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Violência Contra Negros 1 PDF

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Camargo CL, Alves ES, Quirino MD

VIOLNCIA CONTRA CRIANAS E ADOLESCENTES NEGROS: UMA ABORDAGEM HISTRICA


VIOLENCE AGAINST BLACK CHILDREN AND TEENAGERS: A HISTORIC OVERVIEW VIOLENCIA CONTRA LOS NIOS Y LOS ADOLESCENTES NEGROS: UN ABORDAJE HISTRICO

Climene Laura de Camargo1, Eloina Santana Alves2, Marinalva Dias Quirino3

Doutora em Sade Pblica. Professora Adjunto da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Enfermagem. Professora Assistente da Escola de Enfermagem da UFBA. 3 Doutora em Enfermagem. Professora Adjunto da Escola de Enfermagem da UFBA.
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PALAVRAS CHAVE : Hist- RESUMO: Trata- se de um estudo bibliogrfico com o objetivo de historicizar a prtica da violncia ria. Violncia. Grupo social. contra crianas e adolescentes negros desde os tempos coloniais em que o sistema escravagista impetrava atos da mais extrema violncia contra o ser humano. Busca uma melhor compreenso da magnitude do Negros problema, descreve alguns conceitos e apresenta vrios enfoques da violncia num contexto interdisciplinar, na tentativa de analisar suas causas e efeitos. Descreve ainda, atravs do percurso histrico o fenmeno da violncia o qual permeou a formao da sociedade brasileira. Leva o leitor reflexo das atuais condies de violncia de crianas e adolescentes, vivenciadas no espao do macropoder, entendido como Estado e do micropoder, grupo familiar. Ao final aponta a necessidade de enfrentamento dessa realidade to brutal, no sentido da construo de uma sociedade mais democrtica, mais justa e igualitria. KEY WORDS : History. ABSTRACT: This is a bibliographic study based on historical violence against children and teenagers Violence. Social group. Blacks. since colonial time, when the slavery system petitioned extreme acts of violence against human beings. Looking to better understand the magnitude of this problem, some concepts are described and several approaches to violence are presented in an interdisciplinary context in order to analyse their causes and effects. The violence phenomenon which composed the formation of Brazilian society is also described through historical passages. This study offers the reader an opportunity to reflect about the current condition of violence against children and teenagers that are experienced in a macropower environment, understood as the State, and the micropower family group. Finally, it points out the need for confrontation of this brutal reality in order to construct a fairer, more equal and more democratic society. PALABRAS CLAVE: Histo- RESUMEN: Se trata de estudio bibliogrfico con el objetivo de historiar la prctica de la violencia ria. Violencia. Grupo social. contra los nios y los adolescentes negros, desde tiempos coloniales, en los cual el sistema esclavista cometa actos de la ms extrema violencia contra el ser humano. Busca una mejor comprensin de la Negros. magnitud del problema, describe algunos conceptos y presenta varios enfoques de la violencia en un contexto interdisciplinario, con la intencionalidad de analizar sus causas y efectos. Describe tambin, a travs del percurso histrico, el fenmeno de la violencia que envuelve a la sociedad brasilea. Motiva el lector a la reflexin sobre las actuales condiciones de violencia contra los nios y los adolescentes negros, vivenciadas en el espacio del macropoder, entendido como Estado y del micropoder, entendido como grupo familiar. Finalmente, orienta para la necesidad de enfrentamiento frente a esa realidad brutal, mediante la construccin de una sociedad ms democrtica, justa e igualitaria. Endereo: Climene Laura de Camargo. R. Morro do Escravo Miguel, 184, Ap. 201. 40170-000 Ondina, Salvador, BA. Email: climenecamargo@hotmail.com Artigo original: Reviso de literatura Recebido em: 15 de maio de 2005 Aprovao final: 27 de outubro de 2005

Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2005 Out-Dez; 14(4):608-15.

Violncia contra crianas e adolescentes negros...

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INTRODUO
A violncia pode ser conceituada como um evento realizado por pessoas, grupo de pessoas, classes, naes, que ocasionam dano fsico, emocional, moral ou espiritual a outrem. Configura-se em um problema de sade pblica de grande magnitude e transcendncia, que tem provocado forte impacto na morbidade e na mortalidade da populao. Para se buscar uma aproximao da compreenso do problema da violncia praticada contra crianas e adolescentes negros, h que se analisar, inicialmente, a abrangncia do que se entende por violncia. Longe de ser uma questo meramente semntica ou lexicogrfica, essa anlise fundamental para a formulao de medidas de enfrentamento a essa questo crucial. Etimologicamente, violncia origina-se do latim violentia, e designa o ato de violentar; qualidade do que violento; fora empregada abusivamente contra o direito natural; constrangimento exercido sobre alguma pessoa para obrig-la a praticar algo. Definies que parecem calcadas na idia da violncia somente enquanto o uso abusivo da fora fsica e da coao pessoal, no fazendo meno s formas sutis de coero psicolgica como atos de violncia, e nem violncia da desigualdade social.1 Embora haja definies da violncia que a diferenciam de outros tantos comportamentos humanos, no h apenas uma violncia. O conceito tem sido usado de forma abusiva para falar de muitas prticas, hbitos, disciplinas, de tal modo que todo comportamento social poderia ser visto como violento, inclusive o baseado nas prticas educativas, tais como na idia de violncia simblica proposta por Pierre Bourdieu.2 Considerada do ponto de vista cientfico, tanto a violncia como suas causas tm sido, desde h muito, objeto de investigao de mltiplas vertentes. Enquanto as abordagens sociolgicas consideram a complexidade das situaes sociais, a abordagem antropolgica relaciona violncia com os diversos aspectos da natureza humana, fundamentando-a em diferentes bases: a neurofisiolgica, desenvolvida a partir das contribuies da etiologia, quando esta considera a violncia humana da perspectiva dos comportamentos animais; a da antropologia pr-histrica, que considera a evoluo do homo sapiens e de suas aptides, bem como a da psicologia e da psicanlise. O olhar antropolgico relativizador acerca do fenmeno da violncia pode subsidiar prticas interventoras na medida que possibilita a incluso das situaes consideradas como violenta ao contexto de
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valores e prticas em que so produzidos, considerando as diferentes formas e significados que lhe so atribudos. Assim, a violncia como um fenmeno abstrato passa a ser questionada j que est inserida em um contexto social emprico.3 Os estudos micro-sociolgicos evidenciam, antes de mais nada, que a violncia muito difundida e considerada como fato normal e corriqueiro, mostrando que a realidade da violncia difere sensivelmente das representaes que fazemos dela e dos discursos ideolgicos ou mticos que sustentamos sobre ela. Para esse autor, pesquisas sobre crianas mrtires ou mulheres espancadas revelam a quantidade de violncia que circula em famlias de qualquer etnia e a maneira pela qual tal violncia se recicla em crianas criadas em tal atmosfera.4 Do ponto de vista sociolgico, a violncia atribuda aos fenmenos gerados nos processos sociais e composta por quatro categorias: a) estrutural: que se fundamenta scio-econmica e politicamente nas desigualdades sociais, apropriaes e expropriaes das classes e grupos sociais; b) cultural: que se expressa a partir da primeira, mas transcende s relaes raciais, tnicas, grupos etrios e familiares; c) violncia da delinqncia: que se apresenta sociedade sob a forma de crime e est articulada violncia de resistncia; d) violncia da resistncia: que marca a reao das pessoas e grupos submetidos e subjugados por outros.5 Assim, dentro de uma perspectiva conjuntural, a violncia deixa de ser causa e passa a ser efeito, tornando-nos vtimas e agressores ao mesmo tempo. Vtimas, porque ningum fica imune ao processo social de excluso e da violncia que dele advm. Agressores, porque em parte somos coniventes, ao no exigirmos, como sociedade organizada, o fim da barbrie a que se assiste por todos os lados e o fim da impunidade. Podemos ainda caracterizar a violncia sobre outras vertentes: a) como um problema de Poder: quando a violncia (fsica, psicolgica ou moral) praticada direta ou indiretamente por uma pessoa, ou grupo de pessoas, contra outra pessoa, ou grupo de pessoas ou coisa. Embora a fora exista em si e para si, sempre usada a servio do poder. No somente o macropoder (como o caso do Estado), como tambm o mais discreto e sutil micropoder, que expresso no grupo familiar, institucional e redes regionais. A violncia no portanto, um problema que se restringe apenas fora, como pode aparentar em um primeiro momento, ela apenas o instrumento ou a expresso do poder; b) como um Problema

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Assimtrico: os processos de apropriao e a estrutura resultante e dinmica do poder justificam a diferenciao e criao de classes e nveis. O desequilbrio entre entidades heterogneas essencial como pr-condio para a violncia. Quanto maior a desigualdade, maior o potencial de violncia; c) como Anti-Ao: a fora exibida como violncia uma fora destrutiva; mata, mutila, fere, desfigura o corpo e altera as funes orgnicas. Produz desequilbrio emocional, medo, deformao e destruio tanto de estruturas individuais quanto coletivas; d) como Pro-Ao: esta forma particular de poder, exercida atravs da fora, no somente almejada para destruir uma ordem ou sistema legal; pode tambm ser exercida para afirmar ou defender um direito ou construir uma ordem ou sistema.6 Outros autores apontam muitas causas ou razes da violncia e situam como primeira raiz a natureza humana, considerando que o homem um ser contraditrio, incoerente, desequilibrado e no harmnico, dotado de instinto alm da razo, em constante conflito com os outros e com ele prprio.7;8 Mesmo assumindo o comportamento biolgico como primeira raiz da violncia humana, estes autores avanam dentro de uma anlise mais ampla quando apontam, como outra causa, a estrutura da sociedade dividida em classes, baseada no processo de opresso e espoliao de uma classe sobre a outra. A violncia da desigualdade social existe, no porque o homem assim o quis, ou por ser uma decorrncia natural do viver em sociedade, mas porque ele aparece em condies histricas especficas. Se continua a perpetuar, porque essas condies tambm se perpetuam, mesmo que modifiquem sua maneira de aparecer. Assim, este estudo tem por objetivo historicizar a prtica da violncia contra crianas e adolescentes negros do perodo colonial presente data.

O PERCURSO HISTRICO
A violncia praticada contra crianas e adolescentes negros no um acontecimento novo no Brasil. Desde o perodo colonial at os nossos dias, essa parcela da populao vem sendo espoliada, oprimida, negligenciada, ou seja, sofrendo as conseqncias da violncia sob todas as formas que esta pode incidir sobre uma pessoa e/ou comunidade. Historiadores tm descrito o fenmeno da violncia contra crianas e adolescentes nos diversos perodos da histria do Brasil, permeando a formao da sociedade brasileira. Durante o perodo colonial, a catequizao dos ndios funcionou como um adestramento desta po-

pulao imposta cultura portuguesa, o que aconteceu s custas de ndias sendo violentadas, portugueses explorando sua fora de trabalho, seus corpos e alienando suas conscincias. Posteriormente, com a chegada dos escravos, tambm subjugados aos seus senhores, refletindo uma realidade no menos trgica: eram tratados de maneira brutal, relegados condio de objetos, tendo ignorada a sua condio de seres humanos, sendo vtimas das mais atrozes formas de violncia. E da miscigenao desses indivduos formou-se a populao brasileira. Os filhos do Brasil foram gerados na violncia, alimentados na malquerncia, paridos no desespero e usados como combustvel nos engenhos. Somos filhos da violncia e do estupro. O Brasil o resultado da prodigiosa multiplicao de uns poucos europeus brancos e de uns contatos africanos sobre milhes de corpos de mulheres indgenas seqestradas e violentadas. Os filhos do Brasil no so o fruto mimoso de uma histria de amor.9 Quando enfocamos o sistema escravagista, identificamos tambm o perodo em que foi impetrado o maior e mais cruel tipo de violncia contra a infncia e a adolescncia. J no prprio ventre as crianas negras iniciavam uma vida de opresso, pois a maternidade em muitos casos era uma arma contra a fome e a misria, como pode-se perceber no seguinte texto: Com poucas excees, todas as jovens negras no tm outra preocupao alm de ser me. uma idia fixa, que toma conta de seu esprito desde que se tornam nbeis, e que realizam assim que tm ocasio... Na verdade, a maternidade no as levar com toda a segurana ao bem-estar, s satisfaes do amor-prprio, ao usufruto da preguia coqueteria e gulodice? Uma ama-de-leite alugada por mais que uma engomadeira, uma cozinheira ou uma mucama. Para que d honra e lucro, colocada numa boa casa, o senhor, durante a gravidez, lhe reserva os trabalhos mais leves. Aps o parto, a rapariga v suas camisas destrudas e suas roupas velhas distribudas aos companheiros, enquanto seu guarda-roupa renovado e recebe enxoval novo. uma roupa grosseira, mas bem feita, vestidos simples a que a senhora, se os meios lhe permitem, colocou dois ou trs metros de renda comum, e um vestido branco com seis babados, realizao do sonho dourado constante das jovens negras. Eis o primeiro benefcio da maternidade.10:31 Ao nascerem, muitas das crianas, filhas de mulheres escravas, foram abandonadas, como pode ser identificado em relatos de viajantes: pelo fato de
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...muitos expostos serem filhos de escravas cujos senhores no querendo ter trabalho, nem fazer gastos com a criao de negrinhos, ou precisando das mes para amas, obrigaram-nas a abandon-los na enjeitaria....11:179 As enjeitarias ou Rodas dos Expostos, instituies criadas a partir do sculo XVII para abrigar crianas abandonadas, quase sempre foi um albergue de crianas negras. Os estudos da demografia da histria revelam que a distribuio das crianas expostas na roda de Salvador, de acordo com a etnia, acompanhou, de certa forma, as mudanas na composio da populao da cidade, ao longo dos sculos XVIII e XIX. A populao da cidade no sculo XVIII era majoritariamente branca, sendo 39% de pardos e negros. A entrada macia de escravos africanos no mercado de Salvador, particularmente no perodo que vai da represso britnica ao trfico negreiro at a sua extino, aumentou fortemente. Como conseqncia, houve aumento da presena de negros e mulatos na cidade, o que pode ser observado nos dados do censo de 1872 onde aponta que 72% da populao era composta por pardos e pretos. Essa mudana na composio tnica da populao de Salvador refletiu-se nas mudanas da composio dos expostos da Roda. No sculo XVIII os enjeitados eram predominantemente brancos. No final do sculo XIX eram quase integralmente mulatos e pretos. Compreender, portanto, como viviam e morriam estas crianas colocadas nas Rodas dos Expostos em nosso pas, uma maneira de nos aproximarmos da violncia real e da violncia simblica vividas por crianas e adolescentes negros atravs dos sculos e que continua a perpetuar-se sob vrias maneiras at os dias atuais.11 A descrio sobre a vida de crianas no Asilo dos expostos na cidade de Salvador, expe esta triste realidade. Muitas destas crianas identificadas e registradas nessas instituies, morriam to logo davam entrada. De acordo com os mdicos da poca, as causas dos bitos, em sua maioria, estavam relacionadas s doenas do aparelho digestivo, s doenas infecto-respiratrias, doenas sexualmente transmissveis e males de dentio. Sem chegar a um consenso, alguns mdicos acreditavam que a formao da primeira dentio podia causar a morte da criana, outros postulavam ser esse tipo de informao brbara e sem nenhuma base cientfica.12 No discurso e na prtica mdica nos anos de 1900 a 1940 identificamos: ...a existncia de uma medicina imprecisa e imatura no que tange ao diagnstico e cura das doenas infantis.12:160
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O livro de registro de expostos do asilo Nossa Senhora da Misericrdia, identifica que 21,2% dos bitos ocorreram por causa ignorada, correspondendo primeira causa das mortes de crianas, seguida pelo raquitismo 16,85%. A gastroenterite ocorreu em 20,8% das causas de bitos, sfilis em 11,5%, pneumonia em 7,9% e a dentio 2,7%. As rodas dos expostos das misericrdias amparavam em princpio as crianas nos seus sete primeiros anos de vida. Depois dessa fase, as meninas que no haviam encontrado acolhimento em casas de famlias deveriam ser transferidas para os Recolhimentos (instituies que tinham por finalidade abrigar e educar as meninas abandonadas aps os sete anos), onde ficariam espera de uma colocao familiar ou do casamento. Entretanto, as expostas da misericrdia da Bahia no foram recebidas nas instituies de Recolhimento, pelo menos em todo o sculo XVIII. A maioria dessas crianas ficaram desamparadas, vagando pelas ruas da cidade. Apenas em 1801, apareceram os primeiros registros de expostos da Roda encaminhadas para o Recolhimento. At as primeiras dcadas do sculo XIX, as crianas - tanto as da Rodas de expostos como as do Recolhimento - no receberam nenhum tipo de instruo sistemtica. Essas casas funcionavam apenas como abrigos, sem nenhuma outra atividade educacional, religiosa ou profissionalizante estabelecida. A partir da Segunda metade do sculo XIX, o sistema de internamento das meninas, passou a cuidar da educao elementar e da educao profissional, alm da formao moral e religiosa. Por vezes inclua-se o ensino de matrias prprias da educao das elites, como o ensino do francs, do alemo, de piano, de canto, de desenho.12 Com as primeiras leis em favor da abolio da escravatura, e a prpria extino do sistema escravista no Pas, higienistas, juristas e o governo se aliaram sociedade para fomentar a criao e a manuteno dos estabelecimentos de proteo e de educao das meninas rfs e desvalidas. Esses estabelecimentos passaram a ser vistos como a salvao das famlias bem postas: tornaram-se o celeiro para se abastecerem de domsticas bem preparadas, a bom preo ou mesmo gratuitamente.11 O destino dos meninos abandonados na Roda dos expostos, no foi melhor do que a das meninas. Aos trs anos, quando voltavam das casas das amasde-leite, enfrentavam problemas piores. Por no se-

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rem alvo das mesmas preocupaes com a honra e a virtude, como no caso das meninas, raras foram as instituies criadas para proteg-los, antes de meados do sculo XIX. Mesmo assim estas instituies recebiam nmero limitadssimo de meninos oriundos das Casas dos Expostos. Dos 112 expostos lanados na roda de Salvador em 1813, apenas seis foram devolvidos aos pais, que vieram busc-los. A maioria tinha sorte cruel. Crianas negras e mulatas foram sutilmente transformadas em escravos pelas prprias amas, passado o perodo de amamentao, enquanto recebiam estipndio da Roda dos Expostos.11 No era raro tambm, os senhores usarem do expediente sagaz de levar para a roda um beb escravo e, depois de passada a fase de maior mortalidade, reclamar o escravo de volta. Para a maioria dos expostos nas rodas - que sobreviveram ao genocdio dos primeiros anos de vida e cujos pais nunca mais cuidaram de sua existncia, ou que nem se quer puderam permanecer com suas amas-de-leite - poucas eram as sadas que se apresentavam em suas vidas, alm da rua, do desamparo ou da morte. Depois que se criou a Casa dos Expostos em Educao, na roda de Salvador, os meninos passaram a ser encaminhados para l, onde deveriam permanecer at por volta dos doze anos. Esta instituio empenhava todos os esforos para que os meninos encontrassem uma famlia onde pudesse trabalhar e ser amparados. A partir do sculo XVIII, surgiram propostas e iniciativas de carter caritativo para amparo dos meninos expostos. O primeiro colgio interno destinado a atender meninos rfos e desvalidos foi a Casa Pia e Seminrio de So Joaquim, na cidade de Salvador.11 Mas, o que sabemos das crianas e adolescentes negros que no foram abandonados? Como viviam e que tipo de violncia sofriam? Entre os negros cativos do Brasil, predominavam os adultos, pouco dos quais chegavam aos cinqenta anos. As crianas representavam apenas dois entre cada dez cativos. Dessas crianas, poucas chegavam idade adulta, j que dois teros morriam antes de completar um ano de idade e 80% at os cinco anos. Aqueles que escapavam da morte prematura, iam, aparentemente perdendo os pais. Antes mesmo de completarem um ano de idade, uma entre dez crianas j no possuam nem pai nem me. Aos cinco anos, metade era rfo e aos 11 anos, oito em cada dez crianas eram completamente rfos.13 O autor, ainda

informa que a criana escrava sobrevivente no ficava s, j que fazia parte de uma rede de relaes sociais escravas, em especial as do tipo parental. Provavelmente ele teria irmos, tios, primos, em alguns casos avs que poderiam viver dentro ou fora de seu plantel. Mas rfos ou no o que se tem a certeza que a vida dessas crianas era um verdadeiro calvrio. Este ressalta a comparao do tormento da cana-de-acar batida, torcida, cortada em pedaos, arrastada, moda, espremida e fervida como o cotidiano de escravos pais e escravos filhos que tambm haviam de ser batidos, torcidos, arrastados, espremidos e fervidos. Era assim que se criava uma criana escrava. Entre os quatro e os onze anos de idade, a criana escrava ia tendo o tempo paulatinamente ocupado pelo trabalho. Aprendia um oficio e a ser escravo. Por volta dos sete anos um escravo era cerca de 60% mais caro que o escravo de 4 anos, e por volta dos 11, chegava a valer at duas vezes mais. Aos 14 anos a freqncia de garotos desempenhando atividades, cumprindo tarefas e especializando em ocupaes era a mesma dos escravos adultos. O adestramento da criana se fazia pelo suplcio cotidiano, feito de pequenas humilhaes e grandes agravos. Alm de assistirem constantemente o espetculo degradante das punies exemplares que eram reservadas aos escravos adultos; muitos deles, seus prprios pais, e/ou parentes prximos.13 A vida das crianas escravas, tanto as que conviviam mais prximas s famlias do senhor ou as que trabalhavam nas lavouras, era repleta de sofrimentos. Estas crianas, muitas denominadas de leva-pancadas, alm de sujeitarem-se a trabalhos prematuros desde a mais tenra idade, desempenhavam ainda a funo de animais de estimao. Por valerem pouco no mercado de capital da poca, atraam para si a violncia do conjunto social e eram vtimas de sevcias. Os leva-pancadas, a despeito de servirem de brinquedos dos sinhozinhos de engenho, serviam tambm como instrumento sobre os quais libertava-se o dio, frustraes e os desajustes, presentes em mentes doentias de alguns proprietrios de escravos do passado.14 Alm da violncia fsica a que as crianas e os adolescentes eram submetidos, as relaes sexuais entre adultos e crianas, na poca colonial, no eram conduta das mais condenadas. Mesmo quando realizada com violncia, a pedofilia, em si, nunca chegou a ser considerada um crime especfico, nem mesmo por parte da Santa Inquisio, como vista em pedofilia e pederastia no Brasil antigo.15:60 Quando nos voltamos compreenso da histria da infncia e adolescncia pauperizada no Brasil,
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verificamos que as contradies com as quais a populao se defronta so muito mais complexas e antigas do que se imagina. Atravs da historicidade desse fenmeno, verificamos tambm que os ndios, as mulheres, os negros e as crianas sempre surgem como vtimas dos homens, que, no por coincidncia, so representados pelos brancos. A histria da infncia ...fez-se sombra daquela dos adultos. Entre pais, mestres, senhores ou patres, os pequenos corpos dobram-se tanto violncia, fora e s humilhaes, sendo amparados apenas pela ternura e pelos sentimentos maternos.16:7 Vale salientar que esta ternura atribuda s mes faz parte de uma histria mais recente, e para alguns segmentos sociais. Desta forma, observamos que, desde sua formao, firma-se na sociedade brasileira um sistema de poder que, germina da simbiose patriarcado-racismocapitalismo. Um poder que define-se como macho, branco e rico e ao qual pode-se agregar o qualificativo de adulto. Um poder que, mesmo sendo diferente dos outros trs por no implicar contradies e antagonismo explicita-se atravs de uma hierarquia, na qual o poder adulto destina-se a socializar a criana, a transform-la em adulto sua imagem e semelhana.17 Atualmente, no Estatuto da Criana e do Adolescente, Art. 5 Das Disposies Preliminares, a violncia impetrada a esta faixa etria entendida como uma violao de seus direitos: Nenhuma criana ou adolescente ser objeto de qualquer forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso, punido na forma da lei qualquer atentado, por ao ou omisso, aos seus direitos fundamentais.18:14 No entanto, como no passado colonial anteriormente descrito, apesar da lei, ainda hoje no Brasil, crianas e adolescentes, principalmente as negras, continuam sendo vtimas de um sistema social discriminatrio, sendo abandonados prpria sorte, negligenciados, espancados e assassinados em seus lares, nas ruas ou nos estabelecimentos em que so recolhidos, quando infratores. E at, no extremo limite da perversidade, da loucura e da ignorncia, sacrificados em rituais religiosos. Assim, muito se tem falado, sem dvida, mas pouco de efetivamente produtivo se tem feito no combate vasta gama de violncias a que esto sujeitos as crianas e os adolescentes brasileiros.

ASPECTOS DA VIOLNCIA NA ATUALIDADE


A identificao e o estudo da violncia um dos passos necessrios ao entendimento social. EnTexto Contexto Enferm, Florianpolis, 2005 Out-Dez; 14(4):608-15.

tender como se produzem, se expressam, se distribuem e se perpetuam as diversas formas de violncia, uma etapa necessria na luta para diminuir o peso desta problemtica na sociedade, especialmente na magnitude e complexidade com que a questo tem se expressado atravs dos sculos.19 Quando enfocamos a violncia que atinge as crianas e os adolescentes na atualidade, identificamos que 90% do total de vtimas so afrodescendentes (negros ou pardos). No perodo de 1998 a 2001 a principal causa de morte desta populao, foram os homicdios, seguidos por outros acidentes e em terceiro lugar os acidentes de trnsito. No segmento de outros acidentes vamos encontrar diferenas significativas, segundo a faixa etria: de 10 a 14 anos encontramos como principal causa de mortalidade os acidentes fatais com arma de fogo. Sendo que na faixa etria de 15 a 18 anos h um acrscimo alarmante de mortes por esta causa, chegando a 400 %. Estes ndices refletem a precocidade com que as crianas e jovens negros so atingidos pelas mortes violentas. O setor sade, particularmente a sade pblica, ponto de encruzilhada das conseqncias dessa precocidade, seja na assistncia e recuperao desses indivduos, seja pela elevao das taxas de mortalidade e reduo da expectativa de vida, especialmente na populao masculina, onde o peso dessas mortes bem mais elevado.19 Infelizmente, porm, no essa a nica questo crucial na sociedade brasileira, onde multiplicam mazelas de toda ordem e grandeza, historicamente explicadas, mantidas e agravadas ao longo dos sculos de injustia social a que se resume o processo scio-poltico brasileiro. a questo dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-hospital, sem-escola, sem-emprego, sem-esperana... E, dentro de cada um desses grupos especficos citados, os adolescentes e as crianas negras so um subgrupo duplamente sacrificado, pois, alm da violncia exgena que esto submetidos, sofrem tambm a violncia endgena de forma mais contundente (familiar, grupal). Em outro estudo sobre a mortalidade no Brasil, enfocando o grupo de causas externas, ou de mortes violentas encontramos uma taxa de 14,1% para o conjunto da populao negra e branca, 11,4% para a populao branca e 23,4% para a populao negra.20 O detalhamento da anlise mostra que o estudo dos principais grupos de causas por sexo/raa permite uma aproximao maior e aponta que as disparidades se potencializam quando se homem e negro. O ndice das causas externas nos bitos dos homens negros

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basicamente o dobro do ndice dos homens brancos, ou seja, 32,3% para 16,2%. Estudos sobre homicdios por armas de fogo e por objeto contundente, mensuram a participao desproporcional dos negros neste tipo de bito. Os negros correspondiam a 27,48% da populao da cidade de So Paulo em 1991, mas a 42,2% das mortes por homicdios com armas de fogo e 44,4 % dos homicdios por objeto contundente. Quando se incluem os jovens de 19 anos, o homicdio corresponde maior parte das mortes. Se o limite a idade de 18 anos, aparecem em primeiro lugar os outros acidentes (37%), seguidos bem de perto dos homicdios (36%). Esses nmeros elevados revelam a precocidade com que este grupo atingido pela morte violenta, com repercusses nos vrios setores da sociedade especialmente na famlia.20 Em Salvador, segundo os estudos,21 90% das mortes ocorridas por causas externas entre crianas e jovens so constitudos por negros e pardos. No perodo de 1998 a 2001 a principal causa de morte entre crianas e adolescentes negros foram os homicdios seguidos dos acidentes e dos acidentes de trnsito, sendo que na faixa etria de 10 a 14 anos h uma diminuio das mortes por quedas e um aumento duplicativo de acidentes fatais com armas de fogo. A distribuio das principais causas de bitos reitera que a populao negra morre, primeiramente, por causa no natural, e a populao branca, de infarto agudo do miocrdio. A mdia de idade dos bitos por sexo de 59,1anos para as mulheres e 50,4 anos para os homens, sendo a diferena de 8,7 anos. Quando estes mesmo dados so analisados por raa encontramos 56,3 anos para brancos e 45,3 anos para negros, sendo a diferena de 11 anos. Estes dados evidenciam que a violncia estrutural, vitimiza de forma diferenciada e institui vtimas preferenciais: homens negros. Portanto, o racismo deve ser entendido como um fator que determina o modo de viver , adoecer e morrer . Mas no s o homem negro que tem sua vida ceifada precocemente pela violncia. Grande tambm o impacto das mortes violentas entre crianas e jovens negros para a sociedade. Calculando os anos de vida que deixaram de ser vividos (APVP) podemos observar que h um agravo nas faixas etrias de 10 a 19 anos.21 Muito embora as leis postulem questes objetivas sobre a violncia, os limites de sua atuao parecem sempre depender de uma compreenso subjetiva dos atores sociais envolvidos com a problemtica em questo, ou seja, o que vem a ser, ou no, um ato

violento. apenas quando este extrapola os limites do aceitvel, que as dvidas acerca do seu carter violento deixam de existir. Mesmo obedecendo s classificaes convencionais, a violncia parece estar sempre relacionada aos valores culturais e sociais de uma determinada poca ou local.22

CONSIDERAES FINAIS
Quando enfocamos a populao das FEBENs, outras Instituies corretivas para menores infratores, ou mesmo instituies que albergam crianas abandonadas, encontramos em sua grande maioria crianas e adolescentes negros, em propores semelhantes s encontradas nas Rodas dos Expostos do Sculo XVIII; se analisamos os ndices de mortalidade por doenas que esto relacionadas com as pssimas condies de vida da populao, como por exemplo a desnutrio, gastroenterites, infeces respiratrias agudas, entre outras, detectamos que so as crianas negras as principais vtimas. E quando analisamos os ndices de mortalidade por homicdio, como j falamos anteriormente, tambm encontramos os adolescentes negros encabeando a lista dos mortos. Diante destas consideraes podemos afirmar que as crianas e os adolescentes negros, como no perodo colonial continuam sendo as principais vtimas da violncia social em nosso pas. Portanto, longe de ser apenas mais um problema social, dentre tantos, a violncia contra a criana e o adolescente uma questo fundamental a ser enfrentada para que se caminhe no sentido da construo de uma sociedade mais democrtica, mais justa e igualitria. Estudos que retratem e aprofundem as questes da violncia contra a populao negra devem ser efetuados, pois somente assim daremos visibilidade a uma realidade to brutal que tem permanecido quase que inalterada atravs dos sculos.

REFERNCIAS
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Violncia contra crianas e adolescentes negros...

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Texto Contexto Enferm, Florianpolis, 2005 Out-Dez; 14(4):608-15.

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