ASI, 14/08/1826).
2002: 105). No fim das contas, os liberais acabaram abandonando sua linguagem
habitualmente moderada para adotar a linguagem exacerbada do vintismo e responsabilizar
diretamente a Coroa pelos desmandos que verificavam no país. Para aumentar seu poder de
pressão, elevando suas apostas, a esquerda liberal se aliou aos radicais urbanos, que
exploravam a xenofobia contra os portugueses que dominavam o comércio carioca. Identificar
os realistas e o próprio Imperador ao pró-lusitanismo, como partido português, era uma
atitude que rendia frutos numa época em que os conflitos nativistas e nacionalistas
decorrentes da Independência estavam ainda à flor da pele. Por outro lado, depois da
Revolução de 1830, em Paris, os liberais redobravam os esforços para identificar a política
dos realistas àquela dos ultras, insistindo nas semelhanças entre Carlos X e Pedro I, numa
comparação tão tentadora quanto enganosa44. Era o que fazia o liberal moderado Evaristo da
Veiga: “O amor próprio nacional tem sido, no Brasil, pisado aos pés pelos homens da
privança, pelo partido que goza da especial confiança de quem governa (...). As suas ações, os
seus movimentos, as suas menores palavras, tudo é antinacional, tudo revela o desprezo e a
aversão por esta terra que se rebelou” (In: SOUSA, 1988b: 96). Acenando com o espantalho
da república federal, agitado pelos exaltados, a oposição liberal pensava que esta era a cartada
decisiva que lhe permitiria livrar-se dos coimbrões sem acabar com a monarquia, obrigando
Pedro I a aceitar a teoria do governo parlamentar e reformar a Constituição, se possível, para
descentralizar o poder e extinguir o Poder Moderador.
Mas o Imperador não apenas não cedia, como parecia fincar cada vez mais os pés na
retórica monarquiana. Em Minas, ele lançava uma proclamação ao país em que, também
radicalizando, apresentava publicamente a oposição liberal como um “partido
desorganizador”, cujos adeptos se valiam do falso paralelo entre a situação brasileira e a
francesa para, contra “o bem da Pátria”, concitar “os povos à federação”, com o fito exclusivo
44
Embora tentadora, a comparação entre Dom Pedro I e Carlos X feita pela historiografia liberal não sobrevive
a qualquer análise. É verdade que tanto um quanto o outro resistiram ao ímpeto parlamentarizante da Câmara
Baixa e que ambos caíram diante do movimento de uma coalizão do centro com a esquerda que mobilizou a
população urbana. Mas as semelhanças não vão além. O Bourbon golpeou a representação nacional, forçando a
interpretação da prerrogativa, não como Poder Moderador, mas como estado de exceção, dissolvendo a Câmara
por duas vezes seguidas, suspendendo depois a liberdade de imprensa e impondo uma reforma eleitoral
reacionária. Fugindo à sublevação parisiense, no estrangeiro Carlos X tornou-se o chefe do legitimismo, forma
de nostalgia política do Antigo Regime. Já Pedro I caiu sem atacar a deputação, sem nunca dissolver a Câmara
durante o período constitucional e, pelo contrário, defendendo seus direitos nela consagrados. Ao invés de fugir,
ele abdicou voluntariamente do trono e partiu para Portugal - não para defender o legitimismo, e sim a causa
liberal contra o absolutismo do irmão, Dom Miguel. Evidência do constitucionalismo de Dom Pedro I é a carta
que escreveu a Rocha Pinto, quando soube da queda de Carlos X. Ao invés de demonstrar temor, como os
príncipes absolutos da Europa, declarou ele então que previra tal desfecho. Ele era o resultado necessário “de um
despotismo como o praticado contra o pacto social aceito sob juramento por Carlos X e pelo orgulhoso e
libertário povo francês. Como se vê”, acrescentava, “faço bem em não deixar de ser constitucional” (In:
MACAULAY, 1993:271).
O Momento Monarquiano 162
3.2. As reformas propostas pelos liberais durante a menoridade de Pedro II. O debate
político regencial e a resistência dos realistas à extinção do Poder Moderador.
Adaptação do conceito monarquiano de quarto poder à teoria do governo parlamentar.
Ainda atônitos com a abdicação de Dom Pedro I, a quem queriam antes dobrar do
que depor, os liberais moderados, agora no poder, constituíram uma Regência provisória,
livrando-se imediatamente dos exaltados, sem deixar de combater o “partido português”, ou
seja, os membros da alta burocracia imperial, encastelados no Senado e no Conselho de
Estado, a que aludiam como “partido português”. Entre o que julgavam ser os extremos do
espectro político, os liberais moderados lançaram uma proclamação ao povo e adotaram um
posicionamento decalcado diretamente do precedente francês do ano anterior. A Proclamação
dos Deputados ao Povo Francês, de 31 de julho de 1830, concluía com a frase: “A Carta
(constitucional) será doravante uma verdade” (In: ROSANVALLON, 1994:303); não por
acaso, a proclamação brasileira, de 8 de abril do ano seguinte, prometia ao país que “a
Independência da nossa Pátria e as suas leis” seriam, daquele em dia em diante, “uma
realidade”. A natureza moderada do movimento político de 7 de abril tornaria o Brasil
admirado “entre as nações mais cultas”. (ASI, 1831:11); havia sido uma “revolução pacífica”,
sem “violências”, sem “assassinatos” (In: CONTIER: 1979:93) – as mesmas expressões, em
suma, de que se valeriam os republicanos, depois de 15 de novembro de 1889.
os levava a repelirem o passo lógico seguinte, que era a instauração de uma república. Por
conta da “solidez do governo pela perpetuidade do seu primeiro magistrado” (FEIJÓ,
1999:166), um Imperador ainda lhes parecia melhor avalista da ordem social do que um
Presidente da República. A ampliação da retórica republicana numa época em que o Estado
brasileiro ainda não estava firmado, para além dos setores proprietários do campo e das
cidades, poderia abalar os fundamentos ideológicos da dominação oligárquica e escravista que
os moderados ainda estavam por consolidar. No entanto, a preservação da monarquia não
implicava manter a roupagem monarquiana – absoluta, na linguagem moderada – da Carta
coimbrã de 1824; ela precisava ser “despida das formas de que se revestia quando era
absoluta” (FEIJÓ, 1999:167) para torná-la uma monarquia cidadã, como a de Julho. Tanto
quanto o movimento francês, a ala esquerda do partido moderado era monarquista por cálculo,
querendo que, na já referida expressão de Lafayette, a monarquia brasileira fosse “uma Coroa
cercada de instituições republicanas”.
45
Mostra de como os moderados receavam a volta de Dom Pedro I ao poder e, com ele, dos realistas, está no
discurso do deputado Paula Araújo: “Eu disse que o caráter e a conduta do ex-Imperador reforçam as razões que
tenho para me persuadir que se trama a restauração. Se ele fosse dotado de um caráter firme, se não tivesse dado
tão repetidas provas de uma volubilidade e inconstância sem exemplo, eu estaria mais descansado. Mas o que
presenciamos nós? Jamais ele teve uma opinião sua: umas vezes queria mostrar-se constitucional, quando o
rodeavam homens que tinham bons sentimentos; pouco depois, dando ouvidos àqueles que queriam sacrificar a
causa e os interesses do Brasil aos seus interesses particulares, mudava de conduta, e então não duvidava insultar
o brio nacional e indispor contra si aqueles mesmos que o tinham elevado ao trono. Como poderemos, pois,
deixar de recear, agora que ele se acha rodeado desses mesmos homens, que seja por ele induzido a tentar tão
temerária empresa, iludido, além disto, com as correspondências e mensagens daqui?” (ACD, 1833, II: 15).
O Momento Monarquiano 169
Era uma verdadeira política de ceder para conter que a contragosto seguiam os
moderados de direita que, para evitar a restauração de Pedro I, eram obrigados a manter a
unidade do partido e compor com os exaltados. Era o que explicava Vasconcelos ao repelir o
apelo que lhe fazia o advogado e deputado baiano Francisco Gê Acaiaba Montezuma (1794-
1870) para que os moderados abandonassem os radicais: “Esta união há de ter lugar, a pesar
seu (...); é do interesse dos dois partidos oporem-se à restauração e acabar com os
restauradores” (VASCONCELOS, 1999:212). Honório Hermeto Carneiro Leão também
engolia as reformas constitucionais propostas pelo movimento a contragosto. Em sua opinião,
“as reformas não podiam produzir muito proveito, mas podiam sempre produzir algum, sendo
certo que, segundo entendia, não havia forças humanas que pudessem obstar a elas, porque a
Nação as reclamava, assim como as necessidades de muitas províncias” (ACD, 1831, II: 135).
A pressão sempre vitoriosa exercida pela esquerda moderada sobre a respectiva direita acaba
de se tornar patente na confissão de Evaristo da Veiga:
Os receios dos moderados de direita não eram vãos, porque a direita realista
continuava politicamente ativa. Desde os últimos anos do Primeiro Reinado, os velhos
senadores coimbrões haviam voltado a contar com o apoio dos três Andradas, que haviam
retornado do exílio e recomposto a unidade da frente coimbrã. Nomeado pelo ex-Imperador,
no ato da abdicação, tutor de Pedro II, José Bonifácio de Andrada e Silva desde então
dominava o Paço Imperial como chefe dos áulicos. Na Câmara dos Deputados, ele
desdenhava do partido moderado que, para ele, ainda não conseguira fazer nada de útil desde
que chegara ao poder: “Tendo-se deitado barro na roda no dia 7 de abril, saíra um moringue,
quando ele esperava um rico vaso” (ACD, 25/06/1831). Unitário e monarquista como nunca,
Bonifácio se opunha decididamente ao movimento reformista; ele se organizava “em ocasião
O Momento Monarquiano 170
muito má, por ser objeto que requeria todo o sossego e tranqüilidade da Nação soberana para
alterar-se o seu pacto social, estado em que ele não julgava que estivéssemos” (ACD, 1831, I:
135). Seus irmãos, Antônio Carlos de Andrada Machado e Martim Francisco Ribeiro de
Andrada (1775-1844), se haviam erigido em chefes públicos e ostensivos do partido
caramuru ou restaurador, para quem o retorno do Duque de Bragança era indispensável para
salvar a unidade nacional e o trono do Imperador menino – ou seja, para salvar o projeto
imperial coimbrão (SOUSA, 1972a: 263). Das páginas do jornal homônimo – O Caramuru -,
porém, eles anunciavam apenas o propósito de defender o reinado de Dom Pedro I e a
integridade da Constituição contra as tentativas de reformas de descentralização territorial e
de enfraquecimento da Coroa, projetadas pelos moderados e pelos exaltados para se tornarem
ditadores das respectivas províncias. “Única tábua de salvação para o Brasil”, os caramurus se
propunham “combater quantas idéias tendam a alterá-la ou reformá-la, bem como essa
federação monárquica, monstro até agora desconhecido em político e cuja consumação traria
ao Brasil montões de estragos e a completa aniquilação social” (In: CONTIER, 1979:51).
Travou-se então o primeiro debate sobre a reforma política encaminhada pelos novos
donos do poder para suprimir ou neutralizar do ordenamento constitucional as instituições
monarquianas. A associação entre Poder Moderador, Senado vitalício e Conselho de Estado,
de um lado, e arbítrio e privilégio, de outro, havia sido prenunciada pelas críticas da câmara
municipal de Itu ao projeto de Constituição. Capitaneados por Feijó, os vereadores haviam
desaprovado o excesso de centralização, a vitaliciedade do Senado e a possibilidade de
dissolução da Câmara, não lhes tendo escapado que o projeto dispensava a referenda
ministerial para os atos do Poder Moderador (SOUSA, 1972 b: 73). Esses pontos foram
reiterados com ênfase redobrada pelos exaltados, durante a Confederação do Equador, e no
final do reinado de Pedro I. Os revoltosos pernambucanos fundaram sua decisão de se
separarem do Império com base numa cláusula resolutiva tácita – a do contrato descumprido
pela monarquia ao dissolver a Constituinte (MELLO, 2004). “De nova invenção
maquiavélica”, explicava o Frei Caneca, o Poder Moderador era “a chave mestra da opressão
da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos”. Por meio dele, o Imperador
poderia dissolver a Câmara, “a representante do povo”, saindo ileso o Senado, “representante
dos apaniguados do Imperador” (CANECA, 1976:70).
Se esta era a posição dos exaltados, é sabido que, para os moderados do movimento,
a única versão teoricamente admissível do Poder Moderador era aquela defendida pelos
liberais franceses da Monarquia de Julho, ou seja, o da realeza como um poder neutro frente
aos partidos. Benjamin Constant saudara vivamente a adoção do Poder Moderador na
Constituição de Portugal (1826) como sinal da inevitabilidade do governo representativo
sobre a base da soberania nacional: Num artigo de jornal, ele voltava a afirmara que “a
distinção estabelecida (entre Executivo e Moderador) pela Carta de Dom Pedro é o único
meio de conciliar a existência da monarquia com o estabelecimento da liberdade, isto é, o
único meio de prolongar a duração da forma monárquica” (In: BARBOSA, 2000:224). Guizot
se referia diretamente ao Brasil na História da Civilização Européia: depois de recordar que o
papel da realeza moderna era o de personificar a soberania do direito, na condição de “um
Poder Moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas da sociedade, e não intervindo senão
nas grandes crises”, ele sublinhava “a rapidez extraordinária com que (essa teoria) passou dos
livros para os fatos. Um soberano fez dela, na Constituição do Brasil, a base mesma de seu
trono; a realeza está aí representada como um Poder Moderador, elevado acima dos poderes
ativos, como um espectador e juiz das lutas políticas” (GUIZOT, 1855:236). Não era assim,
porém, que os moderados brasileiros – os do movimento, pelo menos - enxergavam o
problema. Se, no final da década de 1820, Constant e Guizot saudavam Pedro I como o único
monarca liberal da Europa, pedindo-lhe que se pusesse à frente do liberalismo europeu contra
a Santa Aliança, no Brasil, a aristocracia rural travestida de classe média européia, incapaz de
aceitar os postulados monarquianos, associavam-no e à sua Corte coimbrã ao absolutismo.
Reconhecer o liberalismo de Dom Pedro I curto-circuitaria sua própria identidade,
embaralhando as distinções ideológicas que justificavam publicamente suas ações.
Do ponto de vista do direito público, o que mais pesava na apreciação negativa que
faziam do Poder Moderador os moderados do movimento era, sem dúvida, a
irresponsabilidade jurídica pelos seus atos, por que não respondiam os ministros. A
responsabilidade ministerial pelos atos da realeza era um dogma da monarquia constitucional,
porque conciliava o governo representativo com a inviolabilidade, isto é, a irresponsabilidade
da Coroa, que era característica do Antigo Regime. Nas duas primeiras décadas do século
XIX, no âmbito do governo constitucional representativo, explicado pelas teorias do governo
misto e da separação de poderes, essa referenda ministerial ainda era compreendida pelos
O Momento Monarquiano 173
liberais como uma garantia jurídica da responsabilidade pelos atos praticados pelo monarca
irresponsável (ROSANVALLON, 1994:85). Ela preservava a autonomia decisória da Coroa
quanto à nomeação e à demissão de ministros, conciliando-a com o direito que tinha o
Parlamento de fiscalizar e controlar a legalidade dos atos governamentais. Se os secretários de
Estado estivessem de acordo com as decisões da Coroa, deveriam referendá-las e assumir
frente ao Parlamento a responsabilidade; por elas do contrário, precisavam renunciar e ceder
os cargos a quem se dispusesse a fazê-lo.. Desde que as teorias do governo misto e da
separação de poderes exigiam a responsabilidade jurídica dos ministros, carecia de
importância o fato de a Constituição prever expressamente a referenda apenas para os atos do
Executivo, e não para os do Moderador. Era por isso que, embora não houvesse exigência
expressa de referenda ministerial nos atos do Poder Moderador, todos eles haviam sido até
então indistintamente referendados pelos ministros. A responsabilidade jurídica era
compreensível para evitar que o Executivo se tornasse absoluto pela inviolabilidade do
monarca, já que era considerado um poder distinto e autônomo do Legislativo. Assim, pelos
atos da Coroa respondiam os ministros que os referendavam, ficando sujeitos ao
procedimento acusatório a que já haviam no Brasil se sujeitado dois ministros de Dom Pedro
I. Caso a acusação da Câmara houvesse sido julgada procedente, o Senado ficaria encarregado
de julgá-los e condená-los, se fosse o caso, nas penas previstas na Lei de Responsabilidade
dos Ministros de Estado, que reproduzia assim o velho instituto inglês de impeachment
ministerial.
(Câmara dos Deputados) eram interligados pelo Conselho de Ministros, isto é, o gabinete
(ANTONETTI, 1998:113). Os conservadores discordavam, todavia, do grau de esvaziamento
da prerrogativa monárquica proposta pela interpretação da esquerda liberal, que era no seu
entender demasiado. “O trono não é uma poltrona vazia”, afirmava Guizot. “A realeza é
necessária, não somente para prevenir a usurpação, não somente para parar os ambiciosos,
mas como parte ativa e real do governo” (GUIZOT, 1861:228). Calcados numa interpretação
literal do art. 12 da Carta de 1830, conservadores como Guizot, o Duque da Dalmácia (1769-
1851) e o Conde de Molé (1781-1855) sustentavam que o Rei dispunha de toda a liberdade de
selecionar, para o ministério, os políticos que ele julgasse mais capacitados para angariar o
apoio da maioria parlamentar e, desse modo, realizar seu pensamento político. Dotada de
“inteligência, firmeza e devotamento admiráveis” (GUIZOT, 1861:210), a Coroa representava
a capacidade intelectual suprema do país; a força que conferia ao governo o poder e a
legitimidade de dirigir a sociedade. A direita liberal criticava a anglomania dos liberais, que
os cegaria para a especificidade da política francesa, cujas oposições coligadas, se eram
capazes de derrubar governos, não possuíam organicidade suficiente para os formarem. Daí a
necessidade de uma força externa de impulsão, que pudesse revestir de solidez e efetiva
responsabilidade os governos, e que só poderia ser fornecida pela Coroa (FONFREDE,
1844:53). Era por esse motivo que o chefe do Estado não poderia se reduzir a um poder
neutro, isto é, passivo; embora imparcial e por meio do Conselho de Ministros, o monarca
precisava chefiar o Executivo em paridade de condições com o Parlamento.
Seja como for, embora divergissem acerca do modo exato de seu funcionamento, os
conservadores não discordavam dos liberais na caracterização do governo monárquico
representativo como parlamentar, nem em reconhecer a primazia da Constituição da Inglaterra
na formatação desse modelo. Essa adaptação do Poder Moderador à teoria do governo
parlamentar - isto é, que o governo, gabinete, ministério ou conselho de ministros deveria dali
por diante merecer a confiança concomitante da Câmara e do Parlamento -, operou-se de
forma natural na França orleanista, na Bélgica e na Espanha. Como suas constituições
embutiam o Poder Moderador entre as atribuições formais do Executivo, não se colocou o
problema da responsabilidade ministerial sobre os atos daquele primeiro poder, que era antes
uma doutrina do que uma fórmula jurídica. No Brasil e em Portugal46, porém, onde os dois
46
A Carta portuguesa era quase idêntica à brasileira. Revisada às pressas por Pedro I, nela suprimiam-se apenas
as alusões às províncias e à origem popular do poder. Substituíam-se as palavras Império, Brasil, Imperador e
Senado, respectivamente, por Reino, Portugal, Rei e Câmara dos Pares. Assim, por exemplo, o Poder
Moderador ficou definido como “a chave de toda a organização política e compete privativamente ao Rei, como
Chefe Supremo da Nação, para que incessantemente vele sobre o equilíbrio e harmonia dos mais poderes
O Momento Monarquiano 176
poderes estavam textualmente separados, havendo previsão expressa da referenda apenas para
os atos do Executivo, a irrupção da teoria do governo parlamentar criou um grande problema
constitucional. Das duas, uma: ou se reconhecia a independência do Poder Moderador, não
dispondo a Coroa de quem se responsabilizasse pelos atos por ela praticados no exercício
daquelas atribuições – agindo o chefe de Estado, portanto, de modo soberano e, portanto,
absolutista -; ou o ministro de Estado deveria também referendá-los, como se fossem
exercidos pela Coroa no âmbito do Poder Executivo – e, nesse caso, o chefe de Estado
correria o risco de ficar refém do ministério e, por extensão, do seu partido, impedindo-o de
agir como um árbitro imparcial. Em outras palavras: se, por um lado, a inexigência da
responsabilidade ministerial implicava reconhecer o Poder Moderador como um poder
irresponsável e, portanto - ainda que no exercício de suas competências – absoluto, por outro,
a imposição da obrigatoriedade da referenda poderia acarretar sua captura pelo gabinete,
acabando com sua independência e neutralidade, e fazendo dele um instrumento de partido.
Em Portugal, o debate sobre a responsabilidade pelos atos do Poder Moderador atravessaria o
século XIX até que a partir de 1885 um ato adicional obrigou a referenda ministerial. Com a
crise geral do liberalismo e o esfacelamento do sistema partidário, depois de 1890, a crescente
demanda pelo poder pessoal do Rei permitiria que o Moderador recuperasse a sua liberdade
por meio de outra reforma constitucional (CAETANO, 1986:63/67; MARTINS, 1986;
RAMOS, 2001).
Moderador vinham, na prática, sendo subscritos pelos ministros – ou seja, como americanista
e presidencialista, ele não entendia a distinção entre responsabilidade política e jurídica, que
só adquiria sentido no interior do governo parlamentar, que ele rejeitava. Por fim, havia
moderados da resistência, como o pernambucano Araújo Lima, para quem a omissão
constitucional não deveria ser interpretada como proibição da referenda ministerial, mas como
permissão para que ela ocorresse no espaço extraconstitucional, intermediário entre a
inconstitucionalidade e constitucionalidade. Diante dessa verdadeira barafunda de
interpretações, os moderados do movimento optaram pelo caminho mais simples, ou seja,
propor a supressão pura e simples do Poder Moderador e o Conselho de Estado. As
competências daquele poder passariam para a esfera do Poder Executivo – não antes de
suprimir a que permitia ao chefe de Estado a de dissolução da Câmara. Na medida em que as
instituições políticas ficassem assemelhadas às dos demais governos representativos, seria
mais fácil praticá-lo por imitação, acabando com a ambigüidade constitucional que permitia a
interpretação monarquiana da Carta – fosse para o governo parlamentar, fosse para o
“presidencialismo monárquico” à americana. Era a posição do senador Vergueiro, exposta
com lucidez analítica:
“Cumpre que nos armemos com a égide impenetrável da razão contra as vozes de
um povo alucinado e conduzido de boa fé pelos interessados das facções. Em
tempos de partidos, na efervescência das paixões, difícil é, para não dizer
impossível, conseguir o conhecimento da verdadeira opinião pública. As facções
já não dissimulam nem os seus projetos, nem as suas aspirações; elas se têm
apresentado com armas na mão, depois de haverem corrompido a mocidade
incauta e insciente, procurando arrastá-la à licença, para nos precipitar na anarquia
e nos fazer perder a liberdade. Talvez não fosse este o tempo mais próprio para
reforma – qualquer que ela seja não acalmará as paixões -, mas cumpre-nos tirar
todo o pretexto com que se disfarçam vistas tão impuras e danosas. O nosso dever
é procurar o que for mais profícuo à Nação; ela pôs-nos neste lugar para dizermos
francamente a nossa opinião sobre os seus interesses. O legislador não deve ser
dominado por paixões e por partidos; armemos a nossa consciência com uma
tríplice couraça contra as opiniões corrompidas e desorganizadoras (...). A massa
geral ainda não está de todo contaminada. Os homens probos ligados a seus
verdadeiros interesses, apesar das pérfidas sugestões que os rodeiam, não aspiram
senão a gozar em paz os frutos do regime legal. Eles reclamam a manutenção da
ordem, sem a qual todos os direitos são comprometidos; eles serão o nosso
escudo, para garantirmos a Constituição a essa mesma porção, que, impelida
somente por uma inclinação irresistível da natureza humana, imprudente anela
mudanças após uma quimera” (28/05/1832).
O Momento Monarquiano 180
“Ora, senhores, se tais princípios passam, quem governa o Brasil? A Câmara dos
Deputados. Que elemento é este? O democrático. Que governo teremos? O
oligárquico. O que se segue dele? A anarquia; e, atrás da anarquia, o que vem? O
despotismo, porque, depois que os povos vêem correr rios de sangue, procuram
um homem que os livre do estado de desgraça a que têm chegado, e que os dirija,
e este, aproveitando-se da ocasião, os governa despoticamente, como fez
Napoleão” (ASI, 1832, I:350).
por governos representativos, os partidos existiam “não para fazer sedições e conspirações,
mas para sustentar princípios”. Frente ao argumento de que o atraso cultural não comportava
reformas democráticas, Barbacena invertia o seu nexo de causalidade num sentido
francamente anglo-saxônico: “A instrução e a virtude de um povo não precedem as boas
instituições, são sempre conseqüência delas”.
Seja como for, a despeito de suas discordâncias quanto aos diversos pontos das
reformas projetadas, o fato é que todos os senadores vinculados à administração de Pedro I,
inclusive o próprio Barbacena, cerraram fileiras para evitar a supressão do Poder Moderador.
Na defesa do quarto poder, eles recorreram todos a pelo menos duas das representações de
1823: ele era um lugar privilegiado do governante, desinteressado e acima da “política”, e um
poder de exceção a serviço da salvaguarda do sistema constitucional. Acima dos políticos
ordinários e dos partidos, o Marquês de Barbacena entendia que o Poder Moderador se
destinava “a salvar a Nação nas ocasiões arriscadas”, sendo indispensável “um poder
discricionário confiado a quem o exercite com a maior imparcialidade possível”. O Marquês
de Caravelas volveu ao mesmo argumento de oito anos antes - o de que, a fim de “prevenir o
despotismo oligárquico” da Câmara dos Deputados, a Nação delegara ao monarca a
“vigilância sobre os demais poderes” na qualidade de seu primeiro representante. Rejeitando
em 1823 a teoria de Constant como um artifício para nulificar a Coroa, o Visconde de Cairu
defendia agora o Poder Moderador como “a mais brilhante jóia do diadema imperial”,
essencial para “prevenir excessos” e consolidar o elemento monárquico do novo Império.
Reiterando as expressões empregadas em 1789 por Malouet, Mounier e Mirabeau, Cairu
declarava que o direito de dissolução da Câmara dos Deputados era “o escudo do trono”, “o
baluarte do povo” contra a “oligarquia ministerial” que tantos malefícios traziam à Inglaterra.
Ou seja, adeptos das teorias do governo misto e da separação de poderes, os realistas
continuavam a ver no predomínio do gabinete sobre a Coroa um sintoma de corrupção do
regime – justamente como Bolingbroke. Num único parágrafo, conseguiu resumir todos os
topói coimbrões o irmão de Caravelas, o também baiano Francisco Carneiro de Campos
(1765-1842):
“Esta distinção, que se fez desse poder político, não foi para escravizar a Nação. E
não se pode supor que os grandes estabelecedores desse poder, que foram
Benjamin Constant, Bentham, etc., possam passar por homens amigos do
despotismo. Neste sentido é que o primeiro entendeu esta divisão de poder e,
portanto, não quis que as atribuições deste irresponsável passassem para nenhum
O Momento Monarquiano 183
Depois de reconhecer que, por seu caráter discricionário, o Poder Moderador viera “de
mistura com o poder absoluto”, o Marquês de Caravelas respondeu que era infundada a
possibilidade que preocupava os moderados de que ele se tornasse um instrumento autoritário,
pois a Constituição lhe havia oferecido dois eficazes corretivos. O primeiro deles era o
Conselho de Estado que, ouvido obrigatoriamente pelo Imperador, antes que ele este
exercesse os atos daquele poder, se responsabilizavam pelos conselhos dados. O alvitre tinha
pouca valia naquele momento, na medida em que a extinção do conselho também estava na
ordem do dia. Ademais, podia-se sempre aduzir que a Coroa não estava adstrita ao parecer
dos conselheiros, o que significa que o chefe do Estado inviolável continuaria descoberto,
caso resolvesse agir de modo diverso do recomendado. Caravelas, todavia, avançou uma
proposição surpreendente ao enunciar o segundo corretivo previsto pela Constituição: a
responsabilidade dos ministros de Estado. O fato de não ter previsto a referenda ministerial
não significava que a Constituição não a quisesse - até porque, como se sabia, ela era a pedra
de toque da monarquia constitucional. Este era um posicionamento que aparentemente
colocava Caravelas o lado de um Martiniano de Alencar e de um Feijó, chefes do movimento.
Com o argumento, o Marquês de Caravelas queria impedir a reforma por ociosa, enquanto
Alencar a queria para confirmar a prerrogativa que ele julgava preexistente: “O que se quer,
por esta reforma, é que os membros (do gabinete) continuem a fazer o mesmo que agora
praticam; isto é, que continuem a referendar os atos do Poder Moderador, como o têm até aqui
feito, e parece-me que esta razão é suficiente para não haver dúvida em que essa reforma
passe”. (ASI, 1832 II: 233)
governo misto, com seus corolários da separação de poderes e de freios e contrapesos - e não
da teoria do governo parlamentar. Tanto que ele tranqüilizava Cairu de seus temores de uma
“oligarquia ministerial”: livre para nomear e demitir ministros o Imperador sempre
encontraria quem lhe referendasse os atos. Não passava pela cabeça de Caravelas que
secretários de Estado pudessem deixar à sua mercê o Imperador, primeiro representante da
Nação e guardião da Constituição. Quando defrontado com esse argumento, Carneiro de
Campos desabafou numa confissão: “Quando se fez a Constituição, não se supôs que os
homens seriam tão desarrazoados que não quisessem aquilo que não era justo”, ou seja, aquilo
que queria a Coroa (ASI, 1832, I: 246). O resultado foi que, admitindo a premissa do
movimento – a da preexistência da responsabilidade ministerial -, o marquês chegava à
conclusão contrária de Vergueiro, ou seja, à desnecessidade de se extinguir o Poder
Moderador ou de explicitar o requisito da referenda. Disposto a preservar a todo o custo o
quarto poder, que lhe parecia a única forma de salvar o governo constitucional representativo,
Caravelas admitiu depois que poderia vir apoiar uma proposta de explicitar a responsabilidade
dos ministros, por reforma constitucional ou interpretação legislativa. Não percebia que,
desde que continuava a mobilizar o conceito de responsabilidade ministerial num sentido
anacrônico, sua estratégia de salvaguardar a força e a independência da Coroa teria
conseqüências opostas às que desejava.
Quem lhe abriu os olhos foi o irmão mais velho. Francisco Carneiro de Campos já se
dera conta das conseqüências da teoria do governo parlamentar, isto é, que a responsabilidade
dos ministros pelos atos do Poder Moderador acabaria com a independência, que era condição
de sua imparcialidade. Se, num governo misto caracterizado pela separação de poderes e
pela responsabilidade jurídica dos ministros, os poderes Executivo e Moderador reunidos
resultavam numa Coroa poderosa (tal como haviam sonhado os monarquianos), na lógica
distinta de um governo parlamentar, marcado pela responsabilidade política do gabinete, eles
desembocariam num ministério poderoso - a “oligarquia ministerial” - ou numa câmara
poderosa - a “oligarquia parlamentar”. Francisco Carneiro de Campos desenvolveu o embrião
da doutrina saquarema do governo parlamentar ao adaptar, naquele momento, o discurso
monarquiano à nova teoria explicativa do governo representativo. A omissão constitucional a
respeito da referenda ministerial nos atos do Moderador não poderia ser interpretada, como
pretendia o Marquês de Caravelas, na forma de uma permissão implícita ou de uma lacuna
acidental, colmatável por interpretação. Ao determinar a referenda ministerial para os atos do
O Momento Monarquiano 186
As duas derrotas foram interpretadas pelos moderados do movimento como o sinal de uma
contra-revolução, que deveria ser prevenida por meio de um golpe de Estado. Para os
golpistas, a Nação se achava “à borda de um abismo pelas divisões que infelizmente tem
retalhado o país”; “só as mais enérgicas medidas” poderiam salvá-la (ACD, 1832, II: 128). O
plano do movimento para o autogolpe era o seguinte: a Regência renunciaria juntamente com
o ministério, declarando-se ambos incapazes de enfrentar a crise. Nesse quadro de acefalia, a
Câmara dos Deputados se declararia em Convenção Nacional, dissolvendo o Senado,
prendendo José Bonifácio e decretando as reformas constitucionais ditatorialmente. O golpe
de 30 de Julho de 1832 foi abortado, porém, graças à defecção de Honório Hermeto Carneiro
Leão (1801-1856), deputado mineiro da resistência que, “fazendo os últimos esforços para
tirar-lhes a venda que lhes cobre os olhos e indicar-lhes o caminho da legalidade”, alertou os
colegas para o perigo daquele precedente, “que nos arrastará a outros igualmente maus e
perigosos”. Se as leis repressivas eram frouxas, declarava o futuro Marquês de Paraná, elas
deveriam ser reformadas; o que não se podia era romper com a Constituição, fonte de que o
governo extraía sua legitimidade para manter a ordem. O principal meio constitucional de
resolver os conflitos entre os poderes, alegava Carneiro Leão, era o Poder Moderador. Se a lei
da Regência não o houvesse proibido de dissolver a Câmara, o governo já poderia desde já
convocar uma nova, dotada de poderes extraordinários de revisão constitucional (ACD, 1832,
II: 134) 47.
Ao abortar o golpe em pleno curso, a “cabeça fria” de Carneiro Leão permitiu que a
continuidade do processo da reforma política conforme o procedimento previsto na
Constituição48. Na Câmara, as emendas do Senado ao projeto de reforma constitucional foram
defendidas pelos referidos deputados Martim Francisco, Miguel Calmon, Francisco
Montezuma e Antônio Rebouças – este, defensor intransigente dos direitos civis dos libertos
(GRINBERG, 2002:107). Como os coimbrões, eles tendiam a condenar o tráfico negreiro e
enfatizar o papel civilizador do Estado contra o risco da desagregação embutido no projeto
federalista (DOHLNIKOFF, 2005:72). No entanto, eles se diferenciavam dos senadores por
comunicarem os argumentos coimbrões, não em linguagem monarquiana, na linguagem
47
Mais de vinte anos depois, Carneiro Leão, já Marquês de Paraná, lembraria sua participação naqueles
acontecimentos. Ele deu então sua versão sobre o que era ser um moderado de direita: “A moderação que me
impunha para com os meus adversários não era novidade na minha carreira política; quando encetei esta carreira
foi ligando-me a um partido que se impôs esta condição, e desvaneço-me de que quando esse partido, arrebatado
pela corrente de sucessos que pareciam chamar uma maior energia, julgou dever separar-se desse princípio para
ter meios mais adequados de repressão, eu lhe disse: 'Alto, continuo a ser moderado’” (ASI, 26/05/1855).
48
Como causa de malogro do golpe, Otávio Tarquínio de Sousa acrescentou a longa demora na apresentação do
parecer em que foram pedidas medidas de salvação pública. No decorrer da sessão legislativa daquele dia, essa
demora teria dissolvido a vontade comum da Câmara (SOUSA, 1972 b: 440).
O Momento Monarquiano 188
O desacordo entre a Câmara e o Senado sobre as demais matérias que seriam objeto de
discussão da futura assembléia revisora induzia à promoção da fusão prevista no art. 60 da
Constituição. Conforme referido na primeira seção deste capítulo, a fusão das câmaras
esbarrava numa divergência de interpretação entre deputados e senadores. Os primeiros
entendiam que a medida acarretava votação conjunta, enquanto aqueles resistiam em nome da
independência do Senado. Na impossibilidade de obrigar os senadores à votação conjunta e
inviabilizada a saída golpista, os moderados negociaram com os realistas uma solução de
compromisso acerca dos artigos da Constituição cuja reforma poderia ser debatida pela futura
Câmara revisora. Aprovadas as reformas por esta última, eleita com poderes especiais, os
O Momento Monarquiano 189
novos deputados ainda tiveram força para promulgá-las sozinhos, deixando de fora o Senado
e a Regência. Esta não era a lógica do governo misto, mas de uma monarquia democrática.
Mas os senadores já estavam satisfeitos, e os regentes eram moderados. O resultado foi o Ato
Adicional de 1834, que deu origem a uma forma híbrida de Estado, a meio caminho da
monarquia unitária francesa e da república federal norte-americana, que pode ser descrita
como monarquia semifederal49. Foram criadas assembléias provinciais dotadas de
competência própria, de cujo controle de constitucionalidade ficou a Assembléia Geral
encarregada. A reforma substituiu a Regência trina, eleita pelo Legislativo, por uma Regência
una e eletiva, escolhida em eleição indireta pelo eleitorado nacional; e descentralizou o Poder
Judiciário, dando seqüência ao processo começado dois anos antes pelo Código de Processo
Criminal, criando uma classe de juízes eletivos na primeira instância, com competências
judiciárias e policiais. Os Presidentes de Província continuaram nomeados pela Coroa, e o
mandato dos senadores, vitalício; em compensação, os realistas tiveram de aceitar a extinção
do Conselho de Estado.
49
A referência aqui é o livro de Miriam Dolhnikoff, O Pacto Imperial – Origens do Federalismo no Brasil
(2005) - obra sobre o projeto político da direita moderada, especialmente dos paulistas. Por isso mesmo, ela veio
completar o painel clássico de Ilmar Rohloff de Mattos publicado em 1986, O Tempo Saquarema – A Formação
do Estado Imperial (1994), sobre o projeto político da direita moderada, implantado durante o Regresso.
Malgrado as diferenças de estilo e metodologia próprias às épocas em que foram escritos os livros, penso que um
serve de contraforte ao outro. Discordo em certos pontos, porém, de um e de outro; no caso específico de
Dolhnikoff, do argumento de que seria federal a forma do Estado imperial. Em primeiro lugar, a autora se
ampara anacronicamente na autoridade de constitucionalistas modernos para validar a tese, ao passo que, pelo
menos de 1840 em diante, a maioria esmagadora dos autores políticos da época discordaria dessa avaliação. Essa
premissa torna incompreensível o motivo das queixas crescentes do meio político contra a centralização político-
administrativa, que era reconhecida como uma realidade tanto pelos seus críticos como pelos seus detratores.
Este não me parece, portanto, um bom exercício de uma história contextual. A existência de um controle
normativo de constitucionalidade para as leis provinciais, mas não para as leis gerais, é o exemplo mais gritante
dessa conciliação entre o princípio da supremacia da Constituição federal sobre os ordenamentos jurídicos
estaduais - vigente nos EUA - com o princípio unitário da tradição francesa, que não admite o controle
normativo. Como as leis nacionais são produtos da vontade geral expressa pelo Poder Legislativo, não se admite
controle de outro poder. Além disso, o poder central continuava centralizado no que se refere à designação dos
governadores das províncias, bem como dos desembargadores das Relações. Por fim, a maior parte da
competência tributária continuava residindo na União - o que demonstra o peso remanescente do modelo francês.
O próprio Tavares Bastos entendia que o Ato Adicional “não estabelecia a federação, mas um regime que
participava de ambos os sistemas, centralizador e descentralizador” (TAVARES BASTOS, 1997:86).A forma do
Estado adotada em 1834 deve ser, portanto, descrita como semi-unitária ou semifederal.
O Momento Monarquiano 190
1824: “Compare-se o nosso governo com o dos Estados Unidos e conhecer-se-á que no
essencial são ambos os Estados governados pelo mesmo sistema, e que a maior diferença está
no nome e em certas exterioridades de nenhuma importância para a causa pública (...). De
monarquia, só temos o nome” (FEIJÓ, 1999:166). Despida a realeza “de aparatos supérfluos,
pesados e odiosos à Nação”, o Brasil se convertera na monarquia republicana ou democrática
por que suspiravam os brasilienses desde 1821. A esta organização política, o Brasil não
poderia fugir: a América desconhecera a nobreza hereditária; ademais, a escravidão incutira o
amor à igualdade em cada cidadão brasileiro, “este caráter já de independência e soberania,
que o observador descobre no homem livre, seja qual for o seu estado, profissão ou fortuna”
(FEIJÓ, 1999:136). No mais, criticava a política do Primeiro Reinado, descrevendo o projeto
dos coimbrões - de modo razoavelmente acurado, aliás - como o da “obediência cega dos
súditos, uma representação acanhada e sempre curvada ao monarca, uma Constituição ditada
por eles, instituições que formassem uma monarquia forte sobre fórmulas representativas – eis
o que se meditava e se tratava de pôr em prática” (In: CONTIER, 1979:81).. Percebendo a
“notável mudança que se opera nos espíritos, que parece conduzir a população para os
cuidados da paz, da indústria e dos melhoramentos” (In: SOUSA, 1988 b: 180), Evaristo da
Veiga também deu por encerrada sua missão de publicista liberal e deixou a direção da
Aurora Fluminense.
O final feliz da batalha contra os realistas e coimbrões não passava, porém, de ilusão.
A descentralização tornou muito mais virulenta a luta no âmbito provincial, muito menos
institucionalizado que o geral, ao mesmo tempo em que retirou do governo central a
capacidade de arbitrá-las ou reprimi-las. Além disso, as províncias passaram a interpretar o
Ato Adicional de forma a favorecê-las para além do que lhes era devido, ou seja, exorbitando
de sua esfera de competências de molde a ampliar seu campo de ação e esvaziar ainda mais o
governo geral. O caso mais grave foi o dos funcionários públicos que serviam em órgãos
administrativos regulamentados por leis gerais, mas que, em razão do Ato, passaram a ser
escolhidos pelas autoridades provinciais. Do direito de nomeá-los, as províncias se arrogaram
também o de alterar as leis relativas às instituições onde eles serviam, tornando provincial o
que era geral e ajudando a esgarçar o controle da Corte sobre a administração. Esse quadro
foi agravado pela crise econômica causada pela queda dos preços dos gêneros de exportação e
pelo esgotamento das jazidas de ouro. A década da Regência presenciou o preço da tonelada
do açúcar decrescer em um terço em relação à anterior, e o preço do algodão, em um quarto
(FAORO, 1997:325). O déficit orçamentário induzia o governo a emitir papel-moeda para
O Momento Monarquiano 191
cobrir as despesas, gerando inflação. Essa desarticulação do pouco que havia sido criado de
Estado brasileiro em nome da liberdade da aristocracia provincial contra o poder de cima
desencadeou a desordem social, que era o seu maior pesadelo em relação ao poder de baixo.
Circunscritos às cidades e liderados pela elite letrada, depois do Ato Adicional os conflitos se
alastraram para o campo, envolvendo pobres, índios e escravos (CARVALHO, 1996:231) –
justamente aqueles segmentos sociais que os coimbrões queriam integrar pela tutela, como
partícipes de uma sociedade atrasada, e que eram excluídos pelos brasilienses, por não
considerá-los parte do povo ou da Nação. Com o país à beira do precipício, quase metade da
Câmara já julgava digno de consideração, em 1835, um projeto de extinção da monarquia –
leia-se, do Brasil como entidade política (MARTINS, 1978, II: 217).
1997:318), o jornalista conservador Firmino Rodrigues Silva (1816-1879) retrucava que, “no
sistema representativo, governo sem maioria é frase absurda que não tem explicação alguma.
No Brasil, porém, que tem tomado a peito demonstrar todos os absurdos, a falsear todos os
princípios do sistema representativo, nos tem dado exemplo dum governo sem maioria” (In:
MASCARENHAS, 1961:17). Requentando os argumentos de sua campanha do reinado de
Pedro I, Vasconcelos aditava que, se o governo queria a colaboração dos parlamentares, seus
ministros deveriam comparecer pessoalmente à Assembléia “para explicar-lhes quais são as
necessidades que ele julga urgentes, o que com mais urgência pedem providências”, caso em
que cada deputado poderia julgar por si e avaliar sua posição. “Parlamentarmente
organizado”, em regime de coesão do gabinete, seria mais fácil ao governo formar “as
maiorias conscienciosas, as maiorias compactas e invencíveis” (VASCONCELOS,
1999:235). Fortalecida e prestigiada, a nova oposição conservadora paralisou o governo de
Feijó. Ao se queixar da falta de cooperação do Parlamento com as “urgentíssimas
necessidades do Estado” (In: JAVARI, 1993:176), repetindo o roteiro de Pedro I, o destino do
primeiro chefe de Estado eleito do Brasil foi idêntico ao do príncipe que hostilizara – a
renúncia.
atadas contra o privatismo, que de local se transmudava em provincial, desde que eram os
potentados que dominavam as assembléias legislativas. Para os conservadores, a solução
passava por retirar das mãos das localidades a nomeação das autoridades judiciárias e
administrativas e acabar com as usurpações das competências legislativas do governo geral
pelas assembléias provinciais (URUGUAI, 1960). Essas medidas foram completadas pelo
restabelecimento das prerrogativas do Poder Moderador, ocorrido automaticamente quando da
proclamação da maioridade do Imperador, em 1840 (que pôs fim à vigência da Lei de
Regência), assim como pela promulgação da Lei n. 234 de 23 de novembro de 1841, que
restabeleceu o Conselho de Estado extinto pelo Ato Adicional.
presentemente excede a muito mais de dois milhões e trezentas mil arrobas, quase todas de
primeira qualidade” (In: REIS, 1985:350). A exigência de pronta mão-de-obra, de um lado, e
as dificuldades da imigração européia barata e espontânea, de outro, pareciam confirmar a
crença de Vasconcelos de que a escravidão era fundamental para dinamizar a economia e,
portanto, elemento antes de civilização do que de barbarismo (VASCONCELOS, 1999:268).
“O espírito público está em plena tendência para a monarquia, mas essa tendência,
filha da razão, inspirada pelo amor de ordem, não é coadjuvada nem por nossas
leis, nem por nossos costumes e nem pelos nossos hábitos: o trono não tem, pois,
alicerces. (...) Existem entre nós opulentos proprietários que dominam sobre
grandes massas da população? Existem: pois bem; façamos que esses
proprietários tenham em seu amor-próprio mais um motivo para quererem a
consolidação do trono e a integridade do Império, para mais particularmente se
dedicarem ao monarca” (ROCHA, 1843).
50
Em 2003 foi publicado um artigo sobre a atuação do Partido Caramuru na década de 1830, da autoria de
Marco Morel, chamado Restaurar, fracionar e regenerar a Nação: o Partido Caramuru nos anos 1830
(MOREL, 2003). Supondo uma homologia entre grupos sociais e retórica liberal ou ultra no Brasil e na Europa;
e não levando em conta os diferentes sentidos ideológicos e partidários do termo liberal, o autor caiu na tentação
de ver, nos caramurus, os representantes da “aristocracia” e – seguindo a mesma lógica - do absolutismo. Morel
argumenta que teria havido uma aliança caramuru entre os Andradas e os Albuquerques – estes últimos,
apresentados aqui como campeões do liberalismo de esquerda em Pernambuco. Seu artigo é basicamente
conjetural, já que ele não somente não prova que as duas famílias estivessem em contato, como não apresenta
evidências de simpatias ideológicas dos Albuquerques pelos caramurus. Muito pelo contrário, o fato de
Albuquerque ter pedido apoio da França para separar as províncias do Norte do restante do Império e constituir
outra monarquia constitucional se encaixa perfeitamente com o seu perfil aristocrático e essencialmente liberal,
que embasa esta tese. Já demonstramos que Feijó – que, ao exemplo de Albuquerque, também era liberal e
proprietário de terras – não chorava pela eventual separação das províncias do Norte. O nexo entre separatismo e
grupos políticos deve ser procurado antes nas rivalidades entre os liberais “de movimento” do Sul e do Norte, do
que entre os Andradas e os demais caramurus, que foram partidários de uma monarquia caracterizada pela
unidade e pela centralização político-administrativa desde a independência. O artigo de Morel também não se
debruça sobre duas outras questões que me preocupam: as ligações dos senadores do Primeiro Reinado com os
caramurus propriamente ditos e, depois da morte de Dom Pedro, suas conexões com o movimento do Regresso.
O Momento Monarquiano 198
irmão Francisco Carneiro de Campos – a esta altura (1838), o último dos senadores coimbrões
vivo. Na oportunidade, o irmão de Caravelas pediu ao Presidente do Senado que conferisse
prioridade ao projeto de Paulino, que substituía o seu com vantagem por ser ainda mais
abrangente, explicando as semelhanças e diferenças entre os projetos: “O que quis o Senado
no seu artigo (de Caravelas) foi salvar as atribuições que estavam conferidas aos juízes de
direito pelos códigos, e este é o princípio que milita também a respeito do artigo da Câmara
dos Deputados (de Paulino). (...). O que se pretende, tanto neste artigo, como no que passou, é
salvar a unidade do Poder Judiciário, em todo o Império” (ASI, 1839, III: 63). Os debates
travados nas duas casas da Assembléia Geral também apontam pela conjugação de esforços
entre Vasconcelos, Paulino e Francisco Carneiro de Campos. Como se combinados de
antemão, todos os discursos se estruturavam em torno de um mesmo eixo - o argumento de
que as províncias extrapolavam as competências concedidas pelo Ato e que apenas uma
interpretação autêntica, baseada nas retas regras de hermenêutica, poderia restabelecer a
primazia do governo geral e refrear a voracidade provincialista que abismava o Império.
Carneiro de Campos defendia o projeto no Senado, e Vasconcelos e Paulino, na Câmara. Da
tribuna do Senado, o irmão de Caravelas afirmava:
“Eu quero considerar a mente do legislador, que foi conciliar os interesses gerais
com os interesses locais das províncias; dar às províncias tudo quanto devem ter
para promover a sua felicidade, mas salvando sempre os interesses gerais. Este
projeto (o de Paulino) caminha debaixo dessa base e está dentro das regras da
interpretação, porque, todas as vezes que da letra da lei resulta um absurdo,
recorre-se, para salvar o absurdo, ao espírito do legislador. O absurdo, quanto aos
juízes, estava, por exemplo, em que os cidadãos ficassem sujeitos a dezoito
espécies de processo, mas havendo um só tribunal supremo de justiça. (...). Ora, o
que nós pretendemos, no primeiro artigo que já passou (de Vasconcelos e
Paulino), e se pretendeu nesse da Comissão do Senado (dele e de Caravelas), foi
conservar a unidade de processo em todo o Império; pois que, tendo passado na
Constituição que houvesse um código para todos os cidadãos brasileiros, passando
isso como uma garantia, era uma coisa absurda fazer este código sujeito a
oscilações, não digo só de dezoito províncias, mas de todos os municípios (...).
Um nobre senador disse que nos Estados Unidos era assim; é verdade, mas os
Estados Unidos eram nações distintas que tinham cada uma os seus códigos; e isto
não é assim entre nós” (ASI, 1839, III: 229).
O Momento Monarquiano 199
107). Entretanto, preconizava que as reformas só deveriam ser admitidas depois de maturadas
à luz da experiência, rejeitando-se as propostas calcadas apenas em princípios metafísicos.
“Vulgarmente se entende que tem caráter o homem que diz hoje o que disse há
vinte anos, e o que dirá daqui a vinte anos. (...) Homens tais, idéias tais só tem
apreço no meio das facções, porque as facções vêm de princípios absurdos,
servem a princípios absurdos, e não podem admitir modificação alguma no
O Momento Monarquiano 201
espírito do homem, sem que logo condenem este homem como trânsfuga, como
desertor. Em minha inteligência, porém, a firmeza de caráter tem outra acepção
muito diversa. Chamarei de caráter aquele que rende culto aos princípios só por
amor aos princípios; e que, por conseqüência, quando a observação, o estudo, a
experiência mostram que esses princípios devem ser modificados, que alguns
deles devem ser renunciados em obséquio à verdade, não hesita em sacrificar o
erro, em lugar de persistir, mantendo opiniões errôneas. (...) As ciências sociais,
mormente a política, estão ainda no seu berço (...). Filósofos, que viveram há
poucos anos, sustentaram que a história era o estudo mais desnecessário, sendo
hoje a opinião contrária geralmente seguida. Não há pouco que na Câmara de
França foi acusado Carlos Dupin, porque renunciou a uma das idéias emitidas em
uma obra sua, e o que respondeu este respeitável sábio? Que aproveitava a ocasião
para declarar que a sua vaidade não chegava ao ponto de sacrificar a verdade ao
ridículo orgulho de ser coerente” (VASCONCELOS, 1999:238/239).
condição de governo dos espíritos, forma de governo onde a sociedade era governava por sua
própria elite intelectual (ROSANVALLON, 1985:279).
Pela leitura de discursos parlamentares, pela importação das obras políticas e pela
circulação do Diário de Debates e da Revista dos Dois Mundos, órgãos de difusão do
liberalismo doutrinário, a influência do conservadorismo francês foi imensa no Império
americano até pelo menos a década de 1870. Não só o Brasil, em todo o mundo, foi o maior
assinante estrangeiro daquelas duas revistas (CALMON, 1937:23), como as obras de defesa
do orleanismo eram disputadas com avidez pelos políticos saquaremas. Numa carta datada de
1843, o conservador Justiniano José da Rocha se jactava de ter emprestado as obras do
historiador orleanista Raymond Capefigue (1801-1872) a toda a cúpula do Partido
Conservador, ávida para nelas encontrar melhores justificativas intelectuais para a repressão
empreendida no ano anterior contra os revoltosos liberais paulistas e mineiros:
Andrada Machado, em 1838: “Uma nação instruída não é governada senão da forma que ela
quer, e, por conseqüência, a política que segue a câmara é nacional, é a política da parte
ilustrada da Nação, não da força bruta, que nunca pesou na balança política, mas da força
intelectual. É ela que nos indica a política que quer seguir” (ACD, 18/05/1838).
51
Perspectiva semelhante é a de Ilmar Rohloff de Mattos. Ele afirma que, para os conservadores, o papel da
Coroa era o de “ordenar as grandes famílias, mesmo que em certos momentos isto signifique colocar-se contra
alguns dos privilégios e monopólios que os distinguiam. A Coroa procura proceder a esta ordenação por meio de
políticas diversas, como uma política de terras; uma política de mão-de-obra (...); uma política tributária; uma
política monetária e uma política creditícia; a elas se somava uma ação repressiva que, lançando mão dos corpos
policiais e das guardas nacionais, buscava conter as insurreições negras e as agitações da malta urbana”
(MATTOS, 1986:85).
O Momento Monarquiano 205
Para Paulino José Soares de Sousa (1807-1866), os ideais de justiça eram impotentes
quando desacompanhados da possibilidade de coerção; por isso, as providências “fortes,
violentas” se justificavam “em circunstâncias muito arriscadas”; num “estado revolucionário”
como aquele que se apresentara em 1842. Mais tarde, ele escreveria de modo mais sintético:
“O essencial (...) é ter força. O direito é o menos” (In: SOARES DE SOUSA, 1944:563). Esse
realismo conservador, que reconhecia a indispensabilidade de mecanismos de suspensão das
garantias, quando se apresentassem perigos, para os quais a normalidade normativa não
oferecia remédio, não pode ser confundido com defesa do arbítrio ou do golpismo, nem era
um julgado expediente ordinário de governo contra a oposição. O golpismo e o arbítrio eram
associados pelos saquaremas, ao contrário, aos seus adversários liberais ou luzias que,
periodicamente pegavam em armas contra a ordem constitucional – como provavam os
precedentes da abdicação, a 7 de abril de 1831; do golpe de 30 de julho de 1832 (golpe
abortado, lembre-se, pelo conservador Carneiro Leão), do golpe da maioridade de Pedro II,
em julho de 1840; e enfim, as chamadas Revoluções Liberais de 1842. A severidade na
repressão promovida pelos conservadores precisava se circunscrever sempre aos limites
previstos pela própria ordem constitucional para a suspensão das garantias constitucionais. Do
mesmo modo, ele não poderia ser invocado a torto e a direito, sob pena de comprometer a
legalidade e as instituições. Era o que explicava Eusébio de Queirós (1812-1868) à Câmara,
em 1851:
mas encontra nelas também limites que não pode transpor” (In: NABUCO,
1997:129).
Parlamento “aquela saudável influência que é indispensável para que haja acordo e as coisas
possam marchar” (ACD, 23/01/1843). Ou seja, de nada adiantavam governos de mandato
fixo, como defendiam então os liberais, se o desprestígio parlamentar os impediam de ser
eficazes. No contexto regencial, em que o acirramento das disputas prejudicava o combate à
desordem, para Vasconcelos o governo parlamentar eliminaria os contínuos desencontros com
as câmaras, representativas de grupos e interesses diversos, para fortalecer o Executivo. Por
isso mesmo propôs a criação formal do cargo de Presidente do Conselho de Ministros quando
assumiu o gabinete do regresso, em 1837 (VASCONCELOS, 1999: 242/243; e 235). Ou seja,
o governo parlamentar era visto pelos saquaremas como um meio de aumentar o prestígio do
governo e não de enfraquecê-lo. Esta é a única explicação plausível para o fato de que a
consolidação do governo parlamentar brasileiro, na passagem da década de 1830 para a de
1840, tenha coincidido com o predomínio sistemático dos gabinetes sobre as sucessivas
legislaturas na Câmara. Já em 1843 se queixava um deputado: “Antigamente as câmaras eram
tudo, os governos sujeitavam-se a elas até no que não era de sua competência; mas hoje as
câmaras são nada; o governo é tudo... Não ouvimos senão – o governo exige – o governo pede
– o governo quer” (In: PINHO, 1936:90).
de contribuir para o seu bom crescimento e preservar seu patrimônio. Para isto, os
conservadores compensavam os eventuais excessos do governo parlamentar por uma
interpretação léxica ou literal do texto constitucional, como os coimbrões. Era o que queriam
geralmente dizer quando defendiam a “rigorosa observância dos preceitos da Constituição”
(In: BRASILIENSE, 1979:22).
O saquaremismo do Marquês de São Vicente foi corroborado depois por seu colega e
amigo Paulino José Soares de Sousa, já então Visconde de Uruguai, em sua obra Ensaio sobre
o Direito Administrativo. Embora concedesse às câmaras influência na formação e duração
dos gabinetes, Uruguai sequer menciona, no livro, a existência do Presidente do Conselho.
Para ele, a demissão do ministério ficava sempre a critério da Coroa, intérprete última da
conformidade ou não da política do governo com o interesse público. Na qualidade de chefe
do Poder Executivo, “o Imperador acompanha, discutindo, fazendo observações, cedendo até
certo ponto, ao movimento que as maiorias que dominam nas Câmaras imprimem aos
negócios, movimento que não deve contrariar, principalmente quando é conveniente e justo,
conforme a opinião nacional; e necessário para que o governo se mantenha, segundo as
condições do sistema representativo. Enquanto tais condições duram, portanto, o Imperador –
sempre como chefe do Executivo - fiscaliza, observa, dirige o Conselho”. No entanto,
“quando vê que o movimento que os ministros ou a maioria da Câmara dos Deputados
querem imprimir aos negócios vai além da justa meta; que vai causar sérios males difíceis de
remediar depois; que não é conforme a opinião nacional; que há desacordo entre as Câmaras e
o ministério; que os ministros responsáveis não têm mais a força necessária para gerir os
negócios com vantagem pública, o Imperador intervém como Poder Moderador, e restabelece
a ordem e a harmonia” (URUGUAI, 1960:268).
“Desde 1840, parece-nos, se tem querido inculcar que a Coroa perde de sua força
e dignidade sempre que se conforma com a opinião das Câmaras, assim na
organização como na dissolução dos Ministérios. Esta doutrina radicalmente
errônea a nada menos tende que a desnaturar sistema representativo, cujo regular
andamento exige essencialmente homogeneidade ação nos poderes que o
compõem. O direito de nomear e demitir ministros, conferido pela Constituição ao
Poder Moderador, não é absoluto, como nenhum outro; está subordinado na sua
aplicação a circunstâncias muito imperiosas, a essa necessidade de harmonia sem
a qual não há sistema, mas um jogo disparatado de potências que se cruzam, se
abalroam, se danificam mutuamente. Se cada um dos poderes que concorrem na
direção do Estado é perfeito quanto ao seu fim especial, limitado, não o é quanto
ao fim do sistema, que só pode ser conseguido pela reunião da ação combinada de
todos eles. (...) O governo monárquico representativo não é o governo de uma só
vontade, mas o governo da opinião legitimamente verificada; contida nos seus
excessos pela monarquia que, por via da dissolução e do veto, a refreia e lhe dá
tempo preciso de se ilustrar e tornar-se justa. (...) A conformidade portanto da
Coroa com as maiorias parlamentares é uma regra, e a divergência só pode ser
admitida como exceção instantânea que deve para logo desaparecer por via da
demissão do Ministério ou dissolução da Câmara temporária” (In:
MASCARENHAS, 1961:140).
Foi no interior desse consenso sobre o funcionamento das instituições que se travou o
debate político entre conservadores e liberais na segunda década do reinado de Pedro II, a da
maioridade (1840). Com efeito, por conta dos princípios que diziam representar, cada um dos
partidos interpretava de forma mais ou menos extensa o papel que cabia à Coroa exercer.
Lembro que o Partido Liberal foi formado em 1837 pelos moderados de movimento que
apoiavam a interpretação extensiva que as assembléias legislativas provinciais fizeram do Ato
Adicional às expensas da União. Depois da renúncia de Feijó, os liberais responderam às leis
O Momento Monarquiano 216
Constituição, porque o Sr. D. Pedro I não foi aclamado unanimemente” (OTONI, 1979: 170 e
254/255). Era o direito de insurreição contra a tirania, aliás, que justificava todos os
movimentos de sublevação por eles promovidos - nada menos que quatro em pouco mais de
dez anos (o 7 de Abril de 1831, o 30 de julho de 1832, o golpe da Maioridade de 1840 e as
Revoluções de 1842). Envolvido em todos eles, e bem que reconhecesse não se tratar de
“jurisprudência ordinária”, Otoni admitia abertamente o golpismo como técnica política.
“Pondo de lado questão de constitucionalidade (...), em certas circunstâncias e ocasiões pode
o executor das leis e da Constituição tomar sob sua responsabilidade o não proceder
inteiramente de acordo com a letra e mesmo o espírito da lei, quando motivos muito
poderosos justificam este seu procedimento” (OTONI, 1979:169). E acrescentaria: “A escola
do liberalismo verdadeiro é a escola da legalidade e da ordem bem entendida. Mas cumpre
confessar que circunstâncias se dão em que a letra da lei mata e o espírito vivifica” (OTONI,
1916:120/121).
“Guardar a Constituição não é observar sua letra e violar o seu espírito. Nela,
como em toda a letra, alguma coisa há sempre de indefinido e discricionário, que
o legislador confiou ao bom senso e à lealdade de quem as executa. As atribuições
de Sua Majestade estão marcadas na Constituição, onde se deixou ao seu
exercício uma liberdade bem entendida. Mas quer isto quer dizer que pode
prescindir do voto da Nação, das indicações do pensamento público, e ter
unicamente em linha de conta os seus sentimentos pessoais, ou os interesses e
preconceitos de sua Corte? (...) Sua Majestade não pode, em circunstância
alguma, sem arrogar-se um direito que não é o seu, escolher e impor a política,
que deve dirigir o Estado, nem levantar e fazer cair alternativamente os partidos
ao seu alvedrio. Lá isso é da privativa competência da Nação, a qual, delegando à
Coroa certos poderes, guardou para si o de indicar periodicamente por meio da
eleição qual o sistema porque entende dever ser regida, qual o partido mais capaz
de realizá-lo. Sua opinião simbolizada nos nomes próprios, que saem das urnas,
eis a lei suprema, a que nenhum pretexto pode dispensar a realeza, poder neutro e
imparcial, de cingir-se pontualmente. O governo do país pelo país está escrito em
cada artigo, em cada linha da Constituição; o que significa, em outros termos, que
ele não tem tutor” (INHOMIRIM, 1956:108/109).
Por outro lado, as posições conservadoras eram tão avessas às liberais, que Eusébio de
Queirós declarava que não havia país com partidos tão bem definidos quanto no Brasil52.
Inscrita na crítica do partidarismo e na apologia do chefe de Estado como um governante
imparcial e desinteressado, a retórica monarquiana espraiara-se para os moderados da
resistência durante o período regencial. Já em 1833 o deputado Honório Hermeto Carneiro
Leão (1801-1856), futuro Marquês de Paraná, sustentava que “a população habitua-se a não
ter fé nas instituições nem nos homens; habitua-se a considerar esta casa como arena, em que
os partidos encarniçados disputam o poder sem curar nem dos princípios, nem do bem do
52
Declarou Eusébio, em 1844, sobre os partidos: “Sua diferença de vistas e de opiniões se faz sentir nas mais
graves, como nas mais pequenas questões. Se olhamos a Constituição do Estado, ela é uma só, e entretanto como
a entendemos nós, e como a entendem eles ? A Constituição dá ao Poder Moderador o direito de dissolver a
Câmara; nós dizemos – a dissolução é uma atribuição do Poder Moderador; nós a respeitaremos, mesmo se for
empregado; e outra, nós não disputaremos sobre sua legalidade. Mas será assim que eles entendem a
Constituição ? Quando foi uma Câmara, que eles reputavam sua, dissolvida, julgaram-se com autoridade para
examinar se estava na letra da Constituição a maneira por que ela se dissolveu ! Gritaram que era dissolução
prévia, e que a salvação do Estado não a exigira. Quiseram julgar do que só o Poder Moderador compete julgar.
Não, nós nunca poderemos concordar com eles neste ponto” (ACD, 15/05/1844).
O Momento Monarquiano 219
país” (In: SOARES DE SOUSA, 1944:67). Essa visão foi corroborada no começo da década
seguinte, quando os debates sobre o restabelecimento do Conselho de Estado trouxeram
novamente à baila a questão da responsabilidade pelos atos do Poder Moderador. Em duas
oportunidades, os conservadores tiveram oportunidade de reiterar a visão monarquiana
coimbrã e de rejeitar, com ela, a tese de que o rei reinava, mas não governava. A primeira se
deu em maio, quando, explicando os motivos da queda de seu gabinete, Antônio Carlos
enunciou a tese de Thiers pela primeira vez. Ele foi imediatamente refutado pelo próprio
Carneiro Leão, para quem o monarca não deveria ser reduzido a um papel indiferente. O
Imperador era “o primeiro fiscal da conduta dos ministros. Chefe do Executivo, exercendo o
Poder Moderador, que tem pela Constituição uma influência mui grande, e deve mesmo vigiar
sobre todos os outros poderes, é sem dúvida que, quer na teoria, quer mesmo pelo nosso
direito público constitucional, deve ter uma grande influência sobre os atos da administração”
(ACD, 25/05/1841). E acrescentava, duas semanas depois: “Devemos beber as doutrinas
constitucionais, não do sistema representativo em geral, mas da nossa Constituição. Ora, no
sistema que a nossa Constituição admitiu, o Imperador é chefe do Poder Executivo. (...). É o
que se chama governar” (ACD, 12/06/1841).
“As minhas doutrinas são as doutrinas dos maiores liberais amigos da ordem e do
país; elas não têm o menor vislumbre de serem alguma coisa semelhante às
doutrinas do direito divino; a doutrina contrária tende a excitar os povos à
rebelião, só porque existe um ministério traidor. É sabido que pode ser traição
O Momento Monarquiano 220
para mim o que pode ser ato regular para outro: não pode haver governo
consolidado, ordem e paz públicas, onde semelhante doutrina for admitida, porque
se qualquer homem isoladamente pode julgar o governo traidor, e supondo mesmo
que o ato que o praticou não é legítimo, o pode logo considerar como governo de
fato, então debalde temos a lei de responsabilidade” (ACD, 9/7/1841).
vejo isto nas outras Constituições. Mas isto é um grande merecimento da nossa
Constituição, pois que tem aperfeiçoado assim os princípios dos governos livres.
Os nobres senadores que discrepam desta maneira de ver é porque estão imbuídos
nas doutrinas antigas (...), que não pode haver governo monárquico
representativo, sem que o monarca esteja a coberto pela assinatura de uma pessoa
estranha em todos os seus atos. É esta regra antiga, quando não havia Poder
Moderador”.
“Pode ser que, apesar de tudo isso, não consigamos o fim da instituição do Poder
Moderador, porque é da natureza não serem perfeitas as obras dos homens. Mas,
O Momento Monarquiano 222
tendo nós criado uma autoridade que se acha elevada a uma tão alta posição; que
está cercada de tantas honras e regalias; que tem certo o estabelecimento de sua
família; que não depende de alguém; que, além disso, tem o socorro de
conselheiros que lhe damos, para iluminar a sua razão; podemos desconfiar que
esta autoridade tenha essa espécie de arbítrio ou ditadura - e só nos casos
marcados, quando sejam urgentes? Decerto que não. Para isto, não depende de
alguém; porque, se depender, então não é uma autoridade independente que possa
fazer executar os seus atos (...). Logo, para que a teoria seja exata, se acaso se
admite esse poder político, chamado Moderador, é preciso que ele esteja
independente da ação de quem quer que seja, para que possa moderar (...) os
outros poderes do Estado. Do contrário, é uma verdadeira ilusão, e não poderá
evitar crises” (ASI, 08/07/1841).
ação e pela freqüente prevalência dos interesses mais imediatos de grupos locais (MATTOS,
1986:99)53.
53
Um dos ministérios liberais justificou seu imobilismo a partir de uma curiosa “política da inércia”, necessária
à estabilidade do país. Ministro da Guerra do primeiro gabinete do Visconde de Macaé (1799-1850), o deputado
Jerônimo Francisco Coelho (1806-1860) argumentava que a inércia era “uma lei que rege os corpos, pela qual
eles deveriam conservar perfeitamente no estado em que fossem postos; se um corpo for posto em movimento,
ele estará perpetuamente em movimento pela lei da inércia, se alguma coisa não o embaraçar, da mesma sorte se
for posto em repouso, neste estado permanecerá perpetuamente pela mesma lei da inércia; portanto, a política de
todos nós é a política da inércia” (ACD, 20/05/1841). Enfurecido, um liberal da velha guarda denunciou a
política do próprio partido como “inábil, imbecil, incapaz de governar uma nação ilustrada, uma nação livre”
(ACD, 23/05/1845).
O Momento Monarquiano 224
“A palavra partido, no meu sentir, implica com patriotismo; por isso que este
requer união de sentimentos a favor do país, e por conseqüência, em apoio das
suas instituições e do fim a que todos tendem, o bem da Pátria ou o interesse
proporcional de todos; e o partido exige dedicação pessoal e submissão particular
àquele que reparte o que os partidistas partem, e por conseqüência consiste em
dividir e separar os interesses, que aliás devem ser comuns, para o tornarem
exclusivos. Assim, chefes de partido, em meu entender, não são senão aqueles que
mais atrevidos ou mais ambiciosos sabem angariar clientela, ou são prepostos
como diretores e distribuidores desses interesses exclusivos; e partidistas aqueles
que por diversas razões dão a sua adesão antecipada e cega a esses chefes de quem
esperam graças e favores em recompensa do seu zelo e cooperação. Daqui se vê
que uma tal associação é uma verdadeira conspiração contra o Estado, que
devendo ser superior a tudo, vê-se embaraçado nesse conflito (...) ou é forçado a
conformar-se com as suas paixões, ficando os interesses da razão e da justiça
esquecidos e sacrificados (...), de sorte que a sociedade acha-se governada por
uma verdadeira oligarquia” (ALBUQUERQUE, 1854:111).
Outra força com que podia contar o gabinete para garantir a maioria parlamentar era a
Guarda Nacional que, reformada em 1850, passara para o comando do Ministro da Justiça e
servia para recrutar os adversários do governo. Por fim, também como na França orleanista, a
ausência de uma legislação que incompatibilizasse o funcionalismo público com o exercício
do mandato parlamentar permitia aos conservadores gozarem, tal como os coimbrões e
realistas, do apoio maciço da burocracia e, em especial, da magistratura, que dependia do
governo. Metade dos deputados gerais eleitos em 1850 era de burocratas, e mais de terço,
juízes. Do ponto de vista partidário, à exceção de um único deputado, a Câmara era toda
conservadora. Os chefes saquaremas entendiam que, naquele momento pelo menos, para
enfrentar o facciosismo das oligarquias liberais, a prioridade passava por fortalecer o governo
com bancadas disciplinadas. Era o que em 1852 reconhecia Paulino em carta a Firmino
Rodrigues Silva: “A oposição disputou aqui a eleição com grande fúria, e com grandes meios.
Batemo-la completamente porque estamos no governo. Se ela estivesse no governo teria
vencido completamente. Assim está o país, e assim é o sistema” (In: MASCARENHAS,
1961:172). Assim, se por um lado os saquaremas homenageavam as luzes do século,
expressas nos manuais de governo parlamentar; por outro, curvavam-se à realidade política,
forjando bancadas predispostas à situação e delas afastando os que, de braços com os
potentados rurais, teimavam em ameaçar a ordem com seu golpismo crônico.
rural imperava sem contraste, trazê-la, todavia, para o mundo regulado pelo Estado nacional.
Não por acaso, os fazendeiros das outras províncias consideraram o projeto lesivo aos seus
interesses - especialmente aqueles situados em zonas de expansão agrícola, que desejavam
reproduzir em seu proveito o ideal da sociedade excludente e escravocrata (FRAGOSO,
2000:151). Ainda que não passasse de posseira, a aristocracia provincial se julgava ipso facto
proprietária da terra e se recusava a abrir mão de expandi-la à custa dos posseiros menores e
das terras indígenas. Por isso, futuros liberais da Revolta da Praieira como Joaquim Nunes
Machado (1809-1848) e Urbano Sabino Pessoa de Melo (1811-1870), rejeitavam como
atentatórias à propriedade todas as medidas saquaremas que implicavam reconhecer o Estado
como autoridade disciplinadora do mundo rural (CARVALHO, 1996: 310).
Por seu turno, frente à crise política gerada pela pressão inglesa, foi a razão de Estado
que justificou a decisão de decretar de vez o fim do tráfico negreiro, contrariando as medidas
protelatórias dos liberais, que propunham, como o Visconde de Albuquerque, negociar uma
cota fixa de importação lícita de africanos com a Inglaterra, e como Paula Sousa, para quem
não seria possível viver sem o tráfico de um dia para o outro e por isso propunha mais uma
vez adiar a decisão (ASI, 1º e 2/07/1850). O pensamento e a iniciativa da abolição couberam a
Paulino José Soares de Sousa, que se dizia movido por razões “de moral, de civilização, da
nossa própria segurança e de nossos filhos”. Como o Marquês de Caravelas, o futuro
Visconde de Uruguai entendia que, posto que pudesse “de produzir algum abalo”, a extinção
do tráfico poderia ser minorada pelo trabalho livre e pela imigração; que a medida constituía
uma razão de Estado e, como tal, estava acima de considerações legais e do discurso de
resistência à inovação. “Razão de Estado. Era preciso atacar vigorosamente o tráfico. A
morosidade e o rigor das formas judiciárias tornavam os tribunais judiciários menos próprios,
para conseguir esse fim com o vigor e presteza que convinham” (URUGUAI, 1960:72) 54. Foi
ainda a razão de Estado que desencadeou a inconstitucional coação exercida pelo governo
contra o Judiciário para assegurar a condenação dos traficantes e fazendeiros recalcitrantes,
contra o tráfico de influência e as relações de clientela entre a aristocracia rural e a
magistratura local. Capitaneado por Eusébio de Queirós, ministro da Justiça, o gabinete
conservador pressionou os desembargadores da Relação de Pernambuco por meio de
54
Numa consulta ao Conselho de Estado acerca do cabimento ou não de recurso de sentença condenatória de um
escravo à morte, por homicídio consumado, Uruguai entendeu não apenas que o escravo era um homem como
qualquer outro, como que, por isso, tinha ele os direitos de gozar das garantias processuais correspondentes.
“Executar uma sentença de morte em um homem, porque enfim o escravo é homem, por uma sentença proferida
em processo verbal e sumaríssimo; por um juiz singular, sem recurso algum, é o ato mais repugnante e a
disposição que o consagrasse seria indigna de aparecer entre as leis de uma Nação cristã e civilizada” (ACE,
16/12/1854).
O Momento Monarquiano 229
aposentadorias, remoções e outras sanções para obrigá-los a pôr de lado o compadrio, dando
satisfações à opinião pública e ao governo britânico (PINHO, 1936:213/214).
Era o caso, por exemplo, de um deputado conservador que já “censurava sem ciúmes a
preferência dada à Corte, ao município neutro, na distribuição dos favores e serviços
custeados pelos cofres gerais” (PINHO, 1936:337). Uma vez que as elites das demais
províncias também tinham o direito de se fazer representar junto ao governo geral, era preciso
que se lhes restituísse a influência eleitoral que estava concentrada nas mãos dos
governadores nomeados. Esse antagonismo se revelava nas cartas trocadas entre Monte
Alegre e Nabuco de Araújo, então presidente de São Paulo. Enquanto o Presidente do
Conselho lhe instruía para que fizesse o possível para garantir a vitória do governo naquela
província, o governador lhe respondia: “O princípio da autoridade vale tudo no Brasil, pode
muito aqui, mas V. Exa. há de concordar comigo que não é tão absoluto esse pressuposto que
chegue à imposição e ao exclusivismo, até o ponto de alienar-se o governo de todos, de
prescindir de todos” (NABUCO, 1997: 134). Num discurso conhecido como A Ponte de
Ouro, Nabuco de Araújo deu na Câmara publicidade a esse ponto de vista:
O desafio dos conservadores moderados foi mal recebido pela velha guarda - a esta
altura, já alcunhada de puritana, vermelha ou emperrada. Os ortodoxos combatiam a idéia de
conciliação, entendendo que o antagonismo político era positivo e não poderia ser eliminado.
O Momento Monarquiano 231
“Não me consta que haja algum país no mundo regido pelo sistema representativo, cujos
gabinetes tenham sabido conciliar os interesses de todos os cidadãos e o antagonismo de todas
as opiniões políticas”, afirmava Rodrigues Torres. “Vejo em todos eles, e em todas as épocas,
uma oposição mais ou menos veemente, mais ou menos numerosa” (In: PINHO, 1936:392).
Dado inarredável da política por conta do pluralismo da sociedade moderna, Paulino Soares
de Sousa também entendia, à maneira doutrinária, que cabia ao Estado receber a sociedade tal
qual ela era e com ela interagir a partir de seus próprios recursos intelectuais: “Conciliar é
fazer concordar pessoas divididas por opiniões e interesses. Há sempre na sociedade
interesses que não se pode fazer concordar; há sempre opiniões que não é possível homologar.
(...) Há na sociedade humana uma ebulição constante que tende a transformá-la. Não está no
poder do governo fazer a sociedade como ele entende; há de recebê-la tal qual ela é” (In:
SOARES DE SOUSA, 1944:571). Eusébio de Queirós também achava a idéia de fundir os
partidos era própria de quem não entendia “o mecanismo do governo constitucional” (ACD,
15/05/1844). Os saquaremas puritanos só admitiam a transação ou conciliação no plano das
idéias; nunca no plano das pessoas: como, no Brasil, a disciplina partidária só podia ser
mantida do alto, o baralhamento do quadro partidário enfraqueceria a disciplina e rebaixaria o
padrão do debate político. Daí que o futuro Barão de Cotegipe, deputado João Maurício
Wanderley, afirmava esperar melhores resultados de uma luta menos pessoal, decorrente da
alternância dos moderados dos dois partidos no poder, do que de um governo de coalizão que,
neste caso, seria o mesmo logração (In: NABUCO, 1997:158).
I era qualificado como uma fase de combate ocasionado pela inexperiência dos partidos, ao
passo que o predomínio do movimento durante a Regência exprimira o triunfo da ação, isto é,
de da democracia sobre a monarquia. Marcado pelas leis que desconcentraram o poder contra
a Coroa e a Corte, esse empuxo no caminho do progresso trouxera, todavia, revezes à ordem
pública, ameaçada pela desagregação social e territorial. Daí que, face dos excessos da
liberdade, o regresso conservador representara a reação do princípio da autoridade. Justiniano
esperava que, ao garantir a lisura das eleições e uma resolução neutra dos conflitos
partidários, um Judiciário bem organizado pusesse fim aos efeitos deletérios do combate entre
a liberdade e autoridade (CARDIM, 1964:78). Seis anos depois o jornalista acrescentou uma
terceira parte denominada transação, possibilidade de síntese à luta entre a liberdade e a
autoridade, que visava a fazer a defesa da idéia de conciliação. Criticando os excessos dos
puritanos, Justiniano defendia em seu opúsculo um meio termo que revivificasse a sociedade
e as províncias, asfixiadas pela reação governamental – ainda que eventualmente discordasse
do modo como, na prática, a conciliação vinha sendo implementada por Paraná55. Um
governo de coalizão sob o predomínio conservador, adequadamente efetuada, no plano das
idéias, materializaria o compromisso entre os dois princípios e, por extensão, dos elementos
por eles representados. Mais do que retórica, o esquema de Justiniano entranhou-se na própria
concepção brasileira de se pensar o tempo político56.
55
Em seu artigo Ação, Reação e Transação: a pena de aluguel e a historiografia, Lúcia Maria Paschoal
Guimarães propõe abordar o opúsculo de Justiniano conforme o contextualismo de Quentin Skinner, chegando a
interessantes resultados. Embora discorde de sua hipótese de que o senador Nabuco de Araújo seja
possivelmente co-autor da obra – mesmo porque, como vimos, ele resultou da adição de passagens diferentes,
escritas em épocas diferentes -, é muito possível que, conforme a autora aventa, o conservador moderado, então
ministro da Justiça, tivesse suas diferenças em relação a Paraná e, por isso, tenha instigado Justiniano a elogiar a
conciliação como princípio, criticando porém a direção que lhe imprimia o Presidente do Conselho. As razões
dessa discordância talvez sejam aquelas constantes do discurso com que, na Câmara, Justiniano atacou Paraná –
a continuada tutela que o saquarema continuava a exercer sobre a economia: “Deixe o ministério na liberdade de
seus interesses, deixe a indústria na liberdade de seus cálculos, não apresente por toda a parte um contrato e um
subsídio; não faça regulamentos sobre regulamentos, contratos e mais contratos, ajustes e mais ajustes (...). Toda
a vez que o governo intervém e quer ser o tutor da indústria, expõe-se a gravíssimos riscos; é mau o governo que
muito quer governar...” (In: GUIMARÃES, 2007:80). Veremos que o cerne da crítica dos conservadores
moderados das províncias aos puritanos era exatamente o predomínio do político sobre o econômico, que
incomodava o setor produtivo.
56
Quando subiu o gabinete do marquês de São Vicente, quinze anos depois, escreveu o agora senador Nabuco de
Araújo: “O ministério de 19 de setembro não agradou nem a gregos nem a troianos, e a razão é de intuição – a
época não é mais de conciliação, mas de ação e reação” (In: NABUCO, 1997:814). A fórmula dialética proposta
por Justiniano tornou-se uma variante da filosofia da história liberal, a ponto de Joaquim Nabuco assinalar que o
pai tinha nela “a certeza, a força de uma lei política necessária, como para o positivista a lei dos três estados”
(NABUCO, 1997:814).
O Momento Monarquiano 233
Nesse embate, desempenhou papel central a vontade da Coroa; não à toa, ao fazer a
defesa da Conciliação, o Marquês de Olinda declarara que ela havia sido “proclamada do alto
do trono” para “fazer tender os espíritos para a concórdia e a moderação” (ACD, 6/5/1857).
Dom Pedro II via a Conciliação ou política de justiça e moderação como uma oportunidade
de reorganizar o sistema através de reformas que estabelecessem eleições honestas e
regulares; que espelhassem a vontade do eleitorado e criassem partidos mais voltados para o
progresso nacional. Para isso, era preciso atender às reivindicações da oposição, como uma lei
de organização judiciária que separasse as atribuições policiais das jurisdicionais (PEDRO II,
1956:17/20). Era uma empreitada para a qual os emperrados pareciam melhor aparelhados
que os liberais – eles, que nos últimos três gabinetes vinham comprovando sua larga
competência. Aquiescendo à vontade da Coroa, a retirada do primeiro ministério de
Rodrigues Torres, em 1853, permitiu chamar à Presidência do Conselho Honório Hermeto
Carneiro Leão, agora Marquês de Paraná. Oriundo da ala puritana dos conservadores, mas
afastado do último gabinete em missão diplomática, Paraná foi encarregado pelo monarca de
chefiar um ministério que, superando as antigas rivalidades partidárias, não comprometesse,
porém, a ascendência ideológica conservadora57. No fundo, o que o Imperador queria era a
continuidade da direção saquarema, aberta a administração, todavia, à participação de um
maior número de políticos representativos de outros interesses. Ou seja, direção saquarema
sem exclusivismo político. Não por acaso, enquanto Paraná apresentava às câmaras seu
programa conciliador, Pedro II aprimorava seu papel de inspetor do sistema constitucional,
distribuindo, no primeiro despacho coletivo, um código de conduta aos novos ministros: “O
57
Para Paraná, havia largo campo entre antigos conservadores e liberais para o entendimento político: “O
gabinete nada tem com o tempo passado, os seus membros não se consideram nem como luzias, nem como
saquaremas... Portanto, aqueles que se apóiam e compartilham o pensamento do ministério são ministerialistas,
qualquer que tenha sido, ou seja, o seu partido” (In: PINHO, 1956:357).
O Momento Monarquiano 234
ministro que se desculpar com meu nome será demitido”; “Nada se revelará do que se passar
em despacho”, “Nem se lavrarão decretos antes da decisão do Conselho”, “Todas as decisões
que não forem d’expediente serão tomadas em despacho; contudo o Presidente do Conselho
ou os ministros respectivos poderão tratar comigo individualmente de qualquer negócio” (In:
PINHO, 1956:355).
A década de 1850 foi assim o período áureo do modelo político saquarema e, com
ele, o do mais largo e incontestado prestígio político da monarquia entre as camadas
dirigentes do país. Não era apenas o senador Almeida e Albuquerque que entoava loas ao
Imperador. O mesmo fazia o ex-liberal Torres Homem, que agora se penitenciava por ter
atacado o “mais justo dos soberanos”; e o saquarema moderado José Antônio Saraiva que, em
apoio à Conciliação, declarava que “felizmente para o meu país, os ministros encontrarão
sempre acima de si uma influência salutar, sempre inclinada ao bem, sempre desejosa de
evitar o mal, porém bastante ilustrada para aceitar todas as observações justas, respeitar todas
as convicções sinceras” (In: NABUCO, 1997:388). Ao promover a Conciliação, José de
Alencar encetava “a grande obra da regeneração política do país” (ALENCAR, 1956:263). O
gabinete Paraná propôs medidas que devolvessem à aristocracia provincial parte do prestígio
perdido, isto é, que tirassem do governo geral o monopólio da representação nacional para
devolvê-la ao país ou à sociedade. A primeira visava a enfraquecer a máquina eleitoral do
governo, que lhe permitia formar bancadas parlamentares feitas de “deputados de enxurrada”.
A solução passava por dividir as províncias em distritos menores, os chamados círculos.
Elegendo cada círculo um deputado, longe da capital provincial, a reforma restabeleceria
parte da força dos proprietários locais, perdida com a política estatocêntrica dos saquaremas58.
A segunda medida da Conciliação passava pelo afastamento dos magistrados e outros
burocratas provinciais do Parlamento. Esse intento seria conseguido pelo estabelecimento de
incompatibilidades eleitorais entre a função legislativa e outras, de caráter judiciário e
administrativo. O último ponto da agenda era uma reforma judiciária que, separando as
funções policiais das judicantes, reduzisse a influência do Ministro da Justiça para reforçar o
terceiro poder como instância de resolução de conflitos nas localidades.
58
Esta não era pessoalmente a opção de Nabuco de Araújo, ministro da Justiça, que preferia um meio termo
entre influência governamental e local, na forma de círculos de três deputados - era Paraná quem, inspirado pelo
Imperador, queria “a fisionomia fiel e exata do país no Parlamento” (NABUCO, 1997:207).
O Momento Monarquiano 235
imediatamente sobre as massas, e muitas vezes esse seu predomínio não se funda
na estima (...), funda-se em atos de verdadeira prepotência, e quanto mais se
respeita o prepotente, capaz de cometer crimes; quanto maior é o cinismo com que
se apresenta à testa de miseráveis bandidos, tanto maior é o terror que ele inspira,
tanto maior é o domínio que exerce sobre as localidades. (...) Ora, admitindo as
eleições por círculos, estará livre a representação social de descer a esse grau da
escala social?” (In: PINHO, 1936:524/525).
59
Para a Escola das Contrapartidas Metálicas, a regulação do fluxo de dinheiro deveria corresponder a uma
contrapartida metálica (no caso, o ouro), devendo-se manter um equilíbrio entre a emissão de papel-moeda e o
movimento de entrada e saída daquele metal. Por seu turno, a Escola Bancária argumentava que o mercado
regularia o volume de papel-moeda: como este era conversível em ouro, não havia necessidade de regulamentar
sua emissão; a demanda seria atendida pela expansão dos depósitos bancários, prevenindo a conversibilidade
qualquer excesso. O debate terminou na Inglaterra com a vitória da primeira escola, quando uma lei de Robert
Peel (1844) reafirmou o padrão-ouro e converteu o Banco da Inglaterra num Banco Central. (POLANYI, 1980).
O Momento Monarquiano 239
desvairamento dos interesses individuais”. Se, no regime eleitoral antigo, “as chapas eleitorais
excluíam pessoa de inteligência e serviços notáveis”, essa exclusão se fundava ao menos “na
necessidade da defesa de um grande interesse coletivo, ou de um princípio”. Com o novo
regime eleitoral de círculo único, “a exclusão do merecimento, dos serviços, da virtude e do
patriotismo é aconselhada freqüentemente e, quase sempre, por uma estreita oligarquia
eleitoral, em nome dos interesses de família, da amizade particular, ou de qualquer sentimento
acanhado e adverso às conveniências do Estado” (In: PINTO, 1983:244/246). E o projeto dos
três círculos foi aprovado, contra a vontade dos conservadores moderados.
Entretanto, o fator que definiu a mudança do quadro partidário foi o retorno, nas
eleições de 1860, dos descendentes dos velhos liberais, de linguagem republicana clássica,
que haviam predominado durante a Regência no movimento e que se afastara da política em
1848. Apresentando-se na sua famosa Circular aos Eleitores de Minas como vítima de
perseguição, Teófilo Benedito Otoni (1807-1869) se iniciara politicamente com um amigo
que, “republicano convicto e intransigente”, traduzira o Contrato Social de Rousseau e o
fizera ler os “publicistas e filósofos da época de Voltaire, história da Revolução Francesa,
choix de rapports, opinions et discours do parlamento instalado em 1789” (OTONI, 1983:28).
Com esses rescaldos da tradição republicana clássica, Teófilo Otoni afirmava seguir “a praxe
dos antigos” ao explicar os atos de sua carreira pública aos eleitores e sublinhar a virtude e a
modéstia de sua vida privada no campo – quando, ao contrário, a Corte era uma cidade do
vício e da corrupção, uma “Babilônia”. De volta à política, ele retomava o mesmo discurso da
década de 1840, resumido a quatro pontos: a defesa do movimento de 7 de Abril de 1831 que,
frustrado pelos moderados, objetivara o “estabelecimento do governo do povo por si mesmo,
na significação mais lata da palavra”; o elogio do Ato Adicional, estragado depois pelas leis
regressistas; a crítica à vitaliciedade do Senado e do Conselho de Estado; e, por fim, a defesa
assumida da “eleição do campanário”, ou seja, da lei de círculo único promovida por Paraná.
Sempre que podia, Otoni atacava furiosamente a oligarquia saquarema - “grupo de homens
que associaram a sua influência e a sua inteligência, para explorar em proveito próprio o
Segundo Reinado” - e o governo pessoal do Imperador. Para tanto, desqualificava as
expressões monarquianas incrustadas na Constituição: “Moderador, Defensor Perpétuo,
chave da organização política, são palavras sesquipedais, que às vezes têm préstimo nas
circunstâncias em que são inventadas, e que são nulas em tempos normais” (OTONI, 1916:57,
59, 69, 247, 154, 89).
O Momento Monarquiano 240
Alertados pelo ressurgimento da esquerda liberal, com que não podiam nem queriam
se confundir, mas incapazes de se reconciliar com a direita puritana; temerosos de perderem
espaço como alternativa de poder, os conservadores moderados resolveram formar um partido
de centro, a Liga ou Partido Progressista, que daria continuidade ao espírito da Conciliação.
Em carta a Saraiva, Nabuco de Araújo frisava a necessidade de um partido centrista,
monarquista e progressista: “Os vermelhos se constituíram em consistório e dispõem como
querem do governo, que os vai acompanhando como eles e para onde o levam. Se o partido
popular se não organizar como convém, a situação correrá para o Otoni, e não haverá meio
termo: ou a oligarquia ou a revolução” (In: NABUCO, 1997:419). Ao se interporem entre a
“oligarquia” saquarema e a “revolução” dos históricos, os progressistas representariam o
equilíbrio da autoridade ou ordem e de liberdade ou progresso. Assim era que Nabuco de
Araújo elevava à categoria de doutrina a tese que embasara a Conciliação – a do anacronismo
O Momento Monarquiano 242
as rédeas do Estado para redefinir a regulação do social pela economia. Daí que o programa
do novo partido enumerasse como prioridades: primeiro, a “regeneração dos sistemas
representativo e parlamentar, pela sincera execução e amplo desenvolvimento do dogma
constitucional da divisão dos poderes políticos para que não sejam uns absorvidos ou
anulados por outros”; segundo, a “defesa dos direitos e interesses locais da província e do
município, com a sincera efetiva execução do Ato Adicional, a descentralização
administrativa necessária a comodidade dos povos”; terceiro, a reforma judiciária frustrada
sob Paraná e, por fim, a restrição da jurisdição administrativa em matéria penal e relativa à
propriedade privada (In: BRASILIENSE, 1979:26/29). No plano econômico, avultava no
programa progressista a “realização prática da liberdade individual em todas as suas
relações”, ou seja, a substituição do dirigismo estatal pelo liberalismo econômico, sobrepondo
a livre iniciativa à tutela governamental. Tratava-se, em síntese, de renovar mais uma vez o
programa brasiliense - submeter o político ao econômico, o Estado à sociedade civil, o
governo nacional à aristocracia provincial.
Em 1846, Thiers voltou à tribuna para criticar o Rei, lembrando que, assim agindo, ele repetia
os mesmos erros que haviam ocasionado a queda de Carlos X.
“Eis o que fizeram todos os povos, com a diferença de nome, que muda com os
tempos e as nações: nomeia-se um Rei, para que não haja um usurpador. Mas as
nações ilustradas não podem ser governadas como os Estados da Ásia. Cumpria
prevenir os inconvenientes do direito de sucessão (...). Para prevenir esse
inconveniente, imaginou-se um sistema tão prudente como simples, o qual
consiste, em todas as constituições representativas, em colocar homens seriamente
responsáveis ao lado desse Rei, com a realidade e as aparências do poder. (...)
Saímos da Restauração com esta convicção profunda; de que era necessário que a
realeza não se comprometesse nas lutas do governo, aparecendo nelas o menos
possível. (...) Aos olhos de todos os homens sérios, sinceramente amigos da
monarquia constitucional, o sistema é tanto mais verdadeiro, quanto os ministros
são realmente encarregados do exercicio do poder” (In: URUGUAI, 1960:315).
O estopim imediato do debate sobre o Poder Moderador foi o fato de não ter o
Imperador escolhido Otoni senador por Minas Gerais, embora tivesse sido o mais votado da
lista tríplice. Exaustivamente discutida pelo Jornal do Comércio, o Regenerador, o Correio
da Tarde, o Correio Mercantil e o Diário do Rio de Janeiro, a questão da existência ou não
de limites democráticos à prerrogativa do Poder Moderador, que preservava o governo misto,
logo cedeu depois espaço à velha problemática da referenda ministerial nos atos daquele
poder. Em julho daquele ano, veio a lume um panfleto anônimo intitulado Da Natureza e dos
Limites do Poder Moderador. Citando Blackstone, Macauley, Thiers e Mill, seu autor se valia
de sutilezas da hermenêutica para sustentar que deveria ser dissipada a distinção
constitucional entre ser chefe do Executivo, e puro e simples titular do Moderador, haja vista
que o Imperador era encarregado de ambos. A aparente força adquirida pelo monarca por esse
O Momento Monarquiano 245
raciocínio, que unificava em pé de igualdade ambos os poderes em suas mãos, não passava de
artifício para estender ao Poder Moderador o princípio da responsabilidade ministerial e, com
ela, a referenda prevista pela Constituição exclusivamente para os atos do Executivo. Punha-
se assim em prática a hermenêutica dos liberais da esquerda, para quem, sempre que a
literalidade dos enunciados normativos resultasse em práticas contrárias à sua doutrina, seus
adeptos deveriam, ao invés de alterá-las, contornar o obstáculo, interpretando-as por um
critério evolucionário que, contrastando com o legicentrismo da tradição francesa, era
axiologicamente orientado para o futuro.
Depois de apagar a diferença entre os dois poderes, o panfleto continuava com uma
banal repetição da teoria das monarquias constitucionais de que a inviolabilidade do monarca
levava à necessidade de que os ministros de Estado referendassem indistintamente todos os
seus atos. É que nas monarquias parlamentares, explicava o autor, a política seguida era
aquela escolhida pela maioria da Câmara dos Deputados que decidia da formação e da
demissão dos gabinetes, passando o Parlamento à condição de única fonte reconhecida do
governo legítimo. Para o autor do panfleto, a tese de Francisco Carneiro de Campos, segundo
a qual a subscrição ministerial que dos atos do Poder Moderador servia somente para
confirmar a veracidade da assinatura imperial, teria “o duplo inconveniente de descobrir a
Coroa e rebaixar o ministério”. E explicava: “atestar que uma assinatura é efetivamente da
Coroa mais parece próprio de tabelião que de um funcionário da ordem e categoria de um
ministro e secretário de Estado nas monarquias constitucionais” (GÓIS E VASCONCELOS,
1978:38). Somente circunstâncias extraordinárias permitiam a autonomia da Coroa, exigindo
a dissolução da câmara ou a demissão do gabinete. Mas mesmo esta exceção, permitida pelo
autor, era mais aparente do que real. Primeiro, porque a decisão do monarca continuava
sujeita ao crivo dos ministros. Segundo, porque o autor do panfleto negava que ficasse sujeita
unicamente ao juízo discricionário do Imperador a verificação das hipóteses de “salvação do
Estado”, requisito para a decretação de dissolução da Câmara. Ao revés do que rezava a
cartilha do Marquês de Caravelas, para o autor do opúsculo a expressão “salvação do Estado”
deveria ser interpretada restritivamente; abarcando apenas ameaças à ordem pública de
gravidade equivalente àquelas que autorizavam a decretação do estado de exceção - ou seja,
rebeliões ou invasões estrangeiras.
ligueiros, como Saldanha Marinho (1816-1895), Francisco José Furtado (1818-1870) e José
Bonifácio o Moço (1827-1886) – porque sobrinho do tio homônimo -, Zacarias defendeu as
idéias de sua brochura durante três dias, sob o bombardeio inclemente dos puritanos. O
sucesso da estratégia animou a oposição: quando a brochura ganhou uma edição revisada e
ampliada, contendo tréplicas aos conservadores, o histórico Otoni sustentou que, no Brasil, a
monarquia ainda nomeava e demitia ao seu bel prazer, quando já estava superada na Europa a
compreensão do governo representativo como monarquia constitucional. Em seu lugar, era
preciso observar as práticas da monarquia parlamentar, na qual a formação do governo
dependia somente do Parlamento (OTONI, 1979:508). Noutra frente, a fim de enfraquecer o
Senado, onde os saquaremas tinham maioria, Nabuco de Araújo aduzia que apenas a câmara
baixa podia influir na formação e na queda dos governos: “O Senado não pode fazer política
(...), não se pode envolver na torrente das parcialidades militantes, sem provocar conflitos
com a Câmara dos Deputados, sem derrogar o princípio conservador que o coloca entre a
coroa e o povo, entre imobilidade e o progresso, entre a ordem e a liberdade” (In: NABUCO,
1997:432) Zacarias explicaria de modo similar a função da Câmara Alta: “O Senado,
senhores, é um corpo conservador, mas não de conservadores; isto é, tem por fim, segundo a
Constituição, pôr embaraço aos ímpetos da opinião pública irrefletida, impedir o choque entre
o elemento permanente e o elemento popular de nossa organização política; o Senado é a
rêmora que faz parar a marcha precipitada de um navio do Estado na carreira de um progresso
mal entendido” (GÓIS E VASCONCELOS, 1979:203). Faltava apenas que um deles repetisse
o mote de Thiers; e foi o senador Nabuco de Araújo quem tomou a iniciativa.
Do exame crítico da herança colonial, Tavares Bastos passava à sua segunda idéia: a
ascendência da ideologia monarquiana era a responsável pela continuidade do caráter iliberal
e do atraso da sociedade brasileira. As câmaras não infundiam respeito, os ministérios não
faziam maiorias e não havia político independente do governo. O responsável por esse estado
de coisas era o “sistema seguido, compacto, invariável” de “onipotência do Estado, e no
Estado, a máquina central, e nesta máquina, certas e determinadas rodas que imprimem
movimento ao grande todo”. Versão atualizada do despotismo administrativo, por conta do
“perniciosíssimo costume de imitar a França em tudo”, os gabinetes saquaremas haviam sido
“herdeiros dos bem-aventurados ministros do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”.
Estacionado nas doutrinas de Montesquieu, o modelo econômico conservador se expressava
pelo nacionalismo, pela regulação administrativa e pelo estatismo econômico, equiparado por
ele ao mercantilismo; à “política desmoralizada de Luís XVI, de Cromwell, de D. Manuel, ou
de Carlos V”. Semelhante “governo de retardo” tornara a imoralidade “tradicional em nossa
raça”, com seu “espírito tímido, chinês, preguiçoso, tardio, inimigo da novidade, descansado e
comodista”. Fundado para reagir à estagnação e ao marasmo, o Partido Progressista pretendia
superar as antigas lutas partidárias por meio de uma síntese que, aproveitando o crescimento
da esfera pública, imprimisse movimento e progresso ao país (TAVARES BASTOS, 1975:
187, 12, 264, 241, 66).
autêntico modus vivendi do Antigo Regime que persistia pela regulamentação contínua do
político e do econômico no interior do governo constitucional e representativo, sujeitando o
indivíduo ao Estado: “Nada é mais absurdo, com efeito, nada entorpece mais o progresso de
um povo, nada compromete a sua dignidade e deprava mais o seu caráter, do que essa
pretensiosa arrogância com que o sistema centralizador fere de impotência os inferiores, isto
é, o país, para só reconhecer sabedoria e perspicácia em alguns indivíduos elevados aos
empregos supremos” (TAVARES BASTOS, 1975: 259). Ao esmagar a livre iniciativa
provincial para atrair as melhores cabeças, a centralização exercida pela Corte subjugava a
sociedade, emancipava a burocracia da cidadania e inchava uma máquina pública já
ineficiente. Era ela, pois, a responsável primeira pela “moléstia endêmica” do Brasil - a falta
de iniciativa, independência e responsabilidade (TAVARES BASTOS, 1975: 25). O meio de
que a burocracia da Corte se valia para melhor oprimir as províncias consistia na justiça
administrativa, “invenção monstruosa” do despotismo francês com que Pimenta Bueno e o
Visconde de Uruguai queriam galvanizar a hegemonia conservadora (TAVARES BASTOS,
1975: 42).
A reforma política defendida pelo deputado alagoano não era, todavia, o eixo de suas
reflexões; ela era, digamos, uma superestrutura das reformas socioeconômicas – estas sim, o
coração do seu ideário. Para Tavares Bastos, a modernidade passava pela instauração de
mecanismos que permitissem à sociedade se regular pela economia. As reformas políticas não
passavam de meios para remover mais prontamente as estruturas do absolutismo que ainda
entravavam as forças do mercado. “É preciso convencermo-nos de que o povo deste país está
peado. O governo é tudo, o povo é nada. A lei permite-se intrometer-se em tudo, à iniciativa
particular consente-se o menos possível. (...) É necessário, ao invés de comprimir, alargar,
fomentar, deixar correr desimpedidas as fontes vivas do trabalho, da riqueza, da produção”
(TAVARES BASTOS, 1975:224). Por isso, ninguém resgatou com tanta fúria o discurso
brasiliense de prevalência do econômico sobre o político, da sociedade sobre o governo, da
província sobre a capital; era preciso que o governo deixasse que a sociedade se emancipasse
dele. Ao invés de condenar o conflito como manifestação do particularismo, o Estado
O Momento Monarquiano 251
Dada sua condição americana, o exemplo a ser emulado pelo Brasil em matéria
socioeconômica não era a Inglaterra, mas os Estados Unidos, “civilização admirável, de uma
prosperidade inaudita, de uma energia inabalável, de uma audácia e de uma fé de que não
existe exemplo em outro país” 60: Á maneira de Richard Codben, Tavares Bastos combatia o
desperdício das despesas públicas, a carga tributária excessiva e o inchaço da burocracia. Seu
patriotismo consistia “em estudar os meios de felicitar o povo, de dar-lhe ao barato, de tornar-
lhe a vida cômoda, de fornecer-lhe os meios de evitar a miséria, de derramar, enfim, a
abundância pelos campos e pelas cidades, e, com a abundância, o contentamento, a instrução,
a piedade e dos bons costumes”. No entanto, ele não cria que, imbuído dos vícios da cultura
ibérica, o povo brasileiro estivesse sociologicamente à altura do liberalismo; condenado
irremediavelmente pela herança maldita da colonização, o brasileiro não tinha como se livrar
sozinho de sua “veste portuguesa”. Para tanto, era preciso alterar a morfologia do povo por
um transplante cultural, favorecendo a vinda das “raças viris do norte do globo”: alemães,
ingleses e irlandeses deveriam atravessar o Atlântico para operar, pelo “cruzamento das
60
“Sou um entusiasta frenético da Inglaterra, mas só compreendo bem a grandeza deste povo quando contemplo
a da república que ela fundou na América do Norte. Não basta que estudemos a Inglaterra; é preciso conhecer os
Estados Unidos (...) Queremos chegar à Europa? Aproximemos-nos dos Estados Unidos” (TAVARES BASTOS,
1975: 242). A visão da política americana de Tavares Bastos era perfeitamente contrária à dos conservadores,
que a consideravam uma ameaça pelo seu expansionismo militar, sobretudo no que se refere à Amazônia. Para o
deputado alagoano a influência americana era civilizadora; era “erro acreditar-se que todo americano é
flibusteiro, que a divisa política da pátria de Washington, Franklin e Jefferson é a invasão ou a conquista”
(TAVARES BASTOS, 1975: 197).
O Momento Monarquiano 252
No entanto, mais do que as idéias em si mesmas, o desafio dos que estudam sua
história fora dos países centrais consiste em redimensionar a sua potencialidade nos lugares de
sua recepção e indagar quem pode ser o seu público-alvo, quais efetivamente o são e por quê.
Numa sociedade agrária de baixíssima densidade demográfica, alta concentração fundiária e
produção escravocrata; onde a capilaridade do Estado era quase nenhuma e cuja renda, por
isso mesmo, dependia de impostos recolhidos pelas alfândegas das cidades marítimas; os
públicos-alvos de um programa de preeminência do econômico sobre o político só poderiam
ser a aristocracia rural e o grande comércio exportador (havia também, é certo, um setor
financeiro nascente, mas este era ligado ao Estado e à aristocracia fluminense). Tavares
Bastos sabia disso e por isso lhes acenava com a exclusiva vocação agrícola do Brasil e com a
promessa de redução dos custos de produção e de investir as câmaras municipais de maiores
poderes. Um dos indícios dessa vocação “essencialmente agrícola” do país, na qual o teórico
liberal acreditava, era justamente a predileção nacional pela vida rural - a única, segundo ele,
em conformidade com a vocação do brasileiro para fidalgo. “O brasileiro, que pode, é
agricultor; vai exercer a única verdadeiramente nobre profissão de terra. Os empregos servis
(...), ele os pospõe. Esse é o orgulho nacional. Recordai-vos dos ares senhoria e de certas
maneiras fidalgas do grande proprietário: eis o tipo do brasileiro rico” (TAVARES BASTOS,
1975: 153). E acrescentava: “Os brasileiros têm mais em que empregar-se, e são realmente
muito poucos para a sua grande profissão de proprietários da terra, que os ingleses tão
propriamente qualificam por esta palavra nobre: landlords” (TAVARES BASTOS, 1975:
160). Sem talentos para outros misteres, o Império deveria abandonar as pretensões industriais
que justificavam o monopólio e o protecionismo dos saquaremas e se conformar com seu
“modesto papel de plantadores de café e cana-de-açúcar, de fumo e algodão” no mercado
mundial.
levou a empolgar o poder em sucessivos gabinetes, que conseguiram a adesão dos liberais
históricos e mantiveram os conservadores ao ostracismo pelos anos que se seguiram. Assim,
ao reassumir o governo, dois anos depois, Zacarias reapresentou o mesmo plano: do ponto de
vista político, aliviar a pressão do centro sobre as localidades e restabelecer a influência da
aristocracia em seus redutos eleitorais (pela reforma das leis conservadoras de 3 de Dezembro
e da Guarda Nacional); pelo viés econômico, fomentar uma política ampla de crédito agrícola
e construir ferrovias que escoassem a produção – ou, nas palavras do próprio ministro,
“auxiliar a lavoura e o comércio, que lutam com tão graves embaraços, por todos os meios
que lhe pareçam adequados” (GÓIS E VASCONCELOS, 1979:116/121).
“Aquele príncipe (...) tem uma grande massa de virtudes reais e que é um dos
brasileiros completos que eu conheço, e de quem vou me tornando mais amigo
cada vez, pois cada vez mais o vejo com a salvação do país, a garantia do futuro, e
61
“A cidade não se ocupa com a guerra iminente com os Rosas; não se ocupa com as gentilezas dos ingleses nos
nossos portos; é indiferente à repressão do tráfico; ao novo Tribunal do Comércio e mesmo às ameaças da volta
da febre amarela!!! Está ocupada com o Teatro de São Pedro e com saber se a prima-dona vai ou fica; ou
mesmo com quem vive neste momento, e quanto gasta em jantares” (PORTO ALEGRE, 1995:56).
O Momento Monarquiano 257
o símbolo do progresso. Que pode ele fazer no meio de uma gente, que não é
nação e que está corrompida até a medula dos ossos?” (PORTO ALEGRE,
1995:46).
* * *
Mais do que Uruguai, foi Brás Florentino o verdadeiro avesso de Tavares Bastos.
Movido por uma inspiração protestante, reivindicando a emancipação da sociedade e da
economia pelo parlamentarismo e pelo americanismo; pregando uma fuga modernizadora
para o futuro, o deputado alagoano era o mais radical dos doutrinários da esquerda liberal62.
Movido pelo catolicismo ultramontano, condenando o interesse e o individualismo, repelindo
toda forma de governo parlamentar; pregando o retorno ao governo misto puro, recorrendo ao
62
Na introdução à segunda edição de Os Males do Presente e as Esperanças do Futuro, José Honório Rodrigues
se refere a uma tese de doutorado defendida em 1872 por David Gueiros Vieira na Universidade Americana de
Washington. Ela mostraria “as ligações íntimas de Tavares Bastos com o movimento protestante no Brasil, e
tudo aquilo que este representava e desejava”, ou seja, o programa ultraliberal (RODRIGUES, 1976: 10).
O Momento Monarquiano 258
discurso reacionário para assentar a legitimidade do governo monárquico, Brás Florentino era
o mais radical dos publicistas da direita. Ele chegava a rejeitar o próprio conservadorismo
doutrinário para se refugiar no discurso monarquiano coimbrão, velho de quarenta anos63.
O alvo de Florentino, porém, não era Tavares Bastos, mas a blasfema e herética
teoria desenvolvida por Zacarias de Góis e Vasconcelos em Da Natureza e dos Limites do
Poder Moderador, e que ocupava então a Presidência do Conselho de Ministros. Para
combater essa forma de “protestantismo político” que era o parlamentarismo, Florentino
recorria à tese bonaldiana de que os povos se organizavam politicamente a partir de sua
respectiva religião. Orientados pela unidade de crença e de autoridade, os povos católicos
eram forçosamente monárquicos; ao passo que, guiados pela pluralidade religiosa e pelo
individualismo, os protestantes se inclinavam à democracia. Marcadas pelo livre curso das
ambições facciosas e pela contestação ininterrupta da ordem, as formas de governo dos povos
protestantes - o parlamentarismo inglês e o presidencialismo norte-americano - seriam
democracias disfarçadas de monarquias. Este não era o caso do povo brasileiro, que carecia,
como todos os povos católicos, de um poder político último, soberano e absoluto, encarregado
de manter a unidade e a hierarquia contra o perigo de fracionamento do corpo social. Com
suas características de unidade e permanência ou perpetuidade, o Poder Moderador tivera por
fim satisfazer aquela necessidade; ao investir o Imperador do “poder supremo e decisivo, o
poder de inspeção e vigilância nas mãos do monarca”, a Carta de 1824 fizera dele a cabeça do
corpo político e, portanto, “a autoridade diretorial e superior”. A função representativa da
Coroa era interpretada por ele numa chave existencial e virtual: ela havia sido encarregada de
querer pela Nação em última instância. Como o monarca hobbesiano, o Imperador do Brasil
“resume o Estado em sua pessoa, é a Constituição encarnada”.
63
Embora saudasse a alusão feita por Guizot ao Brasil na sua História da Civilização na Europa, Florentino
encampava a crítica de Bonald ao ecletismo filosófico de Cousin: todo sistema político teria um locus definido
de poder último, encarregado de decidir em última instância e manter, portanto, a unidade do corpo político. O
defeito capital do ecletismo espiritualista de Cousin e Guizot estava na proclamação da existência das coisas
“sem mostrar as relações que entre elas existem”, definidas pela hierarquia, condição da harmonia, sem a qual
havia somente o caos (SOUSA, 1978:42).
O Momento Monarquiano 259
Ou seja, se a teologia política servia para assentar as bases do poder legítimo, não
servia para organizá-lo. Nessa chave, o Poder Moderador passava a ser explicado à forma
coimbrã como “a expressão de uma grande necessidade governativa, como um elemento
indispensável da ordem e de verdadeira liberdade, e como a mola principal nos governos
monárquicos, constitucionais e representativos, qual o nosso”; “a mais alta expressão da
soberania nacional, acautelando-se sabiamente contra os seus próprios desvios; é a vontade
suprema da sociedade querendo antes de tudo sua existência e conservação; é, em uma
palavra, a realeza ou a monarquia”. Dentre todas as atribuições deste poder, destacavam-se as
três que, como percebera Malouet, reuniam “o atributo essencial da realeza nas monarquias
64
Do Poder Moderador é uma obra exemplar dos limites do discurso político de direita no Brasil imperial, que
nunca foi o absolutismo ou o bonapartismo, mas o monarquianismo dos pais fundadores. A teologia política de
Brás Florentino rodeava o sistema representativo, era subjacente a ele, mas não o destruía nem o desnaturava
enquanto referência para a interpretação das instituições brasileiras. Sua concepção de origem divina do poder
não era aquela desenvolvida pelos absolutistas, como Filmer, Bossuet ou Maistre, mas pelos escolásticos ou
legitimistas, como São Tomás, Suárez, Balmès e Bonald. Posto que a soberania remontasse a Deus, cabia ao
homem aplicá-la e exercê-la; fonte originária de todo o poder, Deus não teria comunicado a soberania de uma
maneira permanente a nenhuma pessoa e sim à sociedade inteira. No entanto, a Nação, para exercer essa
soberania, teria necessidade de delegar seu exercício a representantes encarregados de formularem suas
vontades, executá-las ou de fazê-las executar (SOUSA, 1978:119/120). Assim era que, no fim das contas, se
conciliavam a origem remota católica e teocrática do poder, segundo de Bonald, com o desempenho concreto das
instituições constitucionais, de acordo com o figurino monarquiano de Malouet.
O Momento Monarquiano 260
65
O impacto da leitura de Cortès dava assim ao seu argumento um tom terrivelmente schmittiano: “Está escrito
(e ninguém o poderá apagar) que todo o Império dividido há de perecer (...) e o parlamentarismo que divide os
ânimos e os inquieta; que põe em dispersão todas as hierarquias, que divide a sociedade em cem partidos; e que
não contente com a divisão natural do poder já estabelecida, quer ainda levar essa divisão ao seio do poder
centralizador e unitivo, o poder real ou moderador; - o parlamentarismo, que é a divisão no todo e em todas as
partes (...), não pode subtrair-se nem se subtrairá jamais ao império dessa lei inexoravelmente soberana”
(SOUSA, 1978:370).
66
O arbítrio era “um ato alheio aos ditames da razão assim como às prescrições do interesse social”, ao passo
que a discricionariedade era definida como “um ato inteiramente deixado à retidão do juízo, ao prudente arbítrio
do monarca, e do qual não há contas a pedir, porque nisto está o essencial” (SOUSA, 1978:310).
O Momento Monarquiano 261
Por fim, com o argumento monarquiano de que o Imperador era o representante por
excelência do interesse público, Florentino se opunha à pretensão parlamentarista dos
progressistas, recordando que, fruto de fraudes eleitorais, a Câmara dos Deputados jamais
poderia se tornar o centro de gravitação da política nacional. Num contexto como este, o
exercício discricionário das atribuições do Poder Moderador era essencial para que os partidos
de oposição (como era, naquele momento, o conservador) mantivessem acesa a esperança de
retornar ao governo, dentro da ordem constitucional. Idêntico ao da esquerda liberal arruinada
entre 1848 e 1852, o argumento de Brás Florentino revela que a independência da Coroa era a
garantia de que, enquanto continuassem as fraudes, o partidarismo e a politicagem, elas nunca
poriam em risco o caráter monarquiano – e, portanto, patriótico – do Estado monárquico. No
impasse entre idéias liberais e sociedade iliberal, a solução de Florentino estava, portanto, em
fazer retroceder as primeiras para que a política se adequasse novamente ao estado real do
país.
De caráter mais sociopolítico foi a segunda grande obra que reiterou a representação
monarquiana do Poder Moderador fixada por Caravelas – o de corretivo excepcional ao
governo representativo. Refiro-me às Cartas de Erasmo, do literato e político cearense José
O Momento Monarquiano 262
67
Opositor acérrimo do progressismo, Alencar já havia se envolvido numa polêmica contra o Barão Homem de
Melo, antigo moderado “de movimento” que publicara, no momento de ascensão da Liga, uma obra de defesa da
Constituinte, A Constituinte perante a História. Vide nota nº. 151.
O Momento Monarquiano 263
cuja forma acabada era a monarquia constitucional. Como demonstrava a famosíssima obra
homônima do Barão de Brougham (1778-1868), publicada poucos antes (BROUGHAM,
1861) a teoria do governo misto continuava a ser o cerne explicativo da Constituição
Britânica. O segundo conceito era o da liberdade do povo como resultado do seu ativismo
cívico contra as pretensões opressivas da aristocracia. Mais do que na república, onde a
democracia reinava sozinha, o civismo era fundamental no governo misto, porque o povo, ou
seja, a democracia, nele lutava alternadamente com a “burguesia aristocrática” e com a
realeza, “cuja tendência unitária e absorvente é natural”. O terceiro elemento era justamente o
da monarquia, que deveria participar da correlação de forças para garantir o equilíbrio de que
resultava a estabilidade institucional. Eram estes os três princípios cardeais da monarquia
representativa, que se encaixavam, “na vida política, à semelhança de rodas dentadas; não se
move uma sem que as outras girem igualmente. Dessas evoluções concertadas nasce a vida
representativa, a mais nobre função dos povos livres” (ALENCAR, 1866:42).
É claro que a crítica de Alencar tinha, dentro da burocracia, nome e endereço. Ele
criticava o aparelhamento da administração pública pelos conciliados e, depois, pelos
progressistas, no poder quase ininterruptamente desde 1853. Nabuco de Araújo, Saraiva e
Zacarias, chefes dos conservadores moderados e, agora, dos progressistas, eram considerados
pelo afilhado de Eusébio de Queirós como “homens novos, sem prestígio, de chofre surgidos
da obscuridade, entrando nos conselhos da Coroa tomados da vertigem da súbita ascensão”,
incapazes de “imprimir ao país uma direção prudente com energia, forte com moderação”
(ALENCAR, 1866:13). Por conseguinte, o pessoal progressista que com eles subira ao poder
formava uma classe “ambígua, sem princípios nem crenças, que parece ter arrematado em
hasta pública a empreitada da alta administração. Os empregados honestos e as ambições
nobres, que buscam a carreira política, sofrem sua arrogante opressão” (ALENCAR,
1866:70). Embalada no corporativismo, a aristocracia burocrática conciliada e progressista
O Momento Monarquiano 265
formara uma Nação artificial dentro da verdadeira, de onde pretendia dirigir todos os
interesses e podar a iniciativa particular. O resultado era que “nosso mecanismo constitucional
está inerte; não há quem o desconheça. As molas se oxidaram; os eixos ficaram perros. Para
repô-lo e lhe restituir o movimento, é necessário o impulso de pelo menos uma das três peças;
todas a um tempo fora excelente; mas era empresa para forças magnas” (ALENCAR,
1866:VI). A maior necessidade sentida da política brasileira era, assim, fazer recrudescer a
burocracia do Estado à sua legítima órbita para restabelecer “o equilíbrio entre os três
princípios cardeais da monarquia representativa” (ALENCAR, 1866: 69).
“O único meio eficaz de salvar o país, senhor, é a união firme dos homens de
bem, de que sois o chefe legítimo, contra a imoralidade. É a aliança sincera da
O Momento Monarquiano 266
A solução alvitrada por Alencar não parece compatível, em princípio, com sua
intenção de acompanhar a evolução do conservadorismo inglês rumo ao parlamentarismo; é
que o deputado cearense resolvia o dilema, na verdade, de uma forma muitíssimo original. Ele
primeiro resgatava a diferença entre poder soberano e poder representativo, fundação e
conservação, excepcionalidade e normalidade, para sobrepor-lhes em seguida as
interpretações monarquiana e liberal da Constituição, respectivamente. Era possível, portanto,
aceitá-las ambas, desde que aplicáveis a diferentes circunstâncias - a primeira, reservada aos
momentos excepcionais; a segunda, aos tempos normais. O Poder Moderador possuiria, por
isso, mesmo dois tipos de função – uma, rotineira, passiva ou regulamentar - a de
conservação e – e outra excepcional, ativa e sobreconstitucional - a de restauração. A Coroa
se prestava rotineira e passivamente à conservação do sistema exercendo suas atribuições
constitucionais, como passivo quarto poder, ou seja, demitindo ministros ou dissolvendo a
Assembléia em caso de conflitos; vetando projetos de lei; reunindo extraordinariamente a
Assembléia, perdoando e anistiando penas, etc. O Imperador não era, para Alencar, chefe do
Executivo; para ele, essa expressão constitucional era meramente reverencial. O Poder
Executivo pertencia aos ministros organizados em gabinete solidário e responsável. Caso o
Imperador enveredasse pelo governo pessoal – ele, que era irresponsável -, exerceria um
poder incompatível com o governo representativo. O chefe de Estado deveria se comportar,
portanto, de acordo com a teoria do poder neutro de Constant, adaptada por Thiers ao governo
parlamentar: o rei reina, mas não governa. O exercício dessas prerrogativas bastava para
manter o equilíbrio constitucional.
Assim como a criatura humana no decorrer da vida é admoestada por um senso íntimo, que a
obriga a refletir sobre a moralidade do ato que vai praticar; a nação recebe do monarca o
mesmo serviço; e muitas vezes o remordimento precursor da má paixão evita suas
conseqüências, obrigando o povo a retrair-se” (ALENCAR, 1866:54). A obrigação de um
monarca constitucional era a de, como um sol, espancar “as brumas das paixões” para, com
sua luz e esplendor, desanuviar para o povo a paisagem política (ALENCAR, 1866:26).
Ocupando um espaço intermediário entre o soberano e Constituição, o Poder Moderador tinha
excepcionalmente o direito de ignorar a teoria do governo parlamentar e exercer o governo
pessoal sempre que os partidos se tornassem “facções perigosas, ou uma empregocracia
formidável que impõe à Coroa os ministros e ao povo, os representantes” (ALENCAR,
1866:65). A descrição da prerrogativa imperial é monarquiana e decisionista, no melhor estilo
dos Carneiros de Campos: só intervenção do Imperador poderia injetar ânimo numa cidade
decaída pelo ocaso do civismo e pela tirania de uma aristocracia enquistada no Estado. Como
Bolingbroke pedia a intervenção do futuro Rei inglês para salvar a Inglaterra da corrupção
whig; Alencar pedia a intervenção de Pedro II para salvar o Brasil da corrupção progressista.
Restaurados e depurados os partidos graças à política do Rei, “a virtude reassumirá seu
império; a emulação para o bem voltará” (ALENCAR, 1866: 82).
* * *
Lisboa, muito próxima à da antiga geração coimbrã e cuja nota original é, justamente, a
combinação da austeridade clássica na apreciação dos fatos políticos com um agudo realismo
sociológico. À semelhança de José de Alencar, o político maranhense destacava o caráter não-
republicano da sociedade brasileira; todavia, seu olhar apartidário sobre o processo político
provincial, distante da burocracia da Corte, o levava a ver o povo de forma sociológica e
concluir que a apatia cívica radicava na sua miséria. Na medida em que o povo não tinha
capacidade, sozinho, de se erguer às alturas da vida cívica e se defender das facções que o
sujeitavam e privatizavam o Estado, as soluções jamais poderiam ser a descentralização e a
desregulamentação defendidas pelos progressistas. Ao contrário, o que se impunha era
requalificar a presença do Estado para que ele se tornasse um agente do desenvolvimento;
tirar a administração provincial das mãos das facções locais para direcioná-la na promoção do
bem comum. Como esse impulso não poderia vir de baixo, ele deveria vir da Corte, ou seja,
do Imperador. Ou seja, para Lisboa, o povo não estava decaído por excesso de tutela do
Estado, mas por ausência dele.
Um dos temas prediletos do Jornal de Timon era o desnível entre as teorias políticas
européias e a realidade brasileira – tema tipicamente coimbrão: quanto mais longe estavam as
idéias de suas sociedades de origem, mais se tornavam “cópia servil e ridícula de formas
políticas, inventadas para outros debates e outras arenas” (LISBOA, 1995:85). No entanto,
para compreender as causas dessa dissociação, ele ia mais fundo que seus predecessores:
numa sociedade carente de civismo e de vida econômica ativa, o emprego público se tornava
o único meio de vida para aqueles que não queriam orbitar a mandona e bronca aristocracia
rural: “Quando a penúria dos particulares é grande, ou quando eles exercem um predomínio
tão absoluto que ninguém lhes pode opor resistência, é com o Tesouro, ou à custa da fazenda
provincial, que o comércio e as transações se efetuam; (...) tudo serve, mas nada basta para
satisfazer a fome devoradora dos partidistas” (LISBOA, 1995:261). Por outro lado, da
necessidade que os funcionários públicos tinham de preservarem os empregos e de
ascenderem na carreira, eles subordinavam ao cálculo político a justiça, a neutralidade e a
eficiência, que deveriam caracterizar o andamento da administração do Estado. No quadro de
uma sociedade periférica, marcada pela apatia cívica, as idéias se convertiam em ferramentas
para que os jovens talentosos, mas sem alternativas de êxito profissional, melhor pudessem
escalar o Estado pela via da política. Ao invés de educar o povo, as elites o haviam habituado
a fraudar as eleições em seu proveito, como capanga, capoeira, pistoleiro ou fósforo, em troca
de trocados, comida e outros bicos (LISBOA, 1995:259). Fonte teórica de legitimidade do
O Momento Monarquiano 269
sistema, a extrema penúria levava o povo a ver nas eleições um negócio das elites, da qual ela
podia tirar algum proveito, desde que a auxiliasse. Ao invés do espetáculo do civismo, a luta
pelo poder gerava um furor clientelístico que degenerava em violência, pancadaria e
assassinato.
“Em um país novo, e ainda renovado pelas instituições recentes, onde não há
vícios nem virtudes, nem costumes de qualidade alguma profundamente
arraigados, uma iniciativa vigorosa e franca se faz sobretudo sentir; o impulso
partido do alto achará por toda a parte matéria flexível e branda como cera, pronta
e disposta a amoldar-se em todos os sentidos, e ainda os mais opostos, assim para
o bem como para o mal. Ora, o nosso primeiro mal são os partidos, aliás, meia
dúzia de indivíduos que sob o nome de partidos se agitam na superfície da
sociedade, e desviam toda a sua atenção e atividade para contendas estéreis da
política (...). A estes partidos, pois, fonte e origem de todo o mal, se não única, a
principal, cumpre declarar e fazer guerra incessante e a todo transe, até sua
O Momento Monarquiano 271
68
O fato é corroborado pelo biógrafo de Uruguai: “Foi no apogeu de sua carreira, quando seus discursos faziam
ruir o trono do regente (Feijó), que Paulino se ligou mais intimamente a Vasconcelos. E, pelo orador que
dominava então o parlamento, o moço que seria o seu discípulo predileto teve a mais profunda veneração. (...)
Pela amizade que os uniu, é certo ter sido Vasconcelos o político que mais influência exerceu sobre Paulino;
entretanto, das cartas de Vasconcelos a Paulino, verifica-se que o discípulo teve, desde o começo, sobre o
pensamento do mestre, uma ascendência capaz de modificá-lo profundamente” (SOARES DE SOUSA,
1944:62).
O Momento Monarquiano 273
qualificado para reduzir a disparidade entre os dois mundos. Daí que ele afirmasse – desta
vez, como Caravelas – que, sem conhecimento do meio, legislar era tão eficaz quanto escrever
na areia. “Para se julgar as instituições, é preciso atender aos tempos e às circunstâncias” (In:
SOARES DE SOUSA, 1944:80). Ao exemplo, agora, de José Bonifácio, Uruguai acreditava
que o receituário que na Europa recomendava o enfraquecimento da autoridade do Estado e a
valorização do individualismo para se chegar ao liberalismo, ao progresso e à democracia no
Brasil não podiam ser seguido. Em primeiro lugar, por conta do desnível civilizatório entre o
litoral e o interior do país, as imensas distâncias do território e a precariedade das vias de
comunicação e o próprio fato de o país ser ainda muito novo. Ademais, as relações sociais
entre os cidadãos brasileiros ainda não estavam suficientemente reguladas pelo Estado, para
que a autoridade política pudesse começar a se retirar de cena; ainda não existia uma cultura
política de liberdade e igualdade entre os cidadãos. Muito pelo contrário, frente à realidade de
abandono e isolamento das populações do interior, dominadas pelos senhores rurais, a tarefa
integradora e reguladora do Estado nacional estava apenas no início. O saquarema Uruguai
era, assim, perfeitamente coimbrão no projeto nacional e monarquiano na sua retórica política.
Nessa tarefa de tornar o país mais forte e homogêneo por meio do Estado, Paulino
necessariamente discordava dos progressistas, principalmente de Tavares Bastos, achando que
o modelo político francês, unitário e administrativista, ainda tinha muito a nos ensinar. Esse
modelo se achava justificado do ponto de vista liberal em obras como a História da
Civilização na Europa, de Guizot, e A Centralização, de Charles Dupont-White (1807-1878);
além disso, ele encontrava seu pendant jurídico no extraordinário desenvolvimento do direito
administrativo naquele país, que exportara o sistema de justiça administrativa unitária para o
restante da Europa continental por meio de autores como Firmin Laferrière (1798-1861),
Auguste Vivien (1799-1854) e Adolphe Chauveau (1802-1869). A centralização política era
vista por todos esses autores como uma dos principais veículos da superação das estruturas
feudais, que começara durante o absolutismo e depois da Revolução Francesa fora
incorporada ao patrimônio liberal (LAFERRIÈRE, 1838). Ela se confundia com a própria
marcha do progresso que caracterizava a história da civilização e que justificava o predomínio
político da capital sobre a província, já que era dela que o Estado deveria estender seus
tentáculos para abarcar conjunto do território, uniformizando os costumes e integrando o povo
à ordem constitucional. Ao comparar a centralização à própria lei, imparcial e distante frente
às paixões locais e individuais, Dupont-White também associava localidade à parcialidade, e,
por sua vez, à feudalidade: “Centralização política e capital preponderante não são senão uma
O Momento Monarquiano 274
mesma coisa. Há ai duas forças, que nascem do mesmo fundo. Sim, a execução central da lei
é um principio de influência para o Estado, mas também uma capital diante do Estado figura
como um censor, um juiz, um justiceiro mesmo. Vós tendes ai conjugados, paralelamente de
alguma forma, o peso e o contrapeso, um equilíbrio inato” (DUPONT-WHITE, 1860:5).A
centralização era assim justificada pela necessidade que tinha o Estado de, em nome da
civilização, combater a influência da aristocracia rural, que com seu prestígio social mantinha
a população ignorante e oprimida à sombra do castelo e da igreja.
Daí os motivos pelos quais Uruguai condenava de maneira tão veemente o modo
como os liberais e os progressistas exploravam o ideário anglófilo e americanista, a partir de
O Momento Monarquiano 275
suas observações superficiais e apressadas e, o que era pior, na sua falta de uma sociologia
política comparada adequada. Pela leitura de Tocqueville, Paulino reconhecia que, de fato,
eram na Inglaterra e nos Estados Unidos onde se encontrava “mais inteligência coletiva; mais
espírito de associação, mais idéias e afeições comuns”, de molde a uniformizar os espíritos
em torno de uma nacionalidade comum. O visconde entendia, porém, que as responsáveis por
esse estado de coisas não eram as leis liberais, mas o espírito público que lhes precedia e a
vivência pragmática dos problemas administrativos. Para tanto, o que Uruguai fazia era
aprofundar os argumentos que o Marquês de Caravelas expusera na primeira década da
independência. Os Estados Unidos haviam herdado dos ingleses a autonomia, a localidade, o
espírito democrático do puritanismo; como lhes bastavam os hábitos sociais para produzir a
excelência de suas eleições, de sua imprensa e de sua tribuna parlamentar, o mundo anglófono
podia dispensar os mecanismos como o unitarismo e a uniformidade administrativa, de que se
valiam os países da Europa ocidental para aperfeiçoar os seus governos e salvaguardar as
liberdades públicas. A homogeneidade do povo e a institucionalidade viabilizavam a
democracia e o federalismo no mundo anglo-saxão, ao passo que no mundo latino, onde o
grau de consenso social era baixo, e o potencial disruptivo, elevado, o unitarismo era
indispensável para compensar a base arenosa da sociedade e civilizá-la o quanto antes. Isto
era tanto mais verdadeiro na América Ibérica: na ausência dos pressupostos culturais que
escoravam as instituições políticas modernas, a falta de vertebração política da sociedade
convertia o autogoverno num nome vão, e a liberdade, em anarquia, caudilhagem e opressão
aristocrática. Nesse caso, somente um governo centralizado, descomprometido com as facções
e com o localismo poderia garantir a ordem pública e a efetividade da Constituição
(URUGUAI, 1960: 385,12). Daí a necessidade, na Europa continental e na América Ibérica,
de uma administração pública, desenvolvida e uniforme em seus procedimentos, separada da
política. Esta administração, a única capaz de salvaguardar a ordem liberal no mundo latino -
só o modelo francês poderia proporcionar69.
69
Isso não quer dizer que, para Uruguai, a idéia de autogoverno deveria ser proscrita. Se, por um lado, ela era
conveniente em países muito extensos e pouco povoados, não haveria, por outro, qualquer outra escola capaz de
incutir no povo o espírito da liberdade. Ocorre que, à semelhança de Caravelas, o visconde entendia que esse
autogoverno deveria ser introduzido aos poucos, de forma prudente, sujeito à tutela administrativa e a certos
corretivos, a fim de que se entranhasse nos costumes do povo – e não de chofre, por imposição legal. Isso era
particularmente verdadeiro no caso do Brasil, onde a experiência desastrosa da Regência, com seu “arremedo
imperfeitíssimo e manco das instituições dos Estados Unidos”, comprovara nossa ausência absoluta de espírito
público. Uruguai não tinha a ilusão de que, com as leis de interpretação do Ato Adicional e a de 3 de dezembro
de 1841, o poder se imunizara ao partidarismo; entretanto, ele acreditava que o caráter da luta política se
modificara, ao se transplantar, do ambiente bárbaro dos sertões - onde era travada com a força bruta pela coação
da população local e de seus adversários políticos - para o ambiente civilizado, esclarecido e publicizado da
Corte, onde a luta se justificava em torno de princípios políticos no Parlamento. Da mesma forma, ficava aberta a
O Momento Monarquiano 276
Assim, para Uruguai, o liberalismo partidário não passava de cortina de fumaça para
que os progressistas saciassem sua fome de cargos e tranqüilizassem os latifundiários
provinciais, temerosos de que a expansão do Estado promovida pelos saquaremas
emancipasse de seu jugo o povo do campo. A verdade era que, ao colocar um paradeiro na
absorção dos municípios pelas províncias, a conservadora lei de Interpretação se revelara
“mais liberal que a dos liberais”, ou seja, do que o próprio Ato Adicional promovido pelos
moderados de movimento, hoje liberais (URUGUAI, 1865, I: XXVII). Frente à pretensão
feudal dos liberais, representantes da aristocracia rural provincial, “a grande missão liberal do
possibilidade de que, desde que o partido contrário subisse ao poder, encontraria meios de desmontar a máquina
montada pelo partido anterior. Ou seja, se a lei permitia que o partido no centro se encastelasse no poder,
também permitia que o novo partido desencastelasse imediatamente os adversários, desde que o Poder
Moderador invertesse a situação política.
O Momento Monarquiano 277
Partido Conservador” era precisamente a de “combater e derrocar esses castelos, senão a bem
da liberdade (dominação) de poucos, a bem da liberdade de muitos” (URUGUAI, 1865, I:
XXVII; 208). Eis o que era “tirar a limpo o verdadeiro progresso” (URUGUAI, 1865, II:
426). Em suma: alardeando o progresso, mas promovendo o privatismo e a fragmentação do
país, os liberais revelavam, na verdade, desejar o regresso; ao passo que, salvando o interesse
público e a unidade nacional, os conservadores ou regressistas é que eram responsáveis pelo
pouco progresso do país desde 1822.
nas câmaras e fora delas são políticas, ou têm relação com a política. As grandes
questões econômicas e administrativas, que tanto importam ao futuro do Império,
são postas de lado, exceto quando acidental e ocasionalmente, se manifesta a
urgência da solução de algum caso especial. (...) Não há, sobretudo agora,
verdadeiro espírito público. As antigas bandeiras quase que desapareceram.
Preponderam as paixões e os interesses na maior parte dos lugares. Não se luta
por princípios claros e definidos. Luta-se por pessoas, por posições, influência e
para granjear patronos que obtenham favores. Tem-se infelizmente arraigado, no
geral da nossa população, a crença de que coisa alguma se obtém, senão pelo
empenho, e - que é o mais forte - o que provém da influência eleitoral. (...) Tudo
isso estraga, corrompe e desmoraliza” (URUGUAI, 1960:449).
Era como se Alberto Torres falasse mediunicamente pela boca de Uruguai, cinqüenta
anos antes de publicar A Organização Nacional. A solução não estava no enfraquecimento da
centralização, mas no seu aperfeiçoamento. Contando com a experiência pretérita e tendo por
referência o modelo francês, seria possível, por uma assimilação crítica de idéias, tirar a
ciência administrativa brasileira de seu estado de “perfeito embrião” e desenvolver
instituições apropriadas às circunstâncias nacionais; assim, as estruturas do Estado ficariam
completas e ele poderia concretizar os direitos fundamentais que a Constituição previra ao
conjunto dos cidadãos do Império (URUGUAI, 1865, I: 367). Efetuada em Portugal por
Mouzinho da Silveira, racionalizando e despersonalizando a burocracia do Estado, desde o
gabinete Monte Alegre (1849-1852) os saquaremas viam a reforma administrativa à francesa
como o coroamento de sua obra de construção do Estado imperial. Encarregado pelo Marquês
de Olinda, então Presidente do Conselho, de desenvolver os arrazoados deixados por Pimenta
Bueno em 1857, Uruguai enfrentou o assunto no ano seguinte e o resultado foi o relatório
denominado Bases para Melhor Organização das Administrações Provinciais. Embrião do
Ensaio, Uruguai já aí defendia a separação entre administração e política por meio de uma
reforma marcada pela descentralização administrativa, pelo aprimoramento do contencioso e
dos controles técnicos – medidas que, por suas vezes, passavam pelo reforço das garantias
procedimentais, do sistema recursal e de uma boa composição dos tribunais administrativos.
O judiciarismo norte-americano não podia aí ter lugar, porque as relações entre Estado e
indivíduo envolviam interesse público e, portanto, poder discricionário – o que não era
admissível na tradição judiciária francesa.
Como não era possível civilizar o país espontaneamente pela via da sociedade e da
O Momento Monarquiano 279
70
Assim, por exemplo, Luís Roberto Barroso, O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro:
“Ausente do regime da Constituição imperial de 1824, o controle de constitucionalidade foi introduzido no
Brasil com a República” (BARROSO, 2006:62).
O Momento Monarquiano 280
inconstitucionais, que passavam por cima das competências da União, e que sobreviviam, sem
serem banidas do ordenamento jurídico. Mesmo depois da lei de interpretação de 1840
subsistiriam graves lacunas na compreensão do Ato, cujas soluções, fornecidas de forma
casuística e assistemática pela administração, aumentavam ao invés de reduzir o “caos
administrativo em que vivemos” (URUGUAI, 1865, I: XLXI). A grande fonte das
inconstitucionalidades eram justamente as assembléias provinciais que, dominadas pelo
espírito partidário, não tinham escrúpulos em legislar contra as competências
constitucionalmente estabelecidas do governo geral. Por outro lado, o controle normativo era
“moroso e na prática ineficassíssimo” porque a Assembléia Geral não dispunha de tempo,
imparcialidade ou preparo técnico para cuidar dessas questões (URUGUAI, 1865, II:
424/425). A solução passava pela nomeação de uma comissão de “homens ilustrados e
práticos” que, auxiliando os ministros de Estado, examinassem toda a legislação provincial
inconstitucional em vigor, recomendando sua revogação (URUGUAI, 1865, I: XLIV).
Embora admitisse que o controle jurisdicional da constitucionalidade à americana era um
remédio “permanente, pronto e eficacíssimo”, o visconde se apressava em rejeitar a hipótese
de introduzi-la no Brasil. A razão era a mesma de Caravelas e dos outros coimbrões:
monárquico, o Brasil pertencia ao universo franco-continental; daí que, “entre nós,
coerentemente com o nosso sistema, pertence a interpretação do Ato Adicional à Assembléia
Legislativa” (URUGUAI, 1865, II: 429).
de prevalecer sempre contra as mazelas da realidade social brasileira, marcada pelo mais
intenso privatismo; eram a garantia de que, na terra por excelência da corrupção e do
facciosismo, o Estado conseguiria preservar seu caráter republicano e civilizador.
Eis porque o tema aparentemente só político do Poder Moderador surgia com tanta
força numa obra que, aparentemente, versava apenas sobre direito administrativo. Instituição
sem a qual o Estado se tornava “uma máquina incapaz de funcionar algum tempo sem estalar
e desorganizar-se” (URUGUAI, 1960:496 e 259), dotada de “toda a força necessária para
combater franca, eficazmente e a tempo a revolução, sem recorrer a meios ilegais e
extremos”; “permanente, desapaixonado, ou mais imparcial, mais desinteressado nas lutas”
(URUGUAI, 1960:261), o Poder Moderador era o vértice da qual precisava depender direta
ou indiretamente toda a teia político-administrativa articulada pela centralização. Era por isso
que, ao voltar sua vista ao momento fundador da nacionalidade, Uruguai fazia o elogio
histórico dos conselheiros de Estado do primeiro Imperador, de quem se fazia legatário. A
dissolução da Constituinte havia sido “um dos maiores serviços entre muitos que nos prestou
o Senhor Dom Pedro I” (URUGUAI, 1960:493). Apenas estadistas de visão como os
coimbrões poderiam ter criado duas instituições complementares, desgarradas dos interesses
partidários, como o Poder Moderador e o Conselho de Estado. A despeito de seus senões71,
dentre todas as instituições, o Conselho de Estado era aquela que, “na obscuridade, tem
trabalhado mais para montar o país e firmar as boas doutrinas” (URUGUAI, 1865, I: XLVII).
71
Isso não quer dizer que Uruguai não tivesse críticas quanto à forma como o Conselho estava composto. Ela
criticava, por exemplo, o fato de um mesmo conselho acumular a atividade puramente política de
aconselhamento da Coroa, quando de questões graves do poder executivo ou de exercício do Poder Moderador,
com as consultas que fazia em matéria puramente administrativa. Teria sido mais conveniente criar um Conselho
Privado, destinado ao aconselhamento político, isto é, de medidas discricionárias, ficando o de Estado restrito à
tarefa de aconselhamento administrativo, ou seja, de questões legais referentes ao contencioso. A confusão entre
funções políticas e administrativas complicava a vida do conselheiro que também era político, obrigado a opinar
de modo suprapartidário no conselho e partidário na Assembléia Geral. Além disso, uma vez que o Conselho
cobria a responsabilidade pelos atos da Coroa, a lei que o restabelecera em 1842 deveria ter imposto a oitiva
obrigatória e não facultativa dos conselheiros.
O Momento Monarquiano 282
Poder Moderador era corolário necessário da sua independência, pois, se assim não fosse,
fazendo “depender o fiscal do fiscalizado”, a delegação que a Nação fizera privativamente à
pessoa do imperante acabaria usurpada pelo gabinete, erigido em oligarquia72. Numa
sociedade carente de civismo, incapaz de perceber o próprio interesse, a independência do
Poder Moderador era fundamental para que, na qualidade de primeira representante e
defensora perpétua do Brasil, a ação tutelar da Coroa pudesse suprir a ausência de povo
politicamente organizado e preservar a ordem constitucional por meio da centralização. Desse
ponto justificava-se o combate à pretensão dos progressistas de projetar os interesses da
sociedade civil sobre as instituições do Estado, forjando pelo parlamentarismo uma
transparência entre as duas instâncias. Na perspectiva de Uruguai, o Estado deveria, ao
contrário, mostrar-se ao máximo autônomo e sobranceiro à esta sociedade, moldando-a
conforme a exigência da política moderna. Na medida em que a força e o prestígio da
monarquia eram “a maior necessidade da nossa época” (URUGUAI, 1960:310), era preciso a
todo o custo combater a “cloaca a que chamarei parlamentarismo, excelente coisa para os
ambiciosos, os turbulentos, faladores, audazes, sem-vergonhas, trapalhões, etc.etc.” (In:
MASCARENHAS, 1961:172).
Nesse ponto, é preciso verificar mais as relações entre a obra de Uruguai e aquela
desenvolvida pelos conservadores franceses. Quando, em 1846, Thiers subiu à tribuna da
Câmara dos Deputados francesa para acusar governo pessoal de Luís Felipe e repetir que o rei
reinava, mas não governava, Guizot defendera o monarca alegando que, para os
conservadores, o trono não era uma poltrona vazia: “O trono não é uma poltrona onde se
tenha posto um aviso para que ninguém pudesse aí se sentar, e unicamente para prevenir a
usurpação”. Para o Presidente do Conselho francês, a realeza era “necessária, não somente
para prevenir a usurpação, não somente para parar os ambiciosos, mas como parte ativa e real
do governo”. O monarca era “uma pessoa inteligente e livre, que tem suas idéias, seus
sentimentos, seus desejos, suas vontades, como todos os seres reais e vivos” e, como tal, seu
dever era o de “não governar, senão de acordo com os grandes poderes públicos instituídos
pela Carta, com sua adesão, com seu apoio. Foi a este dever que Carlos X faltou” (GUIZOT,
1861:228). Mas Uruguai não se limitou a repetir os argumentos de Guizot. Embora admitisse
72
Caso o Poder Moderador dependesse da aquiescência dos ministros, dar-se-iam “as lutas surdas, dar-se-ão as
intrigas, e enredos parlamentares, que tanto assinalaram os últimos tempos da realeza constitucional na França.
Dependendo os ministros unicamente das maiorias, tudo hão de sacrificar para ajeitá-las, a fim de com elas
pesarem sobre a Coroa. Há de se tornar para eles uma necessidade indeclinável a de intervir nas eleições para
formar maiorias. A corrupção que dai necessariamente vem há de acabar de abismar o país”. Ademais, dividida a
Nação “em partidos encarniçados, se estiver no poder um partido opressor, não haverá um poder superior,
independente, sobranceiro às paixões que valha aos oprimidos” (URUGUAI, 1960:308).
O Momento Monarquiano 283
que a influência da Câmara dos Deputados na formação do governo era condição necessária
do governo representativo, Uruguai apontava a grande distância entre a prática efetiva do
governo parlamentar e “o governo exclusivo, completo e absoluto das maiorias”, que era
inconstitucional, além de inviável e inconveniente (URUGUAI, 1960:335).
No plano da teoria, Paulino argumentava que a máxima o rei reina e não governa
não explicava o que fosse reinar, e que os principais intérpretes da Constituição inglesa - Cox,
Macauley e Brougham, todos partidários do governo misto (sintomaticamente, Mill não era
citado) - destacavam a decidida influência que os monarcas ingleses tinham sobre seus
governos. Na verdade, era um erro de análise que levava a esquerda liberal a acreditar que a
Coroa inglesa se tornara irrelevante: é que a universalidade do espírito público impedia, na
Inglaterra, o descompasso entre a opinião e os resultados eleitorais. Essa íntima conexão
permitia ao príncipe verificar as preferências do eleitorado e governar a partir delas, dando a
impressão de que quem governava, na verdade, era o Parlamento. Ocorre que o governo
parlamentar só era viável na presença de um sistema partidário sólido, com “maiorias firmes,
constantes, compactas, com princípios claros e definidos, dirigidas por chefes influentes,
ativos e prestigiosos”; “minorias ativas e valentes com bandeiras visíveis, lidadoras, para que
as maiorias se conservem cerradas, disciplinadas e obedientes a seus chefes”, e ainda “um
continuado contato e acordo dos ministros com aquelas maiorias e seus chefes, em cuja
dependência ficam” (URUGUAI, 1960:331). Mesmo os modelos defendidos por Thiers e
Guizot exigiam um elevado grau de adversidade ou antagonismo que obrigasse os partidos a
manter claros os princípios que os opunham e estreitar a disciplina de seus associados. Era o
que acontecia na Grã-Bretanha, por conta da dissidência parlamentar de Sir Robert Peel:
quando o país cansava dessas lutas encarniçadas, a radicalidade do conflito se esvaía, as
maiorias se fracionavam e desapareciam as condições que permitiam a estabilidade do
parlamentarismo73. Sem partidos com princípios claros, opinião pública destacada, maiorias
sólidas, ministérios fortes, se tornava impraticável qualquer sistema que, em maior ou menor
medida, prescindisse da Coroa.
73
Ao contrário do que se poderia imaginar, não se trata de um argumento de ocasião inventado por Uruguai. Um
comentarista importante da Constituição Inglesa, como Henry George Grey, terceiro Conde Grey, publicara
quatro anos antes do Ensaio sobre o Direito Administrativo uma obra denominada Ensaio sobre o Governo
Parlamentar. Nele, Grey atribuía a fraqueza dos gabinetes ingleses na década de 1850 justamente ao declínio do
sentimento partidário provocado pela Reforma Eleitoral de 1832, que teria resolvido as mais importantes
questões públicas e enfraquecido a oposição partidária. Daí o conde concluía que, sendo a maior coesão
partidária o único meio de manter a autonomia do gabinete frente à Coroa e o Parlamento, aquela não tinha como
se manter se não havia razões políticas que justificassem o antagonismo partidário (VILE, 1998:246). Esses fatos
demonstram o quanto Uruguai estava a par da literatura política de seu tempo; e que era dessa leitura que ele
fazia suas ilações entre radicalidade do conflito e disciplina partidária.
O Momento Monarquiano 284
Assim era que, na descrição feita pelo Visconde de Uruguai da mecânica do regime,
ressurgiam os temas instaurados quarenta anos antes pelo liberalismo monarquiano dos pais
fundadores – o do governante acima da política, o de sua relação visceral com a centralização
política e o do seu eventual poder excepcional. Era a comprida sombra do Marquês de
Caravelas que, trinta anos depois de morto, continuava a demarcar os limites do
conservadorismo brasileiro.
O Momento Monarquiano 285
5.1. A queda dos progressistas e o ataque às posições saquaremas. O novo Partido Liberal e
o discurso do parlamentarismo democrático (1868-1878). - 5.2. A reação aristocrática contra
a abolição da escravatura e o declínio do discurso monarquiano saquarema (1867-1878). -
5.3. O fim do modelo político saquarema: a campanha da lavoura pela eleição direta e o
advento do parlamentarismo aristocrático (1878-1881).
partido, centrista, era por isso mesmo uma excrescência, nascida do mais puro oportunismo
político. Os saquaremas e os históricos acusavam os progressistas de ser as “piranhas do
poder”; “uma comandita industrial para exploração da política, prometendo aos sócios
dividendos de ministérios, senatorias e presidências” (In: MASCARENHAS, 1961:262/263).
Sentindo que perdiam a batalha ideológica, que legitimava sua posição centrista segundo uma
lógica de síntese superadora daquela antítese, os progressistas decidiram retornar à lógica
bipartidária, reivindicando para si mesmos o rótulo de liberais a fim de reduzir os históricos à
condição de dissidência rebelde (GÓIS E VASCONCELOS, 1979:252/153). Para piorar, a
Guerra do Paraguai absorvera toda a sua agenda reformista, motivo que, ao assumir pela
terceira vez a Presidência do Conselho, em 1866, levara Zacarias de Góis e Vasconcelos a
anunciar a suspensão do programa partidário: “A guerra, a crise financeira e o estar a expirar
o mandato da câmara temporária inibem o governo de promover quaisquer reformas que
porventura tenha em mente, reservando-as para tempos mais felizes” (GÓIS E
VASCONCELOS, 1979:193).
progressistas não haviam feito nada para mudar essa característica do modelo político
saquarema que, assim, como previra Uruguai, garantia a ascendência do Executivo,
independentemente de sua cor partidária. Ou seja, na prática, o Presidente do Conselho
preservava aquilo que lhe interessava do modelo político saquarema – o ascendente
governamental sobre os demais órgãos políticos -, ao mesmo tempo em que, para se perpetuar
no poder, invocava a teoria do governo parlamentar puro, para impedir a Coroa de alternar os
partidos no poder.
Mas Zacarias não se dava por achado, pois lhe interessava, como a qualquer governo
de então, argumentar com a doutrina, isto é, com a dimensão universal e normativa da teoria
parlamentar, deixando de lado o fato muito real, notório e concreto das fraudes, que
marcavam sua prática no Brasil. Como essa postura o ajudava a constranger aqueles de quem
o gabinete dependia, o Presidente do Conselho ia ainda mais longe: mesmo que o Imperador
dissolvesse a Câmara para dar ao novo ministério, nela minoritário, a oportunidade de
conseguir a confiança da maioria dos novos eleitos, seria necessário que a legislatura velha
aprovasse o orçamento (a lei de meios) proposto pelo novo governo, antes de ser dissolvida.
Ou seja, ainda que o novo gabinete contasse com o decreto da dissolução no bolso do colete,
ele não escapava de se submeter, nessa matéria, à confiança da legislatura antiga, que
continuava detendo o poder, assim, de fazer da votação do orçamento uma questão de
confiança e derrubá-lo. Nesse caso, a dissolução da Câmara se daria, sem que se tivesse
cumprido a regra do sistema representativo, que vinculava a legitimidade do ministério ao
exercício do poder segundo o orçamento anual votado e aprovado pelo Parlamento. O novo
gabinete teria de prorrogar a lei de meios do ano anterior, sem aprovação e fiscalização
legislativa e assim viver – em ditadura, como se dizia então - até que a nova câmara se
reunisse, por um bill de indenidade, cobrisse retroativamente com um manto de legalidade os
atos praticados naquele ínterim pela administração (GÓIS E VASCONCELOS, 1979: 270).
Alijando o novo governo, desse jeito, as praxes de governo parlamentar, com o aval do
Imperador, a inversão de situação política desvelaria, segundo Zacarias, a ilegitimidade da
prática do governo representativo brasileiro face à teoria que deveria guiá-la; esta seria uma
crise, insinuava ainda o Presidente do Conselho, que ele mesmo e seus partidários, na
oposição, seriam os primeiros a insuflar.
Imperador, a manter os progressistas no poder. Mas seus esforços foram vãos. Em primeiro
lugar, os saquaremas não deixaram Zacarias sem resposta. Eles negaram que, matéria
nacional, acima das contingências partidárias, a lei orçamentária pudesse ser convertida pelos
deputados em questão de confiança para o gabinete. Por isso, desde que a maioria recusasse
ao novo gabinete o orçamento proposto, na tentativa ilegítima de fazê-lo cair, era sobre a ela e
seu partido que recairia a responsabilidade pela eventual ditadura (isto é, o regime de
prorrogação orçamentária) que o novo ministério seria obrigado a exercer, até que a nova
legislatura convalidasse retroativamente os atos do governo. Em segundo lugar, é preciso
lembrar que, contra os escrúpulos parlamentaristas de Zacarias e de suas declarações políticas,
o Imperador jamais aderira à tese de que os ministros de Estado respondiam pelos atos do
Poder Moderador, apresentada em Da Natureza e dos Limites do Poder Moderador. Muito
pelo contrário. No auge da polêmica gerada pelo panfleto de Zacarias, em fevereiro de 1862,
o Visconde de Uruguai compareceu duas vezes ao Paço Imperial de São Cristóvão – a
primeira, para entregar pessoalmente ao Imperador o primeiro tomo do Ensaio sobre o Direito
Administrativo; a segunda, algum tempo depois, para debater pessoalmente com o monarca as
idéias políticas e administrativas ali contidas de reforma do Estado. Dom Pedro II deixou no
seu Diário de 1862 suas impressões da leitura e de suas conversas com Uruguai. Depois de
registrar que pensar o mesmo que o visconde “do abuso que se tem feito da política”, o
Imperador relatou os diversos pontos da conversa daquela tarde em São Cristóvão, encerrando
o relato confessando concordar “com quase todas as idéias dele” (PEDRO II, 1956:36 e 57) 74.
74
“Tive uma larga conversa com o Uruguai sobre o primeiro livro de sua obra sobre o direito administrativo.
Pedi-lhe diversas explicações e, concordando com quase todas as idéias dele, apenas divergi sobre estes pontos
principais: o patronato executivo da Inglaterra, que ele parece não admitir somente como um fato cujas causas
cumprem procurar remover cada vez mais; a defesa do procedimento do conselheiro de Estado, membro do
corpo legislativo, que para fazer oposição ao governo, combate medidas que, aliás, aprovara como conselheiro,
quando essas medidas não forem das propriamente chamadas de confiança. Então eu disse que não compreendia
a nossa oposição, que só procura entorpecer a marcha do governo pelos abusos deste, que têm provindo na maior
parte do patronato executivo. Também observei que me parecia melhor que, nos casos em que o Imperador não
devesse necessariamente presidir o Conselho de Estado, mandasse, quando assim julgasse melhor, outrem
presidir o Conselho, e que o poder discricionário, excluindo o contencioso administrativo, pode dar lugar a
muitos abusos, pois a responsabilidade muitas vezes não é efetiva e o mal poderá ser, ao menos em parte,
irreparável. Tratando da introdução, comuniquei-lhe a observação que eu fizera ao Paraná sobre a política da
Conciliação, a qual ele respondera perguntando se devia repelir quem o procurasse - o que revela qual o
pensamento dessa política. Acrescentei que, sem uma boa lei eleitoral, que consinta a todos os partidos esperar,
não se podem eles se formarem regularmente, e que eu continuava a julgar boa a lei primitiva dos círculos. O
Uruguai nada disse a tal respeito, senão que admitia a Conciliação como eu a entendia. O segundo volume que
trata longamente da questão do Poder Moderador, em cujos atos entende o Uruguai que é bom que haja
referenda, ainda que se saiba que ela não é precisa (...), há de ficar impresso até maio. Creio que este ensaio há
de dar nome ao Uruguai, cujo estudo e experiência podem ser de grande proveito ao país. O espírito da obra, que
admite que uma administração bem regular pode, até certo ponto, suprir a liberdade política, há de desagradar a
muitos; porém, se estes combaterem estas idéias, procurando esclarecer a Nação, será isto de grande vantagem”
(PEDRO II, 1956:57).
O Momento Monarquiano 289
Nas condições que Dom Pedro II lhe oferecia, a retirada de Zacarias era
perfeitamente aceitável. Se, escolhendo Inhomirim para senador, o Imperador sinalizava aos
progressistas que sua situação terminara, por outro, o Presidente do Conselho poderia declarar
ao Parlamento que se retirava porque se negava a referendar a nomeação de Inhomirim. Era
um argumento lógico para quem, como ele, acreditava que os atos do Poder Moderador, entre
os quais estava o de escolher senadores, exigiam a referenda dos ministros de Estado. No
entanto, ao invés de seguir as regras do jogo, o Presidente do Conselho preferiu cair atirando,
numa atitude sem precedentes. A autonomia decisória do Imperador na fiscalização dos atos
da administração pública e no exercício do Poder Moderador sempre incomodara Zacarias,
porque fornecia aos conservadores munição para acusá-lo de incoerência ideológica, e aos
liberais históricos, de ser um instrumento do poder pessoal ou do imperialismo. Deixou
interessante relato a este respeito em seu diário o engenheiro e futuro abolicionista André
Pinto Rebouças (1838-1898), filho de Antônio Pereira Rebouças e que chefiava, então, as
O Momento Monarquiano 290
obras do porto do Rio. Dirigindo-se diretamente ao Imperador, Rebouças lhe sugeriria que,
prontas, as novas docas passassem a se chamar Docas de Pedro II, ao que o próprio
respondera que nada tinha a opor. Ao inteirar inocentemente do incidente o Presidente do
Conselho, alguns dias depois, num despacho de rotina, narra Rebouças que Zacarias reagiu
furioso; ele declarou “que considerava a permissão do Imperador para a denominação das
docas um ato inconstitucional; que era por essas e outras que só se falava em governo pessoal;
que ele não podia dar denominação nem a navios nem a coisa alguma; (...) que ia dar
publicidade a isso para fazê-lo entrar na Constituição. (...), que o Partido Conservador nos
seus manifestos dizia que deixaria o poder, quando nele se achasse, logo que sentisse a
pressão imperial; e que queria demonstrar que o Imperador não governa” (REBOUÇAS,
1938:157).
O objetivo de Zacarias de Góis era deixar a Coroa desprotegida e, com isso, explorar
ao máximo a consternação da deputação progressista com a perspectiva da dissolução da
Câmara e, com ela, da derrubada geral a que se seguiria, conforme a lógica do spoil system.
Ao torná-la uma demonstração pública de repúdio dos liberais e dos progressistas ao modelo
saquarema do parlamentarismo tutelado, ele aproveitou sua queda para reforçar, embora às
expensas das instituições, sua posição de doutrinador e de liderança partidária. Ademais, além
de repetir que a escolha senatorial não era acertada e que os ministros de Estado eram sim
responsáveis pelos atos do Poder Moderador, Zacarias se recusou a seguir a praxe de indicar à
Coroa seu sucessor. Ao deixar de indicar um histórico para sucedê-lo, ele evitava que o grupo
de Teófilo Otoni se firmasse como alternativa ao seu próprio partido. grupo centrista.
Obrigando-os a partilhar consigo e com os seus o amargo cálice do ostracismo, Zacarias
obrigava os históricos a se fundirem num mesmo partido oposicionista, pois do contrário seria
muito difícil enfrentar o domínio conservador. O irmão de Otoni, Cristiano, narra que, ao se
reunirem progressistas e históricos, já liberais, para definir os rumos da nova oposição,
“queixou-se alguém timidamente que ele (Zacarias) não aconselhasse o Imperador a chamada
de um liberal (histórico), ao que respondeu: ‘É verdade que, consultado pelo Imperador,
recusei apontar-lhe nomes; eu não podia indicar os conservadores, mas, se era possível um
ministério liberal, aí estava o meu! ’” (OTONI, 1983:134).
Joaquim Rodrigues Torres, à bala. A despeito das admoestações que, ao apresentar o novo
ministério conservador à Câmara, o velho saquarema dirigiu aos deputados que aprovarem o
orçamento e os créditos suplementares para a guerra, a maioria liberal revoltada se recusou a
fazê-lo; deste modo, ela expressaria sua desconfiança frente ao novo governo, para depois
acusar o novo governo de ilegítimo frente às regras do parlamentarismo e, gravando a nova
situação conservadora com o ônus da ditadura, combater a volta do absolutismo ou
despotismo saquarema. Não satisfeitos de atacar frontalmente a pedra de toque do modelo
saquarema, que era a primazia do Imperador no governo parlamentar brasileiro, por meio do
novo gabinete conservador, os senadores e deputados liberais se referiram criticamente ao
monarca, acusado de, com sua postura, descaracterizar o sistema representativo. Para ancorar
sua acusação na própria Constituição, que sustentava literalmente que a Coroa podia fazer o
que fizera, os liberais fizeram uma distinção entre legalidade e legitimidade; assim, embora
reconhecesse que o ato do Poder Moderador era legal, o senador Nabuco de Araújo o
condenou no Senado como ilegítimo na medida em que, ao recusar o princípio democrático
representado pela maioria da Câmara, dava origem a um governo factualmente absoluto,
porque irresponsável. Ou seja, porque violava os princípios do governo parlamentar. A
despeito da hipocrisia de Nabuco de Araújo, que aludia à maioria liberal como “tão legítima,
tão legal, como têm sido (...) e podem ser todas as maiorias, que hão de vir enquanto não
tivermos liberdade de eleição” (In: NABUCO, 1997:766), o fato era que o mais importante
doutrinário do Partido Liberal denunciava, da tribuna onde haviam discursado Caravelas,
Cairu, Vasconcelos e Uruguai, o que havia de mais coimbrão no modelo político saquarema -
a recusa de fazer do Estado um perfeito espelho dos interesses sociais.
eleições no nosso país? Vede este sorites fatal, este sorites que acaba com a
existência do sistema representativo: o Poder Moderador pode chamar a quem
quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la;
esta eleição faz a maioria. Eis aí o sistema representativo do nosso país” (In:
NABUCO, 1997:766).
75
Exemplo de historiografia whig dessa espécie e prova de sua durabilidade é o manual escolar decalcado dos
autores mencionados, elaborado por J. E. Williams, H. Sidney Warwick e Philip W. Sergeant, English History –
Political, Constitutional and Social, publicado em 1921. “Jorge III, filho mais velho de Frederico, Príncipe de
Gales, nasceu na Inglaterra, e desde a infância foi cercado pelas influências tories; ele subiu ao trono com ódio
do governo whig, e com a idéia de que poderia governar de forma mais ou menos absoluta. A Inglaterra tem
razão em evocar Jorge III em seu papel de déspota” (WILLIAMS, WARWICK & SERGEANT, 1921: 166).
O Momento Monarquiano 293
começava a sua biografia do Conselheiro Furtado comentando ter considerado por algum
tempo o projeto de uma obra que se chamaria Estudo Comparado dos Reinados do Sr. D.
Pedro II e de Jorge III de Inglaterra (ALMEIDA, 1944:13).
76
A natureza dessa liberdade e a necessidade de resguardá-la contra a ameaça da tirania democrática da maioria
é o tema central de Da liberdade, uma das obras políticas mais importantes de Mill. Essa defesa da liberdade
enquanto motor do progresso numa sociedade civilizada encontra sua pedra de toque na direito individual à livre
opinião, porque, sendo os valores sociais relativos às épocas e aos lugares, era a natureza falível da atividade
cognitiva que imporia a estrutura aberta do debate público como condição de seu próprio aprimoramento. A
verdade deveria ser vista como o resultado provisório de um embate necessário entre pontos de vista
antagônicos, capaz de progressivamente refutar os erros e os equívocos. Este é o ponto basilar da teoria social
milliana, que tem como moto contínuo a idéia da produtividade do conflito e da valorização da diversidade e do
contraditório como fermento da atividade social (LYNCH, 2006b).
O Momento Monarquiano 294
equilibrada entre Coroa, Lordes e Comuns. As prerrogativas régias deveriam ser transferidas
aos ministros, responsáveis perante a Câmara que representava o país: “O Parlamento não
nomeia qualquer ministro, mas a Coroa indica o chefe da administração de conformidade com
os desejos gerais e inclinações, manifestados pelo Parlamento, e os outros ministros de acordo
com a recomendação do chefe” (MILL, 1998:66). A mesma preocupação com a qualidade do
governo democrático se refletia na extensão e na forma do sufrágio. Embora professasse a
universalização do voto, Mill era inimigo do voto do analfabeto. Quem não soubesse ler nem
escrever estava à margem da civilização, incapaz de compreender os próprios interesses ou os
da sociedade.
“O Rei também possui na teoria um poder que deve ser exercido somente em
último caso e em situações críticas, mas que, legalmente, ele poderia usar a
qualquer momento. Ele pode dissolver a Câmara, dizendo ao seu ministro: ‘Este
Parlamento o mandou aqui, mas eu tenho o poder de dissolvê-lo para fazer outro,
que me mande outra pessoa’ (...). Este é talvez o poder que um homem sábio
temeria menos possuir do que exercer (...). Um sábio e grande monarca
constitucional não deve ser tentado por essas vaidades” (BAGEHOT, 2003).
“O rei reina e não governa é uma máxima sobre a qual se discutiu por trinta anos.
(...) Quando Constant distinguia o poder régio do poder ministerial (...),
constatava simplesmente um fato atestado pela experiência; é que, numa
monarquia, essa divisão é a condição mesma da liberdade constitucional. Suprimi-
la, é retornar ao governo absoluto” (LABOULAYE, 1861: XXXIII).
1981:204).
Também a exemplo dos franceses, a ala esquerda dos liberais brasileiros adotou uma
forma mais exaltada de expressão – a do radicalismo. Pela crítica violenta das instituições, os
radicais chefiados por François-Jules Simon (1814-1896) reivindicavam, na França, uma
78
Quem reparou na mudança geral no estilo oratório foi Wanderley Pinho, ao se referir àquela primeira geração,
que estreava na política nas décadas de 1840 e 1850: “Há (...) uma afinação geral nos seus discursos, como nos
dos que começavam por esse tempo: - certo comedimento, o pensamento sem adornos excessivos, a eloqüência
despida de grandes verbalismos. A leitura obrigatória e repetida dos clássicos latinos e portugueses; a ouvida
atenta da austera forma expositiva dos professores de Olinda e São Paulo; dos mais famosos defensores no júri;
de oradores mais antigos das assembléias provinciais; e, no caso de Wanderley, a escuta de discípulo aos mestres
da tribuna parlamentar quando freqüentara as galerias em 1840, um ano de grandes emoções políticas – tudo
eram circunstâncias que preparavam aos discursadores daquele tempo um modelo comum para a comunicação
oral. Destacava-se como exceção um Antônio Carlos; ainda o romantismo não justificaria um José Bonifácio, o
moço; um Rui seria então inconcebível” (PINHO, 1936:85).
O Momento Monarquiano 299
política gerada pelas leis da história e pelo conhecimento científico. Combinando pureza de
princípios e pragmatismo estratégico, eles acreditavam na possibilidade de acelerar o processo
histórico mobilizando a opinião pública para reformas que, do contrário, levariam mais tempo
para se realizar. Com isso, a política deixava de ser monopólio das arenas parlamentares, para
tomar as ruas na forma de conferências e comícios. Fazendo da separação entre a Igreja e o
Estado, da democratização e da instrução pública suas principais bandeiras, Simon sustentava
que em A Política Radical que ela se pautava por uma “adesão ardente na justiça de sua causa
e na verdade de seus princípios; uma confiança irrestrita no futuro, um desdém generoso pelos
compromissos e os equívocos, o hábito de estudar rapidamente os fatos e de não levar em
conta as variações efêmeras de opinião” (SIMON, 1868: 4).
Seja como for, do ponto de vista ideológico, esses primeiros radicais eram
anacrônicos exaltados da década de 1830 do que radicais à Simon. Também democrático,
mas cientista, o radicalismo doutrinário emergiria na arena parlamentar do Império alguns
anos depois, quando, de volta ao governo, o Partido Liberal apresentou seus jovens radicais à
Câmara dos Deputados. Além de Simon, Laboulaye, Prévost-Paradol e Bagehot, a nova
geração liberal nascida na década de 1840 trouxe também Stuart Mill e Herbert Spencer
(1820-1903). Foi tanta a influência desses autores, que o filho do senador Nabuco de Araújo,
o deputado Joaquim Nabuco (1849-1910), lhes dedicaria todo um capítulo de sua
autobiografia Minha Formação: Bagehot lhe explicara o funcionamento da monarquia
parlamentar e Laboulaye americanizara o seu liberalismo, ao passo que Prévost-Paradol o
convencera da relatividade dos regimes de governo (NABUCO, 1949). Outro radical típico
era o deputado Rui Barbosa (1849-1923): se, para ele, o pai do radicalismo era “o límpido
Júlio Simon, um dos melhores homens da França” (BARBOSA, 1957: 141), o filósofo Stuart
Mill passava como “o maior pensador político do nosso tempo, o autor dos melhores livros
modernos sobre a democracia e a liberdade, o sábio bem temperado nas suas opiniões”
(BARBOSA, 1966:22). Em nome da democracia, do progresso e da ciência, os liberais
O Momento Monarquiano 301
radicais brasileiros rompiam com as fórmulas de transigência que, segundo eles, haviam até
então caracterizado a política liberal da geração anterior, que tivera Guizot como principal
referência. Rui Barbosa explicava: “Toda reforma é a preparação de uma reforma superior;
todo progresso, a determinante de um progresso futuro” (ACD, 21/06/1880).
Emulando Tavares Bastos, Rui era um apaixonado pela Inglaterra que rejeitava
conscientemente a galomania política e, por conseguinte, o saquaremismo; para ele, o
Visconde de Uruguai era “o pontífice da escola reacionária” (BARBOSA, 1978: 307).
Entretanto, os radicais brasileiros se comprometiam expressamente a lutar dentro da lei: ao
invés de uma força de subversão, o radicalismo era, para eles, “um elemento de ordem, um
princípio de paz, um ponto permanente de apoio ao gênio do progresso moderado contra os
empuxões opostos da reação retrógrada e das exaltações revolucionárias (...), equilibrando o
desenvolvimento do Estado entre essas exagerações extremas” (BARBOSA, 1950:4). No
intuito de colocar o Brasil à altura do século, porém, os liberais radicais não tinham medo de
mexer na Constituição. Desde que as reformas eleitorais de 1832 e 1867 haviam
democratizado a Constituição da Inglaterra, ela já não podia ser mais invocada “como modelo
de sobriedade e lentidão nas reformas”. O fim do consenso em torno da natureza mista da
Constituição da Inglaterra se refletia diretamente na interrpretação que os liberais conferiam à
Constituição do Brasil. Assim, como a Grã-Bretanha não era mais, para Tavares Bastos, “a
nação onde os conservadores se compraziam de admirar a idolatria das velhas instituições”
(TAVARES BASTOS, 1976:114); Rui Barbosa não podia ver a Constituição brasileira como
“um Talmude, onde o texto, materialmente obedecido, exerça a menos inteligente e a mais
servilizadora das tiranias”; típico dos conservadores, esse “rabinismo constitucional” seria
“incompatível com as propriedades fatalmente expansivas do sistema parlamentar”
(BARBOSA, 1950: 95). O jovem Nabuco não destoaria do colega de bancada:
Ao governante tutelar da política, o rei reina, mas não governa. A campanha pela
eliminação da opacidade do Estado e pela neutralização do poder do chefe do Estado
contribuiu para difundir, numa chave positiva, o termo parlamentarismo, que tivera até então
conotação pejorativa. Dali por diante, praticamente todos os luzias fizeram profissão de fé
parlamentarista, e mesmo a expressão governo parlamentar, diversamente do que ocorrera até
então, passou a ter esse significado mesmo significado. A Coroa já não tinha, aí, qualquer
parcela na atividade governativa: na melhor das hipóteses, ela exercia o papel de um poder
neutro; na pior, apenas uma função simbólica, ornamental, de representação do Estado. Se até
então governo parlamentar significara que os governos, gabinetes ou ministérios tiravam sua
legitimidade da dupla confiança que mereciam da Coroa e do Parlamento, dali por diante ele
seria sinônimo de parlamentarismo, ou seja, de governo formado e sustentado exclusivamente
pelo Parlamento. Já em 1870, Zacarias o empregava: “É necessário falar muitas vezes na
Inglaterra, quando se trata do sistema parlamentarista, porque, se há país que ofereça o tipo
desse regime, é a Inglaterra” (GOIS E VASCONCELOS, 1979: 324). Em 1885, o senador
Silveira Martins distinguia entre sistema representativo e parlamentarismo, estádio posterior
daquela forma de governo na direção da democracia: “Eu sou da escola do parlamentarismo,
que sustenta que o ministério não pode viver sem maioria da Câmara dos Deputados”.
O Momento Monarquiano 303
“Na teoria liberal do governo que nos rege, a Coroa é apenas a imagem de um
poder, cuja realidade ativa está no gabinete; porque ao gabinete é que, na essência,
pertence toda a autoridade, que as formas convencionais da linguagem
parlamentar nominalmente atribuem à Coroa (...). Entre essa teoria (a
monarquiana) e a do constitucionalismo belga, a do constitucionalismo britânico,
a do constitucionalismo de todas as monarquias democráticas, medeia um abismo.
Eu poderia quase filiá-la politicamente ao espírito realista de Bolingbroke e dos
tories, no princípio do século XVIII, sob o reinado de Ana, pois fácil não é
contestar certo vínculo de parentesco direto entre a errônea concepção que
autorizava a prerrogativa a designar os ministros arbitrariamente, em vez de os ir
buscar no seio da confiança dos comuns, e a que habilita a Coroa a contrabalançar
com suas convicções pessoais a opinião do Parlamento.
interior do Estado. Dentre os princípios decretados nas Cartas modernas, uns são
cardeais, uns necessários, outros contingentes. Estabelecei nelas a soberania do
povo; conferi à representação dele o arbítrio do impostos, e tereis criado o
governo parlamentar, cujo definitivo estado, cuja fórmula essencial é a
supremacia da delegação popular, encarnada numa corporação eletiva. Uma vez
assentado este padrão, todas as instituições inferiores hão de forçosamente
amoldar-se aos limites do plano geral (...). Daí, Sr. Presidente, em todos os países
constitucionais, a par da Constituição escrita, essa outra Constituição, superior
àquela, que Freeman denomina a Constituição convencional. Na Inglaterra, por
exemplo, Sr. Presidente, a legalidade constitucional ainda hoje reverencia no
monarca a suprema autoridade executiva (...). Entretanto, a realidade real,
realíssima, cuja tradução deixo a um dos mais competentes historiadores políticos
da Inglaterra, ao mais profundo fisiologista da vida parlamentar naquele país,
Bagehot, ‘é que o rei presidente apenas às partes imponentes da Constituição, e o
primeiro-ministro, às partes eficientes’. Os ministros, que, na fraseologia jurídica,
têm-se como servidores da Coroa, não são senão órgãos da representação
nacional. O Poder Executivo é rigorosamente feitura da câmara popular, a quem,
por função privativa, incumbe nomeá-lo, mantê-lo, destituí-lo. O monarca
eclipsou-se sob o Presidente do Conselho, personificação dos comuns, que é o
árbitro na política e na administração”.
“Pois bem: isso, que constitui a natureza específica do governo que nos rege (o
parlamentarismo), é absolutamente desconhecido à letra da Constituição
brasileira. (...). E, contudo, este é o eixo de todo o governo parlamentar, é o
governo parlamentar inteiro. A Carta de 1824 legisla, ao contrário, que o
Imperador nomeará e exonerará, portanto, livremente os ministros. Seguir-se-á daí
que a seleção dos ministros esteja ao arbítrio da Coroa? (...) Não se segue tal (...)
por uma razão filosófica e uma razão existencial. A razão filosófica está em que,
uma vez representada sinceramente a Nação num Parlamento livre, a soberania
que essa instituição exprime, assumirá uma realidade absorvente, concentrará em
si toda a ação política, e fundirá pela origem o Poder Executivo na representação
popular. A razão jurisprudencial jaz na doutrina viva da grande mestra do governo
representativo, que não cessarei de citar, a Inglaterra. Ali também, segundo a
teoria legal, cabe à Coroa livremente e à sua discrição pessoal está entregue a
O Momento Monarquiano 305
escolha dos ministros. Entretanto, nada é menos livre, nada é mais forçado, nada
mais fatal do que essa escolha. Logo, o livremente do art. 101, como o
privativamente do art. 98, exprimem apenas uma fórmula reverencial, em
homenagem ao papel simbólico da Coroa. Nos governos de gabinete, não há um
átomo de autoridade, política ou administrativa, a cujo respeito os membros dessa
junta parlamentar que se intitula ministério sejam simples referendatários da
vontade imperial” (BARBOSA, 1952:37/41).
Qualquer outra forma de governo que não fosse a parlamentarista era tachada pelos
liberais como a do governo pessoal ou do imperialismo, expressões que exprimiam a vaga
noção de um absolutismo disfarçado ou encoberto - a segunda das quais, apropriada do
repertório crítico dos liberais franceses contra o Imperador Napoleão III. Ambas eram aqui
empregadas para designar criticamente o modelo monarquiano teorizado pelo Marquês de
Caravelas, adaptado ao governo parlamentar por Bernardo Pereira de Vasconcelos e
doutrinariamente fixado, enfim, pelo Marquês de São Vicente e pelo Visconde de Uruguai.
Senador Furtado, ídolo dos históricos, admitia que a máxima o rei reina e não governa não
correspondia ao teor da Constituição e que as eventuais deficiências do governo
representativo, no Brasil, decorriam de fatores outros, que não da ação de Dom Pedro II:
“Dai-me eleição livre, Parlamento independente, ministros que assinem todos os atos do
Poder Executivo e do Moderador, e eu não receio influências indébitas e camarilhas” (ACD,
1°/07/1861).
De 1868 em diante, porém, a expressão Poder Moderador passou a ser tomada como
sinônimo de poder pessoal, ou de poder legal, mas ilegítimo, do Imperador. Ao invés de
guardião da incorruptibilidade do governo misto pelas facções parlamentares, como queriam
os monarquianos; de poder neutro contra as ameaças de parcialidade dos demais poderes
políticos, como queria Constant; os antigos progressistas começaram a aderir à tese dos
históricos de que o modo como Pedro II exercia o Poder Moderador desvirtuava o governo
representativo, ao invés de garanti-lo. A culpa se deslocava da incompetência dos
representantes para recair sobre os caprichos ou o absolutismo do Rei. Não por acaso, a
associação entre Pedro II e Jorge III feita por Tito Franco e outros remetia ao período em que
o monarca inglês governara conforme a teoria bolingbrokeana, condenada severamente pela
historiografia whig. Na medida em que provocava a fragmentação e a desordem partidária
para manter ou aumentar o cesarismo, o Imperador se tornara, para Silveira Martins, o
“arquiteto supremo das ruínas políticas do país” (MARTINS, 1979; 235). Tendo negado até
então o governo pessoal, Tavares Bastos agora o reconhecia e o condenava como a “forma
moderna do antigo absolutismo”, cuja ação entorpecia o desenvolvimento das vocações
políticas espontâneas (TAVARES BASTOS, 1997).
Culpar o Imperador pelas mazelas políticas ou partidárias tinha uma tripla utilidade:
eximia a classe política de suas responsabilidades diante de suas clientelas insatisfeitas,
composta geralmente de lavradores; conferia-lhes uma aura politicamente correta de
modernidade democrática (pegava bem mostrar distância do Paço); e, por fim, servia muito
especialmente para, pelo temor das críticas cada vez mais virulentas, pressionarem a Coroa a
despachar os adversários e, invertendo a situação política, chamar o partido opositor ao poder.
É certo que, mais responsáveis, luzias como os senadores Sinimbu e Saraiva repetiam que a
fonte do imperialismo ou poder pessoal do Imperador não estava nele mesmo, mas nas
fraudes praticadas pelos ministérios, que desmoralizavam a Câmara dos Deputados como
espaço de representação nacional; e que uma reforma eleitoral, que fizesse dela um verdadeiro
espelho da sociedade, bastaria para restabelecer “o equilíbrio entre os diversos poderes
O Momento Monarquiano 307
Mas essa interpretação liberal também não era unânime: o Visconde de Sinimbu, por
exemplo, entendia que a distinção de Prévost-Paradol era inconstitucional; além disso, os
liberais argumentavam diversamente quando a inversão da situação partidária lhes favorecia.
Assim, em 1878, os liberais justificaram-na alegando que o país queria a eleição direta que
eles patrocinariam, ao passo que os conservadores não a fariam, nem deixariam
voluntariamente o poder. Este era um caso em que, por conta de seu elevado propósito de
regenerar o sistema representativo, era admissível e justa a inversão da situação política
determinada pelo Imperador - até porque seria a última. Elevado à condição de ministro da
Fazenda, desta vez o enfezado Silveira Martins aplaudiu a inversão: “O Senhor D. Pedro II
procedeu (...) de um modo rigorosamente constitucional: não criou novidade, imitou o Rei
Leopoldo (da Bélgica). Despediu o Partido Conservador, que queria realizar a idéia de seus
O Momento Monarquiano 309
“Para que um povo se aperfeiçoe e aumente em virtudes, é mister que seja livre. É
a liberdade que excita o sentimento da responsabilidade, o culto do dever, o
patriotismo, a paixão do progresso (...). Negam ao país aptidão para governar-se
por si, e o condenam por isso à tutela do governo. É pretender que adquiramos as
O Momento Monarquiano 311
qualidades e virtudes cívicas, que certamente nos faltam, sob a ação de um regime
de educação política que justamente gera e perpetua os vícios opostos”
(TAVARES BASTOS, 1997:32 e 33).
Como se sabe, o espectro ideológico constitui um arco com diversas divisões nas quais
se acham instalados os diversos atores políticos, conforme a filosofia da história prevalecente.
Na época em apreço, em que a radicalização da filosofia do progresso histórico apontava a
democracia como télos, a mudança operada no paradigma do governo representativo obrigou
cada segmento partidário a dar um passo adiante para a ele se adaptar - como numa fila em
que cada indivíduo ocupa um lugar demarcado no chão. A ocupação de um novo “lugar” pela
vanguarda liberal – a do radicalismo democrático - obrigou a direita liberal, que se achava
imediatamente atrás dela, a seguir-lhe o passo para ocupar o antigo lugar de sua antecessora.
O movimento foi, assim, seguido pelos conservadores, cuja ala esquerda adotou a posição que
outrora cabia à direita dos liberais, cabendo o lugar seguinte à ala direita. No final, a posição
correspondente, no período anterior, ao lugar mais à direita, acaba abandonada por ser a mais
antiga e a mais irrespondivelmente anacrônica. No caso em tela, essa posição correspondeu
àquela em que se achava a ala burocrática dos saquaremas, com seu discurso monarquiano. Se
ela tinha de dar um passo adiante, para ocupar a posição seguinte, teria de se desfazer de sua
antiga linguagem, ou adaptá-la aos novos tempos. De fato, depois daquela data, percebe-se
que a linguagem dos doutrinários franceses e dos monarquianos foi paulatinamente
abandonada pelos conservadores. Embora reiterado quando se tratava de prestigiar a
monarquia e demarcar suas diferenças face aos liberais, na prática, os conservadores
toleravam cada vez menos a tutela do Imperador sobre a política, pressionando-o nos
bastidores para se curvar às praxes parlamentaristas.
Seja como for, é um engano crer que o discurso monarquiano saquarema tenha
O Momento Monarquiano 314
declinado de um dia para o outro. Por dez ou doze anos depois da crise de 1868, os
conservadores mantiveram o fio ideológico que desde os coimbrões caracterizava a direita
brasileira. Exemplo disso foi a alocução do principal chefe do partido, Visconde de Itaboraí,
às vésperas da queda dos progressistas: “A liberdade que é licença e desordem, o Partido
Conservador repele e detesta; a liberdade que é condição suprema e indeclinável da dignidade
e da vida dos povos livres, o Partido Conservador zela e a quer. Se a liberdade é pretexto para
oprimir direitos, ela é uma ficção detestável; se a liberdade é o símbolo da anarquia, traduzida
pela igualdade da servidão, nós, os conservadores, a não queremos. (...) Os princípios de
ordem, que têm sido a crença e a prática do nosso partido, não os abandonemos, não; seja-nos
com eles cara a liberdade constitucional” (In: NABUCO, 1997:759). No ano seguinte, já na
condição de Presidente do Conselho, Itaboraí refutou o sorites de Nabuco de Araújo em
termos similares, recriminando os liberais por sua inconsistência ideológica: os luzias eram
políticos limitados a “inventar algumas frases cabalísticas, aforismos sem sentido, teorias de
ocasião, para justificar certas evoluções políticas”. O sobrevivente da trindade saquarema
negava a ilegitimidade da nova situação, opondo, à autoridade de Stuart Mill - invocado por
Zacarias para justificar o parlamentarismo -, “a de um escritor de maior autoridade; a de um
dos mais sábios homens de Estado da Inglaterra”, para quem o monarca não era “um simples
zero, mas uma parte substancial do sistema político”. Ocorre que o autor a que Itaboraí se
referia, para sustentar que o rei reinava, governava e administrava, era justamente era o
Barão de Brougham e Vaux, cuja teoria do governo misto havia sido atacada como literária e
anacrônica por Bagehot!
abalo equivalente àquele exigido para decretar o estado de exceção: o modelo político
saquarema condenava qualquer parlamentarismo, para além do governo parlamentar tutelado.
Seja como for, todas essas reiterações do discurso monarquiano saquarema eram o
seu verdadeiro canto de cisne; ancorada nas teorias da separação de poderes e do governo
misto, ele não poderia resistir por muito tempo ao influxo de suas novas teorias que
informavam o paradigma democrático do governo monárquico (pelo menos, não em seu
formato saquarema). Além disso, a consolidação da Terceira República na França em torno de
1877, com a chamada “Constituição Grévy”, confirmava a tese de que o chefe de Estado
deveria deixar a escolha do Presidente do Conselho à discrição da Câmara Baixa. Ao mesmo
tempo em que privavam os conservadores brasileiros de sua referência ideológica, tais
eventos comprovavam a viabilidade de um governo não-monárquico, estável e conservador
no país vanguarda da civilização. Eles pareciam confirmar a filosofia da história para quem,
dada a marcha rumo à democracia, a república era o governo do futuro; assim, por exemplo,
Zacarias de Góis e Vasconcelos já afirmava em 1875, no Senado: “As monarquias, posto que
tendam a desaparecer perante a democracia...” (GÓIS E VASCONCELOS, 1979:470). Além
disso, a pronta repressão da Terceira República à Comuna de Paris demonstrara à direita que,
fundado na soberania popular, o regime republicano tinha mais legitimidade para reprimir
insurreições jacobinas ou socialistas do que a monarquia – ou seja, que ela poderia ser
eficazmente conservadora (LAVELEYE, 1872:76). Perdida a referência francesa de
monarquia forte, as novas gerações conservadoras abandonaram de vez o liberalismo
doutrinário de Guizot e deram de cara com o parlamentarismo democrático, que depois da
segunda reforma eleitoral, em 1867, se tornara um fato incontornável na Grã-Bretanha.
O Momento Monarquiano 317
79
Para frisar a continuidade de emprego de tal discurso pela direita brasileira, limito-me a extrair um trecho do
artigo do senador Firmino Rodrigues Silva, publicado no Correio Mercantil em pleno ostracismo conservador,
trinta anos depois do Regresso (1867): “A idéia conservadora é inseparável de todas as instituições, em todos os
tempos e fases da civilização. É a primeira que surge no dia seguinte ao das revoluções para firmar-lhe as
conquistas. Sem ela a sociedade giraria desnorteada, como no espaço os corpos privados de centro de gravitação.
(...) Nos domínios da razão e da consciência, este instinto se traduz no desejo de conservar o bem que possuímos;
de não abandonarmos irrefletidamente o certo pelo duvidoso; de não caminharmos para o desconhecido senão à
luz das experiências dos fatos sucessivos, das idéias encadeadas, como nas ciências exatas chegamos a apreciar o
valor da incógnita (In: MASCARENHAS, 1961:328)”.
O Momento Monarquiano 318
conservadores, liberais, liberais mais adiantados e radicais. Uma vez que a identidade era
maior entre whigs e tories do que entre um whig e um radical, Paranhos entendia ser
perfeitamente possível que, no Brasil, os moderados também se entendessem sobre uma
política comum de governo, fosse ele luzia ou saquarema80.
poder pessoal, alegando que já era hora de Pedro II passar aos conservadores um pouco de
sua luz e calor. A hesitação dos senadores conservadores ligados ao funcionalismo público
em derrocar o castelo progressista não fazia sentido: “Só se faz oposição para ser governo.
Não é oposição de beijocas” (ASI, 30/06/1868). É que os senadores conservadores das
províncias vinham sendo pressionados por suas bases agrárias, temerosas de que, cansados de
oposição, os seus senhores de engenho acabassem por aderir ao progressismo. Era a pressão
de uma sociedade aristocrática que via o poder em termos estritamente clientelísticos e
patrimoniais: depois de seis anos na oposição, a única forma de evitar a debandada voltar ao
governo; e para tanto, era preciso pressionar o Imperador. Era franca a este respeito uma carta
então enviada da Bahia a Cotegipe: “Neste país, seis ou sete anos sem o contato e a força do
poder, um partido não pode viver. (...) Ficará o casco do Partido Conservador; grandes serão
as deserções”. O missivista insinuava talvez fosse preciso intimidar o Imperador para que a
inversão ocorresse: “Não me iludo – quando a Alta Mente houver esgotado a idéia que gerou
esta situação (progressista), quando as evoluções atingirem o seu termo, a situação mudará”
(In: PINHO, 1930:119/120) 81. Essa divergência dos senadores saquaremas, que fomentava a
indisciplina na Câmara, chamou a atenção do próprio Zacarias, que a atribuiu à morte dos
grandes chefes do partido: Paraná, Eusébio, Uruguai.
Mais do que Cotegipe, que pertencia a uma geração mais velha, ou mesmo de Ferreira
Viana, que lhe era contemporâneo, o novo chefe político que representava a ascensão da ala
agrária do partido sobre aquela do funcionalismo foi o filho de Uruguai e seu homônimo, o
Conselheiro Paulino José Soares de Sousa (1834-1901). Ele era ainda sobrinho do Visconde
81
Foi também provavelmente por influência de Cotegipe que um jovem conservador ligado à ala agrária do
partido, Antônio Ferreira Viana (1833-1903), escreveu naquele mesmo ano de 1867 uma pequena sátira
intitulada A Conferência dos Divinos, em que acusava o Imperador de ter rebaixado o nível da política e dos
partidos por meio do cooptação, que cada vez mais ampliava o seu poder. Era um novo e mais inteligente tipo de
tirania, que dispensava a violência e o panis et circenses de seus frustrados congêneres: “Grande erro foi o
vosso, meus irmãos! A política da força faz mártires, e os mártires, como sabeis, ressuscitam; a política da
corrupção faz miseráveis e os miseráveis apodrecem antes de morrer. Vós encontrastes em vossos reinados a
invencível resistência dos cadáveres vivos e eu governei pacificamente vivos cadáveres”. E arrematava:
“Diverti-me muito, fiz o que quis e não matei um homem!” (VIANA, 1956).
O Momento Monarquiano 322
de Itaboraí que, já velho, o preparava fazia algum tempo para suceder-lhe na direção do
partido no Rio de Janeiro e, daí, do país. Eleito deputado geral em 1856, pelo círculo de
Niterói, Paulino Filho estivera sempre ao lado dos puritanos. Quando seu tio tornou-se
Presidente do Conselho em 1868, Paulino foi nomeado Ministro do Império, posto em que se
revelou favorável ao livre cambismo – fez editar, para uso nas escolas, a obra de Samuel
Smiles, O Poder da Vontade – e apresentou um novo projeto de interpretação do Ato
Adicional, concebido “em termos muito liberais” em relação às províncias (SOARES DE
SOUSA, 1923: 93). É preciso lembrar que Paulino era apenas fazendeiro e, como tal, era
ligado ao alto comércio da Corte; ele não havia exercido a magistratura, nem era familiar à
burocracia ou aos profissionais liberais. Como Itaboraí, ele pensava que a utilidade do modelo
saquarema dependia da adesão do Imperador à lavoura; valendo-se do discurso monarquiano
para resguardar a ordem no interesse do status quo aristocrático. Tanto assim que, depois de
1867, e a despeito dos protestos públicos de adesão ao modelo saquarema, veremos que o
Conselheiro Paulino já abraçava o parlamentarismo rejeitado pelo pai como meio de obstar a
marcha da abolição da escravatura deflagrada do trono. Embora também anglófilo, o projeto
de renovação do conservadorismo do Conselheiro Paulino e de seu primo-irmão, Francisco
Belisário Soares de Sousa (1839-1889), era orientado por uma perspectiva diferente da de
Alencar; assim, se o autor de O Guarani propunha tornar o conservadorismo atraente à classe
média alta das cidades, o Conselheiro Paulino tentava moldá-lo o tanto quanto possível ao
gosto da aristocracia rural. Talvez por isso que os dois Soares de Sousa e o Barão de Cotegipe
não levassem Alencar a sério, vendo nele apenas um literato destituído de pragmatismo e
senso de realidade (MAGALHÃES JR., 1977:219; RODRIGUES, 2001:61 e 77).
em 1870 pelos liberais como centralizadora, atrasada e autoritária. Com o pretexto de defesa
do ensino livre, a oposição luzia radicava, de fato, no temor de que as faculdades de medicina
da Bahia e as duas de direito, em Pernambuco e em São Paulo, fossem fechadas depois de
inaugurada a universidade no Rio (BARROS, 1986:207/265). Por isso mesmo, a proposta não
foi adiante. Reapresentado vinte anos depois, na Fala do Trono de 1889, o projeto já
contemplava a construção de duas universidades, uma no Norte, e a outra, no Sul; era o meio
de superar as resistências das províncias (JAVARI, 1993:510). O golpe militar contra a
monarquia, naquele ano, adiou a implantação das universidades para o século seguinte.
O abandono do projeto de uma universidade na Corte, pelos saquaremas não veio só.
Também foi abandonado o velho projeto de reforma administrativa, concebida pelo gabinete
Monte Alegre, em 1849, encampado pelo segundo gabinete Olinda (1857), reclamado pelo
Imperador na Fala do Trono em 1860 e elevado pelo Visconde de Uruguai à condição de
instrumento necessária para o arremate do Estado nacional. Desde pelo menos 1858, também
se opunha o Marquês de São Vicente à proposta de encarregar os processos judiciais que
envolvessem o interesse público ao Judiciário comum, preferindo o aperfeiçoamento do
sistema administrativo francês, elaborado pelo “gênio de Napoleão, que via tudo em grande, e
em toda a extensão” (SÃO VICENTE, 1958:284 e 296). A despeito do empenho dos
saquaremas, a proposta de criar uma justiça administrativa idêntica à da França, da Espanha e
de Portugal havia sido sorrateiramente engavetada pelos progressistas, que preferiam reforçar
instâncias de poder pulverizadas, como as câmaras municipais e o Judiciário. Em meados da
década de 1860, o próprio Imperador decidiu forçar a mão, encomendando ao dito marquês
alguns projetos de lei que, independentemente dos interesses partidários, julgava essenciais ao
futuro do Brasil e precisavam ser debatidos. Um desses projetos de lei era justamente o da
reforma administrativa, que criaria o esperado cordão sanitário entre a administração e a
política ao completar a estrutura do Estado. Duplicado em seu número de membros e dotado
de uma estrutura burocrática de várias secretarias, uma para cada seção, o Conselho de Estado
passaria à condição de supremo tribunal administrativo. A ele subordinado, criar-se-iam os
Conselhos de Província, tribunais administrativos que também deveriam assessorar os
governos provinciais (ARAGÃO, 1955:82/84). Para se ter uma idéia do interesse do monarca
nessa reforma, basta dizer que ele obrigou o Conselho de Estado a debater o projeto por nada
menos que trinta sessões - verdadeiro recorde, não igualado antes, nem depois, naquela
instituição.
Assim foi que, substituído o segundo gabinete Zacarias, Pedro II sondou o novo
Presidente do Conselho progressista, o Marquês de Olinda, com seu projeto abolicionista.
Mas o aristocrata pernambucano rejeitou in limine qualquer medida naquele sentido (PINHO,
1930:132). Como o projeto de reforma administrativa, aqueles atinentes à emancipação foram
discutidos no Conselho de Estado por decisão do Imperador, até serem unificados por Nabuco
de Araújo, que lhe era favorável. Elaboradas com a colaboração de Zacarias, então no poder,
as Falas do Trono de 1867 e 1868 aludiram explicitamente à necessidade de que o Parlamento
se ocupasse “dos altos interesses que se ligam à emancipação dos escravos”, devendo
encaminhar o governo o competente projeto de lei quando a Guerra do Paraguai terminasse. A
leitura da passagem pelo Imperador no Parlamento, pegando a classe política desprevenida,
teve o efeito de um verdadeiro “raio, caindo de um céu sem nuvens” (NABUCO, 1988 a: 62).
Parte dos progressistas e dos históricos esboçou então a resistência, convencidos de que havia
“idéias em que se não deve insistir de modo vago, em circunstâncias extraordinárias, e antes
de chegado o momento de dar-lhes prudente execução”. Pretenderam emendar a resposta da
Câmara à Fala do Trono, para que aquela se declarasse “convencida de que só o tempo, o
O Momento Monarquiano 326
Nem por isso o Imperador mudou de planos. Dois meses depois de finda a Guerra do
Paraguai, Pedro II sondou o Visconde de Itaboraí para que o tema da liberdade do ventre fosse
incluído na Fala do Trono de 1870. O Presidente do Conselho resistiu: ele, como muitos
outros, haviam interpretado o retorno dos saquaremas como um sinal de adiamento da questão
social. Era o caso de José de Alencar, Ministro da Justiça, para quem esta era uma medida que
deveria antes ser reclamada “do espírito público, tão bem disposto para sua realização” (In:
MAGALHÃES JR., 1977:214). As razões da resistência do segundo gabinete Itaboraí ficam
mais claras à luz das anotações deixadas pelo Ministro da Marinha, o Barão de Cotegipe,
tomadas durante despacho no Paço de São Cristóvão. Interpelado pelo Imperador, Cotegipe
respondeu que a inclusão do tópico na Fala do Trono desencadearia “uma guerra pior que a do
Paraguai”. Quando Pedro II insistiu, declarando “que era mister fé, que sem ela nada se faria;
que sabíamos quais as suas idéias; que havia de persistir nelas (...); que na primeira ocasião
oportuna daria a conhecer francamente a sua opinião e o faria aplicando à sua casa a medida
da liberdade do ventre”, Cotegipe replicou em tom terminativo que “Sua Majestade não podia
intervir com o peso de suas opiniões e contra a de seus ministros em soluções desta ordem”;
que o monarca, “em nosso sistema, não podia praticar aquilo a que estava resolvido”. Ou seja,
diante da ameaça de abolição vinda do alto, os conservadores ligados à lavoura também
começaram a apelar para o parlamentarismo; argumentando que o interesse público não era
decidido pelo Imperador, mas pela Nação, isto é, a grande propriedade rural. “Quando nesta
conferência se disse que a questão da emancipação era semelhante à pedra que rolava da
montanha, porque seríamos esmagados”, continua Cotegipe em suas notas, “Sua Majestade
respondeu que não duvidava expor-se à queda da pedra, ainda que fosse esmagado. E o
Brasil? Esta é a questão...” (In: PINHO, 1930:142/143). Além disso, para Cotegipe já era
tempo de o Imperador se comportar como a Rainha da Inglaterra, deixando de escolher
pessoalmente os senadores e se limitando a nomear os candidatos da preferência do Presidente
do Conselho.
“Parece-me que para evitar essas discordâncias, que se tornam de mais difícil
solução depois de enunciado o pensamento da Coroa, seria conveniente que neste,
como sucede em outros atos do Poder Moderador, fosse ouvido o gabinete.
O Momento Monarquiano 327
Por fim, agastado por ver o Imperador opor-se aos interesses da bancada ruralista, a
revolta contra a tutela do Imperador contaminou o próprio Presidente do Conselho. Tendo
sugerido ao monarca que condecorasse as personalidades que contribuíram para as obras do
porto, o engenheiro André Rebouças anotou em seu Diário a reação do Visconde de Itaboraí:
que “a proposta para as condecorações não devia ter sido feita sem lhe consultar primeiro; que
ele entendia que o Imperador não devia ter iniciativa em coisa alguma; que era da opinião do
ex-Ministro Zacarias que nem mesmo na escolha de senadores!”. E concluía o futuro
abolicionista, chocado: “É de admirar e fez-me verdadeira sensação tão desabrida linguagem
no chefe conservador, que subiu ao poder exatamente porque o Conselheiro Zacarias não quis
subscrever a escolha do Imperador, de Torres Homem, para senador pelo Rio Grande do
Norte!” (REBOUÇAS, 1938:178). No entanto, o único ministro que comunicou diretamente
ao Imperador as queixas do ministério foi o ministro da Justiça, José de Alencar. Ele
suspendera o serviço de clipping que permitia ao soberano ler as queixas formuladas nos
jornais das províncias pelas oposições liberais e interpelar os ministros de Estado, na
O Momento Monarquiano 328
qualidade de chefe do Executivo. Além de tal tarefa não se achar prevista no regulamento da
secretaria, Alencar alegava que a tutela exercida pelo Imperador sobre o governo não era
compatível com o parlamentarismo querido pela Nação:
“Essa inspeção minuciosa que Vossa Majestade Imperial deseja exercer sobre o
país na melhor intenção e com o pensamento de bem usar de sua alta e benéfica
atribuição moderadora, toma aos olhos da Nação um aspecto que não se coaduna,
nem com o espírito sinceramente constitucional do Soberano, nem com a
dignidade do seu Ministro da Justiça. Entende que a opinião pública e mui
sensatamente, que o zelo de V. M. I. em investigar o procedimento das
autoridades subalternas é sintoma infalível, ou de uma desconfiança no ministro,
ou de um exercício pessoal da atribuição executiva. O Ministro de V. M. I. faltaria
à lealdade e dedicação devidas a seu Monarca, se não houvesse abolido um estilo
que expunha a Coroa, desairando o Gabinete” (In: MAGALHÃES JR., 1977:219).
tiveram os políticos ligados à lavoura e à escravidão; e o fascínio por ele exercido sobre os
políticos moços que, oriundos dos meios urbanos, ansiavam pela modernização do país.
Liberal na juventude, Rio Branco se tornara saquarema depois de convidado pelo Marquês de
Paraná para acompanhá-lo como seu secretário particular ao Rio da Prata. Nas Cartas ao
Amigo Ausente, Paranhos repetia todos os topoi saquaremas: elogiava o realismo, criticava o
personalismo, lamentava a atração absorvente pela política82; atacava as paixões de partido
como “veneno corrosivo da moralidade pública e da felicidade do país” (RIO BRANCO,
1953:43); e recriminava a esterilidade dos “intermináveis” e “metafísicos” debates
parlamentares, que obstaculizavam a organização do Estado e o progresso. O Ministro dos
Negócios Estrangeiros de então (1850) era o Visconde de Uruguai; suas afinidades com o
diplomata Paranhos eram tais, que a admiração tornou-se recíproca. Era o que anotava o autor
do Ensaio sobre o Direito Administrativo, numa carta a um amigo: “Aprovo muitas vezes o
que fazem os nossos agentes, mas parece-me quase sempre que se eu tivesse no caso deles,
faria mais alguma coisa. Com o Dr. Paranhos não sucede assim. Sempre que leio os seus
despachos, digo comigo: é precisamente o que eu faria ou diria...” (In: RIO BRANCO,
1947:140). Ministro da Justiça quando da publicação de Da Natureza e dos Limites do Poder
Moderador, Rio Branco repelira publicamente as pretensões ali expostas pelos progressistas
como inconstitucionais e quase revolucionárias. “O soberano primitivo só se manifestou na
época da promulgação da Constituição do Império; depois desapareceu, porque ficou
encarnado nos quatro poderes políticos delegados aos representantes da soberania. Dizer-se
que este soberano - que desapareceu e não tem mais ocasião de manifestar-se - ainda está
vigilante e prestes a chamar a contas os mandatários, os quatro poderes políticos, é o mesmo
que apregoar o direito de revolução” (In: GÓIS E VASCONCELOS, 1979: 90 e 91). Para ele,
o respeito à autoridade constituía condição primeira da vida social:
“Todos querem a autoridade muito respeitada, mas quando estão de cima; é uma
planta que todos desejam, mas quer cada partido não quer senão plantada no seu
jardim. E sem respeito à autoridade, como poder haver ordem e moral pública?
Como Montalambert, antes quero que me chamem com o apelido que quiserem,
do que andar cortejando as paixões loucas, do que ser escravo dos ódios, dos
82
“Falo na nossa loucura política, que nos tem dividido, irritado e armado uns contra os outros; não por amor de
questões de vital interesse para as três fontes de nossa riqueza – agricultura, comércio e indústria -, mas por
causa de idealidades de organização social, que fascinam o povo, que o entusiasmam, mas que em vez de
trabalho, pão barato, sossego e comodidades, só lhe dão fatigas, fome, desgraças e contínua agitação”. Ainda:
“Criemos emprego para o nosso povo, honremos as artes úteis, que os empregos públicos já não bastam. É
preciso destruir a convicção, em que muitos estão, de que o dinheiro que se recebe de um trabalho honesto deixa
de ser honroso, é um salário humilhante, porque não sai dos cofres do Estado” (RIO BRANCO, 1953:128 e 130).
O Momento Monarquiano 330
seu primeiro ministro e disposto a sustentá-lo a todo transe83. Por isso, Rio Branco foi apoiado
por colegas conservadores como Inhomirim, Bom Retiro e São Vicente, sofrendo uma
oposição construtiva do liberal Nabuco de Araújo.
Entretanto, como percebeu este último, a época não era mais “de conciliação, mas de
ação e reação” (In: NABUCO, 1997:814). Se o discurso monarquiano permitia ao visconde
levar adiante a reforma do elemento servil com o apoio do trono e de todos os que no projeto
de lei viam a marca do interesse público, ele simetricamente atraía a oposição daqueles para
quem o interesse público era definido pela própria Nação, isto é, pela aristocracia rural; e que
por isso viam, no Presidente do Conselho, apenas um áulico, um agente do imperialismo.
Dois dias depois de apresentado o projeto de lei, na presença de diversos representantes da
aristocracia rural das províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, foi fundado na
Corte o Clube da Lavoura; segundo o próprio manifesto, a agremiação tinha por finalidade
era impedir que “a solução do problema servil criasse dificuldades para a propriedade legítima
e defender a lavoura e o comércio diante dos perigos que os ameaçavam com a Lei do Ventre
Livre, proposta pelo governo imperial” (In: GERSON, 1975:188). Mais quarenta e oito horas,
chegava à Câmara dos Deputados uma representação de noventa fazendeiros de Campinas –
futuro reduto republicano - exigindo do governo que não promovesse reformas sociais à custa
dos agricultores. Duas semanas depois, nova petição contra a reforma social, subscrita por
quase trezentos fazendeiros da região de Juiz de Fora.
83
É como bom monarquiano, efetivamente, que Joaquim Nabuco descreve o Visconde do Rio Branco em Um
Estadista do Império. Rio Branco “procedia sempre como ministro do Parlamento; mas, antes de tudo
monarquista e conhecendo que a realidade dos fatos era o predomínio da Coroa, a dependência dos gabinetes,
principalmente da conformidade com o imperante, ele sabia tratar o Imperador como a fonte direta de sua
autoridade. Nele não havia nenhuma dessas intransigências de princípios, dessas paixões partidárias, dessas
exigências e imposições, que outros colocavam acima do poder: aceitando o governo das mãos do Imperador, as
suas normas resumiam-se a ser leal ao soberano e em não governar sem apoio da Câmara”. Nabuco concluía que,
“dos nossos estadistas, o Visconde do Rio Branco foi o que mereceu em mais elevado grau a confiança do
Imperador, o que lhe pareceu reunir maior soma de qualidades para o governo, e a verdade é que as reunia,
relativamente à época” (NABUCO, 1997:827).
O Momento Monarquiano 332
livre agiam sem alarde. Este era o caso, naturalmente, de Itaboraí, mas também de Cotegipe,
que se recusara a integrar o gabinete, alegando ser partidário da reforma eleitoral da eleição
direta e por não concordar com o tom peremptório com que a Fala do Trono declarara “ser
tempo de resolver a questão” do ventre livre (MONTEIRO, 1982:19; ALENCAR, 1977:420).
Na Câmara dos Deputados, mais representativa dos interesses dos proprietários, o Presidente
do Conselho sofria a oposição encarniçada da parte dos liberais comandados por Martinho
Álvares da Silva Campos (1816-1887), fazendeiro parlamentarista e escravocrata, e por
Gaspar da Silveira Martins (1834-1901), estancieiro gaúcho que dizia preferir seu país ao
negro (SOARES DE SOUSA, 1923:102). Por seus órgãos de imprensa, republicanos como
Pedro Luís, Cristiano Benedito Otoni (1811-1896) e Lafaiete Rodrigues Pereira (1834-1917)
também acusavam Rio Branco e o Imperador pela iniciativa de promover a reforma social:
“Assalto à fortuna particular, negação do direito de propriedade, ruína da fortuna pública,
perigos de luta de castas, tudo sombrio e de tenebrosos efeitos – tudo em nome do Imperador,
como última expressão de sua vontade inelutável”. O que confirma o monopólio exercido por
um diminuto segmento da elite escravista sobre a representação nacional era o pseudônimo do
republicano que assinava o artigo - Vox Populi (In: GERSON, 1975:191).
assenta sobre a grande propriedade” (ACD, 7/8/1871). A libertação do ventre escravo haveria
de “quebrar inteiramente os laços de subordinação; vai dividir em duas classes a população
servil dos estabelecimentos agrícolas, criando a impossibilidade de marcharem debaixo do
sistema de obediência passiva, que é o único possível enquanto existirem escravos em nosso
país” (ACD, 11/06/1871). Ao privar os senhores dos filhos dos escravos sem a devida
indenização, o governo imperial era equiparado a um “governo comunista, governo do
morticínio e do roubo” (ACD, 31/07/1871). Nem os liberais do Primeiro Reinado e da
Regência haviam ousado mexer na escravidão, justamente porque, segundo ele, eram fiéis à
opinião pública (In: SILVA, 1988:396). Sinônimos de aristocracia rural, o país e opinião
pública tinham necessariamente de ser, como ela, escravocratas. Associadas por diferentes
razões desde 1837, as duas alas do partido travavam agora uma luta de morte pela condição de
verdadeira herdeira do saquaremismo – na verdade, uma disputa em torno do legado do
Visconde de Uruguai, travada entre seu filho homônimo, de um lado, e seu mais dedicado
discípulo, de outro84.
84
Não por acaso, depois de quatro anos de intensa adversidade, partidários das duas alas do partido tentaram
reaproximar os dois estadistas. Retribuindo a um banquete no Cassino Fluminense promovido pela ala agrária
em sua homenagem, o Conselheiro Paulino resolveu, como agradecimento, dar um baile em sua casa. Um dos
primeiros a chegar foi justamente o Visconde de Rio Branco, e os dois se entretiveram justamente à sombra de
um busto do Visconde de Uruguai (PINHO, 1959:12). Mais simbólico, impossível.
O Momento Monarquiano 334
quem o interesse público estava acima de qualquer consideração exclusivista. Para além de
um mero partido de resistência à inovação, como advogava a bancada ruralista, a tradição do
Partido Conservador era a monarquiana, que jamais se furtara a promover as reformas
nacionais necessárias a que o Brasil ingressasse numa nova era de prosperidade. Era preciso
distinguir entre interesse público e interesse da lavoura, e pôr “o bem do Brasil”, isto é, o
“interesse nacional” acima de “quaisquer interesses individuais” (ASI, 8/5/1871). Na medida
em que apresentava o Imperador como primeiro representante da Nação, Rio Branco
descolava a opinião pública dos interesses da lavoura para identificá-la como uma facção e,
como tal, agente do particularismo.
Posto em minoria pela oposição movida por Paulino Filho e Martinho Campos, Rio
Branco endereçou-se ao Poder Moderador pedindo-lhe que dissolvesse a Câmara e lhe
permitisse formar outra, menos refratária ao seu programa reformista. Embora advertido pela
oposição agrária, para quem não era “de boa inspiração a luta do funcionalismo contra todos
os partidos políticos e contra a propriedade”, o primeiro-ministro fundamentou perante o
Conselho de Estado seu pedido de dissolução da Câmara na alegação de que não poderia
subordinar “os altos deveres da administração do Estado” às “ambições sôfregas e alguns
descontentamentos, provenientes da pequena política”. Granjeando o apoio de todos os
conselheiros saquaremas de orientação monarquiana - São Vicente, Sapucaí, Bom Retiro,
Inhomirim, Caxias, Saião Lobato - numa votação que terminou empatada, o Imperador
resolveu a questão do jeito que lhe apetecia. Confirmando sua condição de avalista da política
da ala cortesã - que, na verdade, era a própria -, Dom Pedro II decretou a dissolução da
Câmara escravocrata m benefício do seu primeiro-ministro (ACD, 20/05/1872). Diante das
queixas generalizadas dos deputados ruralistas dos dois partidos, contra a decisão da Coroa,
O Momento Monarquiano 335
Rio Branco defendeu-a como perfeitamente legítima à do governo misto consagrado pela na
Constituição e, dentro dos limites por ela balizados, do governo parlamentar - teoria que, no
entanto, não comportava o parlamentarismo reclamado pela oposição. Embora a Câmara
pudesse influir na organização e na demissão dos ministérios, alegava o Presidente do
Conselho, este direito não era absoluto porque, “além do recurso constitucional para o juízo
supremo da nação”, ou seja, para o Poder Moderador, havia o Senado do Império, “que não é
entidade passiva, que é legítimo representante da Nação” (ACD, 21/05/1872).
Sem tirar nem pôr, as soluções para as mazelas do sistema representativo apresentadas
pelos conservadores do campo eram as mesmas reivindicadas por Martinho Campos à frente
dos ruralistas do Partido Liberal: a restrição do poder discricionário da Coroa, a eleição direta
com censo pecuniário alto, a inelegibilidade da burocracia e a neutralização do Senado,
dominado pela velha guarda saquarema. Ou seja, contra a preferência do Imperador pela ala
cortesã, conservadora em matéria política e reformista em matéria social – coimbrã, em suma
-, a ala agrícola opunha um reformismo retoricamente democrático que, eliminando a
autonomia do Estado para introjetar os interesses da Nação, deveria conservar a escravidão e
os privilégios da aristocracia rural – no melhor estilo brasiliense.
acreditava que, na medida em que se recusara a escolhê-lo senador e interferia no partido para
impor Rio Branco como chefe, Pedro II atrapalhava-lhe os planos de tornar-se um novo
Uruguai. Por isso, o saquarema que, em 1865 defendera a dissolução da Constituinte por
Pedro I e pedira a Pedro II que interviesse na política com seu “sobreconstitucional” Poder
Moderador, declarava, em 1872, que “o absurdo reina, governa e administra”; que, ao
determinar que a pedra solta do alto da montanha rolasse até a base, a Coroa encaminhava
uma “grande calamidade social”; que a disputa entre as duas alas do partido não exprimia uma
oposição de princípios, mas a “luta do elemento oficial contra os interesses máximos do país”.
Alencar discursava: “Há outras alforrias que não seriam fatais, mas, ao contrário, úteis e
proveitosas para o país e pelas quais o governo deveria empenhar-se de preferência ao ventre.
Tais são a alforria do voto, cativo do governo; a alforria da justiça, cativa do arbítrio; a
alforria do cidadão, cativo da Guarda Nacional; e, finalmente, senhores, a alforria do país,
cativo do absolutismo, cativo da prepotência do governo pessoal” (ALENCAR,
1977:225/226).
bastavam as reformas políticas por ele reivindicadas; era preciso que “a província, que o
município, que a paróquia se governem a si também, na esfera que lhe é própria. O
despotismo de uma capital sobre os diversos povos de um Império é tão odioso como o
despotismo de um indivíduo sobre toda a Nação” (ALENCAR, 1977:144, 565,55). Era
preciso, em suma, livrar o país da tutela exercida pelo Imperador, ou seja, acabar com o
modelo político saquarema.
Mas isso não era tudo. A virada de orientação política da banda aristocrática do
partido veio acompanhada de uma mudança na compreensão dos fundamentos da sociedade
brasileira. Mobilizado até então para justificar a intervenção do político no socioeconômico, a
sociologia saquarema era agora reelaborada por José de Alencar e outros políticos simpáticos
à lavoura para o propósito contrário; ou seja, o de impedir o Estado de intervir nas relações de
trabalho e salvaguardar um estilo de vida nacional caracterizado pela hierarquia e pela
escravidão, mas também pelo patriarcalismo e pela organicidade. Ao invés de uma
aristocracia feudal insubmissa e exclusivista, a grande propriedade era agora apresentada
como o reduto por excelência de virtudes nacionais, como o solidarismo, a lealdade, o
cristianismo e o trabalho, frutos dos laços de deveres e compromissos recíprocos que atavam
o senhor/patrão ao escravo/trabalhador. Depois do saquaremismo coimbrão de Eusébio e
Uruguai, vinha à tona um saquaremismo brasiliense, de base agrária, tradicionalmente
representado na trindade saquarema por Itaboraí, mas que só agora emergia polemicamente no
O Momento Monarquiano 339
debate público, para combater a abolição. Esse saquaremismo agrário era descrito por um de
seus arautos, o Conselheiro Paulino, como “uma espécie de feudalismo patriarcal” (ASI,
13/05/1888). Segundo ele e Alencar, o modo nacional brasileiro era o de uma comunidade
tradicional, orgânica e solidária, moralmente superior às dos países industrializados onde,
vítima da selvageria desagregadora do individualismo, o operário padecia à míngua nas
fábricas de seus inescrupulosos patrões. Mais poderosos, os senhores de terras protegiam os
escravos de sua própria inferioridade e fraqueza, amparando-os em seus engenhos e fazendas,
fornecendo-lhes alimento, vestuário e valores cristãos, ao passo que, agradecidos, os escravos
e dependentes serviam lealmente aos seus benfeitores, lavrando o campo.
Ou seja, quem deveria tutelar os escravos e os pobres não era o Estado, trazendo-os à
esfera pública para se livrarem da opressão privada, e sim os próprios senhores, para protegê-
los da miséria, da doença e da morte que adviriam da ruptura de seus vínculos com o
feudalismo patriarcal. Com isso, a bancada ruralista respondia ao argumento monarquiano de
que representavam uma facção ou um interesse privado. Era o que explicava Martinho
Campos: “Não quero (...) entregar esses pobres coitados a todos os vícios e à cachaça... Sei
quanto são bons, dóceis, mas também precisam de proteção e tutela... É uma raça que os
filantropos abolicionistas querem fazer desaparecer do Brasil, extinguir de vez... Uma
hecatombe que preparam de inconscientes vítimas” (In: TAUNAY, 1924: 37). Era a essência
da sociedade brasileira que estava ameaçada pelas reformas sociais modernizadoras
promovidas pelo governo: destruindo a base da solidariedade nacional, a abolição destruiria o
tecido da nacionalidade, lançando o país na desordem, na bancarrota, no ódio racial e na luta
de classes. Começava aí, contrapondo-se ao saquaremismo monarquiano do Império, um
saquaremismo agrícola culturalista, expressamente defensor de uma democracia aristocrática
fundada na herança patriarcal do campo, cujo maior expoente, no século vinte, seria Gilberto
Freire (1900-1987).
sociedade civil no Estado. Entrementes, morriam as últimas figuras de proa do partido, ainda
vinculadas à orientação estatizante, unitarista e monarquiana dos coimbrões. Aos olhos do
velho Caxias, sobrevivente da geração de 1800, a radicalização ideológica dos liberais, o
racha conservador e os crescentes ataques à Coroa prenunciavam o desmantelamento do país
e a inanidade, portanto, de todos os esforços que envidara até então. Era o que, desolado, o
duque escrevia a Firmino Rodrigues da Silva:
“Não sei, meu amigo, o que será do nosso país, se as coisas políticas continuarem
como vão. Não há só indiferentismo para as coisas públicas; há mesmo muito más
disposições, e o espírito público está pervertido, e caminha para a anarquia a
passos largos. No dia em que aqui cheguei, a primeira notícia que recebi foi a da
morte do nosso bom amigo Itaboraí! Meu sentimento foi imenso, pois estimava
muito esse homem, como um dos melhores caracteres do nosso país. Quem o
substituirá? Não sei, nem vejo. Parece que Deus quer separar os bons dos maus,
chamando os primeiros para si.... Seu vácuo não será preenchido, como já não foi,
o de Eusébio, Paraná, Uruguai, e Manuel Felizardo, e muitos outros que nos
ajudaram a sustentar esta Igrejinha, desmoronada ou quase desmoronada em 7 de
abril de 1831. Cada vez, meu Firmino, me sinto mais aborrecido dos homens e das
coisas deste mundo de enganos, e desejoso que chegue o meu dia de descanso
eterno; mas será quando Deus quiser...” (In: MASCARENHAS, 1961:243).
5.3. O fim do modelo político saquarema: a campanha da lavoura pela eleição direta e o
advento do parlamentarismo aristocrático (1878-1881).
Apesar de toda a grita, a bancada ruralista não conseguiu derrubar Rio Branco. Além
da Lei do Ventre Livre, seu gabinete promoveu outras reformas liberais, que reduziram a
força eleitoral do Poder Executivo – como a separação da atividade judicante do inquérito
policial em nível local, decretada pela lei regressista de 3 de dezembro de 1841, e a
constituição de obstáculos ao emprego da Guarda Nacional e do recrutamento forçado como
técnicas de compressão do eleitorado. No intuito de incrementar o processo de burocratização
da administração pública, Rio Branco reformou os currículos das escolas superiores,
reorganizou carreiras civis e militares, alterou leis processuais, ergueu novas escolas públicas,
introduziu o sistema métrico decimal, urbanizou logradouros públicos e investiu maciçamente
O Momento Monarquiano 341
“O Senado, enquanto durar este modo de eleição, é o abrigo das oposições, tem
sido e será a âncora de salvação dos partidos que são expelidos do poder e que não
podem voltar a ele por influência do governo. Mas quando o Brasil tiver uma
Câmara dos Deputados que regularmente represente a opinião pública, o Senado
será inofensivo. Poderão torná-lo temporário ou deixá-lo vitalício, isto não
influirá. Ele será inofensivo, porque todo o mundo compreende que não há
O Momento Monarquiano 342
Senado vitalício que resista à opinião da Câmara dos Deputados, quando esta
tenha após si a grande maioria do país” (SARAIVA, 1978:516).
85
Quando São Vicente assumiu o governo, o Imperador endereçou-lhe um documento contendo sua opinião:
“Oponho-me na atualidade a qualquer reforma da Constituição, e portanto sou contrário aos projetos eleitoral e
municipal apresentados pelo ex-ministro do Império. As eleições, como elas se fazem no Brasil, são a origem de
todos os nossos males políticos, mas para melhorá-las, entendo que bastam as seguintes reformas”. E as
enumerava: judiciária, separando a polícia da magistratura; a abolição ou reforma da guarda nacional; reforma da
lei do recrutamento, reforma eleitoral, lei do ventre livre. Ou seja, era quase o programa liberal, a ser cumprido
por Rio Branco. No entanto, insistia na velha idéia de criar uma carreira administrativa para os presidentes de
província, retirando sua escolha das mãos da política (NABUCO, 1997: 1.150). Não por acaso, Rio Branco
conseguiu realizá-las todas, tendo êxito onde São Vicente falhara.
O Momento Monarquiano 343
desde que, pela elevação do censo pecuniário, a eleição direta atingiria os direitos políticos
dos votantes, isto é, dos eleitores de primeiro grau. Ainda que limitada a discutir pontos
previamente fixados pela legislatura ordinária, a convocação de uma câmara revisora era
temerária para os governistas, porque dava aos radicais um pretexto para convertê-la, no grito,
em assembléia constituinte; o que reabriria a luta sobre a primazia da representação nacional e
abalaria os alicerces da ordem monarquiana saquarema. Embora o governo entendesse que,
nesse caso, invocando a salvação do Estado, o Imperador também poderia dissolver a Câmara
revisora (ACD, 7/11/1878), o fato é que o risco político era imenso e ninguém estava disposto
a corrê-lo.
“Instam alguns pelas diretas, com maior ou menor franqueza; porém nada há mais
grave do que uma reforma constitucional, sem a qual não se poderá fazer essa
mudança do sistema das eleições, embora conservem os eleitores indiretos a par
dos diretos. Nada há contudo imutável entre os homens, e a Constituição previu
sabiamente a possibilidade de reforma de algumas de suas disposições. Além
disso, sem bastante educação popular não haverá eleições como todos - e
sobretudo o Imperador, primeiro representante da Nação, e por isso, primeiro
interessado em que ela seja legitimamente representada - devemos querer. Não
O Momento Monarquiano 344
convém arriscar uma reforma, por assim dizer definitiva, à influência tão deletéria
da falta de educação popular” (PEDRO II, 1958:29).
À conta desses motivos, ao invés de ceder à eleição direta pleiteada pelos liberais, Rio
Branco agiu como verdadeiro saquarema: manteve a eleição indireta; revogou a fórmula dos
círculos – para o horror da bancada ruralista -; e restabeleceu o sistema eleitoral vigente antes
da Conciliação, que tinha a província como distrito único. Era um sistema que, segundo um
governista, favorecia “a eleição dos homens superiores, de nomeada geral, como os círculos
facilitam a eleição de pessoas menos conhecidas sob a proteção das influências locais, cujos
interesses especiais serão depois atendidos acima de tudo” (ASI, 28/07/1875). As novidades
ficavam por conta da criação do título de eleitor, do maior rigor na comprovação dos
requisitos do direito de sufrágio; da instituição do voto secreto e, finalmente, do critério de
representação de minorias advogado nas Considerações sobre o Governo Representativo.
Cada eleitor deveria votar em tantos nomes quanto correspondessem aos dois terços do
número total de vagas de deputados assinalados à província, reservando-se o terço restante à
representação da oposição. Como as correntes majoritárias votariam em um número menor do
que os cargos em disputa, as possibilidades de êxito da minoria deveriam aumentar
(NICOLAU, 2004:21). O governo esperava assim que a Lei do Terço aperfeiçoasse o sistema
eleitoral, reduzisse a grita dos liberais e mantivesse elevada a participação popular nos pleitos
– e tudo isso, sem mexer na Constituição.
medo de que o senhor da terra, com seus capangas, designe imediatamente o deputado” (In:
NABUCO, 1997:996). Adaptando o sistema inglês, Nabuco de Araújo propunha que
votassem diretamente para as eleições legislativas todos aqueles que tivessem casa própria ou
alugada, no valor mínimo de 240 mil-réis anuais na Corte e a metade disso nas províncias86.
No entanto, por pressão da bancada ruralista, a diferenciação proposta por Nabuco de Araújo
não vingou. Ele mesmo acabou dela desistindo, para adotar a idéia de uniformização da
medida87.
Surgiu então um segundo projeto, Reforma Eleitoral, encaminhado por Tavares Bastos
em 1873. Ao contrário do senador Nabuco, que estava preocupado com os potentados rurais,
o deputado alagoano continuava obcecado pelo peso e a autonomia do Estado e pela
necessidade de fazer transparecer na esfera pública, pelo parlamentarismo, os interesses
econômicos da sociedade. A preocupação de Nabuco de Araújo lhe parecia ociosa na medida
em que o abatimento do povo resultaria mais da falta de dinamismo econômico do que da
opressão do regime fundiário. A principal medida para regenerar o sistema representativo era,
portanto, política: introduzir a eleição direta para incluir no eleitorado todos os “homens que
trabalham e vivem do seu trabalho”, “a multidão, em suma, que paga o imposto e contribui
com o sangue”. Mas o conceito de multidão era bastante relativo para Tavares Bastos. Nela
não estavam incluídas “as classes mais rudes da população, essas hordas barbarizadas que se
desvivem no vício e no crime, e que a falta de estradas e de escolas abandonou inermes ao
embrutecedor fanatismo dos bonzos errantes”. Equiparadas aos aborígines, essas “hordas”
deveriam ser excluídas pela reforma do direito de voto (TAVARES BASTOS, 1976:147). O
problema era como fazê-lo: desde que a democratização política na França, na Inglaterra e nos
Estados Unidos se fazia pelo amortecimento ou pelo fim das restrições pecuniárias ao direito
de voto, a elevação deste censo no Brasil era uma medida incompatível com o democrata
sincero que Tavares Bastos julgava ser.
O autor de A Província pensou então que o censo pecuniário poderia ser substituído
com vantagem por outro, na moda graças ao viés democrático, mas elitista, da obra de Stuart
86
Rezava o primeiro artigo do projeto: “Eleição direta na Corte, capitais de províncias e cidades que tiverem
mais de dez mil almas, as quais constituirão distritos eleitorais por si sós e com as freguesias que dentro dela se
compreendem. Os distritos eleitorais que tiverem mais de dez mil almas darão um deputado, os que contiverem
trinta mil almas dois deputados, os que tiverem sessenta mil, três deputados, e daí por diante um deputado por
cada cinqüenta mil almas” (NABUCO DE ARAÚJO, 1979:107).
87
Explicava ele em carta a um colega mais novo: “A idéia da eleição direta nas cidades e indireta no interior é do
nosso programa de 1869, e eu a sustentei na sessão de 1871 como idéia nossa; ao depois, e com o
desenvolvimento da opinião em favor da eleição direta, sentimo-nos fortes e autorizados para generalizar o que
antes queríamos parcialmente e como por ensaio: assim que o programa foi alterado e eu acompanhei e segui a
alteração” (In: NABUCO, 1997:997).
O Momento Monarquiano 346
Como se vê, é enganosa a análise que se deixa levar pelo apelo democrático da
campanha pela eleição direta. Nessa luta quase permanente entre ideais coimbrões e
brasilienses em torno da interpretação da Constituição, vazados em discursos atualizados às
sucessivas teorias que informavam o paradigma legítimo de Estado de direito, quase todas as
campanhas ditas democráticas traduziam, na verdade, um movimento da aristocracia rural
provincial de apropriação do espaço decisório detido pela Coroa e pela burocracia da Corte. O
que ocorria na década de 1870 era uma radicalização desse movimento, ocasionado, entre
outros motivos, pela melhoria das comunicações, pelo telégrafo, pelo cabo submarino e pela
estrada de ferro, permitindo aos grupos políticos – no caso, da aristocracia rural – melhor se
articular para formar grupos de pressão e organizar seus interesses. Daí que esse processo de
crescente apropriação do Estado pelo ruralismo das oligarquias provinciais contra a
monarquia, mas também contra a democracia, constituiu uma verdadeira reação ruralista ou
aristocrática, que por isso mesmo pode ser caracterizada como uma fronda do campo
(MENDONÇA, 1997:13). Sua gota d’água foi a Fala do Trono de 1867, com que a Coroa
acenava com o fim próximo do regime escravocrata e a transição para o trabalho assalariado.
88
Escrevendo da Europa a um amigo, Tavares Bastos elogiava a ala agrária do partido, que se opusera à Lei do
Ventre Livre e bancara um projeto de reforma eleitoral destinado a excluir o pobre do direito de voto. Saraiva era
“um dos últimos homens sérios que tem o Brasil. Vi-o na Bahia, e cada vez o amo mais”. Ele e Martinho
Campos, parlamentarista e escravocrata, eram “os caracteres mais leais, mais dignos, mais altivos; não há no
partido liberal quem os possa dispensar, e não se pode perder toda a esperança enquanto eles viverem. Haja uma
tormenta; são os homens de confiança a que o país pode se entregar” (In: OTÁVIO, 1944: 132 e 134).
O Momento Monarquiano 347
Assim, o projeto eleitoral que seduziu o grosso do Partido Liberal não foi o de Nabuco
de Araújo nem o de Tavares Bastos, demasiado tímidos pela aristocracia rural - a salvação da
lavoura veio da ala agrícola do Partido Conservador. De fato, ela vinha ensaiando uma
reforma alternativa desde que, com o anúncio abolicionista da Coroa em 1867, o Barão de
Cotegipe decidira publicamente repudiar o modelo político saquarema. Recém-chegado de
seu engenho na Bahia, João Maurício Wanderley concluíra que a autonomia da Coroa era a
principal causa do crescente divórcio entre as instituições políticas e sua base natural de
sustentação, a aristocracia rural. Na medida em que a autonomia da Coroa já cumprira seu
papel de garante da ordem pública, era preciso agora neutralizá-la para garantir a adesão dos
senhores de terra às instituições – ou seja, era preciso resistir ao Rei para melhor servi-lo.
Substituir a fonte de legitimidade política, pondo o Parlamento acima do Imperador, era
fundamental para controlar o processo de abolição da escravatura em benefício dos
proprietários, sem comprometer as instituições monárquicas. No entanto, haja vista que as
eleições eram sempre fraudadas, era indispensável uma reforma eleitoral que, eliminando a
compressão exercida pelo governo geral, restaurasse a credibilidade da Câmara dos
Deputados, estreitando os vínculos entre o poder político e a opinião pública (isto é, a
aristocracia rural). Esse estreitamento pressupunha a substituição da eleição indireta pela
direta, o que só ocorreria se houvesse uma campanha para substituir o paradigma de governo
representativo como governo misto pela democracia. Ocorre que, na prática, não era desejável
que, de fato, todos os votantes fossem convertidos em eleitores: os votantes eram cerca de um
O Momento Monarquiano 348
milhão de pessoas - dez por cento da população do país; índice elevadíssimo para a época
(CARVALHO, 1995: 25).
Com a ajuda do Conselheiro Paulino, Cotegipe lançou a semente de uma reforma que,
aproveitando o discurso democrático em voga, deveria por fim ao modelo político saquarema
para inaugurar o do parlamentarismo aristocrático. Marcada pela ascensão conservadora e
pela trégua imposta pela guerra à questão social, a conjuntura política de 1868 pareceu-lhes a
chance de ouro de se antecipar ao abolicionismo imperial e de propor uma reforma eleitoral
que, a esta altura, já era reivindicada por todos os liberais. Reunido o Conselho de Ministros
para deliberar sobre o projeto, que tinha o apoio de Cotegipe, Paulino Filho e Itaboraí, ele
sofreu, porém, a inesperada oposição de Alencar e de Muritiba. Entendendo que a reforma era
inconstitucional, eles preferiram manter a eleição indireta (ALENCAR, 1977:422).
Engavetada por Itaboraí para preservar a unidade do governo, o Conselheiro Paulino
O Momento Monarquiano 349
pelo modelo político saquarema, selava-se uma poderosa aliança suprapartidária, que
assegurasse à aristocracia rural a perpetuidade de sua hegemonia política e social. Adversários
do retrógrado Visconde do Rio Branco, conservadores e liberais do campo organizaram em
setembro de 1874 um banquete em homenagem a Paulino Filho durante o qual, em nome da
“prosperidade pública pela grandeza de um povo livre”, lançaram um manifesto “pela verdade
do sistema representativo, que só se pode esperar da decretação da eleição direta” (SOARES
DE SOUSA, 1923: 176,177). Travou-se então na Câmara dos Deputados uma verdadeira
batalha conceitual em torno do quê ou quem fosse o povo e/ou a nação. Enquanto a oposição
agrária suprapartidária reivindicava a eleição direta e acusava Rio Branco de pretender, com a
lei do terço, manter “o monopólio do governo sobre as eleições”, os governistas liderados
pelo ministro do Império, o deputado pernambucano João Alfredo Correia de Oliveira (1835-
1919), acusavam a oposição de pretender “o governo da burguesia” com seu projeto eleitoral
(ACD, 01/06/1875). Coerente com seu novo conservadorismo, José de Alencar apoiava Rio
Branco neste ponto. Ele temia o “partido aristocrático” que, em proveito de uma “burguesia
caricata”, queria fazer do Brasil uma monarquia aristocrática, reagindo furibundo à distinção
entre povo e multidão, estabelecida por Belisário para justificar a restrição do eleitorado:
“Não admito que, em um país democrático, se diga que a multidão não é povo. A
multidão é povo, como o é todo cidadão brasileiro, todo aquele que tem o direito
político. E o nobre deputado não o diz senão porque, pela sua posição, se acha
colocado em esfera superior e não tem sofrido as privações por que passa essa
multidão, que ele repele do grêmio político. O que entendem esses oradores por
Nação brasileira? Que Nação brasileira é esta? Para quem apelam, a quem
invocam, e a cuja sombra colocam sua reforma?” (ALENCAR, 1977: 416, 445,
519,432).
89
Caxias era um dos ministros prediletos do Imperador, que o julgava seu amigo por ser alheio à política
partidária e ter sido quem mais servira à Nação. Por essas qualidades, Dom Pedro II entendeu também ser ele a
pessoa necessária para suceder a Rio Branco e reunificar o Partido Conservador cindido. A necessidade de o
duque assumir a Presidência do Conselho está clara na carta que remeteu à esposa, contando as condições
tragicômicas do convite de Pedro II: “Quando me meti na sege para ir a São Cristóvão, a chamado do Imperador,
ia firme em não aceitar; mas Ele, assim que me viu, me abraçou e me disse que não me largava sem que eu lhe
dissesse que aceitava o cargo de ministro, e que se me negasse a fazer-lhe esse serviço, ele chamava os liberais e
que havia de dizer a todos que eu era o responsável pelas conseqüências que daí resultassem. Ponderei-lhe as
minhas circunstâncias, a minha idade, a incapacidade, a nada cedeu. Para me poder libertar dele era preciso
empurrá-lo, e isso eu não devia fazer; abaixei a cabeça e disse que fizesse o que quisesse, pois eu tinha
O Momento Monarquiano 351
foi Cotegipe quem na verdade chefiou o ministério. O barão não poupou esforços para trazer
segmentos sociais tradicionais, como a Igreja e a aristocracia rural, que haviam sido
atropelados por Rio Branco em sua pela jornada reformista, de volta à base de sustentação do
regime. No entanto, na medida em que o projeto da eleição direta voltaria a dividir o partido
saquarema, Cotegipe achou melhor pô-lo temporariamente de lado e prosseguir com o projeto
do terço elaborado por Rio Branco. Recriminado pela trindade luzia – composta pelos
senadores Zacarias, Saraiva e Nabuco - Cotegipe respondeu-lhes maneiroso que, embora a
defendesse pessoalmente, a eleição direta ainda não era consenso entre os conservadores: “Eu
não posso, portanto, traçar o programa do meu partido; o mais que posso fazer é dar o meu
voto e apelo, quando os nobres senadores resolverem fazê-lo” (ASI, 28/05/1875). Aprovada a
Lei do Terço, a eleição seguinte deu dezesseis cadeiras aos liberais, que acharam pouco. Três
grandes críticas foram endereçadas à nova legislação: primeiro, o sistema não se aplicava nas
províncias que davam menos de três deputados; segundo, naquelas cujo número de deputados
era par, ele funcionava apenas em parte; terceiro, a nova lei preestabelecera que a minoria
haveria necessariamente de ser composta do terço do eleitorado (PORTO, 2002: 95/99).
De fato, as críticas revelavam que o intuito da lei não era o de espelhar o eleitorado na
representação, e sim o de dar à minoria um cala-boca; que o governo deveria permanecer
autônomo, e sua agenda, sujeita às recomendações do Imperador, primeiro representante da
Nação. Reivindicando, ao contrário, o retorno dos distritos eleitorais e elogiando a vida do
campo, Martinho Campos e os liberais da Câmara continuaram a clamar contra “o poder
absoluto que nos avassala”; “a onipotência imperial”; contra o príncipe “surdo às reclamações
de toda a Nação” (ACD, 24/09/1875). Este era um comportamento que, para Rio Branco,
comprovava a tese saquarema de que os liberais ignoravam o interesse público: “A oposição
liberal nunca viu tanta fortuna”, escrevia ele a um discípulo, “mas é fidalga que tudo julga vir-
lhe do pur sang e se deleita em exagerar os lances felizes, como prodígios de sua força
popular contra a pesada clava da tirania conservadora. Terão uns vinte representantes na
futura Câmara, mas blasfemam contra a lei e negam tudo quanto devem a esta e às outras
reformas políticas do nosso tempo. A verdade, porém, sobrenada a essas torrentes da paixão
partidária e dos interesses individuais” (In: TAUNAY, 1930:33). Embora não o
acompanhasse nas críticas ao monarca, o Conselheiro Paulino glosava seu “ilustre amigo”
consciência de que Ele se havia de arrepender, porque eu não seria ministro por muito tempo, porque morreria de
trabalho e desgostos; mas a nada atendeu, e disse-me que só fizesse o que pudesse, mas que o não abandonasse,
porque então Ele também nos abandonaria e se iria embora! Que fazer, minha querida Anicota?” (In: VIANA
FILHO, 1967:78).
O Momento Monarquiano 352
Martinho Campos: da derrota na questão do terço, extraía forças redobradas para continuar a
lutar pelas eleições diretas (ACD, 24/09/1875).
Tomás Nabuco de Araújo (1878). Um dos resultados da renovação no comando do partido foi
o reforço do poder rural: ao contrário de Zacarias e Nabuco de Araújo, que haviam sido
magistrados conservadores na juventude, Sinimbu era um grande senhor de engenho do
Norte, tanto quanto seu colega José Antônio Saraiva e o conservador Barão de Cotegipe;
como eles, o novo Presidente do Conselho estava empenhado até os cabelos com os interesses
da lavoura, cujo apoio queria para o seu governo e para a monarquia. Para que não restasse
dúvida a este respeito, sua primeira iniciativa na Presidência do Conselho foi a convocação de
um congresso agrícola no Rio de Janeiro, verdadeiro marco da reação aristocrática que
desaguaria na Primeira República. Ao abrir-lhe os trabalhos, perante a grande aristocracia
rural do sul do Brasil, o Visconde de Sinimbu se comprometeu basicamente a atingir duas
metas em seu governo: “consolidar a liberdade política” pela reforma da eleição direta e
“evitar a decadência da lavoura” com auxílios financeiros (ACA, 1878:127). Escolhidos por
seus pares em assembléias municipais e investidos de mandatos imperativos, sem atenção ao
credo partidário, os delegados da aristocracia rural do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e de
São Paulo deliberaram em seguida sobre seus interesses e definiram melhores estratégias para
reduzir a autonomia do Estado imperial. Algumas reivindicações eram unânimes:
descentralização político-administrativa; eliminação ou redução de impostos que oneravam a
produção; bancos regionais com poderes de emissão de moeda; melhoria da infra-estrutura;
crédito agrícola e facilitação das garantias aos empréstimos. Os senhores de terra também
insistiam em acabar com a colonização de povoamento, a fim de canalizar os imigrantes para
os latifúndios e operar a mudança do regime escravocrata para o livre sem solução de
continuidade, mantendo a margem de lucro e a abundância de mão-de-obra. Muitos deles –
Sinimbu incluso – acreditavam que o chinês era o imigrante ideal, pois “só braços baratos,
sóbrios e dóceis convém à grande lavoura de gêneros tropicais” (ACA, 1878:64).
nossas poucas classes trabalhadoras sem a compensação de melhor andamento dos negócios
públicos” (ACA, 1878: 136, 220, 190, 56, 55). Mais do que nunca, a perspectiva do fim da
escravidão e de assimilação dos libertos levava a aristocracia rural a reservar o conceito de
Nação para designar a si mesma, deixando o de povo para aludir genericamente aos setores
inferiores da sociedade. Ao prestigiar a lavoura, Sinimbu revelara ser um secretário de Estado
que não vivia “só nas alturas” (ou seja, junto do Imperador); ele era considerado “um ministro
da Nação” (isto é, da aristocracia rural). Já o povo era outra coisa e designava a parcela pobre
e livre da população. Na opinião da maioria dos congressistas, o povo era “de natural
indolente e não se presta ao serviço da agricultura”. Os negros, por sua vez, eram “máquinas
de trabalho”, cuja falta de discernimento e disciplina os impossibilitava de produzir fora do
regime escravista; eles faziam parte de uma “raça degradada”. Embora preferíveis aos
trabalhadores nacionais para o trabalho livre no campo, a opinião dos senhores sobre os
imigrantes europeus não eram muito melhores, considerados que eram “mendigos,
vagabundos e criminosos despedidos das prisões” (ACA, 1878: 205, 155, 39,49). Em síntese,
reputando-se a aristocracia do país, os donos de terra tinham a burocracia na conta de parasita,
e o povo, de escória.
O terceiro aspecto sintomático da fronda do campo foi o debate sobre as formas por
que os escravos haveriam de ser incorporados ao mundo da cidadania formal. Desde a Lei do
Ventre Livre, dizia-se, o país vivia uma “época de transição” durante a qual era preciso “atrair
gente moralizada que venha interpor-se entre nós e os indivíduos que hão de deixar o serviço,
sequiosos de liberdade” (ACA, 1878:52). Dois pontos eram aqui reputados estratégicos para
aristocracia rural: primeiro, garantir que a emancipação gradual da escravidão não
comprometesse a sua margem de lucro, exigindo-se do governo uma política de imigração
que assegurasse mão-de-obra abundante e, por conseguinte, barata; segundo, assegurar a
perpetuidade da sua hegemonia social e econômica, vedando-se o acesso à terra e às linhas de
crédito aos escravos libertos e aos imigrantes assalariados europeus. Neste aspecto, duas
soluções foram vistas pela grande lavoura com particular simpatia. Devido ao grande número
de agregados e desocupados tolerados pelos proprietários em suas fazendas, por precisarem de
sua força eleitoral à época das eleições, o governo deveria o quanto antes passar uma lei que
lhes cassasse o direito de voto. Um fazendeiro explicava: “A eleição direta com censo alto
desobrigará o lavrador de manter em suas terras vadios ou parasitas, que se entendem com
direito de ser sustentados em troca do voto que vão dar; e esses se tornarão trabalhadores”
(ACA, 1878:142). Alegando que a qualidade da representação despencaria, caso os eleitores
(eleitores de segundo grau) fossem nivelados com os votantes (eleitores de primeiro grau),
alguns fazendeiros protestaram contra a reforma proposta por Sinimbu; todavia, esses mesmos
protestos se desfizeram, assim que foram informados de que ela se faria pela exclusão dos
votantes. Ou seja, se reafirmava a tese de que só os patrões podiam ser cidadãos e que,
associadas ao trabalho manual, a cor de pele e/ou a pobreza condenavam o indivíduo à
marginalidade. Em síntese, matavam-se dois coelhos numa única cajadada: “a liberdade
O Momento Monarquiano 356
política” da Nação seria restaurada excluindo das urnas “a escória do povo”, isto é, “a massa
ignorante que tem concorrido para falsear a representação nacional”; ao passo que, destituído
do trunfo que lhes permitia barganhar, o povo se veria obrigado a trabalhar na lavoura, sob
pena de expulsão da terra (ACA, 1878: 186, 48, 196,32).
Mas isso não era tudo. A aristocratização do eleitorado deveria ser complementada
com medidas de repressão à vadiagem e uma draconiana lei de locação de serviços. A razão
do controle social era lembrada por um fazendeiro: “Se a sociedade democrática, que chama o
povo a intervir nos negócios públicos, não pode permitir-lhe a ignorância de seus direitos e
deveres, também não pode, não deve permitir a ociosidade, justamente estigmatizada pela
moral como a mãe dos vícios”. Ou seja, não bastava excluir do voto o pobre, para obrigá-lo a
trabalhar; era preciso “melhorar a nossa legislação penal relativa aos ociosos, vagabundos e
menores abandonados, estabelecendo penas mais severas e criando para essa gente colônias
com regime disciplinar, capaz de obrigá-la a adquirir hábitos de trabalho”. Por ter se
intrometido no mundo do trabalho para incorporar os escravos ao mundo do Direito, a
aristocracia rural cobrava do Estado que, assim que libertos, se limitasse a conceder-lhes
direitos formais, privando-os e aos demais pobres da participação política e obrigando-os com
medidas policiais a continuarem a trabalhar como mão-de-obra barata, submissa e obediente.
Acreditava-se que, “havendo uma lei do trabalho, a papeleta (a lei), sendo severamente
punido o vadio, sendo recolhido à prisão o vagabundo, e obrigado a trabalhar pela polícia
correcional, começaremos a moralizar o nosso bom povo que está habituado a desrespeitar a
lei, menoscabar todos os princípios de direito natural e religioso” (ACD, 1878: 58; 67; 197).
Para os fazendeiros, a Constituição não levantava qualquer óbice a essa pretensão. “Assim
como a Constituição do Império sabiamente privou de direitos políticos a certos indivíduos
por causa da dependência em que vivem, assim também se poderia excluir do direito de voto
aos locatários de serviços”, ou seja, os trabalhadores assalariados (ACA, 1878:196).
Não faltaram sugestões de como empregar a polícia para forçar a população rural a
trabalhar para a lavoura. Uns sugeriam “a internação da escravatura”, isto é, impor tributos
crescentes sobre os escravos urbanos para que todos acabassem se transferindo maciçamente
para o campo, onde ficariam trabalhando depois da abolição. Outros raciocinavam que,
havendo “muitos escravos por comprar, muitos trabalhadores livres, e muitos caboclos, que
vagam aí pelas matas e que podem ser aproveitados”, cumpria ao governo tomar “algumas
providências que tenham por fim acabar com a vadiação. Nos povoados do interior, em cada
porta de venda, encontram-se quatro, cinco, seis e mais libertos ou emancipados, que não
O Momento Monarquiano 357
querem trabalhar; pois bem, o governo promova uma medida correcional ou policial, que os
obrigue a prestarem o serviço da lavoura. O mesmo se pratique em relação às mulheres, que
são alforriadas e vão para os cortiços entregar-se à vadiação, ao vício. É preciso corrigi-las,
obrigá-las ao trabalho. Gente como esta não falta à lavoura”. Bem policiados, os libertos
poderiam ser mais úteis que os colonos estrangeiros. Houve até quem quisesse obrigá-la a
escolher entre o Exército e a lavoura (In: NABUCO, 1988 a: 133). Um aristocrata mais lúcido
resumiu o pleito de seus pares: “A maioria dos lavradores deseja que a lei de locação de
serviços seja modificada no sentido apenas de melhor garantir a propriedade do patrão, sem
importar-se com a miséria do trabalhador, chegando alguns a pedir que o governo faça passar
regulamentos à chinesa, com casas fortes, etc., etc., para obrigar os colonos a trabalharem”
(ACA, 1878:152, 182, 48, 44). Obrigar, forçar, compelir – dez anos antes da abolição total e
onze da república, nada deixa entrever qualquer mudança no etos aristocrático ou escravista
da grande propriedade rural. Muito pelo contrário: a emergência do povo reforçava a
conveniência dos proprietários de dele se distinguir.
Todos esses são sinais consistentes de que o retorno dos liberais em 1878 se deu no
contexto de uma reação aristocrática, isto é, de crescente mobilização suprapartidária dos
diversos setores da propriedade rural, em clubes e associações, para tomar o Estado de assalto
e fazer dele um instrumento de classe. Essa institucionalização da defesa de seus interesses
correspondia a uma evidente “reação da classe proprietária rural à inevitável redefinição do
papel da agricultura” posta pela perspectiva da abolição da escravatura (MENDONÇA,
1997:31). Até então indiferente aos negócios públicos, quando “grande parte da população do
campo, a população preponderante do Império, sob uma forma ou outra, está sujeita aos
grandes lavradores”, a aristocracia rural já se cansara “de tantas e tão improfícuas discussões
parlamentares”. Estava na hora de ocupar politicamente “o seu lugar” contra a autonomia da
Coroa ou dos representantes parlamentares. A convocação do congresso agrícola fora “a
primeira prova de atenção que a classe dos lavradores recebe dos poderes públicos neste
país”; dali por diante, “a Nação” teria os olhos fitos no governo. Não à toa, um republicano
paulista propôs a convocação de um novo Congresso Agrícola, que reunisse os representantes
da grande propriedade não apenas do sul, mas também do norte (ACA, 1878: 146, 5, 231,
190, 179) 90. Ou a monarquia satisfazia a carência de “capital e braços” da aristocracia rural,
90
No norte do Brasil, também era grande a insatisfação dos senhores. Num opúsculo, Henrique Augusto Millet
atribuía a revolta dos Quebra-Quilos à decadência dos engenhos de açúcar e à penúria dos camponeses, e
clamava para que o governo deixasse o laissez faire de lado para auxiliá-la. Ele criticava a Lei do Ventre Livre
como prematura, atacava a centralização político-administrativa e a burocracia do Estado, para ao final elogiar
rasgadamente a atuação de Martinho Campos na Câmara dos Deputados (MILLET, 1987). Não causa assim
O Momento Monarquiano 358
ou sofreria sua hostilidade por intermédio de seus órgãos de pressão (SCHULZ, 1996:58).
estranheza que o congresso do Rio tenha sido seguido imediatamente de outro, reunido pelos senhores de
engenho no Recife (MELLO, 1999).
O Momento Monarquiano 359
que a primeira de todas as reformas era a eleitoral, porque abriria a porta para as outras,
principalmente as sociais. Eliminando o anacrônico poder pessoal e democratizando o sistema
político pelo parlamentarismo à inglesa, o povo se autogovernaria e procederia a todas as
demais reformas de que o Brasil carecia para reduzir o seu atraso e equiparar-se às nações
mais civilizadas. Só quando Sinimbu apresentou seu projeto de revisão constitucional à
Câmara dos Deputados é que os liberais urbanos puderam perceber que, valendo-se do
discurso democrático, a intenção do governo era a de oligarquizar o sistema político em
proveito da lavoura para, mais adiante, obstruir o processo de extinção da escravatura no país.
(ACD, 10/07/1879). Nabuco voltou à tribuna para sustentar que não podia ser democrático um
projeto reduzia que o eleitorado ao invés de alargá-lo; o que levou Rui a contestar “o
irrefletido liberalismo dos nossos antagonistas” e defender novamente o governo, sob a
alegação de que a redução do eleitorado seria compensada pela melhoria da qualidade do voto
(BARBOSA, 1952:116). Reduzidos em número, os democratas não conseguiram brecar o rolo
compressor da bancada ruralista, que aprovou na Câmara o projeto de reforma constitucional
por ampla vantagem.
Enquanto isso, quem no Senado comandava a oposição à eleição direta era o Visconde
do Rio Branco, último dos velhos chefes saquaremas da ala burocrática. Já então haviam
morrido, ou estavam inutilizados, todos os outros chefes que haviam nascido nas décadas de
1800 e 1810: Paraná (1856), Uruguai (1866), Eusébio (1868), Inhomirim (1876), São Vicente
(1878) e Caxias (1880). O prestigioso ex-presidente do Conselho, que ali era senador pelo
Mato Grosso, soube explorar com habilidade a má vontade de seus pares com Sinimbu, que
pretendia deixar o Senado de fora da revisão constitucional, repetindo o duvidoso precedente
de 1834. Paranhos sustentava que o propósito de Sinimbu contrariava o art. 11 da
Constituição, que consagrava como o governo misto teorizado por Caravelas ao declarar que
o Senado e a Coroa representavam a Nação soberana tanto quanto a Câmara de Deputados, a
quem o então Presidente do Conselho pretendia dar exclusividade. Na medida em que seus
membros também eram eleitos pelo povo, o Senado tinha legitimidade democrática quanto o
outro ramo do Poder Legislativo. Ademais, a Câmara Alta se renovava conforme morriam
seus componentes, não se podendo afirmar que ela não acompanhava a opinião pública.
Glosando Caravelas e Uruguai, Rio Branco declarava sem rebuços que a resistência dos
senadores aos projetos dos deputados não só era mais benéfica como mais útil ao Brasil,
porque impedia que se efetuassem reformas prematuras ou mal estudadas. A superioridade do
Senado estava no fato de que a Câmara dos Deputados estava “sujeita a todas as flutuações
políticas e mais ou menos dominada pelos ministérios, que invocam o espírito de partido
sempre que se vêem em circunstâncias apertadas” (ASI, 4/11/1879). Rio Branco concluiu sua
fé de ofício monarquiana ao reiterar sua concepção do Poder Moderador no quadro das
instituições brasileiras. Num país que ainda não dispunha de opinião pública organizada,
somente o ascendente do Chefe da Nação poderia evitar que o espaço político acabasse
encapsulado pelos interesses privados – no caso vertente, o pseudo-reformismo da bancada
ruralista do Parlamento.
“Eu quisera que questões como estas despertassem o espírito público e as opiniões
O Momento Monarquiano 361
Com sua habilidade e prestígio, Rio Branco capitaneou uma maioria senatorial que
derrotou o aristocrático projeto de reforma constitucional de modo acachapante.
Inconformado com a resistência do Senado, cuja dissolução não era possível, Sinimbu
requereu ao Poder Moderador que determinasse a dissolução da Câmara dos Deputados e a
realização de novas eleições. A providência parecia esdrúxula, já que o gabinete divergira do
Senado e não da Câmara. Reunido o Conselho de Estado para opinar sobre o pedido de
dissolução, Sinimbu explicou seu raciocínio. O Partido Liberal subira ao poder para realizar a
reforma constitucional, aspiração nacional recusada injustamente pelo Senado. No entanto, a
Constituição de 1824 não dera ao Poder Executivo meios de dobrar a resistência do Senado.
“A nossa Constituição é a única que, criando uma câmara vitalícia, limitou o número de seus
membros, colocando-a em suas deliberações acima da ação de qualquer poder”, explicava o
Presidente do Conselho. A dissolução da Câmara pelo Poder Moderador e a subseqüente
convocação de novas eleições para deputados gerais serviriam para apelar à Nação: caso as
urnas novamente dessem maioria ao gabinete na Câmara, ficaria evidente que a maioria do
país queria a reforma e o Senado teria de ceder. “Se, como em outras nações, a Coroa tivesse
o direito de alterar o número de senadores, é claro que esse seria o alvitre lembrado”,
prosseguia Sinimbu. “Mas, na carência desse recurso, outro não vejo senão o apelo por meio
da dissolução” (ACE, 28/02/1880). A situação era, assim, muito semelhante à de 1832,
quando o Senado coimbrão recusara o projeto de reforma constitucional enviado pelos
O Momento Monarquiano 362
Mais uma vez, desta vez no Conselho de Estado, o Visconde do Rio Branco comandou
a resistência à pretensão de Sinimbu. Além de discordar do alvitre para resolver a questão
entre o gabinete e o Senado, Paranhos lembrou expressamente que, na prática brasileira, as
câmaras eram sempre criaturas do gabinete, que as fabricava nas eleições. Como a nova
câmara não possuiria mais autoridade moral que a anterior, não tinha força o argumento da
vontade nacional empregado para intimidar o Senado. “É levar a ficção muito longe, e isto é
tanto mais notável quanto se pretende, ao mesmo tempo, que, sem uma reforma radical, as
eleições, no Brasil, serão em sua maioria o voto, para não dizer a designação do governo”.
Assim como defendera a prerrogativa da Coroa quando da discussão da Lei do Ventre Livre,
oito anos antes, Rio Branco defendia agora as prerrogativas do Senado contra as pretensões
absorventes da Câmara dos Deputados, amparando-se na interpretação monarquiana da
Constituição como governo misto. A Carta de 1824 pusera os senadores em pé de igualdade
com a Câmara para que, conforme seu juízo, pudessem livremente resistir às pretensões que
julgassem inoportunas ou irrefletidas dos deputados. Fora o que fizera a maioria do Senado,
ao rejeitar o precedente do Ato Adicional, que não passara de “fato consumado”. Para ele,
como para Uruguai e Caravelas, o Senado continuava a prestar mais serviços ao Brasil do que
a Câmara dos Deputados; e, “a não admitir que o Senado possa pensar diversamente do
governo e da maioria da Câmara temporária - nem mesmo em matéria como a de que se trata
presentemente -, então fora, com efeito, conveniente não só reformá-lo, mas ainda até acabar
com esse embaraço de uma segunda câmara” (ACE, 28/02/1880). Já abalado pelos excessos
cometidos na repressão a uma revolta contra o aumento das passagens de bondes (a Revolta
do Vintém), a derrota de Sinimbu no Conselho de Estado, chancelada pelo Imperador,
obrigou o gabinete a pedir sua retirada.
Mas essa crise política e constitucional teve uma conseqüência importante: convenceu
Dom Pedro II de que o desgaste de suas instituições seria reduzido, caso ele abrisse mão de
sua posição e admitisse a interpretação de que o voto individual não consistia num direito do
cidadão, mas uma função pública que lhe era outorgada pelo Estado. Nesse caso, de acordo
com o art. 178 da Carta, a matéria da reforma eleitoral poderia ser promovida por lei ordinária
e o Senado se sentiria desafrontado pelo projeto de reforma constitucional.
trindade luzia, o senador José Antônio Saraiva (1823-1895). Saraiva decidiu reformular o
projeto de lei e reduziu à metade o censo pecuniário exigido por seu antecessor. Não obstante,
ele não apenas manteve a exclusão dos iletrados como criou, a título de combater a fraude,
rigorosíssimas exigências para a comprovação da renda do eleitor, que o obrigariam a
apresentar perante a junta eleitoral documentos como certidões cartoriais, faturas,
contracheques e recibos de pagamentos. Deste modo, o pobre que vivia na informalidade
ficava sem qualquer possibilidade, condição ou desejo de comparecer às urnas (GRAHAM,
1997:260). Na Câmara dos Deputados, opondo à reforma política a reforma social, Nabuco
continuava a combater o censo literário e apresentara, em seu lugar, um projeto que estipulava
prazo para extinguir a escravidão. Saraiva lhe respondia que não estava nos planos do
gabinete resolver o problema da escravidão; quanto à reforma eleitoral, o analfabeto não
poderia votar “enquanto não faz o que todo o cidadão deve fazer: aprender alguma coisa para
ser digno membro de uma sociedade política”. E expôs o que entendia por governo
democrático: “A democracia não consiste em dar-se votos a todo o mundo e há escritores
liberais que dizem que o voto a toda gente não pode produzir a verdadeira democracia, senão
a demagogia ou o absolutismo” (ACD, 7/6/1880). No Senado, Saraiva teve de defrontar-se
com Rio Branco, o maior adversário da reforma: “Se o projeto não tivesse de encontrar-se
com a oposição do nobre senador, eu o consideraria desembaraçado de seu maior obstáculo,
podendo nutrir a esperança de vê-lo breve convertido em lei” (SARAIVA, 1978:539). Ocorre
que o visconde morreu dali a semanas, vencido por um câncer na boca – para a consternação
do povo e dos liberais urbanos, que começavam a vê-lo como um líder abolicionista e
democrático. Delirando em seus estertores, o visconde morrera pensando que estava no
Senado, combatendo a reforma eleitoral e pedindo aos colegas que não pusessem obstáculos
ao abolicionismo91.
91
É o testemunho algo romântico deixado por seu primeiro biógrafo e discípulo, Alfredo d’Esgragnolle Taunay:
“Com os olhos cerrados, pálido como cera, a calva alinda iluminada pelas cintilações do gênio e tentando de
quando em quando erguer o braço no gesto que lhe era familiar, murmurava num subdelírio constante frases
seguidas. De súbito, distintamente se lhe ouviram estas palavras: - ‘Peço, Sr. Presidente, licença para falar com
muita pausa, em vista de meu melindroso estado de saúde...’. Depois, por largo tempo . – ‘É preciso’, disse,
alteando de novo a voz, ‘obedecer lealmente aos compromissos tomados’. Longo espaço decorreu sem que nada
se percebesse da admirável perca oratória que estava pronunciando no leito de morte. – ‘Sem dúvida’, afirmou,
em certo ponto com mais clareza, ‘fareis a reforma, mas tereis arrancado o voto a muitos cidadãos’. Depois, mal
se ouviu aquele mesmo sussurro que ligava as frases soltas. E as horas caíam, pesadas, solenes.... Os lábios,
contudo, continuavam a mover-se e ainda se agitavam, no imenso cérebro do legislador, todas as grandes
questões da Pátria. Nada lhe escapava ao olhar de águia, embora já empanado pelas sombras eternas. –‘Não
perturbem’, proferiu com moroso esforço, ‘a marcha do elemento servil’. Depois de longo silêncio e
respondendo naturalmente ao aparte de algum senador, replicou com a força de que podia dispor: ‘Confirmarei
diante de Deus tudo quanto houver afirmado aos homens’. A pausa que se seguiu foi aterradora. Aproximava-se
o instante supremo. O exangue e sublime orador quis de repente falar: estremeceu ligeiramente e abriu a meio os
O Momento Monarquiano 364
olhos, e sem convulsão exalou tranqüilo, quase risonho, o último suspiro” (TAUNAY, 1930:142/143).
O Momento Monarquiano 365
92
Na verdade, o Imperador queria que Saraiva continuasse no governo, porque demonstrara nas eleições a
característica que mais apreciava num político - a capacidade de não se deixar levar exclusivamente pelo
interesse partidário. Desejoso de que tal política tivesse seguimento, o Poder Moderador chamou para formar o
gabinete seguinte o Marquês de Paranaguá, amigo da Família Imperial; diante de sua recusa, foi sugerido o nome
de Martinho (ACD, 24/01/1882). .
O Momento Monarquiano 366
havia sido a “verdadeira revolução política” que permitira “à Nação governar-se como quiser
e como entender” (In: JAVARI, 1962: 191/198). Naquele janeiro de 1882, sepultando o
modelo político saquarema, a aristocracia rural brasileira julgava triunfar sobre a herança
coimbrã, corrigindo os desvios de 1824 e 1837 e recolocando o país na direção impressa em
1831.
* * *
Este foi, porém, mais uma vez, um julgamento precipitado. Tantas vezes dado como
morto, o discurso monarquiano seria reformulado por políticos inspirados pelo exemplo de
Rio Branco, como Taunay, Nabuco e Rebouças, como forma de superar a fraqueza política do
movimento abolicionista e viabilizar as reformas sociais pelo alto. Exasperada pela aliança da
Coroa com o abolicionismo, que burlava o parlamentarismo, a aristocracia rural teve de aderir
à república para conseguir extinguir as instituições monarquianas. No entanto, às voltas com
as atas falsas, as eleições a bico de pena e as duplicatas de assembléias estaduais do Estado
republicano, em poucos anos já haveria chefes republicanos, como o senador e fazendeiro
paulista Francisco Glicério (1846-1916), propondo o restabelecimento da Lei Saraiva
(GLICÉRIO, 1982:318/339). É que a descompostura eleitoral do novo regime maculava a
utopia brasiliense de um governo moderno, restrito às elites, mas honesto; de uma democracia
que não fosse conspurcada, nem pela fraude, nem pelo povo. Daí a nostalgia do breve, mas
não esquecido, tempo do parlamentarismo aristocrático93.
93
Para a República, vale a anotação de Richard Graham: “No geral, os membros do Congresso atuavam como
clientes de chefões locais, ou como porta-vozes de seus próprios parentes mais ricos (...). Com certeza, o
verdadeiro sucesso de um político (...) significava no Brasil – como na maioria dos lugares – um histórico de
evitar medidas que ameaçassem alterar radicalmente o sistema social” (GRAHAM, 1997:235).
O Momento Monarquiano 367
Conclusão.
* * *
De resto, gostaria de fazer alguns comentários sobre alguns temas dessas tabelas. O
primeiro concerne à velha discussão sobre a natureza das idéias “importadas” da Europa (o
“centro”) e sua funcionalidade no Brasil (a “periferia”), travada à luz das teorias da
modernização que reforçavam o clichê de que a nossa inferioridade intelectual era um fato
decorrente do “subdesenvolvimento”. Prisioneiras de uma filosofia da história linear e
eurocêntrica, essas teorias desprezavam a produção intelectual dos países “atrasados” como
ideologias, cópias de idéias importadas ou idealismos. No centro, haveria teorias produzidas
por um espírito abstrato, universal, moderno; na periferia, por força dos limites impostos pela
sua singularidade, pelo seu descentramento, pelo seu atraso, haveria, na melhor das hipóteses,
pensamentos.
Essas categorias de centro e de periferia precisam ser revistas, pelo que tem de vago
e de ideológico. No período estudado nesta obra, apenas a Inglaterra e a França – os Estados
Unidos atrás – poderiam ser consideradas aos olhos brasileiros como constituindo o centro de
qualquer coisa que merecesse ser imitada. Além disso, objetivamente falando, também eram
politicamente periféricos à Inglaterra e a França todos os outros países da Europa: Espanha,
Portugal, Bélgica, os países alemães, escandinavos, italianos; todos importavam suas
linguagens e conceitos políticos tanto quanto nós. O que varia de um lugar para o outro são o
idioma, o grau de distância geográfica e de assimilação cultural, conforme a sociedade esteja
estruturada em cada lugar. Idéias estrangeiras em contexto diverso adquirem sempre sentidos
diversos, o contexto cultural, a circunstância pessoal e a intenção estratégica condicionam o
significado que o leitor extrairá dos conceitos e linguagens do autor nacional ou estrangeiro.
Por isso mesmo, o que aqui se fez - estudo da recepção das ideologias - é feito também em
todos os países do mundo, sejam eles centrais ou periféricos. Os espanhóis estudam recepção
do liberalismo doutrinário francês na Espanha; os italianos estudam recepção de Hegel no
Piemonte. Os franceses estudam recepção de Bolingbroke na França; os norte-americanos
estudam recepção de Locke e Sidney nos Estados Unidos. Os mexicanos e argentinos estudam
recepção do liberalismo espanhol no México e na Argentina. Ao estudarmos pensamento
político brasileiro, nós estamos, portanto, no mesmo movimento do mundo, que é o
movimento das idéias.
determinada época e lugar a fim de legitimar publicamente suas pretensões políticas, não tem
sentido sustentar que sua recepção sofre variação qualitativa fora de seu ambiente original. É
por isso condenável toda a concepção filosófica que, tomando as idéias políticas como
universais desencarnados de gente, lugar ou tempo, as julgue a partir de qualquer critério de
“fidedignidade”, fora do qual se tornam “deturpações”, “falsificações” ou “simulacros” –
especialmente quando atravessam as fronteiras. Pela mesma razão, não tem sentido, do prisma
científico, desqualificar qualquer tipo de pensamento político como mimetismo, cópia de
idéias importadas, tampouco declarar que em tal país o liberalismo, longamente praticado nas
instituições, teria falhado por ausência de solo fértil. Por esta ótica, a própria distinção entre
teoria política e pensamento política se torna arbitrária: a mais das vezes, a teoria não passa de
pensamento produzido nos países mais bem sucedidos e vistos como tais pelas nações que se
acreditam culturalmente dependentes.
Não quero com isso afirmar que a díade centro-periferia deve ser pura e
simplesmente abandonada. Posta de lado como objetividade ou realidade, ela deve ser
considerada, porém, no plano das representações históricas de seus agentes. Verdadeira ou
falsa no que respeita à qualidade da produção intelectual, a crença de que existia um lugar de
onde provinham as idéias superiores de civilização, artes e progresso – França, Inglaterra,
Estados Unidos -, desempenhou um papel fundamental na legitimação retórica das
instituições políticas dos países que julgavam patinar no atraso da periferia. Essa percepção
da diversidade foi um componente relevante para que os atores históricos ibero-americanos
percebessem que os conceitos ou linguagens oriundos da França ou da Inglaterra podiam
exercer uma funcionalidade diferente na América Ibérica, induzindo a mudança ou
disfarçando o atraso, reagindo conforme suas intenções ou daqueles que representavam.
Nunca é demais repetir a importância do exame da recepção das idéias pelos autores/atores
locais e entendê-las a partir da dinâmica do processo político-partidário e da conformação
social dos locais de recepção, levantando-se previamente os dados históricos disponíveis. É
este o procedimento que permite atestar, por exemplo, que a coexistência de discursos de
modernização democrática simultâneos na Europa ocidental e no Brasil não implica
correspondência de processos simultâneos de democratização; que, para além da diminuta
esfera pública urbana, composta seus profissionais liberais, jornais e revistas, a campanha pela
democratização servia, voluntária ou involuntariamente, para encobrir o movimento de
aristocratização da política que havia sido deflagrado pela aristocracia rural depois de
O Momento Monarquiano 374
94
Mesmo nas cidades, era muito tímido o reformismo da seção urbana da chamada geração de 1870 (nascida na
década de 1840); reformismo que, a despeito de seu propalado abolicionismo, não chegava a vislumbrar o
reconhecimento dos negros ou dos pobres como substantivamente iguais. A transferência de uma concepção
aristocrática da sociedade rural para os meios urbanos, que contamina a classe média brasileira, geralmente
descendente de senhores rurais falidos, ainda hoje fornece a chave para compreender os limites ideológicos de
suas concepções igualitárias de democracia. Assim, em matéria de reforma social, enquanto Antero de Quental,
Teófilo Braga e Oliveira Martins punham Proudhon e Marx na agenda reformista de Portugal, o que fizeram
Aníbal Falcão, Júlio de Castilhos e Silva Jardim, com foi barulhentamente brandir, como foros de novidade
revolucionária, a mais conservadora de todas as propostas de renovação social da Europa oitocentista - o
hierárquico positivismo comteano.
O Momento Monarquiano 375
* * *
A segunda adaptação do novo liberalismo ao Brasil, por seu turno, passava pelo
plano da estratégia. Num ambiente onde ainda não havia o espectro do socialismo e o
mercado estava entregue, pela pequenez da classe média, ao setor agroexportador, os novos
liberais teriam uma base social muito pequena. Daí que sua estratégia política passasse
principalmente por dois pontos. O primeiro era a denúncia do movimento da reação
aristocrática, que fizera da Câmara dos Deputados uma trincheira do latifúndio e da
escravidão. O segundo era o apelo à intervenção da Coroa como forma de superar a fraqueza
política do movimento e viabilizar as reformas sociais. Os abolicionistas se convenceram da
impossibilidade de êxito apenas pela mobilização da opinião pública e pela pressão sobre o
Parlamento. Tendo em vista que a aristocracia rural passara a controlar a maioria dos
deputados e a opinião pública ainda era inconsistente, Nabuco reconheceu que a colaboração
do Imperador era fundamental para o êxito do abolicionismo – ou seja, a intervenção de um
poder superior que não representasse apenas o particularismo das oligarquias, e sim a
sociedade brasileira de forma global. Foi por aí que a dimensão reformista do discurso
monarquiano, posta em relevo pelo Visconde do Rio Branco, foi apropriada pela esquerda
liberal radical para construir a Nação contra e resistência dos fazendeiros e senhores de
engenho.
O Momento Monarquiano 377
Por outro lado, as reformas sociais pleiteadas pelos abolicionistas também eram
defendidas pelo Imperador, que apenas queria um andamento mais lento para que elas não
abalassem demasiado os aristocratas rurais. Deveriam ainda ser tomadas providências
suplementares às de abolição: o assentamento dos imigrantes em terras devolutas e próximas
de estradas, para viverem em regime de pequena propriedade rural; o estabelecimento de um
imposto territorial rural sobre a propriedade improdutiva, a liberdade de cultos e o casamento
civil. Como seu avô e seu pai, a Princesa Isabel (1846-1921) também era contrária à
escravidão. É preciso lembrar que Leão XIII começara a virada que levaria a Igreja a
abandonar sua postura ultramontana para defender os direitos sociais dos trabalhadores. Por
isso, o mesmo catolicismo severo que levava os republicanos a atacarem a futura Imperatriz
como retrógrada reforçava sua sensibilidade em relação à desigualdade social e racial. Aqui se
revelam, portanto, as afinidades entre o reformismo saquarema da Coroa e o liberalismo
democrático dos abolicionistas, que tornaram possível recolocar a questão social na agenda
política quando da apresentação do gabinete Dantas. Derrubado este por voto de desconfiança
parlamentar, o Imperador afrontou os dogmas do parlamentarismo aristocrático ao preferir
decretar a dissolução da Câmara a desfazer-se de Dantas. No começo de 1888, foi Isabel
quem pressionou o gabinete Cotegipe, opondo, às objeções parlamentaristas, o argumento de
que não havia neutralidade possível em certas questões morais. Poucas semanas depois, ela
obrigou o ministério a se exonerar e, quebrando novamente o protocolo, indicou pessoalmente
o novo Presidente do Conselho e o fez incluir, na Fala do Trono, a necessidade de se
desapropriarem terras das fazendas limítrofes às estradas de ferro para assentar os colonos e
os libertos. Da tribuna da Câmara, Nabuco defendeu o procedimento ditatorial da Coroa e
começou a organizar com seus amigos uma frente suprapartidária em favor da reforma social
e contra o republicanismo agrário, contava com o Visconde de Taunay (1843-1899), o Barão
do Rio Branco (1845-1912) e Eduardo Prado (1860-1901), todos conservadores.
voltara a exercer a vocação inicial da ideologia monarquiana no momento em que ela havia
entrado em decadência, por força das mudanças ideológicas e por efeito de sua própria ação
reformista. No momento de emergência de uma nova teoria de governo – o do
parlamentarismo democrático –, a responsabilidade pelo reformismo deixou de ser imputado
ao partido situacionista para recair sobre a própria Coroa que, de garante da ordem pública,
passou a ser vista como agente da própria desordem. A conseqüência mais importante do
desencanto de liberais com a capacidade de regeneração da monarquia pelo parlamentarismo
foi o crescimento do Partido Republicano, cujo desempenho até então havia sido desprezível.
Os republicanos sabiam que a pedra de toque da monarquia constitucional era a teoria do
governo misto e por isso buscaram vulnerá-la em nome da democracia pura e do progresso,
apresentando-a como uma solução espúria de compromisso entre o absolutismo e a
democracia, que não poderia mais ser tolerada. Além disso, a república era uma forma de
governo mais adiantada, necessária ao progresso do país. De caso pensado, os republicanos
não tocavam na questão social, limitando-se a advogar uma república democrática e um
governo responsável. Por fim, propuseram o federalismo como única possibilidade de se
preservar a unidade nacional e enfrentar o crescente intervencionismo estatal sobre o campo.
Embora houvesse federalistas monárquicos, os republicanos insistiam na incompatibilidade da
república com a federação das províncias, que só seria possível dentro do modelo norte-
americano.
pelo novo liberalismo dos abolicionistas não melhoraria a condição dos menos aptos, apenas
prolongando sua condição de imprevidência e aumentando a burocracia do Estado em
detrimento da liberdade individual. Essa naturalização das desigualdades por conta de
sobrevalorização do individualismo os levava assim, naturalmente, a condenar a legislação
social, o socialismo, o direito de greve e a sindicalização. Mantido o requisito formal de
igualdade perante a lei como condição para a perfeita concorrência, soterrada pelos
determinismos geográficos, étnicos ou hereditários, desaparecia a noção de igualdade natural
ou potencial entre os indivíduos.
Nesse quadro, fica mais fácil compreender por que foi o Brasil o único país do
mundo, quando da queda de sua monarquia, a substituir o sistema parlamentar pelo
presidencial. Esse fato se explica para além da necessidade, apontada por Rui Barbosa, de
compensar a tendência centrífuga do federalismo. É verdade que a minoria positivista sempre
rejeitara o parlamentarismo, vendo nele o governo burguesocrático metafísico que impedia a
passagem ao regime positivo. Mas o que dizer dos antigos conservadores e liberais do campo
que o haviam apoiado em 1880, já que vinte por cento da antiga deputação monárquica estava
assentada uma década depois, na qualidade de adesista, na Constituinte republicana? Para
além de um súbito reencantamento pelas teorias do governo misto e da separação de poderes,
o modelo americano foi apoiado pela lavoura pelo mesmo motivo por que parte dela o fizera
em 1834 – pela crença de que um chefe de Estado forte a ampararia contra a desordem social.
O problema é que nem Pedro I, nem Pedro II, nem Isabel, haviam se revelado, ao fim e ao
cabo, dispostos a abandonar uma agenda própria, levando a aristocracia rural a contragosto a
brandir o discurso parlamentarista. Além disso, o povo carioca se revelara particularmente
passível de ser mobilizado contra o Parlamento por campanhas democráticas como a
abolicionista. Nada mais natural, nesse contexto, que a nova ordem não dispensasse a figura
de um chefe de Estado forte, escolhido pela própria aristocracia rural; aí, a teoria da separação
dos poderes e a tecnocrática aversão às paixões serviriam para desvincular o governo
republicano das pressões da rua. Essas mesmas razões levaram a nova Constituinte a reunir-se
longe do centro do Rio, no bucólico arrabalde de São Cristóvão, bem como a decisão de no
futuro transferir a capital do país para um local ermo e seguro – o planalto goiano.
No que tange ao problema da discricionariedade regulada, foi Rui Barbosa quem fez
introduzir no projeto de Constituição a jurisdição constitucional, isto é, o controle normativo
da constitucionalidade, extraído da experiência dos Estados Unidos. Sua expectativa era a de
O Momento Monarquiano 381
oligarquias estaduais, o que os levava a votar de acordo com as facções a que eram ligados.
Por fim, não havendo efeito vinculante em seus julgados, a eles não podia o Supremo vincular
os juízes e tribunais inferiores, motivo pelo qual nenhum órgão público se entendia obrigado a
rever os próprios atos.
Esse quadro político e institucional diz muito das ideologias políticas que vão
permear a Primeira República, especialmente depois que as aristocracias rurais estaduais
começaram a exercer o domínio longamente reclamado desde o tempo dos brasilienses.
Veiculado por Campos Sales e pela maioria dos partidos republicanos estaduais, apoiados
pelo castilhismo gaúcho, haverá um conservadorismo oligárquico republicano que,
ardorosamente defensor do presidencialismo, ressuscitará alguns topoi monarquianos – como
a do governante acima da política - pondo-o, porém, a serviço exclusivo da ordem
oligárquica. Excluídos sucessivamente os militares, os monarquistas e os jacobinos do cenário
político; marginalizados os parlamentaristas e subalternizados os democratas, o preço pago
O Momento Monarquiano 383
pelo chefe do Estado para conseguir a estabilização do regime pelo estado de sítio foi,
justamente, a impossibilidade de ser visto pelo conjunto da Nação como um árbitro neutro. É
que, para conseguir estabilidade, a Política dos Governadores preferiu sacrificar o pluralismo,
restringindo a ordem política ao diminuto espaço onde ela poderia gozar de unanimidade – ou
seja, à parcela das oligarquias estaduais que estivessem no poder. Acabou assim cristalizada
uma ordem política que, ao contrário do Império, era marcada, tanto em nível federal ou
estadual, pela mais absoluta falta de legitimidade, não importa de que espécie fosse; pela falta
de qualquer representação de minorias. Enquanto expediente de rotinização do governo
Campos Sales, a restrição da esfera pública tinha ainda o agravante de condená-la em longo
prazo, desde que se convertesse em instrumento ordinário de todos os governos seguintes. Por
mais que lançasse mão de argumentos monarquianos, estava claro que o chefe da Nação não
passava de cacique das oligarquias situacionistas. Não admira que, no conjunto de uma ordem
institucional julgada ilegítima, contra os ataques dos setores populares ou oligárquicos
marginalizados, a defesa da legalidade passasse forçosamente pelo recurso às intervenções
federais, às fraudes eleitorais e aos estados de sítio.
1934 uma frágil solução de compromisso. Será o medo do comunismo que forjará entre
oligarquias e burocracia uma nova coalizão, que permitirá superar as resistências liberais para
implantar o Estado Novo. Com efeito, o regime de Vargas (1882-1954) será sustentado por
um arco ideológico que incluirá o conservadorismo autoritário de Francisco Campos (1891-
1968); o protofascismo de Góis Monteiro (1891-1963), o neo-saquaremismo corporativo de
Oliveira Viana e o castilhismo gaúcho, na versão tradicional de Monte Arrais (1882-1965) e
modernizadora de Azevedo Amaral (1881-1942). Enquanto o regime incorporava as massas
pela via da tutela de seus direitos sociais, tais autores celebravam o poder pessoal do chefe de
Estado que, representando a Nação acima da política ordinária, exercia o papel de guardião da
sua unidade política. De certa forma, era o Império que contra-atacava.
O Momento Monarquiano 385
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