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TEATRO MEDIEVAL O Misterio de Adao e Outros

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Teatro Medieval: 4 Sketches

(Textos para sala de aula. Traduo, adaptao e notas introdutrias: Jean


Lauand)

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

O teatro e a cultura medieval


Desde que h exatos vinte anos - comecei a lecionar Histria da Educao
Medieval, para os alunos do primeiro ano da Faculdade de Educao da
Universidade de So Paulo, senti a necessidade de oferecer-lhes tradues de
textos da poca - das mais diversas reas: da filosofia e da teologia
matemtica e a retrica, passando pelo jogo de xadrez e por inscries em
relgios de sol etc.
Como no poderia deixar de ser, temos traduzido tambm diversas peas de
teatro, pois o teatro uma importante expresso da educao da poca, alm
de prestar-se a ricas atividades em nossas salas de aula.
O teatro medieval - como a literatura e outras produes artsticas da poca comporta, tipicamente, um outro objetivo: o de instruir. Indissocivel da Idade
Mdia , tambm, o elemento religioso: o teatro medieval surge - como que
naturalmente - da liturgia, principalmente da liturgia da Pscoa.
Assim, em algumas abadias beneditinas, a liturgia passa tambm a representar
episdios da vida de Cristo, sobretudo os da ressurreio (as antfonas so j
uma plataforma de lanamento para o teatro). Um texto ingls do sc. IX [1]
descreve o acompanhamento da leitura litrgica do Evangelho:
ORDO
(Durante a terceira leitura, quatro irmos mudam de veste. O primeiro, com
trajes brancos, entra com ar de quem est preocupado com uma tarefa,
penetra no sepulcro e senta-se em silncio, segurando uma palma na mo.
Depois, enquanto se recita o terceiro responsrio, entram os outros trs
irmos, revestidos com capas, trazendo nas mos turbulos com incenso e,
lentamente, como quem procura algo, dirigem-se ao sepulcro. Com esta cena,
representa-se o anjo sentado sobre o sepulcro e as mulheres que chegam com
aromas para ungir o corpo de Jesus. Mal o irmo sentado v aproximarem-se

os outros trs - com ar titubeante, de quem est procurando alguma coisa -,


comea a cantar suavemente, a meia-voz:)
- Que buscais no sepulcro, cristos?
(Ao que os trs respondem, cantando em unssono:)
- A Jesus Nazareno crucificado, habitante do Cu.
- No est aqui, ressuscitou como tinha predito! Ide e anunciai que Ele
superou a morte!
(Os trs dirigem-se ao coro, cantando:)
- Aleluia, o Senhor ressuscitou, hoje o leo forte ressuscitou, o Cristo, Filho de
Deus.
(Depois destas palavras, o irmo torna a se sentar e, como que chamando-os,
entoa a antfona:)
- Ressuscitou do sepulcro o Senhor que, por ns, esteve na Cruz. Aleluia.
(Estendem o sudrio sobre o altar. Terminada a antfona, o prior, para
expressar a alegria pelo triunfo de nosso rei, ressuscitado depois de ter
vencido a morte, incoa o Te Deum laudamus e todos os sinos tocam juntos.)
"cena" do sepulcro, vo se juntando outras representaes litrgicas de
teatro incipiente: os discpulos de Emas, cenas de Natal etc. Pouco a pouco, o
texto vai se emancipando e a literalidade da Escritura d lugar a parfrases,
comentrios lricos etc.
Um jeu medieval - O Mistrio de Ado
O Mistrio de Ado, que apresentamos a seguir, de autor annimo, um
pioneiro do sculo XII dos jeux medievais que ligam o mistrio da redeno
ao pecado original. Seus personagens, como faz notar Pauphillet [2] , so
seres humanos comuns (a pea no entra em maiores discusses sobre o
alcance metafsico da Queda): Ado , simplesmente, um servidor leal que
tem um momento de fraqueza e Eva representa a fragilidade feminina.
A pea comporta trs partes: 1) a desobedincia de Ado e Eva, 2) a morte de
Abel, e 3) um desfile de profetas anunciando a redeno de Cristo (esta parte
chegou a ns mutilada).
O Mistrio de Ado, explica Pauphillet, ao contrrio das primeiras
composies latinas - mais prximas da liturgia e representadas dentro da

igreja - era encenado sobre um tablado assentado em frente ao templo. No se


ousa representar Deus, que meramente sugerido pelo personagem da Figura
(que est na igreja e, de l, entra e sai do palco).
Apresentamos a traduo do "primeiro ato" (o episdio da ma), um
divertido documento sobre a arte e a pedagogia da poca, seu senso de humor,
suas concepes etc. Na traduo, procuramos manter as rimas e as estruturas
de rimas do original [3] e harmonizar a fidelidade ao texto original com a
devida adaptao: de tal modo que o leitor moderno tenha acesso tambm ao
esprito que informa essas produes, escritas h quase mil anos...
Neste sentido, um referencial importante que nos guiou foi a possibilidade de
ver estas peas encenadas pelos alunos do curso de Histria da Educao
Medieval da FEUSP. Assim, a fidelidade ao esprito da real encenao levounos ao atrevimento de no abandonar, na traduo, a forma original de versos
e rimas.
Videtur 22

http://www.hottopos.com/

IJI Univ. do Porto - 2003

O MISTRIO DE ADO
Pea de teatro de autor Annimo do sculo XII
(Traduo: Jean Lauand)
ORDO: O Paraso deve estar um pouco elevado no palco, rodeado de
cortinas e telas de seda, de modo que os personagens fiquem visveis apenas
dos ombros para cima. No Paraso deve haver flores perfumadas, folhagens e
diversas rvores carregadas de frutas, com aspecto de lugar muito agradvel.
O Salvador (a Figura) deve entrar vestido com capa dalmtica e diante dele
situem-se Ado e Eva. Ado usa uma tnica vermelha; Eva, vestes femininas
brancas e um manto de seda branco. Os dois postados diante da Figura, mas
Ado mais perto. Ado est com um rosto sereno e Eva com um ar um pouco
mais humilde. O Ado deve saber bem o momento de suas falas para no ser
nem muito rpido nem muito lento. E no s ele, mas todos os personagens
devem ser instrudos para falar adequadamente; para fazer os gestos
apropriados fala; para no acrescentar nem suprimir sequer uma slaba do
texto e proferi-lo na ordem prevista. Sempre que algum mencione o Paraso
deve dirigir a ele o olhar e apont-lo com o dedo. Comea a leitura: "In
principio creavit Deus caelum et terram, et fecit in ea hominem, ad imaginem
et similitudinem suam" [4] . Terminada a leitura, o Coro canta: "Formavit

igitur Dominus hominem de limo terrae, et inspiravit in faciem eius


spiraculum vitae, et factus est homo in animam viventem" [5] . Aps o canto:
A FIGURA (DEUS)
Ado!
ADO
Senhor!
A FIGURA
Do barro da terra, eu te formei.
ADO
Senhor, eu bem sei...
A FIGURA
E te formei minha semelhana,
minha imagem te fiz de terra,
No deves jamais mover-me guerra.
ADO
Por certo no o farei,
Ao Criador obedecerei.
A FIGURA
E te dei uma boa acompanhante,
tua mulher, tua semelhante,
tua mulher, Eva chamada,
Que te ama e por ti amada.
Um ao outro deveis fidelidade
E ambos fiis minha vontade.

No te estranha, de ti nascida,
De tua costela foi ela formada,
Nada de fora de ti utilizei.
Foi de teu corpo que Eu a plasmei,
Tu, governa-a por meio da razo
E no haja entre vs dissenso,
Mas grande amor e um s sentimento:
Esta que a lei do casamento.
A FIGURA (dirige-se a Eva:)
E tu, Eva, grava em teu corao,
O que te digo no seja em vo:
Se fizeres minha vontade,
Guardars em teu peito a bondade.
Ama e honra teu Criador
E reconhece-me como teu Senhor.
Para me servir sejam somente
Tuas foras, teu sentir, tua mente.
Que Ado seja por ti muito querido:
Tu s sua mulher; ele, teu marido.
S-lhe obediente de bom grado,
Seja ele por ti servido e amado,
Para ele seja o teu pensamento:
Esta a lei do casamento.
S para ele boa companheira

E compartilhars sua glria derradeira.


EVA
Farei, Senhor, sem poupar-me nada,
Tua vontade, tudo que te agrada.
Reconheo-te como meu Senhor
E a ele como meu igual e superior.
Serei a fiel companheira,
A amiga e boa conselheira.
A FIGURA
Obedece, Ado, e ouve-me com ateno:
A vida eterna est ao alcance de tua mo.
Eu te formei e ponho dons tua disposio:
Sade, felicidade, vida sem aflio.
No ters fome nem por sede bebers,
No ters frio nem calor sentirs,
Vivers em alegria e sempre na paz,
S em prazer e a dor no conhecers.
Tua vida ser toda de alegria,
Prazer e glria todo dia,
E que Eva oua bem o que eu te dizia:
No o entender, loucura seria.
De toda a terra sois os principais,
Sobre toda criatura imperais.
Mandareis aos peixes, aves e animais.

Guardai o bem, sede leais.


ADO
Agradeo a vossa benignidade,
Que me formou e me fez tal bondade:
Ter o bem e o mal sob minha potestade.
Em te servir empenharei minha vontade.
A FIGURA
Ado!
ADO
Senhor!
A FIGURA (aponta o Paraso)
Vs este jardim?
ADO
Como se chama?
A FIGURA
Paraso.
ADO
Como belo!
A FIGURA
Eu o plantei para ter comigo
Quem o habite como meu amigo.
Tu o deves habitar e guardar...
(A Figura leva-os ao Paraso)
...Nele ides morar.

ADO
Podemos nele ficar?
A FIGURA
Para sempre e sem nada recear.
No ireis morte ou doena experimentar.
CORO
"Tulit ergo Dominus hominem, et posuit eum in paradiso voluptatis, ut
operaretur et custodiret illum" [6] .
A FIGURA
(mostrando as rvores)
Todas as frutas podes colher
(E apontando para a rvore proibida, diz:)
Menos esta, que no deves comer.
Se a comeres, irs morrer
E tua felicidade irs perder.
ADO
Por uma ma perder teu amor
E atrair para mim a dor?
Longe de mim tornar-me traidor,
Perjuro contra meu Senhor.
(A Figura volta para a igreja, enquanto Ado e Eva passeiam e divertem-se
honntement no Paraso. Enquanto isso, os demnios correm em todas as
direes na praa, por entre a platia, fazendo gestos que lhes so prprios
[7] . De vez em quando, os demnios - um de cada vez - aproximam-se do
Paraso, indicando a Eva o fruto proibido, com expresso de quem a
aconselha a comer. O diabo vem a Ado)
O DIABO

Que fazes, Ado?


ADO
Vivo aqui muito feliz.
O DIABO
Com satisfao?
ADO
tudo que eu sempre quis.
O DIABO
, mas pode melhorar...
ADO
Nem d para imaginar.
O DIABO
Claro que d...
ADO
No me interessa.
O DIABO
Por que no? Ora essa...
ADO
Eu tenho alegrias imensas.
O DIABO
Isto o que tu pensas...
ADO
Melhorar? Mas como? Quando?
O DIABO

S direi quando vieres implorando.


ADO
Podes esquecer, de nada preciso:
Tenho de tudo no Paraso.
O DIABO
Isso porque no queres o bem perscrutar.
Ei-lo a, e no o sabes gozar...
ADO
Como assim?
O DIABO
Aprende de mim.
Escuta aqui, Ado, eu vou contar
Para ti somente.
ADO
O que tens em mente?
O DIABO
Tu confias plenamente em mim?
ADO
Claro que sim.
S uma coisa no farei:
A meu Senhor, no desobedecerei.
O DIABO
Que medo... de teu Senhor!
ADO

Medo e amor.
O DIABO
Mas por que temer?
Que pode ele fazer?
ADO
Bem e mal.
O DIABO
Como mal?
No ests na glria? No s imortal?
ADO
Deus me disse que vou morrer,
Se sua ordem desobedecer.
O DIABO
Por favor, uma informao:
Qual seria esta grande... proibio?
ADO
Digo de modo claro e conciso:
De todos os frutos do Paraso
Posso provar e comer,
Menos daquele que me far morrer.
O DIABO
Mas, mostra-me qual
essa fruta to especial.
ADO (aponta o fruto proibido)

esta.
O DIABO
Que festa!
Sabes por que a proibio?
ADO
Certamente no!
O DIABO
Eu te direi a razo:
Aquela a fruta da sapincia
Que te dar toda a cincia.
Nenhuma outra te dar esse poder.
Insistes em no a comer?
ADO
No para mim.
O DIABO
Claro que sim.
Teu olho ser penetrante;
Tua inteligncia, rutilante.
No temers mais ao teu Deus,
Pois ters poderes iguais aos seus.
Todos os teus desejos se realizaro.
Prova desse fruto, Ado!
ADO
Eu no!

O DIABO
Toleiro!
(O diabo retira-se, junta-se a outros demnios e circula pela praa. Aps um
tempo, volta com rosto jovial e alegre para tentar Ado)
O DIABO
Como , pensou no assunto, Ado?
J chegou a uma concluso?
Vais ser para sempre o caseiro,
O tolo jardineiro?
Ou preferes glria e poder?
Ser que to difcil entender?
Preferes frutas sem sabor (aponta o Paraso)
quela que te daria o esplendor.
Segue os conselhos meus
E sers... igual a Deus!
ADO
Vai embora!
O DIABO
Como que ?
ADO
Arreda p!
Vai embora,
J, agora!
Tu s queres desgraa e dor,

Que eu me revolte contra o Senhor!


Vai embora, Sat,
Eu no comerei a ma.
(Triste e cabisbaixo, o diabo se afasta de Ado e vai at as portas do Inferno,
onde fica conversando com outros demnios e, de quando em quando, passeia
pela platia. Depois, se aproxima do Paraso do lado de Eva e dirige-se a ela
com ar jovial e lisonjeiro)
O DIABO
Eva, eis que venho tua presena, enfim.
EVA
E por que, Satans, vens a mim?
O DIABO
Procuro tua glria, teu bem.
EVA
Deus queira. Amm.
O DIABO
Desvendei, eu tenho muito siso,
Todas as leis do Paraso.
E algumas te quero revelar.
EVA
Com prazer vou te escutar.
O DIABO
Ouvir-me-s?
EVA
Sou toda ouvidos

E de nada duvido.
O DIABO
E guardars o segredo?
EVA
Claro, no tenhas medo.
O DIABO
Contigo posso falar com segurana,
Pois tenho em ti total confiana.
EVA
E fazes bem em confiar,
Pois no te irei defraudar.
O DIABO
Contigo, sim, eu conto,
No com Ado, que um tonto.
EVA
, ele meio duro:
Tem convico.
O DIABO
Mas, pode deixar,
Ele vai se abrandar.
EVA
Ele muito nobre, eu acho.
O DIABO
Nobre? Ele servil, um capacho!

E j que o bem para si ele no quer


Podia, ao menos, pensar em sua mulher.
Tu, que s to meiga e gentil,
Mais terna que as rosas de abril,
Como a aurora radiosa,
Como s bela e formosa!
O Criador errou e fez mal
Ao constituir este casal:
Tu, terna, e ele intransigente.
Tu, porm, s mais inteligente,
Decidida, corajosa e discreta...
Alis, posso contar uma coisa secreta?
EVA
Ningum vai ficar sabendo no.
O DIABO
Nem mesmo Ado!
EVA
Podes ficar sossegado.
O DIABO
Ento, chega aqui a meu lado.
Podemos falar porque Ado, l,
Certamente no escutar.
EVA
Fala, fala sem medo,

Pois ficar tudo em segredo.


O DIABO
Vs fostes vilmente enganados,
Ao serdes aqui colocados.
Fruto por Deus autorizado
No vale um tosto furado.
Mas a fruta proibida,
Aquela d virtude e vida,
Glria, poder vital:
O saber do bem e do mal.
EVA
E seu sabor aprazvel?
O DIABO
Simplesmente incrvel!
E teu belo corpo, tua bela figura,
Bem merece essa ventura.
Basta tom-lo agora
E sers dos mundos, a senhora:
As alturas e a profundeza,
Tudo sob tua grandeza.
EVA
Ele tem todo esse poder?
O DIABO
Podes olhar e ver.

(Eva contempla com interesse o fruto proibido e, depois de examin-lo bem,


diz:)
EVA
S contempl-lo j me faz bem.
O DIABO
O que ser, ento, se o comeres, hein?
EVA
No sei, no sei...
O DIABO
Pois eu te direi:
Come-o tu antes e Ado depois,
Coroados pelo Cu, sereis os dois.
Nada ser como antes,
Ao Criador sereis semelhantes,
Basta este fruto tomar
E teu corao se ir transformar.
Iguais a Deus sereis, certamente,
Tal como ele : onipotente.
Que esperas? Vai em frente!
EVA
No sei. Que hesitao!
O DIABO
Vamos! No creias em Ado!
EVA

, acho que o devo comer.


O DIABO
E quando vai ser?
EVA
preciso esperar
Que Ado v repousar.
O DIABO
Come-o logo, sem tardana
Esperar tolice de criana
(O diabo se afasta e vai para o Inferno. Ado aproxima-se de Eva, desgostoso
por t-la visto falar com o Diabo)
ADO
Do que falaste, mulher, dir-me-s,
Na conversa com o maldito Satans?
EVA
Ele falava de nossa glria.
ADO
Aquele traidor, no caia nessa histria!
EVA
Como ests to certo?
ADO
Conheo-o de perto.
EVA
Mas pode bem ser, Ado,

Que tu mudes de opinio.


ADO
Isto, impossvel ,
Pois conheo sua m-f.
Ele quis trair a seu Senhor
E ser ele o dominador.
Eu bem sei, ele o inimigo,
No permitas que fale contigo!
(Um artefato imitando serpente sobe pelo tronco da rvore do fruto proibido.
Eva aproxima-se da serpente e encosta o ouvido para receber seus conselhos.
Depois apanha o fruto e o oferece a Ado, que no o aceita).
EVA
Come, Ado, no vs nos deixar
Sem este bem conhecer e provar.
ADO
Ser que um bem?
Que sabor tem?
EVA
Sem o morder,
Nunca vais saber...
ADO
Estou em dvida, se sim ou no...
EVA
Hesitar no prprio de um varo.
ADO

, acho que devo provar...


EVA
E assim poders separar
O bem do mal, mas primeiramente
Deixa que eu o experimente.
(Eva come uma parte da ma e diz a Ado:)
Meu Deus, que saboroso!
Nunca provei algo to delicioso!
Agora sou semelhante ao Senhor,
Onipotente como o Criador.
Do bem e do mal sou senhora.
Come, Ado, come sem demora.
Que gosto, que aroma!
Anda, Ado, toma, toma!
ADO
Creio em ti, tu s verdadeira,
Minha semelhante, minha companheira.
(Ado come parte da ma. Mal a morde, reconhece seu pecado e se abaixa
de modo a no ser visto pelo pblico. Troca as vestes de festa por andrajos
miserveis, costurados de folhas de figueira e manifestando mxima dor,
comea a lamentao.)
ADO
Ai de mim, que sou pecador,
Insurgi-me contra meu Criador.
Que triste a minha sorte,

Busquei para mim a dor e a morte,


O amargor da desventura.
Como suportar a vida, ora to dura?
Depois do mal que pratiquei,
Como a meu Criador encararei?
morte, por que no me vens aliviar?
Por que o mundo no me vem sufocar?
Eu, que a criao deixei desfigurada,
Terei no Inferno minha morada.
Se no pecado incorro,
De onde me poder vir socorro?
Quem poder ser meu amigo?
Da culpa receberei o justo castigo.
Quem ter de mim memria,
Se ofendi o Rei da Glria?
Tudo que me resta dor e canseira,
Ai, a que me foi dada por companheira...
(dirigindo-se a Eva:)
Ai, Eva, mulher desvairada,
Em m hora, de mim engendrada!
Parecias to doce e to bela,
Ai, meu Deus, que maldita costela!
Haver remdio para dor to pungente,
Fora da graa do Deus onipotente?

Ai, como ouso seu nome proferir?


Eu que acabo de o trair?
Nenhuma ajuda esperar eu poderia,
No fosse pelo Filho que nascer de Maria.
(A pea continua com a expulso do Paraso, o episdio de Caim e Abel e a
procisso dos profetas que anunciam o Salvador...)

Nota Introdutria Dana da Morte

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

A vida e a morte na dana


Apresentamos agora uma amostra - simplificada e livremente traduzida [8] de A Dana da Morte, famosa composio do fim da Idade Mdia . Trata-se
de uma pea ao mesmo tempo edificante e irreverente que, de modo divertido
e irnico, convida o espectador a refletir sobre a irremedivel condio
humana: para alm das vaidades de status da vida presente, encontra-se a
terrvel realidade da morte!
Entram na dana, no as pessoas singulares enquanto tais, mas os papis
sociais, na Idade Mdia, representados pelos "estados".
No arranjamento da sociedade da poca, a estrutura eclesistica ocupa lugar
de destaque e assim se compreende que a ela pertenam uma dzia dentre os
quarenta e dois personagens que encaram a morte.
A Dana desenrola-se de acordo com o seguinte ordo: aps uma breve
exortao das quatro caveiras do coro, uma outra caveira vai introduzindo (no
original, em estrofes de oito versos) cada um dos personagens que desfilam
ante a prpria morte, cantando tambm seus oito versos (em geral, lamentando

a inconscincia que, no esplendor da vida, tinham deste fato evidente: a morte


chega!).
Para compreender melhor o esprito de nossa traduo, o leitor deve atentar
para o fato de que selecionamos apenas oito personagens e, em alguns casos,
os renomeamos, "modernizando-os". Assim, o duque corresponde ao capito;
o legado, ao poltico; o condestvel, ao "coronel"; e o astrnomo. ao cientista.
Como no poderia deixar de ser, nossa traduo est condicionada pela
melodia da cano que nos pareceu a mais apropriada como tema do dilogo
alternado entre a caveira e cada morituro: Mack the Knife [9] . Assim se
compreende que, nesses dilogos, nossos versos sejam mais breves que os do
original (procurando preservar, em cada caso, o ncleo central do discurso).

A Dana da Morte
Pea de teatro de autor Annimo do sculo XIV
(Traduo: Jean Lauand)
PRIMEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Para bem terminares a vida mortal
tu, que desejas a vida futura,
Ters aqui ensinamento sem igual.
Desperta, racional criatura.
SEGUNDA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Procura a dana macabra aprender,
Pois ela traz conhecimento pleno.
Ningum poupado morte, vais ver,
Homem ou mulher, grande ou pequeno.

TERCEIRA CAVEIRA DO
CORO (Declamado)
Neste espelho todos devem se
mirar
Aprender bem e reter na
lembrana.
Ser til o que vires, quando
chegar
A tua vez de, por fim, entrar na
dana.
QUARTA CAVEIRA DO CORO
(Declamado)
Vers que os maiorais danam
primeiro.
A ningum poupa a morte, que
sem d.
E muito piedoso e verdadeiro
Pensar que todos somos o mesmo
p.
PRIMEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Vs, que por decreto divino,
Na vida ocupais lugares diversos.
Haveis de danar, o destino,
Seja dos bons, seja dos perversos.
SEGUNDA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Corpos geis tornar-se-o inermes;
Beleza pura, hedionda podrido.

Olhai para ns, pasto de vermes,


Pois, tal como somos, todos sero.
A TERCEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Se sua presena to forte,
Dizei as razes pelas quais
No tendes lembrana da morte
E sobre ela nunca pensais.
A QUARTA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Mesmo que todo dia se apresente
De modo sbito ou esperado,
Hoje um amigo, amanh um parente
Um dia sers tu o visitado.
(A caveira, cantando a primeira estrofe da cano, vai trazendo para a dana
os personagens, que cantam a segunda estrofe)

A CAVEIRA

O PAPA

E nem o papa

Muito poder eu

Dela escapa

Tinha na terra

E o primeiro

Mas veio a morte

A danar.

Me buscar.

A CAVEIRA

O IMPERADOR

Ele foi grande

Mas no fim

Como prova

Numa cova

Sua majestade

Todo mundo

Imperial.

igual.
A CAVEIRA

O CAPITO

Com suas tropas,

Mas agora

Avanava

Chegou a hora

Arma em riste,

De minha triste

O capito.

Rendio...

A CAVEIRA

O POLTICO

Suas mentiras,

Ai, agora,

Sempre prontas,

Eu presto contas...

Mero adorno

No h suborno

Eleitoral.

Neste tribunal...
A CAVEIRA

O "CORONEL"

O "coronel",

Perdi a voz

Todo rompante,

E s ga-ga-gue-jo,

Era arrogante

Eu no consigo

Ao mandar.
A CAVEIRA

Nem falar.
O CIENTISTA

E as cincias,

A experincia

Triunfantes,

No garante,

Nesta hora

Nos noves fora,

O que diro?

A salvao...

A CAVEIRA

O PROFESSOR

Ele muito

Neste exame,

Apreciado

Serei aprovado?

Mas no tem

Aqui no h

Remunerao.

Recuperao...

A CAVEIRA

O AGIOTA

Agiota,

Fui idiota,

a hora

E pago agora,

Da tua usura

Com muito juro

A separao.

E correo.

A CAVEIRA

O MDICO

E o doutor,

Tambm eu sofro

Que estudava

Da morte o assdio

E bem sabia

E no h remdio

Outros curar...

Para me receitar...

A CAVEIRA

O CONQUISTADOR

Eis que chega,

Ai, as mulheres...

Nesta dana,

Que festana,

Das mocinhas

Quando eu tinha

O conquistador.

Ainda cor.

TODOS JUNTOS

TODOS JUNTOS

Vai terminando

Vai ensaiando

Nosso espao

Bem teus passos

Vamos agora

Pr tua hora

Acabar

De danar...

Vai terminando...

Nota Introdutria a Os Estudantes e o Campons


Jean Lauand
Os Estudantes e o Campons [10] uma pequena pea de autor annimo do
sculo XI. por vezes atribuda a um desconhecido Ugo Racellario ou a
Geoffroy de Vinsauf (sc. XII), autor de Poetria Nova. O enredo gira em torno
de uma peregrinao bufa de estudantes qual se junta um campons. O tema
do campons "simplrio", que acaba enganando os "espertalhes estudados"
- com variaes de detalhes - muito freqente na literatura medieval e ainda
hoje tema de anedotas populares. Apresentamos, a seguir, uma verso
literria - que mostra a origem rabe da anedota - de Petrus Alphonsus
(nascido em 1062): o exemplum XIX de sua Disciplina Clericalis [11] ,
"Exemplum de Duobus Burgensibus et Rustico", "Os dois homens da cidade e
o campons".
Os dois homens da cidade e o campons -

Petrus Alphonsus

Conta-se que dois homens da cidade e um campons faziam juntos a


peregrinao a Meca e tomavam as refeies em comum. Quando j estavam
prximos de Meca, comeou a faltar-lhes comida e s lhes restou um pouco
de farinha, suficiente para fazer um pequeno pedao de po. Os dois citadinos,
vendo isto, disseram entre si: "Temos pouco po e este nosso companheiro
come muito. Convm, portanto, que pensemos em um modo de nos
apropriarmos da parte dele para que o po fique s para ns". E combinaram o
seguinte: preparar o po e enquanto este cozinhava todos dormiriam e aquele
que em sonhos visse as coisas mais admirveis, comeria sozinho o po.
Propunham isto manhosamente para enganar o rstico em sua simploriedade.
Prepararam a massa, puseram-na ao fogo, deitaram-se e adormeceram. O
campons percebeu o ardil e, enquanto dormiam os companheiros, tomou o
po ainda mal cozido, comeu-o e voltou a deitar-se. Depois, um dos homens
da cidade, como que sonolento e espantado, despertou e chamou seu
companheiro. Este lhe disse:
- Que tens?
- Tive um sonho maravilhoso: parecia-me que dois anjos abriam as portas do
cu e me tomavam e levavam ante Deus.
Disse o outro citadino: - Mas que admirvel teu sonho! E eu sonhei que dois
anjos me tomavam e, fazendo uma fenda na terra, levavam-me para o
inferno.
O campons ouvia tudo isto, mas fingia estar dormindo. Ento, os homens da
cidade - que queriam enganar e foram enganados - chamaram o campons
para que acordasse. E ele discretamente, como que espantado, respondeu: Quem me chama?
- Ns, teus companheiros.
- Mas vocs j voltaram?
- Como assim: "voltaram"? Se ns no fomos a parte alguma.
- Engraado, tive a impresso que dois anjos tomaram a um de vocs, abrialhe a porta do cu e o levava ante Deus. Depois outros dois anjos tomaram o
outro e, abrindo a terra, levavam-no ao inferno. Ao ver estas coisas pensei que
nenhum dos dois jamais voltaria, levantei-me e comi o po.
E, assim, aqueles que - engenhosamente - quiseram enganar, saram
enganados. como diz o provrbio: "Quem tudo quer, tudo perde".

Os Estudantes e o Campons - Autor annimo do sculo XI


(Traduo: Jean Lauand)
ESTUDANTE I - Companheiro!
ESTUDANTE II - Que ?
ESTUDANTE I - A caminho!
ESTUDANTE II - O que voc quer fazer?
ESTUDANTE I - Uma peregrinao!
ESTUDANTE II - Quando?
ESTUDANTE I - J!
ESTUDANTE II - Aonde?
ESTUDANTE I - A um lugar perto daqui.
ESTUDANTE II - Tudo bem!
ESTUDANTE I - Preparar alforges!
ESTUDANTE II - Pronto!
ESTUDANTE I - Cruz ao ombro!
ESTUDANTE II - Pronto!
ESTUDANTE I - Basto na mo!
ESTUDANTE II - Pronto!
ESTUDANTE I - Ento, vamos. Tudo certo!
ESTUDANTE II - Tudo certo, uma ova!
ESTUDANTE I - Qual o problema?
ESTUDANTE II - Falta o dinheiro.
ESTUDANTE I - Quanto voc tem na bolsa?
ESTUDANTE II - T tudo aqui, ?

ESTUDANTE I - Mas, no h nada!


(Os estudantes se pem a caminho e um campons se junta peregrinao)
ESTUDANTE I - inadmissvel! Estamos indo com muita morosidade. J o
crepsculo se prefigura e precisamos apropinquar-nos da cidade. Vamos! Mais
depressa!
ESTUDANTE II - Mas, quem adiantar-se- para inquirir de alojamento? Urge
que algum de ns... (olha para o campons) ...se disponha a ir na frente.
O CAMPONS - Se oceis quis, eu posso i.
ESTUDANTE I - Assentimos! Sim, precede-nos, vai na frente voc, que
caminha mais rpido.
O CAMPONS - T bo...
(O campons vai um pouco frente)
ESTUDANTE I - Ele vai l adiante e estamos aqui s ns. Vamos garantir a
nossa! Tudo o que temos em comum uma torta [12] : d para dois, mas no
para trs. Esse caipira comilo vai acabar comendo-a de um s bocado e no
sobrar nada para ns. Mas ele tolo e simplrio, podemos engan-lo
facilmente. Ele pode ser bom de apetite para comer, mas, na esperteza, os
bons somos ns.
ESTUDANTE II - Boa idia! Vamos aproximar-nos dele e engan-lo.
ESTUDANTE I - Campons! , campons!
O CAMPONS - O sior cham?
ESTUDANTE I - para saber se est tudo bem.
O CAMPONS - T tudo bo...
ESTUDANTE I - Avaliemos nossas provises, o que temos para comer?
ESTUDANTE II - S essa torta aqui.
ESTUDANTE I - Mas ela no grande. No bastar para ns trs.
ESTUDANTE II - deveras insuficiente.
ESTUDANTE I - Proponho que faamos um trato entre ns.

O CAMPONS - Quar?
ESTUDANTE I - O trato o seguinte: quem tiver o sonho mais bonito, fica
com a torta. Vocs concordam?
ESTUDANTE II - Sim!
CAMPONS - Sim...
ESTUDANTE I - Bom, ento vamos dormir.
(Os estudantes adiantam-se um pouco e se pem a dormir)
O CAMPONS (pensando em voz alta) - Sei no, esses estudante da cidade
vive aprontando. Acho que eles to querendo me ingan. Primero pr'eu i na
frente, depois eles que passa na frente e, agora, vem com essa histria de
trato. Acho que eles to quereno me ingan. Mais mi eu cum iscundido a
torta, porque eu acho que eles to querendo me ingan...
[O campons
come a torta]
ESTUDANTE I (acordando) - Ah!, quem me despertou, subtraindo-me a
vises ednicas. Perambulava eu por epiciclos e excntricos, zodacos e
constelaes, asterides e potestades, pela pulcritude dos cus empreos e
sidreos. Que beleza insupervel: nada mais magnfico! Quem poderia
descrever tais maravilhas? Para encurtar a histria: eu nem queria mais voltar
para a Terra!
ESTUDANTE II - Tambm a mim usurparam-me onrico espetculo. Nos
braos de Morfeu, percorria mseas mitolgicas. Contemplava eu as quatro
frias: Alecto, Megera, Tisfone e... - como que o nome da outra? - Ah!,
claro, a quarta era Ernia. E vi Prometeu, torturado pelo abutre; Tntalo no
Estige; xion, pela roda arrastado; Ssifo e sua pedra. Desfilavam ante mim
todas as verses e inverses da Hlade... Ah! Mas por que tentar narrar o
inefvel? Basta dizer que eu nem queria mais voltar para a Terra!
O CAMPONS - Uai! Eu tambm vi toda essas coisa a qui ceis to falano e,
como oceis num queria vort, eu peguei a torta e apropriei pra substncia de
natureza individuar aqui o gnero universar [13] : comi tudinho!

Nota Introdutria a O Prego das Ervas - um camel do sculo XIII

Jean Lauand
A Idade Mdia o mbito do popular. Onde quer que haja manifestaes
culturais espontneas do povo, a teremos uma aproximao da cultura
medieval. Diversos aspectos, por exemplo, da cultura popular do Brasil [14]
de hoje assemelham-se da Idade Mdia. bem o caso do texto do sculo
XIII cuja traduo da Parte I apresentamos a seguir: O Prego das Ervas, Le
Dit de l'Herberie [15] , de autoria de Rutebeuf (+ ca. 1285). Trata-se de uma
composio para-teatral do gnero mime - um tipo de monlogo muito
apreciado na Idade Mdia. O Prego ridiculariza o charlato que atribui s
suas ervas poderes milagrosos. Rutebeuf tem tal agudeza de observao que
Chevallier [16] chega a afirmar que Le Dit de l'Herberie como uma fita
gravada ao vivo no sculo XIII. No Prego, o camel narra suas fantsticas
viagens, enumera as doenas que suas plantas curam e - tal como seus colegas
hodiernos - promete prodgios sexuais [17] . Ao final, a mercadoria
oferecida por um preo extremamente barato. Teatro popular, teatro interativo:
o pblico participa respondendo s interpelaes do "vendedor". O leitor
atento observar as mil potencialidades que o ator pode explorar nessa
composio satrica, sem mtrica, quase um rap avant la lettre. Na traduo
(um tanto resumida), procuramos conjugar a fidelidade literal fluncia do
discurso popular do bufo...

O PREGO DAS ERVAS


Pea de teatro de Rutebeuf (sculo XIII)
(Traduo: Jean Lauand)
Parte I (em verso)
Respeitveis senhores, que me dais ouvidos
Grandes e pequenos, jovens ou vividos
Vs fostes pela sorte favorecidos
Pois ireis, agora, a verdade encontrar
Sabendo que este mdico no vos pode enganar
Uma vez que por vs mesmos podeis comprovar

O poder destas ervas antes do fim


Vamos fazendo a roda em torno de mim
Sem rudo, em silncio, bem assim...
Eu, aqui, sou pesquisador
E tenho servido a muito imperador
At mesmo l do Cairo, o senhor
Muito poderoso, ele faz questo
de me contratar todo vero
Pagando para mim um salariozo
Muitos mares em viagens eu j cruzei
E foi pela Moria [18] que eu voltei
Foi l que medicina eu estudei
E passei por Salerno [19]
Buriana e Biterno [20]
Puglia, na Calbria, e at Palermo [21]
Coletando estas plantas prodigiosas
Que curam as doenas mais dolorosas
Doenas passageiras ou teimosas
Fui consegui-las nas mais estranhas terras
Em vales perdidos, em speras serras
Onde o Preste Joo [22] faz suas guerras
Estas preciosas pedras, por caminhos tortos
Vieram at vs de longnquos portos
E tm virtude at de levantar os mortos

Vede aqui estas ferritas


Diamantes, crispiritas
Grenzios, jagncios e burlamitas [23]
Protegem contra cobra e cachorro louco
Coice de burro e, se acha pouco
A morte espantam, baratinho e ainda tem troco
E, dos quatro cantos do mundo, tem mais ainda
Ervas trazidas dos desertos da ndia
Da Riviera e da Lincorndia
Esta a mais rica e poderosa ervaria
Eu vo-lo garanto, por Santa Maria
Podeis confiar, eu vos enganaria?
Ervas que podem qualquer doena curar
Fazem o rgo do homem levantar
Enquanto o da mulher, fazem estreitar
Para quem quer ter uma vida s
Toma hoje, cura amanh
Qualquer mazela, febre ter
Este ungento milagroso, de repente
Elimina a dor, mesmo dor de dente
Voc aplica e logo alvio sente
E a receita eu no vou ocultar
Merda de marmota voc vai misturar
Com folhas de sicmoro e ajuntar

Na medida certa, seno diarria


Raiz de salgueiro com gordura de lampria
E um pouco de excremento de puta via [24]
Basta um emplastro na bochecha aplicar
E os dentes com o suco voc vai lavar
Durma um bocadinho e curado vai ficar
Sara o fgado, leso, machucadura
Conserta osso, torcicolo e fratura
Pedra no rim, surdez... tudo cura
(O camel, a partir de agora em prosa, prossegue gabando suas ervas e
explica que no entrou no ramo por amor ao lucro, mas por sentimento
humanitrio e por ordem de sua dama etc.)

[1] . Cit. por GUGLIELMI, Nilda El teatro medieval, Edit. Universitaria de


Buenos Aires, 1980, pp. 12-13.
[2] . Jeux et Sapience du Moyen ge - texte tabli et annot par Albert
Pauphillet, Paris, Gallimard, 1951, p.5. Para a traduo, valemo-nos do
original apresentado nesta edio.
[3] . Em muitos casos, o francs medieval permite a permanncia direta da
rima em portugus: " minha imagem te fiz de terra (terre) / No deves
jamais mover-me guerra (guerre)". Ou: vontade (volent) / bondade (bont);
Criador (Creator) / Senhor (seignor) etc. Em outros, traduzimos, criando nova
rima: "Nada de fora de ti utilizei (non pas de fors) / Foi de teu corpo que Eu a
plasmei (de ton cors)". Tenha-se em conta que, sendo todo o texto rimado,
mesmo no original as rimas so, por vezes, pobres ou foradas...
[4] . Misto de Gn 1,1 e 1, 26-27: "No princpio Deus criou o Cu e a terra e
fez o homem, sua imagem e semelhana".

[5] . O canto tomado de Gn 2,7: "Ento Deus formou o homem com o barro
da terra e insuflou alento de vida em seu rosto e o homem se tornou um ser
vivente".
[6] . O canto tomado de Gn 2,15: "Ento Deus introduziu o homem no
Paraso para que trabalhasse e o guardasse".
[7] . O ordo no indica que gestos so esses.
[8] . A partir do original La Grande Danse Macabre in GILLET, Louis La
Cathdrale Vivante, Paris, Flammarion, 1964.
[9] . Da pera dos Trs Vintns de Brecht e gravada, entre tantos outros, por
Louis Armstrong e Ella Fitzgerald e reutilizada por Chico Buarque em sua
pera do Malandro.
[10] . Traduzimos, livremente, a partir da verso de Guglielmi, op. cit., pp. 51
e ss.
[11] . Apresentado por Angel Gonzlez Palencia, Madrid-Granada, CSIC,
1948.
[12] . No fica claro no texto a quem pertence a torta. Porm, numa
peregrinao, usual que - independente de quem trouxe o qu - os
mantimentos sejam fraternalmente tomados em comum pelos romeiros.
Evidentemente, o efeito teatral se intensifica se a torta tiver sido trazida pelos
estudantes.
[13] . Feci individuum quod fuit ante genus. Ironiza as abstratas discusses
acadmicas sobre a "questo dos universais".
[14] . Popular ou, por vezes, popularesco... Note-se que no caso em questo, o
do vendedor de ervas, ainda hoje (por exemplo, em So Paulo, na Praa da S
e em diversos outros pontos da cidade) podem ser vistos ambulantes vendendo
ervas "medicinais" - camels muito semelhantes aos do sc. XIII que tambm
exploram a crendice popular.
[15] . O texto original, em francs medieval, encontra-se na coletnea de
Albert Pauphilet: Jeux et Sapience du Moyen ge, Paris, Gallimard, 1987.
[16] . CHEVALLIER, Claude-Alain Thatre Comique du Moyen-ge, Paris,
Union Gnrale d'ditions, 1973, p. 191.
[17] . Se bem que sua linguagem mais crua do que as "sutis" indiretas dos
ambulantes de nossos dias.

[18] . Nome que se dava na Idade Mdia ao Peloponeso.


[19] . Salerno era clebre por sua escola de Medicina.
[20] . Cidades lendrias.
[21] . Em Rutebeuf, Palerne, que rima com Byterne e Salerne.
[22] . Famoso personagem lendrio da frica ou da sia que teria um enclave
cristo em meio de reinos pagos ou infiis.
[23] . O camel joga com nomes imaginrios e exticos.
[24] . Naturalmente, o original escolhe nomes de plantas e animais que rimem.
No caso, a folha do plantain, tanchagem, rima com l'estront de la putain (bien
ville).

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