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Autonomia - Williams Gonçalves

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AUTONOMIA

Williams Gonalves

Introduo

Este texto tem objetivo bem limitado. Ele responde a uma provocao feita por
Ingrid Sarti, que tive a audcia de aceitar. A provocao foi apresentar ao Seminrio
Permanente reflexes sobre o conceito de autonomia na Poltica Externa Brasileira.
Em vista disso, no se deve aqui buscar um texto bem articulado e harmonioso.
No isso que o eventual leitor encontrar. Mas sim algumas ideias descosidas que,
espero, cumpram a funo de estimular uma discusso sobre o assunto.
Caso esse objetivo seja alcanado, poderei me sentir recompensado.

****************

A palavra autonomia, do ponto de vista etimolgico, originalmente francesa


autonomie. Ela tem origem grega, formada pelo adjetivo autos, que significa de si
mesmo, por si mesmo, espontaneamente, e pela palavra nomos que significa
uso, lei, conveno. Etimologicamente, portanto, autonomia significa dar-se nas
suas prprias leis e implica propriedade constitutiva da pessoa humana, na medida em
que lhe cabe escolher as suas normas e valores, fazer projetos, tomar decises e agir em
consequncia dessas escolhas1.

Texto para discusso no GP: Integrao Sul: autonomia e desenvolvimento, no dia 30 de maro de 2017.
Por favor, no cite.

Graduou-se em Histria pela Universidade Federal Fluminense-UFF (1978), tornou-se Mestre em


Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro-PUC/RJ (1984) e Doutor em Sociologia
pela Universidade de So Paulo-USP (1994). Atualmente Professor Associado da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro-UERJ, Professor do Curso de Doutorado em Relaes Internacionais da Universidad
Nacional de Rosario-UNR (Argentina), Professor Convidado do Instituto Coppead de Administrao
(MBA em Gesto Internacional) da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, e aposentado como
Professor Associado da Universidade Federal Fluminense-UFF. Tem experincia na rea de Histria, com
nfase em Histria das Relaes Internacionais, e Poltica Externa do Brasil, atuando principalmente nos
seguintes temas: Brasil, Estados Unidos, Amrica do Sul, Poltica Externa Brasileira e Relaes
Internacionais. Pesquisador-CAPES.
2

No sentido poltico, autonomia significa ter liberdade para fazer escolhas, para
tomar decises, independentemente das ideias, influncias, interesses, pareceres ou
intenes de outrem.
O conhecido e muito consultado Dicionrio de Poltica, de autoria de Norberto
Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino2, no apresenta verbete sobre
autonomia. A palavra est registrada, mas os autores remetem o leitor para o verbete
autogoverno; descentralizao e centralizao, que os mesmos esclarecem ser traduo
do ingls self-government, que, por sua vez, representava a frmula organizativa em que
se inspiravam as relaes entre o aparelho central e os poderes locais3, na Inglaterra, at
meados do sculo XIX.
Pelo que se v a palavra autonomia no tem nenhuma carga conceitual na Cincia
Poltica. E o mesmo se passa no campo dos estudos de Relaes Internacionais. O que
no deve constituir nenhuma surpresa, se considerarmos o fato de Relaes Internacionais
ser uma disciplina que se estruturou no mundo anglo-saxo. Isto porque as Relaes
Internacionais nasceram como um ramo da Cincia Poltica, reproduzindo seu mesmo
sentido prtico como tambm se apoiando nas mesmas inspiraes filosficas, o que
significa que assim como a Cincia Poltica est orientada para remover os obstculos
que comprometem a eficcia das polticas pblicas promovidas pelo Estado, as Relaes
Internacionais esto orientadas a remover os obstculos que se oferecem ao Estado nas
suas relaes com os demais Estados. Isso no deve constituir surpresa, porque tanto para
o Reino Unido como para os Estados Unidos autonomia no constitui problema prtico-
poltico. Para o mundo acadmico de ambos os pases no faz sentido empreender esforo
intelectual para refletir sobre autonomia no meio internacional.
Enfim, o que aqui queremos mostrar que pelo fato de os pases anglo-saxes,
onde o estudo sistemtico das Relaes Internacionais teve incio, no sofrerem restries
sua autonomia, essa questo no desafiou seus estudiosos. Antes pelo contrrio, em
virtude de sua condio de Estados imperialistas e colonialistas at evitaram a reflexo
sobre essa questo. Nunca houve motivo nem tampouco interesse em se pensar autonomia
nas relaes internacionais e no seu estudo sistemtico.
Boa demonstrao de que a ideia de autonomia nas relaes internacionais no faz
parte do repertrio conceitual do mundo acadmico anglo-saxo o fato de um scholar
britnico Andrew James Hurrell ter iniciado sua trajetria de brasilianista elegendo
sua pesquisa de doutoramento justamente sobre a questo da autonomia na poltica
externa brasileira The Quest for Autonomy The evolution of Brazils role in the
3

international system, 1964-19854. Hurrell buscou obter suas credenciais como


especialista em Brasil estudando uma questo tipicamente brasileira, estranha aos
doutores de Oxford.
Alis, esse ltimo pargrafo nos remete a certa importante questo, que aquela
da nomeao da realidade a ser analisada e da disciplina que analisa, ou simplesmente da
cincia e de seu objeto.
comum aos autores de manuais fazerem meno a essa questo, chamando a
ateno de seus leitores para o fato de o nome do objeto ser escrito com iniciais
minsculas e o nome da disciplina ser escrito com iniciais maisculas. Essa distino faz
parte, por assim dizer, da iniciao dos estudantes ao estudo das Relaes Internacionais.
A princpio essa uma questo menor, uma vez que no se poderia conceber que no
estgio de estudos avanados algum fosse cometer tais confuses de nomenclatura.
Porm, no bem assim. Como poderemos ver mais adiante, h contextos em que essa
diferena no se revela com nitidez. Essa confuso aumenta, sobretudo, quando a anlise
tem sentido normativo. H contextos em que os analistas tomam o discurso dos
formuladores de poltica como discurso analtico e, consequentemente, confundem o
objeto com a anlise do objeto. E o resultado disso um discurso que se apresenta como
analtico, mas que na realidade nada mais seno decalque do discurso dos formuladores.
Evidentemente que essa mistura pode ocorrer em qualquer outra Cincia Social,
contudo o fato de o objeto ter o mesmo nome da disciplina cria uma razo a mais.
Retornando questo da autonomia, recorremos ao citado Hurrell que, a nosso
ver, define com preciso o significado que autonomia tem tido para os pensadores
brasileiros. Em primeiro lugar, autonomia se distingue de soberania. Soberania tem
significado jurdico formal. Isto , soberania diz respeito capacidade de o Estado
organizar e fazer funcionar as instituies que garantem organicidade a uma determinada
sociedade. Em segundo lugar, autonomia tem significado poltico. Seu contraponto a
ideia de dependncia.
A teoria da Dependncia surge, no Brasil e na Amrica Latina, no final dos anos
1960. Ela surge como consequncia da questo do
desenvolvimento/subdesenvolvimento, teorizada pelos tcnicos da CEPAL aps a
Segunda Guerra Mundial.
Como se sabe a CEPAL foi criada em 1948 como uma das cinco comisses
regionais do Conselho Econmico e Social da ONU para explicar as razes do atraso
econmico da Amrica Latina em face das economias industrializadas e para recomendar
4

as medidas necessrias para a superao dessa desigualdade. Comandada por Ral


Prebisch5 e apresentando Celso Furtado como grande destaque, a CEPAL inaugurou nova
perspectiva terica ao, nas palavras de Celso Furtado, destruir o dogma liberal do
desenvolvimento espontneo e a mstica da estabilidade e esclarecer que o
desenvolvimento seria fruto da vontade poltica6. Essa nova perspectiva terica,
denominada Estruturalismo, que, em grande medida, dava continuidade crtica da teoria
do comrcio internacional segundo Smith, Ricardo e Stuart Mill realizada pelo romeno
Mihail Manolesco7 no fim da dcada de 1920, concebeu duas recomendaes
fundamentais para o encaminhamento do desenvolvimento industrial da Amrica Latina:
poltica de industrializao de substituio de importaes e integrao regional.
A consecuo dessas recomendaes esteve na base do crescimento econmico,
da modernizao e da irrupo do nacionalismo experimentados pelo Brasil na dcada
1955-1964. A interrupo do crescimento econmico, conjugada com o golpe militar de
1964, levou a uma profunda reflexo a respeito dos limites e das possibilidades da poltica
de industrializao de substituio de importaes. Assim, a crise do desenvolvimentismo
abriu caminho para a volta do pensamento neoclssico como orientador da poltica
econmica do Estado e para o surgimento da contestadora teoria da Dependncia.
Diferentemente do Estruturalismo, que contava com as estruturas do Estado para
promover o desenvolvimento, a teoria da Dependncia, imersa no clima internacional de
finais dos anos 1960, em que se destacava a Guerra do Vietnam, defendia a reestruturao
do Estado8. Para os novos tericos da Dependncia ficava claro que, a despeito de todo o
crescimento econmico que se havia verificado, o Brasil no lograra alcanar a
modernizao e a descolonizao. Antes pelo contrrio, se tinha havido crescimento
econmico, este havia ainda aumentado o grau de dependncia do pas para com os
centros de poder do mundo industrial capitalista.
Examinar as diferentes teorias da Dependncia vai muito alm do objetivo das
presentes notas. Elas somente foram aqui evocadas para situar terica e historicamente o
contexto em que se forma a questo da autonomia.
Poderamos mesmo dizer que a questo da autonomia nada mais seno como se
apresenta a problemtica do desenvolvimento na rea restrita da poltica externa e da
poltica internacional.
A questo da autonomia est diretamente vinculada questo do
desenvolvimento. Por isso, retornando questo inicial destas notas, autonomia no entra
no rol dos conceitos que traduzem as preocupaes dos tericos das Relaes
5

Internacionais do mundo anglo-saxo. As preocupaes desses tericos so segurana


internacional, equilbrio de poder, paz mundial, hard power/soft power, terrorismo
internacional e outros. A perspectiva da autonomia/desenvolvimento aquela dos que se
preocupam com as desigualdades sociais e com a injustia social e no com a busca da
dominao e da hegemonia. a preocupao dos que no se conformam em permanecer
na periferia do sistema internacional.
Dois estudiosos em especial se dedicaram a pensar em maior profundidade a
questo da autonomia. O primeiro foi o cientista poltico brasileiro Hlio Jaguaribe. O
segundo foi o diplomata argentino Juan Carlos Puig.
Segundo Jaguaribe:
Como modelo representacional, o modelo de autonomia latino-
americano exprime um processo de desenvolvimento caracterizado, de
um lado, pelo desenvolvimento cultural, social, econmico e poltico
dos pases latino-americanos como sociedades nacionais e, de outro,
pela integrao dessas naes sem prejuzo da sua identidade, em um
sistema coerente e coeso que multiplique a base de recursos e mercados
de pases membros e melhore a escala de produtos e produtividade,
garantindo assim uma visibilidade regional endgena.9

A definio de Jaguaribe demonstra como em seu pensamento autonomia,


desenvolvimento e integrao regional esto associados numa s questo.
Juan Carlos Puig foi diplomata e criou o Curso de Relaes Internacionais na
Universidad Nacional de Rosario. Em 1973 foi o Ministro das Relaes Exteriores do
Presidente Hctor J. Cmpora e, em 1976, em decorrncia do golpe de Estado exilou-se
na Venezuela, onde se estabeleceu como professor da Universidad Simn Bolvar de
Caracas.
Sobre Juan Puig, Emanuel Porcelli afirma:
O aparecimento do conceito de autonomia determinou, no somente a
construo de conceitos para pensar e explicar a Poltica Exterior de um
pas como a Argentina, seno que tambm construiu o campo
disciplinar da Poltica Exterior Argentina. Foi um salto qualitativo
frente a seus predecessores, a Histria Diplomtica e a Geopoltica, j
que a Poltica Exterior, graas ao conceito de autonomia esteve mais
prxima de uma reflexo terica, desde a crtica dos estudos
econmicos cepalinos e da teoria da dependncia, onde se instalaram os
pilares de uma episteme para a poltica exterior.10

Hurrell indica com preciso o momento e as circunstncias em que a questo da


autonomia surge para o Brasil:

O relacionamento com os Estados Unidos forma o inevitvel ponto de


partida para qualquer estudo sobre a evoluo da poltica externa
brasileira no perodo do ps-guerra. Em 1945 o maior constrangimento
6

externo com que se deparava a poltica externa do Brasil consistia


principalmente da proximidade geogrfica do pas aos Estados Unidos,
da massiva assimetria de poder entre os dois Estados, da determinao
de Washington de exercer ativamente sua influncia sobre a regio e da
inexistncia de relacionamentos alternativos.11

Hurrell tambm no pode deixar de observar que a partir dos anos 1960 inicia-se
um movimento poltico brasileiro no sentido de ampliar e diversificar seus
relacionamentos externos. A Poltica Externa Independente, no perodo 1960-1964, e a
poltica do Pragmatismo Responsvel, iniciada pelo Governo Geisel, foram perodos em
que os formuladores de poltica externa brasileiros procuraram romper a camisa de fora
da perspectiva ideolgica Leste-Oeste e buscaram acrescentar a perspectiva Norte-Sul,
que colocava a questo do desenvolvimento como prioridade.
importante frisar que a mais contundente manifestao de autonomia da poltica
externa brasileira data de 1968. Foi no governo militar de Costa e Silva que houve a
deciso de no assinar o Tratado de No Proliferao Nuclear TNP. E a recusa em
assinar esse documento estava fundamentada na ideia que a adeso a esse regime
internacional criaria limites insuportveis ao desenvolvimento cientfico-industrial do
Brasil. Embora o chanceler Magalhes Pinto se mantivesse convicto que o comunismo
internacional constitusse a maior ameaa segurana do pas, afirmava que ao apor sua
assinatura ao documento o Brasil decretaria sua menoridade cientfico-tecnolgica, uma
vez que o vetor nuclear apontava para inmeras possibilidades futuras.
A recusa brasileira nunca foi bem aceita pelos Estados Unidos. Apesar de o Brasil
ter sido o idealizador do Tratado do Mxico (Tlatelolco), pelo qual a Amrica Latina
devia tornar-se rea no nuclearizada, e de ter includo na Constituio de 1988 clusula
vetando a fabricao de armas nucleares (Artigo 21 (XXII - a, b, c) da Constituio da
Repblica Federativa do Brasil), a diplomacia daquele pas permaneceu exercendo forte
presso sobre os governos brasileiros. At 1998, quando o presidente Fernando Henrique
Cardoso se disps a assinar o TNP, a posio brasileira era que o Brasil j tinha dado
garantias suficientes de que no pretendia fabricar armas nucleares. De modo geral, a
ideia era preservar a soberania nacional no se submetendo s invasivas fiscalizaes da
Agncia Internacional de Energia Atmica. No entanto, a posio dos norte-americanos
era que, independentemente de qualquer argumento, mesmo o argumento constitucional,
era necessrio que o Brasil assinasse o tratado.
Antes de assinar o TNP, o governo Fernando Henrique Cardoso j havia aderido
ao Regime de Controle de Tecnologia de Msseis (MTCR, sigla em ingls) em 1995, ao
7

Grupo de Supridores Nucleares (NSG, sigla em ingls) em 1996 e ao Tratado de Proibio


Completa de Testes Nucleares (CTBC, sigla em ingls) em 1996.
Talvez incomodado pelo fato de ter sido aquele que mudou a posio brasileira
depois de 30 anos de intransigncia, ou por se orgulhar das mudanas que considerava
progressistas, o governo FHC sentiu-se no dever de se justificar. A justificativa saiu na
forma de ensaio produzido pelo diplomata Gelson Fonseca Jr. Alguns Aspectos da
Poltica Externa Contempornea -, que parte do livro intitulado A Legitimidade e Outras
Questes Internacionais Poder e tica entre as Naes, de 1998.12
Para apresentar as ideias centrais do texto de Fonseca Jr. recorrei sntese feita
por Antnio Carlos Lessa, Leandro Freitas Couto e Rogrio de Souza Farias, que se
encontra no texto intitulado Distanciamento versus Engajamento: Alguns Aportes
Conceituais para a Anlise da Insero do Multilateralismo Brasileiro (1945-1990),
publicado na revista Contexto Internacional.
Foi no texto Alguns aspectos da poltica externa brasileira
contempornea que Gelson Fonseca Jr. (1998, p. 353-374) formulou
os conceitos de autonomia pela participao e autonomia pela distncia.
O ensaio parte da premissa de que o Brasil um pas de contrastes,
indicando as diversas transformaes pelas quais o pas passou na
segunda metade do sculo XX. nesse ambiente complexo que
Fonseca Jr. aponta a necessidade de se fugir de frmulas simples, para
compreender a identidade e os objetivos internacionais do Brasil. O
trabalho busca, ento, elucidar as bases da poltica externa brasileira e
como ela capta a complexidade da sociedade brasileira e serve aos
interesses do pas. Para alcanar esse objetivo, o autor trabalha com dois
modelos de poltica externa, que teriam prevalecido, respectivamente,
na poca do bipolarismo e no perodo ps-Guerra Fria.
Na Guerra Fria, o termo autonomia pela distncia sintetizaria as
caractersticas comportamentais da diplomacia brasileira. O autor
afirma terem existido duas maneiras paradigmticas de o Brasil lidar
com o problema da disputa global por aliados entre as duas
superpotncias Estados Unidos e Unio Sovitica. A primeira era a
aceitao do alinhamento e a tentativa de extrair ganhos da condio de
alinhado essa posio teria prevalecido no final da dcada de 1940 e
em determinados episdios na dcada de 1960. A segunda era a busca
de uma distncia qualificada no debate e na negociao da insero
internacional do pas no perodo da Guerra Fria (FONSECA JR., 1998,
p. 360-361), havendo essa posio prevalecido durante a Poltica
Externa Independente, no incio da dcada de 1960, e no governo Geisel
(1974-1979).
A ao externa brasileira expressava, no perodo, a busca por
autonomia. Fonseca Jr. indica que a busca por autonomia um
objetivo para qualquer diplomacia, mas a forma pela qual essa busca
se expressa no plano estratgico e operacional qualificada pelas
caractersticas de um determinado pas e pelo momento histrico em
que se vive. Desse modo, durante a Guerra Fria, a diplomacia brasileira
teria se caracterizado, entre outras coisas, pela manuteno de uma
distncia em relao s aes do Bloco Ocidental, pela defesa de uma
8

atitude crtica em relao s superpotncias e pelo apoio s ideias de


uma nova ordem econmica internacional. Alm disso, a poltica
externa tinha razovel consenso interno, com grande abertura a novos
relacionamentos bilaterais e com grande apoio estatal na insero
internacional do pas. Sobre o relacionamento com os EUA,
conformava-se, segundo a argumentao, uma relao bilateral difcil e
tensa. J a partir da dcada de 1990, teria se constitudo um cenrio de
criao de regras e de instituies que abria uma nova brecha para a
ao dos pases em desenvolvimento, especialmente do Brasil. Seria
um ambiente de renovao de credenciais do pas, levando a uma
participao positiva no sistema internacional (FONSECA JR., 1998,
p. 361-363; p. 367-368)13

Antes de examinar um pouco mais de perto essas ideias de autonomia pela


distncia e autonomia pela participao formuladas por Fonseca Jr, faz-se necessrio
observar que elas se tornaram verdadeiro mantra em determinado segmento do mundo
acadmico das Relaes Internacionais. Pesquisadores, professores e estudantes repetem
ad nauseam essas ideias como se fossem verdades inquestionveis. Pinheiro (2204), Lima
(2003), Villa (2006) e Vigevani (2003) (2007), de acordo com os autores do texto acima
citado, escreveram livros e artigos, baseando-se nas ideias de Fonseca Jr, que exercem
grande influncia junto aos estudantes de Relaes Internacionais e Poltica Externa
Brasileira.14
No vem aqui ao caso examinar esses textos. Nossa questo discutir a ideia de
autonomia. Portanto, o que interessa o uso que Fonseca Jr. faz dessa ideia. Em relao
a isso, porm, h uma questo prvia. Como enquadrar Fonseca Jr? Como diplomata
capaz de formular poltica externa ou como acadmico estudioso das Relaes
Internacionais? Afinal, parece que Fonseca Jr tem dupla inscrio. Tanto reconhecido
como formulador como acadmico.
Nesse sentido, a primeira observao a ser feita, diria mesmo observao
indispensvel, que Fonseca Jr alcanou pleno xito com seu trabalho de formulador de
poltica externa. Seu sucesso no poderia ser mais expressivo. Afinal, conseguiu
apresentar as mudanas efetuadas na poltica externa brasileira pelo Governo FHC como
naturalmente muito positivas. No pode haver maior prmio para um formulador de
poltica externa do que ver suas ideias serem chanceladas pelo mundo acadmico da
maneira como as suas foram. Se considerarmos que o prprio do mundo acadmico a
postura crtica, a inquietao intelectual e o consequente exame exaustivo das ideias
que influenciam e condicionam outras ideias e aes sociais, polticas e econmicas,
Fonseca Jr pode ser visto como um vitorioso, pois no somente suas ideais foram
9

plenamente aceitas, como tambm se tornaram referncia obrigatria no mundo


acadmico.
A segunda observao, que dispensa tratamento de acadmico a Fonseca Jr, diz
respeito ao uso que faz da ideia de autonomia. Penso que, inteligentemente, Fonseca Jr
relativiza a ideia de autonomia, pretendo demonstrar que ela pode ser perseguida de
diferentes maneiras. O que num determinado contexto internacional considerado como
posio autnoma, pode no o ser em outro contexto. Em termos puramente abstratos
parece perfeito. Se as condies externas mudam, por que no mudar tambm a poltica
externa? Se passarmos para o plano objetivo, porm, as coisas j no parecem assim to
claras. Podemos afirmar que continuamos perseguindo a autonomia assinando todos os
tratados, principalmente o TNP, como foi feito pelo governo FHC? As razes pelas quais
o Brasil se recusou a assinar o TNP ao longo de trinta anos perderam seu sentido no novo
contexto ps-Guerra Fria? claro que sempre possvel dizer que no havia alternativa
e que o custo de manter a posio seria maior do que o custo de mudar de posio. Ou
seja, essa uma questo de natureza poltica e que, portanto, no pode ter resposta
racional definitiva.
A terceira observao a seguinte. Se politicamente o argumento de Fonseca Jr
pode convencer, a depender, evidentemente, da orientao poltico-ideolgica do leitor,
academicamente, isto , criticamente, essas ideias de autonomia pela distncia e
autonomia pela participao no podem convencer.
No podem convencer porque Fonseca Jr apresenta a evoluo da poltica externa
como a evoluo de uma linha contnua, na qual os governos vo tomando as decises
que lhes parecem as mais racionais de acordo com o que se passa num mundo exterior ao
nosso. Em conformidade com essa viso, temos uma orientao de poltica exterior que
no muda com o passar do tempo e que nada mais faz seno se adaptar a condies dadas
pelo mundo exterior, do qual no nos facultada a participao.
Segundo essa concepo, ns no teramos formulao de poltica externa,
teramos to somente uma ao meramente burocrtica conduzida por elementos capazes
de decodificar os sinais emitidos por esse mundo exterior. No teramos formulao de
poltica externa, porque formulao supe atividade poltica. Supe a existncia de
diferentes interesses divergentes que se traduzem em ideias que, combinadas, podem
produzir diferentes polticas externas. Assim, na concepo de Fonseca Jr. no existem
diferentes interesses econmicos pertinentes aos vrios setores que compem a economia,
no existem os grupos de interesse determinados a fazer valer seus restritos pontos de
10

vista, no existem as ideias dos militares a respeito da mais adequada forma de resguardar
a segurana do pas e no existem as ideias veiculadas pela mdia e formadoras da opinio
pblica. Enfim, segundo essa concepo a poltica externa se d em um plano acima da
poltica e da ideologia.

*******************
Concluso

Retornando a ideia inicial, verificamos que o efeito poltico produzido em


determinado segmento do mundo acadmico por essas ideias de autonomia pela
distncia e autonomia pela participao foi o de sepultar a questo do
desenvolvimento.
Ao deslocar a discusso a respeito da autonomia para a formalidade da distncia
e da participao, a ideia correlata de desenvolvimento perdeu o sentido. A autonomia,
assim vista, no tem fundamento econmico, social ou ideolgico.
De acordo com essa viso liberal de um mundo plano, sem degraus e sem
contradies, as escolhas no se do por interesses, mas por uma racionalidade
burocrtica dos supostos detentores do saber.

Rio de Janeiro, 24 de maro de 2017.

1
CUNHA, Antnio Geraldo da. Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro,
Lexikon Editora Digital, 2007 (3 edio). P. 84.
2
BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica.
Braslia, UNB, 1986.
3
Op. Cit. P. 81.
4
HURRELL, Andrews James. The Quest for Autonomy. The evolution of Brazils role in the
international system, 1964-1985. Braslia, FUNAG, 2013.
5
Ver: DOSMAN, Edgard J. Ral Prebisch (1901-1986). A construo da Amrica Latina e do
Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2011.
6
FURTADO, Celso. A Fantasia Desfeita. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989 (3 edio). P. 167.
7
Ver: MANOLESCIO, Mihail. Teoria do Protecionismo e da Permuta Internacional. Rio de
Janeiro, Capax Dei, 2011.
11

8
Ver: LOVE, Joseph L. A Construo do Terceiro Mundo. Teorias do subdesenvolvimento na
Romnia e no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
9
JAGUARIBE, Hlio. Dependncia e Autonomia na Amrica Latina. In: JAGUARIBE, Hlio,
FERRER, Aldo, WIONEZEK, Miguel S., SANTOS, Theotonio dos. A Dependncia Poltico-
Econmica da Amrica Latina. So Paulo: Edies Loyola, 1976. pp. 9-64. p. 51.
10
PORCELLI, Emanuel. Juan Calos Puig (1928-1989). Disponvel em: http://redesur.org/juan-
carlos-puig/
11
HURRELL, Andrew James. Op. Cit. p. 53.
12
FONSECA JR., Gelson. A Legitimidade e Outras Questes Internacionais. Poder e tica
entre as Naes. So Paulo: Paz e Terra, 1998.
13
LESSA, Antnio Carlos, COUTO, Leandro Freitas, FARIAS, Rogrio de Souza.
Distanciamento versus Engajamento: Alguns Aportes Conceituais para a Anlise da insero do
Multilateralismo Brasileiro (1945-1990). Rio de Janeiro, Contexto Internacional, vol. 32, n. 2,
julho/dezembro 2010. pp. 333-365. p. 335-336.
14
(a) LIMA, Maria Regina Soares de. Na trilha de uma poltica externa afirmativa.
Observatrio da Cidadania (Relatrio). Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 94-100, 2003; (b) PINHEIRO,
Letcia. Poltica Externa Brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 2004; (c) VILLA, Rafael. Poltica
externa brasileira: capital social e discurso democrtico na Amrica do Sul. Revista Brasileira
de Cincias Sociais. V. 21, n. 61, p. 63-89, 2006; (d) VIGEVANI, Tullo, CINTRA, Rodrigo.
Poltica externa no perodo FHC: a busca da autonomia pela integrao. Tempo Social. V. 15, n.
2, p. 31-61, 2003; (e) VIGEVANI, Tullo, OLIVEIRA, Marcelo F. de. Brazilian foreign policy in
the Cardoso era: the search for autonomy through integration. Latin American Perspectives. V.
34, n. 5, p. 58-80, 2007.

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