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A alma em Voltaire
Julio Cezar Lazzari Junior*

RESUMO O presente trabalho pretende tratar da questo da alma em Voltaire, importante filsofo do sculo XVIII. Este resumo sobre a alma na viso do filsofo se refere a um captulo da dissertao cujo tema A religio racionalista de Voltaire. Antes de adentrar propriamente na questo da alma em Voltaire, apresentaremos dois pontos de vista antagnicos sobre o assunto, o dualismo da substncia e a viso materialista. O objetivo situarmos Voltaire dentro dos debates que existiam em sua poca, demonstrando os pontos de vista mais importantes sobre a questo. Para isso, usaremos os exemplos de Ren Descartes, para a viso dualista, e de Jean Meslier e de Denis Diderot, para a viso materialista. A seguir, veremos como Voltaire problematiza e critica a viso dualista, na seguinte ordem: 1. Rejeitando a concepo das ideias inatas. Aqui Voltaire bebe na fonte de Locke para criticar a viso de que o homem tem ideias inatas e rejeita tambm a tradio platnica sobre a questo; 2. Criticando a ideia da manuteno dos cinco sentidos e da identidade aps a morte biolgica. O filsofo critica e ironiza a posio que defende que h uma substncia espiritual que se mantm aps o corpo se desfazer; 3. Destacando a suposta falta de evidncias fsicas sobre a autonomia da alma em relao ao corpo, demonstrando que so os elementos materiais que governam as aes humanas. Ao final, demonstraremos como Voltaire, apesar de suas crticas viso dualista, suspende o juzo sobre a questo em suas obras do final de sua vida, at mesmo problematizando argumentos que ele mesmo tinha defendido. PALAVRAS-CHAVE: Alma, materialismo, dualismo.

Aluno do Mestrado em Filosofia da Universidade So Judas Tadeu. E-mail: julio_lazzari@ig.com.br.

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271 Introduo

A questo sobre a existncia da alma e sua provvel sobrevivncia aps a morte uma das mais importantes da histria da filosofia e no deixa de aparecer nas obras de Voltaire, um dos pensadores mais relevantes e influentes do sculo XVIII. Neste trabalho, usaremos as seguintes obras do nosso filsofo para tratar da questo: Cartas inglesas (1733), Tratado de metafsica (1736), Dicionrio filosfico (1764), O filsofo ignorante (1766) e o conto A histria de Jenni (1775). Estas obras so suficientes para entendermos os principais argumentos de Voltaire contra a existncia de uma alma espiritual, os problemas desta concepo, bem como a inquietao do filsofo com o assunto. Enquanto das quatro primeiras extrairemos os textos em que o filsofo problematiza a existncia de uma substncia espiritual, da ltima buscaremos citaes onde o autor de Cndido suspende o seu juzo sobre o assunto. Para compreendermos melhor as ideias de Voltaire dentro do seu contexto histrico, apresentamos, de modo bastante introdutrio, dois pontos de vista contrrios sobre a questo da existncia da alma em relevantes filsofos do perodo: o dualismo da substncia e o materialismo. Para a primeira concepo, citamos algumas referncias de Ren Descartes, filsofo do sculo XVII, mas bastante citado no sculo XVIII, em duas obras: As paixes da alma e Meditaes metafsicas. Do lado dualista, trabalharemos com Jean Meslier, padre ateu que teve uma obra divulgada por Voltaire, com as devidas alteraes, que viveu nos sculos XVII e XVIII. O texto trabalhado ser Memria: Excertos. Citaremos tambm, representando igualmente a tradio materialista do sculo XVIII, Denis Diderot, tambm um dos mais importantes pensadores do perodo. Usaremos as seguintes obras: Dilogo entre D'Alembert e Diderot e O sonho de D'Alembert. Assim, com estas obras teremos condies de analisar, ainda que, pelo espao deste trabalho, de maneira sumria, como Voltaire debate a questo da existncia da alma, como a problematiza e como o assunto esteve presente em praticamente toda a sua vida.

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272 Descartes, Jean Meslier e Diderot

Para entendermos como estava o debate sobre a alma na filosofia da poca de Voltaire, buscaremos colocar dois pontos de vista diferentes: o dualismo da substncia e o materialismo. Ren Descartes representa bem a primeira ideia, sendo bastante combatido pelos filsofos do sculo XVIII, e Jean Meslier e Diderot representam bem a segunda, j que Meslier exerceu influncia sobre Voltaire e Diderot um dos filsofos materialistas mais importantes do perodo. Vejamos uma citao de Descartes:

As percepes que relacionamos somente com a alma so aquelas cujos efeitos sentimos como estando na prpria alma, e das quais habitualmente no conhecemos uma causa prxima qual possamos atribu-las. Tais so os sentimentos de alegria, de clera e outros semelhantes, que s vezes so excitados em ns pelos objetos que movem nossos nervos e s vezes tambm por outras causas. (DESCARTES, 1998, p. 45).

Talvez este raciocnio seja semelhante ao seguinte exemplo que nos ajuda a entender melhor o filsofo: Sinto que meu estmago digere, portanto, digerir algo que deve ser atribudo ao corpo, que detm o estmago, o qual, por sua vez, material. Por outro lado, no sinto um rgo que se relacione minha tristeza, portanto, a tristeza tem relao com a alma. Percebo que a dor causada, por exemplo, por um objeto que se choca com o meu corpo. Veja que perfeitamente natural conceber a dor tendo relao somente com o corpo, sem a necessidade de uma substncia espiritual para explic-la. J a alegria no pode ser explicada da mesma forma, pois ela no material, no tem extenso, no est em parte alguma do meu corpo, por isso no pode ser explicada materialmente. Aquilo que acontece e que no conseguimos buscar uma causa fsica, tem relao com a alma. Descartes tambm entendia que o esprito nos transmitia informaes mais seguras do que os sentidos, como se fosse superior a eles. Eis a citao que demonstra esta afirmao: ... conhecemos os corpos apenas pela faculdade de entender que est em ns, e no pela Anais do VII Seminrio de Ps-Graduao em Filosofia da UFSCar (2011)

273 imaginao nem pelos sentidos, e que no os conhecemos pelo fato de os vermos, ou de os tocarmos, mas somente pelo fato de os concebermos pelo pensamento... (DESCARTES, 2000, pp. 54-55). Eis uma frase que causaria grande rejeio no sculo XVIII por parte dos filsofos empiristas. Para Descartes, o pensamento, que seria um atributo do esprito, que faz o homem conhecer a matria, isto , outro corpo. Ele afirma que, ao ver homens de uma janela, pelos olhos (empirismo) s enxergava chapus, devido distncia, e s sabia que eram homens, no homens fictcios, pela capacidade de julgar no esprito, no pelos olhos (Cf. DESCARTES, 2000, p. 52). Talvez um filsofo empirista responderia a Descartes que, antes dele julgar que eram homens de verdade, seus sentidos lhe deram experincias semelhantes, como, por exemplo, ver um objeto diminuir de tamanho conforme ele se distanciava do mesmo. E, por este mesmo sentido, a viso, ele tinha visto que l embaixo, quando estava prximo a elas, andavam pessoas e, associando isto experincia anterior de j ter visto, inmeras vezes, objetos distantes diminurem de tamanho conforme se distancia deles, soube, quando estava distante, que aqueles chapus que ele contemplava l do alto de sua janela no eram homens fictcios, mas homens de verdade. Provavelmente porque ele nunca tinha visto homens fictcios andarem na rua. Talvez por isso este argumento, que provaria que o esprito mais digno de confiana na produo do conhecimento do que os sentidos, no impressionaria os materialistas do sculo XVIII. Jean Meslier, por outro lado, foi um padre que viveu nos sculos XVII e XVIII, cujos escritos, divulgados aps sua morte, revelaram que o sacerdote catlico no s era materialista, como tambm ateu (Cf. SOUZA, 1983, p. 46). Voltaire teve contato com a obra de Meslier, mas a divulgou apenas o que lhe interessava, omitindo que o padre era materialista, ateu e comunista (Cf. PIVA, 2006, p. 112). Os males da vida, a injustia, o sofrimento humano foram alguns dos motivos para que Meslier negasse a existncia e bondade de um Ser supremo (Cf. MESLIER, 2003, p. 76). O nosso padre tambm atacou as injustias sociais, defendendo um certo tipo de comunismo (Cf. MESLIER, 2003, p. 67), chegando mesmo a ver no modelo bblico da Igreja primitiva um modelo importante (Cf. PIVA, 2006, p. 232). E quanto ao materialismo, Meslier usou o paralelo homem/animal, bastante empregado no sculo XVIII, com o intuito de negar a existncia da

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274 alma humana (Cf. MESLIER, 2003, p. 92). Ou seja, o padre busca demonstrar que os animais tm os mesmos rgos e sentimentos que os homens e no haveria fundamento em atribuir essas caractersticas a uma alma no homem e neg-la nos animais. Voltaire tambm utilizou este argumento, como veremos a seguir. Quanto natureza, Meslier, embora reconhea sua beleza e perfeio, negou que ela aponte para a existncia de Deus (Cf. MESLIER, 2003, p. 99). Diderot, tambm materialista, defendeu que no h necessidade de se crer numa substncia espiritual para explicar certas funes do corpo humano. Todo o processo de formao do ser vivo, bem como seu desenvolvimento, envolveria apenas processos materiais (Cf. DIDEROT, 1985a, p. 87). Mesmo uma simples ave teria sentimentos e seu processo de nascimento, crescimento e desenvolvimento tambm seria explicado materialmente (Cf. DIDEROT, 1985a, p. 89). Atribuir existncia de uma substncia espiritual o que pode ser explicado materialmente seria negar o que lgico (Cf. DIDEROT, 1985a, p. 90). Tanto homens como animais e aves so feitos da mesma substncia, matria, e a diferena entre eles no est em uma alma espiritual, mas na forma como esto organizados (Cf. DIDEROT, 1985a, p. 90). Com sua viso materialista Diderot chegou at mesmo a antecipar certos aspectos da teoria da evoluo, defendendo a ideia de que os nossos rgos so formados segundo a necessidade e que o nosso corpo pode sofrer mudanas conforme executamos e repetimos determinados movimentos (Cf. DIDEROT, 1985b, p. 102). At mesmo as espcies animais como estados absolutos e imutveis foram questionados pelo filsofo, considerando que o homem no sabe o que os animais eram e no sabe o que eles podem se tornar (Cf. DIDEROT, 1985a, p. 87).

A questo da alma em Voltaire

As discusses sobre a alma em Voltaire passam sempre por problematizaes que o filsofo coloca idia do dualismo da substncia, sempre criando dificuldades para a concepo de que o homem possuidor de uma parte espiritual.

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275 Um dos argumentos do autor de Cndido sobre como se daria a manuteno dos sentidos do homem aps a morte. Na viso dualista, o homem morre, mas continua a existir, j que sua substncia espiritual seria imortal. Voltaire se pergunta como a alma ouvir sem orelhas, cheirar sem nariz, apalpar sem mos (VOLTAIRE, 1978c, p. 91), ou seja, como continuar a sentir sem os sentidos. Se as ideias viriam pelos sentidos, como a alma continuar a ter ideias depois da morte, sem possuir os sentidos que existem no corpo? (Cf. VOLTAIRE, 1978b, p. 74). Para o filsofo, a razo humana to incapaz de demonstrar por si mesma a imortalidade da alma, que a religio viu-se forada a revel-la para ns. (VOLTAIRE, 1978a, p. 22). Voltaire tambm questiona a suposta autonomia que a alma teria em relao ao corpo. O filsofo diz o seguinte:

Chegados aqui, dizei-me de boa f: essa fora, essa capacidade de sentir e de pensar, a mesma que vos faz digerir e andar? Confessais que no, porque a vossa inteligncia pode cansar-se e ordenar ao estmago: Digere!, que ele nada far se estiver doente; em vo que o vosso ser imaterial mandaria aos ps que caminhassem, porque no daro um passo se sofrerem de gota. (VOLTAIRE, 1978c, p. 90).

Essa capacidade, citada no texto acima, seria uma alma responsvel pelo pensamento, a qual tambm controlaria toda a vida humana, todas as funes biolgicas. Voltaire acha tal ideia frgil, partindo do princpio de que, se um membro do corpo estiver doente e no funcionar enquanto no estiver so, onde apareceria tal alma supostamente autnoma que coordena o corpo fsico? Como o corpo teria uma alma independente se no consegue andar com uma perna quebrada? Como haveria uma substncia imaterial e superior ao corpo se ela no consegue fazer com que uma pessoa tenha vida se o seu corao no estiver batendo? Outro argumento de Voltaire contra a dualidade substancial da natureza humana aquele que busca provar a unidade do corpo, mesmo nas funes materiais mais comuns, como comer, e a capacidade aparentemente menos material, a de pensar. Assim ele se expressa em O filsofo ignorante:

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Vi uma diferena to grande entre os pensamentos e a alimentao (sendo que sem esta eu nunca pensaria) que acreditei haver em mim uma substncia que raciocinava e uma outra que digeria. Entretanto, buscando sempre provar a mim mesmo que no sou dois, senti grosseiramente que sou um s. (VOLTAIRE, 1978d, p. 300).

Podemos entender que, partindo do princpio de que sem alimento eu no penso, pois sem comer eu morrerei e o meu corpo no conseguir funcionar direito com fome, e assim no poderei pensar, como ento haveria uma alma espiritual por trs de tudo isso? Se a alma responsvel pelo pensamento, ento por que seria necessrio o alimento, algo material, para algo espiritual, a alma, produzir os seus efeitos, no caso, o pensamento? Analisando a conseqncia do raciocnio de Voltaire, se o homem tivesse uma alma espiritual, o crebro deveria produzir pensamentos mesmo se o homem estivesse doente, sem comer, sem beber ou at se lhe cortassem a cabea. O filsofo tambm utiliza o argumento do paralelo entre o homem e o animal para demonstrar que o primeiro no privilegiado em relao ao segundo como possuidor de uma substncia espiritual. A mesma causa que age nos homens age nos animais, ou seja, h um princpio vital comum entre ambos, que seria, nas palavras do filsofo, um atributo dado por Deus matria. (VOLTAIRE, 1978b, p. 73). Os animais possuem nervos como os homens e seria uma grande tolice negar que eles tm sentimentos (Cf. VOLTAIRE, 1978c, p. 97). No dizer de Maria das Graas de Souza, a partir desta observao, existem duas possibilidades coerentes: ou atribumos tambm aos animais uma alma ou a recusamos ao homem. (SOUZA, 1983, p. 22). O filsofo preferiu a segunda opo. Embora Voltaire tenha utilizado argumentos contra a existncia de uma substncia espiritual dentro do homem, ao final de sua vida ele suspendeu o juzo sobre a questo. Desde as Cartas inglesas, de 1733, at O filsofo ignorante, de 1766, vimos o filsofo problematizando a ideia da existncia de uma alma espiritual, mas em seu conto A histria de Jenni, de 1775, trs anos antes de sua morte, o autor de Cndido recuou um pouco. Neste conto, o personagem

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277 que representa um sbio trabalha com a possibilidade de Deus punir o homem aps a morte (Cf. VOLTAIRE, 2005, p. 673), demonstrando que mesmo impossvel provar que a alma no pode sobreviver morte se Deus assim o quiser (Cf. VOLTAIRE, 2005, p. 674).

Concluso

Voltaire rejeitou, como vimos, a viso dualista, bem representada por Ren Descartes, e usou argumentos materialistas de sua poca, como os de Jean Meslier e de Denis Diderot. Ao longo de sua vida o filsofo buscou problematizar a idia do dualismo da substncia, sempre impondo dificuldades a quem assim enxergava a natureza humana. O fato de o tema aparecer em um nmero razovel de obras de Voltaire, escritas com um bom intervalo de tempo, demonstra que a questo o inquietava bastante. Todavia, ao findar de sua vida, o autor de Cndido teve uma mudana de postura, no defendendo abertamente a imortalidade da alma, mas abrindo a possibilidade para a sua sobrevivncia aps a morte.

Bibliografia

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278 ______. O sonho de D'Alembert. Trad. J. Guinsburg. In: Os pensadores. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1985b, pp. 93-121 MESLIER, Jean. Memria: Excertos. Trad. Luis Leito. Lisboa: Edies Antgona, 2003 PIVA, Paulo Jonas de Lima. Atesmo e revolta: os manuscritos do padre Jean Meslier. So Paulo: Alameda, 2006 SOUZA, Maria das Graas de. Voltaire e o materialismo do sculo XVIII. 1983. Dissertao (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo VOLTAIRE. Cartas inglesas. Trad. Marilena de Souza Chau, Bruno da Ponte e Joo Lopes Alves. In: Os pensadores. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1978a, p. 1-57 ______. Tratado de metafsica. Trad. Marilena de Souza Chau, Bruno da Ponte e Joo Lopes Alves. In: Os pensadores. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1978b, p. 59-83 ______. Dicionrio filosfico. Trad. Marilena de Souza Chau, Bruno da Ponte e Joo Lopes Alves. In: Os pensadores. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1978c, p. 85-295 ______. O filsofo ignorante. Trad. Marilena de Souza Chau, Bruno da Ponte e Joo Lopes Alves. In: Os pensadores. 2. ed. So Paulo: Abril Cultural, 1978d, p. 297-328 ______. Histria de Jenni ou o ateu e o sbio. Trad. Mrio Quintana. In: Contos e novelas. So Paulo: Globo, 2005, p. 625-678

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