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Fandango Caiçara

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FANDANGO CAIÇARA:

EXPRESSÕES DE UM SISTEMA CULTURAL

Dezembro/2011

1
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL

DEPARTAMENTO DE PRATRIMÔNIO IMATERIAL

COORDENADORIA DE REGISTRO

DOSSIÊ DE REGISTRO DO FANDANGO CAIÇARA

Atividade da Contratação para a


Execução de Trabalho Técnico de
Instrução para o Registro do
Fandango Caiçara (Contrato
01/2011)

2
FICHA TÉCNICA
Presidente da República
Dilma Rousseff

Ministra da Cultura
Ana de Hollanda

Presidente do Iphan
Luiz Fernando de Almeida

Procurador Chefe
Heliomar Alencar de Oliveira

Diretora de Planejamento e Administração


Maria Emília Nascimento

Diretor de Articulação e Fomento


Estevan Pardi

Diretor de Patrimônio Material e Fiscalização


Andrey Rosenthal Sclee

Diretora de Patrimônio Imaterial


Célia Corsino

Coordenadora-Geral de Identificação e Registro


Ana Gita de Oliveira

Coordenadora de Registro– DPI/Iphan


Claudia Marina Vasques

Superintendente do Iphan no Paraná


José La Pastina Filho

Superintendente do Iphan em São Paulo


Anna Beatriz Ayroza Galvão

EQUIPE DE PESQUISA

Responsável pelo inventário


Associação Cultural Caburé

Coordenação
Patrícia Martins, Alexandre Pimentel e Joana Corrêa

Pesquisadores
Alexandre Pimentel, Joana Corrêa, Patrícia Martins, José Carlos Muniz, Fernando Oliveira e
Carlos Junior

Articulação local
Eduardo Schotten

Revisão dos materiais


Edilberto Fonseca

Consultoria musical e edição de partituras


Rogério Gulin e Oswaldo Rios

3
Fotografias
Felipe Varanda e Leco de Souza

Designer
Marcos Corrêa

Registro em vídeo
Marcelo Makiolke e Flávio Rocha

Roteiro do vídeo
Edilberto Fonseca, Edgar Fonseca e Alexandre Pimentel

Edição
Caito Mainier e Edgar Fonseca

Locução
Cleiton do Prado

Agradecimentos
Lia Marchi, Inami Custódio Pinto, Celso Luck, Edmundo Pereira, Aorélio Domingues, Daniella
Gramani, Dauro Marcos do Prado, Cléber Rocha, Ponto de Cultura Caiçaras, Coletivo Jovem
Caiçara, Associação dos Jovens da Juréia, Associação dos Fandangueiros de Guaraqueçaba,
Associação de Cultura Popular Mandicuéra, Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e
Promoarte - Programa de Apoio ao Artesanato de Tradição Cultural.

4
EM NOME DE D EUS COMEÇ O
COM DEUS QUERO CO MEÇAR
SOU MUIT O CHEGADO À DEUS
SEM ELE NÃ O POSSO F ICAR

(Ve rso s f andan go de Par anagu á/PR)

AQUI VEN HO DE TÃ O LONGE


ROMPENDO MAR ÉS E VEN TOS
SOMENTE PRA NÃ O FALT AR
NO NOSSO DIVERTIMENTO

(Verso s fan dan go d e Família Perei ra Guar aqu eçaba/PR )

5
Sumário

Apresentação - 7

O processo para o registro do fandango - 10

Capítulo 1. Caracterização histórico-cultural do fandango - 21


1.1. Representações sócio-espaciais: o território do fandango caiçara - 21

1.2. O fandango e a criação de um “ethos popular” - 25

1.3. Interpretações a cerca de um tema: o fandango na história - 32

Capítulo 2. O fandango e sua estrutura poético-coreográfica-musical - 39

2.1. As configurações do fazer fandango nas redes caiçaras - 40

2.2. O fandango e sistema sócio-cultural caiçara: temporalidades e


sociabilidades - 43

2.3. Expressões fandangueiras: sobre marcas e modas - 50

2.3.1. A viola de fandango - 51


2.3.2. A rabeca - 54
2.3.3. O adufo - 56
2.3.4. O tamanco - 57
2.3.5. A dança - 59

2.4. Sobre as artes do aprender e do fazer - 67

2.5. Variações de um mesmo tema: espacialidades fandangueiras - 73

2.5.1. O fandango no Paraná - 73


2.5.2. O fandango em São Paulo - 79

Capítulo 3. O fandango na contemporaneidade: dinâmicas e desafios da


salvaguarda - 83

3.1. Territorialidades e sociabilidades fandangueiras: sobre jovens,


mestres e a formação de grupos - 84
3.2. Os caminhos para uma salvaguarda do fandango - 91

6
APRESENTAÇÃO

Fruto de intensa interação social entre a população nativa e o

europeu que chegava a esse território, a cultura caiçara é uma expressão

híbrida usada como uma das representações da construção de uma

nacionalidade brasileira. Formada ao longo do processo de ocupação entre o

litoral norte do Paraná e sul do Rio de Janeiro, desenvolveram-se neste

espaço práticas culturais complexas que se manifestam por um modo de vida

próprio, baseado no cultivo da mandioca, na pesca, no extrativismo vegetal e

na caça. Entre as práticas culturais definidoras destas populações aponta-se

o fandango como um dos elementos centrais e aglutinador. Em um fazer

cotidiano, seja nos bailes, nas casas, quintais, ensaios de grupos, ou na

“beira da maré”, o fandango permeia e conecta diferentes comunidades

litorâneas presentes nesta região.

Entrecortando relações marcadas por uma identidade específica,

que se faz múltipla e em constante construção, o fandango com suas

afinações, acordes e timbres forma um universo musical específico

transitando pela fé, parentesco, trabalho e festa. Juntamente com esta

musicalidade própria, relaciona-se a processos de confecção artesanal de


7
instrumentos musicais, onde, através destes ofícios, materializam-se saberes

em forma de violas, rabecas, adufos e machetes. Compondo ainda o

universo em que se expressa o fandango, temos um conjunto de coreografias

desempenhada por homens e mulheres que costuram entre batidos, bailados

e passadinhos a socialidade caiçara.

As concepções de territorialidade que permeiam a população que habita

esta região são dinâmicas e flexíveis, sendo construídas ao longo de uma

trajetória específica de ocupação histórico-social, não é, portanto, apreendida

somente por delimitações administrativas. Neste espaço, de limites fluídos,

observa-se a importância do território para as práticas culturais destas

populações. Entre a lida com a roça, a pesca ou mesmo nas localidades mais

urbanizadas, diferentes apropriações deste território se efetivam, definindo

uma particular “cosmografia”, estabelecida através de usos, saberes e

memórias coletivas que atravessam o sentido puramente físico da noção de

território (LITTLE, 2001).

8
FOTO 01 (cód: 1) Amirtom e Faustino Mendonça (Vila Fátima - Superagui-Guaraqueçaba/PR) - foto: Felipe Varanda
Sempre intensa, a comunicação neste litoral, se estabelece através das

relações de parentesco, vizinhança, religiosidade e solidariedade, articulando

os diversos grupos que habitam neste espaço espalhados por diferentes

localidades. Atualmente os casamentos, as peregrinações da Bandeira do

Divino Espírito Santo, os mutirões para trabalho, por mais que sejam

diferentes daqueles realizados no tempo antigo, ainda acontecem. O

fandango, neste sentido, se insere neste contexto de fluxos e trocas, pois

através dele circulam pessoas, saberes, tocadores, dançadores, festeiros,

instrumentos, versos, além de generosidades e rivalidades, articulando a vida

social caiçara num todo sistêmico.

FOTO 02 (cód: 3) Cerco (Ilha do Cardoso - Cananéia/SP) - foto: Felipe Varanda

9
O fandango não é encontrado em uma única configuração. Por

suas complexidades estético-artísticas visualizamos este fandango caiçara

em múltiplos formatos, devido ao fato de que neste território se aglutinam


variadas “linhagens fandangueiras” com suas próprias dinâmicas e

especificidades. Atualmente esta variedade de fandangos e fandangueiros

produz um cenário rico em sonoridades, versos e expressões fandangueiras.

O processo para o registro do fandango

FOTO 03 (cód: 97) Apresentação da Família Pereira no I Encontro de Fandango (Guaraqueçaba/PR) - foto: Felipe Varanda
FOTO 04 (cód: 34) Apresentação do grupo Pés de Ouro no II Encontro de Fandango (Guaraqueçaba/PR) - foto: Leco de Souza
FOTO 05 (cód: 132) Mesa durante o II Encontro de Fandango e Cultura Caiçara (Guaraqueçaba/PR) - foto: Leco de Souza
10
FOTO 06 (cód: 132) Entrega de Dossiê prévio à representante do IPHAN durante o II Encontro de Fandango (Guaraqueçaba/PR) - foto: Leco de Souza
FOTO 07 (cód: 134) Reunião com fandangueiros para apresentar processo de registro junto ao IPHAN (Cananéia/SP) - foto: Alexandre Pimentel

11
A solicitação do registro do fandango como forma de expressão

do patrimônio imaterial brasileiro, segue um percurso marcado por amplos

debates, diálogos e muita articulação. Nestes caminhos protagonizados


pelos agentes desta prática, entre eles: tocadores, construtores de

instrumentos, batedores e dançadores de fandango, jovens e velhos, grupos

de fandango e associações, pesquisadores e gestores, em diálogo com o

Departamento de Patrimônio Imaterial/Iphan, foram definidas as linhas

gerais deste processo1.

Impulsionados por uma nova vitalidade do fandango ocorrida nas


últimas décadas, apesar de ainda dificultado pela falta de incentivos locais,

estabeleceu-se um circuito muito dinâmico, onde revela-se o movimento

próprio desta manifestação. Seja nas visitações entre sítios e bairros já

urbanizados, em apresentações de grupos de fandango, em festas

comunitárias ou grandes eventos regionais e nacionais como o carnaval, as

festas de santos ou casamentos, o fandango segue suas trilhas atuando


como ponto de contato, aproximações e encontros de pessoas e

comunidades que tecem relações a partir de historicidades próprias.

Tendo em vista esta vitalidade e a abrangência sócio-cultural do

fandango, bem como a anuência e concordância dos fandangueiros e suas

organizações representativas, em julho de 2008, por ocasião do II Encontro

1
As entidades
Mandicuéra que Associação
(PR), pleitearam odos
pedido de registro foram:
Fandangueiros Associação
de Cananéia de Associação
(SP), Cultura Popular
dos
Fandangueiros do Município de Guaraqueçaba (PR), Associação dos Jovens da Juréia. (SP),
Associação Rede Cananéia (SP), Associação Cultural Caburé (RJ), Instituto de Pesquisas
Cananéia (SP), Instituto Silo Cultural José Kleber (RJ), Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre
Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras da Universidade de São Paulo (SP).

12
de Fandango e Cultura Caiçara, realizado no município de

Guaraqueçaba/PR, foi entregue oficialmente ao Iphan o pedido de registro do

fandango como um bem cultural de natureza imaterial de acordo com o

previsto no Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000.

A declaração de anuência e interesse foi assinada por mais de 400

pessoas entre fandangueiros, pesquisadores e gestores presentes no

encontro. Além da minuta de requerimento e da declaração de interesse e

anuência, seguiu um Dossiê Preliminar composto por: justificativa do pedido;

denominação e descrição do bem proposto para registro, com indicação da

participação e/ ou atuação dos grupos sociais envolvidos de onde ocorre ou

se situa, do período e da forma em que ocorre; informações históricas

básicas sobre o bem e referências documentais e bibliográficas disponíveis.

Foram também encaminhados currículos resumidos e reunidos das entidades

parcerias e alguns materiais de referência reunidos por meio de doações de

pesquisadores e entidades durante o II Encontro.

É possível identificarmos as primeiras discussões sobre o registro

do fandango, ainda em julho de 2006, ao longo da realização do I Encontro


de Fandango e Cultura Caiçara 2. Estes encontros foram momentos

singulares por reunir em um mesmo local diferentes sujeitos envolvidos com

o fandango, além de grande parte de fandangueiros presentes entre o litoral

2
Os Encontros de Fandango e Cultura Caiçara foram realizados nos anos de 2006 e 2008 na
cidade de Guaraqueçaba/PR. A primeira edição contou com financiamento do Programa
Petrobras Cultural e apoio da Prefeitura Municipal de Guaraqueçaba. A gestão foi feita
pela equipe envolvida com o projeto Museu Vivo do Fandango (Associação Cultural
Caburé/RJ) e por um coletivo
Popular Mandicuéra/PR, Pontodedeassociações culturais da
Cultura Caiçaras/SP, região – Associação
Associação de Cultura
de Fandangueiros de
Guaraqueçaba/PR, Associação Jovens da Juréia/SP e Rede Cananéia/SP. Nesta ocasião
foram lançados o livro e o CD resultados do projeto. Já a segunda edição foi viabilizada
pelo Prêmio Avon Cultura de Vida, também com apoio da Prefeitura de Guaraqueçaba, e
gerida pela Associação de Fandangueiros de Guaraqueçaba, juntamente com o coletivo
de associações.
13
norte do Paraná e sul de São Paulo. Nos três dias que estiveram ali reunidos,

nas palestras, mesas-redondas, ou mesmo ao longo dos bailes, uma das

questões que se colocava era a pertinência em relação ao registro. Esta

discussão ultrapassou os três dias do I Encontro e teve continuidade nas

reuniões de avaliação do I Encontro (janeiro/2007) e de preparação do II

Encontro (abril/2008). Nesta ocasião encontravam-se reunidos

representantes de grupos de fandango, associações, comunidades, gestores,

pesquisadores, entre outros, sendo possível discutir mais profundamente o

significado do registro do fandango como patrimônio imaterial, seus alcances

e desdobramentos.

Em novembro de 2008, o Iphan emitiu a Nota Técnica n.21

GR/DPI/Iphan informando o aceite do pedido de registro pela Comissão do

Patrimônio. O documento contem argumentos afirmativos sobre a

importância do bem e comentários elogiosos sobre a construção coletiva do

pedido de registro e sobre as publicações encaminhadas juntamente com o

dossiê. O parecerista responsável também destacou o fato do processo já se

encontrar praticamente instruído, indicando apenas algumas ações


complementares:

 Realização de um levantamento que ajude a definir objetivamente que ações


são necessárias para um futuro plano de salvaguarda do fandango caiçara,
estabelecendo as prioridades e as instituições parceiras.
 Realização de um documentário que apresente audiovisualmente as
especificidades e a diversidade do fandango caiçara.
 Realização de oficinas ou reuniões em cada um dos municípios pertencentes
à Região Estuarina de Iguape-Cananéia-Paranaguá, de modo que se
estabeleça a construção participativa do diálogo entre as comunidades
fandangueiras e os órgãos do patrimônio municipais, estaduais e federais.
 Em termos de salvaguarda, sugiro que uma ação pertinente é a replicação
nos outros municípios do projeto que redundou na publicação “Saberes
Caiçaras: a cultura caiçara na história de Cananéia”.

14
Após o II Encontro, foi realizada, em janeiro de 2009, em

Guaraqueçaba, uma reunião de avaliação e lançamento da edição 2008/2009

do guia impresso do circuito do Museu Vivo do Fandango. Nesta reunião foi

formada uma comissão de acompanhamento do pedido de registro, formada

por diferentes representações, responsáveis por dar andamento e articular

nas localidades, bem como, institucionalmente o processo de registro 3.

Em 2009, o Departamento de Patrimônio Imaterial reservou um

recurso para a execução dos materiais complementares à instrução para

registro do fandango. As primeiras três reuniões haviam sido viabilizadas,

respectivamente, com recursos do projeto Museu Vivo do Fandango

(Petrobras), com recursos do Prêmio Culturas Populares concedido ao

Museu Vivo do Fandango (Ministério da Cultura) e com recursos do projeto

do II Encontro de Fandango e Cultura Caiçara (Avon). Foi solicitado ao Iphan

que viabilizasse uma quarta reunião na qual pudessem ser definidos os

trâmites de contratação e definida uma metodologia coletiva de trabalho.

Contudo, ao longo do ano de 2009 o Iphan não encontrou meios de viabilizar

este encontro presencial uma vez que o recurso somente poderia ser
repassado por meio de processo licitatório. Desta forma, a comissão de

acompanhamento de registro solicitou que fosse incluída no processo de

contratação a organização de uma reunião com produtores do bem. Ao final

3
A Comissão de Acompanhamento foi formada pelos seguintes nomes: Cléber Rocha
Chiquinho (Associação Rede Cananéia, Cananéia, SP), Cleiton do Prado ou Dauro Marcos
do Prado (Associação Jovens da Juréia, Iguape, SP), Daniela Gramani (organização do
Encontro de Fandango e Cultura Caiçara), Rubens Eduardo Miranda (Morretes), Fernando
Oliveira (IPEC - Instituto de Pesquisa de Cananéia, SP)Joana Corrêa (Associação Cultural
Caburé,
Nemésio Rio de (Grupo
Costa Janeiro,deRJ), Marcelo Pés
Fandango Aquino
de (Prefeitura MunicipalPR),
Ouro, Paranaguá, de Patrícia
Guaraqueçaba),
Martins
(Associação de Cultura Popular Mandicuéra, Paranaguá, PR), José Muniz (Associação de
Fandangueiros do Município de Guaraqueçaba, PR), Rodolfo Vidal ou José Fermino
Marques (Associação de Fandangueiros do Município de Guaraqueçaba, PR).

15
de 2009, foi aberta uma chamada pública para contratação do processo de

instrução para registro que, após não ter recebido nenhuma proposta na

primeira chamada, foi acudida somente pela Associação Cultural Caburé em

segunda chamada. A ampla lista de produtos estabelecidas no edital e a

complexa lista de documentos exigida sem dúvida foram fatores que

dificultaram que outras entidades participassem do processo.

No início de 2010, foi formalizada a contratação da Associação

Cultural Caburé/RJ, com vistas a que coordenasse a realização das

seguintes metas estabelecidas no Projeto Básico:

Item Descrição Quantidade


1 Preencher as fichas do INRC com informações sobre a A definição de quais fichas
documentação pré-existente sobre o objeto deste Termo, emserão preenchidas será
arquivos documentais públicos e privados nos Estados de São Paulofeita de comum acordo
e Paraná, direcionadamente aos seguintes conteúdos, entre outros:com a equipe de pesquisa.
(a) levantamento de informações históricas sobre essa forma de
expressão no Brasil, sua srcem, evolução e configuração nos
diferentes contextos culturais em que ocorre; (b) identificação de
seus produtores e localidades onde ocorre; (c) levantamento e
mapeamento das referências documentais, audiovisuais e
bibliográficas disponíveis sobre o Fandango Caiçara.

2 aOrganizar as fichas correspondentes


ele relacionado ao INRC e material
– incluindo entrevistas documental
(em áudio e as Entrega em volume(s) à
correspondentes degravações). parte.

3 Organizar a documentação fotográfica (identificação das pessoas 100 fotos


fotografadas, legenda, autoria, local e data), formatando ao final
álbum com fotos representativas dos diferentes aspectos a que se
refere o bem cultural em questão. Seleção de fotos de alta
qualidade, em alta resolução, e entrega das mesmas em formato
digital para serem oportunamente utilizadas na ilustração do texto
descritivo e em outras publicações do Iphan . Submeter à
aprovação prévia do Iphan.
4 Recolher autorizações de uso de imagem em formulário Quantas forem necessárias
disponibilizado pelo Iphan.
5 Elaborar pré-roteiro e roteiro para o texto descritivo e para os vídeos e submeter 1 roteiro para cada versão.
à aprovação do Iphan.
6 Elaborar texto descritivo denso sobre o Fandango Caiçara, o qual 1 texto

16
deve incluir bibliografia, listagem de entrevistas utilizadas na
pesquisa e ilustrações. O texto também deve indicar, em caráter
preliminar, ações de apoio e fomento às condições de produção e
continuidade do Fandango Caiçara. A elaboração do conhecimento,
em descrição textual densa e ilustrada e em vídeos documentários,
será realizada segundo roteiros aprovados pela Coordenação de

7 Registro do DPI/Iphan.
Revisão textual, diagramação e edição do texto descritivo referente 1 edição
ao Fandango Caiçara.
8 Cópias do texto descritivo já aprovado, diagramado e editado 5 cópias impressas
impressas e em meio digital. 5 cópias digitais
9 Elaborar texto resumido, contendo os dados e informações essenciais para a 1 texto
compreensão do bem cultural em foco, ao seu universo e elementos associados,
para utilização em materiais de divulgação.

10 Revisão textual, diagramação e edição do texto resumido referente 1 edição


ao Fandango Caiçara,
11 Cópias do texto resumido já aprovado, diagramado e editado 5 cópias impressas
impressas e em meio digital. 5 cópias digitais
12 Editar
de vídeos/DVD,
síntese com atéum15com cerca contemplando
minutos, de 60 minutos de duração,
todos e um 2 vídeos
os aspectos
culturalmente relevantes do Fandango Caiçara e os significados
atribuídos por seus produtores.
13 Matrizes em MiniDV dos vídeos editados e aprovados. Quantasforem necessárias.
14 Cópias em DVD de cada um dos documentários, após a aprovação 10 cópias de cada
do Iphan dos vídeos produzidos.
15 Versão do vídeo-síntese de 15 (quinze) minutos, anteriormente 2 vídeos para banco de
aprovado, no formato .wmv com compressão para disponibilizaçãodados.
em banco de dados, a qual deverá seguir as seguintes
especificações:
Banda Larga: Tipo .wmv formato dov, Tamanho 320 X 240,
Velocidade 256K/dsl streaming, Áudio 32Kaz stereo, Frames por
segundo/rats 15fps.
Conexão discada: Tipo .wmv, Tamanho 160 X 120, Velocidade
56K/moden streaming, Áudio 32Kaz mono, Frames por
segundo/rats 15fps para inclusão na base de dados do Sistema de
Bens Culturais Registrados.
16 Análises e transcrições em partitura de um conjunto representativo Quantas forem
de modas de batido e valsado. necessárias.
17 Produção da arte e elaboração da arte final que será utilizada para 1 arte em meio digital.
as capas dos produtos, entre outros elementos que serão entregues
ao Iphan.
18 Organizar reunião com os produtores do bem cultural para a 1 reunião
socialização do andamento dos trabalhos e do processo de 1 gravação completa
Registro, dado que este instrumento requer a participação direta
dos envolvidos com a manifestação. A Coordenação de Registro e
as Superintendências Regionais envolvidas deverão ser
comunicadas quando da ocorrência destas reuniões para que o

17
acompanhamento dos trabalhos seja completo e possam ser feitos
esclarecimentos quanto ao instrumento do Registro. Todo o
encontro deverá ser gravado. Estes produtos deverão ser entregues
ao Iphan.
19 Degravar a reunião com os produtores e entrega-la em meio digital 1 degravação completa
ao Iphan .

20 Entregar todo o devidamente


complementam, material produzido, bem como
organizados aqueles que
e sistematizados– nao 1 conjunto documental
forma de conjunto documental com tratamento homogêneo–
documentação esta que irá compor o processo de Registro do
Fandango Caiçara, concluindo assim sua instrução.

O preenchimento das fichas do INRC que, em princípio não havia

sido demandado na carta de aprovação de candidatura, acabou por ser

incluído no processo de instrução por recomendação do Departamento de

Patrimônio Imaterial.
A metodologia do processo de Instrução do Registro seguiu a

proposta de trabalho coletivo entre as entidades parceiras, com a

participação de gestores locais e produtores do bem para a realização das

metas previstas.

No mês de abril de 2010, foi realizada uma oficina de treinamento

da equipe coordenação com técnicos do Iphan e do CNFCP - Centro


Nacional de Folclore e Cultura Popular, voltada especialmente para o

preenchimento das fichas do INRC. Na ocasião foi definido que, por razões

operacionais e limites orçamentários, seriam apenas preenchidas as fichas

referentes às formas de expressão. As fichas relativas aos modos de fazer,

que parecem adequadas aos processos de construção de instrumento e

artesanias locais, ficariam para uma etapa posterior, uma vez que a

prioridade estabelecida no II Encontro foi o registro e não exatamente o

processo de inventário do bem, que já foi amplamente documentado, ainda

18
que as possibilidades e conteúdos não tenham se esgotado. Nesta reunião

foi mantida a nomenclatura do bem como Fandango Caiçara, conforme

proposto no encaminhamento do pedido. O sítio estabelecido foi o litoral sul

de São Paulo e norte do Paraná, e as localidades seguiram a divisão

municipal (Morretes, Paranaguá, Guaraqueçaba, Cananéia e Iguape).

A documentação bruta para a edição dos conteúdos foi reunida de

forma colaborativa, tendo como base os conteúdos fotográficos e

audiovisuais produzidos durante a pesquisa do Museu Vivo do Fandango e

os Encontros de Fandango e Cultura Caiçara. O Ponto de Cultura Caiçaras, a

Associação de Cultura Popular Mandicuéra, a Associação Jovens da Juréia,

entre outros parceiros, também cederam imagens. A locução dos filmes foi

gravada por Cleiton do Prado, músico e construtor de instrumentos da Juréia.

O processo de trabalho sofreu interrupções em função da

paralização da transferência de recursos a partir da segunda parcela. Tal fator

dificultou o cumprimento do cronograma de trabalho, pois quando as

atividades foram retomadas os membros da equipe já estavam envolvidos

com outros trabalhos.


Em agosto de 2010, foi realizado um encontro com mediadores e

produtores do bem no município de Cananéia. A reunião teve três dias de

duração e contou também com a presença de uma representante do Iphan,

Luciana Luz. O cronograma foi dividido em cinco etapas, envolvendo

esclarecimentos sobre os processos de inventário, registro e salvaguarda

pela representante do Iphan, apresentação e debate das fichas do INRC,

apresentação e debate dos roteiros dos vídeos, discussão sobre a

organização do III Encontro de Fandango e Cultura Caiçara e construção

19
coletiva de um pré-plano de salvaguarda do Fandango Caiçara.

Destacamos que os Encontros de Fandango e Cultura Caiçara são

momentos fundamentais do processo de incentivo à continuidade do bem.

Estes encontros são organizados de forma colaborativa, retomando o espírito

do mutirão. As atividades são voltadas fundamentalmente para as próprias

comunidades ligadas à pratica do fandango. Nestes Encontros é possível

visualizarmos de perto as dinâmicas implícitas no fazer fandango, bem como,

coloca em contato fandangueiros que em raros momentos tem a

oportunidade de se aproximar, tocar juntos, escutar novas modas, assistir

outros grupos de fandango, debater e atualizar relações.

É importante ressaltar que a partir da reunião de Cananéia (2010),

último evento formal ocorrido para discutir questões relativas ao fandango e

seu registro, foi possível estabelecer e avançar nas propostas em torno da

salvaguarda deste bem cultural. Além disso, neste período pós reunião de

Cananéia, diferentes ações envolvendo o fandango foram estabelecidas

localmente, através das Associações, Pontos de Cultura, pesquisadores,

gestores culturais, etc.

20
Capítulo 1. Caracterização histórico-cultural do fandango caiçara

1.1. Representações sócio-espaciais: o território do fandango caiçara

A territorialidade expressa no fandango é atravessada por diferentes

dimensões: históricas, sociais, ambientais, administrativas, etc. No recorte

aqui proposto partiu-se do pressuposto de que o "Território do Fandango

Caiçara" não é uma região administrativa pré-existente, delimitada

juridicamente, ou mesmo uma região uniforme, mas uma unidade territorial

que apresenta referências socioculturais compartilhadas por determinadas

populações, em uma região específica. Nos referimos ao território onde o

fandango é uma forma de expressão central no compartilhamento de


práticas, modos de vida, saberes e cosmovisões das populações caiçaras.

Essa área corresponde, portanto, aos municípios de Iguape e Cananéia

(litoral sul do Estado de São Paulo) e Guaraqueçaba, Paranaguá e Morretes

(litoral norte do Estado do Paraná)4 estendendo-se a pequenos trechos de

alguns municípios adjacentes como Peruíbe e Ilha Comprida (São Paulo).

Deste modo, o território do fandango caiçara não se refere, a toda


região habitada por populações caiçaras, o que exigiria expandir a área de

abrangência deste registro às regiões litorâneas do sul do Estado do Rio de

Janeiro e de Santa Catarina, e a abarcar expressões culturais como a ciranda

e a chiba, denominações de danças dos caiçaras em Paraty e no norte

paulista. Esse recorte, embora reconhecido por inúmeros pesquisadores e

mesmo através de recentes políticas governamentais - especialmente em

nível federal - relativas às chamadas populações tradicionais, não seria


4
Esta área coincide com o recorte espacial já utilizado durante a implementação do projeto
Museu Vivo do Fandango, o qual gerou grande parte dos materiais de pesquisa nos quais
nos baseamos no presente processo de instrução.
21
apropriado por não representar a região onde o fandango é atualmente

encontrado.

Fonte: Museu Vivo do Fandango - Associação Cultural Caburé

O fandango, como expressão musical-coreográfica-poética e festiva da

cultura caiçara, aparece concentrado nos litorais de São Paulo e Paraná, ao


menos desde meados do século XIX (RANDO, 2003 e RODERJAN, 1981),

embora, provavelmente, sua presença nessa região remeta ainda a meados

do século XVIII (BUDASZ, 2002). Há referências, no passado, de algumas

práticas semelhantes ou mesmo citações da expressão "fandango" também

em outras regiões distantes do litoral - nos chamados Campos Gerais - como

relatam cronistas-viajantes como August Saint-Hilaire e Thomas Bigg-Wither

(GRAMANI, 2009), e no litoral norte do Estado de São Paulo, especialmente

no município de Ubatuba (SETTI, 1985).

22
São desconhecidas referências a ocorrência do fandango no litoral do

Rio de Janeiro. A expressão fandango é encontrada em outras localidades,

entretanto, como em geral se utiliza a denominação simplesmente como

referência para uma festa ou baile, ela acaba sendo utilizada em diversos

,,,contextos, mas não como um conjunto de práticas que envolvennn

mutirões, festa, dança coreografada e batida com tamancos pelos homens,

dança de casais bailada sem coreografia, um universo musical e poético

específico, com o uso de instrumentos como a viola fandangueira (ou viola

branca, como é conhecida em Iguape/SP), com suas afinações e toques

característicos, juntamente com adufos e rabecas. A esse conjunto é que aqui

denominamos "fandango caiçara", e que, embora com significativa

diversificação, encontra uma unidade na região que vai de Iguape e

Cananéia (estado de São Paulo) e segue até Guaraqueçaba, Paranaguá e

Morretes (estado do Paraná).

Outra possibilidade de delimitação espacial seria a utilização do termo

Lagamar, complexo estuarino-lagunar que se estende de Iguape à

Paranaguá, e que une - como um "mar de dentro", como é chamado em


diversas comunidades locais - praticamente toda a região abordada.

Entretanto, além de uma delimitação geográfica eminentemente física, o

município de Morretes/PR, importante referência para o fandango caiçara,

não estaria contemplado. Embora tenha-se a consciência que a denominação

Lagamar seja amplamente reconhecida - sendo espaço de circulação vital e

paisagem/meio de grande importância para a divulgação turística e para as

estratégias de preservação ambiental da região – optou-se por uma

delimitação que se constrói através de critérios sócio-político - na medida que

23
se associa a um grupo social específico: "os caiçaras". - Mas também

temático como área onde se encontra disseminado um determinado bem: "o

fandango caiçara".

Neste caso, entende-se que o termo "Território do Fandango Caiçara" é

o que melhor delimita a região onde o fandango é a principal forma de

expressão cultural das populações caiçaras. Ele permite a melhor

compreensão das ações empreendidas pelos diversos sujeitos envolvidos

(fandangueiros, artesãos, pesquisadores, associações culturais, alguns

representantes do poder público local) e seus esforços de pesquisa,

articulação e divulgação, visando a valorização, o reconhecimento e a

continuidade das práticas associadas ao fandango, mesmo em novos e

diferentes contextos e espaços.

Permite ainda uma escala de análise que transcende os limites

estaduais (São Paulo/Paraná) e regionais (Região Sul/Sudeste) e recortes

mais restritos que não dão conta da dinâmica e complexidade local, onde

algumas características singulares (como diferentes afinações utilizadas e

variações no número de cordas de determinados instrumentos musicais, ou


nomenclaturas e coreografias de marcas e danças, por exemplo) não

desqualificam a percepção e a construção de uma identidade comum,

partilhada por práticas, vivências, celebrações e saberes específicos.

Por fim, vale ressaltar que essa denominação adotada é fruto de uma

construção coletiva entre esses diferentes sujeitos envolvidos, onde os

representantes do bem em questão tem tido um papel protagônico.

24
1.2 FANDANGO E A CRIAÇÃO DE UM “ETHOS POPULAR”

Um dos principais ensinamentos do fandango é que nele o que

prevalece é a constante construção de seus saberes e técnicas. Mais do que

uma herança ou um legado a ser recebido, os saberes que envolvem o fazer


fandango são parte de uma série de atributos a serem construídos no

decorrer da vida de um fandangueiro. Muitos pesquisadores tiveram o

fandango como objeto de estudo, sob diferentes perspectivas, oferecem

análises e relatos sobre o fandango praticado neste litoral. Apesar de

localizadas historicamente, estas descrições são capazes de demonstrar as

dinâmicas histórico-sociais pelas quais esta expressão tem se atualizado

entre as pessoas e grupos que habitam nesta região.

Desde os viajantes que por essas terras passaram entre os

séculos XVIII e XIX, observando aspectos da fauna, da flora e dos

“costumes” locais, narrativas sobre as principais características, srcens e

influências do fandango são construídas. Entre os principais destes viajantes

podemos citar, Avé-Lallement (1995 [1858]), Bigg-Wither (1974 [1875]) e


Auguste de Saint-Hilaire (1995 [1820]). Seus relatos serviram como primeira

referência e registros encontrados sobre o fandango, apesar de assinalarem

pressupostos de suas épocas, ainda hoje iluminam descrições sobre esta

prática.

Dentro ainda desta categoria de fonte histórica, encontramos o

trabalho do cronista-historiador Antonio Vieira dos Santos, que no início do


século XIX, publica o códice “Cifras de Música para Saltério”, onde destaca

as canções que pertenciam aquele momento aos salões de Paranaguá e

25
Morretes (litoral norte do Paraná). Importante documento que traz descrições

de músicas e coreografias que ainda atualmente são parte do fandango

praticado na região, são elas: anu, chico, recortado, tonta, tirana, chula e

vilão (RODERJAN, 1980).

Partindo destes relatos, que traziam em seu bojo uma determinada

“legitimidade histórica” para o f andango, diferentes gerações de

pesquisadores/folcloristas seguiram se dedicando ao estudo e registro das

chamadas “manifestações tradicionais” encontradas nos litoral do Paraná e

São Paulo, buscando sinais distintivos destas populações. Com uma

produção localizada a partir da década de 1930, os estudos sobre o fandango

faziam parte do grande projeto folclorístico de mapeamento das diferentes

manifestações populares brasileiras.

A atuação destes pesquisadores-folcloristas no sentido de

“preservar” estas tradições foi tomando consistência a partir da década de

1940. Analisando o período que vai de 1947 a 1964, o antropólogo Luís

Rodolfo Vilhena questiona “porque foi, e em que medida o foi, importante


para segmentos significativos de intelectuais, em diferentes contextos

nacionais e institucionais, focalizar a 'cultura popular', mesmo que vista por

um sem número de viés deformantes...?” (VILHENA: 1997, 29). Para o autor,

a 'cultura popular' foi útil para pensar o caráter da cultura brasileira: o popular

e o nacional caminhavam juntos nestas perspectivas. Os intelectuais

envolvidos nesse projeto de construção de uma identidade nacional

investiam-se de uma atitude salvacionista, destacando-se, muitas vezes,

suas preocupações eruditas sobre a “cultura popular”.

26
Inicialmente compreendido de forma ampliada, o termo fandango

nestes estudos, poderia referir-se tanto ao “auto popular nordestino”, como

também ao conjunto de danças presentes no sul do Brasil. É possível

apontarmos como pioneira a tentativa de uma definição para o termo

fandango a partir da obra de Mario de Andrade. Em sua obra publicada em

1928, “Ensaio sobre a musica popular”, em uma análise breve destaca a

importância das manifestações populares presentes no sudeste brasileiro e

apresenta letras e melodias de alguns fandangos da região de Cananéia

(SP). Estes seriam os primeiros registros do fandango em forma partituras,

tornando-se um material de grande importância para futuros estudos.

O termo fandango também relacionava-se, em alguns destes

primeiros estudos, com as danças gaúchas. O pesquisador Renato Almeida

em sua obra “História da musica brasileira” de 1942 (2ª edição), descreveu o

fandango destacando suas srcens ibéricas, apresentando pauta musical de

algumas marcas. Descreveu com maior fôlego as marcas, chamarrita, cana-

verde, dandão, nhô Chico, queromana, tonta e anu. Marcas que segundo o

autor faziam parte de um acervo de danças gaúchas e paranaenses. Ainda

hoje estas marcas são executadas no fandango caiçara5.

Para o antropólogo Edmundo Pereira estes primeiros estudos de

folclore e cultura popular, localizados entre as décadas de 1930 e 1940,

apresentam como principal característica a ser considerada, o fato de não

haver neste momento uma preocupação com trabalho de campo, segundo

ele: “o que está de acordo com o movimento geral da época de compilar,

5
Veremos que o termo “marca de fandango” é uma categoria nativa que refere -se as danças
e músicas específicas desta expressão.
27
organizar os dados reunidos na forma de verbetes em obras de introdução e

mapeamento geral do “folclore brasileiro” (2006, 193).

Neste sentido, temos também a obra de Câmara Cascudo, que em

seu exaustivo Dicionário do Folclore Brasileiro (1984), traz como definição o


verbete “fandango”. Câmara Cascudo irá reconhecer esta amplitude de

manifestações que comporta a denominação “fandango”, ap onta sua

configuração em diferentes contextos onde o fandango adquire outros

sentidos:

No Brasil, fandango é o folguedo dos marujos ou marujada


ou barca, em alguns estados do Norte e Nordeste. É sempre
um auto popular, já tradicional na primeira década do século
XIX, convergência de cantigas brasileiras e de xácaras
portuguesas. A brasilidade do fandango, auto popular, é
indiscutível... é um mosaico de temas organizado
anonimamente no Brasil (1984, 320).

Após os estudos produzidos por estes autores, passamos para

uma fase de pesquisas onde o fandango passa ser observado dentro de

algumas de suas especificidades. Se, em um momento anterior, as pesquisas

privilegiavam aspectos mais genéricos desta manifestação, buscando inseri-

la dentro uma cartografia mais ampla do folclore brasileiro, em uma fase

posterior os estudos passam a contemplar uma face mais “etnográfica”, ou

seja, os dados partem de realidades concretas ao pesquisador.

Nestes moldes, como referência dentro deste novo momento de

pesquisas, temos o trabalho de Alceu Maynard de Araújo (1964), que voltou


sua análise para o universo que envolvia as manifestações populares “dos

homens do interior e do litoral paulista ”. Seu trabalho abrangeu as cidades de

28
Cananéia, Ubatuba e Taubaté e pode ser considerada uma das primeiras

pesquisas sistemáticas sobre o fandango praticado em São Paulo. Com

incursões a campo realizadas entre os anos de 1946 e 1947, destaca-se na

obra de Araújo, suas descrições que buscavam dar conta de aspectos

históricos, coreográficos e, secundariamente, aspectos musicais sobre o

fandango. Suas pesquisas foram acompanhadas de registros audiovisuais.

No Paraná o contexto de pesquisas e debates em torno de uma

“identidade regional” foi amplo e acalorado. Ao lermos as descrições sobre o

fandango paranaense em seus principais autores - Fernando Côrrea de

Azevedo (1973, 1978), Rosellys Roderjan (1979, 1980) e Inami Custódio

Pinto (1983, 1992, 2003, 2005) - percebemos que seus discursos convergiam

em uma mesma direção: a busca de um fandango que fosse o “típico

fandango paranaense”, como algo q ue representasse aquilo que se

diferenciaria do restante do conjunto de brasilidade. Através destas falas

podemos identificar a construção de determinadas narrativas acerca de uma

identidade regional e um “discurso nativista” sob estas manifestações.

Em finais da década de 1940 se consolida no Brasil uma extensa

rede de pesquisadores/folcloristas. No Paraná e São Paulo, como em outros

estados, foram criadas as Comissões de Folclore, ligadas à Comissão

Nacional de Folclore6 (VILHENA, 1997). Faz parte do primeiro período da

Comissão Paranaense de Folclore (1948-1964) a pesquisa intitulada

“Fandango do Paraná”, de autoria de Fernando Corrêa de Azevedo. Este

6 Estas Comissões faziam parte do Instituto Brasileiro de Educação, Cidadania e Cultura. A


partir da consolidação destes grupos estaduais, através de Reuniões e Congressos por
todo o país, em 1958 foi instituída a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, que deu
srcem ao que é hoje o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, órgão atualmente
vinculado ao Iphan. (Vilhena, 1997 e Vianna, 2004).
29
pesquisador realizou trabalho de campo no entre o período de 1948 a 1955

nas colônias de pescadores da Costeirinha e rio dos Medeiros (na região da

baía de Paranaguá) e em Pontal do Sul.

Em seus trabalhos, Azevedo (1973, 1978) descreveu as principais


características do fandango, tais como: os instrumentos musicais, as

técnicas, os nomes das marcas e determinadas performances fandangueiras.

Pioneiro nos estudos sobre o fandango paranaense, seu trabalho marcou

toda a reflexão elaborada posteriormente, como os trabalhos de sua aluna

Rosellys Roderjan (1979, 1980) que, seguindo os passos de Azevedo

publicou artigos contendo análises histórico-sociais relacionadas ao

fandango.

Nesta mesma linha, destaca-se o trabalho de Inami Custodio Pinto

(1983, 1992, 2003, 2005), que concentrou suas análises na descrição do

fandango realizado na ilha dos Valadares em Paranaguá, focando

basicamente na análise do conjunto coreográfico-musical por ele encontrado

naquele contexto. Este pesquisador estabeleceu relações profundas com o


grupo pesquisado, sendo um dos grandes incentivadores para a formação de

um dos primeiros grupos de fandango organizados ao qual se tem notícia,

fato ocorrido em finais da década de 1960.

É nítido que as principais transformações ocorridas nos estudos

sobre o fandango neste período diz respeito a abordagem dos pesquisadores

e suas inserções em campo. Para Pereira (2006):

“Alem de dar continuidade aos investimentos anteriores


como o mapeamento dos gêneros musico-coreográficos

30
existentes no baile, este momento dos estudos de
fandango é marcado pela referencia a lugares
específicos, a fandangueiros com quem se travou contato
e de quem se anotou parte do conhecimento” (194).

A partir da década de 1980 a bibliografia sobre o fandango passa


por uma renovação, e sobretudo, por um forte aumento em sua produção.

Incorporando em diferentes graus procedimentos e conceitos da sociologia,

antropologia, musicologia e história, o fandango passa a ser visto a partir de

estudos localizados e relacionais, focando a pluralidade e diversidade de

fandangos e fandangueiros (Setti (1985) Pereira (1996) Marchi & Saenger

(2002) Andrade & Arantes (1994, 2003), Brito & Randa (2003), Gramani

(2003), Pimentel & Gramani & Corrêa (2006), Martins (2006). A busca pelas

srcens e influências desta manifestação deixam de ser o centro das

análises, destaca-se nesta produção o olhar sobre o fandango como parte de

um sistema cultural, compreendido como caiçara. Assim:

“Consolidam-se os estudos sobre o fandango, ou antes,


sobre os diversos temas relacionados ao baile. Neste
sentido, mais do que baile, fandango é expressão cultural
dos agricultores e pescadores habitantes do Lagamar
que vai da baía de Paranaguá, passando pela de
Guaraqueçaba, e adentrando São Paulo, até a baía de
Cananéia. Está relacionado a vida dessas populações
(...)” (PEREIRA: 2006, 194-195).

As diferentes descrições e análises pela qual o fandango foi

objeto, trazem em si as marcas do momento em que foram produzidas.


Contemporaneamente, apresenta-se um cenário de pesquisas e análises

muito fecundas, as quais, buscam dialogar com as questões e desafios pelos

31
quais esta forma de expressão vem se confrontando, tais como, políticas

ambientais, expansão do turismo, processos de patrimonialização, indústria

cultural, entre outros. Temas que, propriamente tem determinado os rumos

pelos quais o fandango segue trilhando.

1.3. Interpretações a cerca de um tema: o fandango na história

O termo fandango tem uma história longa e controversa, trazendo

em seu bojo a característica própria da dinâmica de sua constituição

expressa em movimentos de idas e vindas, misturas e contaminações entre

diferentes geografias, etnias e historicidades.

Nesta direção, para alguns pesquisadores, o fandango teria srcem


árabe. Para outros, suas srcens estariam na Península Ibérica, quando

Espanha e Portugal ainda não eram reinos de fronteiras definidas, desde pelo

menos o século XV. Sem dúvida, uma de suas definições mais antigas e de

uso generalizado é a de que fandango é simplesmente “baile”. Mas não é

qualquer baile, é baile “ruidoso”, por cont a da presença de sapateados

rufados ao longo da função e dos divertimentos. Para a srcem etimológica

do termo, temos duas hipóteses possíveis mais aceitas: viria de fado,

entendido em sentido amplo como canto lírico popular; ou de fidicinare,

traduzido como “tocar a lira”. Há ainda uma terceira possibilidade, menos

difundida, a de que viria do árabe funduq, termo usado na Argélia para

designar o local em que se faz música.

Encontramos referência a baile e conjunto de danças chamados

por esse nome ao longo de Portugal, Espanha e França, no conjunto das

músicas e danças tradicionais mediterrâneas. Em todos os casos, é dança de

3 tempos. Em Portugal, há formas de dança e funções assim nomeadas na


32
região entre o Ribatejo e a Estremadura, e mais ao norte, na fronteira com a

Espanha. Esta variante, de fato, congrega-se às principais danças dos

Países Bascos, chegando até a França. Na Espanha, na região de Andaluzia,

tanto se refere à dança em 3 tempos, quanto é gênero específico ( fandango

viejo), onde passa a ser canto mais declamativo, tornando-se de tempo

binário. Neste caso, integra-se ao universo mais amplo do Flamenco.

Para Portugal, encontramos ainda o fandango no Arquipélago dos

Açores, um dos lugares de onde partiu para o Brasil com as levas migratórias

que aos atuais estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina chegaram em

meados do século XVIII. Nos extensos registros sonoros feitos na Ilha de São

Miguel, durante a campanha de registro e incentivo ao folclore do arquipélago

nos anos 19607, temos um fandango de 3 tempos, que, em si, pouco se

assemelha às variantes brasileiras. Mas também encontramos um sem

número de gêneros e funções musicais que devem também ter alimentado o

que é hoje a música dos fandangos encontrados no litoral do sul/sudeste do

Brasil, através de seus ponteados, quadras, e modos de cantar, como é o

caso dos cantos e toques das romarias do Divino Espírito Santo, além de
todo o repertório de cantigas de trabalho e de divertimento.

Nas Américas, encontramos o termo sendo empregado desde o

período colonial no México, com a mesma acepção encontrada na Argélia, de

lugar para encontrar-se para tocar. Tanto na Colômbia quanto no Brasil,

designa uma dança ou um conjunto de danças. No caso colombiano,

encontra-se ligado à sua srcem espanhola de dança em 3 tempos. No caso

7
Em 1960, o Instituto Cultural de Ponta Delgada, Portugal, junto ao Conservatório Nacional
de Lisboa, realizou ampla pesquisa e registro sonoro dos principais gêneros musicais
encontrado em parte da região.

33
do Brasil, teve sua srcem portuguesa (provavelmente açoriana) amalgamada

com outras matrizes culturais formadoras das culturas regionais de norte a

sul. Como resume Câmara Cascudo, em terras brasileiras, o termo fandango

designa: (1) o auto marítimo encontrado em alguns estados nordestinos, e (2)

o baile sulista, atualmente encontrado no Rio Grande do Sul, Paraná e São

Paulo. No caso sulista, no Rio Grande do Sul, formalizou-se o fandango e

difundiu-se dentre diversas classes sociais, incorporando-se ainda à sua

“orquestra” o uso do acordeão. No interior de São Paulo, na região de

Sorocaba, há também uma variante de dança sapateada, herdada dos

tropeiros, assemelhada à catira.

Apesar de registros demonstrarem que o fandango também já foi

um divertimento dos moradores do planalto, a partir do início do século XX, o

fandango será visto como uma manifestação “típica de agricultores e

pescadores do litoral paranaense”. Para o historiador Magnus R. Pereira

(1996), no século XVIII a expressão “fandango” podia ser usada , como

usava-se a expressão batuques e pagodes, de forma genérica para

denominar bailes, “ajuntamento”, divertimento das classes menos


privilegiadas. Naquele momento chamava-se fandango diversas modalidades

de divertimentos que aconteciam em cidades como Curitiba e Ponta Grossa.

É possível visualizarmos através do relato de Auguste de Saint-

Hilaire (1779-1853) a presença do fandango no planalto paranaense. Em sua

passagem pela região dos Campos Gerais, descreve sua estadia em uma

fazenda em Castro no ano de 1820 onde teria participado de um fandango

com diversas famílias da região. Na descrição narra a presença de músicos

que tocavam violas e machetes, em relação as danças presenciadas naquela

34
noite, dançavam “chulas e o anu” (SAINT-HILAIRE, 1995).

Também em passagem pelo Paraná, já em meados do século XIX,

Thomas Bigg-Wither (1980) irá participar de um baile, acompanhado pelo

som de violas e pelo bater de pés no assoalho de uma casa, que, segundo

viajante, estava localizada em uma “pequena aldeia sertaneja”. Nesta

passagem, entre os anos de 1872 e 1875, Bigg-Witther em seu relato trazia

as imagens de um fandango muito próximo aos praticados nos dias atuais,

pois além de violas, havia o batido de pés entremeados pelas palmas.

Segundo Gramani, 2009:

“Bigg-Wither (1980) descreveu também com

estranhamento a relação entre os homens e mulheres


que, durante a dança não conversavam e, quando esta
era finda, separavam-se sem nenhum sinal de cortesia,
procedimento que pode ser observado até hoje nos
bailes de fandango”(p.21).

É certo que o termo fandango adquire diferentes contornos ao

longo do século XIX, diferindo, em grande parte, dos fandangos atuais.

Primeiramente, por sua própria abrangência, nos oitocentos, os chamados

fandangos ocorriam tanto no planalto, como no litoral. Outra distinção era o

fato, de que o fandango frequentava “os grandes salões aristocratas”, como

também, era prática corrente dos menos favorecidos 8. Segundo o historiador

Magnus R. Pereira, até o final do século XVIII, “não há evidências de que

existissem formas de lazer, de higiene ou de gestual específicas de um ou de

8
O historiados Magnus Pereira (1996) em seus estudos sobre a sociedade ervateira dos
oitocentos irá trazer a tona a categoria de “não -msrcerados” referindo-se aquela parcela
da população que vivia nas incipientes cidades. Neste período a noção de “civilidade”
conduzia os códigos sociais. Dentro da categoria de “não–msrcerados” inclui -se,
imigrantes, negros, operários e desempregados que se acumulavam nas novas urbes.
35
outro setor da população” (PEREIRA, 1996, p.136). Deste modo, é possível

afirmar que o fandango enquanto “dança de salão bailada entre pares”,

transitava entre o planalto e o litoral, se configurando enquanto prática dos

salões aristocratas, quanto da população menos abastada destas vilas.

Uma forte alteração neste padrão de ocorrência do fandango foi

observada a partir do século XIX, onde a manifestação será alvo de

sistemática perseguição. Os padrões de civilidade adotados pelas elites

locais se contrapunham as práticas populares. Para Roselys Roderjan, “o

desprestígio social do fandango foi acelerado com as proibições das

Ordenanças Reais e as censuras eclesiásticas, que o consideravam

licencioso e herege” (1979, p.2). A partir deste processo de transformações

provindos de uma crescente ideologia burguesa em busca de novos “códigos

de civilidade”, observa-se uma ruptura nas sociabilidades oitocentistas, onde:

“Os escravos, seus descendentes e os brancos de


poucas posses formavam um grupo social culturalmente
semelhante que se divertiam nos fandangos e batuques,
enquanto as famílias da alta classe promoviam bailes

onde eram dançadas valsas, xotes e quadrilha.


Ressalta-se o fato de que o fandango, pelas descrições
da época, possuía um forte caráter libidinoso e lascivo,
que ia contra a nova moral burguesa adotada
(GRAMANI: 2009, p.24)

Evidencia-se assim, na segunda metade do século XIX, uma série

de proibições à prática do fandango, Magnus Pereira (1996) irá apontar que

no Paraná, as primeiras manifestações de censuras ocorreram a partir de

1792, tanto no planalto quanto na região litorânea. Em Curitiba, a criação de

um Código de Posturas proíbe o “ajuntamento para batuques e fandangos”,

36
na Comarca de Paranaguá, os fandangos realizados por ocasião dos festejos

do Santíssimo Sacramento foram proibidos para resguardar o caráter

religioso da devoção aos santos. Segundo Magnus Pereira: “Não houve um

município paranaense que não criasse algum entrave legal à realização

dessas manifestações.” (1996, p.160).

Somando-se a estes movimentos de restrições ao fandango, a

partir do século XX temos também transformações econômicas importantes

que determinarão os rumos desta manifestação. Sendo possível afirmar que

a partir do século XX o fandango se transformou em uma festa

exclusivamente rural e litorânea (RANDO, 2003). Neste período o fandango

adquire, notadamente, o formato e a configuração muito próximos dos dias

atuais, sua prática vinculava-se aos modos de vida experenciados nos

“sítios”. Sobre a formação destes “sítios”, Antonio Carlos Diegues coloca que:

Pode-se partir da hipótese que as povoações e os


“sítios” caiçaras surgiram nos interstícios e no período
pós-desorganização das monoculturas coloniais e pós-
coloniais como a da cana-de-açúcar (…) nas primeiras
décadas do século XX a maioria dos municípios
litirâneos da região estudada estava imersa num
isolamento profundo, ainda que os contatos com os
centros urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro e
Paranaguá/PR continuassem existindo e mantidos pela
navegação a vela e a vapor. (2004, p. 25).

Nestes percursos o fandango encontrado na atualidade nos litorais


norte do Paraná e sul de São Paulo, independente de sua srcem ou srcens,

não é mais apenas fruto de uma das heranças musicais e coreográficas

37
portuguesas chegadas ao sul do Brasil desde pelo menos o século XVIII.

Esta já se amalgamou com a música que aqui já havia, também de violas, de

rabecas, já brasileira, paulista, de cateretês e calangos, nas vilas e caminhos

dos estados de São Paulo e Paraná desde os tempos da capitania de São

Vicente. Esta musicalidade transitou por terra e por mar, dos campos gerais

até se chegar a Curitiba por tropa, até as baías de Paranaguá, Antonina e

Guaraqueçaba, pelos canais e ilhas que interligam este litoral ao de

Cananéia e Iguape, em São Paulo.

Atualmente, o fandango juntamente com outras expressões da

cultura caiçara, antes desprivilegiadas assumem novos papéis para as

comunidades que as praticam. O fandango passa ocupar diferentes

dimensões da vida social destes fandangueiros, expresso em estratégias de

sobrevivência econômica, manutenção de sociabilidades, sinônimo de

reconhecimento e visibilidade, o fandango entra no século XXI com uma

dinâmica e vitalidade nunca antes vista.

38
Capítulo 2. O fandango e sua estrutura poético-coreográfica-
musical

39
2.1 As configurações do fazer fandango nas redes caiçaras

Articulando expressões coreográficas, musicais e poéticas, o fandango

caiçara encontrado entre os litorais de São Paulo e Paraná se configura

através de um conjunto de práticas que passam pelo trabalho e divertimento,


música e dança, prestígios e rivalidades. O fandango tal qual é vivenciado

atualmente nesta região, como vimos, é resultado de um específico processo

histórico-social consolidado sobretudo a partir do final do século XIX, com a

formação dos núcleos de povoamento chamados de “sítios”. A partir dos

modos de vida configurados nestes espaços, o fandango adquiriu seus

contornos, estando ligado a atividades rurais baseadas na roça, na pesca e

no extrativismo. O fandango para estes “sitiantes-caiçaras”, se apresentava

como o espaço da “reciprocidade”, onde o “dar-receber-retribuir” constituía a

base de suas socialidades, marcada pelas dimensões familiares, de

compadrio e vizinhança.Deve-se salientar que para as comunidades rurais e

de pescadores estabelecidas neste território, o lugar do fandango em suas

vidas sociais e lúdicas além de estar ligado à organização do trabalho

comunitário - o mutirão – relacionava-se também, a todo conjunto de laços de

sociabilidade produzidos na região9. De casamentos e batismos, festas de

santos padroeiros e aniversários, até alianças de ajuda mútua e compadrios,

observa-se dinâmicas sociais marcadas e conduzidas pelas cadências do

fandango. De certo modo, a lógica do mutirão acompanhava as diferentes

configurações deste fazer fandango, e, nesse contexto, de fato as divisões

9
Designa por mutirão a reunião de parentes, vizinhos e camaradas para o desenvolvimento
de tarefas ligadas a roça, pesca, atividades comunitárias, etc. Ao final do trabalho
realizado, tem-se como retribuição àqueles que participaram do mutirão a realização do
baile de fandango caracterizado pela fartura de comida e bebida oferecida pelo dono da
casa. Existem variações na designação do mutirão, que também pode ser chamado de:
puxirão, pixirum, mitirão, pixilhão, adjutório, entre outros.
40
entre trabalho e divertimento sempre foram tênues.

Na reunião entre vizinhos e camaradas, onde aqueles que se reuniam

na terra de outrem para ajudá-lo em seu trabalho, para erguer uma casa,

“varar” uma canoa, fazer um lanço de tainha, ou nos preparativos para um

casamento, o fandango era uma das contrapartidas oferecidas para aqueles

que haviam assistido à função diurna, junto alimentação farta ao longo do dia

e da noite. Nestes, alguns que já haviam trabalhado ao longo do dia, agora

tocam e cantam, pelo que são especialmente tratados com alimento e

aguardente e criam fama, assim como alguns batedores. O fandango podia

ainda ser retomado no dia seguinte dos trabalhos, que em geral aconteciam

aos sábados, com as domingueiras, ou mesmo quando alguém quisesse

simplesmente festejar, prova que o fazer fandango constituía-se como um

“divertimento trabalhado” (MARTINS, 2006).

Os “sítios” como são destacados na fala dos fandangueiros, apesar

da distância que os separa e a dificuldade de acesso - seja recortando estas

baías, ou atravessando trilhas em meio a Mata Atlântica - são interligados,

estabelecem estratégias de encontro e comunicação, e o fandango, neste


caso, cria e estabelece os trânsitos caiçaras. Desta constante mobilidade

caiçara advém também toda a riqueza sonora e estética do fandango, que

apesar de único, detém uma infinita gama de possibilidades musicais-

coreográficas e poéticas. Deste modo, é importante atentar que a prática do

fandango nessa região, criou circuitos de trocas “int er-comunitárias” muito

sólidos. Hoje, apesar das inconstâncias do viver no “sítio”, e com a crescente

saída desta população para os núcleos mais urbanizados, o fandango

continua a tecer estas “redes de sociabilidade”, mesmo que a partir de outros

41
parâmetros10. Tendo como guia a movimentação própria às comunidades

caiçaras, que contém nesses fluxos dimensões essenciais às suas dinâmicas

sociais, atualmente nessa trama de idas e vindas, o fandango segue

constituindo trajetórias específicas de "visitação", de "apresentação" ou de

festa, e o que motiva esse movimento: a fé, o parentesco ou estratégias de

sobrevivência econômica.

Portanto, a partir das diferentes configurações do fandango, seja no

“tempo dos sítios”, seja na contemporaneidade, podemos observar em ação

toda uma “rede” ativada de trocas e também de sociabilidade, que conecta e

mobiliza os participantes, colocando-os em relação, sejam eles tocadores,

dançadores, construtores de instrumentos, jovens e velhos, turistas,

pesquisadores, gestores culturais e agentes governamentais11.

Os elos entre estas comunidades de fandango, e para com “os de

fora” dela, continuam vivos e dinâ micos. Assim, veremos que a produção de

sociabilidade implica em uma série de relações simbólicas e práticas, nas

quais os envolvidos com o fazer fandango acionam, alimentando o constante

fluxo que constitui a fabricação deste socius.

10
No território compreendido como caiçara, algumas cidades se estabelecem como pólos
atrativos da população que migra dos sítios, podemos citar o caso de Paranaguá/PR,
Peruíbe/SP, Iguape/SP, etc.
11
Caracterizando a própria estrutura social, objeto de investigação antropológica, o termo
“rede” foi empregado por Radcliffe-Brown ainda na década de 1950, como “a rede de
relações sociais efetivamente existentes” (1952, p. 90). Para Raymond Firth (1954, p. 4),
Radicliffe-Browm usou a noção de “rede” para expressar de modo incisivo “o que sentia ao
descrever metaforicamente o que via”. Foi Barnes quem formulou uma noção mais precisa
do termo, concebendo a rede como um campo social formado por relações entre pessoas,
definidas por critérios subjacentes ao campo social em questão (como vizinhança e amizade,
por exemplo). A rede, para Barnes, é “ilimitada” e não apresenta lideranças ou organizações
coordenadoras. Qualquer pessoa mantém relações com várias outras, que, por sua vez, se
ligam a ainda outras (MAYER, 1987, p. 129).

42
2.2. O Fandango e o sistema sócio-cultural caiçara: temporalidades e

socialidades

Os fandangos ocorrem geralmente, aos sábados e domingos, são

nos finais de semana que a comunidade interrompe o trabalho da vida diária


e reúne-se para fazer o fandango. Na época dos fandangos do sítio, as festas

aconteciam na casa dos moradores, a única exigência era que a residência

possuísse uma sala com chão de madeira para haver os batidos de tamanco.

Ainda hoje em muitos locais, os bailes acontecem nas noites de sábado, em

clubes e salões de bailes 12.

Ocasiões especialmente lembradas pelos fandangueiros mais


antigos, os fandangos que ocorriam nos momentos de mutirão trazem a tona

uma imagem da cooperação e solidariedade existente entre as populações

caiçaras. Realizados em momentos onde se necessitava de um trabalho

coletivo seja para uma colheita, uma puxada de tainha, a construção de uma

casa, recorria-se a ajuda mútua e a certeza da retribuição ao trabalho

realizado com uma noite de muito fandango. Segundo Fortes Filho (2005),
essa forma de solidariedade não tinha somente uma função produtiva, mas

facilitava o contato entre os vizinhos, estreitava os laços sociais, permitia a

troca de informações e mesmo, às vezes, namoros e casamentos.

Os fandangos, assim como os mutirões, eram frequentes e tinham

apenas um período de resguardo: a Quaresma.

“Era só fandango, comida na casa de um, na casa de outro. E

12
É importante notarmos que ao contrario de outras manifestações populares brasileiras, o
fandango não se caracteriza como uma festa de terreiro, seu formato, na maioria das vezes,
é de um “baile de salão”, realizado no interior das casas e clubes.

43
na Páscoa, eram três noites. E na Quaresma, eram quarenta e
cinco dias de resguardo, os mais velhos né? Quando terminava
o carnaval, já passava a mão na corda da viola, já
desencordoava, iam lá e pendurava lá... Até quarenta e cinco
dias. Mas também, quando chegava sábado, dia de sábado, já
era... ”.

As lembranças do violeiro e batedor João Gonçalves, conhecido

como João Folha Seca, ilustram a forte presença da cultura fandangueira, em

seu sentido mais amplo, nessa comunidade, que também abrigava

manifestações como as Romarias do Divino.

Vemos que o fandango faz parte dos diferentes momentos da vida

social destas comunidades, com ele se comemoram casamentos,

aniversários e batizados. Dona Helena, moradora da Ilha do Mel, cita além

do fandango em ocasiões de casamentos, mutirões e carnaval, também a

ocorrência nesta localidade de fandangos dedicados à São Pedro, no ciclo de

festas juninas, e ainda, a realização de fandangos nas ocasiões de mutirão

para o lanço de tainha. Nestes eventos, segundo ela, “vinha gente até de

Pontal, toda família ia junto pro baile ”.

Eventos periódicos, os bailes (como assim são chamados estes

encontros), atualmente são promovidos por grupos de fandango,

associações, coletivos locais, e mesmo, grupos familiares e comunitários.

Nestas ocasiões encontram-se tocadores e batedores de fandango das mais

diversas linhagens. Sob a melodia de violas e rabecas a memória caiçara se

atualiza e ganha continuidade entre a juventude que sempre se faz presente.


Momento de troca e diálogos inter-geracionais, afirma-se aí a dinâmica que

envolve as manifestações culturais populares. Neste circuito entre fandangos,

44
criam-se redes onde as trocas ocorrem em nível material e simbólico, trocam-

se: versos, cd´s, fotografias, instrumentos, afinações, saberes de uma

identidade em constante construção.

A recordação de Seu Armando, marca temáticas muito presentes


nas letras fandangueiras: a saudade e o amor, registros de uma época onde

os bailes e mutirões, além do trabalho e da religiosidade, marcavam

festividades propícias aos namoros e casamentos, estratégias para a

reprodução e continuidade dessas comunidades. Essa sociabilidade

promovida pelos bailes e mutirões de fandango permanece também entre as

recordações dos mais velhos. Ângelo Ramos, rabequista e compositor de

modas, nascido em 1932 no Sítio Juruvaúva, no atual município de Ilha

Comprida (Cananéia/SP), recorda dos namoros no sítio.

“História boa, a história mais legal do mundo é a história do


namoro da gente. Ah, eu conheci ela num fandango lá, aí depois
a gente dançou alguma moda. Aí depois eu saí na romaria, a
gente passa quarenta e cinco dias na romaria, então eu tornei a
passar na vizinhança, almocemos até na casa dela, do pai dela
e tudo, ela acompanhou a bandeira até na casa de pouso. A
acompanharam a bandeira. Aí a gente no caminho conseguiu
conversar mais um pouquinho. Daí ficou certo de depois da
romaria, a gente já foi lá, aí começ ou o namoro”.

O fandango, assim, permanece como central na sociabilidade

caiçara, sendo seus mestres, tocadores, batedores e compositores muito

admirados. Segundo Seu Armando, os construtores também são afamados,

citando entre eles Antônio Mendonça, do Sítio Cordeiro, e Januário Oliveira,


de Ponta Grossa. A admiração, no entanto, não fica apenas na memória e

constitui os espaços de ressignificação das práticas do fandango, mesmo

45
entre os jovens e até mesmo dos turistas, como é possível ver em uma de

suas composições:

“Os turistas que aqui vêm/Causa uma admiração

Por verem em Cananéia/Está voltando a tradição


Que moças que dançavam samba/Hoje já dançam dandão”

A retomada da realização dos bailes ganha relevância em um

contexto onde o turismo passa a ter grande importância no sustento e

sobrevivência das famílias que permaneceram na região. Proprietário durante

trinta anos do bar Toca da Onça, localizado no centro de Cananéia/SP, João


Cassiano Martins, conhecido como João da Toca é uma das figuras centrais

na organização do fandango em Cananéia. As lembranças dos mutirões e

bailes realizados por seu pai no bairro de Guaxixim o fazem expressar a

identidade que o integra ao “sítio”. “Eu sou nascido num sítio, eu sou caiçara,

o caipira legítimo. Não nego, eu não nego, pra mim é isso, é muito bom ser o

caipira legítimo”.

A descrição da comida farta, muito ligada ao mar e que marca os

fandangos no sítio, tem em seus preparos misturas de ingredientes como

ostra e mexilhão com farinha de mandioca e milho, trazendo peculiaridades

da culinária caiçara. Os bons tocadores e os companheiros de fandango e

reiada também permanecem na memória de Seu João, que reafirma seu

gosto e admiração pelo fandango. “O fandango isso eu faço questão em

Cananéia de arrumar gente pra não deixar morrer o fandango. Ah, isso eu tô

rente que nem pão quente”.

46
Tradicionalmente um bom baile de fandango era acompanhado pela

fartura de comida e bebida, sendo que em ocasiões de mutirões o

“pagamento” do dia de trabalho desenvolvidos pela comunidade, se dava em

forma de comida oferecida pelo dono da casa beneficiado com esse sistema

de adjutório. No relato de dona Santina Rodrigues, moradora da vila São

Miguel (Paranaguá/PR) fica claro esta dinâmica:

cascar o
“no dia de fazer uma colheita, erguer uma casa, des
arroz tinha muito trabalho, mas também tinha festa, a gente ia
com vontade ajudar o camarada porque a noite o fandango
rolava solto, ali tinha comida e bebida a vontade para quem
trabalhou de dia, era um jeito da pessoa pagar né a ajuda”.

O fandango como prática cultural caiçara tem na culinária que o

acompanha relações diretas com seu universo cultural. Segundo Diegues “a

culinária caiçara apresenta uma grande influência indígena, seja na

preparação de pratos baseados na farinha de mandioca, seja naqueles em

que entram os peixes e as carnes de caça” (2007: 36). Nos fandangos,

portanto, é possível encontrar uma amostra de todo o sistema culinário que

envolve estas populações. Nestes sabores e aromas marcados pelas

matrizes indígenas, transitam conhecimentos e saberes transmitidos de uma

época a outra. Dona Iolanda da Ponta do Ubá (Paranaguá/PR), relata que:

(...) Às vezes pra fazer fandango, eles faziam mutirão. Pra fazer
plantação de arroz, de mandioca. Aí depois, no fim, à noite tinha
o fandango. Vendia doce de goma, canjica nas casas que
faziam o fandango. Era mais bonito. (...) [Se fazia fandango] no
sábado e no domingo. (...) E ali então convidava a turma pra
fazer aquele fandango. “Oh, domingo vamos fazer fandango lá
na casa de tal fulano”. Lá eles iam. (...) Eles fazia mutirão. Era
com peixe, com bucho, mocotó, fazia feijoada. Todo mundo

47
vinha, comia. Aí almoçavam, iam pra roça pra trabalhar. Aí
vinha, tinha café.” Soltavam foguete para avisar que o fandango
havia começado. “Aí todo mundo se aprontava e ia pro
fandango (...) A gente ia no fandango com o pai, a mãe, a
família. A gente pegava, conversar, namorar, dançar (...)

Nas temporalidades marcadas pelo fandango, o carnaval se faz

muito presente nas memórias fandangueiras. Conhecidos como “ entrudos de

carnaval”, ocorriam nas 4 noites, sendo que nestes dias a viola não parava

de tocar. Para Nemésio Costa da Ilha dos Valadares/PR, “não tinha diversão

melhor fazia um panelão com barreado e ali ficava tocando e dançando, só

parava na quarta-feira, aí sim, ensacava a viola até o fim da quaresma”. Os

pratos consumidos no período do carnaval distinguiam-se dos dias comuns,


até porque deveriam acompanhá-los durante as 4 noites de festa. Os

“barreados”, que poderiam ser preparados com carne de caça ou com a

carne de gado, adquirida no comércio da cidade, eram muito consumidos

nesta ocasião. Preparados em panela de barro devidamente vedada com

farinha de mandioca, a carne que se desmanchava na panela através do seu

cozimento em fogão de lenha, depois era misturada com farinha e banana,


alimentando os foliões ao longo dos 4 dias. Consumia-se também, em

ocasiões de festas maiores, as chamadas feijoadas que eram preparadas a

base de feijão e mocotó, seu Lourenço de Piaçaguera (Paranaguá/Pr) conta

que, “naquele tempo faziam mocotó com essas partes do boi, cabeça e pé de

boi. O pessoal gostava mesmo da carne, os mais velho s diziam “se for peixe

não vou”, demonstrando que em dias especiais o alimento desejado pelo

caiçara, era mesmo a carne.

As recordações dos fandangos na mocidade tem nos carnavais de

48
Soracabinha (Iguape/SP) suas principais lembranças, como descreve

Aparício:

“E carnaval era as quatro noites, todo mundo se apagava,


encostava tudo pro Carnaval. Quatro noite, depois ficava mais
duas noites ainda só descansando a ressaca do carnaval. (...)
Era coisa de louco. Eu fui um dos caras que várias vezes ficava
com o som da viola no ouvido, não podia dormir rapaz! (...) Aqui
(Iguape) não era clube. Era casa de família. Aqui não tinha,
porque não morava quase ninguém. (...) Se juntava duas ou três
famílias e comprava um quarto de boi pra passar o carnaval.
Então, você vê que não tinha geladeira, não tinha nada, então,
aquilo era salgado. Primeira noite a gente comia ela assada em
panela, depois, daí pra frente, era do sal. Colocava em cima do
fogo e comendo. As quatro noites era assim, ninguém fazia
nada, era só dançar e dormir”.

Quando na época da pesca da tainha na Ilha do Mel

(Paranaguá/PR), entre os meses de maio e julho, seus moradores relembram

as receitas que eram preparadas com o pescado. Dona Helena conta que,

“mamãe pegava a tainha, recheava bem, enrolava na folha da bananeira e já

enterrava na areia que tava com fogo, depois desenterrava abria aquilo,

ficava uma delícia”. Na Ilha dos Valadares/PR seu Romão fala com

saudosismo dos doces de mamão, banana e goiaba que se faziam nas

ocasiões de baile, “tempo do beiju de mandipuva”, preparado com a

mandioca que juntamente com a banana, se insere em um sistema culinário

específico do território caiçara.

A bebida podia ser um vinho quente, cachaças curtidas nas mais


diferentes ervas, e o café era costume circular ao longo dos bailes, para

animar os presentes. A cachaça com melado, conhecida como “mãe com a

49
filha” ainda hoje é consumida em bailes de Paranag uá e apreciada pelos

fandangueiros, e a “cataia” não pode faltar em encontros de fandango na

região de Cananéia.

Nestes percurssos, marcados por diferentes temporalidades, épocas


de fartura e interditos, sabores e paladares caiçaras, o fandango se constitui

enquanto agência, por meio dele todo um sistema cultural se produz e

reproduz. Nestas conexões, revelam-se diferentes formas e formatos onde o

fandango acontece e atualiza suas tradições, articulando saberes e modos de

fazer diversos.

2.3 Expressões fandangueiras: sobre marcas e modas

O fandango caiçara possui uma estrutura bastante complexa,

envolvendo diversas formas de execução de instrumentos musicais,

melodias, versos e coreografias. Sua formação instrumental básica

normalmente é composta por dois tocadores de viola, que cantam as

melodias em intervalos de terças, um tocador de rabeca, chamado de

rabequista ou rabequeiro, e um tocador de adufo ou adufe. O violão é usado

em vários grupos e o cavaquinho também é bastante comum no estado de

São Paulo. Também são encontrados outros instrumentos de percussão

como o pandeiro, surdos, tantãs, entre outros. O machete, instrumento de

cordas bastante utilizado no passado para a iniciação musical dos

fandangueiros por ser mais simples e menor que a viola, é bastante raro

atualmente (PIMENTEL, 2010).

Acompanhando a execução das músicas temos também no

fandango um conjunto de danças coreografadas e batidas com tamancos


50
pelos homens (mas acompanhados por mulheres), a presença de danças de

casais bailadas sem coreografia, um universo musical e poético específico,

com o uso de instrumentos como a viola fandangueira (ou viola branca, como

é conhecida em Iguape), com suas diferentes afinações e toques

característicos, acompanhadas pela rabeca e pelo adufo. A esse conjunto é

que nos referimos como "fandango caiçara", e que, embora com significativa

diversificação, encontra uma unidade na região que vai de Iguape e

Cananéia e segue até Guaraqueçaba, Paranaguá e Morretes.

2.3.1 A Viola de Fandango13

A viola, instrumento de cordas dedilhadas largamente difundido

em Portugal desde o século XV e, sobretudo XVI, foi introduzida no Brasil já

no início da colonização, trazida pelos colonos e jesuítas (CORRÊA, 2000).

Em terras brasileiras, praticamente, “manteve a estrutura bás ica do

instrumento português, seguindo o mesmo padrão, com cravelhas de

madeira, cavalete trabalhado, e a trasteira ou regra – madeira onde se fixam

os trastos – no mesmo nível do tampo ou texto sonoro do instrumento”


(IDEM).

A viola de fandango, ou fandangueira, também chamada em

Iguape de viola branca, guarda algumas semelhanças com a viola nordestina,

mas diferencia-se especialmente pelo variado número de cordas – cinco,

seis, sete ou dez cordas – e pela presença comum da turina, cantadeira ou

piriquita, corda mais curta que vai somente até o meio do braço da viola e,

13
Os textos que seguem sobre a instrumentação presente no fandango são de autoria de
PIMENTEL (2010), produzidos por ocasião da exposição Instrumentos Musicais do
Fandango Caiçara, do Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural-
Promoart.
51
como o próprio nome diz, dá o tom da voz do violeiro 14. Em sua grande

maioria, as violas possuem dez casas como as violas caipiras de meia-regra,

mas os fandangueiros não as chamam de casas e, sim, de pontos, que são

feitos com arame. Em geral seu cravelhal possui dez furos, mesmo quando é

utilizado um número menor de cordas. A maior parte dos artesãos prefere

utilizar cravelhas feitas de madeira dura, que são encaixadas no braço da

viola através de furos feitos com ferro quente. Entretanto outros artesãos

utilizam cravelhas de metal, semelhante a dos violões, em função de um

maior rigor na manutenção das afinações. Morretes é a única localidade no

Paraná em que a viola mantém as dez cordas, sendo nove finas e uma um

pouco mais grossa no quinto par, mas não possui a turina.

As violas de fandango são feitas com madeiras da região, podendo

ser “de fôrma” (de aro) ou “cavoucada” (de cocho, escavada). No primeiro

caso, o construtor tira filetes de madeira e os coloca em uma fôrma por

alguns dias para que ela seja moldada e vai, aos poucos, montando o

instrumento, peça a peça. No segundo, o construtor derruba uma árvore de

tamanho suficiente para se fazer uma ou mais violas e, depois, vai esculpindo
corpo e braço em uma peça única, colocando o tampo ou o fundo ao final.

Além da caixeta, outras madeiras mais resistentes, como o cedro e a canela,

podem ser utilizadas especialmente para confeccionar as cravelhas,

sobrebraços, cavaletes e os detalhes do acabamento em machetaria.

Em Iguape e Cananéia os artesãos utilizam uma classificação para os

14
O músico e pesquisador Roberto Corrêa aponta a turina como uma
possível reminiscência da viola beiroa (de cintura mais larga, característica
do leste de Portugal), embora esta apresentasse em seu cravelhal, ao lado
da caixa de ressonância, duas cravelhas ao invés de uma, como as violas do
fandango. (CORRÊA, 2000)
52
diferentes tipos de viola, em função de seu tamanho: viola inteira, meia viola

e viola ¾, sendo as duas últimas mais comuns de serem encontradas

atualmente. O machete, bastante raro atualmente, é também classificado

pela maioria dos artesãos como um tamanho específico de viola. Manoel dos

Santos Cabral, antigo artesão de Morretes (pai de Martinho dos Santos, outro

famoso artesão), que morou muitos anos em Paranaguá até falecer

recentemente com mais de 105 anos, utilizava uma classificação especial

para as violas que construía. A viola de dez cordas (segundo ele a mais

comum no fandango), com três vozes: machete, violão e viola (3/4). A viola

de 14 cordas, com seis ordens ou vozes: viola, violão, machete (assim como

cavaquinho, bandolim e banjo). E a chamada meia viola, com oito cordas e

duas vozes: violão e viola. (REIS, 1985)

Os fandangueiros não possuem uma altura padrão para afinação das

violas, que podem ser três: pelas três, pelo meio e intaivada ou entaivada

(nome que, provavelmente, deriva de oitavada). A afinação em Morretes é

denominada de pelas três e é bastante rara nos demais municípios. A

afinação pelas três é a única no fandango em que, à maneira da viola caipira,


as cordas soltas formam um dos acordes da música. O quinto e o quarto

pares de cordas são sempre tocados soltos. O outro acorde é feito com uma

meia pestana, onde o dedo um (indicador) prende na quinta casa o primeiro,

segundo e terceiro pares de cordas.

A afinação pelo meio é usada na Ilha dos Valadares, em Paranaguá,

enquanto a intaivada é tocada em Paranaguá, Guaraqueçaba, Cananéia e

Iguape. Os intervalos para afinação entre as cordas, nas afinações pelo meio

e intaivada, são semelhantes aos intervalos do violão, porém em oitavas

53
diferentes. A afinação pelas três é semelhante à afinação guitarra da viola

caipira. Usa-se na quase totalidade das modas a tônica (T) e a dominante (D)

para o acompanhamento. Os violeiros usam apenas os quinto, sexto e sétimo

pontos da viola para acompanhar as marcas ou modas, salvo raros

momentos onde o violeiro faz o ponteando a viola.

2.3.2 A Rabeca

A identificação precisa sobre as srcens da rabeca é uma tarefa

bastante complicada. Para muitos autores os instrumentos de cordas

friccionadas foram trazidos para a Europa pelos árabes, que já utilizavam

instrumentos tocados com arco, como o rebab ou rabab, de srcem persa, e o

ar’abebah, utilizado pelas tribos berberes da África do Norte (PACHECO e

ABREU, 2001). Esses instrumentos em geral, “eram confeccionados com

apenas uma ou duas cordas e uma caixa de ressonância em formato de

pêra, recoberta por um couro. Versões mais sofisticadas, chamadas de rabé,

rabel ou rebec, agora já com tampo de madeira e três cordas afinadas em

quintas justas, tornaram-se extremamente populares na baixa Idade Média,


disseminando por toda a Europa a técnica e o som das cordas friccionadas”

(IDEM). O instrumento conhecido hoje como rabeca medieval, srcem da

rabeca portuguesa que migrou para o Brasil, já possuía uma clara

demarcação entre corpo e braço, ao contrário de alguns de seus “ancestrais”.

Entretanto ainda apresentava diferentes formatos, com a caixa de formato

oval, elíptico, retangular ou em forma de “oito”, para facilitar a passag em do

arco (NÓBREGA, 2000). Na Idade Média, os cavaletes ainda eram curvados,

permitindo que o músico sempre tocasse em mais de uma corda

54
simultaneamente (com cordas paralelas). Sua afinação também não era

padronizada, sendo definida pelo próprio músico. O arco, como as rabecas

atuais, era convexo (ao contrário do violino atual, que usa um arco côncavo).

Trazida pelo colonizador português nos primórdios da colonização

(antes mesmo da padronização de formato, de técnicas de construção, modo

de execução e utilização de materiais específicos que geraram o violino), a

rabeca aqui passou por algumas transformações, adaptando-se

regionalmente. Atualmente é um instrumento encontrado em diversas regiões

do país, apresentando variações. O músico e pesquisador José Eduardo

Gramani15, um dos pioneiros no estudo e na utilização da rabeca na música

popular e de concerto, defendia que a rabeca não deveria ser compreendida

como um “violino rústico”, mal acabado, mas como um outro instrumento

(inclusive, anterior ao violino), que se diferenciava dos demais exatamente

em função da ausência de padrões no seu processo de construção, no seu

formato, no tamanho, no número de cordas utilizadas, na afinação e em

inúmeros outros detalhes, o que geraria uma infinidade de possibilidades

sonoras. Cada instrumento então teria uma “personalidade”, uma “voz


própria” (GRAMANI, 2002).

As rabecas utilizadas no fandango, como a viola, também podem ser

feita na fôrma ou cavoucada, utilizando-se vários tipos de madeira diferentes,

como a imbuia e o cedro, embora seu corpo, normalmente, seja

15
Gramani realizou importantíssimas pesquisas e registros com os
fandangueiros Martinho
Pereira (Paranaguá), dosdeSantos
além (Morretes),
criar grupos, ArãoeBarbosa
arranjos (Iguape)
composições e Júlio
utilizando
a rabeca como instrumento central. Suas pesquisas, não publicadas em vida
devido ao seu falecimento precoce, foram posteriormente reunidas e editadas
por sua filha Daniella Gramani, no livro Rabeca, o som inesperado
(GRAMANI, 2002)
55
confeccionado com a caixeta. O instrumento possui três cordas em quase

toda a região, à exceção de Morretes e Iguape, onde é encontrada com

quatro cordas16. A afinação mais usada, da corda mais grossa para a mais

fina, é de uma quarta justa. A rabeca sempre dobra a primeira voz do

cantador violeiro e, nos momentos em que a moda ou marca não está sendo

cantada, faz uma linha melódica própria, tendo um toque - ou ponteado -

específico para cada uma. Segundo os fand angueiros, a rabeca “enfeita o

fandango” e, por não ter “pontos” (trastes) como a viola, é mais difícil de ser

tocada. O dandão e a chamarrita, modas valsadas, possuem vários temas

diferentes para rabeca, e podem ser tocados na mesma moda conforme a

vontade do rabequista. Em São Paulo os toques de rabeca são diferentes

dos toques do Paraná.

2.3.3 O Adufo

No acompanhamento rítmico temos o adufo ou adufe, normalmente

confeccionado com aro de madeira (normalmente a caixeta) e coberto com

couro. Nos intervalos ao redor do aro, como no pandeiro, as platinelas (ou


soalhos), são chamados de “baterias” ou “brincos” e são, normalmente, feitas

com tampinhas de garrafas amassadas. Em Portugal, o adufe é um pandeiro

bimembranofone quadrangular, introduzido pelos árabes na península Ibérica

entre os séculos VIII e XII. É segurado pelos polegares de ambas as mãos e

pelo indicador da mão direita, deixando deste modo os outros dedos livres

para percutir o instrumento. Hoje, encontra-se essencialmente concentrado


16
Em Cananéia - embora continuem utilizando apenas três cordas, tanto para
fandango, quanto para as reiadas e romarias - alguns construtores passaram
a fabricá-las com quatro cravelhas para “agradar aos turistas”.

56
no centro-leste de Portugal, onde é executado exclusivamente por mulheres,

acompanhando o canto sobretudo por ocasião das festas e romarias.

Espécie de ancestral artesanal do pandeiro, onde o couro é deixado

mais frouxo para obtenção de um som mais grave, o adufo era, no passado,

confeccionado com couro de cachorro-do-mangue (mangueiro), veado ou

cutia. Atualmente, com as proibições da caça desses animais, é mais comum

o uso do couro bovino ou bode, embora o adufo venha sendo cada vez mais

substituído pelo pandeiro.

2.3.4 O Tamanco

Os tamancos no fandango são usados exclusivamente pelos homens

nas marcas batidas ou rufadas, e a eles deve-se a fama do fandango como

“baile ruidoso”. Os considerados bons são confeccionados com cepa de

limão ou de laranjeira, pois precisam ser madeiras duras para “dar som”. A

parte de cima é de couro ou restos de pneus. Parceiro inseparável dos

tamancos, os assoalhos de madeira, especialmente para os mais antigos,

deveriam ser resistentes, pois o batedor que quebrava o tamanco ou mesmo


o assoalho, costumava ganhar fama entre seus pares.

Tamanco tem que ser de laranjeira. Porque ele dá som. A


madeira, por exemplo, quando é assim fraca, como
esse...pino... Bateu, a gente fala choco, que dizem, ele não dá
aquele som...E a laranjeira, ela é uma madeira muito forte...bate
ela dá o som...Eu fiz de laranjeira, mandei furar aqui do lado e
pus chumbo! (Seme Balduíno)

O tamanco e seu batido funcionam como um grande instrumento


de percussão, marcando as músicas, caracterizando o fandango presente

neste litoral. Muitos fandangueiros, ao serem indagados sobre as srcens do

57
uso destes tamancos, remetem ao “tempo dos sítios”, quando eram utilizados

tamancos de madeira para descascar o arroz, prática que é conhecida como

fazer gambá17.

A grande maioria dos instrumentos encontrados são de fabricação


artesanal, tendo a caixeta ou caxeta (Tabebuia cassinoides, D.C.) como

madeira mais utilizada, e trazendo fama a alguns dos fabriqueiros (como são

chamados em alguns lugares os fandangueiros que sabem construir

instrumentos). A base harmônica é formada por dois acordes, em relação de

tônica e dominante, por vezes com a presença de um baixo contínuo na

quinta corda, o que serve de sustentação para um sem número de cantigas,

cujos versos podem ser de improviso, ou fazendo usos do repertório de

quadras tradicionais, como é o caso da quadra muito ouvida entre os estados

de São Paulo e Paraná:

A viola é uma das coisas

Que se deve querer bem

A viola também dá

Amores pra quem não tem

17
Segundo PIMENTEL (2010), “Os mesmos instrumentos musicais do fandango são
também utilizados em outras formas de expressão presentes na região, como as
bandeiras ou romarias do divino e as reiadas (como são chamadas as folias de reis),
embora com algumas alterações de afinação (ou “temperamento”) das violas e rabecas.
A caixa deJáfolia
fandango. é muitas avezes
a louvação também éutilizada
São Gonçalo como instrumento
normalmente compreendidadecomo
percussão
parte no
do
fandango, sendo bastante comum ser feita como pagamento de promessa, pelo tempo
bom nos dias de mutirão e fandango. Normalmente fazia-se a homenagem a São
Gonçalo para abrir o fandango, assim como usava-se, especialmente em Paranaguá, a
chamarrita de louvação para a mesma função ”.

58
2.3.5 A dança

Os fandangueiros designam de marcas ou modas os diferentes

ritmos, melodias e coreografias que compõem o repertório do fandango.

Marcas, porque são marcadas ritmicamente através dos batidos com o

tamanco. Modas, quando são somente tocadas para serem dançadas em

pares. Deste modo, é possível dividir as danças em dois grandes grupos: o

fandango batido e o fandango bailado. No fandango batido, temos formas

musicais diversas, “fraseados”, versos e uma infinidade de elementos que

diferenciam estas marcas . Cada marca batida tem sua própria estrutura de
“refrões”, de toques de violas, de rabecas e no próprio batido, além de

possuírem algumas variações, dependendo da região em que são

executadas. As marcas batidas mais conhecidas são: Anu, Andorinha,

Sinsará, Xará, Feliz, Tiraninha, Tonta, Marinheiro, Queromana , entre outras.

O Bailado ou Valsado também pode ser dividido em dois grandes

grupos: chamarrita e o dandão. Segundo Graciliano Zambonim, “ as


chamarritas tem harmonia, toques de violas, frases de rabeca, jeito de cantar,

característico. Chamarrita em si não é uma moda. Ela é uma estrutura, que

tem uma gama de toques de viola, rabeca e jeitos de cantar” (2004:12).

A estrutura do dandão é próxima da chamarrita, porém nele há

modinha (refrão), elemento que não encontramos na chamarrita. Podemos

dizer que existe uma estrutura básica de chamarritas e dandãos, mas dentro

desta base ocorrem também inúmeras variações na viola e rabeca, o que

mostra uma riqueza ímpar no âmbito da musicalidade do fandango. Segundo

59
GRAMANI:

“Os nomes das modas dandão e chamarrita não designam


uma música específica, mas sim uma estrutura musical
específica. Existem muitas chamarritas e muitos dandãos, e
coreograficamente falando, não há diferença entre eles. É na
música que essas formas se diferenciam” (2009, p.47).

Nas modas valsadas não há sapateados somente dançam

valsados em pares mantendo o formato da roda entre os casais pelo salão ou

pelo palco. São chamadas também de bailado, lixado, cheira pescoço ou

limpa-banco, pois nessa hora é possível todos dançarem, haja visto, que não

há nenhuma coreografia prévia a ser executada. Nos bailados é comum

encontrar pares formados por mulheres, o que nos batidos não é permitido.

Fig.1: Representação do Bailado : dança em pares reproduzindo um círculo no salão. Fonte:


“Fandango na Escola”, Associação Mandicuera, 2008.

Em algumas marcas sem batido, os pares também dançam


separados, traçando formas coreográficas como roda, cordões, tranças e

oitos. O passadinho, forma de dançar característica da comunidade da

60
Juréia, em Iguape, é um exemplo de dança trançada. Há ainda modas onde

os dançadores acrescentam às coreografias alguns objetos como lenços

(vilão de lenço) ou vassoura (sapo) (Museu Vivo do Fandango, 2006).

As modas batidas exigem do dançador conhecimento prévio das


coreografias, tal a complexidade e as variações. De um modo geral, são

dançadas em círculo e os homens batem palma e tamanqueiam. Muitas

vezes, em uma roda de batido, um dos homens faz o papel de mestre,

mestre de sala, marcador ou puxador, servindo seu tamanqueado de

referência para os demais batedores (Museu Vivo do Fandango, 2006).

Fig. 2: Gráfico representando o desenho coreográfico do movimento


chamado oito realizado em algumas marcas de fandango. (AZEVEDO,
1978:8).

61
No fandango, quando a dança ocorre em roda, esta sempre gira no sentido

anti-horário, o homem se posiciona atrás da mulher como se a protegesse,

somente os homens batem os tamancos, as mulheres dançam

graciosamente acompanhando o ritmo das marcas. O par não é fixo,

podendo mudar entre uma música e outra, e até mesmo na mesma marca,

seguindo a coreografia. Alguns fandangueiros falam das regras de

comportamento que se fazem presentes entre damas e cavalheiros. Sr.

Salvador Barbosa de Cananéia conta que “se fosse uma moda do batido, se

fosse na roda batendo, e uma moça saísse na sua frente, para dançar,

aquela moça, se ela não quisesse dançar a outra moda com você, outro não
tirava”.

Segue a descrição de algumas marcas mais executadas:

ANU: O Anu é uma marca batida que homenageia um pássaro de cor preta

do mesmo nome. Sua característica principal é a pausa dos tamancos

apenas para a execução das palmas. Nessa dança o som dos tamancos é

constante, e o batedor pode executar arremates e repiques. A coreografia é

em forma de oito.

62
Fig. 3: Oito batido - nesse movimento, homens e mulheres realizam um percurso em forma
de oito. O homem inicia a evolução pelo lado de dentro da roda e com a parceira da frente. a
mulher gira para fora e vai para trás. Fonte: “Fandango na Escola”, Associação Mandicuera,
2008.

XARÁ: O xará também pode ser encontrado com o nome de Sinsará. É uma

marca batida em que os fandangueiros e fandangueiras dançam um bailado

na pausa do tamanqueado, como se realiza mais de um passeado, os pares

trocam de parceiros e dependendo da duração da música e da quantidade de

pares todos dançam com todos.

ANDORINHA: A marca batida andorinha faz referência a esse passarinho de

cores preta e branca. A letra da música conta sobre o abandono de um ninho

em um galho e amora durante a dança e após o passeado, os homens

seguram a mão direita das mulheres no alto de suas cabeças, permitindo que

elas possam girar de um lado para o outro sem que percam o equilíbrio.

63
Fig. 4: Vanzerinho - a mulher se posiciona à frente do homem e levanta as mãos sobre os
ombros; o homem segura as mãos da parceira e juntos balançam de um lado para o outro,
como se estivessem nas ondas do mar. Logo essa posição se inverte, ficando o homem na
frente. Fonte: “Fandango na Escola”, Associação Mandicuera, 2008.

MARINHEIRO: Nessa marca batida se faz uma referência ao homem da

marinha de guerra do Brasil. Na sua coreografia, se faz um movimento

alusivo ao vanzeiro (balanço do mar), em que primeiramente os homens

seguram as mãos das mulheres sobre os ombros, balançando de um lado

para outro. Logo a posição é invertida, ficando o homem a frente e a mulher

atrás.

A musicalidade impressa em marcas e modas integra a memória

de Leonildo Pereira, morador de Guaraqueçaba/PR, fazendo-se presente de

forma variada, conforme a categoria em que se enquadram: batidas ou

valsadas. Versos, melodias e acordes utilizados em marcas batidas, como

narra o violeiro, permanecem de maneira mais nítida na lembrança, como

64
uma espécie de “seleção natural”, que permite que a sonoridade do fandango

não seja esquecida, já que seu repertório extenso aparece como

humanamente impossível de ser decorado e rememorado apenas com os

mecanismos próprios da memória individual.

“Essas modas tudo eu sei. As modas valsadas que eles


deixaram muito hoje, agora, moda batida não se esquece,
não esqueço, sempre fica na cabeça. O camarada pede, a
gente já canta. Agora, as modas que a gente deixou, são as
modas valsados, esses deixaram muito, até eu deixei, porque
caber na cabeça da gente um tanto daqueles não é
brincadeira”.

A prática e a convivência com outros tocadores aparecem assim


como essencial para a manutenção do conhecimento musical, bem como de

suas possibilidades de evolução. Jo Mendonça, violeiro nascido em 1925, no

Varadouro, em Cananéia/SP explica a necessidade destas práticas para que

a memória não os engane.

“ (...) Pra gente não perder o ritmo, precisava que tivesse o


instrumento e que sempre tivesse tocando né? Sempre,
sempre...Mas, pelos anos que faz, até a viola, as músicas
que a gente sabia, também, vai tudo desaparecendo da idéia
da gente. Depois que acabou o fandango, a gente pegava na
viola era lá uma vez pela outra. Depois, eu também deixei,
não comprei mais viola, já não tive mais viola em casa. (...)
Ele (Joaquim Mendonça) tem viola em casa, ele sempre tá
tocando. Aníbal também. Quando ele leva a viola na casa do
Aníbal, chega lá eles tocam bastante. Compadre Faustino
também tem viola, tem rebeca. Eles arranham a rabeca,
muito pouco. Eu ia lá, sempre, alguma vez – faz tempo, anos
– eu ia lá, chegava lá nós se ajuntava, num dia de festa,
tocava viola com o compadre Faustino, cantava...Era meu
companheiro de cantar, ele”.

65
Não há dança sem a música e não há música sem o encontro

entre tocadores. São nos bailes de fandango que o conjunto – música/dança

- se aglutinam, nestes eventos se atualizam as notícias, as relações de

parentesco e a camaradagem e, acima de tudo, se vivencia a construção da

pessoa por meio da dança. Desse modo, para dançar não basta saber os

passos, é preciso conhecer os códigos. Dança de pares, em sua maioria,

dançam homens com mulheres, apesar de ser possível também encontrar

durante os bailados pares formados somente por mulheres, mas nunca o

contrário.

Como nos fandangos de outrora, diferentes prescrições devem ser


consideradas ao participar de um baile. A primeira delas é a de que não se

nega uma dança a ninguém. Maninho, morador da ilha do Mel

(Paranaguá/PR) em sua narrativa, conta sobre seu aprendizado com os mais

velhos:

A vó da Ana (sua esposa) levava elas no fandango.


Elas eram mocinha, mas sempre ficava de olho, as
senhoras cuidavam, eram as “cuidadora” das meninas,
pra poder ir no baile. E se fosse pra ir pro baile, você
tinha que dançar com todo mundo, podia ser o preto, o
branco, o bêbado, o velho e o novo, não podia negar
dança.

A dança ocupa um papel decisivo na inserção social do sujeito nas

comunidades caiçaras. Através dela além de se namorar, casar, criavam-se

laços de solidariedade, como também, formavam-se rivalidades. De acordo

com Sandra (Ilha do Mel/PR):

66
Faziam briga, que faziam aquele toque de fandango.
Sabe por que brigavam? Brigava porque tirava as
meninas. “Ah fui no fandango”. “Tava bom?”. “Tava”.
“Teve briga?”. “Não”. “Então não tava bom”.

Nessa dinâmica da “fabricação do social”, articulando saberes,

ofícios e os “divertimentos”, coloca -se em ação atores e sujeitos que têm o

corpo como lócus de experimento do mundo. Nos fandangos se evidencia de

forma muito clara a análise de Evans-Pritchard, destacando a função social

da dança:

“É até certo ponto importante lembrar que a dança é uma


atividade social desenvolvida por pessoas que têm entre si
um laço de associação e experiência comuns baseadas na
proximidade residencial, e que esse laço é reforçado por
sentimentos de parentesco e por outras forças
socializadoras” ([1928], 2010, p.12).

O corpo, desse modo, “não é tido como suporte de identidades e

papéis sociais, mas sim como instrumento, atividade que articula


significações sociais” (SEEGER, et al, 1979, p. 20). Através desse corpo que

trabalha, mas também festeja, temos a produção de um habitus que se torna

próprio das gentes caiçaras.

2.4. Sobre as artes do aprender e do fazer

Assim como os aspectos musicais e coreográficos, a estrutura

poética do fandango também é diversa e variada. Na maioria das vezes as

67
estrofes são formadas por quatro versos que rimam entre a segunda e quarta

estrofe. A criação dos versos pode estar relacionada a um acervo tradicional

de cantos, como também eles podem ser inventados pelos próprios

cantadores. No fandango a letra não é necessariamente fixa, o que há de fixo

são as modinhas, mas como há mais de uma modinha por marca, os violeiros

podem escolher uma delas ou mesmo inventar outras. Os versos de

fandango são criações dos próprios fandangueiros, que recriam e

transformam estas letras a todo momento. Podemos dizer que nesse

processo de criação ocorre uma espécie de “bricolage”, onde apropriações e

incorporações são realizadas a todo momento. Esta “bricolage” funciona

como se tanto versos e melodias tivessem uma vida à parte e pudessem se

combinar de diferentes formas.

Cada violeiro possui um grande repertório de versos, que

aprendeu ouvindo os velhos mestres tocando. Sobre as diferenças entre

essas referências, o senhor Nemésio Costa, violeiro e rabequista nascido no

Rio do Saibro, em Guaraqueçaba/PR, comenta: “(...) o Anoldo, compadre

Pedro, Zeca, qualquer um desses aí, você abriu a boca já sabe o que vai
cantar. Então se torna bem fácil fazer uma música. Que a música que eu sei,

eles sabem. (...) Eles aqui já é diferente, já pega uma viola diferente”.

Esses versos podem ser cantados em qualquer moda ou marca do

fandango, e, na medida em que vão sendo reproduzidos, também passam

por transformações, pois são trazidos para a realidade de cada violeiro.

Quando um dos cantadores apresenta suas quadras, pode tanto colhê-las no

vasto repertório tradicional compartilhado, ou improvisar de acordo com os

acontecimentos cotidianos. Deste modo, as músicas devem ser entendidas

68
como expressão do momento em que são executadas, já que em outros dias,

novas quadras podem ser colocadas ao longo de valsados e de batidos. A

temática dessas quadras pode tanto se referir à vida cotidiana de trabalho na

lavra e pesca, e histórias de bailes e brigas, quanto a eventos históricos mais

precisos (Museu Vivo do Fandango, 2000).

Entretanto, os versos somente são cantados se forem ouvidos

anteriormente, assim, as letras do fandango sofrem constantemente

variações e diferenciações, porém estas ocorrem dentro de um repertório

anterior. Estes versos compõem um acervo de elementos que estão a dispor

do cantador, acervo este que o fandangueiro recria a todo instante,

manipulando constantemente seus significados de acordo com as nuances

de seu contexto vivido.

Os instrumentos são construídos artesanalmente, sendo

fabricados principalmente a partir da madeira conhecida por caxeta. É do

“mato” que se obtém a madeira necessária para a construção dos

instrumentos e é nele que se aprende a conhecer a diversidade da Mata

Atlântica. Em cada peça da viola ou da rabeca um ou dois tipos de madeira


são recomendados, como descreve o já falecido Seu Martinho do município

de Morretes (PR), que aprendeu a construir instrumentos com seu pai,

Manoel dos Santos Cabral. “Começamos pelo braço da viola, um pedaço de

caroba. Na lateral também é caroba. Na tampa da frente é caxeta, atrás é

vermelha, é cedro, (...) O frontal é canela preta. Cavalete também é canela

preta. (...) As cravelhas é de pinho”. Os conhecimentos sobre a construção -

também calcados na observação dos mais velhos e em experimentações

autodidatas – e da mesma maneira que a realização dos pixirões e bailes de

69
fandango, sofreu impactos com as transformações sócio-ambientais da

região, dificultando o repasse de algumas técnicas.

O aprendizado, feito desde a mais tenra idade, e nem sempre com

a atenção integral de mestres (geralmente representados pela figura

paterna), tem características diferenciadas no fandango, sem o seguimento

de métodos rígidos, indo do aprendizado mais visual, pela observação da

posição dos dedos nas cordas do instrumento, ou de maneira exclusivamente

auditiva, como foi o caso de Joaquim da Glória Mendonça, também violeiro,

nascido em 1951, na Barra do Ararapira, em Superagui/PR.

“Olha, eu aprendi a tocar viola, bem dizer, mais instrução

dos meus pais. Porque é um troço bem difícil de contar,


mas...É fácil. No tempo que meu pai tocava viola, eu era
garoto pequenininho, então ele pegava a viola, sentava-se,
eu ficava do lado dele, os banco balançava. Aí, conforme o
banco balançava, eu também balançava junto com ele, ele
fazia o toque e balançava a viola e eu também balançava
junto com ele. (...) A gente só escutava de ouvido, a gente
ficava do lado dele, mas a gente não olhava no dedo não, só
no ouvido. Quando ele fazia fandango na Barra do Ararapira,

eu era criança, ele fazia fandango na Barra do Ararapira,


então depois que terminava aquele divertimento, o som
ficava no ouvido da gente, ficava uma saudade pra
gente...Então, aquele zunido ficou no ouvido da gente, então
a gente pegou o ritmo do toque do instrumento. Mas não
assim que ele pegasse e me ensinasse só o som”.

José Roberto Rodrigues, rabequeiro, nascido em 1934, na Praia

do Marujá, Ilha do Cardoso/SP, fala sobre o envolvimento de sua família com

o fandango. “Meu pai tocava muito bem viola. Tocava e cantava. Depois dele

que nós peguemos, eu, meu irmão, o Firmino, e esse aqui (Salvador). Na

nossa casa tinha de tudo. Chegava na parede tinha viola, tinha meia viola,

70
tinha cavaquinho, tinha violão, tinha rabeca, tinha bandolim, tinha banjo. Tudo

feito por nós. Nada de comprado não”. José Roberto já chegou a fazer

instrumento, aprendeu com o seu tio Paulo Rodrigues, que, por sua vez,

aprendeu com o tio Tobias. Caxeta e pinho eram as madeiras utilizadas para

fazer o corpo do instrumento, canela para o sobrebraço da viola e brejaúva

para o cavalete da rabeca. A cola era feita de sumbarê, assada debaixo da

cinza. Faziam a corda da viola e o arco da rabeca de linho, crina de cavalo ou

timbopeva. “ (...) A timbopeva é melhor ainda. Timbopeva bem lascadinho,

bem fininho, não precisa nem passar breu. Ela mesma, já tem um breu”,

recorda o violeiro.

Sobre o aprendizado na construção, Agostinho Gomes recorda

suas primeiras experiências. “Foi dali que co mecei a ter a idéia de fazer. Era

uma rebeca muito grande, muito boa, e muito feia também, né? (...) Passou

um mês, já fazia uma nota boa nela já, aí pensei: “Essa aí eu faço”, pensei

pra mim. Derrubei uma madeira lá, tirei o machado nele, foi indo, fiz a rebeca.

Toquei nela e saiu boa também”. Além dos instrumentos, como a rabeca, a

viola e cavaquinho, o artesão nascido em 1929, no Ariri, em Cananéia/PR,

faz diversos tipos de entalhe em madeira, ofício que aprendeu com o pai. “Eu

sei fazer canoinha, faço caiaque, faço prancha, faço passarinho, faço peixe e

golfinho, faço espingardinha, faço papavento...”.

A importância dos construtores, sempre balizados pela idéia de

uma “aprendizagem da experiência” constituída pelas tentativas e pela

observação das práticas dos mestres. “Caiu um fio de cabelo na viola, cega a

viola. (...) Aí arruína a viola, aí a viola não presta mais. (...) A gente criança

71
aprende com os mais velhos as coisas”, como revela a memória do

construtor Davino Aguiar, que alia – de maneira indistinta – conhecimentos de

ordem prática às cosmologias caiçaras. O construtor afirma que pela rabeca

não ter os pontos marcados é mais fácil de fazer, porém mais difícil de tocar

que a viola.

A arte dos construtores é multiplicada na região, apesar disso as

motivações para iniciar a prática do ofício são diversas e marcadas,

principalmente, pela experiência. Nelson Franco e Lino Xavier são outros dois

exemplos de como o ofício era desenvolvido pela observação das formas do

próprio instrumento e que tinham em suas tentativas de reprodução a

conquista de um saber adquirido.

O construtor Nelson Franco, conhecido como Pica Pau, filho de um

marceneiro, conta como foi o aprendizado seu e de seu irmão, Zildo Franco,

construtor afamado também conhecido como Pica-pau.

“Nós aprendemos a fazer viola nós sozinhos. Nós ia ao baile,

aí nós ficava olhando aquelas viola, de Iguape, finado


Januário, finado João Mendonça, finado Servininho, então,
praticava. O negócio é assim: ficava olhando o que eles
faziam, o material...Fizemos o primeiro, não deu certo, aí do
terceiro já foi saindo mais bem feito. Aí nós tamos fazendo
até hoje”.

Nascido em 1944 no Sítio Pinheirinho em Cananéia, Nelson toca

quase todos os instrumentos de cordas caiçaras. Filho de violeiro, Lino

Xavier, que nasceu em Santa Maria, localidade de Cananéia, aprendeu a


dançar fandango com dezessete anos, recorda como se deu seu aprendizado

na construção de instrumentos.

72
“Eu olhei o cavaquinho assim e fiz a forma de cavaquinho.
Só que o machete, ele só tem cinco pontos. O cavaquinho
ele vai de ponta até a boca, e o machete só tem cinco pontos
diferentes. (...) aí fui fazendo, depois fiz o cavaquinho. Depois
fiz a viola. A rabeca foi a última que eu fiz. (...) Todos eles

foram da minha cabeça, invenção minha mesmo”.

Para PIMENTEL (2010) as artesanias caiçaras devem ser pensadas a

partir do sistema sócio-cultural ao qual estão inseridas, para o autor nestes

instrumentos:

“...estão amalgamados diversos saberes, marcadas diversas


geografias: a ibérica, a moura, a dos povos ameríndios.A sua
dita “rusticidade” e “precariedade” pode ser reinterpretada
como uma capacidade de adaptação e criação desses
artesãos na relação com o ambiente. Precários porque os
artesãos utilizam soluções próprias de construção, constroem
e adaptam ferramentas? Rústicos porque utilizam madeiras e
demais matérias primas que encontram nesses ambientes, e
porque não possuem acabamento industrial? Suas
artesanias expressam outras racionalidades. Cada artesão
herda e produz conhecimentos e, deles, brotam instrumentos
não padronizados, com sonoridades próprias, distintas. E
nisso reside sua riqueza. Essa diversidade não pode ser
reproduzida e imitada por nenhum equipamento ou
tecnologia, mesmo que se reproduzam e copiem fielmente
seus sons.

2.5 Variações de um mesmo tema: espacialidades fandangueiras

2.5.1. O Fandango no Paraná

Apesar de ser pouco praticado na atualidade, salvo por pequenas

ações isoladas, o fandango em Morretes foi uma manifestação muito forte e


73
diferenciada, uma vez que encontramos uma afinação e toques de viola

totalmente diferentes de todos os demais municípios, com uma maneira

singular de cantar improvisando versos, o que fica bem claro, no trabalho de

Martinho dos Santos, afamado violeiro e construtor, falecido em 2011. Em

termos rítmicos, no entanto, as chamarritas, dandãos e o próprio Anu

lembram os mesmos ritmos dos municípios próximos de Paranaguá e

Guaraqueçaba.

A viola de Morretes é a única no Paraná que mantém as 10 cordas

em 5 pares, possuindo 9 cordas finas, de diferentes calibragens, sendo uma

delas em forma de bordão um pouco mais grosso no 5º par. Também não

possui a turina ou cantadeira, que aparece desde o litoral até a fronteira com

São Paulo.

A afinação em Morretes é denominada de pelas três, tendo sido

encontrada apenas no município, a exceção de Fausto Pires de Barra do

Ararapira, que aprendeu com o pai. Curiosamente, os outros irmãos de

Fausto (Antonio e Dirceu Pires, e Antonio Asseção) tocam na afinação

intaivada. A afinação pelas três é a única no fandango em que, à maneira da


viola caipira, as cordas soltas formam um dos acordes da música. O 5º e o

4º pares de cordas são sempre tocados soltos e o outro acorde é feito com

uma ½ pestana onde o dedo 1 (indicador) prende na 5ª casa o 1º, 2º e 3º

pares de cordas. Por vezes, o violeiro ponteia o 2º e o 3º par de cordas

podendo chegar até a 10ª casa. De todo o modo, como demonstra o encontro

dos irmão Fausto e Dirceu, em Barra de Ararapira, é possível às duas

afinações serem tocadas juntas.

Paranaguá sempre teve seu estilo próprio de fandango e grandes

74
tocadores como Manequinho da Viola, que foi um dos mais afamados

tocadores de viola de fandango da região. Manequinho era nascido no Rio da

Vila, Município de Paranaguá, e há três gerações os seus ali já moravam,

sendo que seu pai também era violeiro, construía violas e lhe ensinou a tocar.

Hoje, devido às migrações vindas do entorno de Guaraqueçaba para a

cidade e a Ilha dos Valadares, a maioria dos músicos registrados toca em

afinação intaivada, em especial os membros da família Pereira. Encontramos,

no entanto, fandangueiros que tocam em pelo meio, que não por acaso é

chamada e alguns lugares em que se pratica intaivada, como afinação

paranaense. É o caso de Mestre Eugênio, uma dos mais respeitados

fandangueiros locais, que, durante a década de 1990 até início de 2000,

mantinha ao lado de sua residência uma “Casa de Fandango” onde promovia

bailes aos sábados.

Por ser um centro maior em termos de desenvolvimento e oferta

de trabalho, muito em função do porto, Paranaguá atraiu pessoas de todos os

sítios e municípios vizinhos. Essa convergência de pessoas de vários lugares

resultou numa diversidade de estilos e jeitos diferentes de se dançar e, até,


tocar fandango. Mestre Eugênio, que faleceu em 2011, chegou muito jovem à

cidade em busca de melhoria de vida e emprego. Este é também o caso de

Pedro Pereira, da família Pereira, que vem de Guaraqueçaba e tocava

rabeca no grupo do Mestre Romão junto com músicos como seu primo

Anísio, Brasílio dos Santos e o Waldemar Cordeiro, tocadores de viola, e

Valdomiro Miranda, adufeiro. Brasílio toca viola na afinação intaivada

enquanto Waldemar, que faz a primeira voz, na afinação pelo meio.

Se em São Paulo temos a formação de grupos musicais como

75
uma característica do fandango local, no Paraná encontramos a formação de

grupos mais amplos, congregando músicos e sapateadores. O grupo de

Mestre Romão é o mais antigo em atividade, e tem desde os anos 1990 o

apoio da prefeitura de Paranaguá. Reúne músicos experientes e jovens

dançarinos. Por ele já passaram algumas gerações de crianças que com ele

aprenderam a dançar.

O grupo Pés de Ouro é de formação recente, apesar de reunir

músicos e batedores experientes, alguns egressos de grupo que fora

organizado por Mestre Eugênio. Nemésio Costa e Jerônimo dos Santos são

seus violeiros, tocando em afinações intaivada e pelo meio respectivamente.

Jerônimo, aliás, é um caso raro no fandango pois aprendeu a tocar viola faz

pouco tempo, já depois de ter completado 60 anos. Antes só dançava com os

tamancos, mas por falta de violeiro no grupo, começou a tocar e é um dos

únicos violeiros canhotos. Nemésio ainda canta com com seu irmão Anoldo.

Há ainda um grupo de jovens músicos e dançadores na ilha dos

Valadares, que juntos compõem a Associação Mandicuéra de Cultura

Popular. Atualmente como Ponto de Cultura desenvolvem inúmeros projetos


em sua sede, além de se tornar um espaço que congrega diferentes

expressões da cultura caiçara, como o boi de mamão e a bandeira do divino.

Destes novos músicos, destaca-se Aorélio Domingues por seu toque de

rabeca e sua construção de instrumentos. Um de seus ensinadores foi

mestre Gabriel, conhecido rabequeiro e, até 2007, membro de bandeira do

Divino da Ilha dos Valadares.

Próximo à Paranaguá, em baía ao norte do grande porto,

Guaraqueçaba pode ser considerado como um dos berços do fandango

76
paranaense, onde este se manifestou até bem pouco tempo fortemente em

vários sítios e localidades como Tagaçaba, Serra Negra, Rio Verde, Rio dos

Patos, Superagüi, Vila Fátima e Ararapira. No entanto, a localização

geográfica e a grande dificuldade de se chegar à Guaraqueçaba por terra ou

por mar, levou ao isolamento econômico do lugar. Isso fez com que as

pessoas fossem abandonando seus sítios de srcem em busca de

oportunidades melhores, rumando principalmente para Paranaguá, mas

também para São Paulo.

Devido a esse êxodo, muitos lugares como Tagaçaba e Serra

Negra já não contam com tocadores. Na vila do Superagüi, é representado

por músicos como os irmãos Esquenine, Pedro Miranda e Odair Siqueira,

este último atualmente vivendo na Ilha da Cotinga, ao lado da dos Valadares.

Além disso, vez por outra realizam-se bailes no bar Akdov reunindo antigos

batedores e boa parte da população da Vila.

No próprio centro de Guaraqueçaba, já são poucos os músicos e

dançadores, com exceção de Nilo Pereira e Vicente França, que saíram de

Rio dos Patos há mais de 10 anos para morar na cidade. Da família Pereira,
destacamos na geração atual a Heraldo, filho de Anísio Pereira, também

violeiro e construtor de instrumentos como o pai.

Rio dos Patos é um dos últimos locais onde o fandango aconteceu

de forma baile de mutirão, prática atualmente muito rara, vinculado ao

trabalho de limpeza, plantação ou colheita de lavoura ou à festa de Nossa Srª

do Carmo, padroeira do lugar.

Foi o reduto da família Pereira, que reuniu 2 dezenas de músicos e

construtores de violas, rabecas e adufes chegando, em sua época áurea, a

77
ter mais de 40 famílias morando no centro da localidade e com várias famílias

morando ao longo do caminho que liga o lugar a Baía dos Pinheiros, a leste

da Baía de Guaraqueçaba. Com o passar do tempo, fatores como a falta de

escolas, assistência médica e capacidade de escoamento do excedente da

produção agrícola levaram ao esvaziamento do local. Na década de 1980,

com a criação da reserva ambiental, seus moradores viram-se proibidos de

desenvolver seus usos tradicionais do ambiente, como a caça e a lavra e a

retirada de árvores para construção de canoas, instrumentos e artesanato em

geral, o que terminou por esvaziar o lugar .

Hoje, apenas a família de Leonildo e de Julino Pereira (já falecido)

moram na beira-mar, próximo a foz do rio dos Patos, mas trabalham no

centro, na cidade de Guaraqueçaba. Apesar de sua desagregação, a família

Pereira é, atualmente, a principal expressão do fandango paranaense por

contar com vários mestres tocadores e construtores de instrumentos, com

idades entre 20 e 80 anos, e por estar espalhada desde o município de

Cananéia, em São Paulo, até Paranaguá, no Paraná.

Finalmente, devemos ainda assinalar o fandango tocado em outras


duas localidades da Ilha do Superagüi: Vila Fátima e Barra do Ararapira. De

Vila Fátima, destacava-se Faustino Mendonça, já falecido, e Joaquim

Mendonça e Aníbal Araújo. Em Barra do Ararapira, cujo fandango está em

momento de efervescência, destacamos a dupla Antonio e João Pires e os

músicos que os acompanham.

Diante dessa grande lista de músicos e dançadores apresentados

entre os estados de São Paulo e Paraná, fica evidente a vitalidade do gênero,

que através das novas gerações de praticantes, vai se adaptando à

78
contemporaneidade, inserindo-se em novos contextos de apresentação para

além dos contextos regionais, e chegando a centros cosmopolitas como São

Paulo e Rio de Janeiro.

2.5.2. O Fandango em São Paulo


Quando se adentra o estado de São Paulo, vindo do Paraná,

chega-se à região conhecida como Ariri, no extremo sul do litoral paulista,

município de Cananéia. Nela, encontra-se um fandango pouco diferente do

paranaense. O êxodo populacional ocorrido a partir do início do século XX

desde Guaraqueçaba, no Paraná, tanto se deu no sentido de Paranaguá, em

particular na Ilha dos Valadares, quanto no de São Paulo, em direção à Ilha


do Cardoso, passando por lugares como o Ariri e Ararapira.

Em Marujá, pequena vila localizada ao sul da Ilha do Cardoso,

próximo ao Ariri, já se começa a perceber algumas diferenças em relação ao

fandango paranaense, principalmente nos finais das cantigas que já

apresentam características do fandango de Cananéia em termos melódicos e

também no modo de digitação dos acordes da viola, como é o caso da família

Neves, grupo recém-formado, em sua maioria por jovens, com exceção de

Antônio das Neves, antigo fandangueiro do lugar.

Em Itacuruçá, norte da Ilha do Cardoso, encontramos o grupo

Jovens Fandangueiros de Itacuruçá, mais um grupo formado, sobretudo, por

jovens. Nele, Vadico, um de seus líderes, é criador de modas, dado que

diferencia os fandangos de São Paulo e do Paraná. O grupo também

interpreta modas de Armando Teixeira, afamado compositor de Cananéia.


Neste grupo aparece uma particularidade do fandango paulista, no canto a

duas vozes, em que ao final de algumas frases a 2ª voz se sobrepõe à 1ª,

79
como o tipe (voz bem aguda ao final de frases) encontrado nas Folias de

Reis e do Divino da região.

Já na cidade de Cananéia, cidade histórica e estratégica na

ocupação do litoral sul brasileiro, temos 3 grupos importantes de fandango: o

Caiçara de Cananéia, que tem como líder Alatiberte Pereira, mais conhecido

como “Beto Galã”, violeiro e cantador, e que apresenta músicas tradicionais e

composições de Armando Teixeira e de Paulinho Pereira, da localidade de

São Paulo Bagre. Não apresenta o tipe nos finais de frase, ralentando ao final

da cantiga como é comum entre os grupos do lugar. Na percussão, surdo e

pandeiro.

O grupo Caiçaras do Acaraú, tem como líder o rabequeiro (ou

rabequista) Ângelo Ramos, único músico que toca e canta a primeira voz no

conjunto. O grupo toca modas suas e temas tradicionais do fandango.

Apresenta uma das formações mais extensas encontradas, com o violão

como instrumento de base junto com as violas, e o uso de surdo e triângulo

como percussão. Dentre os músicos antigos conhecidos do Acaraú, destaca-

se ainda Valdier Martins, o “Gico”.


O grupo Violas de Ouro de São Paulo Bagre é o mais antigo do

município de Cananéia. Por ele já passaram diversos músicos. Tem como

líder atual e primeira voz o violeiro Paulinho Pereira. O grupo toca modas de

Paulinho, além de temas tradicionais. Todos participam também da folia do

divino do lugar. Foi o único conjunto em que se encontrou o bandolim

dividindo com as rabecas o lugar de solista, com afinação seguindo a lógica

das rabecas. Na percussão, encontramos o bumbo e o pandeiro.

Ainda em Cananéia, destacam-se outros dois músicos: Armando

80
Teixeira, violeiro e compositor de modas, muitas delas interpretadas pelos

grupos do lugar; e Agostinho Gomes, além de músico, exímio construtor de

rabecas e artista plástico que trabalha com pedaços de troncos encontrados

na natureza.

Para fora da cidade de Cananéia, na estrada que a liga por terra

ao Ariri, passa-se pela Comunidade Quilombola Mandira. Nela, pratica-se um

tipo de fandango um pouco diferente do encontrado em seu entorno, desde a

Ilha do Cardoso, no caso um gênero específico encontrado no lugar chamado

de puxadinho. Ainda em Cananéia, no caminho para Iguape, em pequeno

sítio, encontramos com Nelson Franco “Pica -Pau”, um dos mais conhecidos

músicos de todo o fandango do município, rabequeiro, violeiro e exímio

construtor de instrumentos.

Em Iguape, todos os sábados, é possível dançar fandango no

Clube Sandália de Prata, estabelecimento administrado por Dona Maria das

Neves e animado por grupo de músicos batizado com o mesmo nome do

lugar. Parte do cobrado para entrada no baile é revertida para o pagamento

dos músicos. A grande maioria destes reside no Bairro do Rocio. As violas em


Iguape, conhecidas como “viola branca”, não possuem a turina (corda mais

curta que chega somente até o meio do braço e que serve como baixo

continuo nas violas paranaenses). Apresenta 5 pares de cordas. Dos locais

visitados, é o único em que as rabecas possuem 4 cordas, como o violino, e

em alguns locais é usado o violão para fazer ponteados nas cordas graves, o

que passará a ser uma constante até Barra do Ribeira.

Em Barra do Ribeira, ao norte de Iguape, o grupo da Associação

dos Jovens da Juréia toca e dança modas que não haviam sido encontradas

81
no Paraná e em São Paulo, como o Engenho e o Sirindi. Bem próximo, em

Vila Nova e Icapara, encontramos Walter e Florêncio, dois construtores de

rabeca e viola branca que também tocam os instrumentos. Por fim, no

caminho da Estação Ecológica da Juréia, no Prelado, temos Zé Marinheiro e

filhos.

No limite norte da Juréia, encontramos a Cachoeira do Guilherme,

local fundado por pequena comunidade religiosa nos anos 1930, é um dos

poucos lugares em São Paulo onde se consegue reunir batedores para os

fandangos, em especial na festa para o Arcanjo São Miguel. Estes bailes são

organizados pela família do violeiro Pradel Martins, momentos onde o

fandango ganha contornos rituais específicos, demonstrando propriamente

seus contornos entre o sagrado e o profano.

82
CAPÍTULO 3: O FANDANGO NA CONTEMPORANEIDADE: DINÂMICAS E

DESAFIOS DA SALVAGUARDA

83
3.1. Territorialidades e sociabilidades fandangueiras: sobre jovens,

mestres e a formação de grupos

Desde o final do século XIX toda essa região litorânea passou por

um processo de crise econômica, o que causou certo isolamento das


comunidades caiçaras em relação aos grandes centros econômicos da

região. A partir dos anos 1950, os caiçaras foram vítimas de um processo por

vezes violento de expropriação de suas terras, afetando profundamente seu

modo de vida. Habitando uma faixa da Mata Atlântica bastante conservada,

justamente pelas atividades tradicionais que desenvolvem, foram

presenciando seus territórios serem transformados em áreas protegidas, cuja

legislação proibiu os cultivos de subsistência, a caça e o extrativismo vegetal,

tornando os caiçaras estrangeiros em suas próprias terras (DIEGUES, 2004).

O violeiro Umberto Soares, nascido em Serra Negra

(Guaraqueçaba/PR) em 1940, afirma que uma das razões do declínio do

fandango foi o esvaziamento dos diversos núcleos comunitários do município,

já que muitos moradores venderam suas terras por preços baixos para tentar
a vida nos centros comerciais da região.

“Os novos já foram pegando emprego, se empregando, mas


tinha muita gente que sofreu com isso. Agora ainda ficou
mais difícil por causa das mudanças de governo... De leis
ambientais. Quem tem área é que pode trabalhar nela ainda,
quem não tem área é difícil. Porque a maior parte de gente
que tinha sua área de terra, não tinha documentação, era só
posse. (...) Às vezes a pessoa diz que não pode plantar
porque o IBAMA não deixa, o IAP (Instituto Ambiental do
Paraná) não deixa, não sei quem não deixa. Aí às vezes se
diz, não é assim “não deixa”, se você tem uma área, terra

84
que pode trabalhar...(...) Então o povo vive abandonado, vive
sozinho”.

As transformações, apontadas neste depoimento, repetem-se em

diversas localidades, tanto no litoral paranaense, quanto no paulista, onde é

possível perceber os reflexos das transformações sócio-ambientais e

econômicas no fandango. A redução da prática dos mutirões, das atividades

agrícolas, da pesca, extrativismo vegetal, significou mudanças também na

sociabilidade destas comunidades, em seu lazer e em suas esferas de

solidariedade. Os mutirões e fandangos de Serra Negra/PR, segundo o seu

Umberto, era freqüentado por pessoas das comunidades próximas, como

Ipanema e Tagaçaba, “quando eles iam só no fandango, tinha que levar


alguma coisa pra dar pro dono da casa pra pagar a noitada do dia que não

trabalhava. Ou, então, se não levasse nada também era proibida a entrada ”.

Como narra o violeiro, com a chegada do rádio e da televisão, a prática do

fandango teve sua importância reduzida nas comunidades da região. “Aí que

o pessoal foi mudando de ritmo. (...) Nó tocava nos bailes em Guaraqueçaba,

não era mais fandango, era mais os bailes”.

As mudanças são sentidas também pelos mais jovens, como

Heraldo Pereira, que aos 28 anos é reconhecido como grande construtor e

tocador.

“(...) Era totalmente diferente lá no sítio. O fandango lá não


tinha tanta coisa, não tinha tanta modernização. Aqui não, o
pessoal faz mais, tem um espaço para tocar. Eu acho que o
fandango vai para frente, não vai parar agora, com tanto
pessoal assim incentivando o fandango, o pessoal vai se
interessando, a turma nova vai se interessando. Daí nunca

85
vai acabar, nunca vai morrer essa cultura, não pode”.

Apesar disso, em muitas comunidades resistiram e ainda

predominam um linguajar particular, religiosidades, danças e musicalidade

própria desta região. Dentro deste processo de resistência, nos últimos anos

tem aumentado o número de monografias, livros e artigos sobre o fandango e

a cultura caiçara. Iniciativas como o Museu Vivo do Fandango, projeto de

mapeamento e divulgação desenvolvido pela Associação Cultural Caburé,

juntamente com o Encontro de Fandango e Cultura Caiçara, demonstram

uma nova vitalidade e difusão desta cultura.

Um fato novo é que os caiçaras começaram a falar sobre eles


mesmos, em um fenômeno de apropriação de suas identidades, em vários

lugares reapareceram grupos de fandango, bandeiras do divino, festas de

reis. Os caiçaras também começaram a se reunir em congressos e

encontros, promovidos por Ong's e institutos de pesquisa, como o Núcleo de

Apoio à Pesquisa Sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras

(Nupaub/USP) e o Centro de Estudos Caiçaras (Cec/USP).

O “tempo antigo” ainda permanece como referência, não apenas

em relação ao tempo tranqüilo onde era possível plantar roças, e onde a

sociabilidade dos sítios possibilitava a realização quase que permanente de

mutirões e bailes de fandango, mas também a esse tempo que mostrava-se

fértil para a formação de novos violeiros. “Porque naquele tempo todo mundo

gostava de aprender e hoje em dia ninguém gosta de aprender. (...) Deve ser

um erro deles, porque a coisa que a gente aprende é muito bom para a

gente. Serve para a gente, saber uma coisa que o camarada nunca viu. Eles

86
agora é que estão vendo o fandango aí. Essa rapaziada aí ”, reclama Antônio

Leotério, nascido na Barra do Ararapira, em 1919. As dificuldades e

especificidades no aprendizado de cada instrumento também colocam em

perspectiva o maior ou menor número de tocadores ou aprendizes. “A rebeca

é o instrumento que ninguém ensina outro. Não sei, não tem ponto ”, é o que

afirma Antônio Asseção Martins, violeiro e rabequista, nascido em 1934,

também em Barra do Ararapira, que aponta as romarias do Divino como sua

grande escola.

Em muitas localidades o espaço do aprendizado e repasse de

conhecimentos relacionados ao fandango está vinculado junto aos grupos.

Institucionalizados em sua maioria, os grupos de fandango além de serem

responsáveis pela divulgação do fandango através de apresentações

programadas, também são espaço de formação de jovens fandangueiros,

tornam-se espaços onde a sociabilidade fandangueira se atualiza resistindo

aos novos tempos.

As articulações em torno do fandango atualmente apresentam um


cenário fértil, como é possível perceber na quantidade de jovens participantes

e atividades promovidas pelo Grupo e pela Associação Jovens da Juréia, que

partem da ideia da promoção de uma continuidade das expressões culturais

caiçaras, mesmo em um contexto desfavorável. “Então, a ideia de criar uma

associação pra que ficasse um grupo junto, pra que tenha uma apresentação

de fandango, pra que tenha artesanato, pra gente poder estar mais junto. Se

não tivesse essa ideia, a gente não podia estar tudo junto... O grupo foi

formado em 1988 e Associação cinco anos depois, em 1993 ”. Segundo

87
Dauro Marcos do Prado, um de seus integrantes, a associação surgiu para

dar continuidade à cultura e aos conhecimentos desenvolvidos ao longo de

anos e proporcionados por uma intensa relação entre os caiçaras e a

natureza. É por este motivo que uma das principais reivindicações da

Associação é a mudança da legislação que rege a Estação Ecológica da

Juréia.

“Hoje, ela (a Associação) faz muito a questão do trabalho de


movimento, de reuniões na comunidade, de participar de
reuniões junto com o pessoal do governo. Hoje ela tá muito
na questão de mudança da categoria da unidade de
conservação, que a gente quer, na área de uso e cultivo
dessas comunidades, que seja uma reserva de
desenvolvimento sustentável. (...) Então dentro dessa
unidade de conservação, você pode novamente fazer a
pesca, fazer a agricultura, fazer o ecoturismo, fazer o manejo
da caxeta e do palmito, e de outros recursos naturais
renováveis que tenha lá, e manter a comunidade lá. (...)
Mantendo a comunidade, vai ter o mutirão, vai ter a dança,
que o fandango, isso tá tudo interligado, uma coisa com a
outra”.

Demonstrando a força dos novos fandangueiros, Cleiton e

Anderson do Prado Carneiro trazem renovações nas formas de construir os

instrumentos, inserindo o uso de ferramentas como a plaina e o tico-tico.

“A gente tira a madeira, o pranchão já tá quase na largura e


na espessura, passa na plaina, porque até aí não é o
trabalho tão artesanal. A gente usa a marcenaria pra ficar
mais fácil o manuseio dela, da madeira. Aí depois a gente
risca o aro, que ele é um pouco mais estreito, risca por
dentro e por fora, corta no tico-tico, e depois leva pra casa
pra dar uma lixada, pra dar uma acertada nela. A gente até
inventou um rolinho pra colocar uma lixadeira ao invés da

88
fita, um rolinho com lixa.”

Juntamente com esta nova visibilidade do fandango, cresceu

também a prática de registro de sua diversidade musical que teve início há

alguns anos e aparece como incentivo à retomada e continuidade da prática

tocadores e da realização de bailes o que, muitas vezes, acaba, servindo

como estímulo para novos aprendizes, como narra Antônio dos Santos Pires,

nascido em 1941 na Barra do Ararapira.

“Antigamente era só fandango que havia aqui, baile, a gente


não tinha por aqui, não. Se criemos no fandango, ia naquele
mutirão de cavação de roça, ficava a noite inteira sentado

num canto vendo a turma dançar, porque eu não dançava,


mas aí fazer o que? Ficava olhando pra menina bonita lá. Fui
levando a vida assim”.

Antônio conta que frequentou muitos fandangos na Ilha do

Cardoso, em Cananéia, em especial em Pontal do Leste. Com a chegada dos

aparelhos de som à ilha, os fandangos foram trocados pelos discos.

“Aqui foi até começar esse baile de som, de CD. Aí a turma


deixou de fandango, iam tudo pra baile, até acabei com viola,
esqueci das moda tudo que sabia do fandango. Fiquei uns
quatro anos, por aí, sem tocar viola. Acabei com viola (...) E
agora estamos começando de novo aí. Porque tão formando
grupo de fandango aí, tão aí, chamaram nós, puseram nome
no grupo de Ilha das Peças, e nós estamos indo, pra ver se
botamos isso pra frente aí.

Genir Pires é o único fandangueiro que ainda toca na Ilha das

Peças, mas já comemora o início de uma retomada do interesse pelo


fandango na ilha, em parte gerada pela procura dos turistas. “(...) Tô bem

animado com os meus violeiros aí, com os meus colegas. Hoje tá mais

89
animado, com certeza. Tem gente bem interessada pelo fandango. Os

turistas ajudam mesmo, de vez em quando dão um dinheirinho pra cooperar”.

Atualmente, temos ainda a criação de circuitos específicos onde o

fandango circula, impulsionado por um renovado interesse urbano em


assuntos de cultura popular, sendo apropriado por músicos de diferentes

estilos, o fandango passa a fazer parte destas criações artísticas. Muitos

fandangueiros são convidados a participar de eventos em outras cidades

onde oferecem oficinas de batido de tamanco e dos instrumentos musicais,

viola e rabeca. Nestas ocasiões temos a participação de músicos

profissionais, estudantes e demais interessados na cultura tradicional caiçara.

É comum também a saída dos grupos de fandango para apresentações em

diferentes contextos, como feiras, festivais, congressos, entre outros. Deste

modo, o fandango ganha uma nova visibilidade e possibilidade de fomento,

da mesma forma que seus praticantes vão atribuindo novos significados a

esta manifestação.

A organização dos fandangueiros, registrados em associações ou


grupos, mostra como eles têm se articulado em torno das ações

governamentais e até mesmo de um mercado criado em volta destas

expressões, incluindo aí a necessidade, em muitos casos, de mediadores

que represente o grupo, como pôde ser observado tanto no Grupo Pés de

Ouro quanto na Associação de Fandangueiros de Valadares Mestre Brasílio.

A prática do fandango passa por uma mudança significativa. Sua


realização não diz mais respeito apenas às comunidades que o executam,

mas deve responder às expectativas de grupos mais amplos, interessados

90
em divulgar e veicular o fandango em diferentes circuitos. Dentro deste

contexto de atuação e negociação, com ações envolvendo políticas públicas,

se especializam nestes papéis novos agentes mediadores capazes de

transitar entre estes diferentes contextos. O fandango passa definitivamente

a ser enquadrado na categoria de “bem cultural”, se fazendo presente em

orçamentos e planilhas de projetos governamentais e de associações civis,

incorporando neste processo relações que transitam entre a “dádiva” e a

“mercadoria”.

Acompanhado o processo contemporâneo de globalização que

influencia as culturas locais, o fandango, a partir da década de 1990, passa a

se inserir em um mercado cultural que cada vez mais se especializa na

difusão das manifestações tidas como “tradicionais -populares”. Assim, a

vitalidade do fandango desafia as projeções dos folcloristas que

preocupavam-se com o desaparecimento desta manifestação.

3.2. Os caminhos para uma salvaguarda do fandango

O processo de salvaguarda do fandango já se encontra em


andamento desde pelo menos a década de 1960, quando as próprias

comunidades começaram a criar estratégias de continuidade do bem frente

ao progressivo declínio da importância econômica dos mutirões e às

restrições de acesso aos recursos naturais. A atuação de mediadores, como

folcloristas, gestores, pesquisadores, poder público e associações também

tem sido relevante para o registro da memória e o fomento do fandango na

região18.

18
Gostaríamos de salientar a necessidade de revisão de alguns procedimentos

91
Sendo o fandango uma prática social já enraizada e repleta de

significados torna-se uma referência cultural para as comunidades que os

executam. Através do fandango se revelam e se atualizam formas, valores,

ritos e crenças, tornando-se o registro um importante instrumento de

reconhecimento e sustentabilidade para essa prática, que entre tantas

dificuldades a que mais se acentua refere-se às legislações ambientais de

ordem restritiva. Para PIMENTEL (2010)

“Com o avanço da especulação imobiliária e a


transformação de grandes áreas da região em unidades de
conservação ambiental de proteção integral, inúmeras
comunidades tradicionais foram obrigadas a migrar para as
periferias urbanas de seus municípios ou de municípios
vizinhos, desarticulando importantes núcleos organizadores
de fandangos.

Na realização da reunião com as comunidades fandangueiras,

para se discutir o processo de instrução para o registro do fandango como

patrimônio imaterial, realizada em agosto de 2010 em Cananéia, aproveitou-

se o momento para discutir a questão da salvaguarda. A ideia era termos um


“pré-plano de salvaguarda”. A proposta metodológica aplicada para esta

ocasião envolveu a divisão do grupo primeiramente por localidade para

discussão de demandas locais relacionadas ao fandango. Em um segundo

momento, o grupo se redividiu em grupos mais heterogêneos para discussão

considerados atualmente imprescindíveis ao processo de registro de um bem, em especial o


preenchimento das no
Acreditamos que, fichas doespecífico
caso INRC e a produção de documentários
do fandango audiovisuais
caiçara, a produção específicos.
destes produtos
acrescentou pouco em relação à documentação já levantada e editada. Com isso, o
processo de instrução acabou por tomar um longo tempo, o que de alguma forma retardou o
envolvimento da comunidade com a etapa central do processo que são as discussões sobre
novos processos de salvaguarda a partir do registro.

92
de demandas gerais. Cada grupo apresentou em cada fase de duas a três

propostas prioritárias. Estas propostas foram afixadas em uma parede, sendo

organizadas e debatidas coletivamente. Algumas propostas locais foram

realocadas como gerais, de acordo com as discussões do grupo.

Partimos, portanto, destas propostas com suas redações srcinais,

destacando que algumas ainda poderão ser fundidas se houver repetição de

demandas, porém é importante ressaltar o envolvimento e a clareza dos

fandangueiros em relação as suas demandas e ações necessárias para se

avançar.

***

TEMA 1: ENSINO / APRENDIZAGEM

Propostas gerais:

- Ter apoio das prefeituras para a realização de oficinas de fandango para as

crianças e inclusão do ensino da cultura caiçara nos currículos escolares.

- Colocar o aprendizado do fandango no currículo escolar – (oficinas para

tocar a fabricar instrumentos, oficinas de composição, etc).

- Desenvolver parceria com as secretarias municipais de educação para que

o fandango esteja presente nas escolas – a partir de oficinas com mestres,

capacitação de professores, visitas das escolas às comunidades

fandangueiras – promovendo a transmissão dos saberes.

Propostas locais:

- Morretes: viabilizar espaço para ensaios de grupos e bailes; e promover


oficinas de toque e construção de instrumentos.

- Guaraqueçaba: obter apoio da Prefeitura, com recursos para construir uma

93
casa para bailes do fandango e dar aulas para crianças, além de viabilizar

transporte das pessoas entre o centro e as vilas.

- Cananéia: restaurar um prédio antigo do casario histórico do patrimônio de

Cananéia para a organização da Casa do Fandango (local para oficinas de

rabeca, casa de farinha e reuniões); promover de bailes de fandango

regulares no Ariri, melhorando a Casa do Fandango (Família Alves);

divulgação do fandango para os jovens incentivando-os a aprender;

valorização local.

TEMA 2: APOIO / AJUTÓRIO

Propostas gerais:

- Destinar por meio de projeto de lei de parte da verba de cultura das

Prefeituras para o fandango.

- Criar Conselhos de Cultura para fiscalização. Porque não há?

- Destinar também verbas do governo federal para o fandango (culturas

tradicionais – SCC?).

Propostas locais:

- Morretes: criar Ponto de Cultura do Fandango – espaço.


- Cananéia: obter verba de manutenção para os grupos de fandango

(prefeituras) e para manutenção dos espaços; concretizar o projeto da Casa

do Fandango Caiçara no Marujá (verba para o material de construção, casa

de madeira coberta com palha); e gerar renda a juventude.

- Iguape: obter recursos para manter o salão do Sandália de Prata, realizar

viagens e fazer roupas para o grupo.

TEMA 3: ENCONTRO, TROCA, REDE E MUTIRÃO

Proposta geral

94
- Facilitar e promover o intercâmbio entre os fandangueiros, possibilitando o

trânsito e a troca de experiências.

- Obter apoio do poder público (promoção de encontros semestrais para

discutir ações e organização de bailes). A prefeitura de cada localidade deve

assumir a realização dessas ações a cada ano.

TEMA 4: PESQUISA / MEMÓRIA

Propostas gerais:

- Realizar pesquisas e incentivar a continuidade e o resgate do fandango em

outras comunidades, localidades e municípios ainda não reconhecidos.

- Realizar encontros das comunidades caiçaras para troca de experiências e

intercâmbio cultural.

- Mapear as comunidades tradicionais aonde acontece o fandango para dar

visibilidade aos grupos e iniciativas.

- Organizar vivências, imersões de jovens aprendizes junto a mestres e

comunidades fandangueiras, realizando “caravana de aprendizes” a estes

locais, compartilhando do cotidiano destas comunidades. Incluir registro

audiovisual de todo o processo. Fazer do aprendiz um multiplicador em seus


locais.

TEMA 5: IMPORTÂNCIA E CONDIÇÕES DE CONTINUIDADE

Propostas gerais:

- Reconhecer e registrar o fandango caiçara como patrimônio brasileiro, além

de outras referências culturais e religiosas da região.

- Criar mecanismos de manutenção e de sustentabilidade do território

caiçara, garantindo a reprodução de suas práticas culturais.

- Criar mecanismos de acesso ao território e, principalmente, de acesso à

95
matéria-prima.

- Propor que as entidades de proteção ambiental permitam que os nativos

permaneçam no local e tenham sua subsistência.

- Legalizar o território caiçara para garantir a permanência legal com a

melhoria da qualidade de vida (permissão de mutirão, confecção de canoa e

de instrumentos, manejo caixeta, etc). Articulação interministerial -

Procuradoria Geral da República, MMA, MDA, MinC, etc.

- Licença para retirar a matéria prima necessária para a construção de

instrumentos.

- Construção de um viveiro de mudas em cada município.

Propostas locais:

- Iguape: reconhecimento do território caiçara dentro da Estação Ecológica da

Juréia para que a comunidade local possa usufruir do seu território, para sua

própria subsistência de modo sustentável, elaborando um registro junto aos

órgãos de proteção ambiental.

- Cananéia: enfatizar o turismo rural (base comunitária); incentivar a

agricultura familiar e licenciamento das roças (plantação de rama), casa de


farinha, gastronomia local, mutirão, fandango.

TEMA 6: DIVULGAÇÃO

Propostas gerais:

- Ampliar informações sobre fandango e o acesso da rede de parceiros ao

sítio virtual do Museu Vivo do Fandango. Envolver jovens da atualização e

dinamização do portal do Museu.

- Criar um jornal trimestral do fandango com informações dos grupos, eventos

a serem realizados e memórias do fandango.

96
- Divulgação em sites de Secretarias de Turismo e Cultura dos grupos de

fandango e fandangueiros.

- Fomentar grandes eventos nas cidades que valorizem a cultura caiçara.

Propostas locais:

- Guaraqueçaba: incentivar a realização de Fandangos em Superagüi,

através do fornecimento de uma estrutura (tablados, tamancos, instrumentos)

e de viabilizar a vinda de fandangueiros convidados; esclarecer os turistas

sobre a importância do fandango.

***

97

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