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Entrevista de Sergio Faraco

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ENTREVISTA A MARCO VASQUES

in VASQUES, Marco. Diálogos com a literatura brasileira


Florianópolis: Editora da UFSC; Editora Movimento, 2007. v2

No livro Rondas de escárnio e loucura, dois contos são profundamente


marcados por uma crítica ao modelo social vigente: “Pessoas de bem” e
“Na era do silício”. Você acredita na possibilidade de fugirmos deste
modelo de sociedade? E qual a contribuição da arte para que se possa
recuperar a singeleza da vida?

A insensibilidade, o egoísmo, o arrivismo, são marcas de nosso tempo. Na


vigência do socialismo oriental, sonhava-se com o humanismo comunista
e com um futuro luminoso para o homem. Quando o socialismo
naufragou, após ter-se mostrado uma pífia arca de Noé, impôs-se o dilúvio
capitalista e, claro, o velho imperialismo, que continua afogando as nações
pobres com o nome eufêmico de globalização. Nesses países, quando as
forças ditas progressistas assumem o poder, logo se corrompem,
enveredando pelos piores vícios do socialismo soviético, como o
stalinismo. Não há alternativas. Se antes a opção era entre socialismo e
barbárie, agora não há mais socialismo. A arte não pode fazer nada e
acaba sendo apenas um lamento dos inconformados. E de qual arte
falamos? Da literatura, passatempo de meia dúzia de gatos-pingados? Da
pintura, apanágio de quem tem dinheiro para valorizar suas paredes? Do
cinema, que para cada filme sério produz centenas privilegiando a
violência? Arte, hoje, é a televisão, é a fúria da publicidade, que não são
feitas para recuperar os melhores valores humanos, antes o contrário.

Se não há alternativas, o que nos resta? Estamos condenados a assistir a


nossas próprias atrocidades?

E não é o que vemos diariamente nos jornais? A vida já não vale nada. A
perversidade humana, fruto da desesperança, da descrença, da
subordinação da dignidade a interesses deletérios, já não tem limites. Para
que convalescêssemos dessa doença, seria preciso que acreditássemos
num remédio. Mas esse remédio não existe.

Lágrimas na chuva narra sua ida para a Rússia e sua participação no


Partido Comunista Brasileiro. A experiência, como está explícita no livro,
foi traumática, pois você se deparou com um mundo onde a liberdade e a
individualidade foram tolhidas. Por outro lado, temos personagens como
Jaime, Nina e Lara, que são ternos e encantadores. Fale um pouco sobre
essa experiência.

No momento em que me desencantava com o socialismo e não sabia no


que acreditar – ainda não me animava a, simplesmente, desacreditar –,
aquelas criaturas me deram uma demonstração de solidariedade humana
e da capacidade de amar, mas não nos esqueçamos de que foram
episódios singulares, interpessoais, meras exceções, das quais você
mesmo poderá dar exemplos. A regra universal é bem distinta.

Em Dançar tango em Porto Alegre, encontramos contos com uma


linguagem mais universalizada, isto é, sem o uso de termos regionais, e
também contos que fazem uso de termos locais do Rio Grande do Sul. Por
que a escolha de trabalhar com as duas linguagens em um único volume?

Em Noite de matar um homem, de 1986, publiquei contos que se passam


na fronteira em que o Rio Grande do Sul se encontra com a Argentina e
com o Uruguai. Os personagens falam como é típico da região. Na maior
parte dos contos, a narrativa é na primeira pessoa, e o narrador,
necessariamente, usa o mesmo vocabulário. Em Doce paraíso, de 1987, o
editor reuniu contos de livros anteriores em que os personagens são
adolescentes em suas primeiras experiências de vida, uma edição que se
destinava aos leitores juvenis. No mesmo ano, publiquei A dama do Bar
Nevada. E em 1991, Majestic Hotel, ambos de relatos urbanos. Dançar
tango em Porto Alegre, de 1998, não é um livro que eu tenha escrito com
múltiplas linguagens. É uma antologia que organizei, a pedido do editor,
para sua coleção de bolso, e foi estruturada de acordo com as vertentes
citadas: os contos fronteiriços, os juvenis e os urbanos. É a mesma
disposição do volume Contos completos, que a L&PM lançou em 1995.

Quando e como você decidiu que seria um escritor? Algum autor o


influenciou dessa decisão?

Quando eu era pequeno, minha mãe costumava ler em voz alta um livro
de antigas histórias, chamado Pérolas esparsas. Um dos capítulos versava
sobre o naufrágio do Titanic. Eu ouvia com encantamento e depois
imaginava histórias parecidas. Na adolescência, meu pai me internou num
colégio de irmãos maristas, em Porto Alegre, onde eu precisava acordar
diariamente às seis da manhã para ouvir missa, confessar e comungar.
Sentia uma saudade mortal dos amigos, da família, de minha casa, de
minha cidade, sobretudo de minha liberdade, e sublimava esse
sentimento escrevendo cartas intermináveis. Já percebera que escrever
era a única coisa que sabia fazer mais ou menos bem. Em 1962 fui
trabalhar em Blumenau. Ali fiz amizade com alguns moços que escreviam,
entre eles Roberto Gomes, que hoje mora em Curitiba, e percebi que
podia dar um sentido à minha imaginação e ao meu amor pelas palavras.

Foi nesse período que, em Blumenau, você conheceu Francisco José


Pereira, que o indicou para viajar à Rússia. Essa história você já contou em
Lágrimas na chuva. Mesmo assim, gostaria que falasse algo sobre o clima
daquela época.

Eu tinha 22 anos e era Chefe de Secretaria do órgão de primeira instância


da Justiça do Trabalho em Blumenau. Francisco fazia advocacia
trabalhista, defendendo a classe operária. Era uma pessoa encantadora, e
nos tornamos amigos, como até hoje. Militante comunista desde a
juventude, convidou-me para entrar no Partido. Naquela época – governo
de João Goulart – havia grande agitação política em Blumenau, um reduto
de empresários conservadores. As diferenças ideológicas eram acirradas,
radicais. Quando ele me ofereceu o curso, aceitei. Muita gente pensa que,
com o convite, ele me prejudicou, considerando-se o que houve na Rússia.
Não é assim. Imagine o que teria acontecido se eu estivesse em
Blumenau, em 31 de março de 1964. De resto, meus problemas em
Moscou não eram previsíveis. Sou muito grato a esse velho e querido
amigo, devo-lhe a mais rica experiência da minha vida.

Em entrevista concedida a Paulo Bentancur, em 2000, você disse que


parara de escrever porque acreditava que não estava fazendo o melhor. O
silêncio permanece?

A matéria referia-se a uma outra entrevista, de 1995, quando publiquei os


Contos completos. Entendi que não devia mais escrever quando notei, no
início daquela década, que meus contos estavam perdendo o já escasso
vigor que possuíam. Não abandonei a literatura, meu desencontro era
com a ficção. Depois dos Contos completos, fiz algumas tentativas, como
os contos “Madrugada” e “Saloon”, mas o fato é que, não superando as
dificuldades, fui perdendo o interesse pelo conto. Se eu viver, digamos,
mais 20 anos, é possível que ainda escreva e publique dois ou três contos,
mas tem de ser uma história que me arrebate até o insuportável.
Sentar à mesa para escrever ainda lhe dá tédio, sono, náusea, como você
declarou naquela entrevista mais antiga?

Esse fastio pela ficção era tão profundo que, à mesa, sentia tonturas e
ânsia de vômito. Era uma espécie de fobia, mas relacionada apenas com o
conto. Os enjôos pouco a pouco foram desaparecendo, tanto que, nos
últimos quatro ou cinco anos, com muito esforço, pude escrever aqueles
contos que citei e mais um ou dois. Isto não quer dizer que tenha a
intenção de me devotar novamente ao gênero, como o fazia nos anos 70 e
80. Ainda que tentasse, não conseguiria trazer para o conto o melhor de
mim, porque esse melhor, aparentemente, já se esgotou. Ou talvez eu já
não saiba encontrá-lo.

O exercício da tradução o ajuda, de alguma forma, a superar a idéia de


que você não consegue mais recuperar o seu melhor? Fale um pouco
sobre o encontro com os personagens alheios.

A tradução é um bom exercício para quem escreve, sobretudo para quem


está começando a escrever. Você é obrigado a reconstituir no seu idioma
aquilo que o autor constituiu no dele, e isso exige que saiba domar o seu
fraseado, nem sempre com o vocabulário equivalente. Às vezes é preciso
trair para ser fiel. No entanto, se a tradução dota o tradutor/escritor de
maior capacidade de manobra, da qual há de valer-se em suas próprias
obras, a excessiva dedicação às obras alheias pode fazer com que perca
alguns traços de seu rosto. Eu traduzi uns 30 livros. É possível que daí
tenha derivado uma parte de meus problemas com a ficção.

O que mais o incomoda no meio literário?

Minha experiência no convívio com outros escritores é tão boa quanto


pequena: tenho maior intimidade – de trocar visitas, de almoçar com as
respectivas famílias – com um grupo muito reduzido. Vejo com mais
freqüência Luiz Antonio de Assis Brasil, e de literatura é o que menos
falamos. Então quase nada sei do chamado meio literário, e como moro
longe do centro e dificilmente compareço a eventos dessa área, nunca o
conhecerei bastante.

O que você diria a um jovem candidato a escritor?


Quase nada. Não existe fórmula literária mágica, cada um tem de
descobrir seu caminho, que nunca é igual ao dos colegas. E descobrir
sozinho, a ajuda pode desviá-lo da rota traçada pelas singularidades de
seu talento. Oficina literária só se o professor for alguém capaz de
valorizar essas singularidades, que por certo diferem das suas. Já que
tenho de dizer alguma coisa, diria ao jovem erscritor que trate de publicar
o que escreve em jornais, em revistas ou mesmo na Internet. A
publicação, na medida em que proporciona uma visão compartilhada do
que escreveu, torna mais agudo o seu senso crítico.

Embora saiba que você não escreve mais contos com a regularidade dos
anos 70 e 80, gostaria de saber como surge um conto seu e quando você
percebe que ele está finalizado.

As idéias podem surgir de uma emoção, de uma experiência pessoal ou


alheia, de um fato que chega ao meu conhecimento, de algo que penso e
logo descubro que pode se transformar num bom relato, enfim, de muitos
e distintos modos. E não é tão difícil perceber quando o conto está
finalizado, ao menos no meu caso. Eu o trabalho demoradamente, às
vezes durante anos, e o considero pronto quando, no meu entendimento,
ele reproduz tão bem quanto possível, dentro da minha circunstância, o
sentimento que me levou a escrevê-lo. Mas é um processo laborioso este
de converter uma expressão sentimental em expressão literária. Nos anos
70 – minha filha maior era um bebê de colo –, escrevi um conto que não
me satisfez. Quando o aprontei, ela estava fazendo sua residência médica.

Você publica crônicas quinzenais no jornal Zero Hora. Pretende publicar


mais livros de crônicas?

Continuo escrevendo porque é o que sei fazer, mas já não me entusiasmo


com a idéia de publicar livros – a literatura, nesse formato, parece
interessar a um público cada vez menor e, portanto, tem hoje uma
importância quase nula na vida social. Refiro-me à regra. Há livros lidos ou
ao menos comprados por milhões de pessoas, mas são exceções e
geralmente obras de baixa qualidade, como esse O código Da Vinci, que
está na moda e é uma interminável sucessão de disparates. Eu não
tomaria a iniciativa de publicar mais um livro de crônicas ou de qualquer
outro gênero. Neste ano, sai a segunda edição dos Contos completos, mas
sai porque o editor assim o quis, não a reivindiquei. Se o editor pede,
cedo. Se não pede, calo-me, e posso garantir que, nesse particular, vivo
em sossego comigo mesmo.

A crítica alcunha sua obra como uma das mais importantes do país. No
entanto, até nos meios literários você parece não ser muito lido. Por quê?

Trato de fazer o que posso, mas se o que posso não é o bastante, aí está
um conflito que foge à minha alçada. Há certas circunstâncias, sei bem,
que embargam o curso de meus livros: não vou a congressos, dificilmente
dou entrevistas, não participo do tal meio literário, vivo mais ou menos
isolado etc. São prejuízos de somenos. A questão cardeal é que aquilo que
sei fazer parece combinar com o gosto de um pequeno número de
pessoas, quase uma seita secreta. Não me incomodo. Não posso nem
quero ser diferente do que sou, escrevendo de outro modo. E para mim
tanto faz ser muito ou pouco lido, mesmo porque esse muito se perderia
no vazio, como a maioria dos livros que se publicam. Quando lamento o
diminuto papel social que tem hoje a literatura, estou refletindo sobre os
livros em geral, e não sobre os meus em particular.

Existem autores que dizem não estar preocupados com o leitor, mas,
afinal, não escrevemos para atingir leitores?

A pergunta alude a situações distintas. Quando escrevo, minha idéia fixa é


empregar todos os recursos de que disponho. Por que deveria pensar no
leitor ou mesmo nos críticos? Se sou o dentista e você o paciente, acaso
devo me perguntar como fazer meu trabalho para que seja de seu agrado?
A outra situação é a do texto pronto, se o escritor deve se preocupar com
seus efeitos junto ao leitor ou à crítica. Continuo achando que não. Quem
deve estar atento a essas referências é o editor, que vende livros, não eu,
que não fiz nem mais nem menos do que pude. No exemplo odontológico,
se você vem me dizer que não gostou daquilo que fiz com todo o cuidado
e valendo-me de tudo o que aprendi, nada posso fazer senão aconselhar:
“Meu filho, procure outro dentista”.

Mas o fato de você dar o máximo de si e usar todos os seus recursos já


não demonstra uma preocupação com o leitor?

Preocupando ou não o escritor, o leitor é um componente necessário do


papel que desempenha ou deveria desempenhar a literatura na vida
social, mas é um componente de seus efeitos, não de sua causa, ele não
integra o processo da criação literária. O escritor não pode escrever
pensando no nível cultural, na inteligência ou na sensibilidade de quem vai
ler. Seu compromisso é só com a literatura, e ele escreve para um leitor
ideal que no fundo é ele mesmo. Acaso Joyce pensava no calibre
intelectual de seus leitores? O escritor, nos limites de seu talento criador e
de seu domínio da palavra escrita, traduz aquilo que sentiu para esse
leitor ideal. Nessa tradução, a presença do leitor concreto é uma
excrescência.

Por que esse desinteresse em escrever e publicar? Você acredita mesmo,


como disse em outra resposta, ter exaurido o seu melhor? Você não sente
necessidade de dizer algo mais?

Eu não disse que perdi o interesse por escrever. Continuo escrevendo,


tenho de publicar minhas crônicas em Zero Hora, mantenho a
correspondência em dia e, de quando em quando, escrevo pequenos
ensaios, como já os fiz sobre Shakespeare, Tiradentes e certas passagens
da história grega. Escrever é que dá sentido à minha vida, ainda que
escrevesse e guardasse na gaveta. Publicar em livro é outra história. Um
livro precisa se justificar, ter uma ambição de permanência. E ainda que se
justifique, já não acredito, como tenho dito, que os livros sejam tão
importantes na vida das pessoas. E, como também já disse, a época de
meus melhores contos passou. Não é uma pose. Não pense que não tento.
Mas se a ficção já não me empolga como antes, como eu conseguiria
explorar com êxito os recursos que me restam?

Como você se sente sendo nomeado um dos melhores escritores do país,


quando hoje no Rio Grande do Sul existem mais de dez ótimos escritores?

Quando perguntam ao Assis Brasil qual, na sua opinião, é o melhor


escritor brasileiro, ele responde com outra pergunta: “Os escritores,
acaso, estamos disputando um páreo?” Cada escritor tem qualidades que
lhe são próprias, e cada leitor suas preferências. Tanto os críticos como os
leitores, a longo prazo, às vezes se enganam, vendo eternidade no que é
efêmero, e vice-versa. No início do século XX, Coelho Neto e Humberto de
Campos eram os grandes nomes da literatura brasileira, e hoje ninguém se
lembra deles – um esquecimento que pode ou não ser injusto. Se eu
morrer amanhã, quem garante que, depois de amanhã, alguém se
lembrará do que escrevi ou mesmo de que existi? É possível e até provável
que o grande contista brasileiro da atualidade seja um autor do qual,
agora, poucas pessoas ouvem falar. O que quero dizer é que o juízo
contemporâneo tem um valor muito relativo.

O que fazer com a proliferação da subliteratura engendrada nos milhares


de academias e federações Brasil afora?

Nada a fazer. Devemos, ao contrário, garantir que todas as pessoas


possam expressar seus anseios literários. Podemos e talvez tenhamos a
obrigação de fazer nossos juízos, mas quem decide sobre a vigência ou
não de uma obra literária não somos nós, são os que vêm depois de nós.

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