GINZBURG, C. Sinais - Raízes de Um Paradigma Indiciário
GINZBURG, C. Sinais - Raízes de Um Paradigma Indiciário
GINZBURG, C. Sinais - Raízes de Um Paradigma Indiciário
E HISTORIA
Traducao:
FEDERICO CAROITI
201 edicao
4fJ reimpressao
~ H_~"
Copyright
editore
Titulo original:
Mitti emhlemi spie: morfotogta
s. p. a., Torino
e slana
Capa:
joao Baptista da Costa Aguiar
sobre detalhe de 0 bibliotecario;
6leo sobrc tela de Giuseppe Arcimboldo
(Copyright ~ Livrustkammaren
- Skoklosters Slott.
Acervo: Museu Hallwylska. Foto: Samuel Uhrdin)
iNDICE
lnternacicnats
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Ginzburg
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das tetras,
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2, Icilia -
Ovthzacao
3. Milologia
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-291 13
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lndk'",~ para catalogc
1 Feiucarta
: Ocultismo
Htstorta
3 Milo
Sociologia
Cultura
4, Mitologia
sistemitico
133.4
2 Italia r Cultura
945
: Cnltura
de metodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..
o alto e
: Sociologia
306.1
2011
Todos os direitos desta edicao reservados
EDITORA SCHWAII.CZ [:mA.
XVII
15
41
95
XVI
143
31)6,4
291.13
5. Sinais e stmbolos
culos
ISIN 978-8;-7164-038-2
1, Feili<,;ari;.
Prefacio
Denise Santos
207
Nota bibliograflca
219
Notas
221
SINAIS
RAtzES
DE UM PARADIGMA
INDICIARIO
flaD
teorizado
explicitamente, talvez possa ajudar a sair dos .incdmodos da contraposicao entre "racionalismo" e "irracionalisrno".
I.
1. Entre 1874 e 1876, apareceu na Zeitscbrijt lur bildende
Kunst uma serie de artigos sobre a pintura italiana. Eles vinham
assinados por urn desconhecido estudioso russo, Ivan Lermolieff,
e fora urn igualmente desconhecido Johannes Schwarze que os
143
morelliano"
os historiadores
da arte falam
Ticiano feita por Sassoferrato, Morelli identificou uma das pouquissimas obras seguramente aut6grafas de Giorgione.
Apesar desses resultados,
ticado, talvez rambem pela seguranca quase arrogante com que era
propos to. Posteriormente foi julgado mecsnico, grosseiramente positivista,
e caiu em descredito.'
144
possivel que
:e uma
escreve Wind -
"tern urn
cuidadosos registros das minticias caracterfsticas que traem a presenca de urn determinado artista, como urn criminoso
traido
pelas suas impress6es digitais .. , qualquer museu de arte estudado por Morelli adquire imediatamente 0 aspecto de um museu
criminal ... ". Essa comparacao foi brilhantemente
desenvolvida
por Castelnuovo, que aproximou 0 rnetodo lndicidrio de Morelli
ao que era atribuido, quase nos rnesrnos anos, a Sherlock Holmes
polo seu criador, Arthur Conan Doyle.' 0 conhecedor de arte
cornparavel ao detetive que descobre 0 autor do crime (do quadro) baseado em indfcios imperceptfveis para a maioria. Os exemplos da perspicacia de Holmes ao interpretar pegadas na lama,
cinzas de cigarro etc. sao, como se sabe, incontaveis. Mas, para se
con veneer da exatidio da aproximacao proposta por Castelnuovo,
veja-se urn con to como "A caixa de papelao" (1892), no qual
Sherlock Holmes literalmente "da uma de Morelli". 0 caso comeca exatamente com duas orelhas cortadas e enviadas pelo correio
a uma inocente senhorita. Eis 0 conhecedor com maos
obra:
Holmes
145
erraten).
ensaio sobre 0 Maish de Michelangelo num primeiro momenta aparecera anonimo: Freud reconheceu sua paternidade 50mente na ocasiao de inclul-lo em suas obras completas. Supos-se
e que,
146
147
inrelectual
encontrada
posteriormente,
coberta.
4. Antes de tentar enrender
leitura dos textos de Morelli, sera oportuno determinar 0 momento em que ocorreu essa leitura. 0 momenta, au melhor, as rnamentos, vista que Freud fala de dois encontros distintos: "muito
tempo antes que eu pudesse ouvir falar de psicandlise, vim a
saber que urn especialista de arte russo, Ivan Lermolieff ... ":
"Poi depois muito interessante para mim saber que sob 0 pseudo.
nimo russo escondia-se urn medico italiano de nome Morelli ...
cei a admirar"." E diffcil supor que, antes dessa data, Freud fossc
atrafdo pelos textos de urn desconhecido historiador da arte ; e
perfeitamente plauslvel, pelo contrario, que se pusesse a le-los
pouco depois da carta a noiva sobre a galeria de Dresden, visto
que os primeiros ensaios de Morelli reunidos em livro (Leipzig,
e da-
as
da psicanalise -
para
jovem
148
149
as
II.
1. Por milenios 0 homem foi cacador. Durante inumeras per.
seguicoes, de aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das
presas invisfveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas
de esterco, tufos de PelOSI plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas
infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operacdes menrais complexas com rapidez fulminante, no interior de urn denso
bosque ou numa clareira cheia de ciladas.
Geracoes e geracoes de cacadores enriqueceram e transmiriram esse patrimonio cognoscitivo. Na faIta de uma documentacar,
verbal par. se par ao lado das pinturas rupestres e dos artefatos,
podemos recorrer as narrativas de fabulas, que do saber daqueles
remotos cacadores transmitem-nos as vezes urn eco, mesmo que
tardio e deformado. Tres irmlios (narra uma tabula oriental, difundida entre os quirquizes, tartaros, hebreus, turcos ... ) 31 encontram urn homem que perdeu urn camelo - au, em outras varianres, urn cavalo. Sem hesitar, descrevem-no para ele:
branco,
cego de urn olbo, tern dois odres nas costas, urn cheio de vinho, 0
150
151
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"Decilrar" au "[er" as pistas dos animais sao metaforas. Sentimo-nos tentados a toma-les ao pe da letra, como a condensacac
verbal de urn processo hist6rico que levou, num espaco de tempo
talvez longuissimo,
invenciio da escrita. A mesma conexao
formulada, sob forma de mito etiologico, pela tradicsc chinesa que
atribula a invencao da escrita a urn alto [unclonarto, que observara
as pegadas de urn passaro imprimidas nas margens arenosas de urn
rio." Por outro lado, se se abandona 0 ambito dos mitos e hip6teses pelo cia historia documentada, fica-se impressionado
com as
inegaveis analogias entre 0 paradigma venat6rio que delineamos
e 0 paradigms irnpllcito nos textos divinat6rios mesopotamicos,
redigidos a partir do terceiro rnilenio a.C. em diante." Ambos
pressup6em 0 minucioso reconbecimento de uma realidade talvez
152
Infima, para descobrir pistas de eventos nio diretamente experimcntaveis pelo observador. De urn Iado, esterco, pegadas, pelos,
plumas; de outro, entranhas de animais, gotas de oleo na agua,
astros, movimentos involuntarios do corpo e assim por diante. E
verdade que a segunda serie,
diferenca da primeira,
praticamente ilimitada, no sentido de que tudo, ou quase tudo, podia
tornar-se objeto de adivinhacao para os adivinhos rnesopotamicos.
Mas a principal divergencia aos flOSSOS olhos e outra: 0 fato de
que a adivinha\ao se voltava para 0 futuro, e a decifracao, para 0
passado (talvez urn passado de segundos). Porem a atitude cognoscitiva era, nos dois casos, muito parecida; as operacoes intelecruais
envolvidas - analises, comparacoes, classificacoes -, Iorrnalmente identicas. E certo que apenas formalmente: 0 contexte social
era rotalmente diferente. Notou-se, em particular,"
como a inven,ao da escrita modelou profundamente a arte divinat6ria rnesopotamica, As divindades, de fato, era atribuida, entre as outras prerrogativas dos soberanos, a de se comunicar com as suditos atraves
de mensagens escritas - nos astros, nos corpos humanos, em toda
parte -, que os adivinhos tinham a tarefa de decifrar (ideia essa
destinada a desembocar na imagem multimilenar do "livro da natureza"). E a identificacao da arte divinat6ria com a decifracao
de caracteres divinos inscri tos na realidade era reforcada pelas
caracteristicas pictograficas da escrita cuneiforme:
ela tarnbem,
como a arte divinatoria, designava coisas atraves de coisas,"
Tambem urn. pegada indica urn animal que passou. Em cornparacao com a concretude da pegada, da pista materialmente enrendida, 0 pictograrna ja representa urn incalculavel passo a frente
no caminho da abstracso intelectual. Mas as capacidades abstrativas, pressupostas na introducao da escrita pictografica, sao por
Sua vez bern poucas em comparacao com as exigidas pela passagern
para a escrita fonetica. De fato, elementos pictograficos e foneticos continuaram a coexistir na escrita cuneiforme, assim como na
literatura divinatoria mesopotarnica a progressiva intensificacao
dos traces apriorisricos e generalizantes nao apagou a tendencia
fundamental de inferir as causas a partir dos efeitos." E essa atitude que explica, por urn lado, a infiltra~io na lingua da arte divi-
153
natoria mesopotsmica de termos tecnicos extraldos do lexico juridico: por outro, a presence nos tratados divinatorios de rrechos
de fisiognomonia
e semiotica medica."
154
155
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pelo fato de que as relacoes entre 0 medico e 0 paciente - caracterizadas pela impossibilidade,
par. 0 segundo, de controlar 0
saber e 0 poder detidos pelo primeiro nao mudaram muito
desde 0 tempo de Hip6crates. Mudaram, pelo contrario, durante
quase 2500 anos, os termos da polemica, a par com as profundas
rransformacoes sofridas pelas noeoes de "rigor" e "cieneia". Como
e 6bvio, a cesura decisiva nesse sentido e constituida pelo aparecimento de urn paradigma cientifico centrado na Hsica galileana
mas que se revelou mais duradouro do que ela. Ainda que a ffsica moderna nao se possa definir como "galileana" (mesmo nao
tendo renegado Galileu), 0 significado epistemol6gico (e simbolico) de Galileu para a ciencia em geral permaneceu intacto." Ora,
~
de disciplinas que chamamos de Indicidrias
(incluida a ~cina)
niio entra absolutamente
nos crltenos--de
9s:0tifjcjdade ded;;iveis do paradigma gahleano. Tr.ata~se,de fato,
~~C;jp!!!.!!lJ_eminentemente guahtatlva~. que U!ffi por obJeto
cases, ..situaWes s;:_documentos individuais, enquanto individuais, e
VJstament~.ggr
isSQ alcansam resultados que tel? .~ma margc:l
ineliminavel de casualidade: basta pensar no peso das conjeturas
'(0 . pr6~"rlc;termo e de ongern
divinat6ria) ~ na medicina ou na
filologia, alem da arte mantica. A ciencia galileana tinha uma natureza totalmente diversa, que poderia adotar 0 lema escolastico
individuum est inelfabile, do que e individual nlio se pode falar.
o emprego da rnaternatica e 0 metodo experimental, de fato, implicavam respectivamente
a quantificacao e a repetibilidade
dos
Ienomenos, enquanto a perspectiva individualizante excluia por
definic;io a segundo, e admitia a primeira apenas em funcoes auxiliares. Tudo isso explica por que a hist6ria nunea conseguiu se
tornar uma ciencia galileana. Justamente durante 0 seculo XVII)
pelo contrario, 0 enxerto dos metodos do conhecimento antiquario no tronco da historiografia trouxe indiretamente a luz as
distantes origens indiciarias desta ultima, ocultas durante seculos.
Esse ponto de partida permaneceu inalterado, niio obstante as
relacoes sernpre mais estreitas que ligam a historia
ciencias
sociais. A hist6ria se manteve como uma ciencia social sui generiJ)
irremediavelmente
ligada ao concreto. Mesmo que 0 historiador
as
156
desde
seu surgimen-
>
157
'"
~0
~':-
&
Of
..._
\ .;-;
I ,1r~'
!-
Hgu-
dife-
rentes.)
Essa nocao profundamente abstrata de texto explica por que
a critica textual, mesmo se mantendo
largamente
divinat6ria,
tinha
em si potencialidades de desenvolvimento em sentido rigorosamente cientffico que amadureceriam durante 0 seculo XIX,52 Com
uma decisao radical, ela levara em consideracao
tos reprodutiveis
(antes manualmente, depois
partir de Gutenberg) do texto. Desse modo,
como obieto os casos individuals," acabara por
apenas os elemenmecanicamente.
a
mesmo assumindo
evitar 0 principal
olhos (digo
universo) ...
aberto
diante
dos nosscs
~tem
de nomes".55
158
4. Urn desses medicos era Giulio Mancini, de Siena, medicomot de Urbano VIII. Niio parece que conhecesse Galileu pessoalmente; mas e bern provavel que as dais tenham se encontrado,
tisslrnus"." Mancini de fate redigira uma obra intitulada Algumas consideraciies rejerentes a pintura como deleite de um gentubomem nobre e como introdurao ao que se deoe dizer, que circulou
amplamente em manuscrito (a primeira impressdo integral remonta a duas decadas)." 0 livro, como mostra 0 titulo, era dirigido
nao aos pintores,
diletantes
aqueles vir-
em 19 de marco."
Antes de seguir de perto os argumentos de Mancini, destaquemos urn pressuposto comum a ele, ao "gentil-hornern nobre" a
quem se dirigiam as Consideracoes , e a nos. Urn pressuposto nao
as
diferente
estatuto
e na Iiteratura
explica por que Mancini nao podia se servir, enquanto conhecedor, dos metodos da critica textual, rnesmo estabelecendo em prindpia uma analogia entre 0 ato de pintar e 0 ato de escrever."
Mas, justamente partindo dessa analogia, recorreu em buses de
ajuda a outras disciplinas, em vias de formacao.
Va-
160
pinturas:
os volteios na escrira, que precisam daquela desenvolture e resolucao de rnestre, Isso deve-se ainda observer em alguns sopros e
golpes de luz de espacc em especo. que pelo mestre sao postos
de uma vee e com a resclucao de uma pincelada inimitdvel; assim
nas dobras dos tecidos e em sua luz, os quais dependem meis da
fantasia e resoluceo do mestre do que de verdede da coisa criada.63
5. "Caracteres".
Por volta de 1620, a pr6pria palavra
retoma, em sentido proprio au analOgico, de urn lado nos textos
do fundador da ffsica moderna e, de outre, nos iniciadores da paleografia, da grafologia e da connoisseurship, respectivamente.
certo que, entre os "caracteres" imateriais que Calileu lia com os
olhos do cerebro 73 no livro da natureza, e os que Allacci, Baldi
au Mancini decifravam materialmente em papeis e pergaminhos,
:e
162
tela. ou quadros, 0 parentesco era apenas metaf6rico. Mas a identidade dos termos ressalta ainda mais a hererogeoeidade das disciplinas que comparamos. 0 seu grau de cientificidade, na ace~io
galileana do termo, decrescia bruscamente,
medida que das
"propriedades"
universais da geometria passava-se
"propriedades comuns do seculo" das escritas e, depois, as "propriedades
proprias individuais" das pinturas - ou ate das caligrafias.
as
de vez.
6. Nesse ponto, abriam-se duas vias: ou sacrificar 0 conhecimento do elemento individual
generaliza~io (mais ou menos rigorosa, mais ou menos formuldvel em linguagem matematica}, ou
procurar elaboratt talve; As apelmdr]as urn paNtdjgma djfmnte,
fundado no conhecimento ciendico (mas de tooa uma cjeptificj~
dade por so definir) dQ individu'l1... A prime ira via foi percorrida
pelas ciencias naturais, e s6 muito tempo depois pelas cieneias
humanas. 0 motivo evidente. A zendencia a apagar os traces individuais de urn objeto
diretamente
proporcional
distancia
emocional do observador. Numa pagina do Tratado de arquitetura,
Filarete, depois de afirmar que
impossivei construir dois editicios perfeitamente idenricos - assim como, apesar das aparencias,
as "Iucas tartaras, que tern todas a mesma cars, ou as da Etiopia,
que sao todas negras, se olhares direito, veras que existem diferencas nas semelhancas" -, admitia que existem "muitos animais
que sao semelhantes uns aos outros, como as moscas, formigas,
vermes eras e muitos peixes, que daqueia esp<'cie nao se reconhece um do outre"," Aos olhos de urn arquiteto europeu, as diferen-
163
cas mesmo pequenas entre dois ediHcios (europeus) eram relevantes, as entre duas fucas tartaras Oll etlopes, negligenciaveis, e as
entre dais vermes ou duas formigas, ate inexistentes. Urn arquiteto t.rtaro, urn etlope desconbecedor
de arquitetura
ou uma
formiga teriam proposto hierarquias diferentes. 0 conhecimento
individualizante
diagnosticador e conhecedor) e 0 paradigma generalizante (0 Mancini anatomista e naturalista). A uniao, mas rambem a diferenca.
Niio obstante as aparencias, a descricao precisa da autopsia do
bezerro, redigida por Faber, e as minuciosas gravures que a acornpanhavam, representando as orgaos internos do animal," nao se
propunham captar as "propriedades
comuns" (aqui naturais, nao
historicas) da especie. Desse modo, era retomada e aperfeicoada a
tradicao naturalista que se fundava em Aristoteles, A vista, simbolizada pelo lince de olhar agudissimo que ornamentava 0 brasdo
da Academia de Federico Cesi, tornava-se 0 orgiio privilegiado das
disciplinas para as quais estava vedado 0 olho supra-sensfvel da
rnatematica."
Mas 0 conjunto das ciencias humanas permaneceu solidamente ancorado no qualitativo. Nao sem mal-estar, sobretudo no caso
da medicina. Apesar dos progressos realizados, seus metodos mos.
164
165
7. Entre essas estavam, pelo menos aparenternente, as dencias humanas (como as definirlamos hoje). A fortiori, num certo
sentido - quando menos peIo seu tenaz antropocentrismo,
expresso com tanta simplicidade na pagina j. lembrada de Filarete. No
entanto, houve tentativas de inrroduzir 0 metodo rnatematico tambern no estudo dos fares humanos." E compreensfvel que a primeira e mais bern-sucedida - ados aritmeticos politicos - tenha
adotado como seu objeto os gestos humanos mais determinados
em sentido biologico: nascimento, procriacdo e morte. Essa drastica reducao perrnitia uma pesquisa rigorosa - e, ao mesmo tempo, bastava para as finalidades cognoscitivas militares ou fiscais
dos Estados absolutist as , orientados, dada a escala das suas operaies, em sentido exc1usivamente quantitativo. Mas a indiferenea
qualitativa dos comitentes da nova ciencia - a estatistica - nio
desfez totalmente vinculo entre ela e a esfera das disciplinas que
chamamos de indiciarias, 0 calculo das probabilidades, como diz
o titulo da obra classica de Bernouilli (Ars con;ectandi), procurava dar uma formulacao matemarica rigorosa aos problemas que
haviam sido enfrentados pela arte divinatoria de maneira completamente diferenre"
XVIII,"
admitia essa falta de rigor, ainda que depois se esforcasse em reconhecer a medicina, apesar de tudo, uma cientificidade sui generis.
As raz&:s da "incerteza" da medicina pareciam set fundamentalmente duas. Em primeiro lugar, nao bastava catalogar todas as
doencas ate cornpe-las num quadro ordenado: em cada individuo,
a doenca assumia caracteristicas diferentes. Em segundo lugar, 0
conhecimento das doen~
permanecia indireto, indiciario: 0 corpo
vivo era, por defini~ao, inatingivel. Certamente podia-se seccionar
o cadaver; mas como, do cadaver, ja corrompido pelos processos
da morte, chegar as caracteristicas do individuo vivo?" Diante
dessa dupla dificuldade, era inevitivel reconhecer que a propria
eficacia dos procedimentos da medicina era indemonstravel.
Em
conclusao, a impossibilidade de a medicina alcancar 0 rigor proprio
esquematica
as linhas
do texto
impaciencia.
de Cabanis
transparecia
uma
mais ou menos
a medicina sempre se mantinha, porem, urns ciencia plenamente reconhecida do ponto de vista social. Mas nem todas as formas de
conhecimento indiciario se beneficiavam, naquela epoca, de semelhante prestigio.
de fora. A capacidade
pelos jarretes,
166
de reconhecer
pela
empobrecidas.
Basta pensar
no abismo
que separava
a rigidez
e a acuidade fisiogno
deiro enriquecimento
(mas a historia das relacoes entre medicina
culta e medicina popular ainda esta por ser escrita). Ao longo do
seculo XVIII, a situa<;iio muda. Ha urna verdadcira of ens iva cultural da burguesia, que se apropria de grande parte do saber, indio
ciario e nao-indiciario,
simultaneamente
de artesaos
intensificando
e carnponeses,
codificando
a Encyclopedie.
mas reveladores,
como a in-
reconhecivel
167
168
)'ai vu sur la sable les traces d'un animal, et j'ai juge aieement
que c'etaient celIes d'un petit chien. Des sillons legers et longs,
imprimes sur de petites eminences de sable entre les traces des
pattes, m'ont fait connaitre que c'etait une chienne dont les
mamdles etaient pendantes, et qu' ainsi elle avait fait des petits
it y a peu de [ours ... 93
Nessas linhas, e nas que seguiarn, estava 0 ernbriao do romance policiaL Nelas inspiraram-se Poe, Gaboriau, Conan Doyle
- os dais primeiros diretamente, 0 terceiro talvez indiretamente."
Os motivos do extraordindrio
destino do romance policial
sao conhecidos. Sobre alguns deles voltaremos adiante. Mas podese observar desde ja que ele se fundava num modelo cognoscitivo
ao mesmo tempo antiqiiissirno e moderno. Da sua antiguidade
simplesmente imemorial js falamos. Quante a sua modernidade,
bas tara citar a pagina em que Curvier exaltou os metodos e suceesos da nov. ciencia paleon tologica:
...
Urn sinal mais seguro, ralvez: mas tambem intirnamente semelhante. 0 nome de Zadig tornara-se tao simb6lico que Thomas
Huxley, em 1880, no ciclo de conferencias proferidas para a difusao das descobertas de Darwin, definiu como "metoda de Zadig"
o procedimento que reunia a historia, a arqueologia, a geologia, a
astronomia fisica e a paleontologia: isto e, a capacidade de fazer
profecias retrospectivas.
Disciplinas como estas, profundamente
permeadas pela diacronia, nao podiam deixar de se valtar para a
paradigma indiciario ou divinat6rio (e Huxley falava explicitamente de adivinhacao voltada para 0 passado)," descartando a
paradigm. galileano. Quando as causas nio sao reproduziveis, so
resta inferi-las a partir dos efeitos,
169
III.
1. Poderfamos comparar as fios que compoern esta pesquisa
aos fios de urn tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a comporse numa trama densa e hornogenea. A coerencia do desenho e verificavel percorrendo 0 tapete com as olhos em varias direcoes.
Verticalmente, e terernos uma sequencia do tipo Serendip-ZadigPoe-Gaboriau-Conan
Doyle. Horizontalmente,
e teremos no inicio
do seculo XVIII um Dubos que dassifica, uma ao lado da outra,
em ordem decrescente de inconfiabilidade, a rnedicina, a connoisseurship e a identificacso das escritas." Ate mesmo diagonalrnente - saltando de urn contexto hist6rico para outro -, e as costas
de monsieur Lecoq, que percorreu febrilmente urn "terrene inculto, coberto de neve", pontilhado de pistas de criminosos, comparando-o a "imensa pagina brancs onde as pessoas que procuramos deixaram escrito nao s6 seus movimentos e seus passos mas
tambem seus pensamentos secretes, as esperancas e angiistia que
as agitavam"," verernos perfilarem-se autores de tratados sobre a
fisiognomonia, adivinhos babilonicos empenhados em ler as mensagens escri tas pelos deuses nas pedras enos ceus, cacadores do
Neolltico.
rapete
0 paradigms
que chamamos a cada vez, conforme
os contextos, de venat6rio, divinatorio, indiciario ou semi6tico.
Trata-se, como e claro, de adjetivos nao-sinonimos, que no entanto rernetem a urn modelo epistemol6gico comum, articulado em
disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo emprestirno de metodos au termos-chave. Ora, entre as seculos XVIII e XIX,
com 0 aparecimento das "ciencias humanas", a constelacao das
disciplinas indiciarias modifica-se profundarnente:
aparecem novos
astros destinados a urn rapido crepusculo, como a frenologia," ou
a urn grande destine, como a paleontologia, mas sobretudo afirmase, pelo seu prestigio epistemol6gico e social, a medicina. A ela se
rcferem, explicita ou implicitamente, todas as "ciencias humanas".
Mas a que parte da medicina? Na metade do seculo XIX, vemos
desenhar-se uma alternativa: 0 modelo anatornico de urn lado, a
semi6tico de outro. A metafora da "anatomia da sociedade", usada
170
172
173
lidade.
metodo antropornetrico de Bertillon era outro, isto C, 0 de ser puramente negative. Ele permitia separar, no momenta do reconhecimento, dais indivfduos diferentes, mas njio afirrnar com seguranca que duas series identicas de dados se referissem a urn mesrno
indivlduo.'"
A irredutivel
elusividade
do individuo,
expulsa
pela porta atraves da quantificacao, voltava a entrar pela janela.
Por isso, Bertillon propos integrar 0 metodo antropometrico com
o eharnado "retrato faladc", isto e, a descricao verbal analitica
das unidades discretas (nariz, olhos, orelhas etc.), cuja soma deveria restituir a imagem do individuo - possibilitando assim 0 procedimento de identificacao. As paginas de orelhas exibidas por
Bertillon 112 relembram irresistivelmente as ilustraeoes que, nos
rnesmos anal, Morelli incluta em seus ensaios. Talvez nao se tratasse de uma influencia direta ainda que seja surpreendente
verificar que Bertillon, em sua atividade de especialista grafologico, eonsiderava indlcios reveladores de uma falsiica~ao as particularidades au "idiotismos" do original que 0 falsario nile conseguia reproduzir e, eventualmente, substituia pelas suas proprias."!
Como se ted percebido, 0 metodo de Bertillon era incrivelmente complicado. Ja nos referimos ao problema posto pelas mediacoes. 0 "retrato falado" piorava ainda mais as eoisas. Como
distinguir, no momento d. descri~iio, urn nariz giboso-arcado de
urn nariz arcado-giboso? Como classificar os matizes de urn olho
verde-azulado?
Mas desde a sua dissertacao de 1888, posteriomente corrigida e aprofundada, Galton propusera urn metodo de identificacao
muito mais simples, no que se referia tanto
coleta dos dados
como
sua classificacao.!" 0 metodo baseava-se, como se sabe,
nas impressoes digitais. Mas a proprio Galton, com muita honestidade, reconhecia ter sido precedido, teorica e praticamente, por
outros.
tern dois indivfduos com impress5es digitais identicas. As possibilidades de aplica~iio pratica da descoberra eram ignoradas, 00 con.
trario de suas irnplicacoes filos6ficas, discutidas num capitulo
intitulado "De cognitione organismi individualis in genere" .116 0
conhecimento do indivfduo, dizia Purkyne,
central na medicina
pratica, a comecar pels diagnose: em indivfduos diferentes os sintomas 'se apresentam de formas diferentes e, portanto, devem ser
curados de modos diferentes. Por isso, alguns modemos, que niio
nomeava, definiram a medicina pratica como "artem individualisandi (die Kunst des Individualisirensj'U'?
Mas os fundamentos
dessa arte se encontravam na filosofia do indivlduo. Aqui Purkyne, que quando jovern estudara filosofia em Praga, reencontrava
os temas mais profundos do pensamento de Leibniz. 0 individuo,
"ens omnimodo determinatum" [ente totalmente determinado],
possui uma singularidade verificavel ate em suss caracteristicas
irnperceptfveis, infinitesimais. Nem 0 aeaso nem os influxos externos bastam para explicd-la. E necessario supor a existencia de uma
norma ou "typus" interne, que mant6n a diversidade dos organismos denrro dos Iimites de cada especie: 0 conhecimento dessa
"norma" (afirmava profetivamente Purkyne) "descerraria 0 conhecimento oculto da natureza individual".'''
0 erro da fisiognomonia foi 0 de enfrentar a diversidade dos indivlduos a lu; de
opini6es preconcebidas e conjeturas apressadas; dessa maneira, foi
ate agora impossfve] fundar uma fisiognomonia cientifica, descritiva. Abandonando 0 estudo das linhas da mao ii "va ciencia" dos
quiromantes, Purkyne coneentrou a sua atencao num dado muito
menos aparente - e nas linhas impressas nas pontas dos dedos
encontrava a senha oculta da individualidade.
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misteriosas nos veios das pedras au da madeira, nos rastros deixados pelos passaros ou nos desenhos impressos nas costas das
tartarugas 120 certamente chegaria sem esforco a conceher como
uma escrita as linhas impressas par urn dedo sujo numa superficie
qualquer. Em 1860, sir William Herschel, administrador-chefe
do
distriro de Hooghly em Bengala, notou esse costume difundido
entre as populacoes locais, avaliou sua utilidade e pensou em
usa-lo para urn melhor funcionamento da administracao britsnica.
(Os aspectos teoricos da questao nao 0 interessavam; a disserta<;30 latina de Purkyne, que por meio seculo permaneceu como
letra morta, era-lhe totalmente desconhecida.) Na realidade, observou Galton retrospectivamente,
sentia-se uma grande necessidade
de urn instrumento de identificacao eficaz - nas colonias britanicas, e nao somente na India: as nativos cram analfabetos, litigio50S, astutos, mentirosos e, aos olhos de urn europeu, todos iguais
entre si. Em 1880, Herschel anunciou em Nature que, depois de
dezessete anos de experiencias, as impress5es digitais foram introduzidas oficialmente no distrito de Hooghly, onde ja eram usadas
havia tres anos com 6timos resultadoe.!" Os Iunciondrios imperiais tinham-se apropriado do saber indiciario dos bengaleses e
viraram-no contra eles.
Do artigo de Herschel, Galton tirou a inspiracao para repensar e aprofundar sistematicamente toda a questao. 0 que possibilitava sua pesquisa era a contluencia de tre,. elementos muito diferentes. A descoberta de urn cientista puro como Purkyne; 0 saber
concreto, ligado ii pratica cotidiana das populacoes bengalesas; a
sagacidade politica e administrativa de sir William Herschel, fiel
funcionario de Sua Majestade Britanica. Galton prestou homenagem ao primeiro e ao terceiro. Tentou, alem disso, distinguir
peculiaridades raciais nas impress5es digitais, mas sem sucesso;
de qualquer maneira, comprometeu-se a prosseguir as pesquisas
sobre algumas tribos indianas, na esperanca de nelas encontrar
caracteristicas "mais proxirnas
dos macacos" (a mote monkeylike patIn,,). J2l
Alem de dar urn. contribuicao decisiva ii analise das impress6es digitais, Galton, como se disse, vira tambem suas implicacoes
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177
as
elm contralra junto a Allacci, quase tres seculos antes. A representacao das roupas esvoacantes nos pintores florentinos do seculo
xv, as neologismos de Rabelais, a cura dos doentes de escrofula
pelos reis da Franca e da Inglaterra sao apenas alguns entre os
exemplos sobre 0 modo como, esporadicamente, alguns indicios
rninimos eram assumidos como elementos reveladores de fenomenos mais gerais: a visao de mundo de uma classe social, de urn
como ja dissemos, suas regras nao se prestam a ser formalizadas f{'" 1~:
nem ditas. Ninguem aprende a oHeio de conhecedp!
de djaG'QQs-~ t'~
ticador limitando-se a p~r em...Era1i9:~regras preexistentes Ncsse s:l
tiM de cQoherjmeglo entram em jgm ldiz-se oorwglmmte) de
menl0s jrnpood.cdxrjs biro gOIpe de vista jotuis:ao.
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a p~r~ir.d~.,
G~iley..Q]QhOlI as ciencias ~]
dile_~~: ()!:lJ~I!!lI.iLwn.eS1lltl.ltl.l.~@(~~giJ para chesar are
sultados relevantes, ou assumir urn estatut9.cientlfico forte para
ch~g~;-a--;:;~;-Ii~kYiP~~~
S6 a lingiiistica consegulu,iib (I"erom,"r~'kIo,
subtrair-se a esse dilema, por isso
pondo-se como modelo, mais ou menos atingido, tambern para
outras disciplinas.
Mas vern a diivida de que este tipo de rigor nao sO inatingivel mas tambt'm indesejavel para as formas de saber maio ligadas
a experiencia
cotidiana -
OU,
mais precisamente,
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a todas as situa-
tern entre uma mulher e outra (ou entre urn homem e outro). Mas
de Alorismos
carater insubstitulvel
t~
tanto as intuicoes
e senao
Essa "intuicdo baixa" esta arraigada nos sentidos (mesmo superando-os} - e enquanto tal niio tern nada a ver com a intuicao
supra-sensivel dos varies irracionalismos dos seculos XIX e xx. E
animais.
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especies