TEATRO MEDIEVAL O Misterio de Adao e Outros
TEATRO MEDIEVAL O Misterio de Adao e Outros
TEATRO MEDIEVAL O Misterio de Adao e Outros
Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br
http://www.hottopos.com/
O MISTRIO DE ADO
Pea de teatro de autor Annimo do sculo XII
(Traduo: Jean Lauand)
ORDO: O Paraso deve estar um pouco elevado no palco, rodeado de
cortinas e telas de seda, de modo que os personagens fiquem visveis apenas
dos ombros para cima. No Paraso deve haver flores perfumadas, folhagens e
diversas rvores carregadas de frutas, com aspecto de lugar muito agradvel.
O Salvador (a Figura) deve entrar vestido com capa dalmtica e diante dele
situem-se Ado e Eva. Ado usa uma tnica vermelha; Eva, vestes femininas
brancas e um manto de seda branco. Os dois postados diante da Figura, mas
Ado mais perto. Ado est com um rosto sereno e Eva com um ar um pouco
mais humilde. O Ado deve saber bem o momento de suas falas para no ser
nem muito rpido nem muito lento. E no s ele, mas todos os personagens
devem ser instrudos para falar adequadamente; para fazer os gestos
apropriados fala; para no acrescentar nem suprimir sequer uma slaba do
texto e proferi-lo na ordem prevista. Sempre que algum mencione o Paraso
deve dirigir a ele o olhar e apont-lo com o dedo. Comea a leitura: "In
principio creavit Deus caelum et terram, et fecit in ea hominem, ad imaginem
et similitudinem suam" [4] . Terminada a leitura, o Coro canta: "Formavit
No te estranha, de ti nascida,
De tua costela foi ela formada,
Nada de fora de ti utilizei.
Foi de teu corpo que Eu a plasmei,
Tu, governa-a por meio da razo
E no haja entre vs dissenso,
Mas grande amor e um s sentimento:
Esta que a lei do casamento.
A FIGURA (dirige-se a Eva:)
E tu, Eva, grava em teu corao,
O que te digo no seja em vo:
Se fizeres minha vontade,
Guardars em teu peito a bondade.
Ama e honra teu Criador
E reconhece-me como teu Senhor.
Para me servir sejam somente
Tuas foras, teu sentir, tua mente.
Que Ado seja por ti muito querido:
Tu s sua mulher; ele, teu marido.
S-lhe obediente de bom grado,
Seja ele por ti servido e amado,
Para ele seja o teu pensamento:
Esta a lei do casamento.
S para ele boa companheira
ADO
Podemos nele ficar?
A FIGURA
Para sempre e sem nada recear.
No ireis morte ou doena experimentar.
CORO
"Tulit ergo Dominus hominem, et posuit eum in paradiso voluptatis, ut
operaretur et custodiret illum" [6] .
A FIGURA
(mostrando as rvores)
Todas as frutas podes colher
(E apontando para a rvore proibida, diz:)
Menos esta, que no deves comer.
Se a comeres, irs morrer
E tua felicidade irs perder.
ADO
Por uma ma perder teu amor
E atrair para mim a dor?
Longe de mim tornar-me traidor,
Perjuro contra meu Senhor.
(A Figura volta para a igreja, enquanto Ado e Eva passeiam e divertem-se
honntement no Paraso. Enquanto isso, os demnios correm em todas as
direes na praa, por entre a platia, fazendo gestos que lhes so prprios
[7] . De vez em quando, os demnios - um de cada vez - aproximam-se do
Paraso, indicando a Eva o fruto proibido, com expresso de quem a
aconselha a comer. O diabo vem a Ado)
O DIABO
Medo e amor.
O DIABO
Mas por que temer?
Que pode ele fazer?
ADO
Bem e mal.
O DIABO
Como mal?
No ests na glria? No s imortal?
ADO
Deus me disse que vou morrer,
Se sua ordem desobedecer.
O DIABO
Por favor, uma informao:
Qual seria esta grande... proibio?
ADO
Digo de modo claro e conciso:
De todos os frutos do Paraso
Posso provar e comer,
Menos daquele que me far morrer.
O DIABO
Mas, mostra-me qual
essa fruta to especial.
ADO (aponta o fruto proibido)
esta.
O DIABO
Que festa!
Sabes por que a proibio?
ADO
Certamente no!
O DIABO
Eu te direi a razo:
Aquela a fruta da sapincia
Que te dar toda a cincia.
Nenhuma outra te dar esse poder.
Insistes em no a comer?
ADO
No para mim.
O DIABO
Claro que sim.
Teu olho ser penetrante;
Tua inteligncia, rutilante.
No temers mais ao teu Deus,
Pois ters poderes iguais aos seus.
Todos os teus desejos se realizaro.
Prova desse fruto, Ado!
ADO
Eu no!
O DIABO
Toleiro!
(O diabo retira-se, junta-se a outros demnios e circula pela praa. Aps um
tempo, volta com rosto jovial e alegre para tentar Ado)
O DIABO
Como , pensou no assunto, Ado?
J chegou a uma concluso?
Vais ser para sempre o caseiro,
O tolo jardineiro?
Ou preferes glria e poder?
Ser que to difcil entender?
Preferes frutas sem sabor (aponta o Paraso)
quela que te daria o esplendor.
Segue os conselhos meus
E sers... igual a Deus!
ADO
Vai embora!
O DIABO
Como que ?
ADO
Arreda p!
Vai embora,
J, agora!
Tu s queres desgraa e dor,
E de nada duvido.
O DIABO
E guardars o segredo?
EVA
Claro, no tenhas medo.
O DIABO
Contigo posso falar com segurana,
Pois tenho em ti total confiana.
EVA
E fazes bem em confiar,
Pois no te irei defraudar.
O DIABO
Contigo, sim, eu conto,
No com Ado, que um tonto.
EVA
, ele meio duro:
Tem convico.
O DIABO
Mas, pode deixar,
Ele vai se abrandar.
EVA
Ele muito nobre, eu acho.
O DIABO
Nobre? Ele servil, um capacho!
Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br
A Dana da Morte
Pea de teatro de autor Annimo do sculo XIV
(Traduo: Jean Lauand)
PRIMEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Para bem terminares a vida mortal
tu, que desejas a vida futura,
Ters aqui ensinamento sem igual.
Desperta, racional criatura.
SEGUNDA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Procura a dana macabra aprender,
Pois ela traz conhecimento pleno.
Ningum poupado morte, vais ver,
Homem ou mulher, grande ou pequeno.
TERCEIRA CAVEIRA DO
CORO (Declamado)
Neste espelho todos devem se
mirar
Aprender bem e reter na
lembrana.
Ser til o que vires, quando
chegar
A tua vez de, por fim, entrar na
dana.
QUARTA CAVEIRA DO CORO
(Declamado)
Vers que os maiorais danam
primeiro.
A ningum poupa a morte, que
sem d.
E muito piedoso e verdadeiro
Pensar que todos somos o mesmo
p.
PRIMEIRA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Vs, que por decreto divino,
Na vida ocupais lugares diversos.
Haveis de danar, o destino,
Seja dos bons, seja dos perversos.
SEGUNDA CAVEIRA DO CORO (Declamado)
Corpos geis tornar-se-o inermes;
Beleza pura, hedionda podrido.
A CAVEIRA
O PAPA
E nem o papa
Muito poder eu
Dela escapa
Tinha na terra
E o primeiro
A danar.
Me buscar.
A CAVEIRA
O IMPERADOR
Mas no fim
Como prova
Numa cova
Sua majestade
Todo mundo
Imperial.
igual.
A CAVEIRA
O CAPITO
Mas agora
Avanava
Chegou a hora
Arma em riste,
De minha triste
O capito.
Rendio...
A CAVEIRA
O POLTICO
Suas mentiras,
Ai, agora,
Sempre prontas,
Eu presto contas...
Mero adorno
No h suborno
Eleitoral.
Neste tribunal...
A CAVEIRA
O "CORONEL"
O "coronel",
Perdi a voz
Todo rompante,
E s ga-ga-gue-jo,
Era arrogante
Eu no consigo
Ao mandar.
A CAVEIRA
Nem falar.
O CIENTISTA
E as cincias,
A experincia
Triunfantes,
No garante,
Nesta hora
O que diro?
A salvao...
A CAVEIRA
O PROFESSOR
Ele muito
Neste exame,
Apreciado
Serei aprovado?
Mas no tem
Aqui no h
Remunerao.
Recuperao...
A CAVEIRA
O AGIOTA
Agiota,
Fui idiota,
a hora
E pago agora,
Da tua usura
A separao.
E correo.
A CAVEIRA
O MDICO
E o doutor,
Tambm eu sofro
Que estudava
Da morte o assdio
E bem sabia
E no h remdio
Outros curar...
Para me receitar...
A CAVEIRA
O CONQUISTADOR
Ai, as mulheres...
Nesta dana,
Que festana,
Das mocinhas
Quando eu tinha
O conquistador.
Ainda cor.
TODOS JUNTOS
TODOS JUNTOS
Vai terminando
Vai ensaiando
Nosso espao
Vamos agora
Pr tua hora
Acabar
De danar...
Vai terminando...
Petrus Alphonsus
O CAMPONS - Quar?
ESTUDANTE I - O trato o seguinte: quem tiver o sonho mais bonito, fica
com a torta. Vocs concordam?
ESTUDANTE II - Sim!
CAMPONS - Sim...
ESTUDANTE I - Bom, ento vamos dormir.
(Os estudantes adiantam-se um pouco e se pem a dormir)
O CAMPONS (pensando em voz alta) - Sei no, esses estudante da cidade
vive aprontando. Acho que eles to querendo me ingan. Primero pr'eu i na
frente, depois eles que passa na frente e, agora, vem com essa histria de
trato. Acho que eles to quereno me ingan. Mais mi eu cum iscundido a
torta, porque eu acho que eles to querendo me ingan...
[O campons
come a torta]
ESTUDANTE I (acordando) - Ah!, quem me despertou, subtraindo-me a
vises ednicas. Perambulava eu por epiciclos e excntricos, zodacos e
constelaes, asterides e potestades, pela pulcritude dos cus empreos e
sidreos. Que beleza insupervel: nada mais magnfico! Quem poderia
descrever tais maravilhas? Para encurtar a histria: eu nem queria mais voltar
para a Terra!
ESTUDANTE II - Tambm a mim usurparam-me onrico espetculo. Nos
braos de Morfeu, percorria mseas mitolgicas. Contemplava eu as quatro
frias: Alecto, Megera, Tisfone e... - como que o nome da outra? - Ah!,
claro, a quarta era Ernia. E vi Prometeu, torturado pelo abutre; Tntalo no
Estige; xion, pela roda arrastado; Ssifo e sua pedra. Desfilavam ante mim
todas as verses e inverses da Hlade... Ah! Mas por que tentar narrar o
inefvel? Basta dizer que eu nem queria mais voltar para a Terra!
O CAMPONS - Uai! Eu tambm vi toda essas coisa a qui ceis to falano e,
como oceis num queria vort, eu peguei a torta e apropriei pra substncia de
natureza individuar aqui o gnero universar [13] : comi tudinho!
Jean Lauand
A Idade Mdia o mbito do popular. Onde quer que haja manifestaes
culturais espontneas do povo, a teremos uma aproximao da cultura
medieval. Diversos aspectos, por exemplo, da cultura popular do Brasil [14]
de hoje assemelham-se da Idade Mdia. bem o caso do texto do sculo
XIII cuja traduo da Parte I apresentamos a seguir: O Prego das Ervas, Le
Dit de l'Herberie [15] , de autoria de Rutebeuf (+ ca. 1285). Trata-se de uma
composio para-teatral do gnero mime - um tipo de monlogo muito
apreciado na Idade Mdia. O Prego ridiculariza o charlato que atribui s
suas ervas poderes milagrosos. Rutebeuf tem tal agudeza de observao que
Chevallier [16] chega a afirmar que Le Dit de l'Herberie como uma fita
gravada ao vivo no sculo XIII. No Prego, o camel narra suas fantsticas
viagens, enumera as doenas que suas plantas curam e - tal como seus colegas
hodiernos - promete prodgios sexuais [17] . Ao final, a mercadoria
oferecida por um preo extremamente barato. Teatro popular, teatro interativo:
o pblico participa respondendo s interpelaes do "vendedor". O leitor
atento observar as mil potencialidades que o ator pode explorar nessa
composio satrica, sem mtrica, quase um rap avant la lettre. Na traduo
(um tanto resumida), procuramos conjugar a fidelidade literal fluncia do
discurso popular do bufo...
[5] . O canto tomado de Gn 2,7: "Ento Deus formou o homem com o barro
da terra e insuflou alento de vida em seu rosto e o homem se tornou um ser
vivente".
[6] . O canto tomado de Gn 2,15: "Ento Deus introduziu o homem no
Paraso para que trabalhasse e o guardasse".
[7] . O ordo no indica que gestos so esses.
[8] . A partir do original La Grande Danse Macabre in GILLET, Louis La
Cathdrale Vivante, Paris, Flammarion, 1964.
[9] . Da pera dos Trs Vintns de Brecht e gravada, entre tantos outros, por
Louis Armstrong e Ella Fitzgerald e reutilizada por Chico Buarque em sua
pera do Malandro.
[10] . Traduzimos, livremente, a partir da verso de Guglielmi, op. cit., pp. 51
e ss.
[11] . Apresentado por Angel Gonzlez Palencia, Madrid-Granada, CSIC,
1948.
[12] . No fica claro no texto a quem pertence a torta. Porm, numa
peregrinao, usual que - independente de quem trouxe o qu - os
mantimentos sejam fraternalmente tomados em comum pelos romeiros.
Evidentemente, o efeito teatral se intensifica se a torta tiver sido trazida pelos
estudantes.
[13] . Feci individuum quod fuit ante genus. Ironiza as abstratas discusses
acadmicas sobre a "questo dos universais".
[14] . Popular ou, por vezes, popularesco... Note-se que no caso em questo, o
do vendedor de ervas, ainda hoje (por exemplo, em So Paulo, na Praa da S
e em diversos outros pontos da cidade) podem ser vistos ambulantes vendendo
ervas "medicinais" - camels muito semelhantes aos do sc. XIII que tambm
exploram a crendice popular.
[15] . O texto original, em francs medieval, encontra-se na coletnea de
Albert Pauphilet: Jeux et Sapience du Moyen ge, Paris, Gallimard, 1987.
[16] . CHEVALLIER, Claude-Alain Thatre Comique du Moyen-ge, Paris,
Union Gnrale d'ditions, 1973, p. 191.
[17] . Se bem que sua linguagem mais crua do que as "sutis" indiretas dos
ambulantes de nossos dias.