Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Manual Professor Livro

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 119

Manual

do
Professor

Manual do Professor 401


Caros colegas professores,
Vocês têm em mãos o Manual do Professor da obra Filosofia e filosofias: existência e sentidos,
composto no intuito de colaborar com seu trabalho junto aos estudantes do Ensino Médio.
Quando aceitei o desafio de escrever um livro didático, perguntei-me em que eu poderia ser
útil e qual seria minha proposta específica.
Confesso que meu receio foi grande diante da imensa responsabilidade de uma tarefa como
essa. No entanto, senti-me encorajado a ir adiante porque, refletindo sobre minha experiência no
Ensino Médio e na universidade, bem como sobre minhas pesquisas acadêmicas, vi que talvez
eu tivesse condições de oferecer aos estudantes e aos colegas professores elementos que permitem
articular História da Filosofia e tratamento temático-conceitual de um modo não muito comum.
Por exemplo, do ponto de vista histórico, a abordagem não linear (em termos cronológicos)
permite recuperar a atualidade de filosofias distantes de nós no tempo e mesmo visualizar pos-
síveis “diálogos” entre elas. Permite também superar certos clichês consagrados por historiogra-
fias hoje discutíveis e que, no entanto, ainda condicionam muitas das interpretações sobre os
autores “passados”.
Estratégias como essas me levaram a propor caminhos formativos que, partindo de situações
cotidianas, convidam os estudantes à reflexão ou ao aprofundamento da consciência de si. Não se
trata de encarar os estudantes como seres “sem consciência” ou que precisam ser “conscientizados”.
Todo o nosso trabalho educativo parte sempre de bases já existentes. Aliás, o papel dos professores
de Filosofia é marcado por uma saudável ambiguidade: embora tenhamos nossas preferências fi-
losóficas e mesmo certas visões de mundo, não podemos ceder ao desejo de impô-las aos estudan-
tes. Nossa atividade se inscreve numa tensão positiva entre aquilo que pensamos e a apresentação
de filosofias diversas, sem diminuir a autonomia dos estudantes e evitando o risco de afastá-los da
reflexão filosófica (se a Filosofia for apresentada como simples “conscientização”, corre-se o risco
de ela ser percebida como algo autoritário e ideológico). Antes, trata-se de, sem abrir mão de nossas
convicções, pôr os estudantes em contato com diferentes filosofias, permitindo que eles aprofundem
seu caráter de sujeitos do próprio processo formativo na companhia do que fizeram tantas filósofas
e tantos filósofos. Com essa perspectiva, defendo um profundo respeito pelo cotidiano dos estudan-
tes como ponto de partida para o trabalho do pensamento, sobretudo em temas delicados, como
a experiência política e estética, das quais nossos estudantes sentem-se muitas vezes excluídos, ou
mesmo a experiência religiosa, tão presente na sociedade brasileira, mas também tão marcada por
posições muitas vezes obscurantistas.
A meu ver, a chave para uma atitude formadora em Filosofia está na busca refletida de desen-
volver em nós mesmos e em nossos estudantes o hábito da Filosofia, por meio do esforço cuidadoso
de sempre justificar nossas posições filosóficas e nossas visões de mundo, bem como da tentativa de
compreender sincera e honestamente o pensamento e a ação dos outros. Foi nesse espírito que me
senti motivado a escrever este livro. Espero que ele colabore com o trabalho dos colegas docentes
e ofereça dados significativos para o fortalecimento da atividade de reflexão em nossos estudantes.
Neste Manual do Professor, os colegas encontrarão as minhas próprias justificativas filosófico-
pedagógicas, bem como uma série de elementos que visam auxiliar o trabalho da docência: indica-
tivos de respostas aos exercícios do Livro do Aluno, propostas de esquemas visuais que sintetizam
os dados estruturantes dos capítulos, atividades e leituras complementares e de aprofundamento,
além de sugestões bibliográficas.
Convido-os a acessar o site deste livro (www.autenticaeditora.com.br/filosofia-e- Acesse:

filosofias) e a participar dos nossos fóruns de discussão. Que uma amizade intelectual
nasça e cresça entre nós!
O autor

403
UNIDADE 2

Temas tratados
Sumário

Pressupostos Teórico-Metodológicos 407


Filosofia e filosofias 407
filosoficamente
Atos filosóficos e hábito da Filosofia 408
História da Filosofia 410
1. O sentido da existência 436
Objetivo 436
História, temas, problemas e conceitos 411
Considerações metodológicas 436
Apenas uma História da Filosofia “ocidental”? 413
Proposta de esquema visual 436
Organização e possíveis usos deste livro 414 Respostas aos exercícios 436
Proposta de atividade complementar 438
Considerações sobre avaliação em Filosofia 416
Leitura de aprofundamento
Interdisciplinaridade 418 e problematização filosófica 438
Sugestões bibliográficas 419 Sugestões bibliográficas 439

2. A felicidade 439
Objetivo 439
Considerações metodológicas 439
Respostas aos exercícios 439
Proposta de esquema visual 440
UNIDADE 1 Esquema didático da natureza
da alma segundo Aristóteles 440
Portas para a Filosofia Proposta de atividade complementar 441
Sugestões bibliográficas 444

1. Desconstruir para compreender 421 3. A amizade 444


Objetivo 421 Objetivo 444
Considerações metodológicas 421 Considerações metodológicas 444
Proposta de esquema visual 421 Proposta de esquema visual 445
Respostas aos exercícios 421 Respostas aos exercícios 445
Propostas de atividades complementares 422 Leitura complementar 446
Sugestões bibliográficas 424 Propostas de atividades complementares 447
Sugestões bibliográficas 447
2. Reconstruir para
compreender ainda melhor 425 4. Sexualidade e força vital 448
Objetivo 425 Objetivo 448
Considerações metodológicas 425 Considerações metodológicas 448
Proposta de esquema visual 425 Proposta de esquema visual 448
Respostas aos exercícios 425 Respostas aos exercícios 449
Proposta de atividade complementar 425 Dados científicos complementares 451
Sugestões bibliográficas 426 Textos de aprofundamento 451
Sugestões bibliográficas 452
3. O que é Filosofia? 426
Objetivo 426 5. Desejo e amor 452
Considerações metodológicas 426 Objetivo 452
Proposta de esquema visual 427 Considerações metodológicas 452
Respostas aos exercícios 427 Proposta de esquema visual 453
Proposta de atividade complementar 428 Indicações metodológicas específicas 453
Sugestões bibliográficas 428 Respostas aos exercícios 454
Leituras complementares
4. Filosofias e modos de convencer 428 (Texto e análise crítica) 456
Objetivo 428 Sugestões bibliográficas 458
Considerações metodológicas 428
Proposta de esquema visual 429 6. Do amor de amigo ao
Respostas aos exercícios 429 amor sagrado 458
Proposta de atividade complementar 434 Objetivo 458
Leituras de aprofundamento 434 Considerações metodológicas 458
Sugestões bibliográficas 435 Proposta de esquema visual 459
Observações metodológicas específicas 459 13. A experiência religiosa 494
Respostas aos exercícios 462 Objetivo 494
Textos de aprofundamento 464 Considerações metodológicas 494
Sugestões bibliográficas 465 Observação metodológica específica 494
Proposta de esquema visual 495
7. Do amor cortês ao amor hoje 466 Respostas aos exercícios 495
Objetivo 466 Proposta de atividade complementar 498
Considerações metodológicas 466 Sugestões bibliográficas 501
Proposta de esquema visual 466
Respostas aos exercícios 467
Textos complementares 469 14. O conhecimento 501
Sugestões bibliográficas 470 Objetivo 501
Considerações metodológicas 501
8. Sociedade, indivíduo e liberdade 470 Proposta de esquema visual 502
Objetivo 470 Respostas aos exercícios 502
Considerações metodológicas 470 Proposta de atividade complementar 506
Proposta de esquema visual 471 Textos complementares e de aprofundamento 506
Respostas aos exercícios 471 Sugestões bibliográficas 507
Projeto interdisciplinar 473
Textos de aprofundamento 474
Sugestões bibliográficas 474

9. Natureza, Cultura e pessoa 475


Objetivo 475 UNIDADE 3
Considerações metodológicas 475
Observação metodológica específica
Proposta de esquema visual
475
476
A Filosofia e sua história
Respostas aos exercícios 476
Projeto Interdisciplinar 478 Chaves de leitura para o estudo de
Proposta de atividade complementar 479 História da Filosofia 508
Textos complementares e de aprofundamento 480 Sugestões bibliográficas 510
Sugestões bibliográficas 482

10. Política e Poder 482


Objetivo 482
Considerações metodológicas 482 Bibliografia consultada e recomendada
Proposta de esquema visual 482 no manual do professor 511
Respostas aos exercícios 483
Texto complementar 484
Sugestões bibliográficas 485

11. A prática ética 485


Objetivo 485
Considerações metodológicas 485
Proposta de esquema visual 486
Respostas aos exercícios 486
Proposta de atividade complementar 488
Sugestões bibliográficas 488

12. Experiência estética


e experiência artística 489
Objetivo 489
Considerações metodológicas 489
Proposta de esquema visual 489
Respostas aos exercícios 490
Leitura complementar 492
Sugestões bibliográficas 493
PRESSUPOSTOS
TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Procurando sintetizar a proposta didático-pedagógica tal como aqui entendidos, sem deixar de considerar se essa
deste livro, é possível descrevê-la como um conjunto de posição pressupõe ou não alguma ideia de sujeito ou de
caminhos formativos que articulam História da Filosofia, subjetividade. A isso me dedicarei adiante.
temas, problemas e conceitos, permitindo que os estudan- Cabe também lembrar que a concepção de Filosofia
tes encontrem, em diversas filosofias, elementos que lhes que estrutura este livro nasce de alguém que encara o pa-
possibilitem, a um só tempo, refletir sobre sua própria ex- trimônio filosófico “de frente para trás”, indo do contexto
periência e conhecer de modo seguro elaborações filosó- contemporâneo rumo à Antiguidade. Por isso mesmo, é
ficas no sentido mais próximo possível ao que elas tiveram possível pensar que, se pudessem, inúmeros pensadores
para os próprios filósofos. Em outras palavras, trata-se de antigos e medievais se voltariam contra tal concepção,
permitir que diferentes filosofias “toquem” os estudantes uma vez que a Filosofia, para tais autores, possuía uma
e os convidem a pensar sobre sua entrada consciente na identidade com contornos mais definidos (basta lembrar
existência, mas sem cair em uma instrumentalização das a longa tradição1 platônico-aristotélica e medieval dos
filosofias, e sim respeitando o caráter “técnico” do traba- debates em torno da distinção e da classificação das ciên-
lho filosófico. cias2). Provavelmente alguns modernos e contemporâneos
O livro é, assim, marcado por forte caráter existencial e também discordariam de sua aproximação de autores
por um cuidado bastante refletido em relação à prática de “pré-críticos”, como se costuma dizer (ainda que outros
uma História da Filosofia atualizada e sólida. certamente apreciariam a associação). No entanto, não se
trata de permanecer nesse nível de preocupação, pois ele
Filosofia e filosofias se refere justamente às especificidades das filosofias. Antes,
Opera-se neste livro com a distinção entre uma atitude trata-se de – considerando as necessidades e possibilidades
filosófica geral e as diferentes formas assumidas por essa de jovens estudantes que se aproximam do patrimônio
atitude no trabalho de filósofas e filósofos ao longo do filosófico – encontrar um modo de apresentar a multipli-
tempo. Essa distinção permite falar em Filosofia como o cidade de perspectivas filosóficas sem dar a impressão de
“pensamento do pensamento” e em filosofias, no plural, que elas não têm relação alguma entre si.
como uma constelação de formas filosóficas que encarnam A relação que este livro pretende identificar entre as
a atitude geral de pensar sobre o pensamento. filosofias pode ser concebida em torno de dois aspectos:
Entende-se aqui por atitude filosófica geral ou por “pen- considerar como tecnicamente filosófico o universo que
samento do pensamento” o trabalho de investigação dos a comunidade acadêmica costuma reconhecer como tal
sentidos que se revelam ou que são construídos nas mais (na sequência será abordado o tema das filosofias “não
diversas áreas da experiência humana e que são expres- ocidentais”); e enfatizar como tipicamente filosófica a ati-
sos publicamente para referir essa experiência. Trata-se vidade de justificar as expressões que o pensamento elabo-
de uma concepção bastante ampla (assim como é amplo ra para designar as diferentes experiências humanas, em
o uso do termo sentido, aqui), visando não propriamente uma atitude inclusive de “teste” da posição de eventuais
oferecer uma definição única de Filosofia, mas assumir a interlocutores (algo como o elenchos socrático, no sentido
possibilidade de adotar uma visão, digamos, “englobante”, próprio que hoje os especialistas do pensamento antigo
a qual, por sua vez, apontando para a experiência do pensa- atribuem a Sócrates, e não no sentido das interpretações
mento do pensamento, seja capaz de destacá-lo como uma que outros filósofos deram a ele).
característica que aparece, em maior ou menor grau, nas Este livro dá, assim, atenção especial à atividade de
diferentes filosofias, respeitando-se suas especificidades. justificar as expressões produzidas pelo pensamento para
Justamente por sua amplitude, essa concepção seria os diferentes sentidos com que se exprime a experiência
exposta a graves riscos caso pretendesse unir, em torno de humana, sem, no entanto, pretender que a Filosofia seja
algo como um “universal da Filosofia”, a imensa variedade apenas “discurso” (o que significaria já comprometer-se
das filosofias. Mas não é nessa direção que vai este livro. com uma concepção específica). O uso do termo sentido,
Se ele pressupõe algo como uma característica universal, aqui, não visa, nem de longe, afirmar que “a” Filosofia
tal característica consiste na atenção que o pensamento dá busca sentido “para” a existência. O próprio Sócrates, entre
a si mesmo. Como se busca esclarecer na sequência deste
Manual, talvez se possa falar de uma universalidade do 1
Entende-se o termo tradição, aqui, no sentido de movimento de
hábito da Filosofia; algo do registro de uma disposição e transmissão cultural (filosófica, artística, científica, religiosa,
de uma atividade que guardaria semelhanças apesar das política) e não no sentido de blocos de pensamento uniforme
diferenças presentes tanto nos atos que o formam como que percorreriam tempos diferentes.
nos “objetos” ou “alvos” visados. Não se trata, portanto, 2
A esse respeito, são bastante enriquecedores os estudos de Carlos
da universalidade de alguma “essência” filosófica. Cabe, Arthur Ribeiro do Nascimento em torno da tradição medieval e
porém, perguntar pelos “objetos” que especificariam ou do pensamento de Galileu Galilei. Ver Tomás de Aquino (1999);
determinariam os atos filosóficos e o hábito da Filosofia Nascimento (1995, 1990). Ver também Storck (2003).

407
tantos outros gregos e pensadores de épocas diferentes, não Não se trata, porém, de entender a Filosofia como hábito
buscava um sentido para existir, mas pretendia compreen- para “melhorar” as pessoas, sobretudo se por “melhorá-las”
der a noção mesma de ser, para além dos “recortes” do ser se entende transmitir a elas algo como um pensamento
operados pelos saberes particulares. Se nos concentramos filosófico específico, uma postura ética determinada ou
na Modernidade e na Contemporaneidade, o debate em algo do tipo (pois tal atitude incorreria em doutrinação,
torno do “sentido” fica ainda mais complexo. Aqui, ao falar algo profundamente antifilosófico). Se, porém, “melhorá-
de sentido, pretende-se apenas concentrar a atenção nos las” significa ampliar seus horizontes de compreensão de
resultados da atividade de conhecer (ou de saber), enfati- si mesmas e dos outros, bem como de suas capacidades co-
zando o trabalho filosófico como pensamento do pensa- municativas (o que não deixa de ter óbvias consequências
mento ou ainda conhecimento do pensamento; trata-se éticas, epistemológicas etc.), então nada parece impedir
da investigação das expressões que o pensamento constrói que se atribua esse papel ao hábito da Filosofia.
para designar a experiência do próprio pensamento ou os Mas aqui se requer redobrada atenção, pois importa
diferentes aspectos da experiência humana (aspectos cien- saber como se constitui tal hábito. Empregando o voca-
tíficos, estéticos, ontológicos, políticos, éticos, religiosos). bulário de alguns autores clássicos, pode-se perguntar: se
Aliás, é como problema filosófico (e não como resposta o que gera um hábito é a prática de determinados atos,
dogmática) que o Capítulo 1 da Unidade 2 do Livro do então quais atos produzem o hábito filosófico? Além dis-
Aluno se dedica ao tema do sentido da existência. so, se um ato é sempre uma reação a certo objeto, quais
Numa palavra, este livro procura concretizar uma objetos determinariam os atos filosóficos e o hábito da
postura de formação filosófica, cujo teor é dado pela Filosofia? A Filosofia teria um objeto específico?
frequentação da História da Filosofia e pelo estudo de Certamente alguns filósofos diriam que o objeto da
temas, problemas e conceitos filosóficos, sem adotar uma Filosofia é o ser; outros, a verdade; outros, a linguagem.
linha especificamente metafísica, existencialista, mar- Alguns diriam que a Filosofia não tem objeto, resposta
xista, hegeliana, fenomenológica ou outra que as valha. que talvez seja mais adequada em contexto contemporâ-
Certamente caberia perguntar como isso é possível, uma neo. Como não se trata, neste livro, de adotar nenhum
vez que o autor do livro possui suas próprias preferências estilo filosófico preciso nem o pensamento de algum(a)
filosóficas. Tais preferências se manifestam na escolha de autor(a) particular, deve-se evitar a identificação de um
assuntos, de autores e de textos, por exemplo. A resposta objeto preciso que determine os atos filosóficos e o há-
consistiria em dizer que a postura de formação filosófi- bito da Filosofia. Porém, sem objeto não se despertam
ca aqui adotada se explica por dois esforços: o de propor atos nem se produzem hábitos. Faz-se necessário, então,
caminhos formativos em torno de questões recorrentes encontrar, de modo “universal” (com muito cuidado para
nos ambientes filosóficos (por exemplo, o bem e o amor evitar o autoritarismo e a autorreferência), um objeto co-
em Ética, o Poder em Política, a experiência na filoso- mum ou um conjunto comum de objetos sobre os quais
fia da religião, o papel da representação nas teorias do se possa estabelecer a formação filosófica (o despertar de
conhecimento etc.) e o de basear-se em trabalhos atua- atos filosóficos e do hábito da Filosofia).
lizados de História da Filosofia para suscitar análises e Dado que o nosso contexto é o da escola aberta a todos e
interpretações adequadas a cada autor ou tema estudado. orientada pelos valores da democracia, do republicanismo,
Se há uma “tendência” do autor deste livro no seu modo da laicidade e da pluralidade, convém que tal base objetiva
de construir sua proposta de formação filosófica, ela seja marcada justamente pela abertura à multiplicidade
consiste em buscar possibilidades reais de pôr diferentes das filosofias e das experiências. Desse ponto de vista, o
filósofos em diálogo, evitando, todavia, arbitrariedades objeto ou o conjunto de objetos que permitem suscitar
nesses diálogos. Para tanto, adota-se a metodologia da atos filosóficos e o hábito da Filosofia não é outro senão o
identificação de questões em rede, tal como será expli- conjunto composto (i) pelos textos dos próprios filósofos,
citado na sequência. (ii) pelas narrativas da História da Filosofia e (iii) pelos
problemas, temas e conceitos filosóficos (que nascem dos
Atos filosóficos e hábito da Filosofia textos dos filósofos ou do modo como a comunidade fi-
O que parece haver de universal nas filosofias é o fato losófica reelabora tais textos). Em outras palavras, dados
de elas procurarem perscrutar diferentes sentidos que são esses objetos, é pela frequentação dos textos dos próprios
encontrados e/ou construídos na experiência humana, filósofos e das narrativas da História da Filosofia, além
com atenção especial ao modo como tais sentidos são ex- do estudo de problemas, temas e conceitos filosóficos,
pressos. Dessa perspectiva, parece possível caracterizar a que nós e nossos estudantes praticamos atos filosóficos
Filosofia ou a atitude filosófica geral como um hábito que e desenvolvemos o hábito da Filosofia em um primeiro
se desenvolve (o da investigação dos sentidos e do modo nível; afinal, é muito difícil, e talvez mesmo desaconse-
como eles são expressos; numa palavra, o hábito de pensar lhável, pretender praticar Filosofia em um fechamento ao
o pensamento). Ensinar Filosofia, por sua vez, pode ser en- diálogo com o patrimônio que nos precede. No entanto,
tendido como a atividade de possibilitar que os estudantes em um segundo nível, nós e nossos estudantes podemos
entrem em contato com esse hábito da Filosofia e tenham intensificar o hábito da Filosofia, passando a produzir
a oportunidade de desenvolvê-lo eles mesmos. uma reflexão filosófica em continuidade com algum(a)

408 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


autor(a) precedente, repetindo-o(a) e assumindo seu O próprio ensino da Filosofia não tem, nesses tempos
pensamento para nós mesmos, ou até – caso altamente diferentes, o mesmo sentido. E aqui caminhamos numa
desejável, embora extremamente laborioso – produzindo direção diferente da apontada por Derrida: o próprio
reflexões filosóficas em primeira pessoa. estatuto do texto modificou-se desde a Antiguidade, e
Materialmente falando, trata-se, em um primeiro ní- Platão deve ser (aqui sim) tomado ao pé da letra quan-
vel, de praticar atos de conhecimento ou atos que dão do aponta a deficiência da escrita: ela é muda, não res-
vida a conhecimentos registrados na literatura técnica,
ponde a perguntas do leitor. [...] O ensino da Filosofia
que está sempre à espera de que alguém os ponha nova-
é essencialmente oral; e a escrita, apenas um aparelho
mente em movimento. Assim como em uma biblioteca
auxiliar. E isso ainda é dizer pouco: a própria aula, de
os livros registram dados à disposição de todos para serem
revividos na consciência dos indivíduos que os leem, as- viva voz, não é nada, se não ensinar a “mudar a vida” do
sim também o patrimônio filosófico pode ser reativado discípulo (não se pensa, é claro, antes da Modernidade,
pelos seus leitores. Dessa perspectiva, supera-se mesmo em “transformar o mundo”). Um pensador antigo (pou-
a dicotomia entre simplesmente “estudar História da co importa qual, aí todos são iguais) adverte que será
Filosofia” e “filosofar”. A reativação do patrimônio fi- mau o marceneiro que apenas ensinar os princípios da
losófico permite desenvolver algo como um hábito de marcenaria. Pois o que se pede ao marceneiro é que
ciência ou hábito de conhecimento (scientiae habitus), tal exerça sua techné [sua arte ou técnica]. Uma aula de
como diziam alguns pensadores medievais, ou mesmo marcenaria não me ajuda a edificar minha casa, como
passar do saber como patrimônio objetivo (Wissenschaft) uma aula de filosofia, transmissão, digamos, de um sa-
ao saber como ato (Wissen), segundo a terminologia de ber ou de um conhecimento in abstracto, não modifica
Edmund Husserl. minha vida, tornando-a boa, justa, feliz, isto é, humana
Uma das vantagens dessa concepção dos atos filosófi- e racional. [...] Confessemos, nós professores de Filosofia,
cos e do hábito da Filosofia está em não exigir um com- que nossa arte é bem pouco refletida no presente. Toda
promisso necessário com nenhuma concepção técnica minha simpatia ainda vai para gente como Nietzsche
e específica de sujeito ou de subjetividade, pois mesmo e Wittgenstein, que consideravam nossa profissão um
filosofias antissujeito parecem convergir com filosofias terrível perigo e nossa situação institucional, um convite
do sujeito na compreensão de que, independentemente à falsificação. O que tem o ensino da Filosofia, hoje,
da interpretação que se dê à natureza humana, é possível com o esforço de tornar-se digno de viver? Haveria de
identificar atos e hábitos. Por outro lado, se despertar nos
comum, entre nosso discurso e o dos antigos, mais do
estudantes atos filosóficos e o hábito da Filosofia pode ser
que mera homonímia?3
visto como o sentido de nossa prática docente, ressalta-se
também o caráter radicalmente ético de nosso trabalho de
Diante de um texto de tamanha força como este, é
professores de Filosofia, pois, para além de toda doutrinação
impossível não nos perguntarmos pelo sentido de nossa
ética, o primeiro elemento que marcará nossa atividade é
prática docente. Percebe-se, aliás, que o bom êxito de
o nosso exemplo profissional no modo como tratamos o
nossa atividade depende não apenas do nosso trabalho
patrimônio filosófico e despertamos atos semelhantes em
de ensino propriamente dito (partilha de conteúdos e
nossos estudantes.
métodos), mas também de uma constante e sempre mais
Tal caráter ético é certamente o que articula o estudo
aprofundada consciência de nós mesmos, de nossos obje-
técnico de Filosofia com a atenção à prática da cidadania,
tivos e de nossa ação didático-pedagógica. Desse ponto
tão desejada atualmente para a formação filosófica. É certo
de vista, é comum sentirmo-nos como os primeiros be-
que muitas filosofias podem e talvez devam ser estudadas
neficiados de nossa própria prática docente, pois, antes
sem interesses existenciais. No entanto, mesmo nesse tipo
de procedermos à partilha de conteúdos e métodos com
de estudo parece haver um caráter ético, procedente do
nossos estudantes, nós mesmos somos postos diante da
fato de que ele é tão formativo (despertador de atos e há-
tradição filosófica e solicitados a reativar os atos filosó-
bitos) quanto os estudos que conectam o aspecto técnico a
ficos registrados pelos pensadores ao longo dos tempos.
uma preocupação existencial. A esse respeito, o Prof. Bento
Essa atividade requer de nós um exercício constante de
Prado Júnior, comparando a formação filosófica típica do
atenção ao sentido de nosso trabalho, aos conteúdos de
mundo antigo com a formação filosófica praticada em
nossas próprias convicções e ao modo como as justifica-
nossos dias, tem uma reflexão estimulante:
mos, ao nosso estilo, aos hábitos mentais a que estamos
A distância que nos separa desses textos [antigos] é acostumados e assim por diante. Em resumo, o caráter
maior ainda do que a agora sugerida. Pois esse código específico do trabalho filosófico convida-nos a uma cons-
ou essa retórica (a “gramática”, digamos, da escrita teó- tante autorreflexão e autocrítica.
Ao mesmo tempo, somos convidados a uma atenção sem-
rica na Antiguidade) só são compreensíveis no seio das
pre mais refinada e perspicaz aos nossos estudantes, seus
práticas e das instituições sociais que as sustentam: um
regime de articulação entre prática e teoria que não
é exatamente o que teorizamos e praticamos hoje. [...] 3
PRADO JÚNIOR, 1999.

Manual do Professor 409


contextos, interesses, possibilidades e limites. É numa relação de Lovejoy será retomada, mas importa aqui dizer que a
intersubjetiva que parece fazer sentido a atividade de ensinar História da Filosofia não identifica, por projeção, unida-
Filosofia. Nossos estudantes não são apenas destinatários de des de ideias ou temas no passado, procurando retraçar
nossas aulas; eles podem ajudar-nos a construir-nos a nós o caminho percorrido por elas, como pretende a História
mesmos, docentes, pois o modo como eles interagem conos- das Ideias. Aliás, muitos dos caminhos percorridos por
co pode levar-nos a pensamentos e ações novos. É verdade unidades de ideias e temas identificadas por narrativas
que somos nós, professores, que temos o preparo técnico- históricas são hoje postos em questão por diferentes his-
profissional para “ensinar”. Parece inadequado pretender toriadores e filósofos. Um exemplo é a própria ideia de
defender uma relação ensino-aprendizagem em que os ser, que, durante certo tempo, acreditou-se corresponder
professores não assumem seu papel de formadores, mas exatamente àquela de que trataram Platão e Aristóteles e
pretendem ser eternos estudantes; e tanto mais chegaremos que depois teria sido retomada (para ser aceita ou refuta-
a bons resultados – não apenas de partilha de conteúdo, da) pelos estoicos, Plotino, Agostinho, Avicena, Tomás de
mas também de satisfação pessoal-profissional – quanto Aquino, Duns Escoto, Descartes, Hume, Leibniz, Kant,
mais tivermos consciência de nosso papel e de nossa função Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger, entre tantos outros.
de orientar a formação de nossos estudantes. No entanto, Hoje, graças aos desenvolvimentos das pesquisas sobre
essa consciência não permite crer que não temos algo a as obras desses autores, lidas nelas mesmas e com seus
aprender com os estudantes; muitas vezes, por exemplo, referenciais próprios, sabe-se quão artificial é pretender
embora eles não nos “ensinem” (tecnicamente falando), que todos possuem a mesma compreensão do ser. Muitas
eles nos permitem atingir níveis melhores de compreensão vezes, o risco de quem pratica a História das Ideias é ope-
quando nos apresentam suas perguntas, suas opiniões, suas rar com coisas que simplesmente não existiram.
discordâncias e seus entusiasmos. Cabe a nós, evidente- Não se nega aqui, evidentemente, o valor da História
mente, pautar as manifestações dos estudantes pelo patri- das Ideias. Dados históricos interessantíssimos foram le-
mônio dos autores, em uma atitude de clara honestidade vantados por ela. Pretende-se unicamente mostrar, por
intelectual. Do contrário, corre-se o risco de transformar contraposição com a História das Ideias, que a História
o aprendizado filosófico em mero conjunto de opiniões, da Filosofia é de outra ordem: mais do que registrar o
perdendo-se exatamente o fio que une toda atividade filo- que pensaram os autores, estabelecendo conexões com
sófica: a busca de justificação racional. Não há nada mais seu tempo e com outros autores e produzindo sínteses
antifilosófico do que adotar uma postura autoritária em válidas para nós, a História da Filosofia, na direção as-
que as afirmações são feitas sem justificação nem consi- sumida por este livro, consiste na tentativa – da manei-
deração do caráter intersubjetivo da experiência humana. ra mais autoconsciente e mais autocrítica possível – de
perceber cada filosofia (ou pelo menos cada documento
História da Filosofia filosófico, como um livro ou um artigo) no sentido que
A centralidade que a História da Filosofia ganha nessa ela teve para sua autora ou seu autor.
proposta formativa exige lembrar que estudá-la significa Alguns chamam a esse cuidado de método estru-
muito mais do que “visitar um museu” ou uma galeria de turalista. Invocam, inclusive, a autoridade de Victor
pensamentos mortos. Pelo contrário! Significa ouvir aque- Goldschmidt, professor e pensador francês cuja meto-
les que nos precederam e buscar compreender as razões dologia influenciou bastante as gerações filosóficas dos
pelas quais eles pensaram o que pensaram, extraindo daí anos 1960-2000 no Brasil, tomando praticamente como
possibilidades de ampliar o horizonte de temas que nos uma cartilha o artigo “Tempo histórico e tempo lógi-
dizem respeito hoje. co na interpretação dos sistemas filosóficos”5. Mas vale
Dessa perspectiva, a expressão História da Filosofia, notar que Goldschmidt não usa o termo estruturalismo
neste livro, tem um sentido preciso: consiste no trabalho nem se filia propriamente ao estilo filosófico-científico
de análise (desconstrução) e reelaboração (reconstrução) que recebeu esse nome depois de Claude Lévi-Strauss.
das diversas filosofias, com atenção à estrutura interna de Parece, no entanto, adequado falar em “método estrutu-
cada fonte filosófica e de cada sistema (quando é o caso de ralista”, com a condição, porém, de lembrar que buscar
um sistema), mas também às conexões entre as filosofias e a estrutura interna de um pensamento expresso em uma
seu contexto histórico próprio. Trata-se de “vestir a camisa” obra ou em um sistema (quando é o caso) não impede de
de cada filósofa ou filósofo, procurando, em um primei- também levar a sério elementos históricos externos a ele
ro momento, evitar ao máximo julgá-los segundo nossos e claramente importantes para aumentar sua compreen-
critérios e nossas expectativas. É uma atitude de cuidado, são. Aliás, Goldschmidt propunha um método estrutural-
profissionalismo e respeito epistemológico. histórico, ou, como ele dizia, dogmático-genético (mé-
Nesse sentido, a História da Filosofia não se confunde todo que considera a verdade – dogma em grego – de
com a História das Ideias, no sentido do que pretendia, por um pensamento e os fatores que contribuíram para o
exemplo, Arthur Lovejoy4 nos anos 1930. Abaixo, a concepção seu surgimento). Não é por acaso que o título de seu ar-
tigo insiste na percepção de um tempo histórico e de um
4
Cf. LOVEJOY, 1936. Há uma tradução em português, de Aldo Fernando
Barbieri (Palíndromo, 2005). 5
Cf. GOLDSCHMIDT, 1963, p. 139-147.

410 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos. adequada de seu argumento, esclarecendo que o termo
Não caberia ignorar o tempo histórico e reter apenas o princípio tem sentido ontológico8.
tempo lógico 6. Na contrapartida, porém, também não Em outra direção, o esclarecimento da noção de
caberia privilegiar elementos que transcendem as obras História da Filosofia permite também perguntar se, dada
e são “externos” a ela (o tempo histórico) a fim de inter- a necessária concentração na estrutura de uma obra ou
pretar as obras (em seu tempo lógico). Afinal, no limite, de um sistema, seria possível, sem migrar para a História
sequer temos condições técnicas de provar a existência das Ideias, estudar as filosofias por meio do rastreamento
de vínculos entre certas obras e seu contexto histórico. de temas, problemas e conceitos. No tratamento de um
tema, por exemplo, ir além da obra de um(a) autor(a) e
História, temas, problemas e conceitos conectá-la com a obra de outro(a) autor(a) não signifi-
O esclarecimento da noção de História da Filosofia leva caria produzir algo artificial, dado que, embora haja se-
a perguntar pela possibilidade de estudarmos as filosofias melhança de tema, nada garante que ele tenha o mesmo
apenas com um interesse lógico-analítico, concentrando- sentido para os diferentes autores? A resposta é simples:
nos somente nos argumentos registrados nas obras, sem tudo depende do tema e dos autores! Em primeiro lugar,
interesse por elementos que não sejam relevantes para o se um(a) autor(a) remete a outro(a), então fica garantida
estudo dos argumentos. Certamente há essa possibilida- a conexão, ao menos no sentido do posterior ao anterior
de e ela é válida do ponto de vista do que se espera do (se faz sentido estudar a concepção cartesiana de alma
aprendizado filosófico. Na verdade, ela corresponde ao com base na teoria aristotélica, nem por isso é óbvio o
que, no vocabulário de Goldschmidt, denomina-se tempo sentido de estudar a teoria aristotélica com base na teo-
lógico. Espera-se que, no tratamento dado às filosofias, ria cartesiana, como se Aristóteles devesse ter previsto o
elas sejam ouvidas por si mesmas. No entanto, este livro que faria Descartes, a menos que se queira dar um tra-
defende que há um ganho de compreensão quando os tamento contemporâneo ao mesmo tema e defender que
argumentos são correlacionados com dados que, embora Aristóteles teria “errado”9). Em segundo lugar, ainda que
não sejam diretamente relevantes para a argumentação, os filósofos não se mencionem entre si, também parece
permitem visualizá-la melhor e mesmo explicá-la com adequado identificar continuidades e rupturas entre eles
mais coerência com o conjunto do pensamento da auto- quando a comunidade dos especialistas demonstrou ha-
ra ou do autor em questão. Tais elementos não provêm ver tais continuidades e rupturas. Para além dessas duas
apenas do contexto histórico, mas, muitas vezes, de ou- possibilidades, corre-se, sim, o risco de produzir conexões
tras partes da mesma obra estudada. Dessa perspectiva, o artificiais e sem lastro real.
tempo histórico não é mero sinônimo de contexto. Dessa perspectiva, parece possível defender que
Mais do que isso, a atenção ao tempo histórico de cada o trabalho filosófico não tem necessidade de isolar a
obra ou de cada sistema permite melhorar compreensões abordagem histórica da abordagem temática, problema-
que, se ficassem presas apenas ao tempo lógico, não re- tizadora ou conceitual. Bem ao contrário, parece mais
tratariam adequadamente o pensamento estudado. Um desejável que essas abordagens sejam entendidas como
exemplo claro, extraído de uma parte bastante conheci-
da do pensamento medieval, vem do estudo das famo- 8
Outro exemplo, análogo a este e mais recente, pode ser evocado
sas “cinco vias” construídas por Tomás de Aquino para
aqui: no debate com Alvin Plantinga e visando provar que Deus
demonstrar que a proposição Deus existe é verdadeira7. não existe, o filósofo norte-americano Michael Tooley persegue,
Nelas, Tomás de Aquino emprega o termo princípio. Uma em nome da consistência lógica, o famoso “problema do mal”
interpretação estritamente lógica do seu argumento corre (como pode o mal existir em um mundo criado por um ser bom?).
o risco de entender o termo em sentido temporal (o “co- Reduzindo-o ao mínimo, seu raciocínio talvez possa ser expresso
meço” do Universo). Todavia, Tomás de Aquino defende pela forma clássica do modus ponens: se o mal existe, então
em vários textos que o mundo não precisa ter tido um Deus não existe; ora, o mal existe; então, Deus não existe. Essa
formulação pressupõe uma unidade de sentido e uma constância
começo temporal; ele pode ser eterno. Se se toma o ter-
histórico-interpretativa para o conceito de mal. Ela ignora ou oculta
mo princípio em sentido cronológico, a remontagem do o fato de que rios de tinta correram ao longo dos séculos para
argumento tomasiano pode ser bem-feita, mas não cor- nuançar o significado do termo mal e o sentido do seu conceito,
responderá propriamente ao que pensou Tomás. É apenas inclusive da parte de filósofos não cristãos, não judeus ou não
por uma atenção a elementos externos à demonstração muçulmanos. Platão e Plotino são os casos mais conhecidos. Numa
(pois não é nas cinco vias que Tomás trata do sentido do palavra, filosofias bastante sólidas já relativizaram a existência do
princípio) que se pode chegar a uma compreensão mais mal ou mesmo a negaram. Além disso, simplesmente não há, em
Filosofia, um conceito unívoco nem um “arquiconceito” de mal,
menos ainda um “arquiproblema” do mal. Cabe perguntar, por
conseguinte, por que Tooley procura induzir a uma compreensão
6
Adotando um caminho bastante diferente do que se propõe aqui, unívoca. Certamente a apresentação feita nesta nota de rodapé
o livro dos professores Marcos Nobre e Ricardo Terra apresenta é caricatural. Para uma visão mais apropriada do debate, ver
reflexões instigantes sobre o que, para eles, seriam alguns limites Plantinga; Tooley (2014).
do método estrutural. Ver Nobre; Terra (2007). 9
Observações teórico-metodológicas muito esclarecedoras são
7
Cf. TOMÁS DE AQUINO, 2000. dadas por Alain de Libera (2013).

Manual do Professor 411


complementares. Escolher entre elas é algo que talvez elencando, ao final, chaves de leitura para um estudo
deva depender mais dos objetos ou dos conteúdos es- sistemático da História da Filosofia (Unidade 3).
tudados, em união com os objetivos que se pretendem Um autor que tem sido redescoberto na cena filosófi-
alcançar, e não de uma escolha apenas em função dos ca mundial e brasileira e que, por sua atualidade, vale a
objetivos (o que pode se dirigir facilmente para o campo pena evocar aqui é Robin George Collingwood. Ele não
da manipulação ideológica dos autores, em uma atitu- deixava de assumir abertamente uma postura, digamos,
de autorreferente e mesmo autoritária). Na realidade, “analítica” (“estrutural” ou “lógica”, como se queira), mas
a História da Filosofia, entendida no sentido assumido também identificava uma interdependência entre o tra-
por este livro, pode permanecer como atitude básica balho que hoje muitos chamam de “filosófico” (análise
para o estudo filosófico, não apenas porque ela permi- de justificativas racionais) e o trabalho “histórico”, quer
te melhor compreensão dos autores, mas também por- dizer, de quem procura conexões conceituais e produz
que ela mostra aos estudantes que filosofar é entrar em uma narrativa com sentido causal11. No seu dizer, toda
uma grande comunidade de pensamento, enfatizando investigação é busca de respostas a questões precisas: tan-
a importância de justificar com boas razões as nossas to respostas para questões postas pelos autores e acon-
continuidades e rupturas com os autores que estuda- tecimentos como respostas para questões que nós mes-
mos. O ganho didático-pedagógico da ênfase nessa ati- mos pomos aos documentos históricos. Assim, segundo
tude é grande; e, embora ela possa parecer uma prática Collingwood, no momento em que um arqueólogo cava
cansativa para alguns estudantes do Ensino Médio, ela um terreno dizendo simplesmente “vejamos o que tem
também pode, em função do modo como a adotamos, aqui”, esse arqueólogo não aprende nada ou, no máximo,
ser bastante estimulante para eles, como, aliás, reconhe- apenas descreve o que vê (um pouco ao modo de quem
cem as Orientações curriculares para o Ensino Médio: absolutiza o método estrutural, talvez possamos dizer).
No entanto, se esse mesmo arqueólogo aproxima-se de
É salutar, portanto, para o ensino da Filosofia, que seu objeto com questões do tipo “esse bloco de terra preta
nunca se desconsidere a sua história, em cujos textos seria uma porção de turfa ou um bloco do alicerce de uma
reconhecemos boa parte de nossas medidas de com- casa?” ou “houve neste lugar uma ocupação dos tempos
petência e também elementos que despertam nossa de Flávio?”, poderá então obter respostas ou indicações
vocação para o trabalho filosófico. Mais que isso, é de respostas, fazendo avançar consideravelmente a sua
recomendável que a História da Filosofia e o texto fi- compreensão. Se antes o arqueólogo só via pedras, agora
losófico tenham papel central no ensino da Filosofia, ele vê indícios de uma fortaleza, construída ou não nos
ainda que a perspectiva adotada pelo professor seja tempos de Flávio. Em filosofia, Collingwood percebia
que, sem clareza sobre as referências com que operamos
temática, não sendo excessivo reforçar a importância
para situar os autores e sobre as questões que já temos
de se trabalhar com os textos propriamente filosóficos
(conscientemente ou não), corre-se o risco de ficar no
e primários, mesmo quando se dialoga com textos de
campo da ficção, sem chegar realmente ao teor das obras.
outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo
Um de seus exemplos preferidos referia-se ao debate em
– o que pode ser bastante útil e instigante nessa fase torno do idealismo: Collingwood observava que o texto
de formação do aluno. Porém, é a partir de seu legado mais impactante, no início de sua carreira, era o artigo
próprio, com uma tradição que se apresenta na forma de G. E. Moore, chamado “A refutação do idealismo”.
amplamente conhecida como História da Filosofia, O texto era considerado uma crítica a Berkeley, mas a
que a Filosofia pode propor-se ao diálogo com outras posição que de fato era criticada no artigo não era a de
áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição Berkeley, e sim a exata posição que o próprio Berkeley
peculiar na formação do educando. [...] É importante havia criticado. Bastava comparar o artigo de Moore e
registrar que uma certa dicotomia muito citada entre o texto de Berkeley para dar-se conta disso. Ora, quem
aprender filosofia e aprender a filosofar pode ter pa- não relacionasse Moore com Berkeley, tomando Moore
pel enganador, servindo para encobrir, muitas vezes, como unidade autônoma e Berkeley como um real re-
a ausência de formação em véus de suspeita compe- presentante do que Moore criticava, sem frequentar o
tência argumentativa de pretensos livres-pensadores.10 texto de Berkeley e sem identificar no texto de Moore a
pergunta à qual ele tentava responder, não compreendia
Com essa atenção específica, este livro apresenta dife- o sentido do artigo de Moore, nem era capaz de avaliar
rentes caminhos para entrar no universo da reflexão filo- o sentido do debate12.
sófica com diferentes “métodos” (Unidade 1). Na sequên- Não é por acaso que o historiador da Filosofia francês
cia, propõe capítulos temáticos, estruturados em torno Alain de Libera inspira-se em Collingwood e Paul Veyne13
da análise de textos filosóficos e do estudo filosófico de
documentos não propriamente filosóficos (Unidade 2),
11
Cf. COLLINGWOOD, 2010.
12
Cf. COLLINGWOOD, 2010, p. 46.
10
BRASIL, 2006, p. 27 e 32. 13
Cf. VEYNE, 1982.

412 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


(via Foucault), para defender que os temas, conceitos e Apenas uma História da Filosofia “ocidental”?
problemas podem constituir redes ou intrigas, cabendo- Na passagem da primeira à segunda metade do século
nos identificar essas redes e evitar, ao mesmo tempo, cair XX, muito se discutiu sobre a natureza e a valorização
no equívoco de pressupor que há sempre uma história do pensamento “oriental” (leia-se: não ocidental ou de
linear dos problemas, temas e conceitos ao modo de matriz europeia greco-romana). Hoje o debate continua,
arquiproblemas ou de problemas arquetípicos que embora com menos força, apesar das interessantes ques-
permitiriam uma “história dos problemas”, uma “história tões levantadas pela proposta de identificar uma filosofia
dos temas” ou uma “história dos conceitos”. Só há redes e latino-americana16 ou uma filosofia africana17.
intrigas quando os problemas, temas e conceitos realmente Em resumo, tratar-se-ia de saber se a Filosofia é pa-
se articulam. Cabe ao historiador da Filosofia atentar trimônio ocidental ou se ela é uma vocação de toda a
para o movimento de retroprojeção do verdadeiro ou o Humanidade. O debate é extremamente instigante. Ele
movimento que Bergson chamava de “efeito retroativo exige que se distinga, porém, entre uma atitude ou uma
do verdadeiro” (ver, no final do Manual do Professor, inquietação filosófica universal e o patrimônio formado
os comentários teórico-metodológicos da Unidade 3). pelo trabalho de tantas pensadoras e tantos pensadores
Se os filósofos têm certa liberdade para praticar esse que procuram conectar-se aos complexos de questões e
movimento, quem estuda História da Filosofia deve respostas nascidos do trabalho iniciado pelos gregos. Uma
munir-se de cautela, a fim de não projetar na História pergunta didática caberia aqui: se os gregos não tivessem
aquilo que ele(a) mesmo(a) quer encontrar. chamado de Filosofia ao seu próprio pensamento, nós
A preocupação com a retroprojeção do verdadeiro é, hoje nos preocuparíamos em dizer que o pensamento
de certo modo, a mesma que faz desconfiar do método latino-americano, ou o africano, é do mesmo tipo que
centrado na história dos temas, conceitos e problemas, o pensamento grego? Provavelmente não, porque nós os
tal como praticado pela História das Ideias concebida consideraríamos como tradições diferentes, embora pu-
por Arthur Lovejoy. Perseguir o que Lovejoy chamava déssemos ver semelhanças entre essas tradições. Parece,
de unit idea ou “ideia básica”, “ideia-unidade”, rastrean- então, razoável distinguir entre uma inquietação univer-
do-a em diferentes obras e períodos, não garante que as sal a qual adjetivamos como filosófica (porque guarda
obras em que tal ideia aparece mantêm vínculos reais semelhanças com a tradição nomeada pelos gregos) e o
com as outras obras que também a registram. A rigor, corpo “técnico” de respostas dadas a questões nascidas
é muito difícil provar a existência de ideias básicas ou especificamente daquele tipo de pensamento desenvol-
“ideias-unidades”. O caráter problemático dessa discipli- vido pelos gregos. Outra pergunta didática: por que não
na, a História das Ideias, pode ser observado no debate é polêmico chamar de Filosofia o pensamento desenvol-
suscitado pela obra de Arthur Lovejoy já no século XX, vido na Escola de Kyoto, por exemplo? Porque, além da
chegando até os nossos dias. Jaakko Hintikka14, por exem- inquietação filosófica geral, os autores que a compõem
plo, criticou a noção de unit idea, mas Simo Knuuttila15 procuram conectar-se diretamente à linha “técnica” de
a reabilitou, transfigurando-a. No que concerne a nós, reflexão iniciada com os gregos.
temos a vantagem de não precisar necessariamente tomar Isso não significa negar que haja Filosofia em outras
o partido contrário à História das Ideias. Distinguindo-a culturas. Pelo contrário! Aliás, há fortes exemplos de pen-
da História da Filosofia, podemos nos beneficiar das con- sadores que se baseiam em elaborações “não ocidentais”
tribuições que dela vêm, desde que tais contribuições para resolver questões “ocidentais”. É o caso do filósofo
estejam assentadas no trabalho crítico da comunidade francês Michel Bitbol ao tomar práticas meditativas Zen
de pesquisadores em Filosofia. para pensar problemas ligados à consciência18.
Por fim, a ênfase na História da Filosofia não significa Por razões pedagógicas e tendo em vista que esse de-
um cerceamento da liberdade do pensamento filosófico, bate está longe de ser resolvido, este livro opta por falar
como se tolhêssemos a criatividade de nossos estudantes de Filosofia em geral, como pensamento do pensamento,
e a nossa própria. Ao contrário, ela fornece a possibili- situando seu nascimento na Grécia e identificando se-
dade de “subir nos ombros de gigantes” e ampliar nosso melhanças com outras formas de pensamento desenvol-
campo de visão. O ensino de Filosofia pode tornar-se vidas por outras sociedades, em outros tempos e locais,
“claustrofóbico” se incentivar os estudantes a buscar às quais não se aplica ainda de modo unânime o sentido
“por si mesmos” formulações conceituais que temati- técnico do termo Filosofia. Como dizia Gérard Lebrun,
zem sua existência. Ainda, corre-se o risco de perder o os estudantes do Ensino Médio precisam de uma “língua
caráter “técnico” da Filosofia, dando-se a impressão de de segurança”19, dada pela formação de um repertório
que basta “pensar” para filosofar, desenvolvendo uma “clássico”, pelo enfrentamento de dificuldades também
atitude antifilosófica, despreocupada com as justifica-
tivas públicas para a expressão do próprio pensamento.
16
Ver, por exemplo, Dussel (1995).
17
Cf. NOGUEIRA, 2014.
14
Cf. HINTIKKA, J., 1975-1976, p. 22-38. 18
BITPOL, 2014.
15
Cf. KNUUTTILA, 1981, p. 163 ss. Ver também Knight (2012, p. 195-217). 19
Cf. LEBRUN, 1976, p. 148-153.

Manual do Professor 413


“clássicas” etc., mais do que estudar o resultado de nossas filosofia” à verdadeira filosofia. A unidade já existe
pesquisas recentes e de nossas interpretações particulares. nas relações laterais de cada cultura com as outras,
Porém, para além de uma preocupação pedagógica, nos ecos que uma desperta na outra. É preciso apli-
este livro tem em grande consideração outra problemáti- car ao problema da universalidade filosófica aquilo
ca: qual o sentido de enfatizar particularismos culturais que os viajantes nos contam dos seus contatos com
em vez de abrir-se ao que talvez haja de preocupação as civilizações estrangeiras. As fotografias da China
universal nas culturas? Não se trata de defender algo nos dão o sentimento de um universo impenetrável
como uma “sede de verdade”, mas de tentar identificar se nos detivermos unicamente no pitoresco, isto é,
conjuntos de vivências comuns (como a inteligência e justamente no nosso recorte, na nossa ideia da China.
as paixões). Nesse contexto, qual o sentido de pretender Em contrapartida, basta que uma fotografia tente
desfiliar a Filosofia do mundo grego? Há um risco de simplesmente captar os chineses vivendo juntos para
deixar-nos mover pelo que, falando de modo bastante
que, paradoxalmente, comecem a viver para nós e,
amplo, Nietzsche chamava de ressentimento, raiz de
então, os compreendemos. As próprias doutrinas, que
muitas revanches históricas que não contribuem necessa-
parecem rebeldes ao conceito, se pudessem ser toma-
riamente para clarear a experiência humana. Além disso,
das em seu contexto histórico e humano, nos fariam
a insistência em chamar de Filosofia os pensamentos e
encontrar uma variante da relação do homem com
sabedorias não ocidentais pode revelar um preconceito
às avessas: o de considerar que, para valorizá-los, precisa- o ser, capaz de nos esclarecer sobre nós mesmos; e
mos chamá-los de Filosofia. Não projetaríamos sobre as nos fariam pressentir como que uma universalidade
outras culturas, com essa atitude, exatamente a mesma oblíqua. As sabedorias da Índia e da China procura-
criticada superioridade ocidental, agora a ocultando pela ram, mais do que dominar a existência, ser o eco ou
importância do uso do termo Filosofia para valorizá-las? o ressoante de nossa relação com o ser. A filosofia
Trazendo-as para “dentro” da Filosofia, corremos o ris- ocidental pode aprender com elas a reencontrar o
co de reabilitar uma leitura hegeliana que a História já contato com o ser, opção inicial de onde nasceu, a
problematizou e que, no limite, manteria o Oriente (ou medir as possibilidades que, ao nos tornarmos “oci-
tudo o que não é eurocêntrico) no estatuto de algo in- dentais”, fechamos para nós, e, talvez, a reabri-las.20
fantil e exótico. A esse respeito, Merleau-Ponty escreveu
linhas luminosas: ORGANIZAÇÃO E POSSÍVEIS
USOS DESTE LIVRO
[...] é seu próprio destino [do Ocidente] reexaminar O livro encontra-se organizado em três unidades.
até sua ideia da verdade e do conceito, bem como A Unidade 1 tem por objetivo introduzir os estudantes
todas as instituições – ciências, capitalismo e, se se ao universo filosófico por meio de uma sensibilização
quiser, o complexo de Édipo – que direta ou indire- que permita a eles identificar-se com a atividade filosó-
tamente tenham parentesco com sua filosofia. Não fica, seja por meio de uma inquietação existencial, seja
necessariamente para destruí-las, mas para enfren- por meio de preocupações epistemológicas. Não se pode
tar a crise que atravessam, a fim de reencontrar a partir do pressuposto de que todos os seres humanos
fonte de onde derivam e à qual devem sua longa dedicam-se à reflexão sobre a existência, assim como é
difícil afirmar que questões de caráter epistemológico
prosperidade. Por este ângulo, as civilizações que
interessam a todos. Exploram-se, então, essas duas pos-
não possuem nosso equipamento filosófico ou eco-
sibilidades, chamadas de “portas”, a fim de aumentar
nômico ganham valor de ensinamento. Não se trata
as chances de atrair a atenção dos estudantes. Uma vez
de ir procurar a verdade ou a salvação no que veio
atravessadas tais “portas da Filosofia” (Capítulos 1 e 2),
antes da ciência ou da consciência filosófica, nem de
o livro se encaminha a uma tentativa de definir Filosofia
transportar para dentro de nossa filosofia pedaços de (Capítulo 3), para chegar a uma apresentação ampla do
mitologia, mas, sim, de, na presença dessas varian- que seriam atitudes filosóficas que poderíamos chamar
tes de humanidade, das quais estamos tão distantes, de “métodos” (Capítulo 4).
adquirir o sentido dos problemas teóricos e práticos Empregando o vocabulário do Capítulo 4, é possível
com os quais nossas instituições são confrontadas, dizer que toda a Unidade 1 visa a uma apresentação in-
redescobrir o campo de existência onde nasceram e tuitiva da Filosofia, conduzindo a uma atitude discursiva
que seu longo sucesso nos fez esquecer. A “puerili- ou argumentativa sobre a própria atividade filosófica.
dade” do Oriente tem algo a nos ensinar, nem que Essa estratégia amplia-se para a Unidade 2 e, de certo
seja a estreiteza de nossas ideias de “adulto”. Entre o modo, estrutura todo o livro.
Oriente e o Ocidente, assim como entre uma criança Com efeito, a Unidade 2 é composta por um conjun-
e um adulto, a relação não é a da ignorância e o saber, to de temas tratados filosoficamente, partindo daqueles
nem a da não filosofia com a filosofia; é algo muito que parecem mais próximos do cotidiano estudantil até
mais sutil. [...] A unidade do espírito humano não
se fará por vínculo simples e subordinação da “não 20
MERLEAU-PONTY, 1989, p. 168-169.

414 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


chegar a temas mais “abstratos”, ou melhor, que exigem distintas (Ética, Epistemologia, Metafísica etc.) ou mes-
maior abstração em seu tratamento. Do ponto de vista mo de estruturar-se segundo um encadeamento rígido
dos temas em si, talvez os capítulos finais da Unidade dos capítulos, o livro opta por tratar filosoficamente de
2 (como a política, a ética, a estética e a religião) des- temas transversais, isto é, temas que recebem tratamentos
pertem maior interesse em alguns estudantes. Eles só nas diferentes disciplinas filosóficas e despertam maior
foram colocados mais para o final porque o tratamento interesse existencial nos estudantes. Vista desse ângulo,
dado a eles é, digamos, um pouco mais exigente do que a Unidade 2 assemelha-se mais a um “caleidoscópio”
aquele dado aos capítulos iniciais (o sentido da vida, a do que a um “mosaico”. Ela evita a esterilidade de uma
amizade, a felicidade, a sexualidade e o amor). Dada pretensão enciclopédica ou “totalizante” e permite que,
essa variação de interesses, cabe aos colegas professo- por uma variedade de temas tratados com abordagens
res decidir por qual capítulo (tema) desejam iniciar, e que mesclam elementos mais e menos clássicos, haja
mesmo selecionar, caso disponham de pouco tempo, maior liberdade para que professores e estudantes esta-
os capítulos que lhes pareçam mais estratégicos para beleçam itinerários formativos diferentes e adequados a
atingir seus objetivos. seus contextos. Várias linhas conexas entre si estruturam,
De todo modo, pressupondo uma leitura linear do porém, a Unidade 2. Uma delas é a atenção existencial
livro (sem prejuízo para uma leitura não linear), é esse na abordagem dos temas; outra, a preocupação com a
movimento que vai do mais “fácil” ou mais próximo do atividade de justificação racional das expressões de nos-
cotidiano ao mais “complexo” ou mais “abstrato” que sa experiência. Não se trata, porém, de pretender que
dá a organização do livro. É central, na Unidade 2, o o livro seja “existencialista” nem “cognitivista”, mas de
tratamento do amor, não apenas porque ele envolve os mostrar como elementos dessas posturas se entrelaçam.
vários aspectos de nossa existência (aspectos afetivos, Junto a essas linhas articuladas, há a linha, digamos,
cognitivos, éticos, políticos, religiosos e estéticos) e metafísica ou ontológica (não no sentido de uma me-
permite conquistar a atenção dos estudantes, mas também tafísica clássica, mas da explicitação de pressupostos
porque, no modo como o tema está estruturado (Capítulos e horizontes metafísicos em algumas discussões). Há
5, 6 e 7), segue-se uma linearidade histórica que pode ser também uma linha dada pela preocupação estética,
útil aos professores caso desejem apresentar aspectos de horizonte indicado do início ao fim do livro, mas não
História da Filosofia, iniciando por formas do pensamento apenas teoricamente, e sim também “imageticamente”
antigo, passando a formas medievais, renascentistas e (pela escolha cuidadosa de imagens de reconhecida qua-
modernas, para terminar com formas do pensamento lidade estética). Todas essas linhas conectam-se ainda
contemporâneo. Os Capítulos 5, 6 e 7 prestam-se a a uma preocupação ético-política e cultural. Tem-se,
isso por meio de um desenvolvimento histórico (não na verdade, um feixe de preocupações filosóficas (em
propriamente uma evolução!) do tratamento filosófico continuidade com as disciplinas filosóficas tradicio-
do tema do amor. Sob esse ponto de vista, se a Unidade nais) que estruturam o livro. Talvez se possa classificar
2 é o miolo do livro, os Capítulos 5, 6 e 7 são o miolo esse feixe de “humanista” ou de “clássico”, no intuito
da Unidade 2. Mas estar no centro não significa ser de pôr os estudantes em contato com o patrimônio da
indispensável. Portanto, não haverá prejuízo para a História da Filosofia, em um procedimento, no entanto,
formação caso os professores decidam não estudar os que vai sempre do presente em direção à tradição (de
Capítulos 5, 6 e 7 ou estudá-los de modo mais rápido. algo que faz sentido agora aos estudantes às diferentes
Nenhum dos capítulos do livro pressupõe o estudo de possibilidades de correlacionar a experiência presente
algum capítulo anterior ou de qualquer outro capítulo, com pensamentos “passados”). Dessa perspectiva, es-
pois todos eles são autoexplicativos. Quanto ao Capítulo pera-se apontar para o presente ou para o caráter atual
14, ele foi situado no fim da Unidade 2 para o caso de os de muitas filosofias “passadas”.
professores desejarem seguir um movimento crescente Por fim, a Unidade 3 tem o teor de um anexo ou de
de “abstração”, mostrando que aquilo que aparece um componente complementar à formação. Ela apre-
no fim da Unidade pode ser visto, de certo modo, senta referenciais estratégicos para aprofundar, de um
como um estudo que esclarece a Unidade inteira, quer ponto de vista histórico, o estudo de aspectos tratados ao
dizer, um estudo que lança luz sobre a compreensão longo das Unidades 1 e 2. De certa maneira, a Unidade
de todos os temas, uma vez que vai à raiz de nossas 3 propõe uma “sistematização” histórica, tomando por
compreensões da atividade de conhecer. Por esse motivo, norte a divisão tradicional da História em Idade Antiga,
ele pode ser estudado antes dos outros capítulos, caso os Idade Média, Renascimento, Idade Moderna e Idade
colegas professores considerem viável essa inversão (por Contemporânea. Na sua elaboração, buscou-se oferecer
exemplo, em contextos de maior interesse por questões elementos atualizados de História da Filosofia.
epistemológicas). Dada essa estruturação em três unidades e consi-
A Unidade 2 também foi concebida tendo em vista a derando que os capítulos são autoexplicativos, surgem
possibilidade de que os capítulos sejam prolongamentos diferentes possibilidades de usar o livro. Pensando na
das “portas” abertas na Unidade 1. Em vez de apresen- estrutura do livro tal como ela é dada graficamente, a
tar a Filosofia como um conjunto de disciplinas bem possibilidade mais evidente é estudá-lo em um processo

Manual do Professor 415


linear, percorrendo em ordem crescente os capítulos Considerações sobre
das Unidades 1 e 2, mas nada obriga a essa abordagem. avaliação em Filosofia
A estrutura interna dos capítulos é praticamente Sem enveredar pelos intermináveis debates sobre o ca-
sempre a mesma: uma sensibilização inicial, partindo ráter “objetivo” ou “subjetivo” das avaliações em Filosofia
de dados cotidianos, e itens que subdividem os capítu- e Ciências Humanas e partindo do fato de que os profes-
los de acordo com o tratamento concebido em função sores, no modo como a relação ensino-aprendizagem está
dos objetos de estudo. É também o objeto de estudo organizada em nossa sociedade, são obrigados a avaliar
que determina a decisão metodológica tomada na es- (mesmo que muitas vezes desejássemos fazer de nosso
truturação de cada capítulo e na escolha dos textos fi- magistério uma relação de partilha mútua e não de “me-
losóficos estudados. Entremeados aos itens, há também dição”), é possível identificar certos critérios que orientem
boxes que auxiliam ou aprofundam o estudo: há boxes o processo de avaliação.
culturais e filosóficos, boxes de cuidado lógico e boxes A esse respeito, as Orientações curriculares para o Ensino
de conceitos estratégicos. Eles visam fornecer informa- Médio oferecem elementos norteadores de grande valor
ções auxiliares e destacar operações lógicas que tornam para se pensar aquilo que se espera dos estudantes que
ainda mais explícita a argumentação filosófica adotada, recebem uma formação em Filosofia. Com base nessas
além de fazer sobressair um conjunto de conceitos cujas expectativas, talvez se possam estabelecer alguns critérios
definições, dadas de modo bastante geral, compõem de avaliação. Diz o documento:
como que um vocabulário “técnico-filosófico” associá-
vel às diferentes filosofias apresentadas. Entremeiam-se De que capacidades se está falando quando se trata de
também aos capítulos da Unidade 2 minibiografias dos ensinar Filosofia no Ensino Médio? Da capacidade
pensadores citados. Elas aparecem próximo ao nome de abstração, do desenvolvimento do pensamento sistêmi-
do(a) filósofo(a) estudado(a). Além disso, há inúmeras co ou, ao contrário, da compreensão parcial e fragmentada
indicações de páginas que fazem remissão a conceitos, dos fenômenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade,
questões, temas e problemas trabalhados em outras da capacidade de pensar múltiplas alternativas para a
partes do livro. Cabe aos colegas professores e aos es- solução de um problema, ou seja, do desenvolvimento
tudantes seguir essas remissões caso desejem esclareci- do pensamento crítico, da capacidade de trabalhar em
mento ou aprofundamento desses conceitos, questões,
equipe, da disposição para procurar e aceitar críticas, da
temas e problemas. Seguem-se a cada item, no interior
disposição para o risco, de saber comunicar-se, da capa-
dos capítulos, exercícios de esclarecimento do conteú-
cidade de buscar conhecimentos. De forma um tanto
do estudado. Em sua maioria, eles adotam a forma de
sumária, pode-se afirmar que se trata tanto de competên-
perguntas que conduzem a respostas dissertativas, dado
cias comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um
que essa habilidade é amplamente reconhecida como
desejável por parte da comunidade de professores tanto refinamento do uso argumentativo da linguagem, para
do Ensino Médio como das graduações em Filosofia. o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da
Os capítulos encerram-se com exercícios complementa- Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas, que
res, sobretudo de correlação do conteúdo estudado com podem fixar-se igualmente à luz de conteúdos filosóficos.
dados culturais e experiências cotidianas, além de uma
série de sugestões de filmes ou vídeos e obras literárias Podemos constatar uma convergência entre o papel
cuja apreciação pode ser feita em vínculo direto com o educador da Filosofia e a educação para a cidadania.
tema do capítulo, além de sugestões bibliográficas que Os conhecimentos necessários à cidadania, à medida
orientam o aprofundamento do assunto ou apresentam que se traduzem em competências, não coincidem,
abordagens diferentes daquelas adotadas nos capítulos. necessariamente, com conteúdos, digamos, de ética
Este livro, no entanto, é entendido como um material e de filosofia política. Ao contrário, destacam o que,
de apoio à formação filosófico-cultural dos estudantes sem dúvida, é a contribuição mais importante da
e ao trabalho docente dos colegas professores. Por isso, Filosofia: fazer o estudante aceder a uma competência
espera-se que os colegas professores tenham grande li- discursivo-filosófica. Espera-se da Filosofia, como foi
berdade nas maneiras de usá-lo; espera-se mesmo que o apontado anteriormente, o desenvolvimento geral de
livro seja “superado” pelos professores e estudantes, em competências comunicativas, o que implica um tipo
uma dinâmica que leva para além dele mesmo. Aliás, de leitura, envolvendo capacidade de análise, de inter-
este livro pretende oferecer diferentes possibilidades de pretação, de reconstrução racional e de crítica. Com
formação filosófica, que certamente não são as únicas. isso, a possibilidade de tomar posição por sim ou por
Em função das circunstâncias e do perfil de cada não, de concordar ou não com os propósitos do texto
turma, os colegas professores poderão fazer escolhas é um pressuposto necessário e decisivo para o exercí-
entre os capítulos do livro e mesmo entre itens no inte- cio da autonomia e, por conseguinte, da cidadania.21
rior de um capítulo. É possível até mesmo estabelecer
“eixos de interesse” e traçar itinerários que percorrem
todo o livro. 21
BRASIL, 2006, p. 30-31.

416 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


O documento que orienta a atividade do ensino de mesma, independentemente de seu desempenho; o que
Filosofia enfatiza as competências comunicativas e cí- se reconhece é o ganho cognitivo apresentado em sua
vicas e as articula com grande acerto por meio da habili- capacidade discursivo-filosófica).
dade discursivo-filosófica. Não se trata, portanto, de pôr Por outro lado, em contraposição à avaliação diagnósti-
em primeiro plano o acúmulo de conteúdos (o que pode ca, em vários contextos se solicita também uma avaliação
ser feito por simples memorização), mas de desenvolver que compare o desempenho de diferentes estudantes. Para
aquela que pode ser considerada a especificidade do sa- isso tem-se a avaliação classificatória. Não deixa de ser
ber filosófico: a atividade de saber justificar os porquês importante expor os estudantes a esse tipo de avaliação,
do pensamento. Dessa perspectiva, não faria sentido porque a vida adulta – para o bem ou para o mal – está
avaliar os estudantes procurando identificar se eles se estruturada, sob muitos aspectos, com base em atividades
tornaram “melhores” ou “mais conscientes”, “mais cida- desse tipo. Além disso, quando se divulgam as menções
dãos” ou “mais reprodutores de conteúdos aprendidos”, ou as notas, até mesmo a avaliação de reconhecimento
e sim se eles desenvolveram, segundo modos diversos, a acaba adquirindo um sentido classificatório, pois os es-
capacidade discursivo-filosófica. Mesmo quando se tra- tudantes quase sempre comparam seus resultados. No
ta de conteúdos referentes ao exercício da cidadania, os entanto, justamente tendo em vista o desenvolvimento
estudantes não podem ser avaliados pelo tipo de engaja- de competências cívicas, exige-se de nós, professores, um
mento ético-político que adotam (caso que poderia até cuidado pedagógico redobrado, a fim de não associarmos
resvalar para a doutrinação ou a ideologização do ensino à avaliação classificatória um sentido de incentivo à con-
de Filosofia), mas pelos recursos que conseguem acionar corrência ou à afirmação narcisista de si: por um lado,
para justificar suas posições. Nesse quadro, as competên- precisamos estabelecer comparações claras entre as ava-
cias comunicativas e cívicas, articuladas pela habilidade liações e, por outro, temos o dever de justificar critérios
discursivo-filosófica, podem ser critérios mais explícitos que empregamos para atribuir as notas ou as menções.
e públicos de avaliação. Numa palavra, a comparação e os critérios utilizados
Por outro lado, é bastante problemático avaliar tendo têm de ser públicos, isto é, compreensíveis para todos.
como base as expectativas da formação ou os objetivos Sob esse ponto de vista, a avaliação classificatória pode
que estipulamos para cada turma. Nossos dados de rea- de fato adquirir um caráter cívico, pois permite treinar
lidade levam a constatar as inúmeras deficiências pre- os estudantes na busca de princípios que orientem a
cisamente de ordem comunicativa (leitura, coerência, convivência republicana, o respeito das diferenças e a
redação) com que nossos estudantes chegam ao Ensino valorização das qualidades individuais.
Médio e à universidade. Se avaliássemos seu desempe- Neste livro, especificamente, dá-se ênfase à atividade
nho apenas com base nos objetivos e expectativas que dissertativa. Embora a redação represente uma competên-
estipulamos, e considerando que sempre as definimos de cia distinta da competência do discurso oral, o estudo dos
modo elevado (dada a complexidade do próprio objeto de “mecanismos” da produção dissertativa (síntese, problema-
estudo), correríamos o risco de ter de atribuir notas ou tização, contraposição, contradição) é fortemente recomen-
menções frustrantes, porque seriam baixas demais. Não dado, pois esses podem ser aplicados também à oralidade.
se trata aqui de pensar que avaliar é atribuir notas; nem Nesse sentido, as dissertações podem ser um instrumento
de insinuar que nossa atividade de docência consiste em privilegiado de avaliação, tanto escrita como oral. É certo
apresentar conteúdos complexos, para, depois, “fechar que falar de “avaliação oral” pode parecer um retrocesso
os olhos” e aceitar resultados que não correspondem à pedagógico, mas a experiência mostra que, descontado o
complexidade dos assuntos. Pelo contrário, trata-se de nervosismo, muitos estudantes, quando têm a possibilidade
desenvolvermos uma atenção específica a cada estudante de fazer uma apresentação oral (de 2 a 3 minutos) face a face
ou a cada grupo de estudantes, sem adotar um padrão com o(a) professor(a), atingem resultados mais satisfatórios
avaliativo definido apenas pelas expectativas, ainda que do que se tivessem feito uma prova escrita. O ideal seria
sejam sempre as melhores. Temos de reconhecer que colaborarmos tanto para o desenvolvimento da oralidade
um(a) estudante pode não as ter atingido no grau que como da escrita. Cabe a nós adequar essas possibilidades
as estipulamos, mas pode ter percorrido já um longo aos diferentes contextos em que atuamos.
caminho de desenvolvimento em relação àquele que Muitos outros fatores entram, ainda, em nosso trabalho
foi seu ponto de partida. Nosso papel como educadores avaliativo. Tendo em vista justamente a habilidade discursivo-
é prestar atenção nesse desenvolvimento e promover o filosófica que articula habilidades comunicativas e ha-
reconhecimento do trabalho desse(a) estudante. Alguns bilidades cívicas, podemos dar atenção específica aos
especialistas em educação chamam esse tipo de avalia- trabalhos em grupo (não apenas ao modo como os es-
ção de avaliação diagnóstica (independentemente do tudantes se relacionam com outros membros do gru-
instrumento empregado, tal como prova escrita, semi- po, mas à prática efetiva de diálogo, debate, tentativa
nário, relatório, debate etc.). Em um vocabulário mais de convencimento e abertura para ser convencido ou
“livre”, ele poderia ser chamado simplesmente de ava- convencida), debates, plenárias, seminários, relatórios
liação de reconhecimento (não se dá reconhecimento à individuais, além de textos de autoavaliação. Os textos
pessoa, pois toda pessoa merece reconhecimento por si de autoavaliação são, aliás, outra ocasião adequada ao

Manual do Professor 417


desenvolvimento de habilidades cívicas e comunicati- aplicação de seu exercício é, com efeito, o conjunto da
vas, pois os estudantes podem treinar para explicitar os experiência humana. Mas a Filosofia não poderia tratar
critérios adotados por eles na sua maneira de avaliar-se essa experiência como um mosaico de diferentes classes
(e mesmo de atribuir-se uma nota ou menção, se for o de fatos, que lhe caberia definir e explicar, colocando-se
caso). Ainda que seja um exercício de avaliação de si num nível de generalidade superior ao das ciências. Cada
mesmo, os critérios empregados devem ser públicos; do vez que os filósofos acreditaram poder representar esse
contrário, a autoavaliação pode resvalar em capricho, papel, especializando-se no universal e superpondo aos
autorreferência ou mesmo autoritarismo. conhecimentos terra a terra das ciências um pretenso
Segundo as possibilidades, nosso papel de educadores conhecimento dominante, mas da mesma ordem que
nos solicita dar sempre atenção ao emprego da língua cul- o das ciências, ou eles abandonaram seu projeto neste
ta (identificando falhas de sintaxe e ortografia nos textos ponto, lançando as bases de novas ciências, positivas
escritos ou de coerência e sintaxe nas apresentações orais)
e regionais – como aconteceu de diversos modos com
e à oferta de iguais oportunidades, principalmente em
Aristóteles, Descartes, Leibniz – ou então, no mais das
atividades em grupo, debates e plenárias. Práticas como
vezes, essa parte de sua obra reduziu-se a uma reunião
essas tornam explícito o cuidado com a cidadania, que
mais ou menos harmoniosa e sedutora de trivialidades
deve envolver todas as personagens do cotidiano escolar.
equívocas. Entre os maiores, sem dúvida, esses monu-
Tal cuidado permite que um ambiente de confiança se
instale; e, quando há confiança, favorece-se a criativida- mentos de um conhecimento positivo imaginário são
de. Resumindo, trata-se de explicitar que o que se avalia ainda, de modo indireto, portadores de um conteúdo
não é a pessoa, mas o seu trabalho. Conscientemente ou filosófico. Mas é preciso então fazer abstração de sua
não, sempre adotamos uma ética em nosso gesto educa- aparência de representação sintética de um mundo de
tivo (uma ética da colaboração ou da concorrência, do fatos, para ver aí só a expressão metafórica de uma in-
respeito humano ou da acepção de pessoas etc.). Avaliar, tenção oculta. Essa intenção oculta, que acreditamos
portanto, é uma atividade que põe em questão a nossa que habita toda Filosofia, visa organizar não os fatos,
própria concepção de educação. mas significações. Tomaremos essa palavra primeiro
tal como existe na linguagem, acentuando contudo
INTERDISCIPLINARIDADE a oposição, de um lado, do significado e do fato e, de
Este livro contém várias atividades interdisciplinares. outro, o apelo a uma experiência global – ao menos
De certa maneira, pode-se dizer que o próprio tratamento virtualmente global que envolve experiências imedia-
filosófico dado aos temas da Unidade 2 é algo “interdiscipli- tamente vividas como parciais e que a “significação”
nar”, pois aciona elementos de várias disciplinas filosóficas põe em perspectiva. Mas a tarefa a que nos propomos
e não filosóficas. O que explica essa atitude são os próprios aqui é justamente a de dar corpo a essa noção ainda
objetos de estudo e a busca da especificidade filosófica confusa, e, se possível, articulá-la. Expressar o que en-
no tratamento deles, sendo que tal especificidade solicita, tendemos por conhecimento filosófico é tentar expli-
muitas vezes, diferentes perspectivas. citar em conceitos essa articulação sui generis, mostrar
De modo análogo, é também pela atenção aos objetos um trabalho da forma e do conteúdo que seja de uma
de estudo que este livro determina sua concepção de inter- natureza diversa da do pensamento científico.
disciplinaridade em geral (entre os saberes e entre as dis-
ciplinas escolares), porque, concebendo a Filosofia como De uma outra natureza, sem contudo afastar-se tanto do
pensamento do pensamento, ele assume que a Filosofia não pensamento científico a ponto de não mais merecer o
tem “um” objeto específico, mas opera em grande parte
título de atividade conceitual, então o que é um conceito
sobre os objetos construídos pelos outros saberes. A interdis-
filosófico? Propor a qualificação conceitual para a obra
ciplinaridade, assim, vem da raiz da atividade filosófica e
do filósofo é dar um nome ao problema e não fornecer a
não de um esforço ou de uma boa vontade para abrir-se aos
sua solução. Em todo caso, se o conhecimento filosófico
outros saberes em busca de alguma “ação em conjunto”.
é irredutível à ciência, sempre nos pareceu que devesse
Sem precisarmos propor uma resposta categórica para a
questão de saber se a Filosofia tem ou não um objeto próprio, conservar duas características que, sem dúvida, serviram
vale recordar o que dizia o Prof. Gilles-Gaston Granger: mais ou menos claramente de pretextos aos que queriam
assimilar o conhecimento filosófico a uma ciência: porque
Pode-se dizer que a Filosofia não tem objeto, por me- ele é analítico e arquitetônico ao mesmo tempo, mas de
nos que se tenha a preocupação de dar a esta palavra modo diferente do das ciências, uma vez que seus atos
um alcance racionalmente rigoroso, embora bastante de análise e de construção não se referem a fatos, não
amplo, para ser aplicado ao mesmo tempo aos objetos visam uma representação abstrata dos fatos, propriamente
do senso comum e aos objetos da ciência. A crença, falando, não há objetos filosóficos.22
geralmente muito difundida de que a Filosofia fala
de tudo é perfeitamente correta no fundo: o campo de
22
GRANGER, 1989, p. 234.

418 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


Seria possível, evidentemente, explorar com mais demora DANNER, L. F. Ensino de Filosofia e interdisciplinaridade.
o pensamento do Prof. Granger e estabelecer um debate, Porto Alegre: Fi, 2013.
sobretudo em torno de sua concepção de Filosofia. Afinal, DE LIBERA, A. Arqueologia do sujeito. Tradução Fátima
ainda que afirmemos não haver objetos filosóficos, é difícil Conceição Murad. São Paulo: FAP-Unifesp, 2013. v. 1.
negar que, se a Filosofia é o pensamento do pensamento,
então o próprio pensamento é o objeto da Filosofia. Se há DOMINGUES, I. Painel: Filosofia no Brasil – perspectivas
atos que consideramos filosóficos, é porque eles são deter- no ensino, na pesquisa e na vida pública. Kriterion, Belo
minados por um tipo de objeto, o qual certamente não é um Horizonte, v. 129, p. 389-396, 2014.
conteúdo preciso, mas o modo como se aborda tal conteúdo: GALLO, S. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática
o modo da atenção ao próprio fazer-se do pensamento. No para o ensino médio. Campinas: Papirus, 2012.
entanto, é difícil negar que, no tocante à relação da Filosofia
GRANGER, G.-G. Por um conhecimento filosófico.
com outros saberes, notadamente as ciências, a reflexão do
Campinas: Papirus, 1989.
Prof. Granger é primorosa. É com uma orientação parecida
à dele que neste livro são propostos diferentes projetos e ati- GUIMARÃES, B. et al. Filosofia como esclarecimento. Belo
vidades interdisciplinares. Todos procuram unir pela raiz da Horizonte: Autêntica, 2014.
crítica do conhecimento ou da crítica da cultura o trabalho KOHAN, W. (Org.). Filosofia: caminhos para seu ensino.
comum entre a Filosofia e outros saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
KOHAN, W. Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar.
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
ALMEIDA JÚNIOR, J. B. A avaliação em Acesse:
LEBRUN, G. Por que filósofo? Estudos Acesse:

Filosofia. Princípios, v. 12, p. 145-156, 2005. Cebrap, v. 15, p. 148-153, 1976. Disponível
Disponível em: <http://www.principios.cchla. em: <http://www.cebrap.org.br/v2/files/
ufrn.br/arquivos/17-18P-145-156.pdf>. Acesso upload/biblioteca_virtual/por_que_filosofo.
em: 19 abr. 2016. pdf >. Acesso em: 15 abr. 2016.
ARANTES, P. E. et al. A filosofia e seu ensino. 2. ed. São MAAMARI, A. et al. Filosofia na Universidade. Ijuí, RS:
Paulo: Vozes/Educ, 1995. Ed. da Unijuí, 2006.
AZAR FILHO, C. M.; CUNHA RIBEIRO, L. A. Para que MARTINS, M. F.; REIS PEREIRA, A. (Orgs.). Filosofia
Filosofia? Um guia de leitura para o Ensino Médio. Rio de e educação – ensaios sobre autores clássicos. São Carlos:
Janeiro: Nau, 2014. EdUFSCar, 2014.
CERLETTI, A. O ensino de filosofia como problema filosó- MEDINA SILVA, I. Avaliação no ensino Acesse:
fico. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. de Filosofia. Philosophica 7, Lisboa, p.
CHAUI, M. Ideologia e educação. Acesse: 151-162, 1996. Disponível em: <www.
Educação e pesquisa, v. 42, p. 245-258, cent rodef ilosof ia.com/uploads/pdf s/
2016. Disponível em: <http://www.scielo. philosophica/7/8.pdf>. Acesso em: 19 abr.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517- 2016.
97022016000100245&lng=en&tlng=en>. MERLEAU-PONTY, M. Em toda e em nenhuma parte.
Acesso em: 19 abr. 2016. In: Textos selecionados. Tradução Marilena de Souza Chaui.
CHAUI, M. Percursos de Marilena Chaui: São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Coleção Os Pensadores).
Acesse:
Filosofia, Política, Educação. Educação e MURCHO, D. Avaliação em Filosofia e Acesse:
pesquisa, v. 42, p. 259-277, 2016. Disponível em: subjetividade. Crítica na rede, jun. 2003.
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ Disponível em: <http://criticanarede.com/
arttext&pid=S1517-97022016000100259&ln fil_avaliacao2.html>. Acesso em: 19 abr.
g=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 19 2016.
abr. 2016.
NOBRE, M.; TERRA, R. Ensinar Filosofia: uma conversa
GOLDSCHMIDT, V. Tempo histórico e Acesse: sobre aprender a aprender. Campinas: Papirus, 2007.
tempo lógico na interpretação dos sistemas
filosóficos. In: . A religião de Platão. NOGUEIRA, R. O ensino de Filosofia e a Lei 10.639. Rio
Tradução Oswaldo e Ieda Porchat. São Paulo: de Janeiro: Pallas, 2014.
Difusão Europeia do Livro, 1963. p. 139-147. NOVAES, J.; AZEVEDO, M. A. O. (Orgs.). Filosofia e seu
Disponível em: <http://www.dfmc.ufscar. ensino: desafios emergentes. Porto Alegre: Sulina, 2010.
br/uploads/documents/5078a0dc6a473.pdf>. Acesso em: PIOVESAN, A. et al. Filosofia e ensino em debate. Ijuí:
12 abr. 2016. Unijuí, 2002.

Manual do Professor 419


PORTA, M. A filosofia a partir de seus problemas. São Também merece destaque o volume 14 da Coleção
Paulo: Loyola, 2003. Explorando o Ensino, fornecida gratuitamente pelo
PR ADO JÚNIOR, B. Um convite à MEC como subsídio aos professores do Ensino Médio:
Acesse:

falsificação. Folha on line, São Paulo, 19 dez.


1999. Disponível em: <http://www1.folha.uol. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação
com.br/fol/brasil500/dc_2_2.htm>. Acesso Básica. Filosofia – Ensino Médio. CARVALHO, Marcelo;
em: 18 abr. 2016. CORNELLI, Gabriele (Orgs.). Brasília: MEC/SEB,
RIBEIRO DE MOURA, C. A. História 2010. (Coleção Explorando o Ensino). Acesse:
Acesse:

stultitiae e história sapientiae. Discurso 17, v. 14. Disponível em: <http://portal.


p. 151-171, 1988. Disponível em: <http:// mec.gov.br/index .php?opt ion=com _
w w w.revist as.usp.br/discurso/ar t icle/ docman&view=download&alias=7837-2011-
view/37935/40662>. Acesso em: 12 abr. 2016. filosofia-capa-pdf&category_slug=abril-2011-
pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 19 abr. 2016.
SÁ JUNIOR, L. A. Ensino de filosofia: experiências e pro-
blematizações. Campinas: Pontes, 2014. Para a conexão do Ensino Médio com o atual quadro do
SAVIAN FILHO, J. Seria o sujeito uma ensino universitário de Filosofia no Brasil, sugerem-se os
Acesse:
criação medieval? Temas de arqueologia artigos abaixo, pertencentes ao dossiê de 2013 da Sociedade
filosófica. Trans/Form/Ação, v. 38, n. 2, Interamericana de Filosofia, que podem ser acessados
p. 175-204, 2015. Disponível em: <http:// gratuitamente no site da revista Kriterion,
www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/ da Universidade Federal de Minas Gerais. Acesse:

transformacao/article/view/5239/3690>. (Disponível em: <http://www.scielo.br/


Acesso em: 15 abr. 2016. scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0100-
VEYNE, P. Como se escreve a História. Tradução Alda Baltar 512X20140001&lng=pt&nrm=iso>. Acesso
e Maria Auxiliadora Kneipp. Brasília: EdUnB, 1982. em: 19 abr. 2016.)

Merecem destaque os documentos oficiais norteadores ALMEIDA, G. A. Perspectivas da Filosofia no Brasil do


do Ensino de Filosofia no Brasil: ponto de vista de um scholar. Kriterion, Belo Horizonte, v.
129, p. 411-416, 2014.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria Acesse:
BERLENDIS FIGUEIREDO, V. Falta debate. Kriterion,
de Educação Básica. Parâmetros Curriculares Belo Horizonte, v. 129, p. 417-424, 2014.
Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: CHAUI, M. Contra o febeapá. Kriterion, Belo Horizonte, v.
MEC/SEB, 1999. Disponível em: <http:// 129, p. 431-438, 2014.
portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ciencian.
MARGUTTI, P. Sobre a nossa tradição exegética e a neces-
pdf>. Acesso em: 19 abr. 2016.
sidade de uma reavaliação do ensino de Filosofia no país.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria Acesse: Kriterion, Belo Horizonte, v. 129, p. 397-410, 2014.
de Educação Básica. Orientações Curriculares
SALLES, J. C. Os livros e a noite. Kriterion, Belo Horizonte,
para o Ensino Médio. v. 3: Ciências Humanas
v. 129, p. 425-431, 2014.
e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/
arquivos/pdf/book_volume_03_internet.pdf>.
Acesso em: 19 abr. 2016.

420 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


UNIDADE 1 PORTAS PARA A FILOSOFIA

Capítulo 1 Desconstruir para compreender


OBJETIVO
Apresentar um dos elementos que costumam ser con- metaforicamente como portas da Filosofia. Trata-se de con-
siderados primordiais para a reflexão filosófica e que aqui siderar que a experiência consciente nesses campos (que re-
denominamos desconstrução. Como explicitado ao longo cobrem de certa maneira as diferentes possibilidades huma-
do capítulo, não se trata de assumir como atitude carac- nas) permite ingressar na atividade propriamente filosófica,
terística do livro aquilo que na filosofia contemporânea iniciando, assim, um “hábito filosófico”. Ao adotar, porém, o
se chama tecnicamente de desconstrução (via Heidegger vocabulário da existência, este livro não pretende inscrever-se
ou via Derrida), mas de apontar para uma atitude que se em uma abordagem tecnicamente existencialista nem filiar-se
pode constituir em um hábito filosófico: o de abrir-se ao a uma filosofia em específico, mas convidar os estudantes a
pensamento alheio e, com uma postura de respeito intelec- prestar uma especial atenção ao fato de que, independente-
tual e ético, analisá-lo (“desmontá-lo”), a fim de conhecê- mente da interpretação que dermos ao ser do mundo, estamos
lo em seu próprio funcionamento. no mundo e devemos grande parte de nosso ser ao conjunto
de relações que estabelecemos. Por fim, falar de saberes, nele
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS incluindo as ciências, as artes, a religião etc., significa des-
A estratégia adotada neste capítulo foi apontar e identificar pertar nos estudantes a atenção às diferentes maneiras como
dois grandes campos de experiência nos quais a atitude da os seres humanos descobrem ou produzem sentidos em sua
desconstrução pode ser despertada: o da experiência “exis- existência individual e social. Não se trata, portanto, de re-
tencial” (campo do sentido das atividades humanas) e o da duzir essas atividades ou práticas a um aspecto intelectualis-
atenção especificamente epistemológica (campo privilegiado ta ou racionalista, mas de concebê-las como maneiras de ser
do pensamento ou dos saberes). Tais campos são denominados consciente de si mesmo e do mundo circundante.

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

Procedimento
filosófico

porta da existência

Desconstrução desmontagem portas da Filosofia


Inspiração:
Derrida porta dos saberes
Heidegger
Pedro Abelardo

Intersubjetividade

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 16)
O procedimento de desconstrução pode ser aplicado às ou- Espera-se, neste exercício, que o grupo seja capaz de dia-
tras questões que fizemos quando desmembramos a pergun- logar e compreender as justificativas do procedimento de des-
ta principal sobre o sentido da existência. Em grupos e sob construção da questão escolhida, como também de refletir em
a orientação de seu(sua) professor(a), escolha uma daquelas conjunto sobre a solidez de sua resposta.
questões e a respectiva resposta que já levantamos nos exem-
plos (sobre o trabalho, o amor, o corpo, a amizade e a existên- EXERCÍCIO B (p. 19)
cia de ricos e pobres). Desconstrua a resposta e, em seguida, Considerando que nas artes e nas religiões a Filosofia pode
diga se o seu grupo concorda com ela ou discorda dela. Não operar uma desconstrução a fim de esclarecer o que essas prá-
se esqueça de justificar a posição tomada pelo seu grupo. ticas envolvem, reúna-se em grupo sob orientação de seu(sua)

Manual do Professor 421


professor(a). Cada grupo deve refletir e levantar perguntas com a conjunção “ou”, a fim de mostrar que também não é
sobre a arte e a religião, semelhantes às que foram levantadas necessário considerar como excludentes a injustiça do mundo
neste capítulo a respeito do conhecimento científico. Vocês e a falta de vontade de trabalhar de algumas pessoas.
podem partir de perguntas muito concretas, na forma se... Pode-se propor a desconstrução dessa frase por meio do
então...? Alguns exemplos: Se a arte está relacionada à bele- esquema na página ao lado.
za, então toda arte é bela? Se a religião fala de Deus, então
as religiões sabem quem é ele? Para montar essas perguntas, 2 Desconstrução de concepções cotidianas
vocês devem partir de sua experiência cotidiana, daquilo que relacionadas aos saberes
vocês observam na prática artística e religiosa. Tomem como A fim de aproximar mais da realidade cotidiana o tipo de
inspiração as imagens e legendas ao lado. desconstrução que a Filosofia pode operar no campo dos sa-
Semelhante ao exercício anterior, o que está em pauta neste beres, propomos duas situações didáticas referentes à arte e à
exercício é a prática em grupo do procedimento de descons- religião (saberes menos explorados no capítulo, que se concen-
trução, tendo em vista a análise das justificativas para nossas tra mais nas ciências):
respostas cotidianas.
1. Comparar a imagem da obra Fonte (Fontaine), de Marcel
Duchamp ( p. 19), com a imagem de um mictório comum,
PROPOSTAS DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES tal como se observa em banheiros públicos. Perguntar: (a)
1 Coerência no discurso por que um mictório comum, por mais bem feito e bonito
Embora a atividade filosófica não se reduza a uma simples que seja, não tem o mesmo sentido artístico que a Fonte de
análise de discurso, o cuidado com o aspecto discursivo é de Duchamp?; (b) por que um mictório como o de Duchamp
grande relevância não apenas para a atenção a aspectos formais é considerado arte? A fim de subsidiar a atividade, segue um
do pensamento, mas também para as estratégias de convenci- breve relato da história da obra de Duchamp: Françoise Le
mento em vistas da ação consciente, livre e republicana. Penven (2001), no livro Marcel Duchamp dans les collections
Propõe-se aqui a desconstrução de um pensamento expresso du Musée National d’Art Moderne (Marcel Duchamp nas
por uma jovem do Ensino Médio, no tempo em que ela era coleções do Museu Nacional de Arte Moderna), explica que,
aluna do autor deste livro. Durante uma aula sobre o tema das na época em que Duchamp “produziu” a obra Fontaine, ele
desigualdades econômicas que marcam a vida social, ela as- era membro da direção da Society of Independent Artists
sim se manifestou: [Sociedade de Artistas Independentes] de Nova York. Essa
sociedade havia sido fundada em 1916, com a regra de que
Há ricos e pobres no mundo porque o mundo é injusto e por- todo artista podia se afiliar a ela preenchendo apenas um
que alguns não trabalham. formulário. Não haveria nem avaliação nem recompensa,
pois o objetivo era respeitar e reconhecer o trabalho livre
No contexto em que a jovem pronunciou essa frase, era dos artistas. Em outras palavras, nenhuma obra artística
possível compreender o que ela pretendia: há uma “injusti- poderia ser recusada com critérios estéticos. Por essa ra-
ça” no mundo (desigualdade de oportunidades, concorrência zão, na primeira exposição da Sociedade, no ano 1917, os
exagerada etc.) e, além disso, algumas pessoas não gostam de diretores decidiram que todo artista poderia expor a obra
trabalhar. No entanto, na forma como a frase foi pronunciada, que desejasse, pagando simplesmente a taxa de seis dóla-
também era possível problematizar o pensamento da jovem; res para cobrir os gastos da exposição. Marcel Duchamp
afinal, se ela afirmava, por um lado, que o mundo é injusto e, decidiu enviar um mictório, assinado com o pseudônimo
por outro lado, que alguns não gostam de trabalhar, sua frase de R. Mutt. Ninguém sabia que o autor daquela “obra”
dava a impressão de que o fato de não trabalhar é de estrita era Duchamp. A obra vinha acompanhada de uma breve
responsabilidade dos indivíduos. Em outras palavras, a frase apresentação de R. Mutt como um artista da Filadélfia.
não leva em consideração que o fato de não trabalhar também Os diretores da Sociedade decidiram, porém, não expor
pode ser resultado da “injustiça” observada no mundo (e não aquela “peça sanitária”, pois ela não seria uma obra de arte,
apenas uma questão de gostar ou não de trabalhar). mas um objeto “imoral e vulgar” ou, no máximo, o plágio de
Tem-se aqui a ocasião de esclarecer que a construção gra- um objeto comum, produzido pela técnica dos encanadores.
matical, em vez de ser um engessamento do pensamento (como O problema dessa recusa é que ela contrariava o princípio
talvez ocorra em alguns casos), também pode ser um meio fa- básico da Sociedade de Artistas Independentes (não deveria
vorável ao esclarecimento da própria percepção do mundo e da haver avaliação para controlar a exposição das obras). Além
expressão dessa percepção. Dessa perspectiva, para evitar que disso, a persona R. Mutt pagou a taxa de seis dólares, que
o fato de não trabalhar seja considerado mera responsabilidade era a única exigência. Walter Arensberg (1878-1954), poeta
individual, seria conveniente articular as duas frases: “Há ricos e um dos membros da direção da Sociedade, chegou a to-
e pobres porque o mundo é injusto” e “Há ricos e pobres por- mar a defesa de R. Mutt, dizendo que o mictório não era
que alguns não trabalham” com conjunções diferentes de “e” vulgar, mas possuía uma forma atraente, liberada de sua
e “porque”. Seria mais adequado usar as conjunções “embora” função técnica cotidiana. No seu dizer, Mutt tinha feito um
ou “apesar de que”. Para estabelecer um contraste, seria pedago- grande gesto estético ao transformar um objeto comum de
gicamente interessante estabelecer uma relação de alternativa, uso em um objeto de expressão artística. Sabendo da recusa,

422 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


[Há ricos e pobres porque o mundo é injusto] e porque [alguns não trabalham].
Período composto por coordenação
Período em que uma oração é registrada sem relação de dependência para com a outra oração

Há ricos e pobres porque o mundo é injusto. Há ricos e pobres porque alguns não trabalham.

Há ricos e pobres. O mundo é injusto. Há ricos e pobres. Alguns não trabalham.

Período composto por subordinação Período composto por subordinação

Período em que uma oração é registrada Período em que uma oração é registrada
em dependência de outra oração em dependência de outra oração

Há ricos e pobres Há ricos e pobres


porque porque
(conjunção causal) (conjunção causal)
o mundo é injusto. alguns não trabalham.

Já se explicou que o fato de o mundo ser injusto Já se explicou que o fato de alguns não trabalharem
é a causa de haver ricos e pobres. é a causa de haver ricos e pobres.

O que é possível fazer com esses dois períodos juntos?


Seguindo o que realmente pretendia dizer a jovem, não é possível afirmar que os
dois períodos são verdadeiros ao mesmo tempo, pois eles se anulariam.
Mas é possível apontar para duas alternativas:

OU
Ou há ricos e pobres porque o mundo é injusto ou há ricos e pobres porque alguns não trabalham.

EMBORA
Há ricos e pobres porque o mundo é injusto, embora alguns também não trabalhem.

Duchamp se demitiu do Conselho Diretor da Sociedade. A escreveu um artigo com o título “O buda do banheiro” e
pintora Katherine Dreier (1877-1952), ao entender a história, brincou com a pergunta: “O mictório era sério ou uma pia-
desculpou-se com Duchamp e justificou que votou contra da?”, que ela mesma respondeu: “Talvez as duas coisas”.
porque o mictório não tinha originalidade e porque nada Sua resposta evocou a liberdade do artista em jogar com a
garantia que não fosse obra de um farsante. Ela chegou a realidade, com o que parece fixo e definido. Essa liberdade,
propor que Duchamp desse uma conferência sobre o mictó- aliás, foi um ponto de honra para Duchamp, que fez foto-
rio e explicasse que se tratava de um ready-made, ou seja, de grafar a Fonte diante do quadro The Warriors, de Marsden
um objeto tirado do uso comum, sobretudo industrializado, Hartley (quadro que representava combatentes no ano 1918,
para ser usado como obra de arte. Duchamp não atendeu à exatamente quando soldados norte-americanos começavam
sugestão de Dreier. Um artigo, porém, foi publicado numa a entrar nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial em
revista satírica, chamada The Blind Man (O homem cego), nome da democracia).
fundada na ocasião da primeira exposição da Sociedade. O
artigo era anônimo e causou grande impacto na imprensa 2. Ler o texto abaixo, tendo em mente que, para muitas
nova-iorquina, porque, ao tomar a defesa de R. Mutt, dizia pessoas, a reflexão filosófica não pode se relacionar com a
que, na verdade, as únicas obras de arte produzidas naquele religião, a não ser para criticá-la (a religião seria sinal de atraso
momento na América do Norte eram de fato encanamen- intelectual, de violência etc.). No entanto, a Filosofia seria
tos e pontes. Louise Norton, esposa do poeta Allen Norton, uma antifilosofia se se recusasse a analisar sem preconceitos

Manual do Professor 423


algum aspecto da experiência humana (afinal, como pensa- batismo do bebê Antonio Debray possuía uma significação
mento do pensamento, a Filosofia é marcada por uma abertura particular. “Vocês conhecem tanto quanto eu o itinerário de
universal, dada pela universalidade mesma do pensamento). Rémi (Regis Debray). Que ele tenha decidido por esse ato,
Para além do mero interesse analítico, é desafiador pergun- isso vai contar para nosso país”, garante o religioso. “Antonio
tar: é coerente que um filósofo tenha fé religiosa? O texto a é um nome que evoca a sede de absoluto, a mesma sede que
seguir retrata justamente o caso do escritor Max Gallo e do animava um dos primeiros monges da era cristã [Antonio
filósofo Régis Debray, que passaram do ateísmo à fé. Ambos ou Antão], que se retirou para o deserto a fim de nutrir uma
são bastante conhecidos por seu engajamento político anti- relação íntima com Deus. Talvez seja a indicação de que
capitalista nos anos 1960-1970 em favor do Terceiro Mundo. estamos chegando a uma nova decolagem da fé”.
O texto é um artigo publicado em 2002, no jornal francês
Le Monde [O Mundo], por ocasião do lançamento do livro CHEMIN, A. Le retour à Dieu de Régis Debray et Max Gallo.
Os cristãos, de Max Gallo: Le Monde, Paris, 19 out. 2002. (O retorno de Régis Debray e Max
Gallo a Deus. Tradução nossa.)

Régis Debray e Max Gallo retornam à fé


Ariane Chemin Apesar de conter muitas referências, inclusive distantes da
realidade brasileira, esse texto foi escolhido aqui por repre-
É um caso que intriga. Fazendo parte da geração que vi- sentar a atitude de dois representantes da cultura do século
brou com os anos 1960, com o comunismo e com o Terceiro XX. Ele permite encarar a religião sem acentuar apenas seus
Mundo, e sendo alguém que ainda sofre para contar sua eventuais aspectos negativos (autoritários, obscurantistas
história, Max Gallo maquiou os nomes dos protagonistas etc.). Como, na atualidade, elementos religiosos negativos
que compõem Os cristãos, saga em três volumes que acaba vêm cada vez mais à tona, é importante distinguir as coisas
de ser publicada pela Editora Fayard. Por trás das Giseles e perceber que a experiência religiosa pode ter uma motiva-
e dos Samis que povoam a narrativa íntima dos encontros ção autêntica, expressa no texto pela “sede do absoluto”. Essa
do escritor com Deus, alguns observadores conseguiram distinção ganha ainda mais clareza quando se pensa que a
reconhecer algumas figuras da intelligentsia parisiense de França é declaradamente um país laico e que a população,
esquerda. Mais importante de tudo é que, sob o nome de depois da Revolução Francesa do século XVIII, esforça-
Rémi, talvez esteja a figura de Régis Debray. No dia 20 de se para que as crenças religiosas não interfiram na vida pú-
outubro de 2001, em plena tarde, Max Gallo foi à igreja de blica. Muitos se tornaram, aliás, antirreligiosos, quer dizer,
Saint-Sulpice, no bairro de número 6, em Paris, para assis- combatentes de qualquer intromissão religiosa na política
tir ao batismo do filho de um amigo. Antes da cerimônia, o e na vida social. Não se trata aqui de defender a religião,
padre chamou o escritor de lado e o incentivou a escrever mas de mostrar que a curiosidade filosófica pode interessar-
um romance com a história de São Martinho de Tours, do se pelo que há de específico na experiência religiosa. De
rei Clóvis e de São Bernardo de Claraval. Duas horas mais acordo com o texto, o que há de específico não é a frequen-
tarde, o padre fez uma pregação tão tocante, que Max Gallo tação de uma religião institucionalizada, mas a relação com
chorou, ajoelhou-se e, num gesto quase claudeliano [radi- Deus. Podemos, então, aguçar nossa curiosidade filosófica
cal, dramático], pôs-se a orar. O jornal Le Figaro e o sema- e perguntar: que tipo de relação é essa? Como é possível
nário católico La Vie relataram a experiência da conversão falar de Deus em um mundo marcado por tantas violências
repentina de Max Gallo, biógrafo de Robespierre e de Rosa religiosas e mesmo depois de tantas descobertas científicas
Luxemburgo. Mas só os amigos militantes reconheceram, que entram muitas vezes em choque com o pensamento de
entre os convidados da cerimônia religiosa, a advogada fe- indivíduos religiosos?
minista “Gisèle” Halimi ou o deputado europeu de tendên-
cia republicana “Sami” Naïr. Só os iniciados na cultura de
Maio de 1968 compreenderam que, por trás da ausência de SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
“Nikos”, “Pierre” e “Louis”, Max Gallo chorava Poulantzas, GALLO, S. Metodologia para o ensino de Filosofia. Campinas:
Goldman ou Althusser. Só os happy few [os convidados ín- Papirus, 2012.
timos] do batismo sabiam que “Rémi”, o pai do bebê, era GRANGER, G.-G. Filosofia, linguagem, ciência. Tradução Ivo
o antigo partidário de Che Guevara e Fidel Castro: Régis Storniolo. Aparecida: Ideias e Letras, 2013.
Debray, que acabava de publicar Deus, um itinerário e que
tinha recebido de Jack Lang a missão de escrever um relatório GOLDSCHMIDT, V. Tempo histórico e tempo lógico na
sobre o ensino do fato religioso. “No fundo, Régis Debray e interpretação dos sistemas filosóficos. In: . A religião de
Max Gallo não aceitam viver sem Deus”, interpretou uma Platão. Tradução Oswaldo e Ieda Porchat.
das testemunhas da cerimônia, imortalizada pelo diretor São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963. Acesse:

da campanha presidencial “chevènementista” [referência a p. 139-147. Disponível em: <http://www.dfmc.


Jean-Pierre Chevènement, político francês cofundador do ufscar.br/uploads/documents/5078a0dc6a473.
Partido Socialista e que concorreu às eleições presidenciais pdf>. Acesso em: 12 abr. 2016.
na França em 2002]. Para Max Gallo, como para o padre, o

424 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


Capítulo 2 Reconstruir para compreender ainda melhor

OBJETIVO
Apresentar outro elemento bastante valorizado em compreensão da Filosofia como mera análise de discursos
muitas filosofias: a construção do pensamento. Se houvesse ou de visões de mundo, nem em uma defesa da Filosofia
apenas uma ênfase no aspecto da desconstrução (Capítulo como “produtora de sentido”. Procura-se, na verdade, tratar
1), poder-se-ia dar a impressão de que a atividade filosófica esses dois aspectos como possivelmente coexistentes e talvez
nunca é propositiva, mas se reduz apenas a uma análise complementares. A fim de contribuir com a reflexão dos
de discursos ou, quando se baseia na História da Filosofia, professores, sugere-se aqui com insistência a leitura dos
não passa de uma análise de pensamentos mortos. Em artigos escritos pelos professores Carlos Alberto Ribeiro
vez disso, há inúmeros pensadores que defendem uma de Moura (1988), “História stultitiae e história sapientiae”,
concepção da Filosofia como atividade que tem algo a e Franklin Leopoldo e Silva (1992), “Por que Filosofia no
dizer (sobre o funcionamento do mundo, da percepção Segundo Grau”.
humana, do pensamento, das artes etc.). O debate é intenso
e complexo; e, mesmo quando se faz História da Filosofia, CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
é possível pensar que há proposições ou propostas na Para chamar a atenção ao trabalho construtivo ou re-
atividade filosófica. Por fim, há pensadores que ainda se construtivo em Filosofia, o capítulo está estruturado sobre
comprometem com uma visão da Filosofia como produtora a estratégia de comparar o exemplo dado por Karl Marx e
de “visões de mundo”, embora sua maior força esteja em por Epicteto. Enquanto Marx se dedica à análise (descons-
ser a crítica das visões de mundo. A fim de permitir aos trução) e proposta (reconstrução) de um sentido para algo
colegas professores a liberdade de tomar a posição que mais que depende da liberdade humana, Epicteto faz um trabalho
lhe pareça coerente, este livro não se fecha nem em uma parecido, mas se dedicando a algo que não depende dela.

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

Procedimento
filosófico

de expressões de sentidos que


dependem de nós (ex.: Marx)

Construção e reconstrução
(além da desconstrução)
de expressões de sentidos que
não dependem de nós (ex.: Epicteto)

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 29)
1. Reflita sobre o modo como Karl Marx explicou o fun- 2. Por que o texto de Epicteto pode ser considerado um
cionamento da relação humana com as mercadorias e exemplo da atividade construtiva típica da Filosofia?
argumente se você considera essa explicação adequada Porque é por meio de argumentos compreensíveis univer-
para exprimir a sua experiência de vida. Dê exemplos salmente (racionalmente) que Epicteto propõe um conjunto
que confirmem sua resposta. de reflexões sobre um caminho para a conquista da sabedo-
Segundo Marx, o valor da mercadoria está relacionado ria e da vida feliz, analisando aquilo que depende de nós.
mais ao valor social da moda, do mercado e da cultura do
que ao valor de uso efetivo e de produção social. Espera-se
que, com base na reflexão sobre a concepção marxiana, os PROPOSTA DE ATIVIDADE COMPLEMENTAR
estudantes possam conectá-la com suas vidas cotidianas e Pode-se proceder a uma análise de frases que expri-
perceber se ela as explica adequadamente ou não. Ao po- mem pensamentos comuns do cotidiano e podem ser
sicionar-se, eles devem sempre ser convidados a justificar reconstruídas com base em uma observação mais atenta
suas respostas, dando exemplos. da experiência:

Manual do Professor 425


DESCONSTRUÇÃO RECONSTRUÇÃO

Mas se em vez disso


Costuma-se dizer que: Poderemos então dizer que:
observarmos que:

Quando vamos à escola, uma das coisas que Vamos à escola para desenvolver nossas ca-
Vamos à escola para nos prepararmos construímos é o nosso autoconhecimento e o pacidades de conhecer e de criar relações,
para a vida e entrarmos no mundo do conhecimento da vida em sociedade, permitin- embora essas capacidades possam ser de-
trabalho. do-nos crescer como indivíduos e como mem- senvolvidas de outras maneiras, diferentes
bros do conjunto social. da escola.

Trabalhamos para produzir nossa sobrevi-


Quando trabalhamos, não obtemos apenas o
vência, mas também para desenvolver nos-
Trabalhamos para ter um lugar na socie- necessário para sobreviver, mas podemos tam-
sas habilidades e mostrar uma parte do que
dade e comprar o que desejamos. bém realizar nossas habilidades e mostrar o
somos individualmente, embora nem todos
modo como nos vemos a nós mesmos.
consigam trabalhos que permitam fazer isso.

Quando amamos, estabelecemos relações que Preocupamo-nos com o amor porque nos
podem ser interesseiras ou generosas. É difícil sentimos bem quando estamos com quem
Preocupamo-nos com o amor porque só
separar claramente o interesse pessoal da ge- amamos, mas isso não quer dizer que pesso-
assim não ficaremos sozinhos.
nerosidade e vice-versa. De todo modo, o amor as que vivem sozinhas ou que são solitárias
evita a solidão. não amam.

Nem todas as pessoas têm a mesma opinião Devemos cuidar do corpo a fim de fazer o que
sobre a beleza. Cuidar do corpo é também uma está ao nosso alcance para manter a saúde,
Devemos cuidar do corpo para termos
forma de ter saúde, embora, em alguns casos, sabendo que também podemos nos traba-
beleza e saúde.
mesmo cuidando de seu corpo, algumas pesso- lhar para nos sentirmos belos, sem tomar por
as não conseguem ter saúde. beleza modelos impostos pelos outros.

Nem sempre somos determinados pelo funcio- Não tenho o corpo que gostaria de ter por-
Não tenho o corpo que queria porque
namento da Natureza, assim como nem sem- que talvez não cuide dele o suficiente, mas
a Natureza me fez assim ou porque não
pre podemos fazer o que queremos com nosso também porque, em alguns aspectos, minha
me cuido.
corpo. constituição física não permite mudança.

Mesmo tendo semelhanças com nossos amigos,


somos às vezes muito diferentes, e isso torna Sou parecido com meus amigos porque é
Sou como meus amigos porque somos
nossa amizade ainda mais forte. Aliás, é impos- normal que pessoas com interesses pareci-
parecidos e nos sentimos bem desse
sível que alguém seja inteiramente idêntico a dos se aproximem, mas isso não quer dizer
jeito.
seus amigos. Sempre haverá algum aspecto que que não tenhamos diferenças.
os diferencia.

Há ricos e pobres no mundo por várias ra-


Muitas pessoas constroem riquezas; outras não
zões, entre elas, o fato de que há estruturas
Há ricos e pobres porque o mundo é constroem porque não conseguem ou porque
injustas no mundo, construídas pelos pró-
injusto e também porque alguns não não querem. Se não conseguem, é porque não
prios seres humanos, mas também o fato de
trabalham muito. se esforçam o suficiente ou porque as situações
que algumas pessoas não têm interesse em
injustas da vida em sociedade as impedem.
trabalhar tanto para enriquecer.

Para explicar por que o mundo existe, perce-


bemos que não temos condições de saber com
O mundo pode existir por várias razões, des-
O mundo existe, com todos nós dentro certeza o que se passou no momento em que
de o seu próprio dinamismo físico, material,
dele, ou porque um ser divino o criou ou ele passou a existir, nem de saber com certeza
como também porque um ser superior o
porque é resultado de um dinamismo se ele sempre existiu. Ainda assim, mesmo que
produziu num determinado momento ou o
simplesmente físico, material. tivéssemos condições de saber isso tudo, não
produz desde sempre.
poderíamos saber com certeza se tudo não é
provocado por um ser superior.

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
LEOPOLDO E SILVA, F. Por que filosofia RIBEIRO DE MOURA, C. A. História stultitiae e
Acesse: Acesse:
no Segundo Grau. Estudos Avançados, São história sapientiae. Discurso 17, São Paulo, p. 151-
Paulo, v. 6, n. 14, 1992. Disponível em: 171, 1988. Disponível em: <http://www.revistas.
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ usp.br/discurso/article/view/37935/40662>.
arttext&pid=S0103-40141992000100010>. Acesso em: 12 abr. 2016.
Acesso em: 12 abr. 2016.

Capítulo 3 O que é Filosofia?

OBJETIVO CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS


Chegar a uma possível definição de Filosofia partindo dos Parte-se das experiências tradicionalmente denominadas
modos clássicos de chamar a atenção para as experiências de admiração e insatisfação (melancolia), a fim de explicitar três
insatisfação admiração e insatisfação (melancolia). possibilidades específicas: (i) a de o indivíduo prestar atenção

426 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


em si mesmo e no seu entorno; (ii) a de que tal atenção permite o ser humano percebe a si mesmo e aos outros seres como ele-
produzir pensamento como “autoconsciência” e como “visão mentos ou polos de um grande conjunto de relações e deseja,
de mundo”; (iii) a de que o pensamento pode tomar a si mesmo em maior ou menor grau, ser reconhecido em sua singularidade
como objeto ou alvo de investigação. Nesse terceiro âmbito de exatamente como um polo em relação com outros. Essa per-
possibilidade residiria propriamente a Filosofia como “pensa- cepção ou “consciência” (em sentido também amplo) é sempre
mento do pensamento”. Empregar, no entanto, a expressão acompanhada de uma expressão mais ou menos “autoconscien-
pensamento do pensamento não significa adotar uma posição te” (expressão ou “linguagem” da presença de um objeto para
tecnicamente aristotélica (o que, aliás, seria inadequado, uma a “consciência”). A Filosofia, assim, consistiria na atividade de
vez que Aristóteles a atribui ao Primeiro Motor, e não ao pensa- pensar sobre essa percepção e suas expressões: pensamento do
mento humano), hegeliana ou outra, mas uma visão ampla em pensamento. Há certamente, aqui, um elemento intelectualista
que o filosofar consiste numa atenção qualificada ao modo como ou uma ênfase na busca de clareza compreensiva (razão), sem
se constroem e exprimem os pensamentos e os seus conteúdos. com isso pretender, no entanto, que a razão seja divorciada das
O que qualifica essa atenção é o trabalho da razão, enten- paixões ou das emoções. A esse respeito teórico-metodológico,
dida nos termos apresentados neste capítulo. Por sua vez, dar três trabalhos brasileiros são inspiradores: Introdução ao filosofar,
centralidade à razão não equivale, aqui, a comprometer-se ne- de Gerd Bornheim (2009), Antropologia filosófica – Volumes
cessariamente com uma concepção racionalista do pensamento, I e II, de Henrique C. de Lima Vaz (2013) e “Consciência e
nem empirista ou outra, mas com uma visão também ampla o História”, capítulo do livro Ontologia e História, também de
suficiente para tomar o pensamento como atividade pela qual Lima Vaz (2001).

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

A Filosofia é a reflexão FILOSOFIA


Experiência de sobre o pensamento =
insatisfação/melancolia FILOSOFIA
em sua atividade pensamento
e admiração e razão
de compreender do
a existência ou de pensamento
elaborar sentidos para
a existência.
benefício humano

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 33)
Responda à pergunta O que leva a filosofar?. Use em sua resposta
as ideias de admiração, melancolia e benefício humano. e um esforço por formular expressões adequadas desse modo
A admiração diante das coisas boas e das dificuldades da de ser, de maneira que todos os interlocutores possam avaliar
existência leva os seres humanos a perceber sua ignorância. tais expressões.
Essa percepção não causa apenas perplexidade, mas também
melancolia, como insatisfação e descontentamento, que move EXERCÍCIO C (p. 37)
as pessoas em direção à busca do conhecimento. Movidos pela Explique as partes que compõem a definição de Filosofia
admiração e pela melancolia, alguns seres humanos passam a proposta aqui (reflexão, pensamento, elaboração de sentido,
filosofar, visando, conscientemente ou não, ao benefício humano. existência) e mostre a diferença do procedimento filosófico
com relação ao procedimento dos outros saberes.
EXERCÍCIO B (p. 35) A Filosofia como reflexão é a atividade do pensamento que se
Descreva a atividade socrática e o modo como ela permite volta para si mesmo em sua prática de percepção ou de elaboração
entender o que é a razão. de sentidos para os diversos aspectos da existência, quer dizer, os
Sócrates se entendia como um “parteiro de almas”, alguém diversos aspectos que compõem o fato de estarmos no mundo, em
que fazia nascer uma consciência mais viva e livre. Sua ativi- correlação com tudo e todos. A diferença fundamental da Filosofia
dade consistia em enfatizar a ignorância como forma de evi-
em relação ao que hoje são os outros saberes reside na busca não
tar os equívocos dos conhecimentos frágeis e mal justificados.
de oferecer propriamente “retratos” da realidade (como em geral
Fundamentalmente, ela consistia em partir de uma opinião
corrente, problematizá-la por meio de uma pergunta que re- buscam os outros saberes), mas de compreender criticamente o
velasse seus equívocos e revisá-la por meio de uma formulação modo como operam esses saberes. Mesmo quando a Filosofia
mais adequada à experiência humana e à observação atenta. termina por oferecer sentidos para aspectos da existência, ela não
Esses passos permitem entender o que é a razão para Sócrates: pretende oferecer “retratos” únicos e definitivos, e sim lançar luz
uma forma de unir-se à razão que dá o modo de ser das coisas sobre a atividade humana de perceber ou construir sentidos.

Manual do Professor 427


o sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e
PROPOSTA DE ATIVIDADE COMPLEMENTAR compreensão do que seja o próprio o tempo. [...] Se abandonar
Com base no trabalho desenvolvido no capítulo, encaminhar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não
uma discussão a respeito da utilidade ou da inutilidade da Filosofia se deixar guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes
estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do
no contexto dos conhecimentos e das práticas a que estamos ha-
mundo, da Cultura e da História for útil; se conhecer o sentido
bituados. Como subsídio para essa discussão, propõe-se o texto a
das criações humanas nas artes, nas ciências e na Política for
seguir, que pode ser fornecido aos estudantes ou lido em voz alta. útil; se dar a cada um de nós e à nossa Sociedade os meios para
serem conscientes de si e de suas ações numa prática que dese-
A Filosofia é inútil ou útil? ja a liberdade e a felicidade para todos for útil; então, podemos
Marilena Chaui dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os
seres humanos são capazes.
A Filosofia não é ciência: é uma reflexão sobre os fundamen-
tos da ciência, isto é, sobre procedimentos e conceitos científicos. CHAUI, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2005.
Não é religião: é uma reflexão sobre os fundamentos da religião, p. 23-24.
isto é, sobre as causas, origens e formas das crenças religiosas.
Não é arte: é uma reflexão sobre os fundamentos da arte, isto é,
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
sobre os conteúdos, as formas, as significações das obras de arte
BORNHEIM, G. Introdução ao filosofar. São Paulo: Globo, 2009.
e do trabalho artístico. Não é Sociologia nem Psicologia, mas
a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da LIMA VAZ, H. C. Antropologia filosófica. 2 v. São Paulo:
Sociologia e da Psicologia. Não é Política, mas interpretação, Loyola, 1992.
compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas LIMA VAZ, H. C. Consciência e História. In: . Ontologia e
do Poder e suas mudanças. Não é História, mas reflexão sobre História. São Paulo: Loyola, 2001. p. 219-230.

Capítulo 4 Filosofias e modos de convencer


OBJETIVO
Apresentar, de maneira ampla e inclusiva, alguns métodos da lógica tradicional apresentados no capítulo sejam empregados
filosóficos, incluídos aqui sob certo caráter intelectualista, metodologicamente por boa parte dos filósofos, a Lógica, princi-
ou seja, de uma busca de clareza compreensiva (racional) palmente a partir do século XIX, adquiriu um caráter de reflexão
das experiências e de suas expressões. filosófica propriamente dita, articulando-se diretamente com
questões epistemológicas e metafísicas, por exemplo. Não é por
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
acaso que no século XX constituiu-se uma disciplina chamada
Dividem-se os possíveis métodos filosóficos, de modo bastante Filosofia da Lógica. No nível do Ensino Médio (e, portanto, tam-
geral, em dois grupos: o método discursivo e o método intuitivo. bém em um livro didático), parece difícil e talvez antipedagógico
No método discursivo, apresentam-se elementos da lógica tradicio- entrar no tratamento de questões filosóficas sobre a Lógica, dado
nal dedutiva, com o silogismo categórico, hipotético e dialético, o nível de abstração exigido por elas. Mas os colegas professores
embora o procedimento dialético seja aqui destacado do qua- podem ficar atentos à possibilidade de abordar algumas dessas
dro dedutivo e apresentado em formas mais amplas ou mesmo questões, caso o contexto de cada turma o permita. Para tanto,
independentes do funcionamento do silogismo (ainda que tais sugere-se a leitura do livro de Susan Haack (2002), e do estudo
formas possam ser reduzidas à forma silogística). Por sua vez, o de Franklin Leopoldo e Silva (1993). Um brilhante exemplo de
método intuitivo é apresentado em contraponto com o método trabalho filosófico que rompe a distinção entre “discurso” e “in-
discursivo, no sentido de que a ênfase dada pelo método intuitivo tuição”, unindo abordagens que muitas vezes parecem incom-
é a da “descoberta” ou da análise do que aparece como evidente, patíveis, é o conjunto de ensaios do filósofo Bento Prado Júnior
ao passo que a ênfase discursiva é posta na “construção” de resul- (2004), organizados no volume Erro, ilusão e loucura. Por outro
tados. Também se procura evitar uma oposição rígida entre os lado, caso os professores identifiquem dificuldades por parte dos
dois métodos, sobretudo porque os elementos apresentados neste estudantes em termos de leitura e interpretação de enunciados,
capítulo não chegam aos debates clássicos ou contemporâneos sugere-se que o estudo do método discursivo seja iniciado pelas
em torno da natureza da Lógica. Antes, trata-se aqui de atrair a falácias, pois elas têm a vantagem de despertar a curiosidade e
atenção dos estudantes para dados tradicionais e, eventualmente, de conter elementos, digamos, mais “palpáveis” e menos “abs-
conduzi-los a questões filosóficas sobre a Lógica. A esse respeito, tratos”. Com base nas falácias, os professores podem recorrer a
aliás, este capítulo não pretende apresentar a Lógica como sim- elementos formais da exposição sobre os silogismos e construir
ples método ou instrumento da atividade filosófica. Os colegas com os estudantes um aprendizado mais adaptado às possibili-
professores são convidados a insistir que, embora os elementos dades e dificuldades de cada turma.

428 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL
Categórica
Dedução Hipotética
Dialética
Indução
Método discursivo Analogia
Raciocínio dialético
Filosofia (em sentido amplo)
e
convencimento Autoridade

Método intuitivo
MÉTODO
RACIONAL

∙ “só” a razão
∙ razão e emoção

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 46)
Identifique as premissas, os pressupostos e as conclusões nos 3. Este político é corrupto; aquele também; aquele outro
seguintes raciocínios. Logo após, diga se você concorda ou também; portanto, todo político é corrupto.
discorda das conclusões, deixando clara sua posição quanto Pressuposto: Alguns casos particulares são suficientes para ex-
às premissas: pressar uma regra universal.
Premissa: Há vários casos de políticos corruptos.
1. Posso dizer que sou amigo de Cláudia, porque temos os Conclusão: Portanto, todo político é corrupto.
mesmos gostos. A conclusão é inaceitável em si mesma e não procede
Pressuposto: Amigos são pessoas que têm os mesmos gostos. das premissas, tornando inválido o raciocínio. Seja pela
Premissa: Cláudia e eu temos os mesmos gostos. forma, seja pelo conteúdo, o fundamento do raciocínio está
Conclusão: Logo, posso dizer que sou amigo de Cláudia. no pressuposto, que é falso e resulta de um raciocínio tam-
A conclusão procede corretamente da premissa. No entanto, o bém inválido: casos particulares não são suficientes para o
pressuposto pode ser questionado; afinal, é possível ser amigo(a) estabelecimento de uma conclusão universal, a menos que
de alguém sem ter os mesmos gostos. Por outro lado, ter os mes- se opere com um conjunto universo bastante reduzido e os
mos gostos não parece suficiente para a amizade, pois pessoas casos particulares observados recubram todo o conjunto
podem ter gostos comuns e não serem amigas. universo. Mesmo nesse caso, porém, o mecanismo do ra-
ciocínio seria frágil.
2. Visto que esta afirmação se baseia em regras universais,
ela é científica. 4. Posso duvidar de tudo, mas se duvido é porque penso; e,
Pressuposto: Toda afirmação que se baseia em regras univer- se penso, eu existo.
sais é científica. Pressuposto: Para duvidar é preciso pensar; e todos que pen-
Premissa: Esta afirmação se baseia em regras universais. sam existem.
Conclusão: Logo, esta afirmação é científica. Premissa: Eu posso duvidar de tudo; portanto, eu penso.
A conclusão procede corretamente das premissas. O pres- Conclusão: Ora, se eu penso, então existo.
suposto e a premissa também são defensáveis. Porém, em uma A conclusão procede devidamente das premissas. Os estudan-
análise mais demorada, pode-se também concluir que o ra- tes talvez questionem se realmente apontar para o pensamento
ciocínio, mesmo sendo defensável, contém certa fragilidade, é o melhor critério para afirmar a existência. Porém, o pressu-
porque exige clareza sobre o contexto em que se diz que “toda posto não toma o pensamento como único indicador de exis-
afirmação que se baseia em regras universais é científica”. tência; ele afirma apenas que o pensamento supõe a existência.
Seria necessário esclarecer o que se entende por regra e por
universalidade. Alguém poderia, por exemplo, situar-se em um 5. A dipirona baixou a febre da minha vizinha; então ela
pensamento que cria suas próprias regras universais, afirmando também deve baixar a minha febre.
algo como “todo ser humano é mau por natureza”. No con- Pressuposto: Um remédio capaz de baixar a febre de uma pes-
texto de tal pensamento, essa regra universal seria científica, soa é capaz de baixar a febre de todas.
mas dificilmente alguém em contexto realmente científico a Premissa: A dipirona é um remédio que baixou a febre da
abonaria. Cabe aos professores explorar a fragilidade do racio- minha vizinha.
cínio, apontando que, em função da clareza do contexto, ele Conclusão: Então, a dipirona também deve baixar a minha febre.
pode ser perfeitamente aceitável. Há verdade tanto nas premissas como na conclusão; e a

Manual do Professor 429


passagem das premissas à conclusão é bem feita. Apenas deve-se 7. Texto da filósofa Simone Weil:
observar que há também uma fragilidade no raciocínio, pois a
conclusão é apenas provável, e não necessariamente verdadeira. Como certas funções do Estado servem ao interesse de todos,
Assim, a verdade das premissas não garante necessariamente a temos o dever de aceitar de bom grado o que o Estado impõe
verdade da conclusão. É um raciocínio diferente daquele presen- em relação a essas funções. (Exemplo: regulamentação do trân-
te em A.3, porque, agora, apesar de a verdade da conclusão não sito). Quanto ao resto, é necessário sofrer o Estado como uma
ser sempre garantida, ela só será declarada falsa quando casos necessidade, mas não aceitá-lo dentro de nós. [...] Devemos re-
contrários a ela aparecerem (mas não haveria por que duvidar cusar reconhecer as recompensas (podemos felizmente recusar
dela por princípio). as recompensas e até as punições), utilizar ao máximo todas
as liberdades que o Estado nos deixa (é muito raro os cidadãos
6. Texto do filósofo Baruch Espinosa: ousarem abusar de todos os direitos reais). Também temos o
direito de usurpar, contra a lei, as liberdades que o Estado não
Se a natureza humana estivesse feita de tal modo que aquilo nos deixa, desde que isso valha a pena. Temos o dever, quando
que os seres humanos mais desejassem fosse aquilo que é mais útil, as circunstâncias nos permitem escolher entre vários regimes,
não seria preciso nenhuma arte para a concórdia e a lealdade. Mas, de escolher o menos ruim. O Estado menos ruim é aquele em
porque a natureza humana é, manifestamente, constituída de modo que somos menos limitados pelo Estado e aquele no qual os sim-
bem diferente, o Estado tem necessariamente de ser instituído de ples cidadãos têm maior poder de controle [...]. Temos o dever de
tal maneira que todos, tanto os que governam como os que são go- trabalhar pela transformação da organização social: aumento
vernados, queiram ou não, façam aquilo que interessa à salvação do bem-estar material e instrução técnica e teórica das massas.
comum, isto é, que todos sejam levados, espontaneamente ou à
força ou por necessidade, a viver segundo o que prescreve a razão. WEIL, S. Aulas de filosofia. Tradução Marina Appenzeller.
Campinas: Papirus, 1991, p. 150.
ESPINOSA, B. Tratado político. Tradução Diogo Pires Aurélio.
São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 48. Esse texto é uma boa ocasião para mostrar que a conclu-
são de um raciocínio não aparece necessariamente no final.
Na montagem seguinte, a conclusão será didaticamente posta
Aqui é preciso atentar para o fato de que o texto de Espinosa
no final, mas convém enfatizar a diferença entre a montagem
encadeia dois grandes raciocínios:
(que a filósofa tinha em mente) e o texto por ela redigido com
liberdade literária.
Raciocínio 1
Premissa: Uma natureza feita de tal modo que aquilo que os Premissa: Como certas funções do Estado servem ao interesse
seres humanos mais desejam é aquilo que é mais útil torna de todos, temos o dever de aceitar de bom grado o que o Estado
desnecessária toda arte para a concórdia e a lealdade. impõe em relação a essas funções (exemplo: regulamentação
Premissa: A natureza humana não é uma natureza feita de tal do trânsito).
modo que aquilo que os seres humanos mais desejam é aquilo Pressuposto: Nem todas as funções do Estado servem ao in-
que é mais útil. teresse de todos.
Conclusão implícita: A natureza humana precisa da arte para Premissa: Nos casos em que o Estado não serve ao interesse
a concórdia e a lealdade. de todos, é necessário suportar o Estado como uma necessida-
de, mas não aceitá-lo dentro de nós (não assumi-lo como algo
Raciocínio 2 total e legitimamente indispensável; devemos recusar recom-
Premissa (conclusão implícita do raciocínio 1): A natureza pensas e utilizar ao máximo todas as liberdades que o Estado
humana precisa da arte para a concórdia e a lealdade. nos deixa; temos o direito legítimo de tomar posse, contra a lei
Pressuposto: O Estado é a arte da concórdia e da lealdade (ele oficial, das liberdades que o Estado não nos deixa, desde que
faz que tanto os que governam como os que são governados, isso valha a pena).
queiram ou não, façam aquilo que interessa à salvação comum, Premissa: Temos o dever de trabalhar pela transformação da
isto é, que todos sejam levados, espontaneamente ou à força organização social: aumento do bem-estar material e instrução
ou por necessidade, a viver segundo o que prescreve a razão). técnica e teórica das massas (preservar as funções que servem
Conclusão: O Estado tem necessariamente de ser instituído. ao interesse de todos).
A conclusão procede devidamente das premissas dos dois Premissa: O Estado menos ruim é aquele em que somos menos
raciocínios. Os estudantes podem questionar, no entanto, se limitados pelo Estado e aquele no qual os simples cidadãos têm
realmente os seres humanos têm a tendência natural a viver maior poder de controle (descentralização; caráter público e
sem razão, bem como se o Estado necessariamente leva todos não secreto dos negócios do Estado; cultura de massa).
a viver segundo a razão. A História não está repleta de casos em Pressuposto: O Estado é um regime.
que o Estado não fez seguir a razão? Ou seguir a razão é algo Conclusão: Quando as circunstâncias permitem escolher en-
que depende do Estado? Um Estado totalitário, por exemplo, tre vários regimes, temos o dever de escolher o menos ruim.
é um Estado sem razão? Se ele justificar sua existência e suas A conclusão procede devidamente das premissas. Segundo
ações, ele estará de acordo com a razão? uma das premissas, devemos aceitar o Estado como uma

430 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


necessidade quando ele não serve ao interesse de todos. A ex- 6. Assim como um relógio é sinal de que há um relojoeiro,
periência histórica dificilmente permitiria discordar disso. Por também o mundo é um sinal de que há um criador.
conseguinte, devemos aproveitar a máxima liberdade possível Argumento por analogia.
deixada pelo Estado e ainda buscar ampliá-la sempre que possí- Premissa: A existência de um relógio supõe a existência de um
vel, buscando escolher, entre os vários regimes, o menos ruim. relojoeiro que o fabricou.
Nesse sentido, o Estado menos ruim é o que nos permite mais Conclusão: Por comparação, a existência do mundo supõe a
liberdade e mais controle. Daí o dever de escolher, quando é existência de um ser que o criou.
possível, o menos ruim dos regimes (o menos ruim dos Estados).
EXERCÍCIO C (p. 57)
EXERCÍCIO B (p. 50) Analise os seguintes raciocínios dedutivos e diga se são válidos
Nos seguintes argumentos, identifique seus tipos (dedução, in- ou inválidos. Se forem inválidos, aponte a causa da invalidade.
dução, analogia e argumento de autoridade), suas premissas e Não deixe de explicitar as premissas pressupostas!
suas conclusões:
1. Toda injustiça é proibida. Então, o assassinato é proibido.
1. Os humanos são mortais, porque são animais. Premissa: Toda injustiça é proibida.
Argumento dedutivo. Pressuposto: O assassinato é uma injustiça.
Pressuposto: Todos os animais são mortais. Conclusão: Então, o assassinato é proibido.
Premissa: Os humanos são animais. Silogismo válido.
Conclusão: Os humanos são mortais.
2. Alguns cidadãos são homens; alguns homens são covardes.
2. O remédio x fez duas mil pessoas melhorarem do estô- Portanto, alguns cidadãos são covardes.
mago. Então, o remédio x faz bem para o estômago. Premissa: Alguns cidadãos são homens.
Argumento indutivo. Premissa: Alguns homens são covardes.
Premissa: O remédio x fez duas mil pessoas melhorarem do Conclusão: Alguns cidadãos são covardes.
estômago. Silogismo inválido: De duas premissas particulares, nada se
Conclusão: Então, o remédio x faz bem para o estômago. conclui (regra 8). Com efeito, nada garante que os cidadãos ho-
mens são os mesmos que são covardes.
3. Se todo chá é diurético, então este chá preto ajudará o
funcionamento dos meus rins. 3. Se você tivesse lido o livro, teria aprendido. Como você
Argumento dedutivo. não aprendeu, é porque não leu o livro.
Premissa: Todo chá é diurético. Premissa: Se você tivesse lido o livro, teria aprendido.
Pressuposto: Todo diurético ajuda no funcionamento dos Premissa: Você não aprendeu.
meus rins. Conclusão: Portanto, você não leu o livro.
Conclusão: Este chá preto ajudará no funcionamento dos Silogismo válido: Segue o modus tollens. Os estudantes podem
meus rins. contra-argumentar, dizendo que o fato de alguém não ter apren-
dido sobre o conteúdo de um livro não significa necessariamente
4. Suspeitando que a substância x podia combinar com que não o leu. O seu não aprendizado pode ter outra causa, como
a substância y, o químico decidiu testar a combinação. a incompreensão, por exemplo. No entanto, cabe explicar que,
Verificando que a combinação deu certo uma vez, testou embora se possa discutir a verdade ou a adequação da primeira
mais vezes a mesma combinação. Concluiu que a substân- premissa, a extração da conclusão, no modo como o raciocínio
cia x combina com a substância y. está montado, é perfeitamente válida, porque se restringe ao fato
Raciocínio indutivo. de que a leitura do livro teria produzido aprendizagem.
Premissa: Um grupo de substâncias parecidas com y combinou
com a substância x. 4. Se você tivesse lido o livro, teria aprendido. Como você
Conclusão: A substância x combina com a substância y. não leu o livro, não aprendeu.
Premissa: Se você tivesse lido o livro, teria aprendido.
5. Segundo os historiadores, os vikings tiveram uma passa- Premissa: Você não leu o livro.
gem pela América do Norte muito antes do descobrimento Conclusão: Você não aprendeu.
do continente americano. Silogismo inválido: Porque nega ou barra a condição da primeira
Argumento de autoridade. premissa, o raciocínio parece seguir o modus tollens, mas não o
Pressuposto: Os historiadores têm um conhecimento adequa- segue realmente: negar a condição não permite obter a negação
do do passado. da conclusão. Com efeito, ainda que o aprendizado possa resultar
Premissa: Os historiadores afirmam que os vikings tiveram da leitura de um livro, ele também pode resultar de outros fatores.
uma passagem pela América do Norte muito antes do des- Assim, o fato de não ler o livro não impede que haja aprendizado.
cobrimento do continente americano.
Conclusão: Os vikings tiveram uma passagem pela América do 5. Todas as pessoas alegres são seres que riem. Todas as hienas
Norte muito antes do descobrimento do continente americano. são seres que riem. Então, todas as pessoas alegres são hienas.

Manual do Professor 431


Premissa: Todas as pessoas alegres são seres que riem. Premissa 2: Como o cidadão luta pela liberdade...
Premissa: Todas as hienas são seres que riem. Conclusão: Então não aceita ser dominado.
Conclusão: Todas as pessoas alegres são hienas. Silogismo válido: Opera como silogismo copulativo e afirma
Silogismo inválido: Em nenhuma das duas premissas o termo um dos predicados, negando o outro.
médio é tomado em sentido universal (regra 4).
12. Sua função como bombeiro era acionar o alarme. O
6. Nenhum problema me afeta. Nenhum riso me afeta. Logo, alarme não foi acionado porque ou você soube do incêndio
problemas são risos. e não o acionou ou porque não soube do incêndio (quando
Premissa: Nenhum problema me afeta. deveria saber) e também não o acionou. A responsabilidade
Premissa: Nenhum riso me afeta. pelo não acionamento do alarme é sua.
Conclusão: Problemas são risos. Premissa: Sua função como bombeiro era acionar o alarme.
Silogismo inválido: De duas premissas negativas, nada se con- Premissa: O alarme não foi acionado porque ou você soube do
clui (regra 7). incêndio e não o acionou ou porque não soube do incêndio e
também não o acionou.
7. Alguns cidadãos são bons. Todos os humanos são cidadãos.
Conclusão: A responsabilidade pelo não acionamento do
Portanto, todos os cidadãos são humanos.
alarme é sua.
Premissa: Todos os humanos são cidadãos.
Silogismo válido.
Premissa: Alguns cidadãos são bons.
Conclusão: Portanto, todos os cidadãos são humanos. EXERCÍCIO D (p. 61)
Silogismo inválido: O termo médio não pode aparecer na con- Identifique o tipo de falácia cometido nos seguintes casos:
clusão (regra 2).
1. Meu adversário político tem uma opinião diferente da minha
8. Ou os cidadãos lutam pela liberdade ou aceitam ser domi-
sobre o currículo do Ensino Fundamental. Também pudera...
nados. Como os cidadãos não lutam pela liberdade, então
Esse foi o único nível que ele conseguiu terminar...
aceitam ser dominados.
Falácia de pessoa ou falácia ad hominem.
Premissa: Ou os cidadãos lutam pela liberdade ou aceitam
ser dominados. 2. Essa mulher não entende nada de Informática, mas pre-
Premissa: Os cidadãos não lutam pela liberdade. cisamos dar o emprego a ela porque o outro candidato é ho-
Conclusão: Então os cidadãos aceitam ser dominados. mem. Mesmo que ele seja um bom conhecedor do assunto,
Silogismo válido. não queremos ser machistas.
Falácia do desvio do assunto.
9. Ou os cidadãos lutam pela liberdade ou aceitam ser domi-
nados. Como os cidadãos lutam pela liberdade, então não 3. É natural que existam ricos e pobres no mundo porque
aceitam ser dominados. isso sempre existiu.
Premissa: Ou os cidadãos lutam pela liberdade ou aceitam Falácia da petição de princípio.
ser dominados.
Premissa: Os cidadãos lutam pela liberdade. 4. O crime foi cometido por X, porque X passou pelo local.
Conclusão: Então os cidadãos não aceitam ser dominados. Falácia da falsa causa ou falácia do post hoc propter hoc.
Silogismo válido.
5. Rato tem quatro letras. Rato come queijo. Quatro letras
10. O cidadão é alguém que ou luta pela liberdade ou acei- comem queijo.
ta ser dominado. Como o cidadão não luta pela liberdade, Falácia por equivocidade.
então aceita ser dominado.
Premissa: O cidadão é alguém que ou luta pela liberdade ou 6. Se você mantiver sua opinião, haverá consequências, por-
aceita ser dominado. que quem pode pensar aqui sou eu!
Premissa: Como o cidadão não luta pela liberdade... Falácia da força ou do argumento de autoridade.
Conclusão: Então aceita ser dominado.
Silogismo inválido: Ele opera com a aparência de um silogis- 7. Se o som é vibração e se a luz é vibração, então som e luz
mo copulativo, mas é inválido porque a negação de um dos pre- são a mesma coisa.
dicados não leva necessariamente à afirmação do outro. Com Falácia da transferência de sentido.
efeito, o cidadão pode ser alguém que não luta pela liberdade
nem aceita ser dominado. 8. Sou mais inteligente do que as outras pessoas, porque não
reflito sobre questões que não são realmente questões.
11. O cidadão é alguém que ou luta pela liberdade ou aceita Falácia da tautologia.
ser dominado. Como o cidadão luta pela liberdade, então
não aceita ser dominado. 9. A felicidade é o bem de uma pessoa. Portanto, a felicidade
Premissa 1: O cidadão é alguém que ou luta pela liberdade ou geral é o bem de todas as pessoas.
aceita ser dominado. Falácia da tautologia.

432 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


10. Esse produto vende mais porque está sempre fresco; e o falso e o verdadeiro por exemplo. Raciocinando por contrapo-
justamente sempre fica fresco porque vende mais. sição, Hegel adota o procedimento de mostrar como realidades
Falácia do círculo vicioso. opostas convergem para uma terceira realidade; o botão e a flor
se opõem, mas também se encaminham para o fruto, que, de
EXERCÍCIO E (p. 63) certa maneira, conserva em si o sentido do botão e da flor (uni-
Nos textos abaixo, identifique o tema central e resuma o proce- dade orgânica). O exemplo é elevado por Hegel ao estatuto de
dimento empregado pelos autores a fim de obter suas conclusões: exemplo da vida do todo.
Texto A – Platão, Eutífron
EXERCÍCIO F (p. 67)
O tema central é entender a piedade (respeito aos deuses)
Nos textos abaixo, identifique qual a temática central e qual
ou, dito de outra maneira, entender o que é piedoso. O procedi-
intuição funda a análise de cada pensador:
mento se resume em saber (i) se o que é piedoso é amado pelos
deuses porque é piedoso ou (ii) se o que é piedoso é piedoso
Texto A – Bergson, Ensaio sobre os dados imediatos da
porque é amado pelos deuses. Em outras palavras ainda: os deu-
consciência
ses amam o piedoso pelo fato de ele ser piedoso, ou o piedoso
A temática central é a percepção do tempo. A intuição que
é piedoso porque é amado pelos deuses? Sócrates e Eutífron
funda a análise de Bergson é o fato de a verdadeira duração do
analisam razões que levam a afirmar tanto uma possibilidade
tempo ser percebida na experiência interna (“dentro de mim”,
como a outra. O trecho lido não permite conhecer a resposta
linha 6), e não nas medições externas, como nos relógios. Na
definitiva para a questão. Por isso, o que mais interessa aqui é
experiência interna há interpenetração entre os fatos, ao pas-
apontar para o modo como Sócrates e Eutífron procedem, to-
so que na experiência externa os fatos são “artificialmente”
mando-os como exemplos do raciocínio dialético. O objetivo
distinguidos e separados, como se eles realmente existissem
de Sócrates é chegar ao essencial do debate (linha 39); o seu
dessa maneira.
caminho ou método é o da contraposição de ideias. Os profes-
sores podem explorar as últimas falas do diálogo (linhas 40-57),
Texto B – Agostinho de Hipona, Confissões
comentando o modo como Eutífron se queixa do procedimento
A temática central é saber o que é o tempo. A intuição que
socrático e como Sócrates procura fazê-lo entender que o “sofri-
funda a análise de Agostinho é a constatação de que o que se
mento” do pensamento (razão da queixa) é indispensável para
chama de passado e futuro só tem sentido no presente, assim
chegar à verdade. Os professores também podem aproveitar a
como o próprio tempo presente. O passado continua a fazer
ocasião para incentivar os estudantes a ler o diálogo Eutífron,
sentido agora, no presente; o futuro só pode ser antecipado por
de Platão, a fim de encontrar a resposta para o debate ao qual
meio de um sentido que se capta também agora, no presente.
se acena com esse trecho.
O presente, por sua vez, é a própria presença do que se vive.
Texto B – Pedro Abelardo, Ética Se é assim, Agostinho conclui que o tempo não é algo que vai
O tema central é saber se o fato de um prazer acompanhar do passado ao presente e deste ao futuro; em vez disso, é mais
um ato mau (pecado) aumenta sua gravidade. O procedimento coerente falar do presente do passado (memória), do presente
é claramente dialético, pois Abelardo parte da objeção que al- do presente (visão) e do presente do futuro (espera). O tempo,
guns pensadores faziam à sua posição; e, com base na objeção, numa palavra, refere-se à condição presente.
esclarece seu próprio pensamento. Para ele, um ato é mau por
causa da sua motivação ou intenção. O prazer que acompanha Texto C – Maine de Biran, Ensaio sobre os fundamentos
o ato mau não é condenável em si mesmo; por isso, ele não da psicologia
aumenta a gravidade, mas apenas resulta do modo de ser das A temática central é a consciência ou o “eu”. A intuição que
coisas. Se o prazer fosse condenável, então um casal praticaria funda a análise de Maine de Biran é o fato de que a consciência
um ato mau (pecado) ao ter prazer carnal; o mesmo ocorreria se vive em ato e, como tal, não pode ser afirmada como se fosse
com alguém que tem prazer ao comer frutas. Os exemplos pre- um objeto (um conteúdo do pensamento). Concentrando-se na
tendem mostrar que a maldade de um casal está em ter prazer dificuldade de aceitar que “eu sou uma coisa pensante”, Maine
carnal fora da relação conjugal (lembrar que Abelardo vive em de Biran mostra que os seres humanos simplesmente pensam
contexto cristão); e a maldade de comer frutas está em roubar (forma privilegiada de ter consciência); eles não “pensam que
as frutas. Não há maldade no prazer carnal em si mesmo nem têm pensamento”, ao modo como pensam outras coisas (como
no prazer de comer frutas. Deus cairia em contradição se desse se o pensamento pudesse ser um conteúdo do pensamento ou
a possibilidade desses prazeres aos seres humanos e depois a o atributo de uma substância). A forma como Maine de Biran
condenasse. Raciocinando ainda por debate e levando o caso passa do termo pensamento ao termo consciência aponta para a
ao extremo, Abelardo lembra que é inconcebível pensar (como experiência interna com que cada indivíduo diz “eu” e quer ser
faziam outros objetores) que seria preciso ter uma relação carnal reconhecido como tal. Seu alvo principal é a filosofia cartesiana
ou comer um alimento sem prazer. e a evidência do pensamento ( p. 67), obtida como se o pen-
samento (ou a consciência em geral) pudesse se perceber como
Texto C – Hegel, A fenomenologia do espírito “algo” para além de um ato. O ato, segundo Maine de Biran,
O tema central é rever a exclusão ou a incompatibilidade que será o de encontrar-se em uma relação: a relação da consciên-
se estabelece comumente entre duas posições contrárias, como cia com aquilo que resiste a ela, mostrando-se diferente dela.

Manual do Professor 433


PROPOSTA DE ATIVIDADE COMPLEMENTAR alcançado: sei o que buscava saber; compreendi tudo o que
aconteceu comigo desde o mês de janeiro. A Náusea não
Esta atividade tem por objetivo chamar intuitivamente
me abandonou; creio até que não me abandonará tão cedo;
a atenção para a possibilidade de pensar que, mesmo na
porém, deixei de sofrer com ela, e não a vejo mais como uma
busca da objetividade almejada pelo método discursivo,
doença ou um espasmo passageiro: sou eu. [...] Quanto tempo
há certamente elementos que condicionam a escolha dos
durou essa fascinação? Eu era a raiz da castanheira. Melhor
pontos de partida, a começar pelos hábitos que formam
ainda, eu era, todo inteiro, consciência de sua existência.
nosso modo de ver a realidade. Em nada essa possibilida-
Encontrava-me ainda descolado dela – pois eu tinha cons-
de depõe contra o método discursivo; ela apenas o torna
ciência dela – e ao mesmo tempo perdido nela, nada mais
mais consciente e – por que não? – mais livre. Para essa
do que ela. Uma consciência desconfortável e que todavia
discussão, propõe-se a leitura da seguinte fábula:
se deixava levar por seu peso, desequilibrada, rumo a esse
pedaço de madeira inerte. O tempo parou: uma pequena
Olhe!
poça escura a meus pés; era impossível que algo sucedesse
Michel Piquemal
àquele momento. Se pudesse, eu teria me arrancado da-
quele terrível prazer, mas sequer via essa possibilidade; eu
Havia um homem muito rico e um homem muito pobre.
estava dentro; a camada escura não passava, ficava lá, nos
Cada um deles morava com seu filho, um de cada lado de uma
meus olhos, como um pedaço muito grande entalado na
montanha. Um dia, o homem muito rico subiu com o filho
garganta. Não podia aceitar nem recusar esse prazer. A que
até o topo da montanha e, envolvendo toda a paisagem com
preço consegui levantar os olhos? Aliás, eu os levantei? Na
os braços abertos, disse ao menino:
verdade, não desapareci por um instante, para renascer no
– Olhe! Um dia tudo isso será seu!
instante seguinte, com a cabeça para baixo e os olhos virados
O homem muito pobre também subiu com o filho ao topo
para cima? De fato, não tive consciência de uma passagem.
da montanha e, diante do Sol nascente que iluminava a planí-
Ao contrário, foi de repente que se tornou impossível pen-
cie, disse simplesmente ao menino:
sar a existência da raiz. Ela se havia apagado, e mesmo que
– Olhe!
eu tentasse repetir “a raiz existe; ela ainda está aqui, sob o
banco, encostada a meu pé direito”, isso não queria dizer
PIQUEMAL, M. Les philo-fables. Paris: Albin Michel, 2008 p.
mais nada para mim. A existência não é alguma coisa que
168. (As filofábulas. Tradução nossa.)
se deixa pensar de longe: é preciso que ela nos invada brus-
camente, que ela pare sobre nós, que ela pese sobre nosso
coração como uma grande fera imóvel – se não é assim,
LEITURAS DE APROFUNDAMENTO não resta nada. Aliás, não havia mais nada; meus olhos es-
1 A intuição da existência tavam vazios e eu me encantava com minha libertação. De
Convidamos os colegas professores a retomar o texto de uma vez só, tudo se pôs a mover-se diante de meus olhos,
Jean-Paul Sartre a seguir e a relacioná-lo com a temática do movimentos leves e incertos: o vento balançava a copa da
sentido da existência, que já apareceu nos capítulos ante- árvore. Não me desagradava ver mexer alguma coisa; pelo
riores, aprofundando a compreensão de que o “existir para contrário, isso mudava um pouco aquelas existências imóveis
mim” (expressão comum a diferentes filosofias contemporâ- que me encaravam com olhos fixos. Eu me dizia, seguindo
neas na abordagem do tema da existência) não significa “ter o balanço dos galhos: “os movimentos não existem; eles são
importância para mim”, mas “ser objeto de minha consciên- passagens, intermediários entre duas existências, intervalos
cia”. Aliás, há coisas que existem para nós, mas às quais não frágeis. Tentava vê-los sair do nada, fortalecer-se progressi-
damos importância; outras coisas sequer merecem receber vamente e desenvolver-se: achava que ia, enfim, surpreender
importância, como a maldade de alguém (nós a desvalori- existências no momento em que elas nascem. Não precisou
zamos). No entanto, essas coisas existem para nós (colhemos mais de três segundos para que todas essas minhas esperan-
o sentido delas). Retomando o texto de Sartre e conhecendo ças fossem varridas para longe. Com base naqueles galhos
melhor a personagem de Roquentin, a leitura seguinte pode hesitantes que tocavam minhas esperanças cegamente, eu
trazer mais luz para visualizar a atitude consciente diante não conseguia perceber nenhuma “passagem” à existência.
da existência (notar que Roquentin não diz ter Náusea, mas Essa ideia de passagem é uma invenção dos humanos. Uma
ser ele Náusea). Além disso, se os professores decidirem tra- ideia muito clara. Todas aquelas agitações isolavam-se, mos-
balhá-lo com os alunos, o texto pode ser tomado como um travam-se por si mesmas. Por todos os lados, elas ultrapas-
exemplo claro de método intuitivo, em contraposição com o savam os galhos e os ramos. Elas turbilhonavam em torno
método discursivo: destas mãos secas, envolviam-nas com pequenos ciclones.
Estava claro que um movimento era diferente de uma árvo-
A Náusea re. Mas, mesmo assim, era um absoluto. Uma coisa. Meus
Jean-Paul Sartre olhos só encontravam plenitude.

Não posso dizer que me sinto aliviado ou contente; ao SARTRE, J.-P. La nausée. Paris: Gallimard Poche, 1938. p. 110-
contrário, isso me esmaga. Pelo menos meu objetivo foi 116. (A náusea. Tradução nossa.)

434 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


2 Objetividade e hermenêutica
O texto a seguir foi extraído do livro Verdade e método, de prévio, que chamamos, com Hegel, “substância”, porque suporta
Hans-Georg Gadamer (1999), e investiga a noção de objetividade, toda opinião e comportamento subjetivo e, com isso, prefigura
tomando para estudo de caso a verdade histórica em comparação e delimita toda possibilidade de compreender uma tradição em
com a verdade da ciência estatística. Embora sejam aparentemente sua alteridade histórica. [...] Todo presente finito tem seus limites.
distantes ou incomparáveis, ambas se unem pela raiz do modo Nós determinamos o conceito da situação justamente pelo fato
mesmo como, segundo Gadamer, se constitui toda percepção e de que representa uma posição que limita as possibilidades de
todo discurso sobre o que quer que se entenda por verdade. Trata- ver. Ao conceito da situação pertence essencialmente, então, o
se, no vocabulário de Gadamer, da situação hermenêutica: con- conceito de horizonte. Horizonte é o âmbito de visão que abarca
dição em que se encontra toda pessoa e todo grupo na atividade e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto.
do conhecimento e que interfere mesmo no estabelecimento Aplicando-se à consciência pensante, falamos então da estreiteza
dos pontos de partida de todo conhecimento. Da perspectiva da do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura
situação hermenêutica, tanto o procedimento filosófico discursivo de novos horizontes etc. A linguagem filosófica empregou essa
como o intuitivo são formados pela história dos indivíduos e dos palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar
grupos. Gadamer não pretende dizer que tudo o que constitui os a vinculação do pensamento à sua determinidade finita e para
indivíduos e os grupos é mero resultado de construção histórica, caracterizar, com isso, a lei do progresso de ampliação do âmbito
uma vez que ele pressupunha potências e possibilidades humanas, visual. Quem não tem um horizonte é alguém que não vê sufi-
digamos, naturais. No entanto, ele não deixa de parecer ter razão cientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que
quanto à historicidade do modo como os humanos se tornam o lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não
que eles são e acionam sua capacidade cognitiva. estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver para
além disso. Quem tem horizontes sabe valorizar corretamente
Situação hermenêutica e história da eficácia o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo
Hans-Georg Gadamer os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A ela-
boração da situação hermenêutica significa então a obtenção
Na suposta ingenuidade [pretensa ausência de fatores con- do horizonte de questionamento correto para as questões que se
dicionantes] da nossa compreensão, na qual nos guiamos pelo colocam frente à tradição.
padrão da compreensibilidade, o outro se mostra a partir do pró-
prio, e isso se dá de tal modo que ele não se expressa mais, em GADAMER, H.-G. Verdade e método. Tradução Flávio Paulo
absoluto, como próprio e como outro. O objetivismo histórico, Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 450-452.
na medida em que apela para o seu método crítico, oculta o
entrelaçamento efeitual-histórico em que se encontra a própria
consciência histórica. É verdade que, graças ao seu método crítico, SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
ele desmorona a arbitrariedade e o capricho de certos atualiza- HAACK, S. Filosofia das Lógicas. Tradução Cezar A. Mortari e
dores congraçamentos com o passado, mas com isso ele se livra Luiz Henrique A. Dutra. São Paulo: UNESP, 2002.
da má consciência de negar aquelas pressuposições que não são
LEOPOLDO E SILVA, F. Bergson: intuição e discurso filosófico.
arbitrárias nem aleatórias, mas sustentadoras, as quais guiam seu
São Paulo: Loyola, 1993.
próprio compreender; dessa forma, negligencia a verdade que seria
acessível apesar de toda finitude de nossa compreensão. Nisso, o LEVY, L.; ZINGANO, M.; PEREIRA, L. C. (Org.) Metafísica,
objetivismo histórico se assemelha à estatística, que é um meio Lógica e outras coisas mais. Rio de Janeiro: Nau, 2011.
propagandístico tão distinto por deixar falar a linguagem dos fa- PRADO JÚNIOR, B. Erro, ilusão e loucura. São Paulo: Editora
tos, e aparenta assim uma objetividade que, na verdade, depen- 34, 2004.
de da legitimidade de seu questionamento. [...] A consciência da
história efeitual [da eficácia] é em primeiro lugar consciência da
situação hermenêutica. No entanto, o tornar-se consciente de uma
situação é uma tarefa que em cada caso reveste uma dificuldade
própria. O conceito de situação se caracteriza pelo fato de não nos
encontrarmos diante dela e, portanto, não podermos ter um saber
objetivo sobre ela. Nós estamos nela; já nos encontramos sempre
numa situação, cuja iluminação é a nossa tarefa, e esta nunca
pode se cumprir por completo. Isso vale também para a situação
hermenêutica, isto é, para a situação em que nos encontramos face
à tradição que queremos compreender. Também a iluminação
dessa situação, isto é, a reflexão da história efeitual [da eficácia],
não pode ser plenamente realizada, mas essa impossibilidade
não é defeito da reflexão; ela encontra-se na essência mesma do
ser histórico que somos. Ser histórico quer dizer não se esgotar
nunca no saber-se. Todo saber-se procede de um dado histórico

Manual do Professor 435


UNIDADE 2 TEMAS TRATADOS FILOSOFICAMENTE

Capítulo 1 O sentido da existência

OBJETIVO
Tratar de maneira filosófica o tema do sentido da existência, percepção imediata das coisas, requerendo um trabalho que
esclarecendo que o primeiro papel da Filosofia não é oferecer alia observação e reflexão. Já significado remeteria aos con-
uma resposta para a pergunta sobre tal sentido, mas investigar teúdos que percebemos diretamente (independentemente da
o que está implicado nela e analisar se há uma possibilidade preocupação com o estatuto da percepção).
estritamente racional de justificar alguma resposta dada. Como estratégia complementar, insere-se uma breve re-
flexão sobre o modo como os textos bíblicos são muitas vezes
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS utilizados como fonte de debate científico a respeito da origem
A estratégia do capítulo é explorar três atitudes filo- e do destino do mundo. Cabe situar filosoficamente, e com
sóficas “clássicas”, dando a estrutura mesma do texto: grande respeito pela sensibilidade religiosa dos estudantes, o
1) não é possível falar sobre algo como um sentido da existência; papel dos textos bíblicos no campo do sentido que cada cida-
2) é possível falar filosoficamente sobre o sentido da existência dão pode dar à existência, e não no campo de um significado
e também justificar racionalmente essa fala; 3) afirmar que a que seria óbvio, embora em diferentes contextos esse seja o
existência é absurda, quer dizer, não tem sentido. O núcleo teor identificado na Bíblia. Daí a necessidade de uma atitude
dessa abordagem é o esclarecimento da diferença que se pode duplamente respeitosa, pois, a rigor, não há nada de irracional
estabelecer entre sentido e significado. Aqui é importante ter ou antifilosófico em ter fé religiosa e pautar a existência por um
em mente que essa diferença (tal como assumida neste capí- sentido encontrado nos textos bíblicos. O que se apresenta como
tulo) não seria adotada por todos os filósofos. Por isso mesmo, inadequado é pretender que o discurso científico e o discurso
trata-se de uma diferença estabelecida de maneira ampla, a fim bíblico sejam do mesmo tipo (o que resultaria em contradição).
de tomar o termo sentido como indicação de uma experiência Ao se explicitar a diferença entre os dois discursos, é possível
em “segundo grau”, isto é, que vai além do grau primeiro da até pensar em formas de diálogo entre ambos.

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

1. não é possível falar sobre o sentido da existência


(exemplo: Wittgenstein, que amplia sua própria visão)
(ex.: Grondin, Holbach)
2.1. sentido imanente
Três atitudes filosóficas
diante do 2. é possível falar sobre o
sentido da existência: sentido da existência
≠ 2.2. sentido transcendente
significado (ex.: Platão, filósofos religiosos)

3. a existência não tem sentido; é absurda.


(ex.: Schopenhauer; “problema do mal” )

chamado à responsabilidade
(Hans Jonas)

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 75)
1. Com base no exemplo das placas de trânsito, diferencie 2. Quais as duas maneiras básicas de exprimir o sentido de algo?
significado e sentido. A partir da explicação de sua origem e de sua finalidade:
Significado é o conteúdo básico da identidade de algo. algo pode ser explicado pela indicação de suas causas, de como
Sentido é um conjunto de significados que, tomados em e onde surge ou de seu fim/objetivo.
conjunto, exprimem uma ideia mais ampla. Por exemplo, o
significado da placa com uma buzina cortada é a proibição 3. De onde vem o inconveniente fundamental de pretender
de buzinar ou de emitir sons altos. Já o seu sentido é que na falar sobre o sentido da existência entendido como origem?
redondeza pode haver um hospital. Por um lado, porque qualquer afirmação sobre essa origem,

436 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


mesmo a científica, guarda sempre alguma incerteza, tornan- própria existência, sem remeter a algo externo ou diferente do
do esse conhecimento apenas provável, já que, para fazer uma mundo. Um sentido transcendente é aquele que é diferente do
afirmação absoluta sobre a origem da existência, seria preciso ter mundo, de natureza não material e, portanto, não percebido
vivido e presenciado o momento de tal origem. Por outro lado, pelos cinco sentidos.
o mundo, sede da existência, pode ter sempre existido, sem um
começo temporal, o que anularia um discurso sobre a sua origem. 4. Falar de algo transcendente significa falar necessariamente
de algo que está fora do “mundo”?
EXERCÍCIO B (p. 77) Não necessariamente. De um modo geral, entende-se como
1. O que leva alguns filósofos a considerar falsa a pergunta transcendente algo que esteja separado e “fora” do mundo ma-
pelo sentido da existência? terial. Porém, alguns filósofos – entre eles Platão – entenderam
A ideia de que essa pergunta não pode ser respondida, uma o transcendente como algo que, embora totalmente diferente
vez que esse sentido não passa pela nossa percepção e pela nossa do mundo, está diretamente presente na matéria, permeando
experiência. Para conhecer o sentido da existência seria preciso e organizando o mundo de modo imanente.
uma experiência da existência como um todo; caso contrário,
não há possibilidade de um discurso racional sobre esse sentido. 5. Pode-se provar cientificamente a existência ou a inexistên-
cia de Deus com base nas hipóteses de que o “mundo” teve
2. Por que, segundo a obra Tratado lógico-filosófico, de um começo ou de que ele é eterno?
Wittgenstein, a linguagem representa o “mundo”? Não. Qualquer resposta sobre o começo ou a eternidade do
Porque, para ser compreensível (ter significado e sentido), o mundo é sempre marcada de dúvida. Caso se considere como
pensamento ou a linguagem precisam representar estados de provada a afirmação de que o universo teve origem em uma
coisas que podem ser observados e experimentados por todos, explosão inicial, é possível pensar que Deus foi a causa dessa
uma vez que os nomes substituem e traduzem as coisas e as explosão. Por outro lado, se for provado que o universo sempre
relações entre as coisas. Assim, o “mundo” é aquilo que é re- existiu, ainda é possível pensar que Deus sustenta o universo
presentado pela linguagem. eternamente. Desse modo, nem a Ciência pode provar rigoro-
samente que Deus não existe, nem os religiosos podem provar
3. O que significa, no pensamento wittgensteiniano, afirmar rigorosamente que ele existe. O conceito de Deus é transcen-
que o sentido da existência está fora do “mundo”? dente, e, se ele não é uma parte do mundo, sua existência não
Como, para Wittgenstein, a linguagem representa estados pode, a rigor, ser provada nem refutada.
de coisas ou o “mundo”, o que não pode ser dito pela lingua-
gem não pertencente ao “mundo”. Assim, como não podemos EXERCÍCIO D (p. 86)
observar e experimentar a totalidade da existência nem sequer 1. Segundo Arthur Schopenhauer, qual é a prova direta de
algo que seja o seu sentido, esse sentido está fora da linguagem que a existência não tem valor real em si mesma?
e, consequentemente, fora do “mundo”. A frustração que acompanha a experiência humana em sua
busca por prazer e satisfação. Para Schopenhauer, logo após a
EXERCÍCIO C (p. 84) satisfação dos desejos vem o tédio e a sensação de vazio. Ao
1. Conhecendo a postura filosófica segundo a qual, mesmo olharmos para a existência sem estarmos envolvidos na busca
que houvesse um sentido para a existência, não seria possí- por prazer e satisfação, vemos que ela é vazia, entediante e sem
vel falar sobre esse sentido, explique o que permite a outros valor em si mesma.
filósofos defender a ideia de que é, sim, possível falar dele.
O que permite a alguns filósofos defender a ideia de que é 2. O que significa o problema do mal segundo autores como
possível falar de sentido da existência é o fato de eles entende- Albert Camus?
rem por existência não a existência como um todo, com um O problema do mal está relacionado ao sofrimento dos ino-
sentido único, um bloco indiviso, mas sim o ato de existir, que centes: se existe um sentido bom para o mundo, como entender
é comum a todos os seres com os quais nos relacionamos e que o sofrimento de crianças, por exemplo?
pode ser experimentado por todos.
3. Como Hans Jonas reinterpreta a revolta contra o absurdo
2. Por que, segundo Jean Grondin, o comportamento dos da existência?
animais seria uma prova de que o sentido da existência não Ele pensa que o caráter absurdo da vida pode ser transfor-
é uma construção humana? mado em ocasião para os seres humanos se tornarem melhores,
Porque um animal também “sente” esse sentido e o segue desenvolvendo a responsabilidade por si mesmos e pelo “mun-
sem a necessidade de refletir. Ele é capaz de perceber quan- do”, sem esperar pela intervenção de um ser transcendente.
do algo o ameaça ou o preserva, mesmo sem pensar e mesmo
estando sujeito a erro. 4. Faça um exercício de meditação (reflexão silenciosa sobre
a sua própria vida) e procure perceber se você já experimen-
3. O que é um sentido imanente e o que é um sentido tou o sentimento de revolta. O que motivou esse sentimento?
transcendente? Como você o viveu? Ele interferiu em seu modo de ver a vida?
Um sentido imanente é aquele que pode ser encontrado na Resposta pessoal. Caso a resposta seja afirmativa, é importante

Manual do Professor 437


que os estudantes procurem detectar as causas e as consequên- – É... Talvez seja mesmo sorte. Mas quem conhece o fundo
cias de sua experiência, bem como justificar suas respostas. das coisas? O Sol que nos ilumina pode também nos queimar...
Desgraça, o futuro lhe deu razão. Seu filho ficou encantado
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 87) com o cavalo e passou horas tentando montá-lo. Mas o animal
1. Dissertação de síntese filosófica era arisco. Num salto, jogou o filho do camponês à terra, que-
Espera-se que os estudantes consigam articular os diferentes pas- brando-lhe uma perna.
sos indicados no exercício (“esqueleto” ou “armação” da resposta), to- Vieram novamente os vizinhos, agora à cabeceira do meni-
mando por base o modelo de redação de síntese filosófica ( p. 138). no. Os comentários eram sobre a falta de sorte do camponês.
Para piorar, a época da colheita aproximava-se, mas o menino
2. Pesquisa não poderia ajudar o pai.
O intuito é reforçar a prática de interpretação e compreensão O camponês, então, respondeu com sabedoria:
de textos, observando a importância de dar atenção aos termos – Este mundo está em perpétua mudança. Quem sabe se as
que aparecem entre aspas em qualquer tipo de leitura e destacan- calamidades não se tornam bênçãos? Pensem na lava dos vul-
do que em Filosofia esse aspecto adquire ainda mais relevância, cões... Ela devasta tudo o que encontra pela frente, mas deixa
dado que é inerente à disciplina apresentar, por vezes, sentidos atrás de si uma camada muito fértil.
completamente novos em relação ao uso ordinário dos termos. Antes mesmo da colheita, a China e os mongóis entraram
em guerra. Todos os jovens do vilarejo foram convocados, me-
3. Atividade interdisciplinar nos o filho do camponês, que estava de cama. Ele foi um dos
Espera-se com esta atividade esclarecer que a atividade fi- únicos a sobreviver ao massacre da guerra. Sua vida foi salva
losófica parte, em geral, dos resultados dos outros saberes, com por uma perna quebrada!
especial relevância para a Ciência. Com a comparação de teses
científicas, tal como proposta pelo exercício, espera-se que os CONTO chinês anônimo. In: PIQUEMAL, M. Les philo-fables.
estudantes percebam o modo como são construídas suas justi- Paris: Albin Michel, 2008. p. 45-47. (As filofábulas. Tradução nossa.)
ficativas. Prestar esse tipo de atenção equivale a desconstruí-las.

4. Leitura complementar LEITURA DE APROFUNDAMENTO E


Espera-se que, em grupo ou individualmente, os estudan- PROBLEMATIZAÇÃO FILOSÓFICA
tes cultivem a atividade de reflexão, tomando por motivação Embora Sigmund Freud não seja reconhecido unanimemente
o horizonte de possibilidades aberto pela arte na atividade de como filósofo, seu trabalho oferece dados de grande interesse fi-
constituição de sentidos para a existência. losófico (seja para aceitá-los, seja para refutá-los). Nesse sentido, o
texto abaixo oferece elementos importantes para conhecer a visão
freudiana do tema do sentido da vida e da busca da felicidade.
PROPOSTA DE ATIVIDADE COMPLEMENTAR
Como forma de investigar filosoficamente um documento O sentido da vida humana
não tecnicamente filosófico, pode-se estudar o seguinte con- é a busca da felicidade
to, tendo em vista elementos imponderáveis da existência, os Sigmund Freud
quais recebem sentidos diferentes em função das vivências dos
indivíduos e dos grupos: A questão da finalidade da vida humana foi colocada inúmeras
vezes. Jamais obteve uma resposta satisfatória e talvez nem sequer
Diferentes faces da vida a admita. [...] Só a religião sabe responder à pergunta sobre a fi-
Conto chinês nalidade da vida. [...] Por essa razão, passaremos a uma pergunta
mais modesta: o que os próprios seres humanos, por meio de seu
Durante uma feira, na primavera, um camponês chinês comportamento, revelam ser a finalidade e o propósito de suas
comprou uma bela égua. Todas as suas economias foram inves- vidas? O que exigem da vida e o que nela querem alcançar? É
tidas nela. Mas, desgraça! Mal o camponês a colocou atrás das difícil errar a resposta: eles aspiram à felicidade, querem se tor-
cercas de seu quintal e, na mesma noite, ela escapou e fugiu na nar felizes e assim permanecer. Essa aspiração tem dois lados,
direção da fronteira dos mongóis, com quem os chineses não uma meta positiva e outra negativa: por um lado, a ausência de
tinham boas relações. Nem adiantava sonhar em ir atrás dela. dor e de desprazer; por outro, a vivência de sensações intensas de
Os vizinhos vieram consolá-lo. Mas esse camponês era sábio. prazer. Em seu sentido literal mais estrito, “felicidade” refere-se
– Nuvens no Céu trazem, às vezes, uma chuva benéfica apenas à segunda. Correspondendo a essa bipartição das metas,
para a agricultura. Assim também uma coisa boa pode nascer a atividade dos seres humanos se desdobra em duas direções, se-
de uma desgraça. Deixemos a vida seguir seu ritmo. Quem sabe gundo busquem realizar uma ou outra dessas metas.
o que acontecerá? Como se percebe, o que estabelece a finalidade da vida é
De fato, alguns dias mais tarde, a égua voltou, acompanhada simplesmente o programa do princípio do prazer.
de um belo cavalo dos mongóis.
Todo o vilarejo veio admirar e felicitar o camponês por sua FREUD, S. O mal-estar na cultura. Tradução Renato Zwick.
boa sorte. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 61-62.

438 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
BOFF, C. O livro do sentido: crise e busca de sentido hoje (Parte CRITELLI, D. M. História pessoal e sentido da vida: historio-
crítico-analítica). São Paulo: Paulus, 2015. biografia. São Paulo: EDUC & FAPESP, 2009.
CRITELLI, D. M. Analítica do sentido: uma aproximação e DELEUZE, G. A lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto
interpretação do real de orientação fenomenológica. São Paulo: Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2015.
Brasiliense, 2006. LE BRETON, D. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016.

Capítulo 2 A felicidade
OBJETIVO
Os seres vivos procuram o prazer e fogem da dor.
Tratar do tema da felicidade, mostrando, por um lado, que O prazer deve ser nossa finalidade porque a Natureza nos
é possível investigar filosoficamente a felicidade por meio da leva a isso desde a infância.
sua relação com o tema do prazer e, por outro lado, que a feli- Essas duas frases são os fundamentos da conclusão de que a
cidade pode ser entendida como atividade (e não como estado felicidade é a soma de todos os prazeres, pois, se os seres vivos
psicológico, a despeito do uso corrente do termo). procuram o prazer e fogem da dor; se a Natureza os leva a essa
procura e a essa fuga desde a infância; e se felicidade pode ser
vista como a finalidade da vida humana (algo que se manifes-
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
taria desde a infância), então há condições para afirmar que a
A estratégia adotada no capítulo é iniciar pela concepção soma dos prazeres é a felicidade.
de prazer e passar à compreensão da felicidade como soma dos
prazeres ou como algo diferente da soma dos prazeres. O item 2. Por que a tranquilidade ou a ausência da dor não são a
2, A felicidade e o conjunto dos prazeres, pode ser subdividido felicidade, segundo os cireneus?
em quatro partes: (a) o utilitarismo; (b) a revisão do utilitarismo; Se todos os prazeres são corporais, não havendo um mais
(c) a posição de G. E. Moore; (d) o problema dos universais. sensível que outro, então o prazer é algo que se sente, provo-
Essa última parte pode ser estudada logo depois do item (b), cando satisfação e sensação agradável. Se a felicidade é ligada
tal como aparece graficamente no capítulo; tudo depende do ao prazer e se a tranquilidade como ausência de dor é indife-
andamento de cada turma segundo a percepção dos professores. rente (não é prazer, já que não proporciona satisfação), então
A vantagem de tratá-la logo depois de (b) é esclarecer melhor a a tranquilidade ou a ausência de dor não são a felicidade.
revisão do utilitarismo; mas o grau de abstração que ela exige
pode ser uma dificuldade. Por esse motivo, ela talvez deva ser 3. Indique o aspecto em que Epicuro concorda com os cire-
tratada em quarto lugar ou mesmo ao final do capítulo. neus e o ponto em que ele discorda deles.
Para passar da reflexão sobre a felicidade em relação aos Epicuro concorda com os cireneus ao dizer que a felicidade
prazeres ao último item do Capítulo 3 (A felicidade como ativi- é o prazer, mas discorda ao afirmar que ela também é composta
dade e plenitude), a estratégia é explorar a concepção corrente pela tranquilidade ou pela ausência de dor.
da felicidade como algo que se possui (assim como os prazeres
seriam “possuídos”). A partir daí, torna-se mais compreensível, 4. Por que Epicuro tem necessidade de defender a tranqui-
por contraposição, a felicidade como atividade cujo sentido lidade ou a paz da alma?
é dado por um ideal de plenitude. Numa palavra, trata-se de Porque os prazeres, na compreensão de Epicuro, não são
passar do item 2 ao 3 por meio da análise crítica da felicidade capazes de satisfazer completamente a alma. Eles não duram,
como estado psicológico e da proposta de entendê-la como levando os seres humanos a uma constante busca e insatisfa-
exercício ou atividade de que cada indivíduo pode cuidar ção. Por essa razão, a tranquilidade deve ser vivida no corpo
ou descuidar. Especificamente no tocante ao problema dos e na alma: no corpo, como ausência de dor, e na alma, como
universais, é possível também estudá-lo em outros momentos ausência de perturbação.
do livro, sobretudo no Capítulo 5, na apresentação da Teoria
das Ideias ou das Formas de Platão, pois as Ideias ou Formas 5. O que significa afirmar que, segundo Epicuro, a prudência
constituem rigorosamente realidades universais. é condição necessária e suficiente para a felicidade?
Na página 440 propõem-se dois esquemas: uma síntese do A prudência torna o ser humano apto para ponderar e es-
capítulo e a natureza da alma segundo Aristóteles. colher o melhor encaminhamento de seus desejos, buscando
prazeres úteis ao bem do corpo e da alma e evitando os prazeres
inúteis (os que não são nem necessários nem naturais). Dessa
RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS perspectiva, a prudência é condição necessária (pois sem ela não
EXERCÍCIO A (p. 94) se tem felicidade) e suficiente (porque, com ela, envolvem-se
1. Releia o texto de Diógenes Laércio e mostre o papel os prazeres e a tranquilidade do corpo e da alma). A vida feliz,
das frases abaixo na argumentação que leva a considerar segundo Epicuro, corresponde não apenas à busca dos praze-
a felicidade como a soma de todos os prazeres: res, mas também à ponderação sobre o melhor (prudência).

Manual do Professor 439


PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

PRAZER FELICIDADE

Felicidade = prazeres + ausência de dor Felicidade ≠ soma dos prazeres

Felicidade
Prazeres
=
Virtude
completude
Perfeição
inclusiva dos
Mediedade
prazeres

FELICIDADE

BEM SUPREMO ATIVIDADE

ESQUEMA DIDático da NATUREZA da alma segundo aristóteles

PARTE/FUNÇão NOME RELAÇãO COM A RAZãO TIPO DE VIRTUDE EFEITO

racional intelectiva segue a razão virtude


(modelo: intelectual
matemática)

hábito
(“cultura”)

Alma
ouve a razão virtude
apetitiva/ (modelo: moral
desiderativa ouvir pai e amigos)

irracional

+
vegetativa não ouve a razão [virtude física] natureza

Corpo

EXERCÍCIO B (p. 101)


1. Aponte em que aspectos a filosofia utilitarista da fe- do epicurismo. Volta-se atrás na inversão realizada por Epicuro
licidade se aproxima e se distancia dos pensamentos ci- e põe-se novamente a felicidade sob a orientação do prazer.
renaico e epicurista sobre a felicidade.
Assim como o cirenaísmo e o epicurismo, a filosofia utilita- 2. Descreva o utilitarismo e o naturalismo.
rista situa no coração do ser humano um misto de pensamento O utilitarismo é uma postura filosófica que concebe o agir
e desejo, isto é, uma mescla de possibilidades racionais (atividade humano em função da felicidade, que, por sua vez, seria apenas
do pensamento e da decisão) e possibilidades irracionais (não re- o conjunto dos prazeres e a ausência de dor. Os pensadores uti-
sultantes de pensamento, mas vividas como impulsos naturais). litaristas adotam o método científico e consideram verdadeiro
Além das funções corporais básicas (nutrição, conservação, re- apenas o que pode ser observado fisicamente, sem nenhum apelo
produção, sensação), a vida humana contém uma saudável ten- para conceitos universais e transcendentes. Dessa perspectiva, o
são entre aquilo que se pode conhecer e escolher e aquilo que naturalismo é uma versão radical do utilitarismo, pois, ao con-
nela brota como impulso. Porém, ao associar a felicidade com ceber a felicidade, leva ao máximo a atitude de permanecer no
as coisas desejadas e produtoras de prazer ou com ausência de nível das coisas cotidianas e das realidades físicas, imanentes
dor, a visão utilitarista aproxima-se mais do cirenaísmo do que ao mundo, sem nenhum caráter transcendente.

440 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


3. Explique as dificuldades que alguns filósofos encontram música (ligada à “proibição da dor” e entendida como uma
tanto no utilitarismo como no naturalismo. imposição), espera-se que o estudante trace um paralelo com
Como os naturalistas e utilitaristas afirmam que a felici- o conceito que define a felicidade como soma dos prazeres e
dade não é nada em si mesma, mas apenas a somatória dos ausência de sofrimento, distinguindo-o da concepção de felici-
prazeres, alguns filósofos entendem que, mesmo de um pon- dade como atividade. O fundamental é que seja apresentada a
to de vista estritamente naturalista não é possível sustentar contraposição entre “ter felicidade” (o caráter efêmero do fato
essa concepção da felicidade, já que a experiência concreta de “ter prazer” e vivê-los no âmbito psicológico) e “ser feliz” (o
só nos mostra que o ser humano busca prazer e foge da dor sentido de plenitude buscado pela atividade a ser exercitada pela
em situações concretas e particulares; a experiência não per- prática da prudência e do cuidado de si). A “ditadura da felicida-
mite observar algo como uma regra geral que ensinaria essa de” do mundo contemporâneo, ao produzir uma obsessão por
concepção precisa da felicidade. Também é preciso notar que “ter felicidade”, acaba desviando a atenção da reflexão sobre o
dizer “o prazer é um bem” não é o mesmo que dizer “o bem que significa “ser feliz”.
(a felicidade) é o prazer”. Para Moore, por exemplo, trata-se
de uma tautologia que extrai uma conclusão falsa de sua afir- 2. Filosofia grega e sabedoria oriental
mação (uma falácia da tautologia). Espera-se que os estudantes identifiquem semelhanças e
diferenças entre formas filosóficas gregas e formas orientais
4. Explique o que significa afirmar que Moore elabora uma de sabedoria. Não se trata de pretender uma assimilação des-
filosofia da felicidade transcendente. sas formas, como se elas tivessem os mesmos objetivos e mes-
Para Moore, o Bem Supremo é aquilo que é desejado pelos mos métodos, mas de perceber que, por caminhos diferentes,
humanos acima de todas as outras coisas, qualificando todas muitas vezes são obtidas conclusões parecidas. Os professores
as coisas boas ao modo de um padrão absoluto ou de um mo- podem beneficiar-se da reflexão sobre a Filosofia “ocidental”
delo perfeito. Como os seres humanos buscam sempre o má- e sabedorias “não ocidentais” ou “não filosóficas” proposta nas
ximo de bem, eles desejam não apenas os bens particulares, páginas 413-414, e mesmo trabalhar essa problemática com os
mas também o Supremo Bem. Porém, o máximo bem não se estudantes em sala de aula.
reduz a nenhum dos bens particulares, uma vez que eles não
podem definir o Bem completamente. Nesse sentido, o Bem
é indefinível e não pode ser compreendido nem sequer pela PROPOSTA DE ATIVIDADE COMPLEMENTAR
soma de todos os bens particulares. Mas é possível apontar na Dividir a turma em quatro grupos de acordo com as seguin-
sua direção, já que ele está presente (em maior ou menor grau) tes áreas de interesse: arte, ciência, religião e economia. Cada
em cada uma das coisas boas. Como uma fonte que dá a bon- grupo, segundo sua área, lê um dos textos abaixo e reflete so-
dade de tudo o que consideramos bom, o Bem da filosofia de bre as indicações que acompanham cada texto. Ao final, cada
Moore pode ser considerado como a afirmação de uma trans- grupo expõe para a sala, em plenária, o resultado da discussão.
cendência que age na mais profunda imanência. Na plenária, todos podem contribuir para a reflexão, fazendo
comentários ou perguntas sobre os temas dos diferentes grupos.
EXERCÍCIO C (p. 103)
1. O que motiva algumas pessoas a associar a felicidade ape- Arte e felicidade
nas a momentos passageiros de alegria e satisfação? Luigi Pareyson
Certa confusão que tende a conceber a felicidade como
um mero estado psicológico de satisfação (momentos felizes). Qualquer atividade humana e, portanto, também a arte,
Essa confusão aparece no uso do verbo “estar” para falar da está dirigida por uma iniciativa pessoal: a pessoa a realiza com
felicidade: embora normalmente ninguém deseje a felicidade um ato seu de liberdade; considera-a como um fim ao qual de-
a outrem por meio da frase “esteja” feliz, mas “seja” feliz, cos- dicar-se; exercita-a com a consciência de encontrar nela uma
tumamos pensar geralmente que “estamos” felizes e não que afirmação de si; colore-a com todos aqueles sinais que conferem
“somos” felizes. uma tarefa a uma pessoa concreta, como o dever, a dedicação,
a paixão, o interesse; considera seus resultados, isto é, as obras,
2. O que significa, segundo Aristóteles, dizer que a felicidade como realidades nas quais reconhece o próprio valor, com que
é uma atividade? substanciar a própria consistência histórica, de onde extrair os
Para Aristóteles, mais do que um estado psicológico de bem- lineamentos do próprio perfil. Tudo isto diz respeito não somente
estar e satisfação, passivo e dependente de causas exteriores, a à consciência humana e moral do artista, mas também à pró-
felicidade é uma atividade da alma, ressaltando o caráter ativo pria arte, porque alude ao significado espiritual dela: é o ponto
na construção de uma vida feliz. Assim, a felicidade seria uma onde, necessariamente, a consideração da obra se faz conside-
prática e um modo de ser, e não apenas um estado passageiro ração biográfica e o conhecimento do lugar que a arte ocupa
de satisfação. na consciência de um artista se torna chave para interpretar a
sua arte, qualificação da sua poesia.
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 104)
1. Análise de documento musical PAREYSON, L. Os problemas da estética. Tradução Maria Helena
Com base na ideia de felicidade apresentada na letra da N. Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 85-86.

Manual do Professor 441


1. Segundo o texto, a arte é uma forma de a pessoa se afirmar. em coisas exteriores, mas a educação não está focando em me-
Nas obras, cada artista reconhece seu próprio valor. Você produz lhorar a qualidade dos nossos sentimentos; não aprendemos a
alguma forma de arte? Música? Pintura? Dança? Escultura? aprofundar a qualidade das relações que temos com os outros.
Que tipo de arte você prefere? Não temos estruturas sociais e educacionais que nos ajudem
2. Com base no texto, podemos dizer que a arte é uma forma com isso.” [...]
de praticar a felicidade?
3. A arte poderia ser, para os seres humanos, um sinônimo OS CAMINHOS da Felicidade. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 17
de felicidade? nov. 2012. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sociedade/sau-
de/os-caminhos-da-felicidade-6758750>. Acesso em: 28 ago. 2014.
Ciência e felicidade
Jornal O Globo 1. Com base no texto, a experiência da felicidade é ligada à
estrutura cerebral. Baseie-se no exemplo da doação de dinhei-
Uma sociedade que vive sob o “imperativo da felicidade”, mas ro para instituições de caridade e explique como essa estrutura
enfrenta a depressão como um dos principais males da atuali- produz felicidade.
dade: essa contradição e a constante busca da felicidade foram 2. Filosoficamente, é possível problematizar essa posição.
temas de debate na oitava e última edição do ano dos Encontros Veja: nada impede de dizer que boas ações estimulam certas
O GLOBO Saúde e Bem-Estar, realizado na quarta-feira, 14 de partes do cérebro, gerando prazer. A ciência mostra isso. Porém,
novembro de 2012. Se o assunto foi relegado ao segundo plano como entender que algumas pessoas tenham prazer praticando
no passado, hoje as formas de se alcançar esse estado de espírito más ações? Elas têm um problema no cérebro? Se o proble-
têm conquistado as atenções da neurociência e da medicina e já ma delas está no funcionamento cerebral, seria possível tratar
fazem parte das diretrizes de entidades de saúde. [...] essas pessoas com medicação? Como entender também que
Repensar valores, priorizando relações afetivas e não apenas algumas pessoas pratiquem ações más, pensando que são ações
o acúmulo de bens, foi uma das principais orientações dos es- boas? Ainda, como entender que pessoas tenham prazer com
pecialistas para pessoas que pretendem caminhar rumo à feli- o sofrimento? É possível que o cérebro delas esteja enganado?
cidade. O conselho é antigo, mas a fundamentação da ciência Que ele associe dor a prazer?
hoje comprova essa crença. 3. O texto foi escrito por um jornalista. Pode ser que ele não
O psicólogo João Ascenso, mestre em neurociência pela tenha entendido tudo o que disse o psicólogo João Ascenso. Mas
Universidade de Londres, cita, por exemplo, o estudo do neu- isso, aqui, não tem importância; afinal, muitas pessoas falam
rocientista da UFRJ, Jorge Moll Neto, com quem desenvolve exatamente dessa maneira a respeito das descobertas científicas
seu trabalho de doutorado. Uma pesquisa do cientista revelou sobre o funcionamento do cérebro. Então, reflita: ao afirmar que
que o chamado sistema de recompensa mesolímbico do cére- o cérebro “produz” felicidade, não a reduzimos apenas às sen-
bro [circuito da dopamina, hormônio e neurotransmissor ligado sações de prazer? Isso é filosoficamente correto? Ainda: o fato
ao controle cerebral dos movimentos, emoções, aprendizado, de dizermos que nossa vida emocional, psíquica, depende do
sono e memória], onde se manifestam as sensações de prazer, cérebro dá base para afirmarmos que é o cérebro que produz
é ativado pelo indivíduo que escolhe fazer o bem. nossa vida psíquica?
“Nos experimentos, ele mostrou que, quando doamos dinhei-
ro para uma instituição de caridade, ativamos o nosso sistema
cerebral de prazer mais intensamente se comparado a quando Religião e felicidade
recebemos dinheiro”, afirmou Ascenso. “Isso significa que temos Agostinho de Hipona
um sistema biológico programado que nos dá mais prazer fisio-
lógico ao doar do que ao receber. É uma informação biológica [Trecho de um diálogo do filósofo Agostinho
que não tem nada a ver com cultura nem religião e que vira de de Hipona com seus amigos e sua mãe]
cabeça para baixo toda a nossa estrutura social.”
Segundo Ascenso, a ciência vem estudando assuntos antes Retomando o diálogo, prossegui:
relativos às filosofias e às religiões; e citou o Brasil como um dos – Queremos ser todos felizes?
líderes nessa área. A ressonância magnética é o principal ins- Apenas havia pronunciado tais palavras, que a uma só voz e
trumento usado nas pesquisas e, com isso, os cientistas podem espontaneamente aprovaram.
avaliar as reações cerebrais a cada tipo de estímulo, que são os – E que vos parece: quem não tem o que quer é feliz?
mais variados. Caridade, relações amorosas e de amizade, con- – Não – responderam em uníssono.
fiança e perdão são algumas das ações que foram testadas cien- – Como? Mas então, quem tem o que quer será feliz?
tificamente e relacionadas com a felicidade e a saúde. Minha mãe, nesse ínterim, tomou a palavra:
Para o pesquisador, o ganho dessa mudança de perspectiva – Sim. Se essa pessoa deseja e possui o Bem, será feliz. Mas,
é definir práticas para desenvolver maior bem-estar psíquico. se deseja coisas más, ainda que as possua, será infeliz.
Segundo ele, inclusive, isso poderia começar a ser aprendido Sorrindo e deixando transparecer a minha alegria, disse à
nas escolas. minha mãe:
“Somos praticamente analfabetos emocionais, analfabetos re- – Alcançaste decididamente o cume da Filosofia. [...]
lacionais”, apontou Ascenso. “A nossa sociedade está investindo – Portanto, está entendido que ninguém pode ser feliz sem

442 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


possuir o que deseja, mas, por outro lado, não basta ter o que que enfatiza não apenas o crescimento da Economia mas tam-
se deseja para ser feliz. bém a cultura, a saúde mental, a compaixão e a comunidade.
Todos concordaram. [...] Dezenas de especialistas reuniram-se recentemente na capital
– Então, o que o ser humano precisa conseguir para ser feliz? do Butão, Thimbu, para fazer um balanço sobre o desempe-
[...] Isso significa ser necessário que se procure um bem perma- nho do país. [...] A reunião ocorreu na esteira da declaração de
nente, livre das variações da sorte e das vicissitudes da vida. Ora, julho da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
não podemos adquirir por conta própria, tampouco conservar (ONU), que convocou os países a avaliar como as políticas
para sempre, aquilo que é perecível e passageiro. [...] O que pen- nacionais podem promover a felicidade em suas sociedades.
sais sobre isto: Deus é eterno e imutável? Todos os que se reuniram em Thimbu concordaram sobre
– Eis aí uma verdade tão certa que qualquer questão se torna a importância de buscar a felicidade em vez da renda nacio-
supérflua – disse Licêncio. nal. A questão que examinamos é como alcançar a felicidade
Em piedosa harmonia, todos os outros disseram-se de acor- em um mundo caracterizado pela rápida urbanização, meios
do. Concluí então: de comunicação de massa, capitalismo global e degradação
– Logo, quem possui a Deus é feliz! ambiental. Como nossa vida econômica pode ser reordenada
para recriar um senso de comunidade, confiança e sustenta-
AGOSTINHO DE HIPONA. A vida feliz. Tradução Nair A. bilidade ambiental?
Oliveira. São Paulo: Paulus, 1998. p. 129-131. Estas foram algumas das conclusões iniciais: primeira, não
devemos menosprezar o valor do progresso econômico. Há so-
1. Você concorda que o núcleo do texto é a frase “ninguém frimento quando as pessoas passam fome, quando são privadas
pode ser feliz sem possuir o que deseja, mas, por outro lado, não do atendimento de necessidades básicas, como água potável,
basta ter o que se deseja para ser feliz”? Por quê? atendimento médico e educação, ou empregos dignos.
2. Observe o modo como Agostinho fala de Deus como algo Segunda, a busca contínua do PNB, sem levar em conta
eterno e imutável. Se o ser humano o possui, tem a garantia de outros objetivos, tampouco é caminho para a felicidade. Nos
que possui algo eterno e imutável. Podemos dizer que, nesse tex- EUA, o PNB subiu acentuadamente nos últimos 40 anos, mas
to, Deus “funciona” como a ideia de felicidade, ou seja, como a felicidade não. Em vez disso, a busca obstinada do PNB levou
polo que atrai sempre para a completude? Deus, então, pode a grandes desigualdades de riqueza e poder – alimentadas pelo
contribuir para praticar a felicidade? crescimento de uma grande subclasse –, aprisionou milhões de
3. Reflita: por que muitas pessoas têm dificuldade em pen- crianças na pobreza e provocou grave degradação ambiental.
sar que Deus pode contribuir para a Felicidade humana? As Terceira, a felicidade é alcançada por meio de uma aborda-
religiões costumam falar em nome de Deus. Porém, algumas gem de vida equilibrada, entre indivíduos e sociedade. Como
pessoas ficam profundamente decepcionadas ao frequentar indivíduos, somos infelizes quando nos é negado o atendimento
certas religiões ou ao observar o comportamento de pessoas de necessidades básicas materiais, mas também somos infelizes
religiosas. Você conhece casos desse tipo? É possível crer em se a busca por rendas maiores substitui nosso foco na família,
Deus e ser infeliz? amigos, comunidade, compaixão e equilíbrio interno. Como
sociedade, uma coisa é organizar políticas econômicas para
Economia e felicidade manter os padrões de vida em alta, mas outra bem diferente
Jeffrey Sachs é subordinar todos os valores da sociedade à busca do lucro.
A política nos EUA, contudo, permitiu cada vez mais que
Vivemos em tempos de altas ansiedades. Apesar de o mun- os lucros empresariais dominassem todas as outras aspirações:
do usufruir de uma riqueza total sem precedentes, também igualdade, justiça, confiança, saúde física e mental e sustenta-
há ampla insegurança, agitação e insatisfação. Nos Estados bilidade ambiental. As contribuições de empresas a campanhas
Unidos, uma grande maioria dos americanos acredita que o [eleitorais] corroem cada vez mais o processo democrático, com
país está “no caminho errado”. O pessimismo está nas alturas. a benção da Corte Suprema dos EUA.
O mesmo vale para muitos outros lugares. Quarta, o capitalismo global apresenta muitas ameaças
Tendo essa situação como pano de fundo, chegou a hora diretas à felicidade. Está destruindo o [meio] ambiente com
de reconsiderar as fontes básicas de felicidade em nossa vida as mudanças climáticas e outros tipos de poluição, enquanto
econômica. A busca incansável de rendas maiores vem nos le- um fluxo incansável de propaganda da indústria petrolífera
vando a uma ansiedade e iniquidade sem precedentes, em vez leva muitas pessoas a desconhecer o problema. Isso enfraque-
de nos conduzir a uma maior felicidade e satisfação na vida. ce a estabilidade mental e confiança social, com a incidência
O progresso econômico é importante e pode melhorar a qua- de depressões clínicas aparentemente em alta. Os meios de
lidade de vida, mas só se o buscarmos junto com outras metas. comunicação de massa se tornaram meio de distribuição de
Nesse sentido, o Reino do Butão vem mostrando o caminho. “mensagens” empresariais em grande parte abertamente contra
Há 40 anos, o quarto rei do Butão, jovem e recém-entronado, a ciência, enquanto os americanos sofrem de um número cada
fez uma escolha notável: o Butão deveria buscar a Felicidade vez [maior] de vícios de consumo.
Nacional Bruta (FNB), em vez do Produto Nacional Bruto Consideremos como as lanchonetes de refeições rápidas
(PNB). Desde então, o país vem experimentando uma abor- usam óleos, gorduras, açúcares e outros ingredientes viciantes
dagem alternativa e holística em relação ao desenvolvimento, que criam uma dependência, prejudicial à saúde, em relação

Manual do Professor 443


a alimentos que contribuem para a obesidade. Cerca de 30% 1. Inicie procurando saber se há diferença entre PNB e PIB.
dos americanos são obesos na atualidade. O resto do mundo 2. Pesquise onde fica o Reino do Butão e quais são suas prin-
acabará seguindo o mesmo caminho, a menos que os países cipais características sociais, políticas e econômicas.
restrinjam práticas empresariais perigosas, como a publicidade, 3. Diferencie claramente PNB e FNB.
voltada a crianças, de alimentos viciantes e prejudiciais à saúde. 4. Destaque no texto algumas das razões pelas quais o au-
O problema não está apenas nos alimentos, a publicidade tor afirma que a economia tem contribuído para destruir a
voltada às grandes massas contribuiu para muitos outros vícios felicidade humana.
de consumo, que implicam em altos custos à saúde pública, 5. Resuma as cinco conclusões a que chegaram os especialis-
incluindo o hábito de ver televisão em excesso, apostas, uso de tas reunidos em Thimbu para que nossa vida econômica possa
drogas, fumo e alcoolismo. ser reordenada e para que se recrie um senso de comunidade,
Quinta, para promover a felicidade, precisamos identificar confiança e sustentabilidade ambiental.
os muitos fatores além do PNB que podem melhorar ou piorar 6. Reflita: por que a economia está sempre no centro das
o bem-estar de uma sociedade. A maioria dos países investe preocupações das pessoas e dos governos? A economia se tor-
para calcular o PNB, mas pouco gasta para identificar as fontes nou o sentido da vida humana? Em sua opinião, isso é bom,
da má situação da área de saúde (como o fast-food e o tempo ruim ou neutro?
excessivo em frente à TV), o declínio da confiança social e a
degradação ambiental. Uma vez que compreendamos esses
fatores, teremos condições de agir. SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
A busca insana pelos lucros empresariais ameaça a todos ALBARNOZ, S. G. (Org.). A Filosofia e a felicidade. Florianópolis:
nós. Naturalmente, devemos apoiar o desenvolvimento e cres- EDUNISC, 2004.
cimento econômico, mas apenas dentro de um contexto mais LENOIR, F. Sobre a felicidade: uma viagem filosófica. Tradução
amplo: um contexto que promova a sustentabilidade ambien- André Fontenelle. São Paulo: Objetiva, 2016.
tal e os valores da compaixão e honestidade, necessários para SANGALLI, I. J. O filósofo e a felicidade: o ideal ético do aristo-
criar a confiança social. A busca da felicidade não deveria ficar telismo radical. Caxias do Sul: EDUSC, 2013.
confinada ao belo reino montanhoso do Butão.

SACHS, J. A economia da felicidade. Valor Econômico, São


Paulo, 30 ago. 2011. Disponível em: <http://www.valor.com.
br/opiniao/992070/economia-da-felicidade>. Acesso em: 14
maio 2015.

Capítulo 3 A amizade

OBJETIVO
Partindo da concepção clássica da pessoa amiga como não é apenas algo que brota em nós ou “algo que se sente”,
“outro eu”, analisar criticamente a compreensão da ami- apesar de ela nascer de um interesse nem sempre controlado.
zade como simples experiência psicológica ou como “algo A amizade pressupõe que uma relação seja construída. Daí a
que se sente”, para apresentar a possibilidade de entender sua concepção como amor (possível até mesmo em relação a
a amizade propriamente como uma relação ou como uma alguém que não nos ama, como defende Tomás de Aquino)
atividade livre. e como atividade (Aristóteles), chegando a poder ter uma co-
notação política bastante intensa (Hannah Arendt). Os profes-
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS sores podem explorar separadamente os itens que compõem
A partir do relato da escritora brasileira Hilda Hilst, explora- o capítulo. Além de cada um deles poder ser trabalhado em
se o fato de que entre amigos há semelhanças e diferenças. As aulas diferentes, eles não se pressupõem entre si. Em função
semelhanças levam a pensar que uma pessoa amiga é “outro do contexto e da sensibilidade dos estudantes, pode-se co-
eu”. No entanto, é importante frisar que em uma relação de meçar, por exemplo, pelo texto de Hannah Arendt (ênfase
amizade não se identificam apenas semelhanças nas pessoas no papel político ou republicano da amizade), pelo texto de
amigas; se fosse assim, não haveria verdadeira relação, mas Tomás de Aquino (ênfase na essência da amizade e mesmo em
um “ensimesmamento a dois” ou um redobro de uma úni- certa concepção religiosa) ou ainda pelo texto de Aristóteles
ca pessoa. Há, então, diferenças entre pessoas amigas que (debate sobre o caráter natural da amizade). De todo modo,
permitem uma complementação entre elas. A partir dessa é também estratégico explorar a confluência entre dados na-
observação, introduz-se a compreensão de que a amizade turais e dados culturais na formação da relação de amizade.

444 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

Movimento natural

Diferenças Semelhanças

AMIZADE

O amigo é outro eu

AMIZADE

Diálogo Humanização

Necessidades sociais

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 112)
1. O que significa dizer, do ponto de vista de Cícero, que 4. Segundo o raciocínio ciceroniano, toda pessoa que
o(a) amigo(a) é quem permite à pessoa amar a si mesma? ama a si mesma é alguém que encontra necessariamente
Para Cícero, a Natureza faz cada ser humano amar a si mes- um(a) amigo(a)?
mo, não como uma simples admiração egoísta, mas como quem Não. O amor de si mesmo pode ser autorreferente, ou seja,
procura o seu próprio bem. Nesse sentido, o verdadeiro amigo voltado apenas para si mesmo. Contudo, para Cícero, quem
é o que permite que a outra pessoa siga o ritmo da Natureza, encontrou um verdadeiro amigo é alguém que ama a si mesmo.
realizando o seu amor de si.
EXERCÍCIO B (p. 117)
2. Refaça o raciocínio que permitiu a Cícero concluir que 1. Procure lembrar-se de alguma experiência vivida por
o(a) amigo(a) é um outro eu. você ou por alguém próximo, a fim de confirmar que a
Se todos os seres humanos são seres que amam a si mesmos, e amizade é uma atividade e um hábito que se constrói.
se amar a si mesmo corresponde a ser importante para si mesmo, Resposta pessoal. O que se espera é a ênfase, por meio de
então a amizade desinteressada (desejada em si e por si) se dá exemplos, na participação dos estudantes no surgimento e na
entre seres que se amam e são importantes para si mesmos. Daí consolidação da amizade, interferindo no seu despontar e no
ser o amigo um “outro eu”, na medida em que o amor do amigo seu desenvolvimento.
é aquele que favorece a minha vivência do meu próprio amor.
2. Qual a novidade de Tomás de Aquino em relação à concep-
3. Amar a si mesmo(a) no(a) amigo(a) é um ato interesseiro? ção aristotélico-ciceroniana de amizade?
Explique. Além da amizade entendida como reciprocidade, Tomás de
Não. É simplesmente uma extensão e continuação do amor Aquino pensa que a benevolência é o que melhor caracteriza
de si a partir do reconhecimento no outro daquilo que amo a amizade: trata-se de querer o bem de outra pessoa mesmo se
em mim mesmo. essa pessoa não corresponde ao amor.

Manual do Professor 445


3. Apresente a solução de Tomás de Aquino para o seguinte apresentação das respostas em plenária) ou pode ser amplia-
problema: se a amizade requer reciprocidade, ela não é uma da para o modo como se propõe na sequência deste Manual
forma de amor, pois Jesus ensinou a amar os inimigos; e ini- do Professor (item Atividades Complementares), quer dizer,
migos não correspondem a quem os ama. como levantamento de testemunhos sobre o sentido da ami-
Primeiramente, Tomás contra-argumenta lembrando que zade, envolvendo outros membros da comunidade escolar e
o próprio Jesus chamou seus discípulos de amigos, devido ao montando uma tabela comparativa com os dados colhidos
amor que sentia por eles e procurando mostrar que a amizade é na entrevista. As duas atividades também podem ser feitas
uma forma de amor. Em seguida, ele diz que é possível pensar separadamente.
em alguma reciprocidade se existir um intermediário entre duas
pessoas inimigas, como um amigo em comum que leva alguém
a amar uma pessoa por causa do amor que sente por uma ter- LEITURA COMPLEMENTAR
ceira pessoa. Como Tomás acreditava que Deus ama todas as O texto a seguir, escrito por Arthur Schopenhauer, permite
pessoas, o amor a Deus leva as pessoas a amar até seus inimigos, explorar, em contexto contemporâneo, a “essência” da ami-
possibilitando pensar o amor benevolente também como uma zade. Falar de “essência” como algo determinado e imutável
forma de reciprocidade. seria inadequado para algo tão dinâmico como a prática ou
o exercício da amizade. Schopenhauer, que considerava a
4. Como relacionar Política, discurso e amizade de acordo amizade algo extremamente raro (embora não desacreditasse
com o texto de Hannah Arendt? totalmente dela), aponta para um dinamismo de aproximação
Segundo Hannah Arendt, que retoma o pensamento grego, e afastamento, sem entrar em reflexões sobre a natureza hu-
a essência da Amizade está no discurso, um falar em conjunto mana como fazia, por exemplo, Aristóteles e Cícero. No dizer
que une os cidadãos em uma mesma pólis: é o diálogo amis- de Schopenhauer, o amor de si, nutrido pelos humanos, é tão
toso daqueles que fundam o mundo da pólis como objeto de exagerado que se transforma em egoísmo para a grande maio-
um discurso em conjunto em busca do bem comum de seus ria dos indivíduos. Por causa do egoísmo, ninguém é capaz de
concidadãos. saber se realmente existe amizade verdadeira. Ela talvez não
passe de uma fábula, assim como se fala de serpentes marinhas
5. Após ler o texto de Hannah Arendt, você considera cor- gigantes. No entanto, não é inadequado pensar que as pessoas
reto afirmar que “o ser humano não nasce humano, mas se se aproximam por causa das suas necessidades. Além de ser-
humaniza”? Argumente. vir de aprofundamento aos colegas professores, o texto pode
Resposta pessoal. Mas no sentido exposto por Arendt, o ser ser tomado como complementar à formação dos estudantes,
humano pode nascer um hominídeo, isto é, com a forma huma- inclusive porque é mais um exemplo de pensamento filosó-
na (física e psicológica); contudo, ele pode passar pela vida sem fico construído sobre o “método intuitivo” (apontando para
se tornar propriamente humano. Para Arendt, a humanização uma realidade verdadeira, expressa por meio de uma fábula):
do ser humano dá-se pelo desenvolvimento daquilo que lhe é
mais peculiar, a saber: o discurso, o diálogo, a amizade e a po- A fábula dos porcos-espinhos
lítica, entendidos como a busca em conjunto do bem comum. Arthur Schopenhauer

EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 118) Um grupo de porcos-espinhos, num frio dia de inverno, se
1. Recapitulação aglomerou para, através do aquecimento recíproco, não morrer
Espera-se que os estudantes apresentem as linhas de pensa- de frio. Contudo, logo começam a sentir os espinhos uns dos
mento explanadas no capítulo, desenvolvendo sua argumenta- outros, o que os leva então a se afastar novamente. Quando a
ção de acordo com os movimentos do próprio capítulo. A partir necessidade de aquecimento os aproxima mais uma vez, repe-
do primeiro tópico – a amizade como jogo de espelhos –, é te-se um segundo infortúnio. Nesse vaivém em meio aos dois
possível compreender que a amizade não reconhece apenas sofrimentos, seguem até encontrar uma distância segura entre
semelhanças, mas diferenças entre os indivíduos; do que se eles, na qual podem melhor suportá-los. Do mesmo modo,
extrai que ela não pode ser reduzida a uma satisfação do âm- os homens são impelidos uns aos outros pelas necessidades
bito psicológico (como algo que apenas “se sente”), mas deve da Sociedade, de cujo seio surgem o vazio e a monotonia.
consistir numa relação a ser construída gradualmente. Desse Entretanto, suas particularidades assaz desagradáveis e defeitos
modo, a amizade passa a ser entendida como atividade, sendo insuportáveis os afastam mais uma vez. A distância mediana
explicitadas quatro concepções nesse sentido: a de Aristóteles ao fim encontrada, na qual podem se reunir, são a polidez e
(amizade como philía), a de Cícero (amigo como outro eu), a os bons costumes.
de Tomás de Aquino (amizade entendida como amor-amizade
ou amizade-amor) e a de Hannah Arendt (amizade voltada para SCHOPENHAUER, A. Parerga e Paralipomena II. Tradução
o bem comum, efetivada por meio do discurso). Jarlee Salviano apud SALVIANO, J. Labirintos do Nada: a
crítica de Nietzsche ao niilismo de Schopenhauer. 2006. Tese
2. Entrevista e reflexão em grupo: a experiência da amizade (Doutorado em: Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras
A entrevista pode ser feita simplesmente no modo como está e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
apresentada no enunciado do exercício (com a organização e 2006. p. 2.

446 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


PROPOSTAS DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES
1 Levantamento de testemunhos sobre o sentido da fazendo algumas perguntas precisas, por exemplo: (a) Você já vi-
amizade veu alguma dificuldade que partilhou com amigos? (b) Qual foi
Como alguns de nossos estudantes podem não dispor de a reação dos amigos? (c) Quanto tempo por mês ou por semana
exemplos ou modelos de prática da amizade em seus ambientes você dedica às pessoas amigas (trocando notícias pessoais com
familiares e mesmo em seus círculos de “amigos”, seria pedago- elas, manifestando interesse mútuo etc.)? (d) Você acredita que
gicamente interessante pô-los em contato com testemunhos de as redes sociais substituem o contato pessoal com os amigos? (e)
diferentes pessoas sobre o sentido que a amizade tem para elas. O que significa a amizade para você? Esta atividade pode ser
Nesse contexto, a escola pode ser (ou mesmo deveria ser) um ex- feita tanto para iniciar como para encerrar o estudo do capítulo.
celente espaço para o aprendizado da amizade, não apenas dos A vantagem de realizá-la no início está na sensibilização para o
estudantes entre si, mas deles com os outros atores da vida escolar, tema, mas as vantagens de fazê-la ao final está no fato de os es-
como os professores e os funcionários. A classe pode ser dividi- tudantes disporem de mais elementos para avaliar as respostas
da em vários grupos (com cerca de cinco alunos cada), a fim de recebidas. Cada grupo pode entrevistar cerca de cinco pessoas e
que cada grupo entreviste estudantes, professores e funcionários, sintetizar as respostas em um quadro como o que segue:

VIVÊNCIA DA AMIZADE
REAÇÃO DOS TEMPO DEDICADO SENTIDO DA
DIFICULDADE REDES SOCIAIS
AMIGOS AOS AMIGOS AMIZADE

Os estudantes podem ser instruídos sobre o fato de É diferente dizer: “Ou está chovendo ou não está choven-
que, em pesquisas desse tipo (que envolvem informa- do”, pois, neste caso, a alternativa é verdadeira: estar chovendo
ções pessoais), convém preservar a identidade das pes- ou não estar chovendo são as duas únicas alternativas possíveis
soas entrevistadas. Em vez de indicar seus nomes, em qualquer situação.
podem-se utilizar pseudônimos, letras ou números. Ao fi- A falácia da falsa alternativa lembra os discursos do ex
nal das entrevistas, organiza-se uma plenária em sala para -presidente norte-americano George Bush, durante a Guerra
partilha dos dados. Uma tabela geral, com todas as informa- do Iraque. Para defender a guerra, ele dizia: “Quem não é
ções dos diferentes grupos, pode ser montada e divulgada a favor dos Estados Unidos é contra os Estados Unidos!”.
na escola. A atividade pode ser encerrada com a projeção Outro exemplo: “Ou se é a favor dos patrões ou se é a fa-
do filme (para a turma ou para a escola toda, se houver vor dos trabalhadores”. No caso da guerra, alguém podia
condições físicas) Minhas tardes com Margueritte (direção ser contrário a ela, mas não necessariamente contrário aos
Jean Becker, França, 2010). Antes de iniciar a projeção, al- Estados Unidos, assim como pode ocorrer que haja alguém
gumas questões podem ser levantadas como forma de con- a favor tanto dos patrões como dos trabalhadores, e mes-
tribuir para despertar a atenção: (a) A diferença de idade mo trabalhadores a favor dos patrões ou patrões a favor dos
entre Germain e Margueritte foi importante ou indiferente trabalhadores.
para a amizade entre eles? (b) A amizade entre Germain O que permite decidir se uma alternativa é correta ou não
e Margueritte teve algum momento de tensão? (c) As duas é a análise cuidadosa da situação que essa alternativa traduz.
personagens principais sempre concordavam em tudo? (d) Se realmente só houver duas opções, a alternativa é verdadeira.
As personagens precisaram fazer algum esforço para que a Do contrário, é falsa.
amizade acontecesse ou ela simplesmente “brotou” entre
elas? (e) Em que sentido se pode dizer que entre Germain
e Margueritte nasceu um sentimento de amor? SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
ORTEGA, F. Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras,
2 Estudo da falácia da falsa alternativa 2002.
Não é em todas as circunstâncias que se pode considerar
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro:
como verdadeira uma frase do tipo “Ou alguém é amigo
Nova Fronteira, 2015.
ou é inimigo”. A própria alternativa ou... ou nem sempre é
verdadeira: em uma situação que comporta mais de duas al- ROHDEN, L. Amizade entre filosofia e educação. In: PIOVESAN,
ternativas, se alguém pensa e fala como se só houvesse duas, A. Filosofia e ensino em debate. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2002. p. 113-134.
comete o erro ou a falácia da falsa alternativa. WIZISLA, E. Benjamin e Brecht: história de uma amizade.
Pode ser o caso de que a frase “Ou você é meu amigo ou é Tradução Rogério Silva Assis. São Paulo: Edusp, 2013.
meu inimigo” seja falsa, porque alguém pode não ser amigo,
mas também não ser necessariamente inimigo.

Manual do Professor 447


Capítulo 4 Sexualidade e força vital
OBJETIVO
Admitindo-se que a sexualidade é um dos elementos força estruturante da vida humana mais ampla. Metaforicamente
estruturantes da experiência humana e reconhecendo-se a falando, se a força vital for entendida como certa tensão, a se-
extrema importância do diálogo entre Filosofia e a tradição xualidade seria um de seus graus ou uma das formas de essa
psicanalítica, investigar as razões filosóficas que levam a tensão fazer vibrar a vida individual. Mas, antes de entrar no
inserir a sexualidade em um conjunto mais amplo de ex- diálogo da Filosofia com a Psicanálise e de chegar à concepção
periências, ao qual se pode denominar, com o auxílio da da força vital, é também estratégico debater filosoficamente a
fenomenologia, de força vital. compreensão da sexualidade humana como algo animal (algo
inteiramente em comum com os animais ou “algo animal no
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
ser humano”). Esse debate permite pensar na especificidade
A estratégia do capítulo é bastante simples e, digamos, do ser humano (texto de Hannah Arendt), sem anular o que
“dialética”: partir de noções psicanalíticas fundamentais que ele tem de comum com os outros seres vivos sexuados. A res-
levariam a conceber a sexualidade como motor da vida humana; peito da especificidade humana, é possível explorar demo-
em seguida, identificar razões, no interior da própria tradição radamente a imagem que abre o capítulo: o escultor catalão
psicanalítica, para não conceber a sexualidade como motor da Jaume Plensa deu letras de vários alfabetos como contorno
vida humana. Diante de tal quadro, não cabe inicialmente à de cada figura humana, deixando as esculturas vazadas e do-
Filosofia decidir por uma ou outra posição, mas constatar que, tando-as de “mobilidade”. Essa representação do ser humano
mesmo do ponto de vista científico-psicanalítico, não há um permite levantar a temática de que o que define cada ser hu-
consenso sobre isso. Dada a falta de consenso e dado que nada mano é o seu modo de ser um ser humano, acionando tudo
obriga racionalmente a optar por uma ou outra concepção da o que recebe da espécie animal, mas de modo propriamente
sexualidade, a Filosofia pode operar com maior liberdade e humano (pela vivência corporal que une afetos ou emoções,
admitir a noção de sexualidade como “componente” de uma sentimento e inteligência).

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

Freud sexualidade infantil

Psicanálise sexualidade
(≠ reprodução)
MOTOR DA Winnicott ausência de sexualidade
EXISTêNCIA antes de a criança
INDIVIDUAL ver-se como indivíduo

SEXUALIDADE
E necessidade de
FORÇA VITAL reconhecimento

Merleau-Ponty não há justificativa


racional para dizer que
a sexualidade é a
existência ou engloba
a existência

Filosofia
corrente geral da vida

Edith Stein força vital

BASE FISIólogica + especificidade humana


O ser humano vive a sexualidade como humano.

448 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS
EXERCÍCIO A (p. 123)
1. Explique por que é um raciocínio a fortiori não jus- (diagnóstico da época), Freud observou que todas asso-
tificado dizer que, se o ser humano tem uma base fisio- ciavam seu sofrimento com algum suposto abuso sexual
lógica semelhante à dos animais, então ele é levado a vivido na infância, fosse ele real ou imaginado. Ora, se
viver sua sexualidade assim como os animais a vivem. as pacientes viveram de maneira sexual um fato ou uma
O fato de o ser humano ter uma base fisiológica se- fantasia relacionados à infância, haveria base para dizer
melhante à dos animais não obriga a afirmar que ele, ne- que a sexualidade se manifesta desde a infância.
cessariamente, vive sua sexualidade como os animais se
comportam sexualmente. A premissa (o ponto de partida) 2. Quais as duas pulsões que, segundo Freud, seriam
não sustenta a conclusão. Esse raciocínio parte do pres- básicas no ser humano? Explique-as.
suposto de que o “animal racional” inclui tudo o que há A pulsão de vida e a pulsão de morte. Segundo Freud,
no “animal irracional” necessariamente ao modo do que a pulsão de vida está relacionada à busca por satisfação
há no “animal irracional”. Mas o ser humano vive a sua e à conservação da vida, à afirmação do movimento. Já
animalidade à sua maneira, ou seja, como animal racional. a pulsão de morte relaciona-se à busca por cessação de
todo movimento, à busca por repouso e ao desejo de pôr
2. Mostre como Hannah Arendt serve-se da ideia de que fim à ânsia de sempre buscar satisfação.
os seres humanos lutam por espaço e extrai afirmações
sobre o que significa ser humano e ser animal. 3. Por que os sonhos, segundo Freud, confirmam a exis-
Não é porque o ser humano (o povo) luta por espaço tência do Inconsciente?
que podemos tomar o instinto do “territorialismo grupal” Durante o sono, o estado de relaxamento suprime mo-
das formigas ou dos macacos como base para justificar o mentaneamente o controle social e moral realizado pelo
comportamento humano. Para Hannah Arendt, é o com- que Freud chamou de Superego. Nesse estado, os dese-
portamento de algumas espécies animais que lembra o jos reprimidos e não reconhecidos conscientemente vêm
dos humanos, e não o contrário. Isto é, não é porque o à tona por meio de símbolos durante o sonho, revelando
ser humano faz parte do gênero animal que devemos es- conteúdos inconscientes.
perar que ele adote o mesmo comportamento de outras
espécies animais. 4. Qual diferença básica Winnicott observava entre o
seu procedimento e o de Freud?
3. Qual o significado do trabalho do biólogo suíço Adolf Winnicot preferia adotar critérios que ele considerava
Portmann para o pensamento de Hannah Arendt? mais observáveis para elaborar a sua concepção da vida
O trabalho de Portmann foi bastante significativo para humana, evitando afirmações que não pudessem ser com-
Hannah Arendt, uma vez que ele criticou cientificamen- provadas empiricamente.
te a tentativa de compreender o comportamento humano
com base no dos animais, oferecendo uma base científica 5. O que caracterizaria uma criança “saudável” segun-
para o trabalho da filósofa quando questiona a legitimi- do Winnicott?
dade de se comparar os seres humanos com os animais O recebimento das condições ideais para o seu desen-
(embora ela não negasse a legitimidade de comparar os volvimento, como atenção, cuidado e amor, que levam a
animais com os seres humanos). Para Portmann e Hannah criança e depois o adulto a ter mais gosto pela existência.
Arendt, as semelhanças observadas entre o comportamen-
to humano e o animal não permitem afirmar que o ser 6. O que Winnicott chama de motor da vida humana?
humano seja dessa ou daquela maneira apenas porque os A necessidade de reconhecimento, amor e atenção.
animais são assim. Daí o seu lema, fazendo um claro trocadilho com a frase
emblemática do pensamento de Descartes (“Penso, logo
4. O que significa afirmar que o ser humano vive sua existo”): Vejo que sou visto, logo existo. Winnicott des-
sexualidade como humano? locava, assim, a sexualidade do centro da vida humana,
Significa dizer que o ser humano vive a sua sexuali- fazendo dela apenas um aspecto da busca por reconhe-
dade no todo de sua existência. Os seus aspectos instin- cimento, amor e atenção.
tivos e irracionais são acionados ao mesmo tempo que o
ser humano se serve de seu pensamento, ou seja, ele vive 7. Qual a importância filosófica da comparação entre
seus instintos ao mesmo tempo que vivencia sentimentos a psicanálise de Winnicott e a psicanálise de Freud no
e pensamentos. tocante à sexualidade infantil?
O debate entre Winnicott e Freud revela, no interior da
EXERCÍCIO B (p. 128) própria Psicanálise, a possibilidade de interpretar diferen-
1. Descreva a observação que permitiu a Freud concluir temente o papel da sexualidade na vida infantil. Se, como
pela vivência da sexualidade desde a infância. dizia Winnicott, faz sentido pensar que a sexualidade não
Ao tratar de casos de mulheres com neurose histérica aparece necessariamente na vida infantil, nada obrigaria

Manual do Professor 449


a concluir que a sexualidade estrutura todas as fases da sexual; e este pode, inclusive, confiscá-la em seu próprio
vida humana. O interesse filosófico desse debate é grande benefício, diminuindo o vigor de outros aspectos da vida.
porque, caso se considere a Psicanálise como uma ciência,
a Filosofia, dando atenção às divergências no interior da 3. Pela experiência pessoal, você vê motivos para con-
própria Psicanálise, não se vê obrigada a necessariamente cordar com Merleau-Ponty na análise da sexualidade?
tomar partido por uma ou outra interpretação da sexua- Resposta pessoal.
lidade humana. Ela se veria obrigada a assumir uma in-
terpretação caso essa interpretação fosse unânime entre 4. Qual o sentido de chamar a vida humana de corren-
os praticantes da Psicanálise e caso a Psicanálise também te geral da vida?
adquirisse um estatuto unânime de ciência. A vida humana entendida a partir da imagem da “cor-
rente geral” seria como o fluxo de um rio composto de
8. Baseando-se na teoria freudiana e na releitura win- muitos elementos e de diferentes correntes singulares que,
nicottiana, e sem preocupar-se em ter de optar por uma juntas, compõem uma corrente geral.
ou outra, reflita sobre o tratamento que nossa socieda-
de dá à infância. A Psicanálise alerta, de modo geral, 5. Por que a ideia física de força é apropriada ao uso
para o excesso de sexualização da infância. Por que essa filosófico que discute a força vital?
prática seria inadequada? Identifique casos de sexuali- Porque essa ideia é capaz de retratar a interação dos
zação excessiva da infância nos programas de televisão diferentes componentes da vida humana, dos aspectos
ou mesmo em suas práticas familiares (uso de roupas físicos, emocionais, intelectuais, relacionais, sem, no en-
erotizadas, brincadeiras sexuais, danças, preocupação tanto, representar uma interação mecânica e automática
com o “namorado” ou a “namorada” etc.). entre o corpo e a dimensão psicológica. O ser humano é
Resposta pessoal. É importante que os estudantes che- um caso de ser vivo em que a força vital pode ser modu-
guem a conectar sua realidade com o debate em questão lada e administrada com mais consciência.
e forneçam justificativas claras para tal conexão.
6. Qual o objetivo fundamental de Edith Stein com os
EXERCÍCIO C (p. 134) exemplos dados em seu texto?
1. Qual a ambiguidade da Psicanálise, segundo Merleau- Os dois exemplos dados ilustram como a força vital, es-
Ponty, e como ele a analisa? pecificamente no caso dos seres humanos, pode interferir
Merleau-Ponty, referindo-se à Psicanálise em geral, e superar as forças físicas que atuam mecanicamente sobre
mas tendo em mente principalmente a psicanálise freu- os corpos. Além disso, os exemplos mostram como o ser
diana, afirma que ela concebe a sexualidade como um humano pode modular a intensidade de uso de sua força
dispositivo a serviço da vida humana (ou seja, entende vital, por meio, por exemplo, da intensificação da vontade.
a vida como dotada de uma infraestrutura sexual), ao
mesmo tempo que concebe a vida humana como algo EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 134)
que está a serviço da sexualidade (ou seja, entende que a 1. Reflexão pessoal sobre a vida sexual de adolescentes
sexualidade integra a totalidade da vida, confundindo a e jovens
existência e a vida com a própria sexualidade). Essa am- O exercício convida à reflexão pessoal sobre o tema
biguidade levaria a pensar que toda a vida e a existência da vida sexual de adolescentes e jovens. Espera-se que
humanas têm uma significação sexual ou são sinônimas os estudantes pensem detidamente sobre as questões da
de sexualidade (“vida humana” e “existência” não passa- responsabilidade na vivência sexual e do preconceito. O
riam de abstrações ou de palavras vazias, pois tudo seria vídeo sugerido, de caráter informativo, mostra aspectos da
apenas sexualidade). Porém, de acordo com a análise de realidade brasileira, nem sempre explicitados pelas estatís-
Merleau-Ponty, a afirmação de que a vida humana é se- ticas relativas à sexualidade e à gravidez na adolescência.
xualidade não passa de uma tautologia, que equivaleria
a dizer “o sexual é sexual”, sem nenhuma real explicação 2. Pesquisa e debate
da vida e da existência. Para além do aprofundamento dos conceitos, o exercício
de pesquisa e debate visa à prática da fundamentação, da
2. O que os exemplos dados por Merleau-Ponty em seu justificativa e da articulação de argumentos, bem como ao
texto lhe permitem concluir? diálogo como ferramenta que possibilita a apreensão de
Os exemplos dados por Merleau-Ponty permitem con- novos elementos e perspectivas, alargando assim o campo
cluir que a corrente sexual é apenas uma expressão do de investigação e trazendo outros questionamentos para as
fluxo da vida, e não a totalidade da existência. Uma pes- próprias convicções ou teorias. Complementa o exercício
soa pode ter uma vida sexual deteriorada e ainda assim o texto “O sofrimento de não ser como a maioria”, que os
ter uma vida política eficaz; ou uma pessoa que tem uma professores podem trabalhar com a turma como adendo à
vida sexual muito intensa pode não ter uma vida em geral atividade de pesquisa e debate. Seria bastante enriquecedor
com nenhum vigor especial, como dizem ter sido o caso analisar o texto com base no que foi pesquisado e debatido,
de Casanova. A corrente geral da vida perpassa o aparelho em um cruzamento e teste de informações.

450 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


DADOS CIENTÍFICOS COMPLEMENTARES O esquema abaixo representa os fatores biológicos da
sexualidade humana e do comportamento sexual em dife-
O debate sobre o caráter “natural” ou “cultural” da
rentes animais segundo a complexidade de seus sistemas
vida sexual dos animais, incluindo os humanos, é bastan-
nervoso e endócrino. A largura das setas indica o peso que
te complexo. A seguir, encontra-se uma síntese que pode
o fator tem na atividade sexual.
contribuir com a formação dos colegas professores no tema
Pode-se observar pela tabela como os reflexos se tornam
e que permite escapar à oposição rígida que alguns pen-
secundários à medida que aumenta a complexidade dos siste-
sadores pretendem estabelecer entre elementos naturais
mas nervoso e endócrino. Caso mais curioso é o dos feromô-
e culturais na vivência sexual humana (defendendo que o
nios, pois são substâncias químicas liberadas pelos animais e
ser humano deveria ser “somente animal” em sua vivência
que permitem reconhecimento mútuo entre os indivíduos da
sexual ou que ele não tem “nada de animal” nela):
mesma espécie. Podem sinalizar aptidão sexual, mas também
medo, agregação etc. No caso do ser humano, o órgão respon-
Segundo cientistas como o norueguês Anders Ågmo
sável por captar os feromônios (órgão vomeronasal ou órgão
(2007), alguns animais visam apenas à reprodução
de Jacobson) praticamente desapareceu; em alguns indivíduos
com o ato sexual. Porém, em seu livro Functional and
aparecem vestígios desse órgão no septo nasal (mas os cientis-
Dysfunctional Sexual Behavior: A Synthesis of Neuroscience
tas divergem sobre sua compreensão). Quanto aos hormônios,
and Comparative Psychology (Função e disfunção sexual:
enquanto eles são inteiramente determinantes para os animais
uma síntese de Neurociência e Psicologia Comparada),
menos complexos e para os primatas, eles passam a ser menos
Ågmo afirma que esse não é o caso de todos os animais,
determinantes para os macacos e para os seres humanos, pois
pois os mais complexos, como os primatas e os hominí-
ambas as espécies não se submetem necessariamente aos im-
deos, modificaram seus fatores biológicos e criaram um
pulsos hormonais. Os macacos e os humanos podem viver uma
comportamento controlado por recompensas e por formas
dissociação, pois, embora sintam os efeitos dos hormônios, não
de conhecimento, desenvolvendo, sobretudo, a estimulação
buscam necessariamente o ato sexual. Quanto à recompensa
das zonas erógenas do corpo. Por sua vez, um sistema de
e à cognição (reconhecimento de informações, valores, cos-
recompensa só é possível com desenvolvimento de fun-
tumes etc.), elas se tornam preponderantes para os humanos.
ções cognitivas.

Evolução dos Algumas espécies animais para comparação da complexidade do sistema nervoso e endócrino
fatores biológicos da
sexualidade humana e Hominídeos
do comportamento Roedores Primatas
sexual animal Macaco Ser humano

Reflexos

Feromônios

Hormônios

Recompensa

Cognição Cultura

Quadro inspirado em: GEORGIADIS, J. R.; KRINGELBACH, M. L.; PFAUS, J. G. Sex for Fun: a Synthesis of Human and Animal Neurobiology.
Nature Reviews (Urology), v. 9 , p. 498, 2012.

TEXTOS DE APROFUNDAMENTO
Os seguintes textos podem colaborar para o aprofunda- A Psicanálise não é ciência
mento da formação dos colegas professores a respeito do Karl Popper
debate filosófico em torno da cientificidade da Psicanálise.
Para melhor compreensão da tese de Karl Popper, sugere-se a Quanto às duas teorias psicanalíticas [de Freud e Adler],
leitura do Capítulo 14 do Livro do Aluno, sobretudo a parte elas pertencem a outra categoria [diferente da ciência]. Elas
relativa à verdade nas ciências naturais. Eventualmente, de são pura e simplesmente impossíveis de testar e de refutar.
acordo com o grau de interesse dos estudantes, os mesmos Não há nenhum comportamento humano que possa contra-
textos podem ser utilizados como leituras complementares: dizê-las. É claro que isso não permite concluir que Freud e

Manual do Professor 451


Adler não tiveram uma representação exata de certos fenô- oculta. Todos esses atos conscientes continuam incoerentes
menos; estou pessoalmente convencido de que grande parte e incompreensíveis se teimamos que é preciso perceber pela
do que eles anunciam é decisiva e certamente passível, no consciência tudo o que se passa em nós em termos de atos
futuro, de encontrar seu lugar em uma psicologia científica psíquicos; ao contrário, eles se ordenam em um conjunto
que se submeta à prova dos testes. Isso significa, por outro cuja coerência podemos demonstrar se consideramos os atos
lado, que as “observações clínicas” (que os analistas inge- inconscientes inferidos. Ora, vemos nesse ganho de sentido e
nuamente tomam por confirmações de suas teorias) não de coerência um motivo plenamente justificado para ir além
confirmam mais do que as confirmações que os astrólogos da experiência imediata. E, se se confirma que podemos
acreditam descobrir todos os dias em sua prática. Quanto à fundamentar sobre a hipótese do inconsciente uma prática
epopeia freudiana do Eu, do Inconsciente e do Superego, coroada de sucesso, pela qual influenciamos, de acordo com
não estamos em condições de reivindicar sua cientificidade um objetivo dado, o curso dos processos conscientes, então
mais do que no caso das narrativas que Homero recolhera teremos adquirido, com esse sucesso, uma prova incontestável
da boca dos deuses. Não há dúvida de que as teorias psica- da existência disso de cuja existência lançamos a hipótese.
nalíticas estudam certos fatos, mas elas o fazem ao modo
dos mitos. Elas contêm indicações psicológicas muito in- FREUD, S. L’hypothèse de l’Inconscient. In: .
teressantes, mas sob uma forma que não permite testá-las. Métapsychologie. Tradução Jean Laplanche e J.-B. Pontalis.
Paris: Gallimard, 1989. p. 37-38. (A hipótese do Inconsciente.
POPPER, K. Conjectures and refutations: the Growth of Metapsicologia. Tradução nossa para o português.)
Scientific Knowledge. Londres: Routledge and Kegan Paul,
1963. p. 38-39. (Conjecturas e refutações: o desenvolvimento
do conhecimento científico. Tradução nossa.)
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
A Psicanálise é ciência COELHO, M. J. Corpo, pessoa e afectivida- Acesse:
Sigmund Freud de: da fenomenologia à bioética. Dissertação
(Mestrado em Filosofia) – Faculdade de
Contestam de todos os lados nosso direito de admitir um Ciências Humanas e Sociais, Universidade
psiquismo inconsciente e de trabalhar cientificamente so- Nova de Lisboa, 1997. Disponível em: <http://
bre essa hipótese. Podemos responder a isso dizendo que a purl.pt/5485/1/sa-87495-v_PDF/sa-87495-v_
hipótese do inconsciente é necessária e que possuímos va- PDF_X-C/sa-87495-v_0000_1_tX-C.pdf>. Acesso em: 16
riadas provas da sua existência. Ela é necessária, porque os abr. 2016.
dados da consciência são extremamente lacunares: tanto no DUNKER, C. História, gênero e sexualidade. Cadernos
indivíduo saudável como no doente, produzem-se frequente- Cinema e Psicanálise, São Paulo: nVersos, v. 5, 2014.
mente atos psíquicos que, para serem explicados, pressupõem
FOUCAULT, M. Ética, sexualidade, política. Organização
outros atos, os quais, por sua vez, não são testemunhados
Manoel Barros da Motta. Vários tradutores. São Paulo:
pela consciência. Tais atos não são somente os atos falhos
Forense, 2012.
e os sonhos do indivíduo saudável ou sintomas psíquicos Acesse:
e os fenômenos compulsivos do doente; nossa experiência MONZANI, L. R. O que é Filosofia da
cotidiana mais pessoal põe-nos em presença de ideias que Psicanálise? Philosophos, v. 13, n. 2, 2008.
nos ocorrem sem que conheçamos a origem delas e os re- Disponível em: <http://revistas.ufg.br/index.
sultados de pensamento cuja elaboração permaneceu-nos php/philosophos/article/view/5735/6714#.
VMale_7F9Bo>. Acesso em: 26 jan. 2016.

Capítulo 5 Desejo e amor

OBJETIVO CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS


Considerando que o livro possui três capítulos sobre A estratégia adotada no capítulo consiste em partir do
o amor, o primeiro deles visa explorar a associação mais ditado segundo o qual “o amor é cego” (que pode ser extre-
imediata entre amor e desejo por meio de uma atenção ao mamente bem exemplificado com o quadro de Magritte),
pensamento de Platão (um dos primeiros filósofos a teorizar a fim de introduzir as duas narrativas míticas adotadas por
sobre o amor-desejo), principalmente no que diz respeito Platão para expor o princípio ou o nascimento do amor. Tanto
à relação entre amor e Beleza, à Teoria das Ideias, Formas a exploração do ditado como a do quadro de Magritte e a
ou Essências e à dialética. Da perspectiva da associação das narrativas míticas permitem acentuar a ideia de que o
entre amor e desejo e do estudo de Platão, este capítulo amor busca satisfação ou completude, requerendo a partici-
visa também oferecer elementos sobre os inícios históricos pação consciente de cada pessoa na construção da relação
da reflexão filosófica sobre o amor. de amor. É neste aspecto que a reflexão pode ser ampliada

452 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


para o estudo do pensamento platônico porque, justamente nem sempre corresponde ao que estes realmente escreveram.
pela “dialética do amor”, o filósofo grego explora a experiên- Dessa perspectiva, o Capítulo 5 (“Desejo e amor”) pode ser
cia de busca de plenitude e identifica, em tudo o que existe, uma ocasião pedagogicamente favorável ao levantamento
possibilidades a ativar. Ora, se essas possibilidades são dadas de questões a respeito dos procedimentos de pesquisa em
e não apenas inventadas pelas coisas, Platão afirmava que Filosofia e mesmo da construção de pensamentos filosófi-
Ideias, Formas ou Essências regulam a Natureza ao modo de cos. No tocante à dialética, os professores também podem
caracteres invisíveis com os quais o mundo seria escrito. A fim retomar a parte referente à dedução dialética no Capítulo
de tornar mais compreensível a teoria platônica, opera-se no 4 da Unidade 1; mas é importante enfatizar que a dialética
capítulo um contraponto com a interpretação hoje superada platônica vai além de uma simples atividade argumentati-
e segundo a qual Platão seria um dualista e teria separado va, pois implica envolvimento pessoal ou ético no trabalho
o “mundo das Ideias” do “mundo físico”. Aliás, nem Platão da verdade teórica. A esse respeito, o estudo da Alegoria da
nem Aristóteles usaram a expressão “mundo das Ideias”. Ela Caverna é um excelente recurso para explorar a concepção
surge durante os séculos II-I a.C., com o chamado médio de filosofia como “engajamento” individual e social para
platonismo. Alguns colegas professores certamente podem Platão. A dialética, vista como dialética do amor, permite
surpreender-se com essa maneira de entender o pensamen- ainda conectar o Capítulo 5 ao Capítulo 4 (“Sexualidade e
to platônico; afinal, continua forte a interpretação dualista força vital”), pois, embora o Capítulo 5 se atenha ao caráter
consagrada por livros de História da Filosofia e mesmo por propriamente filosófico do amor em Platão, é inegável que
alguns filósofos. Essa surpresa, no entanto, pode ser extrema- o pensador grego refletia também uma forma de conceber o
mente positiva, pois permite constatar que as pesquisas em amor sexual no mundo antigo. Essa leitura diacrônica pode
História da Filosofia nem sempre são definitivas, e também ser bem explorada com a leitura da História da sexualidade,
que a interpretação que os filósofos fazem de outros filósofos de Michel Foucault (1988).

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

com atenção ao modo visão de possibilidades


como se busca suprir
a carência exploração de possibilidades

FORMAS
AMOR/DESEJO (interpretação platônica)
consciência de carência modelos universais
busca de satisfação inteligíveis
busca de beleza
eternas
sem atenção ao modo como presentes na Natureza
se busca suprir a carência revelam o Bem

INDICAÇÕES METODOLÓGICAS ESPECÍFICAS


1 Entendendo com Platão os filmes de extraterrestres disformes, o que não deixa de ser engraçado), eles são dotados
O objetivo pedagógico desse box é explorar, de forma lúdica, de inteligência, raciocínio e emoção. Fica, portanto, muito di-
a ideia platônica de que nossa percepção do mundo sempre se- fícil dizer que eles não são humanos. O corpo diferente não é
gue Formas. A habitual imaginação de eventuais extraterrestres uma condição suficiente para declarar sua não humanidade.
com Forma de Ser Humano vem, de um lado, do fato de que Por essa razão, o filme de Neill Blomkamp pode ser visto como
sempre projetamos, em nossa compreensão de possíveis alie- a narrativa da dificuldade, por parte dos humanos, em aceitar
nígenas, as características próprias daquilo que conhecemos, diferenças. Embora haja elementos cômicos, o filme não é leve.
sobretudo da constituição do próprio ser humano; e, de outro, Põe-nos diante de questões existenciais graves.
do fato de que nunca encontramos extraterrestres. Mesmo que
um dia os encontremos, só os compreenderemos com base nas 2 A expressão “amor platônico”
Formas a que já temos acesso. Hipoteticamente, se eles possuí- A respeito da expressão “amor platônico”, tão comum em
rem uma Forma inteiramente original, reagiremos adequada- nosso cotidiano, convém lembrar que ela se refere a amores
mente a essa Forma e passaremos a operar com ela. O professor irrealizados ou intelectualizados, quer dizer, está restrito ao
pode explorar mais ainda o filme Distrito 9, que mostra que, campo do sonho ou dos projetos, sem passar à ação. Por isso
embora o corpo dos alienígenas seja muito diferente do corpo mesmo, essa expressão nada tem de platônico nem nenhuma
humano (parecendo mais insetos gigantes ou mesmo lagostas ligação real com o pensamento platônico. Afinal, o amor,

Manual do Professor 453


segundo Platão, é ativo, produz movimento e leva à busca de é o mesmo que o repouso e é outro com relação ao movimento
completude não somente pelo encontro de uma pessoa, mas e vice-versa. Dessa perspectiva, mesmo o não-ser pode ser dito:
também pelo encontro do mundo, pelo conhecimento das ele não é o contrário do ser (pois não existiria), mas o outro do
identidades e possibilidades de tudo o que existe. A expressão ser ou o outro de algo que existe (o movimento é o não-ser do
“amor platônico” vem certamente da compreensão equivocada repouso e vice-versa).
de Platão que foi desenvolvida sobretudo no século XIX, pro- Essas Formas são tão universais que nenhum pensamen-
jetando sobre o filósofo o sonho de um mundo idealizado e to seria possível sem elas. Ninguém conseguiria falar de algo
separado do mundo sensível (expressões que Platão não usou!). sem pressupor a mesmidade ou a alteridade. Ainda que se
pretenda dizer que nada no mundo tem algo em comum com
3 Os clichês a respeito da Teoria das Ideias ou das Formas outra coisa, sendo pura diferença, opera-se com as Formas de
Estudar o pensamento platônico, especialmente a Teoria Mesmo e de Outro. Isso permite entender por que a Teoria
das Ideias (Formas ou Essências), não é uma tarefa simples, das Formas não implica uma separação da realidade em dois
porque algumas interpretações caricaturais colaram-se a Platão mundos (lembrando que Platão nunca falou em dois mun-
e constituem hoje uma verdadeira barreira para uma aproxi- dos!). As Ideias ou Formas, por fim, não seriam uma realidade
mação de seus textos. A mais comum delas é a que atribui a meramente linguística nem uma construção histórico-social.
Platão a separação entre dois mundos: o sensível, que seria o Em vez disso, seriam o pressuposto e a condição mais elemen-
mundo do movimento material, e o inteligível, “onde” estariam tar para toda atividade que pretenda respeitar as diferenças e
as Formas. A fim de evitar essa caricatura, os colegas professo- semelhanças captadas em tudo o que existe. Não foi por aca-
res são convidados a enfatizar a tentativa do capítulo em não so que Platão se serviu do mito da transmigração das almas
associar as Formas ou Ideias com “coisas” perfeitas que seriam (como, por exemplo, no mito de Er, o panfílio, registrado
imitadas por coisas imperfeitas no nosso mundo, mas ao di- no livro X da República): pela linguagem metafórica, Platão
namismo invisível que estrutura o mundo. Platão insistia na pretendia indicar elementos que antecedem a experiência
experiência de que as Formas são descobertas pela atividade sensível e permitem que ela ocorra, pois possibilitam organi-
exclusiva da inteligência porque, sendo invisível, o dinamismo zar a multiplicidade de informações sensíveis. Esses dados a
das Formas não pode ser percebido pelos cinco sentidos. O ca- priori ou anteriores à experiência sensível, condição de toda
ráter inteligível das Ideias pode ser mais bem compreendido por vivência histórica, seriam as Formas.
um estudo do diálogo Sofista, que contém uma das expressões
mais maduras do pensamento platônico. Platão aponta para a
atividade típica da inteligência (independente dos sentidos) ao RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS
ultrapassar o nível da percepção sensível e concentrar-se no EXERCÍCIO A (p. 146)
dinamismo básico do pensamento: o juízo ou o ato de julgar, 1. Encontre, nas narrativas míticas de Platão, elementos que
isto é, de estabelecer correlações entre os conceitos das coisas e mostrem como o amor não é cego.
de pronunciar-se sobre elas. É nesse dinamismo cognitivo que O amor, segundo a narrativa mítica de Platão, herda de sua
as Formas se revelam, pois o pensamento lida com diferenças mãe, a Pobreza (Pênia), a condição de carência e de falta, vivendo
e semelhanças. Em outras palavras, é a capacidade intelecti- descalço, sem lar e sem proteção, buscando sempre se saciar. No
va mesma que pressupõe as Formas. Ao emitir um juízo (por entanto, ele é também filho de Recurso (Poro) e herda de seu
exemplo, “Sócrates é homem”), a inteligência percebe que pai o caráter insidioso, enérgico, de caçador terrível (ávido por
ela mesma lida com uma unidade que pressupõe identidade sabedoria), cheio de recursos a filosofar por toda a vida. Segundo
e diferença: a unidade de Sócrates com homem (o indivíduo essa imagem, o amor (e o ser humano que ama) enxerga bem,
Sócrates com a Forma de Ser Humano) e a diferença, por um pois tem consciência não só de sua carência, mas também dos
lado, do indivíduo Sócrates com outros indivíduos humanos meios que são necessários para atingir seus objetivos.
(Sócrates não é outro indivíduo) e com a própria Forma de Ser
Humano (Sócrates é humano, mas não é a Humanidade; ele 2. Reflita sobre experiências de amor que você conhece (amor
participa da Forma de Ser Humano). É o jogo de diferença e conjugal, amor familiar, amor de amigo) e observe se você
identidade que faz Platão escapar ao imobilismo de Parmênides concorda com a seguinte afirmação: “O amor não é algo que
e inserir o mobilismo de Heráclito na concepção mesma do apenas se sente; é algo que também se constrói”.
ser, ao mesmo tempo que reserva a identidade parmenidiana Resposta pessoal. A tendência da resposta é ser positiva, pois
para o pensamento. o amor, para além da atração entre as pessoas, também é vivido
Dessa maneira, as Formas, mais do que meras “fôrmas”, são como o estabelecimento de determinada relação construída por
modelos, padrões universais ou “regras” que agem na Natureza aqueles que se amam. Nesse sentido, o amor não é apenas passivo,
e revelam-se, acima de tudo, no ato mesmo de pensar. Não é mas é ativo; ele pode ser vivido, por exemplo, como uma busca
à toa que, no Sofista, Platão fala das Formas mais universais de satisfação conjunta, para além dos desejos e das carências in-
(junto à Forma do Bem, que é ainda mais universal): trata-se dividuais, por meio de uma postura criativa entre as partes. Ele
das Formas do Ser, do Repouso, do Movimento, do Mesmo e depende, portanto, da maneira como as pessoas constroem suas
do Outro. A Forma do Ser é participada por tudo (tudo é; não relações. Espera-se que os estudantes concordem ou discordem
há nada que não exista e seja ao mesmo tempo). Tudo o que dessa concepção, articulando-a com sua experiência de vida e
existe está em repouso ou em movimento. Se está em repouso, justificando o modo como exprimem sua posição.

454 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


EXERCÍCIO B (p. 147) constantes, tudo possui certa identidade básica. Um tigre não
1. Por que faz sentido, no vocabulário de Platão, chamar o pode comportar-se como um gato de estimação, assim como o
desejo e o amor com uma única palavra (éros)? ódio não é compatível com a bondade. De modo análogo, po-
Porque Platão via nos seres humanos um único movimen- de-se dizer que as pessoas, coisas, ações e relações manifestam
to, uma carência e um impulso inicial de desejo que continua a possibilidade de serem belas. Fazendo-o, elas apontam para a
como busca de satisfação pela relação amorosa. possibilidade mesma, a Beleza em si, identidade de tudo o que
é belo, assim como o modo de ser de um tigre revela a Forma
2. Se uma pessoa pode se relacionar com outra apenas por de Tigre, diferente da Forma de Gato. Identidades desse tipo,
prazer, qual seria a outra maneira possível de relação amorosa? que permanecem em meio às mudanças, Platão chamou de
A outra maneira possível de relação amorosa é a do desejo Formas, Ideias ou Essências.
pelo melhor. O desejo por prazer funciona naturalmente; já o
desejo pelo melhor supõe treinamento deliberado e educação. O 2. Como é possível identificar uma Forma, segundo Platão?
primeiro, como um nível mais elementar e mais básico do amor, Conhecendo aquilo que há em comum entre todos os par-
não permite que o ser humano ultrapasse o nível individual e ticipantes dessa Forma, ou seja, o que há de próprio desse gru-
“egoísta” ou “egocêntrico” das relações (nível que, segundo Platão, po, em comparação e contraposição com outros grupos. Por
leva a tornar-se escravo[a] dos prazeres). Já o desejo pelo melhor exemplo, para conhecer a Forma do Humano não é necessário
pode levar os seres humanos a vivenciar relações mais comple- conhecer todas as características particulares de todos os seres
tas de reconhecimento mútuo, pensando não só nos prazeres e humanos, mas aquilo sem o que os seres humanos perderiam
nas vantagens individuais que se podem obter da relação, mas sua Humanidade (deixariam de ser humanos).
no bem mútuo e no bem que os dois podem produzir juntos.
3. Platão separava o mundo inteligível do mundo sensível?
EXERCÍCIO C (p. 149) Explique.
1. Que relação há entre beleza e modo de ser ou agir? Não. Ao falar de sensível e de inteligível, Platão não queria
Para Platão, a beleza não está relacionada simplesmente à dizer que há dois mundos separados. Para ele, o sensível é es-
aparência e aos padrões construídos historicamente, mas ao truturado por dentro, a partir do interior, pela dimensão inteli-
modo de as pessoas serem e de as coisas e as ações serem feitas. gível, pelas regras imutáveis e eternas. Nesse sentido, sensível e
inteligível são diferentes aspectos da mesma realidade.
2. Como é possível explicar, de acordo com Platão, que al-
guém ame uma pessoa sem beleza física? 4. Por que o desenho do “cavalo ideal” é inadequado para
Mesmo uma pessoa aparentemente não bela (não atraente representar a Teoria das Ideias? Qual a vantagem do quadro
por seu físico) pode expressar-se de modo profundamente belo de Mondrian para representá-la?
pelo seu modo de ser e de comportar-se, exteriorizando seu O primeiro esquema é inadequado porque representa
interior e podendo atrair e ser amada mais do que alguém fisi- a Forma do Cavalo como um “cavalo ideal” imitado pelos
camente belo(a). Quem ama essa pessoa fisicamente não bela cavalos imperfeitos do mundo real. Além disso, o esquema
ama a beleza que nela reside de outras maneiras. sugere que as Formas existem como “coisas” em um mun-
do separado e distante (o “mundo das Ideias”, expressão que
3. O que Platão quer dizer quando afirma que o amor é bus- Platão nunca usou). No entanto, para Platão, as Formas
ca da verdadeira Beleza? são regras que inscrevem o essencial em tudo o que existe.
A beleza, segundo Platão, diz respeito ao modo de ser de algo, Nesse sentido, se as formas não são “coisas”, mas regras uni-
ao seu modo próprio de realização; e o amor, como carência, é de- versais que regem a Natureza, elas só podem ser percebidas
sejo máximo de satisfação. Para Platão, a maior satisfação é aquela por uma contraposição entre as formas de cada tipo de ser.
provocada pela própria beleza presente nas coisas, ações e pessoas, Daí a vantagem do quadro de Mondrian, pois cada cor nele
uma vez que ela é a satisfação do desejo do melhor. Como os seres presente ganha sua total significação quando é comparada e
humanos preferem uma satisfação maior a uma menor, o amor contraposta com as outras cores. Por analogia, o mundo de
revela-se como uma busca da verdadeira Beleza, a satisfação que fala Platão seria o conjunto do quadro de Mondrian; e
plena do desejo do melhor. Nesse sentido, os amantes podem as Ideias, Formas ou Essências seriam as cores que o estru-
concentrar-se em um terceiro elemento, para além dos desejos turam e que são percebidas em contraposição com as outras.
individuais de ambos: a própria Beleza presente nas possibili-
dades de que a existência é dotada. EXERCÍCIO E (p. 155)
1. O que leva Platão a afirmar a existência da Forma do Bem?
EXERCÍCIO D (p. 154) O amor ou a busca por satisfação culmina na busca pelo
1. A relação amorosa permite ver as possibilidades contidas melhor como superação da mera busca por prazeres imediatos e
no fato de que a pessoa amada é um ser humano. Explique das aparências sensíveis. Ele move em direção às Formas. Mas,
como essa experiência leva a afirmar a existência das Formas se as Formas contêm a possibilidade de realização do melhor e
(Ideias, Essências) segundo Platão. do que há de bom em cada ser, isso significa que todas elas par-
O reconhecimento das possibilidades das pessoas, coisas, ações ticipam ainda de uma Forma mais básica, uma Forma geral que
e relações leva à percepção de que, mesmo diante das mudanças torna tudo bom. Platão a chamou de Forma ou Ideia do Bem.

Manual do Professor 455


2. Platão despreza os prazeres? Explique. ou “sensivelmente” e a posição apresentada pela inteligência.
Não. Para ele, as aparências e os prazeres são bons em si mes- Contrapondo, assim, a aparência sensível com a realidade das
mos. Eles só não são a única dimensão e a finalidade última Formas, a subida até o Bem se mostra uma subida dialética
da vida humana. A busca de satisfação, que inicia pela busca (confronto de duas posições até alcançar outra posição, numa
dos prazeres, pode avançar para algo ainda melhor e mais com- escalada progressiva).
pleto. Trata-se de um único movimento que inicia pela busca
dos prazeres e que, se for levado adiante, pode conduzir até a 5. Por que a dialética que leva ao Bem pode ser chamada de
contemplação das Formas. dialética do amor?
Porque, segundo Platão, o amor é o motor de toda a subi-
3. Como é possível, segundo Platão, que um criminoso e da dialética, fazendo fixar a atenção nos corpos belos, depois
um suicida sejam vistos como pessoas que buscam o Bem? na beleza dos corpos etc., até chegar à Forma da Beleza e à
Até pessoas que cometem atos destrutivos contra os outros Forma do Bem.
ou contra si mesmas consideram, no limite, que sua ação é
boa. O criminoso acredita, mesmo equivocadamente, que irá
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 160)
conquistar algum bem para si fazendo o mal a outra pessoa.
1. Recapitulação
Também o suicida busca alívio de seus males com a morte e,
desse ponto de vista, consciente ou inconscientemente, encara Espera-se que, nesse resumo, os estudantes apresentem
a sua morte como boa. uma breve análise das “duas maneiras básicas” de se viver
o amor, ou seja, (i) a busca de prazeres imediatos, ligados às
aparências sensíveis, e (ii) a busca do melhor em cada ser,
EXERCÍCIO F (p. 160)
operando com suas possibilidades (que vão além das apa-
1. Por que Platão afirma que a experiência do amor re-
rências). É importante notar que não se trata de dois modos
quer educação? Em sua resposta, use a palavra-
a serem vividos separadamente, mas em conjunto, no movi-
chave aparência.
A contemplação das Formas, que representa a realização mento dialético por meio do qual o amor, como propulsor do
processo, permite a passagem de um modo a outro. Espera-se
plena do movimento de busca do amor humano, necessita do
aprendizado de um novo olhar. Naturalmente, o ser humano ainda que, no desenvolvimento do texto, os estudantes apre-
é levado a crer apenas na aparência das coisas, quer dizer, nas sentem o modo como Platão defende a necessidade de passar
suas características sensíveis. Por isso, segundo Platão, é só por das aparências ao ser, ou do sensível (aparente) ao inteligível
um processo de educação que se torna possível avançar para (cognoscível pela inteligência sem a ajuda dos sentidos), che-
além das aparências até contemplar as Formas e a Forma do gando à Teoria das Formas, Ideias ou Essências. Para que a
Bem (contemplação essa que coincide com a plenitude na vi- recapitulação seja completa, convém explorar o aspecto edu-
cativo desse movimento dialético.
vência do amor).

2. De acordo com o pensamento de Platão, como a Matemática 2. Reflexão


Resposta pessoal. Dado o caráter particular e íntimo da re-
pode ajudar a ir além da aparência das coisas?
flexão, somos convidados a redobrar nosso cuidado caso solici-
A Matemática permite ver que as coisas podem ser reunidas
em conjuntos, podem ser decompostas em partes, pontos, li- temos aos estudantes que partilhem suas respostas com a sala.
nhas, harmonias, números. Todas essas entidades matemáticas
são imutáveis e eternas, remetendo mais diretamente, portanto, 3. Observação e reflexão
Espera-se que os estudantes percebam a associação entre
às Formas, como a Forma do Ponto, a Forma da Linha etc. A
a televisão e a caverna da alegoria platônica. Assim como os
Matemática permite, assim, ir além das realidades sensíveis e
prisioneiros tomavam as imagens por seres reais, muitas vezes
sujeitas ao constante devir, apontando para entidades estáveis
e eternas. tomamos os programas de televisão por retratos da realidade. No
entanto, sabe-se que esses programas nem sempre estão preo-
3. Por que o processo educativo pode ser doloroso? cupados em chamar a atenção para a “verdadeira” realidade,
mas produzem “aparências” de realidade tal como interessa a
Porque há uma resistência natural do educando em abandonar
eles. O que está em jogo é o modo como se dá valor à televisão
a confiança que sentia na aparente obviedade de sua existência.
e aos seus conteúdos. Espera-se, sobretudo, que os estudantes
Além disso, o excesso de “luz” provocado pelo vislumbre do
argumentem em favor de suas opiniões.
que está para além das “sombras” das aparências pode ferir os
“olhos” daquele que ainda não está acostumado a contemplar
as formas e o inteligível, tornando-o momentaneamente cego
diante da realidade plena.
LEITURAS COMPLEMENTARES
4. Por que a subida até a Forma do Bem é chamada de (TEXTO E ANÁLISE CRÍTICA)
dialética? Segue, na página ao lado, um dos trechos mais impactantes
Porque essa subida consiste em um constante confronto do diálogo Sofista, de Platão, com um comentário do filósofo
de duas posições, a posição na qual se crê “naturalmente” brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz:

456 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


Os gêneros supremos e suas relações mútuas Estrangeiro – Deveremos, pois, às três formas precedentes
Platão (o ser, o movimento e o repouso) o mesmo como quarta Forma?
Teeteto – Perfeitamente. [...]
Estrangeiro – Já que, relativamente aos gêneros, chegamos Estrangeiro – Ora, o outro se diz sempre relativamente a
ao acordo de que uns se prestam a uma comunidade mútua e um outro, não é?
outros não; de que alguns aceitam essa comunidade com alguns Teeteto – Certamente.
e outros com muitos; e de que outros, enfim, penetrando em Estrangeiro – Isso não se daria se o ser e o outro não fos-
todos os lugares, nada encontram que lhes impeça de entrar em sem totalmente diferentes. [...] Já vimos perfeitamente que
comunidade com todos, resta-nos apenas deixarmo-nos condu- tudo o que é outro o é por causa da sua relação necessária
zir por essa ordem de argumentação, prosseguindo em nosso a outra coisa.
exame. Não o estenderemos, aliás, à universalidade das formas, Teeteto – É verdade o que dizes.
temendo confundirmo-nos nessa multidão. Consideraremos, Estrangeiro – É necessário, pois, considerar a natureza do
entretanto, algumas destas, que nos parecem as mais impor- outro como uma quinta Forma, entre as que já estabelecemos.
tantes, e veremos, em primeiro lugar, o que são elas, tomadas Teeteto – Sim. [...]
separadamente, para em seguida examinar em que medida são Estrangeiro – É, pois, sem temor que sustentamos esta
suscetíveis de se associarem umas às outras. Dessa forma, se afirmação: o movimento é outro que não o ser.
não chegarmos a conceber com plena clareza o ser e o não-ser, Teeteto – Sim, sem sombra de escrúpulo.
poderemos ao menos deles dar uma explicação tão satisfatória Estrangeiro – Assim, pois, está claro que o movimento é,
quanto o permita este método de pesquisa. Saberemos então realmente, não-ser, ainda que seja ser na medida em que par-
se podemos dizer que o não-ser é realmente inexistente e dele ticipa do ser?
nos livrarmos sem nada perder. Teeteto – Absolutamente claro.
Teeteto – É o que é necessário fazer. Estrangeiro – Segue-se, pois, necessariamente, que há um
Estrangeiro – Ora, os mais importantes desses gêneros são ser do não-ser, não somente no movimento, mas em toda a sé-
precisamente aqueles que acabamos de examinar: o próprio rie dos gêneros; pois, na verdade, em todos eles a natureza do
ser, o repouso e o movimento. outro faz cada um deles outro que não o ser e, por isso mesmo,
Teeteto – De longe, são os maiores. não-ser. Assim, universalmente, por essa relação, chamaremos
Estrangeiro – Dissemos, por outro lado, que os dois últimos a todos, corretamente, não-ser; e ao contrário, pelo fato de eles
não podiam associar-se um ao outro. participarem do ser, diremos que são seres.
Teeteto – É exato.
Estrangeiro – Mas o ser se associa a ambos: pois, em suma, PLATÃO. Sofista. In: Diálogos. Tradução Jorge Paleikat e João
os dois são. Cruz Costa. São Paulo: Nova Cultural, 1984. p. 177-179 e 181
Teeteto – Não há dúvida. (números 254b-255e; 256d-e). (Coleção Os Pensadores.)
Estrangeiro – Então, há três.
Teeteto – Evidentemente.
Estrangeiro – Assim, cada um é outro com relação aos dois O ser é síntese do uno e do múltiplo
que restam; e cada um é o mesmo que ele próprio. Henrique C. Lima Vaz
Teeteto – Sim.
Estrangeiro – Mas que significado demos a esse mesmo e a Se o ser é síntese de “identidade”, é síntese do uno e do
esse outro? Serão eles dois gêneros diferentes dos três primeiros, se múltiplo. Quando o lógos se desdobra, pois, na proposição,
bem que sempre necessariamente associados a eles? Deveremos, ele é ainda a expressão da estrutura real do ser. A proposição
então, considerar cinco seres e não três, ou esse mesmo e esse verdadeira, o lógos alethós, será aquela que, exprimindo a par-
outro serão, sem que o saibamos, simplesmente outros nomes ticipação real de duas Ideias, exprime os seres em sua razão
que damos a qualquer um dos gêneros precedentes? mesma de ser. Daqui que, se para Platão há somente ciência
Teeteto – Talvez. das Ideias, e esta ciência é a dialética, a dialética platônica é,
Estrangeiro – Mas certamente nem o movimento nem o de direito, uma ontologia. Ora – e eis um ponto decisivo para
repouso serão o outro nem o mesmo. nós –, essa ontologia não se justifica criticamente, como o
Teeteto – Como assim? Sofista nos mostra, senão precisamente porque Platão busca
Estrangeiro – O que quer que atribuamos de comum ao mo- o ser (que deve encontrar no lógos sua expressão inteligível)
vimento e ao repouso não poderá ser nem um nem outro deles. não unicamente no termo estático de uma elaboração con-
Teeteto – Por quê? ceitual, como fizera Parmênides, mas no movimento mesmo
Estrangeiro – Porque ao mesmo tempo o movimento com que a Alma conhece, no ato em que ela se pronuncia,
se imobilizaria e o repouso se tornaria móvel. Com efeito, ou seja, no doxázein, no ato de julgar. Em outras palavras, a
se qualquer um dentre eles se aplicar a esse par (o mesmo unidade do ser em Platão não é uma unidade de identidade,
e o outro), obrigará o outro a mudar sua própria natureza mas uma unidade de participação. Se há juízo, há síntese; se
na natureza contrária, pois o tornará participante de seu há síntese, há diversidade; se há diversidade e síntese, há parti-
contrário. cipação. Assim, o ser se revela como participação precisamen-
Teeteto – Certamente. [...] te na estrutura do ato judicativo. Platão viu claramente que,

Manual do Professor 457


para uma inteligência em movimento, o ser, mesmo afirmado SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
como uno na unidade de cada Ideia, desdobra-se entretanto
em relação; e o movimento da inteligência que conhece é, sob FOUCAULT, M. História da sexualidade. Tradução Maria Thereza
outro aspecto, uma síntese progressiva das participações do ser. C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 3 v.
Pela dýnamis da alma cognoscente, que se manifesta no juízo LIMA VAZ, H. C. Itinerário da ontologia clássica. In: .
(logismós), aparece também a linha dinâmica do ser e torna- Ontologia e História. São Paulo: Loyola, 2001.
se possível a superação do imobilismo eleático. PAVIANI, J. Éros, desejo e bem em O Banquete de Platão.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 2015.
LIMA VAZ, H. C. Itinerário da ontologia clássica. In: . PLATÃO. Sofista. In: . Diálogos. Tradução Jorge Paleikat e
Ontologia e História. São Paulo: Loyola, 2001. p. 62-63, v. VI. João Cruz Costa. São Paulo: Nova Cultural, 1984. (Coleção Os
(Coleção Escritos de Filosofia.) Pensadores).

Capítulo 6 Do amor de amigo ao amor sagrado

OBJETIVO
O segundo dos três capítulos sobre o amor, embora in- platonismo-cristianismo, os professores têm ocasião de de-
dependente do anterior (Capítulo 5), oferece elementos da ter-se no próprio pensamento de Nietzsche, sobretudo pelo
continuidade histórica da reflexão filosófica sobre o amor. estudo das noções de força e decadência, exploradas neste
Nesse sentido, ele visa apresentar a relação intrínseca entre capítulo, bem como da noção de forças cósmicas, apresen-
amor e amizade em Aristóteles, para, na sequência, estudar tada no Capítulo 12. Por fim, guiado pela ideia de contra-
a aplicação dessa relação (amor-amizade) à compreensão dição e com base em pesquisas atualizadas de História da
da relação com Deus, operada por pensadores cristãos da Filosofia, o capítulo oferece um exercício de contradição
Era Patrística. Por fim, busca-se fazer um contraponto da da contradição nietzschiana, levantando a possibilidade
concepção cristã de amor com as críticas a ela dirigidas de entender o platonismo e o cristianismo fora do mode-
por Nietzsche, não apenas para apresentar o pensamento lo de leitura proposto por Nietzsche. Tudo gira em torno
do filósofo alemão, mas também para permitir maior com- dos temas do desprezo do mundo e do corpo e da “culpa
preensão do próprio pensamento filosófico cristão de acordo judaico-cristã”.
com trabalhos mais atualizados de História da Filosofia. Como esses temas se tornaram culturalmente impor-
tantes no século XX, manifestando-se mesmo no linguajar
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS cotidiano, o estudo deste capítulo pode ter especial signifi-
O núcleo do capítulo reside na concepção aristotélica cação. Sugere-se enfaticamente que os colegas professores
do amor de amigo e na ampliação cristã dessa concepção não adotem expressões como “Nietzsche errou”, “Platão
para a compreensão do tipo de relação que o ser humano tinha razão” ou outras do tipo. Em vez de sintetizar a pro-
pode estabelecer com o ser divino. Por esse motivo, é es- blemática histórica dessa maneira, é mais adequado escla-
tratégica a retomada da definição aristotélica da amizade recer que, do ponto de vista da história e da historiografia
e a introdução de um dado filosófico que era inteiramente do platonismo e do cristianismo, Nietzsche só contava com
novo para os filósofos antigos, tanto gregos como romanos: a os recursos disponíveis no século XIX. Isso, no entanto, não
possibilidade filosófica de pensar que o mundo talvez tenha diminui em nada a relevância, por exemplo, da crítica da
sido criado por um ser livre e consciente. Essa possibilida- cultura realizada por Nietzsche ou da sua concepção de
de vai ao encontro da experiência religiosa monoteísta da consciência, razão, moral etc. Esse tipo de consideração
crença em Deus como um ser pessoal (um ser com o qual levanta um tema extremamente instigante: o que é a ver-
se pode estabelecer uma relação e que corresponde a essa dade em Filosofia e em História da Filosofia? O que pen-
relação), justificando a ampliação do conceito de amizade sar sobre o pensamento de um filósofo que não reconstrói
para exprimir o amor sagrado. A fim de ressaltar algumas fielmente o pensamento de outro filósofo? Mais ainda: o
características dessa concepção, introduz-se o pensamento que pensar de um filósofo que cai em contradição? Ou de
do filósofo que talvez tenha sido o seu mais forte crítico: filósofos que, mesmo caindo em contradição sob certos as-
Friedrich Nietzsche. pectos, concordam em outros? Realizar esse tipo de estudo
A crítica nietzschiana associa o pensamento cristão ao pode ser uma ocasião privilegiada para tratar dos procedi-
pensamento platônico e concentra-se, principalmente, no mentos de pesquisa em Filosofia e mesmo da construção
que o filósofo alemão chamava de desprezo do mundo efe- de pensamentos filosóficos.
tivo e do corpo, e de inversão da moral realmente “huma- Os colegas professores encontrarão elementos preciosos
na” em nome de uma moral dos fracos e da culpabilidade. no vídeo Filosofia e verdade, de 1965, com Alain Badiou,
Ao desconstruir e reconstruir a crítica nietzschiana ao Dina Dreyfus, Georges Canguilhem, Jean Hyppolite,

458 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


Michel Foucault e Paul Ricœur. O vídeo está em francês, modo de estudar Filosofia e História da Filosofia sem a
com legendas em português (no vídeo original francês, o necessidade de seguir a cronologia temporal; de um autor
título é L’enseignement de la Philosophie). Muito instruti- pode-se passar a outro, mesmo que haja um grande inter-
va também é a leitura dos volumes Nem tudo é relativo: a valo entre ambos e desde que ambos tratem explicitamen-
questão da verdade, de Hilton Japiassu (2000), e sobretudo te do mesmo tema. Nem sempre os autores têm o mesmo
Como se escreve a História, de Paul Veyne (1982), trabalho conceito em mente quando usam os mesmos vocábulos.
monumental em que o historiador francês, em diálogo Por conseguinte, se não operam com o mesmo conceito,
direto, entre outros, com o sociólogo Max Weber e com então não tratam do mesmo tema (ainda que este rece-
o filósofo Michel Foucault, levanta a questão do que é ba o mesmo nome). Menos adequado é pressupor ainda
verdadeiro em uma construção histórica. O contraponto hoje que, como pensava Hegel, a História e a História da
entre o cristianismo e Nietzsche, ou entre o platonismo- Filosofia estão em uma marcha progressiva, de modo que
cristianismo e Nietzsche, é ainda uma ocasião para per- alguém do presente é mais “avançado” do que alguém do
ceber pontos comuns entre as três linhas de pensamento, passado e que as pessoas do futuro serão mais “avançadas”
algo que parece inusitado, mas já amplamente explorado do que nós. Em vez de uma linha sucessiva e evolutiva em
por diferentes pensadores e historiadores da Filosofia. Por História da Filosofia, hoje parece mais adequado falar de
fim, o contraponto permite apresentar aos estudantes um muitas linhas e muitas redes de linhas.

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

Revelação bíblica:
criação

éros – Platão Philia – Aristóteles


(busca de perfeição) (amor de amigo)

Relação com Deus:


solidariedade

ágape
Cristãos
(amor sagrado
e universal)
Ponto de partida: Ponto de partida:
experiência do amor como busca experiência de vida feliz

razão RAZão crente (fé)

Alvos da contradição de Nietzsche

Contradição da contradição de Nietzsche:


Platão e a fé cristã não separam o mundo em dois mundos
Falar das Formas e de Deus não significa desprezar o corpo
Gregório de Nazianzo e o corpo como forma de chegar ao que há de mais belo

OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS
ESPECÍFICAS
1 A canção All is Full of Love, de Björk
O clipe da canção de Björk é muito interessante para nosso uma cena em que dois robôs são produzidos por máquinas
estudo. Os colegas professores podem assistir ao clipe com numa sala de montagem; o ambiente é frio e chocante, dan-
os estudantes e analisá-lo com base no que pretendeu o pró- do destaque aos movimentos das máquinas que terminam a
prio diretor do clipe, Chris Cunningham: o clipe apresenta montagem dos robôs. A luz de neon também é fria. Tudo é

Manual do Professor 459


asséptico. Não deixa de haver um toque de surrealismo, ao se difunde e mantém a vida” (Disponível Acesse:
modo de Magritte e de Duchamps. Mas, de repente, um em: <https://www.youtube.com/watch?v=u
processo orgânico dá vida ao metal. Fluidos escorrem e 0cS1FaKPWY>. Acesso em: 28 jan. 2016).
os robôs ganham vida. É a vitória sobre a frieza das peças Os professores podem também traduzir com os
metálicas. Essa vitória é a do amor, pois os robôs come- alunos a letra da canção e eventualmente propor
çam a se beijar apaixonada e delicadamente. No dizer de a participação do(a) professor(a) de Inglês. Aqui
Cunningham, a emoção da canção vem da ideia de amar segue uma proposta de tradução. Como a letra é bastante simples,
totalmente. “É como tomar consciência de que, ao mesmo não há muitas possibilidades de tradução. Com a colaboração
tempo, somos nós que decidimos sobre o amor que damos, do(a) professor(a) de Inglês, podem-se explorar, no entanto, as
mas que não podemos decidir a quem dá-lo. O clipe é uma construções verbais com preposição e os tempos verbais (you’ll
metáfora de um sentimento de universalidade; o amor está be taken care of; you are staring at), além das imagens bastante
em todos os lugares, mesmo nos fios e nas máquinas; ele concretas do telefone fora do gancho e das portas fechadas.

All is Full of Love [Tudo é repleto de amor]


Björk

You’ll be given love A você será dado amor


You’ll be taken care of A você será dado cuidado
You’ll be given love A você será dado amor
You have to trust it Você precisa crer nisso

Maybe not from the sources Talvez [o amor] não venha das fontes
You have poured yours Nas quais você derramou o seu [amor]
Maybe not from the directions Talvez [o amor] não venha das direções
You are staring at Para onde você olha

Twist your head around Vire sua cabeça


It’s all around you Ele [o amor] está ao seu redor
All is full of love Tudo é repleto de amor
All around you Tudo ao seu redor

All is full of love Tudo é repleto de amor


You just aint receiving Você só não recebe
All is full of love Tudo é repleto de amor
Your phone is off the hook Você não está conectado [literal: seu telefone está fora do gancho]
All is full of love Tudo é repleto de amor
Your doors are all shut Suas portas estão todas fechadas
All is full of love! Tudo é repleto de amor!

2 Historiografia filosófica da Patrística


No século XIX e em boa parte do século XX, desen- debate pode influenciar bastante o ensino de Filosofia e
volveu-se uma historiografia partidária da ideia de que os merece bastante cuidado.
primeiros filósofos cristãos (Era Patrística) estudavam filo- No Brasil, com a acentuada sensibilidade religiosa de
sofia para convencer a aristocracia romana e levar adiante muitos estudantes, nós, professores de Filosofia, seremos
a mensagem religiosa como forma de dominação cultural mais prudentes se evitarmos os extremos que costumam ser
e política. Essa visão está bastante ligada a outra, relativa à comuns: de um lado, há quem use a nova historiografia para
conversão do Imperador Constantino: ele só teria se conver- “provar” a racionalidade do cristianismo (afinal, se filósofos
tido para usar o cristianismo em sua estratégia de governo. se converteram, é porque a fé seria “racional”, como alguns
Hoje, essas posições historiográficas estão superadas entre dizem); de outro lado, há quem recuse a nova historiografia,
os especialistas, pois a realidade histórica foi mais complexa. apegando-se ferrenhamente à antiga, para “provar” que o
Uma das melhores análises do tema é dada por Paul Veyne cristianismo foi nefasto na cultura ocidental. Essa última po-
(2010) no livro Quando nosso mundo se tornou cristão. Esse sição revela, por si só, seu equívoco primário tanto do ponto

460 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


de vista histórico como filosófico, pois basta inteirarmo-nos a morte, a justiça divina, o amor redentor etc. Na realida-
das pesquisas em História e em História da Filosofia para de, eles testemunhavam uma nova experiência cultural e a
vermos as inúmeras contribuições do cristianismo que são própria Filosofia se ampliava com novos horizontes abertos
valorizadas na cultura em geral e na Filosofia. A primeira por questões e temas teológicos, ao mesmo tempo que ela
posição, no entanto, também é equivocada, pois tem um permitia uma estruturação mais compreensível do próprio
caráter apologético que impede de ver como os primeiros discurso teológico ( p. 465).
filósofos não se converteram por razões apenas filosóficas,
mas sobretudo existenciais e religiosas. Apontar para essa 3 Estudo do antiplatonismo e do
complexidade e nutrir um respeito republicano diante da anticristianismo de Nietzsche
experiência religiosa parece ser a via mais adequada para No caso específico de Platão, não se pode esquecer que
abordar o assunto. Nietzsche, como professor de Filologia, estudou os textos
Do ponto de vista teórico, é preciso lembrar que os pri- platônicos de maneira rigorosa, embora apenas com os re-
meiros filósofos, ao se converterem, viam que a fé não era cursos disponíveis no século XIX. A pesquisadora francesa
irracional ou absurda, mas também não pretendiam que ela Monique Dixsaut (1997), em seu texto Nietzsche lecteur de
fosse uma construção da razão. A razão participa no ato de Platon (Nietzsche leitor de Platão), defende a ideia de que
fé, mas o conteúdo da fé supera a compreensão racional. Não não se pode entender a relação de Nietzsche com Platão em
respeitar esse dado significa perder o elemento específico da termos de um simples antagonismo. Nietzsche teria nutrido
experiência religiosa: a transcendência do mistério sagrado. uma verdadeira admiração por Platão, assim como teria sido
Do ponto de vista historiográfico, o documento mais an- um dos primeiros autores a ver que Platão não construiu um
tigo de que se tem notícia e que registra por que um filósofo sistema filosófico fechado e inteiramente dogmático. Monique
se converteu ao cristianismo é o livro Diálogo com Trifão, Dixsaut também permite identificar certos “deslizes” na lei-
escrito por Justino de Roma (100-165). No livro, ele narra o tura nietzschiana de Platão, mostrando que a alma, segundo
modo como, em sua busca da felicidade, confiou nos filóso- o filósofo grego, não é uma coisa separada do corpo, mas
fos, iniciando como estoico e depois se tornando peripatético, algo que habita o corpo e constitui uma unidade com ele,
pitagórico e, por fim, platônico. Certa vez, encontrou um diferentemente do que interpretava Nietzsche. A interpreta-
ancião com quem teve uma longa conversa sobre a felicida- ção de Nietzsche possibilita entender por que ele se debatia
de. O ancião relativizou as posições filosóficas apresentadas contra certa mentalidade platônica de sua época, reforçada
por Justino, mostrando que elas eram constructos racionais por práticas cristãs que também consideravam o ser humano
que não ofereciam a felicidade. Apenas uma relação dialogal como um ser dividido e formado por uma luta contra o corpo.
permitiria ser feliz de modo completo. Em outras palavras, Especificamente no caso do cristianismo, certamente
no dizer do ancião, não são raciocínios que tornam alguém Nietzsche se voltava contra a prática de cristãos que, em
feliz, mas uma relação interpessoal. Justino aprende com o nome da experiência religiosa, diminuíam a importância
ancião a visão cristã de Deus como um ser pessoal, isto é, da experiência individual e do corpo. Isso se observa tam-
que pode estabelecer uma relação com os humanos, diferen- bém na crítica de filósofos cristãos da época de Nietzsche,
temente do modo como os filósofos falavam do ser divino. como Søren Kierkegaard (1813-1855), que denunciava prá-
Diz, então, que começou a sentir-se “aquecido interiormen- ticas cristãs hipócritas e diminuidoras da pessoa humana.
te” e que essa experiência lhe deu a felicidade ( p. 464). Considerando esse dado sócio-histórico, pode-se enten-
Sua conversão, portanto, não foi causada por um raciocínio der a crítica de Nietzsche à fé cristã de sua época. Talvez
que “provou” a racionalidade do cristianismo, mas por uma se possa afirmar que o “exagero” de Nietzsche foi identi-
vivência, a experiência do que Justino considerava ser a ação ficar ressentimento na prática de certos cristãos e projetá
divina. Isso tira o enfoque dos enunciados religiosos e o põe -lo ao nível de algo como uma “essência” do cristianismo.
no próprio mistério da divindade. Nietzsche se concentrava ainda na figura do apóstolo Paulo,
Outro debate filosófico que é iluminado pela historio- bem como na influência que o estoicismo exerceu sobre
grafia mais atualizada dos primórdios do cristianismo é o ele, e identificava as raízes de um cristianismo ressentido
de saber se os filósofos cristãos eram realmente filósofos ou e culpado, principalmente porque Paulo alertava contra os
se apenas manipulavam a filosofia. Nos anos 1970-1990, al- perigos da carne. De acordo com Nietzsche, Jesus Cristo
guns historiadores defenderam que os pensadores cristãos não pretendia criar uma religião, mas Paulo o transformou
usavam a filosofia como “caixa de ferramentas”, ou seja, em fundador do cristianismo. Essa visão histórica era relati-
não eram propriamente filósofos, mas se serviam de argu- vamente comum entre intelectuais do século XIX, mas, do
mentos filosóficos para defender assuntos de fé. Hoje essa ponto de vista histórico e teológico, hoje ela está superada.
visão também está superada. O caso dos três grandes capa- No nascimento da fé cristã, comunidades muito diferentes
dócios (Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa e Basílio enfatizavam aspectos também diferentes. Fundadas por
de Cesareia) é um exemplo explícito de cristãos que eram vários líderes (João, Lucas, Mateus, Marcos, entre outros),
platônicos e, portanto, filósofos. Em temas de Filosofia, eles essas comunidades tiveram igual ou maior importância
seguiam Platão (o conhecimento sensível, o conhecimento que as comunidades de Paulo. Não se defendeu um ódio
inteligível, as Formas, a eternidade da alma etc.) e só recor- do mundo nem da carne, mas uma nova forma de estar no
riam à fé para explicar temas como o destino da alma após mundo e de viver a carne a partir da luz da fé.

Manual do Professor 461


O filósofo Max Scheler (1874-1928) chama a atenção em um círculo infernal: incentiva o humano a superar-se, a
para o fato de que, se o amor cristão fosse uma repetição ir além de si, mas essa superação não leva de fato para além
do amor antigo, falando apenas da tendência do inferior daquilo que já está em poder do ser humano; portanto, não
para o superior, do imperfeito para o perfeito, do aparente seria propriamente uma superação, e sim uma prisão de si
para o real, e se dissesse que Deus é o real, separado do mesmo. Independentemente da crítica a Nietzsche ou de
aparente e levando à desvalorização das aparências, então sua aceitação, a ideia de transcendência investigada por Max
o cristianismo seria, de fato, um platonismo empobrecido Scheler exprime bem o amor universal (sagrado e de todos
e voltado para massas de cordeiros. No entanto, segundo os humanos) que a história da fé cristã fez entrar também
Scheler, o amor cristão designa um movimento inverso: o na História da Filosofia. Por outro lado, proceder à contra-
amor que vemos nas coisas (o éros platônico) é a correspon- dição da contradição de Nietzsche não significa sustentar
dência do amor que desce do ser divino e preenche tudo, simplesmente que ele errou e que sua filosofia não merece
valorizando cada coisa por si mesma (o ágape cristão). A ser estudada. Muito pelo contrário! A crítica nietzschiana
afirmação central do cristianismo é que Deus assumiu a ao platonismo e ao cristianismo, tal como ele os entendeu,
carne humana, quer dizer, o amor pleno desceu às pro- merece ser sempre lida e retomada, pois seu potencial de
fundezas da matéria, produzindo uma unidade com ela crítica cultural é inquestionável e útil para ajudar a detec-
e ativando nela possibilidades antes não imaginadas. No tar formas pseudoplatônicas e pseudocristãs que destroem
texto “O ressentimento na construção das morais” (publi- a experiência individual em nome de ideais separados deste
cado no volume Da reviravolta dos valores), Max Scheler mundo. O engajamento na intensificação da vida neste mundo
(2012) afirma que há uma mudança de direção do amor sempre foi um valor platônico e cristão. É dessa perspecti-
com o cristianismo, pois o amor se manifesta no fato de o va que este capítulo concebe a possibilidade de um diálogo
mais elevado descer e inclinar-se para o menos elevado; o tripartite entre Nietzsche, Platão e Cristo.
Messias para os publicanos e os pecadores. Nietzsche não
teria percebido que o amor deixa de ser uma simples busca
de satisfação para tornar-se já atividade plena: crendo que RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS
Deus amou a Humanidade a ponto de encarnar-se para abrir EXERCÍCIO A (p. 166)
seus horizontes, os cristãos passam a conceber o amor como 1. Qual a discordância central de Aristóteles com relação
dom recebido e dom que eles também podem transmitir. à filosofia platônica?
Numa dialética de posse e de possibilidade de posse ainda A principal discordância de Aristóteles com relação à
maior, o amor não se esgotaria numa busca incessante, mas filosofia de Platão diz respeito à Teoria das Formas. Para
cresceria e se multiplicaria em sua força. Por essa razão, o Aristóteles, a fim de explicar a identidade e as causas das
cristianismo também não teria uma “essência”, pois seria coisas sensíveis, a teoria platônica duplicaria desnecessa-
atividade e dinamismo constante, construído no dia a dia, riamente a realidade, estabelecendo um mundo à parte,
por meio de tentativas de viver na prática o sentido da fé. separado “deste” mundo. Segundo Aristóteles, isso torna
Por fim, segundo Scheler, a transcendência do amor sa- muito difícil saber o vínculo existente entre coisas sensíveis
grado que age na imanência não seria sinal de nenhuma e suas respectivas Formas.
decadência, e sim de superação, pois faz a vida realmente
superar-se e entrar em formas sempre mais fortes. A vida 2. Em que se baseia Aristóteles para compreender o amor?
seria encarada de frente; e seu caráter trágico seria assu- Apresente resumidamente os passos dados por ele a par-
mido e compreendido como ocasião para exercer sempre tir dessa base.
mais amor. Não se trata de pretender que aves de rapina Aristóteles baseia-se apenas no que pode ser observado e
se comportem como cordeiros; trata-se de ver que aves de aceito por todos. Para ele, o ponto de partida para tratar do
rapina não fazem isso o tempo todo; e que os cordeiros, amor é a tendência humana a viver em grupos. Ele falava
quando permanecem juntos, conseguem escapar às garras de uma familiaridade e de uma amizade natural, o amor
das aves. A verdadeira ilusão do ser humano seria querer de amigo (em grego, philía), que pode ser observado nas
ser forte o tempo todo e passar seus dias tentando dominar. famílias e mesmo no convívio social e político. A prova da
No dizer de Scheler, um ser humano desse tipo será um naturalidade dessa tendência humana é o comportamento
super-homem solitário, pois verá que, com ou sem fé cris- dos outros animais irracionais que também procuram unir-
tã, poucos apreciarão sua tentativa de dominar. À solidão se aos membros da mesma espécie e viver na presença de
desse tipo humano, os cristãos contrapõem a possibilidade seus semelhantes. Sobre essa base, Aristóteles raciocina
de ir além das forças de dominação da Natureza e cons- que, se todos desejam viver; se existir é perceber e pensar;
truir um ideal de solidariedade que só é possível com uma se viver é algo prazeroso; se quem se observa percebe a si
vontade de força ainda maior do que a força do desejo de mesmo como um bem; e se o amigo é um outro eu; então
dominar. Em outras palavras, só é possível com superação é desejável que existam amigos.
de si, intensificando sempre mais o amor sagrado que age
na História e vai além dela. EXERCÍCIO B (p. 170)
Ainda segundo Max Scheler, quando Nietzsche fala de 1. Por que a crença em um Deus criador interferiu na
superação e não de transcendência, prende o ser humano compreensão filosófica do amor?

462 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


Porque a possibilidade de pensar em um Deus criador A ideia de que os platônicos e os cristãos valorizavam
– tal como fizeram autores judeus e cristãos nos primeiros “outro mundo” em detrimento deste mundo. Para Nietzsche,
séculos de nossa Era – leva a pensá-lo como um ser que de- platônicos e cristãos acreditam que este mundo é feito só de
cidiu deliberadamente criar o mundo e o ser humano. Com aparências, como uma realidade inferior e não confiável,
efeito, segundo a revelação bíblica, Deus criou o mundo por negando a realidade efetiva do mundo e da vida.
um ato de amor gratuito, um amor que não espera nada em
troca. Filosoficamente falando, não se pode pensar que essa 2. Por que Nietzsche afirma que os cristãos fazem uma
criação tenha em vista alguma utilidade ou benefício para o ilusão de óptica e de ética?
seu criador; caso contrário, Deus seria imperfeito e carente Segundo Nietzsche, a ilusão de ética decorre de uma
de algum benefício, deixando, portanto, de ser Deus. Nesse ilusão de óptica. A ilusão de óptica denunciada por ele tem
quadro, a compreensão do amor gratuito de Deus levantou, relação com a afirmação platônico-cristã de “outro mundo”
para os seres humanos, a possibilidade de que eles mesmos para explicar este mundo, tomando este mundo como ilu-
também vivam um amor parecido (um amor gratuito). A sório ou aparente, ainda que a sua realidade seja evidente
compreensão filosófica viu-se, então, solicitada a refletir e explícita. Como outro mundo além deste não pode ser
sobre a possibilidade de entender o amor em função de si demonstrado, tomá-lo como realidade é falar de um não
mesmo, sem uma busca necessária de recompensa exterior ser, do nada, de algo que não existe. Dessa ilusão de óptica
ao próprio ato de amar. decorre uma ilusão de ética: ao se guiar por valores morais
que desvalorizam a experiência do corpo e do mundo efeti-
2. Sobre a atitude dos filósofos patrísticos e medievais vo em busca do que não pode ser conhecido, o ser humano
a respeito do começo do mundo, é correto afirmar que: é levado a um instinto de calúnia e de suspeição contra a
(a) Como o mundo precisa ter surgido de alguma coisa, vida, acusando os mais fortes de “maus” e movendo-se por
o mundo não é eterno; Deus teve de começá-lo. ressentimento e desejo de vingança.
(b) Como ninguém esteve presente no momento do sur-
gimento do mundo, é melhor comprometer-se com a tese 3. Nietzsche é um pessimista?
de que ele foi começado. Não. Pelo contrário, Nietzsche lutava pela afirmação da
c Como não é possível ter qualquer certeza a respeito
(c) vida e propunha uma nova compreensão da realidade que,
do surgimento do mundo, a revelação bíblica fornece um no seu dizer, havia sido desqualificada como “aparência”.
motivo para optar pela crença no começo do mundo como
obra de Deus. 4. Em que sentido se pode dizer que um bom filósofo,
(d) Como, segundo a Bíblia, Deus criou o mundo, não segundo Nietzsche, é um artista?
se deve discutir esse dado, mas aceitá-lo, pois a Bíblia é a Assumindo a realidade tal como ela se apresenta, o artista
Palavra de Deus. diz “sim” mesmo aos aspectos mais trágicos e mais terríveis
da vida, enxergando vitalidade em tudo, mesmo diante dos
3. Comente o impacto filosófico causado pela nova con- maiores problemas e dificuldades. O artista trágico é aquele
cepção de amor, o amor sagrado. capaz do amor fati (amor pelo destino), que ama e assume
As consequências filosóficas dessa nova maneira de con- a vida tal como ela é, sem sonhar com outro mundo de
ceber o amor serão várias. Cabe lembrar, por exemplo, o perfeição e sem dificuldades.
desenvolvimento de novas virtudes, como a misericórdia e
a compaixão, e a concepção da dignidade humana, isto é, 5. O que é a decadência na visão nietzschiana?
do valor inquestionável de cada indivíduo (concepção que O sonho de alcançar uma realidade sem mudanças
está no fundamento da constituição moderna dos Direitos e dificuldades, sem a possibilidade do erro e do terrível.
Humanos). Trata-se de uma vida declinante, que está enfraquecendo
e ficando abatida, que vive a vida real como um peso, um
4. Diferencie ágape, éros e philía. fardo, uma maldição ou o pagamento por uma culpa. As
O termo éros, na contraposição com ágape e philía, foi pessoas que vivem uma vida decadente, segundo Nietzsche,
reservado para designar o amor sexual. Philía, por sua vez, são incapazes de entrar no dinamismo de força e superação
reservou-se como o amor de amizade, o amor vivido no seio próprio da vida.
da família e da comunidade. Por fim, ágape, que não tinha
um significado muito específico na língua grega antiga, EXERCÍCIO D (p. 177)
passou a ser empregado por autores cristãos para designar 1. Qual o objetivo de Platão ao distinguir entre o aspecto
o amor sagrado, o amor gratuito que se explica por si mes- sensível e o aspecto inteligível do mundo? Essa distinção
mo, gratuito e vivido na experiência com Deus e com os significava dividir o mundo em dois?
outros seres humanos. Não. O objetivo de Platão parece apenas pedagógico:
essa distinção teria sido usada para diferenciar o que há
EXERCÍCIO C (p. 175) de essencial e permanente do que é perecível e fugaz na
1. Qual a ideia central da crítica de Nietzsche aos platô- realidade. Segundo Platão, as Formas são as essências que
nicos e aos cristãos? enformam os corpos a partir do “interior” e não podem ser

Manual do Professor 463


percebidas pelos sentidos, que, apesar disso, constituem o para analisar formas platônicas e cristãs “desencarnadas”,
primeiro passo em direção ao conhecimento das Formas. permitindo pensar em um diálogo entre o pensamento de
Nietzsche, de Platão e dos cristãos).
2. A condenação do mundo e o sentimento de culpa fazem
parte da essência do cristianismo? 2. Reflexão
Não. Eles podem ser mais bem compreendidos como cer- Resposta pessoal. Dada a delicadeza do assunto, somos
tos desdobramentos históricos, pois não se mostram presentes convidados a redobrar nosso cuidado ao modo de conduzir
nem em toda a história do cristianismo nem em seus mais a partilha das opiniões dos estudantes em sala.
influentes representantes. Eles se devem principalmente ao
sentimento doentio que só apareceu tardiamente no pen- 3. Leitura complementar
samento cristão, por volta dos séculos XVI-XVII, quando Atividade que pode ser relacionada com a anterior, em
se acentuaram os debates sobre o sofrimento de Cristo, le- um intercâmbio de informações e visões de mundo. É ine-
vando a uma identificação exagerada com o “pagamento” gável a influência que diferentes formas da religião cristã
pelas faltas humanas. exercem em nosso país, o que torna urgente refletir sobre
o modo como os cristãos pautam sua vida social e política
3. Por que Gregório de Nazianzo adota o modo dos por valores religiosos. O dado essencial do cristianismo, tal
maniqueus de se expressarem sobre o corpo? como proposto pelo texto, pode servir de parâmetro para a
Gregório adota a estratégia de falar do corpo e da alma reflexão. Os estudantes podem concordar ou discordar desse
a partir da oposição praticada pelos maniqueus para mos- dado e do modo como ele é apresentado. Mais importante,
trar que, no fundo, o corpo não é inimigo da alma. Ele é contudo, é que eles argumentem e apresentem as razões
diferente do “eu” do pensamento e da “alma”, mas não é de sua concordância ou discordância. Cabe também aqui
necessariamente seu opositor. Para Nazianzo, o corpo é uma reflexão sobre a laicidade do Estado brasileiro (o fato
um colaborador e um amigo indispensável da alma na rea- de que ele não é associado a nenhuma religião). O fato de
lização humana. o Estado ser laico não significa que ele seja contrário às
religiões, mas que exige das pessoas religiosas a maturidade
4. Em que ponto poderia haver um diálogo entre Platão, de relacionar-se com as não religiosas de forma republicana,
o cristianismo e Nietzsche? incondicionalmente respeitosa e até mesmo amorosa (visto
Platão, o cristianismo e Nietzsche podem unir-se em que o amor é um valor universal nas religiões).
uma crítica a todo espiritualismo prejudicial à inserção
humana no mundo e fundado na ideia de que a alma é in-
dependente do corpo.
TEXTOS DE APROFUNDAMENTO
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 177)
Diálogo com Trifão
1. Dissertação de problematização Justino de Roma
Espera-se que os estudantes, seguindo os passos indicados
na página 106, elaborem uma dissertação com a seguinte Justino – A qual mestre podemos recorrer e onde bus-
estrutura: (1) introdução – apresentação da tese com a crítica car ajuda se mesmo nos filósofos não encontramos o que
de Nietzsche à posição platônico-cristã (em linhas gerais, é verdadeiro?
a ideia de que o platonismo e o cristianismo defenderiam Ancião – Tempos atrás, houve alguns homens muito
o desprezo do mundo e do corpo e levariam os indivíduos mais antigos do que os pretensos filósofos: bem-aventura-
a uma debilidade no âmbito moral por meio da crença em dos, justos e amados por Deus, eles falavam por um espírito
“outro mundo”, do elogio da fraqueza e da disseminação do divino e pronunciavam oráculos sobre o futuro que vemos
sentimento de culpa); (2) desenvolvimento – apresentação da bem cumprir-se hoje. Damos a eles o nome de profetas.
posição de Nietzsche como antítese, a saber, sua concepção Somente eles viram e anunciaram o que é verdadeiro: sem
deste mundo como única realidade (admitir a existência de receio nem medo de ninguém, sem ceder ao desejo de glória,
dois mundos seria entrar num tipo de decadência por le- eles transmitiam unicamente o que tinham ouvido e visto,
var a um desvio da visão da realidade como ela é) e como repletos de um espírito santo. Seus escritos subsistem ainda
conjunto de forças, no qual o ser humano deve lutar para hoje e quem os lê pode tirar deles o melhor proveito, tanto
superar a si mesmo; (3) conclusão – elaboração da síntese, sobre os princípios como sobre o fim de tudo e sobre tudo
mostrando que, com base na análise da revisão histórica o que é preciso que um filósofo saiba, desde que tenha fé.
do platonismo e do cristianismo, é plausível uma leitura Não é, com efeito, dando a forma de uma demonstração
da posição platônico-cristã diferente daquela proposta por que eles apresentaram seus discursos, visto que, mais do
Nietzsche (Platão e o cristianismo não separariam o mundo que toda demonstração, eles eram dignas testemunhas da
em dois, não desprezariam o corpo nem conduziriam a um verdade. São esses os acontecimentos passados e presentes
enfraquecimento na esfera moral, o que indica a possibili- que fazem aderir às palavras proferidas por meio deles.
dade de rever a crítica nietzschiana, embora ela seja válida São também, seguramente, os prodígios cumpridos por

464 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


eles que os tornavam dignos de fé, pois eles celebravam textos escritos e destinados à leitura e não à proclamação
o autor do Universo, Deus e Pai, e anunciavam o Cristo diante de um público) fazem ainda parte da instrução de
que vem dele, seu filho. Houve falsos profetas, imbuídos base e carregam numerosos elementos do pensamento an-
do espírito do erro e da impureza, que não fizeram e não tigo que não apontam necessariamente para leituras preci-
fazem o que os verdadeiros profetas fizeram e fazem. Os sas de autores nem para modelos ou correntes filosóficas,
tipos de prodígios que os falsos profetas ousam operar ser- mas testemunham, acima de tudo, um estilo ou algo como
vem-lhes para encher os humanos de estupor; quem eles uma forma de pensar. Esse estilo, essa forma de pensar, a
glorificam são os espíritos do erro e os demônios. Mas, preeminência intelectual da Escola dos Antigos e a exper-
acima de tudo, ora para que te sejam abertas as portas da tise retórica que codifica a linguagem e domina todo ato
luz: pois essas coisas permanecem invisíveis e inconcebí- de fala são a expressão da autoridade intelectual que goza
veis para a maioria de nós, exceto àqueles a quem Deus e a herança antiga como modelo cultural, paidético, para
seu Cristo concedem compreender. além de toda opção doutrinal precisa, apesar da mudança
Justino – Depois de ter dito todas essas coisas e muitas fundamental de paradigma imposta pelo cristianismo. Sem
outras ainda, o ancião partiu, recomendando-me conti- dúvida, o “platonismo” sobrevive graças a essa permanência
nuar meditando sobre o que ele disse. Nunca mais o vi. do modelo formador antigo, mas ele recebe também um
Mas um fogo, subitamente, acendeu-se em minha alma; tratamento preferencial; mais do que todas as outras “es-
encontro-me tomado de amor pelos profetas, assim como colas”, suas teses são captadas no seio do novo paradigma
por essas pessoas que são amigas de Cristo. Dialogando, cultural que se impõe com o cristianismo hegemônico.
então, comigo mesmo sobre as palavras do ancião, percebi
que estava diante da única filosofia que é ao mesmo tempo VASILIU, A. EIKÔN: L’image dans le discours des trois
verdadeira e benéfica. É dessa maneira e por causa disso Cappadociens. Paris: PUF, 2010. p. 42-43. (Eikôn: A imagem
que sou filósofo. Gostaria que todos, abraçando as mesmas no discurso dos três capadócios. Tradução nossa.)
aspirações que eu, não permaneçam longe das palavras do
Salvador. Afinal, elas contêm em si mesmas um poder de
suscitar o respeito e bastam para intrigar aqueles que se
desviam do caminho reto, ao passo que oferecem o mais SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
doce repouso àqueles que se apegam a elas. Se, então, tu
FILOSOFIA e verdade (L’enseignement de la Acesse:
também te preocupas contigo, se pretendes obter salvação
Philosophie). Direção Jean Flechet. França,
e tens fé em Deus, a ti é dada a possibilidade, tendo reco-
1965. Disponível em: <https://www.youtube.
nhecido o Cristo de Deus e uma vez terminada tua inicia-
com/watch?v=bmWhgV6RAVU>. Acesso em:
ção, de aceder à felicidade.
12 abr. 2016.
JUSTINO DE ROMA. Dialogue avec Tryphon 7,2 – 8,3. GREGÓRIO DE NISSA. A criação do homem & A alma e
Tradução Philippe Bobichon. Friburgo: Academic Press, a ressurreição & A grande catequese. Tradução Bento Silva
2003. p. 203-205. Texto bilíngue grego-francês. (Diálogo com Santos. São Paulo: Paulus, 2011.
Trifão. Tradução nossa para o português.) JAPIASSU, H. Nem tudo é relativo: a questão da verdade. Rio
de Janeiro: Letras e Letras, 2000.
Historiografia filosófica do pensamento patrístico JUSTINO DE ROMA. I e II Apologias & Diálogo com Trifão.
Anca Vasiliu Tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2009.
LIMA VAZ, H. C. Cristianismo e consciência histórica.
O contexto dos séculos III e IV é fundamental para In: . Ontologia e História. São Paulo: Loyola, 2001.
compreender o que os termos imprecisos e controversos
MORESCHINI, C. História da literatura cristã antiga grega e
platonismo e filosofia designam na transmissão da heran-
latina. Tradução Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 2000. 2 v.
ça clássica e para saber o papel específico de Platão na
estruturação de uma primeira teologia cristã. Mas esse SCHELER, M. Da reviravolta dos valores. Tradução Marco
contexto, chamado comumente de Antiguidade Tardia, é Antonio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2012.
também particularmente complexo porque ele conhece VEYNE, P. Como se escreve a História. Tradução Alda Baltar
uma multiplicação de referências, de versões e de sínteses, e Maria Auxiliadora Kneipp. Brasília: EdUnB, 1982.
ao mesmo tempo que vê surgirem mutações radicais nas VEYNE, P. Quando nosso mundo se tornou cristão. Tradução
opções religiosas e, portanto, nos paradigmas e princípios Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
filosóficos e científicos. Ora, essa disseminação e essas
mutações de referências não implicam, entretanto, uma
renúncia a certo tipo de linguagem, certos hábitos de estra-
tégia discursiva e certos métodos de análise, demonstração,
exegese e comentário filosófico. O gosto pelos sabores da
Retórica e o costume de utilizar a demonstração dialética
em um discurso (mesmo se se tratasse frequentemente de

Manual do Professor 465


Capítulo 7 Do amor cortês ao amor hoje

OBJETIVO
Mesmo sendo conceitualmente independente dos capí- polo que atrai todas as coisas e desperta a ação humana
tulos anteriores (e, portanto, podendo ser estudado por si qualificada como amor.
mesmo), o capítulo tem como objetivo completar o itinerá- Cada um dos itens que compõem o capítulo pode ser es-
rio de apresentação histórica da reflexão filosófica sobre o tudado separadamente. Cabe aos colegas professores operar
amor, partindo da concepção do amor cortês e chegando a a escolha por um estudo separado ou de conjunto. A vanta-
visões contemporâneas. gem de um estudo separado é enfatizar aspectos que mais
interessam ao programa curricular traçado para cada turma.
Por sua vez, a vantagem de um estudo de conjunto está em
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS permitir um maior ganho compreensivo por meio da cons-
O eixo que estrutura o capítulo é a ideia de que, com a tatação das articulações históricas e conceituais dos diversos
concepção do amor cortês, lançam-se as raízes da associa- tratamentos do amor. Outra vantagem está em oferecer uma
ção do amor a uma paixão específica (no limite, por opo- visão englobante da abordagem filosófica do amor, pois, caso
sição à “razão”), tal como se revelará em diferentes formas os professores, por razões de tempo, optem por não estudar
filosóficas modernas e contemporâneas. A fim de ressaltar os Capítulos 5 e 6, eles terão a ocasião de recuperar elemen-
essa associação e de mostrar que na Contemporaneidade tos antigos, patrísticos e medievais no Capítulo 7, sobretudo
algumas formas filosóficas retomam elementos antigos, pa- pela retomada de certo platonismo crítico no pensamento
trísticos e medievais da compreensão do amor em unidade de Iris Murdoch. Além disso, dada a atualidade dos temas de
com a busca de plenitude (envolvendo o pensamento e a neurociência, o capítulo pode ser também a ocasião para um
liberdade), termina-se o capítulo com um estudo do pensa- estudo do debate em torno do aparelho neurológico como ori-
mento da filósofa inglesa Iris Murdoch, principalmente por gem ou como meio das experiências humanas (ver Exercícios
sua ênfase em uma “metafísica naturalista” do Bem como Complementares, item 3. Exercício hermenêutico).

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

Desenvolvimento histórico da filosofia do amor

AMOR CORTês

AMOR PAIXão

AMOR romântico

crítica/reabilitação do amor

éros
Séc. XI Séc. XII Séc. XIII Séc. XIV Séc. XV Séc. XVI Séc. XVII Séc. XVIII Séc. XIX Séc. XX Séc. XXI
Philía
ágape
Modelo
Modelo rousseauísta
platônico de
renascentista educação
(micro e
macrocósmico)

Amor Noção Modelo Crítica romântica do


incontrolável aristotélica mecânico do racionalismo: o amor
Prazer/Dor de paixão controle das como sentimento
Cavalheirismo (vício e virtude) paixões do mundo

Amor e sexualidade – Schopenhauer, Freud


Amor e dominação masculina – Feminismo
Amor e falta de objetividade – Hampshire
Amor como atenção ao indivíduo – Iris Murdoch

466 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS EXERCÍCIO C (p. 192)
1. Por que, segundo David Hume, seria mais defensá-
EXERCÍCIO A (p. 186)
vel afirmar que as paixões controlam a razão do que o
1. Qual a novidade da reflexão sobre o amor nos sécu-
contrário?
los XI-XIII?
Hume observa que os raciocínios não são capazes de
O enfoque do amor visto a partir de uma perspectiva co-
levar alguém a agir. Para ele, o ser humano mostra-se mais
tidiana, da vivência do amor no dia a dia, especialmente do
facilmente movido por emoções ou paixões. Nesse senti-
amor conjugal com todos os seus prazeres e dificuldades.
do, seria mais defensável afirmar que a razão é controlada
pelas paixões, e não o contrário.
2. Quais as características do amor segundo a história
de Tristão e Isolda? 2. Resuma o caminho percorrido por Descartes para
O amor é incontrolável, isto é, brota em nós sem que te- concluir que é razoável entender a razão como dotada
nhamos controle e até mesmo sem o nosso consentimento. da possibilidade de controlar as paixões.
Além disso, o amor é ambíguo: pode produzir ordem mas Ao distinguir o pensamento do corpo, já que os animais
também desordem na vida pessoal e social. têm corpos sem possuir pensamento, Descartes entende que
não é o corpo que pensa, mas o pensamento que se serve
3. O que o amor cortês e a literatura de cavalaria têm do corpo. Assim, o pensamento pode se servir também das
em comum? paixões e controlá-las de certa maneira, direcionando-as
O romance de cavalaria surge como uma espécie de para a felicidade.
continuação da tradição poética iniciada pelos trovadores
(amor cortês). Por isso, o romance de cavalaria mantém EXERCÍCIO D (p. 195)
elementos comuns dos ideais e códigos de conduta vindos 1. Qual a ideia central da crítica do Romantismo às
do amor cortês, como a valorização da mulher amada e a formas de pensamento que adotam o modelo científico
separação de desejo e agressividade, valorizando o amor como padrão de conhecimento verdadeiro?
como relação bela e virtuosa. Segundo a crítica do Romantismo, o que dá sentido à
vida concreta das pessoas não é apenas o conjunto de da-
EXERCÍCIO B (p. 190) dos científicos sobre o mundo, como informações físicas,
1. Em que sentido Ibn Arabi usa o termo paixão para químicas e biológicas, por exemplo, mas experiências “não
falar do amor? científicas”, como a bondade, a beleza, a justiça e o amor;
Para Ibn Arabi, paixão é a atração espontânea que é por serem fontes de sentido e de motivação para os humanos,
sentida pelos animais e pelos seres humanos. Não se tra- essas experiências revelam algo da natureza humana que
ta apenas da atração exercida pelo Bem, tal como pensou merece ser considerado em nossa apreciação da realidade.
Platão, mas também da atração exercida por um indivíduo
sobre outro, do(a) amado(a) sobre o(a) amante. 2. Que experiência corresponde ao que os românticos
chamavam de sentimento?
O sentimento não corresponde simplesmente ao ato de
2. Por que Ibn Arabi insistia que o amor está em quem emocionar-se ou de experimentar alguma paixão, mas é a
ama, e não na pessoa amada? capacidade humana de entrar em contato com alguma rea-
Para ele, pensar que o amor está na pessoa amada é uma lidade e perceber imediatamente o seu sentido e o seu valor.
falácia do amor, ou uma pseudoconclusão, uma vez que a
pessoa amada pode não corresponder ao amor de quem a 3. Como a arte e a religião podem educar o sentimento,
ama, isto é, a pessoa amada pode simplesmente não amar segundo o Romantismo?
quem a ama. Isso leva Ibn Arabi a concluir que o que se A arte e a religião, para muitos românticos, podem edu-
ama é a relação com a pessoa amada, mais do que a pró- car o olhar e o sentimento do ser humano para que ele seja
pria pessoa. O que se ama é a presença do(a) amado(a), a capaz de deixar-se tocar pela Natureza e por seu caráter
felicidade que essa relação proporciona, mesmo que o amor sublime e incompreensível.
não seja correspondido.
4. Explique, de acordo com o contexto romântico, o seguin-
3. Com base no pensamento de Leão Hebreu, complete te fragmento de Friedrich Schlegel: “Somente pelo amor
a seguinte frase, tirando a consequência irreal denuncia- e pela consciência do amor o homem se torna homem”.
da pelo filósofo: Se o amor for controlado pela razão... Esse fragmento de Schlegel apresenta uma concepção
Se o amor for controlado pela razão, ele deixa de ser amor; tipicamente romântica de crítica às posturas filosóficas e
e, ainda que tenha o nome de amor, não tem mais o seu efei- científicas que pretendiam conhecer a natureza e o ser hu-
to. Para Leão Hebreu, o amor violenta a razão e perturba o mano de um ponto de vista estritamente racional. Para ele, o
amante; e, embora cause a perda do juízo e do controle sobre ser humano que só “pensa” o mundo não é um ser humano
si mesmo, ninguém sob a influência do amor quer deixar sua completo. Em vez de “pensar” o mundo, Schlegel propõe
condição perturbadora e inebriante. “sentir” o mundo, algo que só seria possível pelo amor.

Manual do Professor 467


EXERCÍCIO E (p. 200) nós, assim também a dificuldade de explicar o significado
1. Por que o movimento feminista vê na história da filo- de palavras como perfeição e amor não obriga a dizer que
sofia do amor uma tentativa de dominação masculina? elas não têm significação pública.
Porque na história filosófica do amor as mulheres são
idealizadas, destacando qualidades que os homens apre- 6. O que seria, segundo Iris Murdoch, a atenção?
ciam e levando as mulheres a crer que essas qualidades são A atenção seria o “olhar bom”, aquele olhar que, ao con-
“femininas”. A partir dessa visão, o amor teria sido uma trário do olhar científico-objetivo (que projeta ideias tidas
criação cultural como uma forma de perpetuar o domínio como corretas sobre o mundo), busca uma compreensão
masculino. justa do mundo e de nós mesmos a partir de uma abertura
para o mundo. Esse olhar assemelha-se ao olhar do artista,
2. É correto dizer que todo pensamento feminista é con- à atenção amorosa que se deixa impressionar pela Natureza.
trário ao amor? Analise o caso de Judith Butler.
Não. Podem-se dar novas conotações ao amor. Para EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 201)
Judith Butler, o amor não é algo estático, nem é propria- 1. Música e poesia
mente uma emoção. Para ela, o amor é performático, é Atividade cultural de audição e leitura. Espera-se que
uma relação que se constrói em conjunto. Nesse sentido, os estudantes correlacionem a letra da música e da poesia
as pessoas podem produzir seu modo de viver as emoções, com o conteúdo do capítulo.
como uma atuação que constrói determinada maneira de
se relacionar com o outro e com o mundo. 2. Reflexão: o potencial de revolta do Romantismo
Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, escritor brasileiro
3. Por que a afirmação da existência de um campo públi- nascido e falecido em Ouro Preto, é conhecido como um
co e um campo privado na experiência humana permitiu autor romântico. Provavelmente os estudantes já leram ou
a alguns autores, como Hampshire, afirmar que o amor ouviram falar do romance A escrava Isaura, escrito em 1875,
não tem função na Ética? e talvez até tenham assistido a alguma das adaptações para
Segundo Hampshire, a ética, como campo próprio da a televisão. A história é conhecida: trata-se dos sofrimen-
vida humana em sociedade (e, portanto, da vida pública), tos de uma escrava de pele clara que é assediada por seu
deve procurar construir o seu discurso com questões e senhor. Escrito no período abolicionista brasileiro, o livro
fundamentos que podem ser avaliados por todos de modo ganhou a simpatia de um grande público, embora as pes-
racional e objetivo, tal como o discurso das ciências. Como soas talvez se tenham solidarizado mais com a cor clara da
o amor é algo subjetivo, próprio da experiência privada, escrava do que com a causa abolicionista. O livro também
Hampshire o considera vago demais para fundamentar a tem poucas passagens de denúncia explícita da escravidão;
ação dos indivíduos. Nesse sentido, o amor deveria ser des- seu foco é o drama físico e psicológico de Isaura, o assédio
considerado em uma discussão propriamente ética. de Leôncio (o senhor), o amor e a coragem de Álvaro, que
se apaixona por Isaura. Enfim, Bernardo Guimarães con-
4. O que a história de M e N, imaginada por Iris Murdoch, quista o leitor por meio de uma trama sentimental, mais
ensina sobre a diferença entre a dimensão pública e a do que por denúncias sociais. Num contexto como o do
dimensão privada na experiência humana? século XIX, talvez ele soubesse que não tocaria o público
A história de M e N mostra que a dimensão privada da nas dimensões que tocou se não optasse pelo caminho de
experiência humana afeta e interfere diretamente na di- uma identificação psicológica. O livro foi um sucesso e
mensão pública e social e pode ser considerada na reflexão conseguiu inserir nas mentes de muitos brasileiros, sobre-
ética. O amor de M por seu filho a levou a tratar bem N e a tudo das classes ricas (que compunham a quase totalidade
reconsiderar sua primeira impressão da nora. Iris Murdoch dos leitores), um germe de inquietação diante da ordem
quer ilustrar com essa história que o que se passa no nível social da época.
das vivências internas e privadas (o amor de M pelo filho) Diferente é o caso do romance O seminarista, de 1872.
afeta o campo público e pode ser avaliado de algum modo. Aparentemente se tratava de um livro menos polêmico,
Considerar, nas discussões éticas, apenas o que pode ser de temática doméstica e sem debates sociais. No entanto,
avaliado de modo objetivo a partir do paradigma das ciên- Bernardo Guimarães, com essa obra, denuncia explicita-
cias seria um empobrecimento da vida humana. mente o autoritarismo das famílias (que nem sempre cul-
tivavam a amizade entre seus membros), o patriarcalismo,
5. Qual a importância da comparação com a cor verme- o abismo entre ricos e pobres, o desrespeito aos sentimen-
lha no texto de Iris Murdoch? tos individuais, o celibato clerical e outros costumes que,
A importância da comparação vem do fato de que ela na sua visão, não passavam de hipocrisias. Além disso, O
permite à filósofa Iris Murdoch justificar racionalmente a seminarista é um exemplo do modo como boa parte dos
possibilidade de empregar publicamente (isto é, esperando escritores românticos abordou o tema do amor.
compreensão objetiva) termos como amor e perfeição. Assim O seminarista narra a história romântica de Margarida e
como não podemos explicar o que é o vermelho, mas nem Eugênio. Ele é filho de um fazendeiro; ela é filha de uma
por isso dizemos que o vermelho não significa nada para das empregadas. Os dois crescem juntos e se apaixonam, mas

468 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


o jovem é mandado pelos pais ao seminário de Congonhas TEXTOS COMPLEMENTARES
do Campo, a fim de estudar para ser padre. Eugênio não
Um exemplo de destaque entre as compreensões moder-
foi consultado se tinha vocação ou se gostava da vida de
nas do amor vem do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau,
padre, mas o sacerdócio era uma profissão de prestígio, e
que, entretanto, não se concentrou nos aspectos “mecâni-
seus pais decidiram por ele. A tristeza vivida por Eugênio
cos” da vivência das paixões. Depois de Platão, talvez ele
e Margarida foi imensa. Do seminário, ele escrevia car-
seja o filósofo que mais valorizou o tema do amor:
tas à amada, até o dia em que foi descoberto pelo reitor,
que avisou seus pais. Os pais de Eugênio, para abafar
esse amor, expulsam Margarida e sua mãe da fazenda e O amor e a educação
mentem a Eugênio, dizendo que ela havia se casado. A Jean-Jacques Rousseau
profunda tristeza de Eugênio só aumenta; ele permane-
ce dez anos no seminário e é ordenado padre. Ao voltar A inclinação do instinto é indeterminada. Um sexo é
para sua terra natal, espanta-se ao reencontrar Margarida atraído pelo outro: eis o movimento da Natureza. A esco-
e ao ver que ela nunca havia se casado. Entende, então, a lha, as preferências, a afeição pessoal são obra da instrução,
trama montada por seus pais e sente-se traído. Margarida, dos preconceitos, do hábito; são precisos conhecimentos e
porém, estava muito doente, uma vez que se consumia na tempo para que nos tornemos capazes de amor: só se ama
tristeza da distância de Eugênio. Ambos vivem uma breve depois de ter julgado, só se prefere depois de ter compara-
expressão de amor por meio de um beijo. No dia seguinte do. Tais julgamentos ocorrem sem que nos apercebamos,
ao reencontro, Eugênio é chamado para abençoar o corpo mas nem por isso deixam de ser reais. O verdadeiro amor,
de um defunto. Chegando ao velório, ergue o lençol para digam o que disserem, será sempre honrado pelos homens:
ver o rosto do cadáver e vê que era o corpo de Margarida. pois, embora suas exaltações nos alucinem, embora ele
Furioso, rasga suas vestes sacerdotais e abandona o local não exclua do coração que o sente qualidades odiosas, e
desesperadamente. Diante de uma narrativa como essa, até provoque algumas, ele supõe entretanto sempre outras
compreende-se o potencial de revolta do Romantismo. estimáveis, sem as quais não estaríamos em condições de
A história não provoca tristeza, mas indignação. No caso senti-lo. Essa escolha, que colocam em oposição à razão,
do romance O seminarista, a história não termina com a nos vem desta. [...]
morte de Margarida e nem propriamente com o final do Queremos obter a preferência que damos; o amor deve ser
livro, pois ela continua na decepção e no incômodo que recíproco. Para ser amado é preciso tornar-se amável; para
Bernardo Guimarães introduz no leitor pela crítica dos ser preferido é preciso tornar-se mais amável do que outro,
costumes sociais. do que qualquer outro, ao menos aos olhos do objeto ama-
do. Daí os primeiros olhares sobre nossos semelhantes; daí
3. Exercício hermenêutico as primeiras comparações, daí a emulação, as rivalidades, o
O risco de as afirmações B e C levarem a descartar a ciúme. Um coração cheio de um sentimento que transborda
afirmação A vem do fato de que B e C assumem explicita- gosta de se expandir: da necessidade de uma amante nasce
mente que as reações químicas cerebrais produzem o Amor logo a de um amigo. Quem sente quanto é doce ser amado
(falta de serotonina; presença de outros hormônios e neuro- gostaria de sê-lo por todo mundo e não podem todos dese-
transmissores), ao passo que A apresenta a adrenalina como jar preferências sem que haja muitos descontentes. Com
resultado da percepção da pessoa amada. De acordo com A, o amor e a amizade nascem as dissensões, as inimizades,
portanto, o Amor teria por início a percepção da pessoa, a o ódio. Do seio de tantas paixões diversas, vejo a opinião
sua presença. Não seria, portanto, o cérebro que produz o erguer para si mesma um trono inabalável e os estúpidos
Amor; e as reações químicas cerebrais seriam uma reação mortais, escravizados pelo império da opinião, não assen-
ou uma resposta à presença da pessoa amada. O objetivo tam sua própria existência senão nos julgamentos alheios.
do exercício, mais do que discutir se a explicação neuro- Desenvolvei estas ideias e vereis [...] como o amor a si
científica do Amor é correta ou não, consiste em mostrar a mesmo, deixando de ser um sentimento absoluto, se torna
fragilidade com que o raciocínio do texto é montado. Para orgulho nas grandes almas, vaidade nas pequenas e em
ajudar os estudantes a perceber essa fragilidade, uma ques- todas se alimenta sem cessar a expensas do próximo. A es-
tão pode ser útil: como seria possível explicar que passamos pécie dessas paixões, não tendo seu germe no coração das
a amar alguém que, de início, não nos interessava em ter- crianças, nele não pode nascer sozinha; somos nós que a
mos de paixão amorosa? A reflexão de Iris Murdoch sobre pomos nele.
a liberdade ilumina a reflexão, pois enfatiza justamente a
atenção que pode ser dada aos pequenos e rápidos instan- ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da Educação. Tradução Sérgio
tes em que se constroem as relações, ou melhor, o sentido Milliet. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. p. 237-238.
dado às relações. Parece possível, assim, apontar para um
momento de indeterminação em que o sentido ainda não
foi plenamente preenchido e o cérebro não reage com suas A filosofia de Rousseau revela confiança na capacidade
substâncias químicas ou reage em níveis pouco baixos para humana de sempre melhorar; a essa capacidade se deu o
já caracterizar a relação como amorosa. nome de perfectibilidade. Rousseau tinha, então, uma visão

Manual do Professor 469


profundamente otimista sobre o ser humano. No seu dizer, esperar o mesmo das outras; enganou-se; mas, enfim, se
o amor é uma emoção que se aprende a viver e é uma prova não tira sempre delas um proveito tão sensível, com elas
da liberdade de cada indivíduo para construir sua história ganha sempre ver confirmado por Sofia o interesse sincero
pessoal e social. O otimismo de Rousseau manifesta-se que ela tem pelo coração dele.
também em sua concepção da relação amorosa conjugal.
Ele concebe como pode ser o amor de um casal, mesmo ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da Educação. Tradução Sérgio
em meio às muitas dificuldades do dia a dia. No mesmo Milliet. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. p. 513.
livro, Emílio ou da Educação, ele imagina a relação entre
a personagem fictícia Emílio e sua jovem amada Sofia:

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
A relação amorosa
Jean-Jacques Rousseau COMTE-SPONVILLE, A. O amor. Tradução Eduardo
Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
Apesar do bom entendimento, não deixam de ocorrer LÖWY, M.; SAYRE, R. Revolta e melancolia: o Romantismo
às vezes, dissensões e até brigas; ela não é isenta de capri- na contracorrente da Modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.
chos, nem ele de irritações; mas essas pequenas borrascas MAY, S. Amor: uma história. Tradução Maria Luiza X. Borges.
passam depressa e não fazem senão solidificar a união; a Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
experiência mesmo ensina a Emílio a não as temer dema-
SIMMEL, G. Filosofia do amor. Tradução Eduardo Brandão.
siado; as conciliações são-lhe sempre mais vantajosas do que
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
as disputas são nocivas. O fruto da primeira briga fez-lhe

Capítulo 8 Sociedade, indivíduo e liberdade

OBJETIVO
Estudar filosoficamente as noções de indivíduo e sociedade O que move a metodologia adotada no capítulo é uma
em interdependência com a noção de liberdade, mostrando especial atenção ao pensamento por contrariedade e/ou por
que é mais universal (e, portanto, racional) uma abordagem contradição, razão pela qual se compôs um box específico
em que essas noções são compreendidas umas em função das sobre o tradicional quadro das oposições. A metodologia
outras, em vez de serem definidas por si mesmas. do capítulo pode ser tomada como um caso explícito do
procedimento dialético. No que se refere ao quadro das
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS oposições, caso os colegas professores queiram ir além
A estratégia do capítulo consiste em “desnaturalizar” a com- dele, sugere-se a leitura do Capítulo 11 do livro Filosofia
preensão das noções de indivíduo, sociedade e liberdade, permi- das lógicas, de Susan Haack (2002), no qual a autora estuda
tindo perceber que o sentido de cada uma delas é mais adequa- algumas lógicas que, embora comunguem de certos dados
damente captado em correlação com as outras. Faz mais sentido da lógica tradicional, buscam superar a dicotomia absoluta
entender o indivíduo em relação à sociedade e vice-versa. Ao mes- entre o verdadeiro e o falso. A partir da correlação entre
mo tempo, como o ser individual possui elementos determinados ser individual-social e liberdade, o capítulo se dedica ao
socialmente, mas também naturalmente, é mais adequado abordar estudo de duas concepções também clássicas a respeito do
o tema da liberdade em correlação direta ao ser individual e social sentido das desigualdades na vida individual-social (Locke
(o que implica também uma relação direta com os aspectos na- e Marx), abrindo a possibilidade de operar algo como uma
turais). Pode-se dizer que, de certa maneira e empregando-se um síntese entre elementos verdadeiros de ambas as concep-
vocabulário fenomenológico, trata-se de operar uma intersecção ções (o comunitarismo). A fim de ressaltar o pensamento
entre ontologias regionais (ontologia social e ontologia individual). por contrariedade e/ou contradição, o item dedicado ao
Ou, em vocabulário mais epistemológico-analítico, trata-se de debate sobre o caráter natural ou histórico da sociedade
situar-se em um cruzamento possível da dimensão pública com é estruturado em forma de exercício de múltipla escolha,
a privada. Por essa razão, o capítulo inicia com o estudo de duas para que os estudantes conheçam esse tipo de exercício
posições clássicas sobre o caráter natural ou histórico da vida em e se treinem nessa modalidade. Cada um dos itens que
sociedade (Aristóteles e Kant), para, na sequência, articular esse compõem o capítulo pode ser estudado separadamente,
estudo com uma possível afirmação da liberdade (via Espinosa sem nenhum prejuízo para a compreensão, uma vez que
e Merleau-Ponty). são autoexplicativos.

470 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

SOCIEDADE

livre associação de indivíduos realidade nascida de impulso natural


e e
maior do que a soma de indivíduos construção histórico-social

não há contradição

influência social sobre os indivíduos


liberdade dos indivíduos

desigualdades

justas injustas
(liberalismo) (marxismo)

consideração das diferenças e limitação das desigualdades


(comunitarismo)

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 212) (d) Nenhum ser humano é fácil. Frase universal negativa – E
1. Componha uma curta dissertação de problematização (e) Ser humano é uma aventura. Frase universal afirmativa – A
( p. 106), tendo como tema a pergunta: A Sociedade é uma
associação natural ou histórico-cultural? 3. Elabore frases que refutem as seguintes:
Espera-se que o aluno seja capaz de confrontar as duas (a) Algum brasileiro não é latino-americano.
posições, buscando mostrar uma possível relação de comple- Todo brasileiro é latino-americano.
mentação entre ambas. (b) Algum brasileiro é asiático.
Nenhum brasileiro é asiático.
2. Analise as frases abaixo e diga o tipo completo de cada (c) Nenhum brasileiro é corrupto.
uma delas, indicando a letra que as representa. Note que, Algum brasileiro é corrupto.
mesmo sem as palavras quantificadoras (todo, toda, algum, (d) Todo brasileiro é corrupto.
alguma, nenhum, nenhuma), é possível perceber se a frase Algum brasileiro não é corrupto.
é universal ou particular.
(a) Algum cão não é peixe. Frase particular negativa – O 4. Monte um quadrado de oposições com o sujeito brasileiro
(b) Algum cão é peixe. Frase particular afirmativa – I e o predicativo simpático e diga se cada frase do quadrado
(c) Certos cães são peixes. Frase particular afirmativa – I é verdadeira ou falsa.

(A) Todo brasileiro é simpático (E) Nenhum brasileiro é simpático (E)


(Falsa) (Falsa)

(I) Algum brasileiro é simpático (O) Algum brasileiro não é simpático (O)
(Verdadeira) (Verdadeira)

Manual do Professor 471


EXERCÍCIO B (p. 217) humanas. Nesse sentido, as qualidades físicas, as qualidades
1. Por que Espinosa considerava o livre-arbítrio uma do caráter e as qualidades do espírito (como a inteligência)
ilusão? são superadas e determinadas pela posse do dinheiro. Tudo
Segundo Espinosa, os seres humanos não percebem passa a ser visto como mercadoria e as relações humanas
que, ao fazerem escolhas, são movidos por seus desejos. passam a obedecer às leis do dinheiro, desumanizando o
Além disso, a escolha supõe determinadas opções que nos trabalho e as relações sociais.
tornam reféns das circunstâncias.
3. Quais as razões de John Locke para afirmar que as
2. Como a insistência de Merleau-Ponty no poder do desigualdades sociais são boas?
equívoco e no processo de regulagem permite pensar a Locke parte do princípio de que a liberdade e a proprie-
liberdade? dade são direitos naturais que existem antes de qualquer
A liberdade, apesar de todas as limitações e obriga- contrato social. Ele afirma que existe um consentimento
ções impostas à condição humana, reside na capacidade tácito e voluntário de todos que aceitam silenciosamente e
de ir além da situação de fato, ampliando os sentidos da- com naturalidade a posse desigual e desproporcional da terra.
dos à vida e procurando a melhor forma de se adequar a
ela. Dessa perspectiva, o poder de produzir equívoco ou 4. Como um pensador marxista pode reagir à interpreta-
equivocidade faz concluir que ser livre é produzir novos ção liberal do início da história da Humanidade e como
sentidos para sentidos já existentes. Por sua vez, o processo um pensador liberal pode responder à reação marxista?
de regulagem consistiria na possibilidade de o indivíduo Um pensador marxista poderia recorrer a testemunhos
ressignificar sua situação por uma regulagem que opera antigos segundo os quais os indivíduos que passaram a pos-
com tudo o que restringe sua liberdade e produz seu me- suir mais terras e ferramentas não o fizeram por meio do
lhor “funcionamento”. trabalho, mas por meio de guerras, de atos enganosos, de
práticas religiosas (que levavam as pessoas a dar seus bens
3. Comente os exemplos do filósofo e do artista dados por a líderes religiosos) etc. Um liberal, no entanto, pode dizer
Merleau-Ponty como provas da existência da liberdade. que, mesmo tendo havido violências e guerras na conquista
Merleau-Ponty cita o filósofo Karl Marx e o poeta Paul dos bens e das propriedades individuais, isso não significa
Valéry como exemplos da existência da liberdade porque que todos os proprietários praticaram violências e engana-
ambos não se resignaram apenas ao que era dado pela si- ram para a conquista de seus bens.
tuação de cada um, mas a partir dela deram novos signifi-
cados às suas vidas. Marx, filho de um pequeno burguês, 5. Qual o risco identificado pelo comunitarismo tanto
desenvolveu o conceito de luta de classes e denunciou a no pensamento liberal como no pensamento marxista?
exploração exercida pela burguesia; e o poeta Paul Valéry, Para os pensadores comunitaristas, a igualdade de todos
vivendo em solidão, não padeceu completamente da sua almejada pelo marxismo ameaça os direitos básicos valori-
circunstância, mas a transformou em poesia. zados pelo liberalismo. No entanto, como uma sociedade
não é a simples reunião de indivíduos, a defesa da liber-
4. Reflita se você já viveu alguma experiência em que, dade individual e econômica total permite a injustiça, o
apesar de muitos condicionamentos, conseguiu dar um desrespeito e a exploração dos indivíduos histórica e econo-
sentido realmente seu à maneira de vivê-los. micamente mais fracos. No limite, para o comunitarismo,
Resposta pessoal. É esperado que os estudantes reflitam ambos os modelos são violentos porque são autoritários:
sobre possíveis sentidos “libertadores” dados por eles mesmos eles pretendem dar as regras do poder político-econômico,
a determinados condicionamentos presentes em suas vidas. visando estruturar a sociedade a partir de teorias e crité-
rios universais sem dar voz aos reais interesses e desejos
EXERCÍCIO C (p. 225) dos indivíduos e grupos.
1. O que significa falar de desindividualização do indi-
víduo, segundo Robert Castel? 6. Segundo Alasdair MacIntyre, por que é importante
Significa perceber que é o pertencimento a coletivos testar o próprio pensamento?
que dá direitos. É, portanto, apenas no interior de coletivos Porque o teste do próprio pensamento ou a autocrítica
que o significado de “indivíduo” pode ser compreendido. faz com que cada indivíduo seja capaz de transformar suas
Tirar a atenção do próprio indivíduo (desindividualizá- próprias incoerências iniciais em vantagens argumentati-
lo) permitiria chegar ao sentido pleno do ser individual. vas, permitindo que cada tradição forneça um modo de ver
como tais incoerências podem ser mais bem caracterizadas,
2. O que significa, segundo a análise de Marx, afirmar explicadas e superadas.
que o dinheiro se tornou a mediação entre as pessoas e
que pode desumanizá-las? 7. Reflita sobre sua própria experiência e a de sua famí-
Segundo Marx, a posse do dinheiro determina todas as lia. Pense sobre as relações que vocês mantêm, o modo
qualidades e os valores socialmente estabelecidos, com- como obtêm o próprio sustento, o trabalho (de seus pais
prando e estabelecendo a mediação entre todas as relações e talvez o seu próprio, caso já trabalhe), o lazer, o tipo

472 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


de serviço de saúde e de educação a que vocês têm aces- PROJETO INTERDISCIPLINAR
so etc. Em seguida, analise sua experiência com base O Exercício Complementar 2 (Leitura comparativa e
na perspectiva liberal e, depois, com base na perspectiva reflexão cultural) pode ser transformado em um projeto
marxista. Registre sua resposta por escrito. interdisciplinar, envolvendo as áreas de Filosofia, Biologia,
Resposta pessoal. Espera-se que os estudantes relacio- Química e Sociologia:
nem de modo justificado o conteúdo do capítulo estudado
com a sua experiência e os seus relacionamentos pessoais, 1ª Fase – Pesquisa
familiares e sociais, comparando seu modo de vida com as Possibilitar que os estudantes procurem informações sobre
teorias do liberalismo e do marxismo. o que as Neurociências afirmam sobre a liberdade. Os profes-
sores de Biologia, Química e Sociologia podem ser convidados
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 226) a colaborar, por exemplo, reservando uma de suas aulas para
1. Dissertação de contradição o tema ou mesmo vindo à aula de Filosofia para apresentar
Espera-se que os estudantes, seguindo os passos indica- suas perspectivas específicas sobre o tema. Também podem ser
dos na p. 229, elaborem uma dissertação de contradição acessadas plataformas da Internet e sites especializados como
com uma estrutura geral que destaque essencialmente o da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento
dois momentos: (1) apresentação de razões para afirmar (SBNeC). Além disso, a melhor estratégia seria estudar algumas
que tudo o que o ser humano vive é determinado pela obras relativas ao tema, como o pequeno e excelente estudo de
Natureza (tomando a desigualdade econômica como prova Eduardo Kickhöfel (2000), As neurociências: questões filosóficas.
de que a Natureza determina os humanos a entrarem em Diante das informações que serão recolhidas, dois aspectos
concorrência); (2) apresentação de razões e dados da expe- interessam mais à atividade: (1) as explicações mecanicistas
riência que levem a refutar o que foi defendido em (1). Os e materialistas para a consciência, ou seja, as compreensões
dados apresentados na abertura do Capítulo 9 fornecem da consciência como simples resultado do mecanismo de
base para refutar a tese (1). Além disso, a metodologia pro- uma estrutura cerebral; (2) as explicações materialistas para
posta pelo Quadrado das oposições ( p. 211) pode ser um o livre-arbítrio ou a liberdade humana.
recurso bastante proveitoso para estruturar a redação. Em
resumo, trata-se de encontrar um caso singular que, dando 2ª Fase – Comparação
origem a um enunciado verdadeiro, torna falso o enunciado Comparar os resultados da pesquisa com as informa-
universal. Assim, se os estudantes conseguirem apresentar ções dos textos apresentados no Exercício Complementar
um enunciado verdadeiro sobre a não concorrência na 2 (Livro do Aluno).
Natureza, terão refutado a tese (1). O caso da desigualda-
de econômica é a melhor forma de proceder a essa refuta- 3ª Fase – Reflexão
ção (buscando explicações para essa desigualdade não na Com base nos resultados de sua pesquisa e na análise das
Natureza, mas na vida socioeconômica). informações da 2ª Fase, refletir sobre as seguintes questões:
1) O fato de provar que a consciência humana (a per-
2. Leitura comparativa e reflexão cultural cepção, os comportamentos etc.) depende em grande parte
Possibilidade de frases para resumir as concepções de da estrutura cerebral dá base para afirmar que é o cérebro
liberdade de cada relato: (1) a liberdade não existe, pois que produz a consciência?
todas as ações humanas são condicionadas pela estrutura 2) Declarar que as decisões humanas não são tomadas de
cerebral; (2) apesar de a estrutura cerebral condicionar as maneira clara e em apenas um momento, mas se preparam
ações humanas, ela própria contém a possibilidade da li- nas microdecisões e preferências que adotamos no dia a dia
berdade de escolha, principalmente pelo poder de veto. Na significa diminuir a liberdade humana? Filosoficamente é
forma como essas frases encontram-se formuladas, elas são coerente negar a liberdade em nome da estrutura material
contraditórias: se uma for aceita como verdadeira, a outra que nos constitui? Para ajudar na reflexão, é possível reto-
será necessariamente falsa; se uma for aceita como falsa, a mar o texto “Amor e atenção”, de Iris Murdoch ( p. 198).
outra será necessariamente verdadeira. É importante que 3) Qual atitude parece mais adequada para avaliar etica-
os colegas professores auxiliem os estudantes a analisar suas mente os comportamentos de uma pessoa com um problema
próprias frases e a perceber o que as torna complementares, cerebral? Ela deve ou não ser responsabilizada por seus atos?
contrárias ou contraditórias. No caso dos dois relatos em 4) Do ponto de vista da Sociologia, seria coerente avaliar
questão, dificilmente será possível formular frases que não as ações dos indivíduos apenas com base naquilo que as ciên-
sejam contraditórias. Caso algum(a) estudante tente formular cias naturais chamam de “base ou condicionamento físico”?
frases complementares ou contrárias, tem-se uma excelen-
te ocasião para solicitar que eles explicitem as razões que 4ª Fase – Plenária
os levaram a entender os relatos como complementares ou Organizar uma plenária em que os estudantes possam
contrários (sem serem contraditórios). Caso tal estudante partilhar suas opiniões, conclusões e dúvidas. Os professores
esteja equivocado(a), a ocasião é bastante apropriada para de Biologia, Química e Sociologia podem ser convidados a
o aprendizado com o erro. Identificando as razões do erro, assistir à plenária para manifestar-se sobre os resultados do
percebem-se boas razões. trabalho dos estudantes e participar do debate.

Manual do Professor 473


TEXTOS DE APROFUNDAMENTO O desenvolvimento econômico sob controle humano
O texto de Émile Durkheim pode ser tomado tanto como Concílio Ecumênico Vaticano II
aprofundamento por parte dos professores quanto como
leitura complementar referente ao tema da precedência da O desenvolvimento econômico deve permanecer sob a
Sociedade em relação aos indivíduos: direção do ser humano; não deve ser entregue só ao arbítrio
de alguns poucos indivíduos ou grupos economicamente
A Sociedade se impõe aos indivíduos mais fortes nem só da comunidade política ou de algumas
Émile Durkheim nações mais poderosas. Pelo contrário, é necessário que,
em todos os níveis, o maior número possível de pessoas te-
Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido nha parte na sua direção ou mesmo todas as nações caso
ou de cidadão, ou quando executo os compromissos que se trate de relações internacionais. De igual modo, é ne-
assumi, eu cumpro deveres que estão definidos no direito cessário que as iniciativas dos indivíduos e das associações
e nos costumes, fora de mim e de meus atos. Ainda que livres sejam coordenadas e organizadas harmonicamente
eles estejam de acordo com meus sentimentos próprios e com a atividade dos poderes públicos.
que eu sinta inteiramente a realidade deles, essa realida- O desenvolvimento não se deve abandonar ao simples
de não deixa de ser objetiva, pois não fui eu que os fiz, curso quase mecânico da atividade econômica nem à au-
mas os recebi pela educação. Aliás, quantas vezes não toridade pública somente. Devem, por isso, denunciar-se
nos ocorre ignorarmos o detalhe das obrigações que nos como errôneas tanto as doutrinas que, a pretexto de uma
incumbem e precisarmos, para conhecê-las, consultar o falsa liberdade, se opõem às necessárias reformas, como as
código e seus intérpretes autorizados! [...] O sistema de que sacrificam os direitos fundamentais dos indivíduos e
signos de que me sirvo para exprimir meu pensamento, das associações à organização coletiva da produção.
o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dí- De resto, lembrem-se os cidadãos que é seu direito e
vidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas seu dever (o poder civil deve reconhecê-lo) contribuir, na
relações comerciais, as práticas observadas em minha medida das próprias possibilidades, para o verdadeiro de-
profissão etc. funcionam independentemente do uso que senvolvimento da sua comunidade. Sobretudo nas regiões
faço deles. Que se tomem um a um todos os membros de economicamente menos desenvolvidas, onde é urgente o
que é composta a Sociedade; o que foi dito aqui poderá emprego de todos os recursos disponíveis, fazem correr
ser repetido a propósito de cada um deles. Eis aí, portanto, grave risco ao bem comum todos aqueles que conservam
maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam improdutivas as suas riquezas ou, salvo em caso de emi-
essa notável propriedade de existirem fora das consciên- gração, privam a própria comunidade dos meios materiais
cias individuais. ou espirituais de que necessita.
Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são
exteriores ao indivíduo, como também são dotados de uma CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Gaudium et
força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõem Spes (Alegria e Esperança), n. 65. Tradução oficial disponível
a ele, quer ele queira, quer não. em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_
council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_
DURKHEIM, É. As regras do método sociológico. Tradução po.html>. Acesso em: 14 jun. 2015.
Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 1-2.

Sobre a complexa relação entre religião e economia (so-


bretudo no contexto brasileiro atual em que o sucesso finan- SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
ceiro é muitas vezes tomado como sinal de bênção divina, DUARTE, R. Varia aesthetica: ensaios sobre arte e socieda-
concepção que muitas vezes prejudica a reflexão crítica de. Belo Horizonte: Relicário, 2014.
sobre a estrutura econômica e social), é interessante evocar DURKHEIM, É. As regras do método sociológico. Tradução
elementos do pensamento religioso que, durante o século Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
XX, tentaram obter uma compreensão mais adequada das
KICKHÖFEL, E. As neurociências: questões filosóficas. São
relações de trabalho e de produção. Ainda que a maioria
Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. (Coleção Filosofias: o
das religiões considere sagrada a propriedade privada (ela
prazer do pensar).
teria sido dada como possibilidade por Deus), muitas delas
também apontam para certos limites dessa ideia, principal- POLANYI, M. A lógica da liberdade. Tradução Joubert O.
mente a importância do valor de cada indivíduo, importância Brizida. São Paulo: Topbooks, 2003.
mesmo maior do que a da propriedade. A esse respeito, pode RENAULT, A. O indivíduo: reflexão acerca da filosofia do
ser de grande interesse cultural e filosófico um texto como sujeito. Tradução Helena Gaidano. São Paulo: Difel, 1999.
o que se segue (de cuja redação participaram não apenas
cristãos católicos, mas também protestantes e membros de
outras religiões):

474 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


Capítulo 9 Natureza, Cultura e pessoa

OBJETIVO
Estudar o tema que se tornou clássico a partir do final principalmente porque grupos pelo mundo todo exigem que
da Modernidade – a distinção entre Natureza e Cultura – suas “identidades” sejam respeitadas, mesmo que tal respeito
considerando razões que permitem opor os dois conceitos implique diferentes formas de violência contra as pessoas.
(identificando um domínio natural e um domínio cultural Tal conflito, na verdade, sempre ocorreu na História
na experiência humana), bem como razões que permitem da Humanidade, mas atualmente ele ganha uma impor-
associá-los (por exemplo, pelo conceito de pessoa, que enfa- tância redobrada. Um caso evidente em nossos dias é o da
tiza o modo humano de ser, isto é, o modo humano de viver identidade religiosa, que muitos tentam impor como iden-
aquilo que se recebe da espécie natural). tidade “natural”. Têm surgido grupos cada vez mais violen-
tos, defendendo identidades “tradicionais”, a fim de evitar
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS transformações históricas. Essa prática também sempre foi
Partindo da concepção que se tornou corriqueira no recorrente na História, ainda que, na maioria das vezes, as
pensamento e no vocabulário cotidianos, segundo a qual a transformações tenham acabado por se impor, levando à re-
Natureza seria regida pela lei da concorrência ou da adap- visão das “tradições”. Em nossos dias, é bastante conhecida
tação dos seres mais fortes, o capítulo introduz a possibili- a atuação de alguns grupos muçulmanos (fiéis da religião
dade científica de identificar também a colaboração como islâmica) que, para manter fidelidade ao que consideram a
lei natural. Com base nesses dois modelos explicativos da verdadeira “tradição”, defendem a guerra como forma de
Natureza, passa-se à especificidade da reflexão filosófica ação. Nessa prática, eles se baseiam em trechos do seu livro
como investigação do modo como se constroem diferen- sagrado, o Corão, para justificar a guerra contra os infiéis.
tes modelos para exprimir o conhecimento da Natureza. Mas eles ocultam ou ignoram que há outros trechos que
Após apresentar o modelo mecanicista, o capítulo levanta defendem a convivência pacífica. Aliás, historicamente, a
o modelo que, de certa maneira, poderia ser chamado de religião muçulmana nem sempre foi anunciada com base
vitalista. A estratégia é mostrar a relatividade desses tipos de na guerra contra os infiéis. Na Indonésia, por exemplo, o
descrição, articulando tal relatividade com a possibilidade islamismo chegou já durante o século XI e integrou-se às
de não dissociar Natureza e Cultura ao menos no que con- culturas locais, com respeito visível pelas outras práticas
cerne ao ser humano. religiosas. Além disso, a imensa maioria dos muçulmanos
Nesse quadro, o conceito de pessoa – tradicionalmente é pacífica nos dias de hoje e defende a conversão religiosa
empregado em Filosofia desde a definição dada por Boécio por convencimento e não por imposição.
(“pessoa é uma substância individual de natureza racional”), Dessa perspectiva, o que significaria “defender a tradi-
embora criticado por certos autores contemporâneos – apa- ção”? Ainda: o que se entende por “tradição” e “identidade”?
rece como uma forma de referir-se a cada indivíduo huma- Os colegas professores são convidados a tratar com redobra-
no como um ser dotado de um modo específico (cultural e do cuidado a tensão entre a continuidade das “tradições” e
singular) de realizar o que tem em comum com sua espé- “identidades” e a necessidade de que elas sejam “atualiza-
cie (natural). A singularidade permite identificar em cada das”, a fim de dar respostas adequadas aos novos tempos.
indivíduo um núcleo ou um “ponto de irradiação” de onde Algo análogo ao que se dá com o islamismo em outras par-
brota o modo inteiramente único e “irrepetível” com que tes do mundo ocorre em nosso país com relação ao cristia-
cada pessoa é sua animalidade e humanidade. A metáfora nismo. Usam-se muitas vezes a Bíblia judaica (Primeiro ou
do coração retrata bem esse núcleo, mas cabe aqui enfatizar Antigo Testamento) e a Bíblia cristã (Primeiro e Segundo
que coração não deve ser associado ao músculo cardíaco nem Testamentos ou Antigo e Novo Testamentos) para justificar
à afetividade (por oposição à razão), mas ao que é próprio de práticas muitas vezes violentas em nome da conservação das
cada indivíduo em seu modo de existir operando com fatores “tradições”. Há até quem não acredite que o ser humano foi
determinantes de ordem “natural” e “cultural”. à Lua, pois dizem que, segundo a Bíblia, isso é impossível.
Esquecem que muitos trechos bíblicos, quando tirados de
OBSERVAÇÃO METODOLÓGICA ESPECÍFICA seus contextos e interpretados ao gosto individual, funda-
O risco da ideologia identitária mentam práticas de intolerância, falta de diálogo e mesmo
Ao tratar do tema da Cultura (em conexão direta ou in- de cegueira intelectual. Outro caso curioso, por exemplo, é
direta com o tema da Sociedade, trabalhado no capítulo o apego ao dinheiro, pois, embora a Bíblia fale da utilidade
anterior), apresenta-se um grande desafio em nossos dias: dos bens materiais e das ofertas a Deus, ela também de-
evitar a ideologia identitária, isto é, a crença de que existem nuncia a preocupação exagerada com a riqueza, afirmando
identidades “naturais” nos grupos humanos, sem ver que essas claramente que o sentido da vida não está nas posses nem
identidades nascem em circunstâncias determinadas e mu- no dinheiro. Muitas igrejas cristãs, em nossos dias, esque-
dam com o passar do tempo, mesmo quando os grupos não cem ou ignoram os versículos que tratam do tema. Por fim,
percebem rapidamente. Trata-se de um tema muito delicado, há quem se baseia na Bíblia para defender, por exemplo,

Manual do Professor 475


a pena de morte (ver Êxodo 21, 12; Levítico 20, 10 etc.), a Vários outros exemplos identitários poderiam ser evocados
dominação da mulher pelo homem (Deuteronômio 20, 21 aqui, entre eles, as ideias de “pátria” e “povo” como se fossem
etc.), a proibição de que as mulheres ensinem (Timóteo 2, realidades naturais; a cultura indígena ou a cultura negra, que,
11-13 etc.). Esses elementos fariam parte da “identidade” embora necessitem ser defendidas em nossos dias – visto que são
bíblica. No entanto, esquece-se de que mesmo nos tempos claramente ameaçadas –, servem às vezes para alimentar ressen-
da redação da Bíblia várias dessas práticas já não eram se- timentos e revanchismos, em vez de colaborar para a construção
guidas ao pé da letra. Basta lembrar que judeus e cristãos de vidas sociais marcadas pelo respeito das diferenças etc. O
deram papéis importantes às mulheres (Rute, Ester, Maria maior interesse filosófico nesse debate talvez esteja em pensar
de Nazaré, Maria Madalena etc.), passaram a questionar a a relação entre singularidades/comunidades e universalidade:
pena de morte, viveram organizações econômicas de partilha o pensamento humano pode ir além da simples reafirmação
das riquezas (ver Atos 2), valorizaram o ensino feminino e de “identidades”, sem manter-se preso a elas, e buscar o que há
fizeram muitos outros atos que mostram claramente como de universal nas diferentes experiências humanas, promovendo
a “identidade” cristã tem a possibilidade de dar novas res- um conhecimento mútuo das diferenças e uma união em torno
postas ao longo do tempo. de tudo o que une indivíduos e grupos diferentes.

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

Natureza Cultura
máquina ou organismo? oposta ou unida à Natureza?

SENTIDO

Indivíduo Pessoa
ser natural e construído ser psicofísico e cultural
modo singular de realizar a espécie

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 233) conhecidas e manipuladas pelo ser humano. Nesse sentido, a
Apresente a crença na concorrência como lei da Natureza própria Natureza passa a ser vista como uma grande reserva
e explique sua crítica pela teoria da “democracia animal”. de materiais à disposição para o uso e a satisfação humana.
A partir da divulgação da teoria da evolução de Darwin,
muitos pensadores e cientistas passaram a resumi-la com a 2. Comparando a teoria da “democracia animal” com o
crença de que a lei da evolução é a lei do mais forte, e que a mecanicismo, assinale a alternativa que lhe parece correta:
concorrência é a lei fundamental da Natureza. No entanto, (a) A “democracia animal” confirma a visão mecanicista
pesquisas recentes mostram que a concorrência não é o único da Natureza.
nem sequer o principal fator presente no comportamento de b A “democracia animal” dificulta a visão mecanicista
(b)
plantas e de animais gregários. Para além da competição, a da Natureza.
colaboração mútua e a decisão em conjunto apareceram como (c) A “democracia animal” é indiferente à visão mecani-
fatores mais presentes e mais importantes para a conservação cista da Natureza.
das espécies e do mundo natural. Observação: pelo modo como o capítulo está organizado,
espera-se que os estudantes escolham a alternativa (b). No
EXERCÍCIO B (p. 236) entanto, caso discordem do conteúdo do capítulo, talvez eles
1. Defina o mecanicismo. escolham outra alternativa. Não há erro em escolher outra
Mecanicismo é a teoria filosófica e científica, surgida no alternativa, o importante é solicitar que eles argumentem para
século XVII e XVIII, que busca entender a Natureza a par- defender sua interpretação.
tir da comparação com o funcionamento de uma máquina.
Segundo essa teoria, a Natureza, tal como uma máquina, 3. Justifique a resposta dada ao exercício anterior e ex-
funciona por meio de leis constantes e estáveis que podem ser plique por que as outras alternativas lhe parecem falsas.

476 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


A “democracia animal” dificulta a visão mecanicista da da simples percepção de causas e efeitos (algo que os ani-
Natureza porque a cooperação dos indivíduos de uma mes- mais certamente têm); ela é da ordem do “pensamento do
ma espécie, como a decisão consensual de um grupo que pensamento”, e, como tal, leva a identificar uma diferença
“vota” coletivamente suas “escolhas”, revela a possibilidade de qualidade entre os humanos e os não humanos.
do improviso e de certo cálculo de possibilidades mesmo em
seres irracionais. Esse dado põe em questão a crença de que 4. Com base na continuidade entre Natureza e Cultura,
a Natureza é regida por leis necessariamente fixas e com- analise as frases seguintes e argumente se você concorda
pletamente estáveis e regulares (cujos melhores exemplos com elas ou discorda delas: “Todo brasileiro ama futebol”;
seriam dados por tudo o que é diferente do ser humano). “Italiano fala com as mãos”; “Brasileiros e argentinos não
se gostam”.
4. Além dos problemas sociais e ecológicos, haveria di- Resposta pessoal. Contudo, as três frases são exemplos
ficuldades teóricas que indicassem a incoerência do de certa naturalização da Cultura, como se determinados
mecanicismo? comportamentos fossem próprios e intrínsecos de cada povo.
Sim. Como expõe o biólogo inglês Rupert Sheldrake, há Além disso, elas fazem uma generalização cultural apressa-
muitos indícios de que o “funcionamento” da Natureza não da, pois a Cultura não é, a rigor, algo que determina com-
segue necessariamente leis sempre estáveis e constantes, pletamente o comportamento de todos os seus indivíduos.
como testemunha o fato de cientistas terem de ajustar de
tempos em tempos as “constantes” com que medem fenô- EXERCÍCIO D (p. 241)
menos naturais. Se há a necessidade de ajuste, é porque há 1. Qual a diferença entre o conceito de pessoa e o de
mudanças no funcionamento da Natureza. indivíduo?
A diferença entre pessoa e indivíduo reside no tipo de
EXERCÍCIO C (p. 239) relação estabelecida com a espécie: enquanto um indivíduo
1. Diferencie Natureza e Cultura com base na necessidade é apenas um membro de determinada espécie (inclusive
humana de aprendizado. Você pode se inspirar no texto cada mineral, cada planta e cada animal é um indivíduo
de Pierre Sanchis. no interior de seus grupos), uma pessoa é um indivíduo ti-
A Cultura pode ser entendida como um prolongamento picamente humano, ou seja, um indivíduo que não repete
ou como um desenvolvimento de capacidades e possibili- simplesmente sua espécie, mas um modo único e “irrepe-
dades presentes na própria Natureza. Dessa perspectiva, a tível” de ser, dando coloração e características próprias ao
possibilidade mesma da Cultura não significa necessaria- seu modo de realizar a sua espécie, por sua capacidade de
mente algo dissociado da Natureza. Porém, como ser cultu- dar sentido, refletir e escolher.
ral e diferentemente dos outros animais, o ser humano não
“nasce sabendo”; ele nasce apenas propenso e com certas 2. Em que se baseou Agostinho de Hipona para identificar
potencialidades; precisa aprender e desenvolver suas capaci- a especificidade do ser humano?
dades por meio de sua inserção em um meio social criativo. Agostinho se baseou no fato de os seres humanos serem
capazes do ato de conhecer e de fazer escolhas. Essas ca-
2. Por que, segundo Merleau-Ponty, tudo no ser humano pacidades revelam uma estrutura específica que diferencia
é natural e fabricado? o ser humano dos outros seres vivos. Ele observou que os
Para Merleau-Ponty, o ser humano não é um ser mera- minerais apenas existem; as plantas existem e vivem; os ani-
mente biológico, regido e determinado pelos instintos. Em mais existem, vivem e sentem; e os seres humanos existem,
sua condição de ser psicofisiológico, o ser humano tem vivem, sentem, pensam e escolhem.
abertura para múltiplas possibilidades. Isso quer dizer que
o uso que ele faz de seu corpo é transcendente ao próprio 3. Quais as funções da alma humana, segundo Agostinho?
corpo. Desse modo, a expressão de sua natureza passa pela Além de existir (por possuir corpo, assim como tudo na
“criação” ou pela “fabricação” própria da Cultura. Natureza Natureza, inclusive os minerais), a alma humana vive (man-
e Cultura não se opõem e nem mesmo se sobrepõem, mas tém a função nutritiva ou vegetativa, presente também nas
se misturam e se integram, sem, no entanto, se anularem plantas e animais) e sente (exerce a função sensitiva, presente
ou se confundirem. também nos animais com sensibilidade). Por fim, existe uma
função que só os seres humanos possuem: a capacidade de
3. A continuidade entre Natureza e Cultura anula a di- pensar e fazer escolhas, de dar sentido ao mundo (a alma
ferença entre animais humanos e animais não humanos? racional ou espiritual).
Não. E a diferença entre animais humanos e não huma-
nos também não se reduz a uma mera diferença de grau 4. Explique a metáfora agostiniana da alma como tensão
(grau de animalidade). Há uma diferença mais profunda, vital do corpo, servindo-se do exemplo da corda de um
pois, apesar dos elementos culturais vividos por animais não instrumento musical.
racionais, eles não revelam uma reflexão intelectual nem a Agostinho usa a metáfora para representar a vida e as
capacidade de pensar sobre si mesmos e de analisar o modo funções da alma por meio da força ou da “tensão” presente
como se dá o pensamento. A reflexão intelectual vai além em uma corda de instrumento musical. A tensão é capaz de

Manual do Professor 477


fazer a corda realizar as suas capacidades e tornar-se efeti- Filosofia, ao tratar dessa temática, trabalhe em união direta com
vamente o que ela é, produzindo som. A corda frouxa seria as Ciências Humanas, pois, embora ela também considere os
como um corpo sem vida, sem alma, sem dinamismo e mo- elementos vindos das Ciências Naturais, sua análise se baseia
vimento próprio, ou seja, sem a sua função própria (produzir na maior parte sobre os dados vindos das Humanidades. Esta
som). O mesmo ocorre com o corpo sem alma: ele torna-se atividade propõe, então, a ocasião para explicitar o encontro
incapaz de realizar as suas potencialidades. Segundo essa da Filosofia com as Ciências Humanas, tomando por norte
metáfora, a alma não é algo que “está” em alguma “parte” o tema das diferenças entre indivíduos e entre grupos sociais.
do corpo, mas uma espécie de força, vibração ou tensão que
atravessa e vivifica o corpo. 1º passo
Entrando em acordo com os professores de Geografia,
EXERCÍCIO E (p. 243) História e Sociologia, solicitar que cada um deles, em uma
1. O que significa o cerne da alma, de acordo com o pen- de suas respectivas aulas, apresente abordagens típicas de
samento da filósofa Edith Stein? suas áreas para tratar da seguinte questão: no estudo da
Significa o modo próprio de ser de cada pessoa. É o “lugar” vida em Sociedade, é possível afirmar que os indivíduos
próprio do eu, “recôndito” de sua mais profunda intimidade, e os grupos têm características naturais ou é necessário
onde só o eu pessoal pode entrar e de onde irradia sua luz afirmar que sempre os seres humanos são resultado de seu
específica, seu modo pessoal de ser e sua personalidade. A ambiente cultural?
despeito da linguagem espacial metafórica, o cerne do indi- É importante que cada professor explicite criticamente as
víduo não é um lugar ou um espaço para Edith Stein, mas razões que justificam possíveis abordagens em suas respec-
o modo único e “irrepetível” de cada pessoa realizar a sua tivas áreas. Por exemplo, em Geografia, pode-se explorar o
espécie e de ser quem ela é. aspecto da relação entre Sociedade e espaço (a transformação
do espaço pela Sociedade e as imposições que o espaço faz
2. Por que se pode dizer que Hildegarda de Bingen, em à Sociedade) de uma perspectiva liberal (apontando para a
Homem universal, pintou o coração humano sem ter pin- naturalidade das diferenças) e de uma perspectiva marxista
tado o músculo cardíaco? (apontando para a historicidade das diferenças); em História,
Porque o coração ou o centro de cada pessoa não está no pode-se examinar as concepções nas quais a História da
músculo cardíaco. Ele simplesmente não “está” em parte Humanidade pode ser entendida como o desenrolar da vida
alguma, pois não ocupa um “espaço” determinado. Ele é o de sociedades compostas por membros naturalmente desi-
modo como cada pessoa é quem é. guais (visão liberal da História como progressão natural) ou
como o conjunto das formas de organização em torno de
EXERCÍCIO COMPLEMENTAR (p. 244) conflitos e interesses econômicos (visão marxista da História
Redação: “Concorrência e individualismo” como conjunto de diferentes modos de produção e da luta
Espera-se que os estudantes articulem de maneira justi- de classes); em Sociologia, pode-se analisar os fenômenos
ficada o tema da concorrência e o tema do individualismo, sociais concebidos como resultados do encontro de indiví-
vendo entre eles uma relação de causa e efeito. O caso de duos que realizam trocas segundo suas possibilidades (visão
atletas que só pensam em seu sucesso particular deve ser to- liberal das diferenças naturais e da coabitação das diferenças)
mado como exemplo de individualismo (fundado na concor- ou como resultados de uma dinâmica de exploração (visão
rência), pois, em vez de almejar o objetivo da equipe ou do marxista do modo de produção capitalista, por exemplo).
time, tais atletas fixam-se em si mesmos e buscam apenas a Concentrar-se nas duas abordagens (liberal e marxista) pode
própria glória. Além disso, no contexto atual, contribui para ser interessante para facilitar o trabalho, evitando a dispersão
o individualismo de alguns atletas o fato de que os esportes, em uma quantidade excessiva de tratamentos do tema, a fim
muitas vezes, não são orientados pelos valores do bem físico de explicitar os pressupostos metodológicos e conceituais de
e moral, da saúde, do espírito coletivo e do exemplo para os cada abordagem.
outros cidadãos, mas pelo interesse em atrair investimentos
milionários, salários elevados, fama e outros fatores sempre 2º passo
relacionados a interesses individualistas. Depois das aulas de Geografia, História e Sociologia,
reserva-se uma aula de Filosofia para discutir como os
conteúdos das Ciências Humanas são construídos. Pode-se
PROJETO INTERDISCIPLINAR explorar, por exemplo, o modo como o debate entre mar-
A naturalidade ou a historicidade das diferenças xismo e liberalismo foi um dos aspectos teóricos que permi-
Na classificação habitual das ciências, cabe às Ciências tiram o surgimento de áreas como a Geografia Crítica e a
Humanas investigar os elementos específicos que levam a Geografia Humana, a História Social e a História Econômica,
entender o ser humano como “ser natural-cultural”, ou seja, a Sociologia Econômica e a Sociologia do Trabalho etc. Os
como ser em que se encontram elementos naturais e culturais, professores podem recorrer à diferença entre explicar e com-
permitindo que a vida humana seja entendida como manei- preender, estabelecida por Dilthey (ver Capítulo 14). Com
ra de viver culturalmente aquilo que se refere à constituição base nesse trabalho, mostrar como o pensamento se encontra
natural. Dessa perspectiva, é facilmente compreensível que a em uma situação complexa: há razões para afirmar tanto a

478 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


naturalidade das diferenças e das identidades humanas como esses 10 anos, Victor viveu nas florestas e ao redor de vilare-
a historicidade delas. jos, sem integrar-se à civilização. O Dr. Jean Itard conseguiu
instruí-lo para a vida na cidade e Victor foi confiado a uma
3º passo senhora que cuidou dele durante 17 anos. Victor morreu com
Durante uma aula de Filosofia, realizar uma mesa-re- 28 anos de idade. Hoje, porém, sabe-se que ele não ficou
donda com o(a) professor(a) de Filosofia e os professores de completamente isolado da civilização, mas vivia nos arredo-
Geografia, História e Sociologia, a fim de debater a seguinte res de vilarejos, de modo que, sendo um garoto fora dos pa-
questão: “É necessário conservar a oposição entre naturali- drões civilizados, acabou sofrendo a violência dos moradores
dade e historicidade no reconhecimento das diferenças entre que o afugentavam. Ele chegou mesmo a ser torturado. Em
indivíduos e grupos, ou é possível unir, de modo rigoroso 1969, o cineasta francês François Truffaut (1932-1984) pro-
(científico), os dois polos dessa oposição?”. Podem-se reservar duziu o filme O garoto selvagem e apresentou Victor como
10 minutos para cada professor(a) expor como desenvolveu “garoto selvagem”. Essa imagem é certamente equivocada,
o passo 1 com os estudantes e dar sua resposta à questão da a ponto de hoje alguns historiadores o chamarem de “garoto
mesa-redonda. Na sequência, os colegas dialogam e debatem mártir”, porque ele morreu em consequência da violência
com os alunos as vantagens e as desvantagens da abordagem dos adultos. Apesar disso, a imagem tão bem construída por
liberal e da abordagem marxista. A esse respeito, pode-se Truffaut representa adequadamente a visão que se tinha de
tentar operar ao modo do que se propõe para a elaboração Victor na Europa do século XIX.
de dissertações de problematização ( p. 106). Quanto ao jovem alemão Kaspar Hauser, ele não era
um “garoto selvagem”, mas também simbolizava alguém
que teria vivido apenas em “estado de natureza”. Kaspar
PROPOSTA DE ATIVIDADE COMPLEMENTAR Hauser viveu isolado por 15 anos e apareceu numa praça de
Cultura, civilização e elogio da vida “natural” Nuremberg, no dia 26 de maio de 1828, com alguns objetos
Os professores podem aprofundar o tema da separação pessoais e uma carta endereçada ao governante da cidade,
entre Natureza e Cultura, lembrando que a Cultura foi as- na qual parte de sua história era explicada. Ele não sabia
sociada também à Civilização. Raízes desse pensamento falar nenhum idioma; tudo indicava que crescera preso em
podem ser encontradas na obra de Jean-Jacques Rousseau, uma masmorra, alimentado apenas de pão e água. Kaspar
que via na Civilização a causa dos males e das injustiças aprendeu a falar, mas não conseguia distinguir o sonho da
que afligem o ser humano preocupado com riquezas e po- realidade, pois essa distinção também requer aprendiza-
der. Da bela redação de Rousseau, principalmente na obra do. Como ele cresceu isolado, não teve essa possibilidade.
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade Kaspar viveu com diferentes famílias, até ser assassinado em
entre os homens, veio a imagem do bom selvagem, quer dizer, 1833, quando passeava nos jardins do palácio de Ansbach. O
a representação de todo ser humano em estado de natureza cineasta alemão Werner Herzog (1942-) retratou a história
como alguém livre, feliz e preocupado apenas com o míni- de Kaspar no filme O enigma de Kaspar Hauser, de 1974.
mo necessário para viver. Essa imagem reaparece mesmo Em alemão, o título original é Jeder für sich und Gott gegen
em Sigmund Freud, que, na obra O mal-estar na civiliza- alle, que quer dizer “cada um por si e Deus contra todos”.
ção, faz um elogio da renúncia à vida civilizada, cultural, Os colegas professores podem trabalhar com esses dois
em benefício de um retorno a modos primitivos de viver. filmes, a fim de discutir o costume de se dar tanta impor-
Freud chega a dizer que a vida civilizada, cultural, é a fon- tância aos modelos de ser humano “natural” ou “cultural-
te dos sofrimentos psíquicos. Mas os dois autores que mais mente virgem” (preservado da civilização). Pode-se mesmo
contribuíram para consagrar a diferença entre Natureza e ampliar a discussão e investigar por que grupos humanos
Cultura talvez tenham sido Immanuel Kant e Friedrich não industrializados (tribos, grupos de estrutura familiar etc.)
Hegel. Kant defendia que sair do estado de natureza é um são em geral considerados primitivos e mesmo inferiores.
dever do ser humano. Hegel, por sua vez, e em continuida- Uma das razões dessa visão é a supervalorização moderna e
de com Kant, já concebia o ser humano diretamente como contemporânea do domínio da Natureza como sinal do uso
aquele ser que é oposto à Natureza e que a domina pelo da razão. Assim, quem apresenta formas de vida diferentes
pensamento e pela ação. e valores diversos daqueles da razão separada da Natureza
Durante o século XIX, o “século de Hegel”, fortaleceu-se é comumente visto como alguém que simplesmente ainda
consideravelmente essa visão do ser humano como dotado de não se teria encaminhado (ou evoluído) para o uso da razão.
uma “base natural” à qual se “acrescentavam” as produções Um contraponto de grande impacto para mostrar o des-
do espírito ou a Cultura. Isso explica o acentuado interesse conhecimento dos povos chamados de “primitivos” e sobre-
de cientistas e filósofos, ainda no século XIX, pela descober- tudo o estranhamento que o Ocidente ainda tem para com
ta e divulgação de casos curiosos como o do garoto francês os índios de vários lugares do planeta é dado pela obra do
Victor de Aveyron e do jovem alemão Kaspar Hauser, que antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (2015).
viveram durante vários anos afastados da civilização e repre- Ele chega a falar de um “perspectivismo” ameríndio e mos-
sentariam algo como um “estado de natureza”. tra como, nas visões de mundo de algumas tribos brasilei-
Victor foi encontrado na região francesa do Aveyron, em ras, foi desenvolvida uma sofisticada maneira de conceber
1800, quando tinha por volta de 10 anos de idade. Durante tudo o que existe como um conjunto de sujeitos, humanos

Manual do Professor 479


ou não humanos, que apreendem o mundo de maneira di- O mito da mônada cultural
ferente. Uma visão geral e sintética de sua abordagem pode Marc-Antoine Vallée
ser encontrada no artigo “Os pronomes cosmológicos e o
perspectivismo ameríndio”. O abandono da inteligência humanista da Cultura en-
tendida como elevação ao que há de universal nos seres
humanos, em benefício de uma concepção da cultura
TEXTOS COMPLEMENTARES
como fonte de particularização acompanha o surgimento
E DE APROFUNDAMENTO
e o desenvolvimento do pensamento historicista em reação
A respeito do relativismo cultural, vale lembrar que, de à filosofia da História de Hegel. Assim como cada nação
certa maneira, o filósofo francês Michel de Montaigne, no possui sua própria cultura, parece que cada época também
século XVI, havia intuído algo semelhante. Ele se serve do possuiria um espírito particular, cujas expressões seriam as
termo bárbaro, criado pelos antigos romanos (para referir-se obras artísticas e filosóficas. Cada cultura, cada sociedade
aos povos não romanos) e ainda utilizado na sua época, como e cada época teriam certa visão do mundo [...]. Essa con-
referência aos povos que tinham sido descobertos pelos eu- cepção pressupõe que todo indivíduo é influenciado ou
ropeus nas Américas e cujos costumes eram completamente mesmo determinado pela época, pela sua sociedade e pela
diferentes. Como leitura complementar, pode-se trabalhar o cultura às quais ele pertence. Não há dúvida de que essa
seguinte trecho da obra Ensaios, na qual Montaigne men- tomada de consciência do papel determinante de nossos
ciona uma nação de índios canibais do Brasil da qual tinha pertencimentos culturais na formação de nosso espírito é
ouvido falar: importante, pois ela recorda a finitude de todo pensamen-
to individual e das condições que a tornam possível. Mas
O bárbaro não é o que pensamos à luz dos numerosos prolongamentos e desenvolvimentos
Michel de Montaigne dessa ideia nas Ciências Humanas e Sociais e na filosofia
“pós-moderna”, fica claro que há um risco: o de entrar nas
Com base no que me foi relatado, penso que não há nada sombras de uma interpretação relativista e fatalista de nos-
de bárbaro e de selvagem nessa nação. Cada um chama de sos pertencimentos culturais, fazendo-nos compreender
barbárie aquilo que não é de seu costume. Parece verdadeiro a nós mesmos como prisioneiros de certo número de “es-
dizer que nós só temos como critério para identificar a ver- quemas culturais”, tornando contestável toda pretensão de
dade e a razão o exemplo, as opiniões e os costumes do lugar chegar à verdade ou a uma compreensão mais adequada do
em que estamos. É onde estamos que vemos a verdadeira que realmente acontece [nossos pertencimentos culturais].
religião, o governo perfeito, o mais completo e total uso de Retomando o que Leo Strauss chamava de “mito da môna-
todas as coisas. Eles [os chamados bárbaros] são selvagens da cultural”, acabamos parecendo “loucos em um hospital
tanto quanto nós chamamos de selvagens os frutos que a psiquiátrico”, aprisionados pela nossa própria cultura ao
Natureza produz por si e em seu ritmo ordinário. Deveríamos modo de uma “camisa de força”.
chamar de selvagem, ao contrário, tudo aquilo que altera- A lógica subjacente ao “mito da mônada cultural” é mais
mos pelo nosso artifício e desviamos da ordem comum. [...] ou menos esta: toda cultura repousa sobre uma linguagem
Até podemos chamar de bárbaros [os índios canibais] com constituída de conceitos que veiculam certa ontologia ou
relação às regras da razão, mas não com relação a nós, que, certo recorte da realidade. Entre nós e a realidade, portan-
aliás, os ultrapassamos em todo tipo de barbárie. to, haveria um intermediário que organizaria o conteúdo
de nossas experiências com base em esquemas conceituais
MONTAIGNE, M. Les essais (I, XXXI). Paris: PUF, 2004. p. que permitem apenas um retrato particular de nosso mundo.
205-210. (Os ensaios. Tradução nossa.) Por conseguinte, as diferentes línguas e culturas veiculariam
visões de mundo concorrentes e incomparáveis entre si, a
Desenvolveu-se com força nos séculos XIX e XX a ideia ponto de ignorarmos a validade de cada uma dessas visões
de que as culturas são unidades de sentido típicas de grupos de mundo. Para avaliar a justeza de uma visão de mundo
e dotadas da possibilidade de aceitar-se e conviver. A essa seria necessário livrar-nos de nossos esquemas conceituais e,
concepção deu-se o nome de multiculturalismo na segunda assim, desligar-nos perfeitamente de nossa cultura e de nossa
metade do século XX. De certa maneira, o multiculturalis- linguagem, a fim de comparar os diferentes esquemas com
mo contraria outra tendência, que se desenhava desde os a realidade mesma. Como não dispomos de um tal acesso
tempos do Renascimento, segundo a qual o ser humano é à realidade (pois todo pensamento apoia-se inevitavelmente
chamado a superar as diferenças culturais (sem necessaria- sobre certa linguagem e se forma com base em horizontes
mente negá-las) e procurar uma união em torno de elementos culturais particulares), nós estaríamos fechados em esquemas
universais. Reforçando as identidades culturais, criou-se o culturais que constituem o intermediário entre nosso espírito
“mito da mônada cultural” (mônada ou unidade que só se e a realidade. [...] Na ausência de uma realidade neutra, não
relaciona com outras mônadas culturais por meio de uma haveria mais nenhum sentido em pretender que nossas des-
afirmação de si mesma). A esse respeito, o jovem filósofo crições ou nossas interpretações do mundo sejam mais justas
canadense Marc-Antoine Vallée tem desenvolvido uma re- ou mais adequadas do que qualquer outra. Encontramo-nos,
flexão filosófica bastante instigante: assim, em face de um relativismo generalizado, cuja defesa

480 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


e promoção são assumidas por pensadores como Gianni materna, mas que é sempre possível compreender o outro
Vattimo e Richard Rorty. em sua própria língua, assim como é possível perceber e
Esse mito da mônada cultural e o relativismo generalizado exprimir o pensamento do outro em nossa própria língua.
que ele implica são acompanhados frequentemente de um Esse dado parece evidente, mas é importante lembrá-lo,
culto da alteridade que lhes é complementar. Se cada um pois, da perspectiva da mônada cultural, ele parece quase
é prisioneiro de seus esquemas culturais, seria no mínimo um milagre (uma vez que nossas concepções de mundo se-
grosseiro (para não dizer bárbaro) pretender contradizer as riam incomparáveis entre si). Contra essa ideia, hermeneu-
pretensões à verdade de outra pessoa que não tem os mes- tas como Gadamer e Paul Ricœur defenderam fortemente
mos esquemas ou categorias que nós temos. Nesse contex- a tese de uma tradutibilidade de princípio entre todas as
to, até a tentativa de compreender o outro se torna sinal de línguas. O aprendizado das línguas estrangeiras e o traba-
violência, pois essa tentativa equivaleria a fechar o outro em lho de tradução tornam possível um diálogo entre pessoas
meus próprios esquemas conceituais e culturais. Uma vez que vêm de horizontes culturais completamente diferentes.
que a alteridade resiste necessariamente a todos os meus es- É isso, aliás, que torna possível o trabalho do antropólogo
forços de compreensão, qualquer tentativa de compreender ou do etnólogo em sua busca de compreender a organiza-
o outro seria uma violência a esse outro em sua alteridade ção e a cultura de sociedades humanas que são estrangeiras
radical. Em resumo, o outro não deve ser compreendido, para nós. É também isso que permite ao historiador ou ao
mas simplesmente respeitado em sua alteridade irredutível. filólogo compreender culturas, textos, mulheres e homens
Segundo Gianni Vattimo, essa violência para com o outro de outras épocas.
em sua diferença está intimamente ligada à “vontade meta- A experiência mostra-nos todos os dias, então, que as cul-
física ocidental” de compreender a realidade nela mesma, turas vivas não são mônadas sem portas nem janelas, mas
começando pela realidade do ser humano. Para Vattimo, horizontes capazes de se ampliar para acolher aquilo que é
é a metafísica mesma (a forjadora dos principais esquemas estrangeiro. Não são realidades fixas ou mumificadas, mas
culturais do pensamento ocidental) que é intrinsecamente realidades dinâmicas que vivem de trocas e de encontros
violenta por causa de sua ambição desmedida de captar a com formas distintas ou mesmo opostas de pensar e de agir.
realidade essencial das coisas e os primeiros princípios de Se aceitamos o mito da mônada cultural, é toda a relação
que tudo depende. Por conseguinte, o esclarecimento das com o outro que se torna problemática e incompreensível.
complexas relações entre violência e metafísica seria um Deveríamos então simplesmente esquecer a intensa refle-
dos principais problemas da filosofia contemporânea, como xão da filosofia contemporânea e das Ciências Humanas e
atestam as obras de Heidegger, Adorno, Levinas, Derrida e Sociais sobre o impacto de nossos pertencimentos culturais
René Girard. Apenas uma crítica radical da metafísica po- sobre nosso modo de interpretar e de compreender o mundo?
deria libertar-nos dessa violência metafísica, substituindo- De modo algum! Essa reflexão é um momento importante
a pela ética de um “pensamento frágil” fundado sobre um na tomada de consciência de que nossos pertencimentos
niilismo hermenêutico. a culturas dadas podem produzir uma incompreensão do
A meu ver, no entanto, há sérias razões para resistir à de- que é estrangeiro ao nosso horizonte cultural, que é sem-
núncia unilateral da “metafísica ocidental” e sobretudo ao pre um horizonte limitado. Ela se mostra particularmente
mito da mônada cultural que aprisiona cada ser humano em importante quando ela mesma faz vir à tona o conjunto de
esquemas culturais, entendendo-o como incapaz de conhe- preconceitos e pressupostos ligados à nossa época, à nossa
cer o mundo nele mesmo e de compreender o outro em sua sociedade e à nossa cultura, preconceitos e pressupostos es-
diferença. De saída, não há dúvida de que essa posição termi- ses que nos impedem de compreender os pensamentos, as
na em um forte relativismo que cai em graves contradições. obras ou as ações de pessoas que vivem em outros horizontes
Por exemplo, não é possível resistir a uma pergunta básica: históricos ou culturais. Mas, à medida que nossa tomada de
a posição que esses autores defendem é mais verdadeira do consciência de nossos preconceitos e pressupostos problemá-
que a de todos aqueles que pensam diferentemente? Se sim, ticos permite-nos (não sem esforço!) ir além desses mesmos
então essa posição é um conhecimento melhor do que as preconceitos e pressupostos, oferecendo novas possibilida-
outras formas de conhecimento da realidade; e, se é melhor, des de compreensão, nós reencontramos de certa maneira
então essa posição deve ser mais respeitada do que as outras, a concepção humanista segundo a qual a cultura é o que
o que pressupõe uma compreensão da alteridade das outras permite ultrapassar certos particularismos para entrar em
formas de conhecimento (mas compreender a alteridade não realidades mais amplas e mais vastas do que o mundinho
era uma forma de violência?). Se não é o caso de dizer que que nos é familiar.
essa posição é um conhecimento melhor, então por que ela
quer ser ouvida? E qual a importância de ouvi-la? VALLÉE, M.-A. Culture, appartenance et dialogue: trouver la
Além disso, a ideia de que somos prisioneiros de nossos juste articulation (Conferência). In: Simpósio Multiculturalismo
esquemas culturais parece ser negada todos os dias pela e Reconhecimento. São Paulo: Agência da Francofonia;
experiência cotidiana que se oferece a nós em diferentes Consulado da França; Bureau do Quebec; Unifesp; PUC,
níveis. Por exemplo, o aprendizado de línguas estrangeiras 2013. p. 7-11. [Cultura, pertencimento e diálogo: encontrar
e o trabalho de tradução mostram claramente que nós não a justa articulação. Gravação, transcrição e tradução nossa,
estamos fechados nos esquemas linguísticos de nossa língua com autorização do autor.]

Manual do Professor 481


SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS MIRANDA DE ALMEIDA, R. A fragmentação da Cultura e
o fim do sujeito. São Paulo: Loyola, 2014.
ALFIERI, F. Pessoa humana e singularidade em Edith Stein.
Tradução Clio Francesca Tricarico. São Paulo: Perspectiva, VIVEIROS DE CASTRO, E. Os pronomes
Acesse:
2014. cosmológicos e o perspectivismo ameríndio.
Mana, v. 2, n. 2, 1996. Disponível em: <http://
ALMEIDA, J. M. (Org.). Subjetividade, Filosofia e Cultura.
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi
São Paulo: Liber Ars, 2011.
d=S0104-93131996000200005>. Acesso em:
JONAS, H. A sacralidade da pessoa. Tradução Nélio Schneider. 18 abr. 2016.
São Paulo: Ed. da Unesp, 2012.
MERLEAU-PONTY, M. A Natureza. Tradução Álvaro Cabral.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.

Capítulo 10 Política e Poder

OBJETIVO
Estudar as duas maiores concepções da Política: a Política concepções às quais estamos mais habituados). Acentuando a
como atividade concebida em função do bem comum e como especificidade moderna que marca as visões políticas atuais,
prática cujo fim está nela mesma (sem, no entanto, afastar- o capítulo termina por fazer um estudo da democracia tal
se totalmente de algum ideal, como o de bem comum, nem como ela pode ser entendida em nossos dias, com suas van-
se tornar uma prática aética ou amoral). Esclarecer também tagens e mesmo com seus limites. Nesse quadro, desponta
que a noção de Política como fim em si relaciona-se direta- também a noção de cidadania, cujo sentido se manifesta
mente, na maioria das sociedades atuais, com as noções de com mais clareza justamente quando se pensa no porquê
Poder e de Estado, conduzindo à necessidade de enfatizar de, em nossos dias, dar-se a articulação entre Política, Poder
o papel da cidadania. e Estado de modo diferente do que ocorria no pensamento
antigo, patrístico e medieval.
O capítulo é também ocasião para que os professores,
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS caso considerem adequado, abordem as relações entre Ética
Partindo da noção de interesse e desvinculando-a de algu- e Política, explorando, por exemplo, a vinculação direta da
ma conotação necessariamente egoísta, o capítulo articula o Política com o Bem no pensamento antigo e a autonomia
tema do interesse pessoal pela Política com o sentido da pró- que a Política ganhou com relação à noção metafísica de
pria Política: “classicamente”, ela pode ser entendida como Bem na Modernidade. É possível remeter aos itens sobre
um serviço ao bem comum (Platão) e como um fim em si a Beleza, o Bem e a dialética, segundo Platão, tal como se
mesmo (Maquiavel). Por sua vez, concebê-la como fim em si aborda no Capítulo 5, e sobretudo à possibilidade de conside-
mesmo requer o esclarecimento da noção de Poder (alvo ou rar o Bem e o amor como temas contemporâneos, tal como
objeto da Política, principalmente a partir da Modernidade) estudado na apresentação do pensamento de Iris Murdoch,
e de Estado (forma mais comum na maioria das sociedades no Capítulo 7. Também é possível remeter à crítica dos
atuais, herdeiras do pensamento político moderno). fundamentos do pensamento platônico (e cristão), tal como
Para esclarecer a articulação entre Política, Poder e operada por Nietzsche e estudada nos Capítulos 6 e 12, o
Estado, o capítulo opera com uma distinção com o pensa- que requer a compreensão da Política em um registro mais
mento político antigo e medieval, para o qual fazia sentido próximo ao de Maquiavel ou mesmo em um registro total-
falar de governo, e não de Poder e de Estado (segundo as mente novo (e independente do Poder é institucionalizado).

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

serviço ao bem comum


(Platão)

CIDADANIA
POLÍTICA PODER – ESTADO E
DEMOCRACIA

fim em si mesmo
(Maquiavel)
interesse

482 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS Generalização apressada. Judeus, cristãos, muçulmanos e
EXERCÍCIO A (p. 248) budistas são apenas alguns entre inúmeros grupos religiosos,
1. Resuma em poucas linhas o texto de Tocqueville, iniciando e mesmo nesses nem todas as pessoas e segmentos religiosos
pela ideia central e dando em seguida as justificativas para são violentos.
ela. Você deverá, portanto, seguir a ordem inversa daquela (c) As infecções bacterianas podem ser tratadas com penicilina.
em que o texto foi redigido. Use duas conjunções em seu Generalização justificada. Mesmo sem ter experimenta-
resumo: porque e visto que. do todos os casos de infecções bacterianas possíveis, os casos
Para fazer que os cidadãos se interessem pelo bem geral do estudados não dão margens para duvidar por princípio dessa
Estado é preciso envolvê-los com o cuidado dos assuntos mais afirmação. Trata-se de uma indução.
imediatos de sua região, porque eles só percebem o quanto (d) Ser brasileiro é amar futebol.
esses assuntos gerais têm relação direta com as suas vidas par- Generalização apressada. Não é porque muitos brasileiros
ticulares quando afetam seus interesses privados, visto que o amam futebol que é possível identificar esse amor como es-
cuidado dos assuntos regionais leva os cidadãos a estabelecerem sência do ser brasileiro.
vínculos mais duradouros ao serem forçados a se conhecer e a (e) Se sempre preveni a gripe na minha família com vitamina C,
se habituar uns com os outros. creio que todos deveriam fazer o mesmo.
Generalização justificada. Apesar de os casos verificados
2. Pesquise e indique pelo menos duas organizações em seu serem poucos e de não garantirem necessariamente a verdade
bairro que trabalham pelos interesses locais. da conclusão, não há porque duvidar da sua probabilidade.
Resposta pessoal. Trata-se de uma indução.
(f) Visto que todo ser humano é mortal e que todo ser mortal
3. Pesquise se sua escola tem um Grêmio Estudantil. Se precisa alimentar-se para sobreviver, então todo ser humano
tem, reflita se você está a par das atividades do Grêmio. precisa de alimento.
Se você nunca se inteirou sobre ele, pense no porquê de Generalização justificada. Trata-se de uma dedução, na qual
seu desinteresse. Caso sua escola não tenha um Grêmio a conclusão é extraída adequadamente das premissas anterio-
Estudantil, que tal começar um? No site res. Se o silogismo for válido e as premissas forem verdadeiras,
Mundo Jovem, mantido pela PUC-RS, você Acesse:
a conclusão é necessariamente verdadeira.
pode encontrar todas as informações neces-
sárias para sua criação: <http://www.mun EXERCÍCIO C (p. 256)
dojovem.com.br/gremio-estudantil>. (Acesso 1. Descreva a originalidade da concepção maquiaveliana
em: 13 de jan. de 2016.) de Política em relação à posição platônica.
Resposta pessoal. Maquiavel partiu da análise da política do ponto de vista
histórico, tanto no que diz respeito à participação dos cidadãos
EXERCÍCIO B (p. 252) nas decisões políticas quanto no que diz respeito à relação en-
1. Explique a concepção platônica da Política como meio. tre governantes e governados. Ele não parte de um ideal de
Para Platão, a Política é um meio ou um serviço para atin- sociedade (justa e boa, como fez Platão), mas pensa que são as
gir o bem comum e o interesse geral da cidade. Esse serviço circunstâncias históricas que determinam que tipo de política
é exercido pelo cidadão que serve às leis justas, resultado da e sociedade são possíveis.
participação dos cidadãos que vivem sob essas leis. Desse modo,
quem age apenas visando ao bem próprio não é um bom cida- 2. Qual o fundamento da afirmação maquiaveliana segun-
dão, porque não age tendo em vista o interesse da cidade. Para do a qual é legítimo que o governante faça aquilo que é
que a cidade alcance seu bem, é preciso que os seus governan- considerado mau?
tes sejam seguidores exemplares das leis justas estabelecidas O fundamento dessa afirmação é a conservação do poder
pela cidade e que o governo não seja dado a quem tem mais e a defesa da unidade e da integridade do corpo social. Para
poder. O poder, portanto, não deve ser objeto de disputa, pois Maquiavel, como os seres humanos são pérfidos e capazes de
vencerá o mais forte e não aquele realmente comprometido trapacear, enganar e mentir, o Príncipe não tem a obrigação
com o bem comum da cidade. de ser bom, leal e justo o tempo todo.

2. Identifique, nos raciocínios abaixo, os casos de genera- 3. Maquiavel pensava que os fins justificam os meios?
lização apressada e os casos de generalização justificada. Explique.
Explique o porquê de suas respostas: Não exatamente. Ele pensava apenas que, se não houver
(a) Quando viajei para o Rio Grande do Sul, vi muitas churras- outro recurso legal, por meio dos tribunais e das leis, o gover-
carias. É porque todos os gaúchos comem muita carne. nante deve fazer o que for necessário para manter o poder e
Generalização apressada. O fato de haver muitas chur- defender a unidade social.
rascarias em uma região não significa que toda a população
come muita carne. EXERCÍCIO D (p. 258)
(b) Toda religião é violenta, porque judeus, cristãos, muçulma- 1. Comente a diferença entre Platão e Maquiavel no tocante
nos e até budistas praticam guerras religiosas. à concepção de Poder.

Manual do Professor 483


Em Platão, o Poder está diretamente relacionado ao Bem. dadas na página 138, elaborem uma dissertação de síntese filo-
Ele existe em referência ao Bem Comum e é garantido pela sófica que acompanhe o movimento do próprio capítulo e se
competência do governante em exercê-lo, bem como pela ne- estruture em três momentos principais: (1) introdução: apre-
cessidade de os cidadãos serem representados. Desse modo, o sentação geral da possibilidade de entender a Política como
Poder pode até deixar de ser essencial caso os cidadãos sejam meio e como fim; (2) desenvolvimento: apresentação das razões
bons e justos. Em Maquiavel, o Poder não está mais neces- que levam a conceber a Política como meio (caso em que o
sariamente relacionado ao Bem, nem mesmo à competência pensamento platônico é tomado como exemplo por vincular a
ou à representação. Ele passa a ser entendido como algo in- Política ao serviço do bem comum) e como fim (caso em que o
dispensável para a organização social, ganhando importância pensamento maquiaveliano é tomado como exemplo por vin-
por si mesmo. cular a Política ao Poder); (3) conclusão: retomada do sentido da
estrutura da dissertação, lembrando que as duas possibilidades
2. Reconstrua resumidamente a visão de Thomas Hobbes de concepção (meio e fim) dirigem o modo como concebemos
sobre o Poder, usando as expressões guerra de todos contra a Política, embora, no mundo atual, prevaleça a ideia de Poder
todos, pacto social e Leviatã. e a concepção da Política como fim em si mesmo. Para que
Para Hobbes, se os humanos voltassem a viver em estado de a dissertação seja completa, a conclusão pode lembrar (como
natureza, ou seja, sem a estrutura social do poder do Estado, uma conclusão “aberta” ou “suspensiva”) que a concepção
vivendo apenas a partir de seus instintos, seria instaurada uma da Política como fim em si mesmo deixa a possibilidade de
guerra de todos contra todos, já que, além do desejo de liber- associar-se com a concepção da Política como meio, uma vez
dade, os seres humanos possuem o desejo natural de possuir que o fim, sendo a manutenção do Poder, não se dissocia de
e dominar os outros. Para Hobbes, é preciso que os humanos objetivos (como o bem de todos, a conservação da autonomia
de um mesmo grupo fundem um pacto social, limitando sua de um Estado etc.), que, no limite, se apresentam como fins.
liberdade e aceitando um controle externo. Esse controle é
exercido pelo poder de um soberano que encarna em si a 2. Pesquisa
“pessoa” do Estado. A esse Estado, Hobbes chama de Leviatã Além de promover um conhecimento mais consistente da
ou Grande Leviatã, em referência a um monstro mitológico estrutura dos três poderes no Brasil (em âmbito municipal,
que causa medo e terror, capaz de exercer a força para con- estadual e federal), a pesquisa visa considerar a composição e
trolar os seus súditos. o funcionamento dessas instituições com base na perspectiva
representativa apresentada no capítulo. Cabe refletir também:
3. O que é o Estado de Direito? em que medida o modelo atual de organização do Poder é
É um sistema institucional que visa limitar o poder do adequado às necessidades e às expectativas da democracia?
Estado para que ele não prejudique os cidadãos e para que É desse debate que surge o sentido de refletir sobre a neces-
os ocupantes do Poder não façam tudo o que quiserem. No sidade de reforma política, tal como defendida por setores da
Estado de Direito, tanto os cidadãos como o poder público população brasileira.
devem respeitar as mesmas leis.

EXERCÍCIO E (p. 259) TEXTO COMPLEMENTAR


1. O que é cidadania? Ela diz respeito a você diretamente? Há muitos elementos que dificultam a vida democrática,
É a participação ativa nos rumos políticos da comunidade, sobretudo a espetacularização da vida política. Com efeito,
interferindo na construção do sentido que se dá à vida em socie- diferentes pensadores têm chamado a atenção para o modo
dade. Ela diz respeito a todos os cidadãos, na medida em que como os meios de comunicação transformaram a atividade
todos têm igual responsabilidade pela criação da vida social. política em show. Michel Foucault, por exemplo, desenvolveu
estudos sobre a imagem que os ocupantes do Poder precisam
2. Por que a divisão em três Poderes é vista como uma forma transmitir a fim de justificar suas ações e sua permanência
de preservar o Estado de Direito? nele. Todo governante é uma pessoa que simboliza o Poder;
Porque cada poder desenvolve uma função específica e portanto, sua imagem vai além daquela de um simples ser
serve para controlar e fiscalizar os outros dois. humano; trata-se de alguém que é investido de uma função de
líder, cabeça ou guia. Hoje, essa simbologia é explorada como
3. Qual a crítica de Althusser à democracia representativa? nunca. É o que explica o pensador Régis Debray ao analisar
Para Althusser, a democracia representativa pode criar a técnicas usadas pelos meios de comunicação, principalmente
sensação de que o povo realmente participa do poder, prin- a televisão, nas estratégias de promoção e de destruição de
cipalmente por escolher seus representantes pelo voto, mas representantes políticos: o volume do microfone, a acústica
inviabiliza as revoltas populares e a expressão direta do inte- da sala, o fundo do lugar em que os políticos aparecem (em
resse público. uma entrevista, por exemplo), atraso no horário do programa
etc. Por exemplo, quando se quer passar a imagem de que
EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 260) um representante político é inteligente, colocam-se livros
1. Dissertação de síntese filosófica atrás dele; quando se quer irritar a população, basta fazer que
Espera-se que os estudantes, tomando por base as orientações o microfone falhe algumas vezes, o que levará as pessoas a

484 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


inconscientemente associar aquele representante com “pro- [...] O midiólogo não crê nos atores políticos com base
blema”, “dificuldade” e assim por diante. No livro Manifestos nas palavras deles, pois os discursos dos estadistas interessam
midiológicos, Debray (1999) chega a propor a criação de uma menos do que a panóplia que eles produzem: acústica da
nova área científica, a Midiologia, que seria responsável por sala, presença ou ausência de imagem, microfone de mesa
estudar como as técnicas de comunicação interferem na per- ou de lapela, postura, atraso na transmissão etc. Por trás da
cepção geral e na maneira de ver a realidade e de avaliá-la. ordem aparente dos valores, o midiólogo procura a ordem
O texto seguinte é extraído de seu livro L’État séducteur (O oculta dos vetores [instrumentos de difusão da informação],
Estado sedutor), ainda não traduzido em português: pois a segunda ordem ensina mais coisas sobre a primeira do
que vice-versa. Na personagem política, o midiólogo consi-
A tecnologia e o exercício do Poder dera, acima de tudo, a aparelhagem coletiva personificada.
Régis Debray
DEBRAY, R. L’État séducteur. Paris: Gallimard, 1997. p.
Em todo Príncipe [responsável político] há uma pessoa
12-12. (O Estado sedutor. Tradução nossa.)
feita de sinais. A função necessariamente simbólica do res-
ponsável político corresponde à função necessariamente
política de produtor de símbolos. Quem transmite sinais
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
acaba misturando-se com a atividade de governar; e quem
governa se mistura com transmissões. Assim como lugares ARENDT, H. Entre o passado e futuro. Tradução Mauro W.
e procedimentos da atividade intelectual deslocaram-se Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1972.
ao longo dos séculos com a evolução dos suportes e dos DEBRAY, R. Manifestos midiológicos. Tradução João de Freitas
transmissores de ideias, assim também fazem os métodos Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1999.
da ação pública e as formas do Estado. A vida política de FOUCAULT, M. Em defesa da Sociedade. Tradução Maria
uma sociedade pode ser interpretada como a dramatização Ermantina A. P. Galvão. São Paulo: WMF Martins Fontes,
de suas técnicas. 2010.

Capítulo 11 A prática ética

OBJETIVO
Apresentar a possibilidade de compreender filosoficamente Faria sentido ainda apontar para polos como o bem ou
a prática ética como uma realização de atos e uma criação de algo que magnetiza todas as ações (ao modo do que George
hábitos, repondo o tema da cidadania nos termos da tensão Edward Moore ou Iris Murdoch afirmavam, tal como vimos
entre o ser individual e o ser social, e apontando para o modo nos Capítulos 2 e 7)? Ou para o campo dos valores como
como cada indivíduo, em relação com outros indivíduos e constructo histórico-social (ao modo de Hegel, como se in-
grupos sociais, constrói o sentido de sua própria existência. dica no item 3 do presente capítulo)? Seja como for, ambas
opções requerem que se esclareça o papel das possibilida-
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS des humanas na determinação do sentido da prática ética,
Concretizada na frase do Profeta Gentileza: Gentileza gera sobretudo o papel da razão ou da capacidade de autorrefle-
gentileza, a temática da possibilidade de despertar nos outros xão, em conjunto com a capacidade da autodeterminação
indivíduos atos que geram hábitos é o fio condutor do capítulo. ou da escolha (a vontade). Nesse conjunto, é indispensável
A dinâmica ato/hábito, tematizada desde os gregos (eminen- dedicar atenção às paixões, a fim de não se propor uma vi-
temente Aristóteles), parece ser um elemento que reaparece na são cindida e dualista do ser humano, como se a dimensão
reflexão ética da maioria dos filósofos. Por analogia com o que espiritual (razão e liberdade) e a dimensão passional não
se costuma supor quando se afirma que, diferentemente da estabelecessem intercâmbios mutuamente.
metafísica, a ética de Aristóteles perdurou durante os séculos Com essa preocupação, o capítulo parte dos fundamen-
e guarda atualidade ainda hoje, assim também parece possível tos antigos e medievais da concepção do ato e do hábito
que a dinâmica ato/hábito pôde e pode ser “assimilada” pelas (virtude/vício) e passa a dois modelos clássicos de pensar
mais diversas filosofias. Por exemplo, ela combina satisfato- a vinculação entre ética, razão e paixão (Kant e Hume,
riamente mesmo as filosofias que não se comprometem com que não são necessariamente opostos), a fim de introduzir
a concepção de um sujeito (seja cognoscente, seja ético). No a análise hegeliana do inquestionável papel da influência
entanto, especificamente sobre essa dinâmica articula-se um social sobre a prática ética. Dado esse quadro, o capítulo se
debate, digamos, “metafísico”, concernente ao que determina dirige a um debate sempre mais delicado: o da relação entre
ou ao que dá sentido aos atos e hábitos. Em outras palavras, e as instituições sociais e a liberdade individual, algo que se
dito de maneira bastante geral, trata-se de saber como nascem deixa melhor esclarecer por meio das noções de cidadania
os valores que orientam a prática ética. e de direitos humanos.

Manual do Professor 485


PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

Os atos humanos podem tornar-se hábitos individuais e sociais?

Aristóteles Kant Hume Desafios contemporâneos

ato hábito dever paixão razão descompasso Estado/indivíduo

vício virtude imperativo perda da individualidade


categórico simpatia comparação

mediedade reforço das “identidades”


prudência
propostas (Étienne Balibar)

cosmopolítica cidadania em rede

universal – particular

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 268)
1. Por que, segundo Aristóteles, o termo prática só pode ser 4. Em relação à virtude moral, o meio-termo é aritmético?
usado para referir-se a seres humanos? Explique.
Porque a ação prática supõe atividade, decisão, reflexão e esco- Não. O meio-termo de uma ação não pode ser medido e
lha. Nesse sentido, a ação humana é distinta da reação instintiva calculado com uma espécie de “régua” para todas as pessoas e
dos outros animais. circunstâncias. Aristóteles fala do meio-termo relativo a nós, ou
seja, de acordo com as circunstâncias e com as peculiaridades
2. Usando o termo hábito, explique o que é uma virtude e um do agente. O meio-termo deve ser encontrado por cada um e
vício de acordo com o pensamento de Aristóteles. em cada circunstância.
A virtude e o vício, segundo Aristóteles, dizem respeito às dis-
posições, ou seja, à maneira como vivemos nossas ações e nossas 5. Qual o sentido da virtude da prudência?
paixões, tendo em vista o meio-termo. Essas disposições tornam-se Trata-se do hábito de agir bem em tudo o que é bom ou mau
hábitos que tendem a repetir-se diante das mesmas condições e para o ser humano. Agir bem, segundo Aristóteles, corresponde
circunstâncias. Os hábitos que tendem a encontrar o meio-termo a agir de acordo com o meio-termo. Nesse sentido, a prudência
entre o excesso e a falta são virtuosos; e os hábitos que erram a é a virtude do discernimento de procurar sempre a mediedade.
mediania e tendem a encontrar o excesso ou a falta são viciosos. Por esse motivo, Tomás de Aquino considerou a prudência como
a virtude principal, responsável por todas as outras virtudes.
3. Com base no exemplo das reações causadas pela presença de
uma ameaça e a emoção de medo, analise as possíveis reações 6. Comente as representações da prudência de Martino di
causadas pela presença de algo positivo e a emoção da alegria. Bartolomeo e de Ticiano, tomando por base as contribuições
A reação de alegria causada pela presença de algo positi- filosóficas e artísticas medievais.
vo pode ser vivida de maneira adequada ou inadequada. A Tomás de Aquino, em continuidade com Cícero, dizia que
reação é adequada quando ela é proporcional à experiência o aprendizado da prudência exige o desenvolvimento de ou-
vivida; e ela é inadequada quando é excessiva ou é faltosa e, tras capacidades, como a memória (atenção para o passado), a
portanto, desproporcional à causa da alegria. Se ela é exces- docilidade (capacidade de aprender com pessoas experientes),
siva, pode levar a pessoa a viver com muito contentamento, e a providência (atenção para as consequências das ações no
uma situação que pode causar frustração; e se ela é faltosa, futuro). Artistas medievais, entre eles Martino de Bartolomeo,
simplesmente pode levá-la a não aproveitar e a não desfrutar passaram a representar a prudência como uma mulher com três
devidamente da situação. cabeças ou três olhares: um olhar voltado para o passado, um

486 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


para o presente e outro para o futuro. O pintor Ticiano fez uma 2. Quais são as duas tendências fundamentais do ser humano
releitura dessa tradição, acrescentando o jovem (representação em matéria de moral segundo Hume?
do olhar para o futuro), o adulto (representação do olhar para o A simpatia e a comparação. A simpatia é abertura e identifica-
presente) e o velho (representação do olhar para o passado), além ção que permite que o ser humano seja influenciado pelas paixões
de figuras alegóricas de animais como o leão (símbolo da força), dos outros; e a comparação é o processo inverso, em que há um
o cachorro (símbolo da necessária docilidade para aprender) e o fechamento para o outro, mantendo um distanciamento e avalian-
lobo (representação da necessária solidão para refletir em paz). do o outro com base em si mesmo e em sua própria experiência.

EXERCÍCIO B (p. 271) 3. Por que se pode dizer que Hegel vincula a Ética e a Política?
1. Apresente o pensamento moral de Kant com base em seu Porque para Hegel os valores morais devem ser fundamenta-
projeto de uma filosofia crítica. dos em instituições sociais, em práticas socialmente construídas,
Kant, antes de propor uma interpretação da realidade, bus- uma vez que mesmo o significado desses valores são construções
cou analisar nossas reais possibilidades de conhecimento. Por históricas e sociais.
essa razão, seu pensamento ficou conhecido como filosofia
crítica. No que diz respeito ao tema da moral, Kant observou EXERCÍCIO D (p. 276)
que não é possível conhecer os objetos da moral como conhe- 1. Comente o descompasso que pode haver entre as ações dos
cemos realidades físicas e matemáticas. O Bem não é algo que Estados e os desejos dos indivíduos.
possa ser conhecido e definido racionalmente. Por isso, ele não Os governos podem reforçar seu poder em nome da defesa
é um critério claro e comum que possa orientar a ação de todos. de seus membros mesmo quando agem na contramão dos an-
Fazia-se necessário formular um princípio ou uma lei que fosse seios de muitos de seus próprios membros. É o caso que ocorre
compreensível por todos e orientasse a ação em todas as circuns- atualmente, quando, a despeito da grande diversidade cultural
tâncias. A estratégia de Kant foi discutir se é possível encontrar, proporcionada pela globalização e pelas mídias virtuais, muitos
pelo entendimento, um princípio a priori, ou seja, anterior às países reforçam suas definições territoriais e o controle sobre
experiências e às situações específicas. Desse esforço surgiu o suas fronteiras, caminhando na contramão das tendências e
imperativo categórico kantiano: “Você deve agir somente se- dos interesses dos indivíduos cada vez mais “globalizados”. No
gundo uma máxima que lhe permita também querer que a sua século XX, a filósofa Hannah Arendt apontou também para
própria máxima seja tomada como lei universal”. as práticas autoritárias de Estados que exploraram a crença de
seus cidadãos em seu poder (caso da Alemanha e o nazismo,
2. Por que o imperativo categórico kantiano precisa ser a priori? da Rússia e o stalinismo etc.).
Como as ações dependem sempre das circunstâncias, seria
preciso encontrar um princípio necessário que não dependesse 2. O que significa a cosmopolítica defendida por Étienne
das circunstâncias e valesse para todas elas; um princípio, portanto, Balibar?
a priori, anterior à experiência e às circunstâncias. É uma prática em que os governos e as instituições contri-
buem para que a cidadania de seus cidadãos não seja orientada
3. Considere o pagamento na mesma moeda, de que trata Kant por uma identidade dada pela Natureza, pelo território ou por
no final de seu texto, e explique a incoerência da falsa promessa costumes ancestrais, mas pela possibilidade de criação dessa
em momentos de apuro. mesma cidadania a partir da contribuição e da interação com
O pagamento na mesma moeda permite a Kant mostrar que outros povos e culturas, ampliando os horizontes dos cidadãos
uma falsa promessa ou uma mentira, mesmo quando são apa- para a superação dos limites dos territórios, das culturas e das
rentemente “boas”, não são justificadas, pois levam a pensar que fronteiras, unindo o que há de universal na Humanidade com
há situações falsas e mentirosas que podem ser boas e, portanto, os anseios dos indivíduos.
acionadas por qualquer pessoa. Assim, como eu mesmo posso
decidir fazer uma promessa e mentir, qualquer outra pessoa pode 3. Como entender a cidadania em rede?
fazer o mesmo. Qualquer pessoa poderia me “pagar na mesma A cidadania em rede diz respeito à possibilidade de mesclar
moeda”, o que não me agradará nem do ponto de vista de mi- identidades e de dar sentido à própria existência e à existência de
nhas expectativas particulares, nem do ponto de vista do que seu grupo social a partir da contribuição de outras culturas e do
espero que seja o comportamento de todos em relação a mim. diálogo com outros grupos sociais. Isso não significa que o indi-
A minha máxima de ação (a justificativa de “boas” mentiras víduo simplesmente escolhe sua identidade, pois todo indivíduo
ou de “boas” falsas promessas) destruiria a si mesma, portanto. é devedor das construções sociais nas quais nasce e cresce, mas
que essa construção pode ser ampliada para além dos limites do
EXERCÍCIO C (p. 274) território e da cultura local.
1. Por que, segundo Hume, não é adequado enfatizar a ra-
cionalidade como característica do ser humano visto como 4. O que pretende a Declaração Universal dos Direitos Humanos?
agente moral? A Declaração Universal dos Direitos Humanos pretende garantir
Segundo Hume, não é a razão que leva os seres humanos a direitos mínimos para todos os indivíduos de todos os lugares do
agir, mas as emoções. Para ele, o entendimento humano não é mundo, a partir da tentativa de alcançar uma visão sobre o que
capaz de controlar as emoções. é bom para o ser humano em geral. Entre esses direitos estão o

Manual do Professor 487


direito à vida, à segurança, à liberdade, ao julgamento público, à Por fim, com base nas sensações e na reflexão despertadas pela
liberdade de pensamento etc. pintura e pela música, é bastante oportuno dedicar atenção ao
tema da universalidade das paixões, para além de toda fronteira
5. Em que reside a incoerência de quem é contrário aos direi- cultural. Se na Europa do séc. XVII a vivência das paixões era
tos humanos? “formatada” por elementos culturais daquela região, em outras
Ser contrário aos direitos humanos é uma prática contraditória regiões elas eram vivenciadas de outras maneiras, embora com o
porque a pessoa que se declarar contrária a eles desejará certa- mesmo sentido ou conteúdo. Para esse exercício, é um excelente
mente que eles sejam aplicados caso ela ou alguém de sua famí- recurso o texto da entrevista de Eduardo Viveiros de Castro, in-
lia cometa, por exemplo, algum erro e seja processada na Justiça dicado ao final da atividade.
(desejará que não haja tortura, desejará que haja respeito etc.).

EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 277) PROPOSTA DE ATIVIDADE COMPLEMENTAR


Embora o conceito de cidadania, em seu uso técnico, apare-
1. Dissertação argumentativa ça em contexto político, ele também é empregado, muitas vezes,
Espera-se que os estudantes, tomando por base as orientações em relação à prática ética. No vocabulário cotidiano, falar em
dadas nas páginas 280-281, elaborem uma dissertação argumen- cidadania pode corresponder a respeito de direitos ou a respeito
tativa para responder à pergunta: “As paixões podem impedir os humano pura e simplesmente. A fim de iniciar essa “reivindica-
seres humanos de serem éticos?”. O próprio modelo oferecido ção ou urgência ética” sentida em nossas sociedades atuais e de
na página 281 funciona, aqui, como padrão de resposta a este articular o sentido ético com o político, os professores podem
exercício, pois, enquanto no modelo se faz a mesma pergunta em programar uma aula em vídeo, apresentando a entrevista abaixo
relação aos políticos, aqui a pergunta é feita em relação aos seres aos estudantes. Na aula seguinte, podem abrir um debate:
humanos em geral. Não se trata de solicitar que os estudantes re-
produzam aquele modelo com pequenas modificações. Ideal seria “A construção do conceito de cidadania”, entrevista com Maria
que eles encontrassem seus próprios caminhos argumentativos, das Graças de Souza, professora de Ética e Filosofia Política, TV
apenas inspirando-se nas orientações em 5 passos: (1) reflexão Univesp, 2008. Acesse:
sobre o tema e concepção de um modo geral de apresentá-lo; (2)
elaboração de um esquema; (3) composição de um parágrafo de A Parte 1 está disponível em: <https://www.
apresentação; (4) composição de um ou mais parágrafos com as youtube.com/watch?v=zNxlHZSAerw>. Acesso
razões que justificam a posição adotada; (5) composição de um em: 2 maio 2016.
parágrafo de conclusão.
A Parte 2 está disponível em: <https://www. Acesse:

2. Atividade em grupos youtube.com/watch?v=kszNS4731EE>. Acesso


Espera-se que os estudantes analisem a Declaração Universal em: 2 maio 2016.
dos Direitos Humanos, tomando como base as diferentes perspec-
tivas apresentadas no capítulo. Espera-se também que se discuta Questões para análise e debate:
as relações que podem ser estabelecidas entre esse documento e 1) Se o conceito de cidadania nasce do conceito romano antigo
os conceitos estudados, com ênfase para a dinâmica da prática de cidade (ciuitas), em que sentido se falava de cidade?
de atos e criação de hábitos, para a noção de cidadania e para a 2) A cidadania dependia de um território no pensamento
tentativa de garantia de direitos mínimos para todo ser humano político antigo?
no contexto em que a definição objetiva do bem comum é sujeita 3) Quais aspectos são acentuados na Modernidade para com-
a incertezas e contestações. preender o conceito de cidadania?
4) Há dificuldades em relacionar democracia e cidadania?
3. Visita virtual: Expressão das paixões no século XVII Justifique.
Empregando recursos de multimídia, a proposta do exercício 5) Levante algumas características da compreensão atual da
é levar a uma experiência parecida àquela proporcionada pela cidadania.
Cité de la Musique (Paris), que, por sua vez, procurou levar seus
visitantes a viver algo semelhante ao que se vivia no séc. XVII: a
sensação e a reflexão sobre as paixões por meio da pintura e da
música. Antes de todo trabalho reflexivo, sugere-se que os estu- SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
dantes sejam incentivados a desfrutar da observação dos quadros e ÉTICA. São Paulo: TV Cultura, 2003. Série Acesse:
da concomitante audição de peças musicais do séc. XVII. Apenas televisiva. Links para os episódios:
num segundo momento convém dedicar-se ao trabalho de “síntese” A arte do viver: <http://tvcultura.
reflexiva, enfatizando sobretudo a passagem das representações Acesse:
com.br/videos/8485_etica-a-arte-
pictóricas e sonoras da Paixão de Cristo às paixões humanas. O fio do-viver.html>;
condutor é a experiência passional: o “ser tomado” ou “invadido”
pelas paixões; o “sofrer” ações ou reações cuja origem não depen- O drama burguês: <http://tvcultura.com.br/
de de nós, embora possamos interferir no modo de vivenciá-las. videos/8487_etica-o-drama-burgues.html>;

488 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


A culpa dos reis: <http://tvcultura.com.br/ Acesse:
LEOPOLDO E SILVA, F. A ética pós-moderna. Acesse:
videos/8486_etica-a-culpa-dos-reis.html> (Acesso Campinas: Fundação CPFL Cultura, 2013.
em: 18 abr. 2016). Conferência televisiva. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=1lBjle0JnAk>. Acesso:
Acesse:
JORNALISMO e ética. São Paulo: 18 abr. 2016.
TV Cultura, 2011. Reportagem.
Disponível em: <http://tvcultura.com.br/ SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e
videos/132_jornalismo-e-etica-vitrine-06-09-2011. fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
html>. Acesso em: 18 abr. 2016.
SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, T. (Org.). Filosofia, Sociedade e
Direitos Humanos. São Paulo: Manole, 2012.

Capítulo 12 Experiência estética e experiência artística


OBJETIVO
Por meio de uma sucinta história filosófica da noção de be- autonomia com relação a ela. Nesse quadro, o capítulo chama a
leza, refletir sobre diferentes maneiras de compreender a arte, atenção também para duas “atitudes estéticas” bastante instigantes
tendo em vista, sobretudo, as diversas concepções históricas da de uma perspectiva filosófica: a vivência contemporânea de certo
relação entre arte e beleza. distanciamento com relação às “artes eruditas” ou às institucio-
nalizadas (dada a sua “dificuldade” ou “incompreensibilidade”)
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS e a tendência, da parte de muitos dos próprios filósofos, a teorizar
A estratégia central do capítulo reside em sensibilizar os es- sobre a arte, distanciando-se do real élan que leva à prática ar-
tudantes para a experiência estética como algo constituinte da tística. A fim de refletir sobre essas duas atitudes, propõe-se um
experiência humana universal. Adota-se metodologicamente a estudo da noção de contexto ou de mundo da arte e um exercício
distinção entre experiência estética e experiência artística, para, de escuta do que os artistas (e não os teóricos, sejam eles filósofos,
ao longo do capítulo, relativizá-la e propor uma concepção de críticos, sociólogos e outros) têm a dizer sobre o fazer artístico.
arte como algo “dado a todos”, a despeito das mais diferentes Uma reflexão que se debruça de maneira atual e intensa sobre
formas de institucionalização da arte, tomadas, muitas vezes, essas atitudes vem de Georges Didi-Huberman, que une trabalho
como mediações necessárias entre as pessoas e a arte. teórico (filosófico e histórico), experiência artística e busca por
O capítulo apresenta resumidamente, então, uma história fi- uma reeducação da experiência de ver. Os colegas professores
losófica de algumas das mais influentes concepções de beleza, poderão, se considerarem conveniente, complementar o estudo
procurando mostrar como a arte foi concebida em função da do capítulo com a entrevista de Didi-Huberman à revista Les
beleza até ser entendida como sua produtora, para obter enfim Inrockuptibles ( p. 492).

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL


Separação (as artes podem não ser belas)

Beleza: fonte das coisas belas


Platão – Patrística – Idade Média

ARTE E BELEZA Suspeita – exceção de Plotino


imitar a vida não pode ser ambivalência medieval
“parar o tempo” definida
(Platão)

Renascimento

Associação (Belas Artes) e Separação

Arte Moderna

experiências Beleza: Artes:


universais produção das artes independente da beleza

aprendizado
e contexto

Manual do Professor 489


RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS
EXERCÍCIO A (p. 287)
1. O que significa, segundo Aristóteles, imitar a vida ou a Recuperando elementos platônicos e aristotélicos, Plotino
Natureza? Por que os seres humanos praticam essa imitação? dá um estatuto mais positivo à arte. Para ele, a arte como imi-
Imitar a vida ou a Natureza significa, para Aristóteles, agir tação é uma ocasião para chegar ao conhecimento das Ideias
como a Natureza age, produzindo assim como a vida produz ou Essências, comungando da unidade do mundo. O desejo
(donde sua concepção da arte como imitação da vida). Os se- humano pela beleza e pela unidade pode ser acionado por meio
res humanos praticam essa imitação porque têm prazer em da arte, levando à aproximação com a fonte de todas as coisas.
conhecer e em reproduzir aquilo que conhecem.
4. Justifique a associação patrístico-medieval entre a be-
2. Tomando por base a metáfora do embalsamento, apre- leza e Deus.
sente a visão de André Bazin sobre a arte. Se Deus existe e é a fonte de todas as coisas, então, para
Para André Bazin, a atividade do artista de imitar a Natureza ser entendido realmente como ser divino, ele deve ser pensa-
busca “parar o tempo”, escapar do fluxo constante da correnteza do como o ser que é bom e belo em máximo grau. Ele passa
da vida e gravar para sempre o momento que passa, seja por a ser visto como o próprio bem e a própria beleza. Por essa
meio da imagem, do som ou do toque, como uma tentativa de razão, todas as coisas no mundo são belas como um reflexo
“embalsamar” a vida, assim como os antigos egípcios faziam de seu criador, já que foram criadas harmonicamente por ele.
com os corpos de seus mortos. No entanto, para Bazin, essa
imitação nunca é uma simples reprodução ou uma réplica 5. Comente o modo como o pensamento medieval desenvol-
idêntica à sua fonte, pois o artista sempre a apreende de modo veu a suspeita platônica lançada sobre a criação artística.
particular e a partir de seu próprio ponto de vista. Para os pensadores do período medieval, a fixação da
atenção nas coisas belas e no trabalho dos artistas poderia
3. Como Nietzsche permite superar a ideia de que a arte é desviar a atenção das pessoas da fonte da beleza, provocando
algo reservado a poucos? um afastamento de Deus. Nesse sentido, a arte só será boa se
Nietzsche via como absurda a concepção que entende a apontar para uma superação de si mesma, levando a atenção
capacidade artística como algo fora do comum, reservada a humana a fixar-se em Deus.
poucas pessoas com gênio artístico elevado (seres miracu-
losos, ou com um dom especial impossível de ser imitado). 6. O que significa afirmar que tanto para o pensamento
Para ele, que não via o fazer artístico como algo distinto dos antigo como para o patrístico-medieval a beleza era sepa-
demais saberes e fazeres, essa concepção mantém as pessoas rada da arte?
acomodadas, longe da esfera da arte, sem sentir “inveja” dos Para o pensamento antigo e medieval, a beleza está rela-
grandes artistas e sem se deixar levar pelo impulso artístico cionada a certa estrutura essencial do mundo, superando as
característico de nossa humanidade. coisas belas e as próprias produções artísticas. Dessa pers-
pectiva, a beleza existe por si e não depende da arte; ela está
EXERCÍCIO B (p. 297) relacionada ao bem. A arte vincula-se, assim, à ação humana
1. Apresente a concepção platônica da beleza, explicando e ao modo de ser das coisas; já a beleza dá o modo de ser das
por que, segundo Platão, a beleza não pode ser definida. coisas, sem ser um resultado da arte.
Para Platão, a beleza não se reduz às coisas belas. Estas
últimas nascem e perecem, transformam-se e desaparecem, 7. Qual a grande mudança operada pelo Renascimento
sem, no entanto, que a beleza desapareça do mundo e sem com relação ao pensamento anterior sobre a beleza e a arte?
que a sua essência deixe de existir ou se transforme. Dessa A beleza passa a ser vista como produção da arte. A ideia
maneira, a beleza não pode ser definida a partir das coisas de Natureza comparada a um grande mecanismo que segue
belas; ela é uma Forma, uma Ideia, uma regra invisível e determinadas leis possibilitou um enorme desenvolvimento
indefinível que estrutura o mundo a partir de dentro. Só é técnico no Renascimento, fecundando uma abordagem que
possível apontar para ela de modo inteligível, tomando por enfatizava o aspecto produtivo da beleza. Antigos métodos
base as coisas belas. gregos são redescobertos e desenvolvidos; e a temática religio-
sa deixa de ter a centralidade que tinha no período anterior.
2. A suspeita lançada por Platão sobre os artistas significava Pouco a pouco, a beleza vai sendo associada apenas ao fazer
que ele era contrário à arte? Explique. artístico e ao prazer dos sentidos, sem mais relação com a
Não. Platão não era contrário à arte, mas via com descon- prática ética e o modo de ser das coisas.
fiança a arte que não levava seus espectadores a olhar para além
da manifestação sensível da beleza ou a arte que aprisiona seus 8. Como entender que, segundo Kant, o juízo estético ou
espectadores às manifestações das coisas belas, sem remeter juízo de gosto seja a um só tempo subjetivo e universal?
os olhos que a contemplam à origem de toda beleza: o Bem. Segundo Kant, existe certa universalidade nos juízos de
gosto que, apesar de se darem na intimidade subjetiva de al-
3. Qual a principal novidade de Plotino no tocante à con- guém, exprimem algo que pode ser confirmado por qualquer
cepção da arte? pessoa. A experiência do belo e o juízo que exprime a beleza

490 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


de algo dificilmente podem ser contrariados por alguém. É EXERCÍCIO D (p. 303)
como se o indivíduo os possuísse em sua capacidade de ava- Comente a distinção entre “grande arte” e “arte popular”.
liação estética, algo comum a toda a espécie humana. Para tanto, dê três passos:
(a) inicie com a ideia de que as experiências artística e es-
9. Por que, segundo Hegel, a reflexão estética deve abando- tética são possibilidades universais;
nar a ideia de beleza natural? (b) levante o aspecto do uso financeiro das artes e da impor-
Para Hegel, o espírito opera por oposição à Natureza, bus- tância de um aprendizado das línguas artísticas;
cando ser superior a ela. Por essa razão, a preocupação com (c) conclua com a ideia de contexto ou mundo da arte.
o belo natural seria não apenas um esforço inútil como tam- A despeito de a experiência artística e a experiência es-
bém prejudicial, uma vez que, para ele, um espírito fixado na tética serem possibilidades dadas a todos os seres humanos,
Natureza é um espírito alienado na consciência individual, que geralmente se costuma distinguir a “arte popular”, como
ainda não desenvolveu a autoconsciência do espírito absoluto. arte ingênua e espontânea, da “grande arte”, que seria ca-
racterizada por uma linguagem e uma técnica que exigem
10. Qual o significado da afirmação de Kierkegaard segun- aprendizado e iniciação. Contudo, embora muitas vezes
do a qual Hegel construiu um castelo, mas foi morar num essa diferença esteja mais relacionada ao mercado artístico
quartinho dos fundos? e ao uso financeiro das obras do que propriamente ao seu
Para Kierkegaard, Hegel desenvolveu um pensamento hi- valor artístico, é importante aprender as diversas linguagens
persofisticado, mas perdeu o que realmente importa e existe: o utilizadas pelos artistas para ser capaz de aprofundar a ex-
indivíduo. Hegel teria construído um castelo de pensamento e periência estética da contemplação de suas obras. Como
foi morar em um quartinho dos fundos, pois, como indivíduo, sugere Danton ao afirmar que a arte é capaz de criar o seu
não se via contemplado na edificação intelectual que ele mes- mundo próprio, é preciso conhecer os conceitos e o con-
mo havia levantado e da qual a individualidade fora banida. texto específico de cada obra de arte.

11. Comente o sentido de ruptura das artes moderna e


contemporânea. EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 303)
A arte contemporânea assumiu uma contestação das refe- 1. Entrevista
rências tradicionais de beleza, dando uma renovada atenção O objetivo da atividade é pôr os estudantes em conta-
à individualidade e à possibilidade humana de mudar e de to direto com maneiras de ver e reagir ao dadaísmo e ao
criar o próprio modo de produzir e ver a beleza. surrealismo (tomados aqui como estilos típicos em que a
arte se toma a si mesma como objeto) e fazer com que eles
EXERCÍCIO C (p. 299) possam interpretar as reações registradas da perspectiva do
1. Considerando a possibilidade de que a arte enriquece conteúdo trabalhado no capítulo, especificamente a relação
nossa experiência, reflita sobre a realidade brasileira e o entre arte e beleza na Contemporaneidade. O público-alvo
acesso dos cidadãos às obras artísticas (pintura, escultura, sugerido para a entrevista (professores de Língua e Literatura
música, cinema, teatro, literatura, dança, arquitetura etc.). Brasileira) é certamente o que tem mais probabilidade de
De acordo com o que você vive, o que seria necessário para poder posicionar-se a respeito desses estilos, mas também
aumentar o acesso à arte? outras pessoas podem ser entrevistadas (professores ou não).
Resposta pessoal. O critério orientador da entrevista é o de procurar pessoas
habituadas à literatura. No entanto, se os colegas professores
2. Você percebe que a maioria dos cidadãos brasileiros só considerarem adequado, podem alterar o modo de fazer a
tem a televisão como meio de contato com elementos cul- entrevista e apresentar aos entrevistados uma reprodução
turais? O que você pensa sobre os conteúdos apresentados de uma pintura surrealista, um poema ou um trecho de ro-
nos programas de televisão? Eles contêm beleza? Faça uma mance dadaísta, pedindo que eles deem sua reação.
lista dos programas aos quais você costuma assistir e reflita
sobre o caráter artístico de cada um deles. 2. Observação de tipos de dança
Resposta pessoal. O objetivo da atividade é, primordialmente, oferecer aos
estudantes a ocasião de desfrutar, pelo simples prazer esté-
3. Faça um levantamento dos centros culturais de sua cida- tico, dois estilos de dança. Em um segundo momento, os
de. Você costuma frequentá-los? Se em sua pesquisa você professores podem propor uma reflexão e um debate sobre
encontrar grupos que produzem arte, seria muito enrique- os dois estilos, com base na abertura do capítulo.
cedor programar uma visita, que você poderia fazer com al-
guns colegas de classe. Se possível, converse com os artistas 3. Atividade de sensibilização musical
e peça que eles falem de seu modo de ver a arte e a beleza. O objetivo da atividade é ir além do mero prazer estético
Resposta pessoal. da audição musical e identificar elementos (por menores
ou mais breves que sejam) que permitam perceber a inten-
4. Você mesmo(a) já sentiu o desejo de produzir arte? ção, por parte de artistas contemporâneos, de não apenas
Resposta pessoal. desvincular arte e beleza, mas também de fazer da arte

Manual do Professor 491


um objeto da própria arte. Assim, tratando do serialismo de Vermeer)! Eis por que foi importante para mim, entre
de Leibowitz, a “ruptura” com o estilo de Bach é explíci- outras coisas, recorrer a descrições fenomenológicas, pois
ta, ainda que, obviamente, haja elementos bachianos em eu precisava contar, tão carnalmente quanto possível, esses
Leibowitz. Este, porém, parece jogar e mesmo “brincar” encontros com as imagens.
com tais elementos. Uma obra bastante esclarecedora para
a história da Música, da perspectiva de rupturas e continui- Mas que tipo de “olhador” é você? Que tipo de atenção
dades, é O som e o sentido, de José Miguel Wisnik (1989). você emprega para observar imagens? Uma forma de hipe-
ratenção fundada sobre as regras de um saber especializado
ou uma forma de atenção flutuante, assim como dizem os
LEITURA COMPLEMENTAR psicanalistas, e aberta ao princípio de incerteza [princípio
O francês Georges Didi-Huberman é um artista intelec- segundo o qual algo só pode ser conhecido até certo limite]?
tual de grande influência no cenário e no pensamento es-
tético contemporâneo. Ele foi entrevistado pela revista Les Sempre há um choque no começo. A gente não sabe por
Inrockuptibles e procura apresentar a arte no que ela tem quê (por que A bordadeira em vez do quadro ao lado?). É
de mais vivo, o fato de ser, antes de tudo, uma experiência: preciso não se recuperar muito rápido do susto. Não apelar
muito rápido para o saber, as competências, as referências, as
A arte não é uma competência; é uma experiência respostas que precedem a questão. Ficar por algum tempo
Georges Didi-Huberman suspenso no elemento da questão. É o que você chamou – e
estou de acordo com você – de “atenção flutuante”. Isso per-
Les Inrockuptibles – O título de um de seus livros é mite lembrar, de algum modo, aquilo que o filósofo Walter
Diante da imagem; o de outro é Diante do tempo. Seguindo Benjamin chamava, seguindo Freud, de “inconsciente da vi-
a imagem desses títulos, é possível dizer que o seu trabalho são”. É preciso dar uma forma a essa experiência; encontrar
explora o tema da frontalidade do olhar em face do mundo, da palavras; aproximar-se da coerência. É preciso, então, recorrer
História, da Arte... No fundo, o que você percebe por trás das a alguma coisa diferente. Eu não chamaria de “hiperatenção”,
imagens e do tempo? Algum mistério? Política? Sofrimento? como você fez, pois essa palavra sugere novamente a busca
Experiência? Poesia? Lembranças? Sonhos? exaustiva do menor detalhe; busca essa, aliás, que pode passar
completamente longe do que ela mesma busca, assim como
Georges Didi-Huberman – Mistério, Política, sofrimen- falava Edgar Alan Poe, em A carta roubada. De fato, tenho
to, experiência, Poesia... Tudo isso e muito mais sem dúvi- a impressão de que eu trabalho em permanência “sobre dois
da. Mas nada disso está “por trás” das imagens e do tempo. quadros” ao mesmo tempo: deixar vir o impensado em uma
Tudo isso são as imagens. Essas experiências estão, antes prática da atenção flutuante e, ao mesmo tempo, desenvolver
de tudo, diante de nós, tanto no sentido visual (frontalida- um método de análise tão modesto e paciente quanto rigoroso.
de, face a face) como no sentido temporal (desejo, estar à Esse método consiste em encontrar a passagem entre o olhar
espera). Escolhi a palavra diante – eu estava nos anos 1980 e as palavras, a experiência sensível e a prática de uma escrita.
e 1990 – porque eu tinha a impressão de que é preciso, ao
mesmo tempo, uma evidência e uma longa iniciação para As imagens frequentemente têm alguma relação com os
saber ver uma imagem. E a iniciação está longe de terminar. fantasmas. Em que eles se encontram? Por que as imagens
Ver não é uma competência; é uma experiência que se deve nos assombram e nos dão medo? Por que elas sobrevivem a
sempre reformar, reconstruir as bases. O encontro com uma tudo, inclusive à memória?
imagem acontece inicialmente de frente; é um momento
extraordinário, um encontro com os olhos, mas também Isso é o que aprendi com Aby Warburg, que considero como
com a face inteira, a boca, as mãos: é todo o meu corpo que, um pensador, no campo da História da Arte, com o mesmo
de repente, se depara com A bordadeira, de Vermeer, por tipo de exigência que Nietzsche fez na Filosofia. Aliás, os
exemplo. E lá está ela, pequena, desconcertante, inesperada. dois disseram ter tido o mesmo mestre, Jacob Burckhardt; os
[O quadro pode ser visto em: <http://cartelfr. dois tocaram a loucura em algum momento e foram tratados
Acesse:
louvre.fr/pub/fr/image/30517_p0006818.001. pelo mesmo psiquiatra... Aby Warburg falava da história das
jpg>. Acesso em: 16 abr. 2016]. Mas também imagens como uma “história de fantasmas para gente gran-
falei de diante porque o discurso sobre as de”. Isso coincide com o que Freud descobriu no psiquismo
imagens e seu aspecto “detetive” fazia, na inconsciente, tudo o que Marcel Mauss descobriu na orga-
época de minha formação em História da nização das sociedades, tudo o que Marc Bloch descobriu
Arte, encarar a imagem como se ela fosse uma porta fechada nas durações históricas. No centro da “ciência da Cultura”
que era preciso abrir com a ajuda de alguma “chave”, uma inventada por Warburg há, com efeito, essa “sobrevivência”
chave de leitura, saber abrir para compreender seu enigma que faz as imagens serem esses fantasmas capazes de atra-
ou aquilo que estaria “por detrás”. Mas não há nada por trás vessar as fronteiras do espaço e do tempo. As imagens são
do quadro de Vermeer! Tudo está aí; nada está escondido! migrantes; é assim que elas sabem permanecer em nossas
O mistério não está atrás da porta; ele é a própria porta memórias. Em nossas memórias inconscientes, e não so-
(claro, se a porta é tão bela e interessante como um quadro mente em nossas lembranças. E também em nossos desejos.

492 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


Todas as imagens interessam a você? Onde você busca livro, Georges Bataille – seria talvez, então, um modo de
imagens extremas? responder à sua questão.

Felizmente nem todas as imagens me interessam. Se todas Você poderia, por favor, situar-se no campo do pensamen-
me interessassem, eu já teria enlouquecido há muito tempo... to contemporâneo? Ou você permanece impossível de ser si-
Há tantas imagens; há imagens demais e elas se acumulam tuado, longe de uma posição fixa? O que define melhor sua
frequentemente para matar o nosso olhar, ofuscar nossa vi- carreira seria o princípio de circulação entre as obras, entre
são, abafar nosso pensamento... É preciso saber escolher. os discursos, entre as disciplinas...?
“Saber é saber decidir”, era mais ou menos o que dizia Michel
Foucault. Então, eu escolho. Mas não segundo critérios que De cara, eu teria vontade de responder à sua pergunta com
correspondem ao que eu definiria como “imagens boas”, e sim outra pergunta: não caberia a você me “situar”? Será que cabe
segundo encontros que me abrem de repente a uma dimen- realmente a mim dizer o lugar que eventualmente eu ocupo?
são inesperada da experiência visual. O que “me interessa”, Se eu ocupo um lugar, então você, do lugar em que está e
como você diz, não é fatalmente o que é mais belo. Como como observador, verá melhor do que eu qual é o meu lugar.
diziam os filósofos gregos, é a potência que me interessa de Eu poderia também lhe responder de um modo completamente
início nas imagens. As imagens “extremas” em todos os sen- diferente: não vejo nada de tão “impossível de ser situado” ou
tidos possíveis, seja por sua doçura (Vermeer), seja por sua de “longe” em meu trabalho. Tenho a grande sorte de ensinar
violência (imagens dos campos de concentração), seja por sua na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e
diafaneidade (como em James Turrell), seja por sua opacidade isso já é bastante “situável” na paisagem intelectual, mesmo se
(como nas diversas camadas de Goya). Eis também por que essa instituição não quisesse me “habilitar”, como se diz. Posso
não é somente para “a Arte” ou para a “grande Arte” que dou acrescentar que nessa mesma instituição eu participei dos cursos
minha atenção: a potência de uma imagem não depende da de Roland Barthes, de Louis Marin, de grandes linguistas, e aí
sua inscrição no registro das Belas Artes. convivi com pessoas maravilhosas, como Pierre Vidal-Naquet
e Nicole Loraux. Não sou, portanto, nem um pouco “impossí-
Você diz frequentemente que não aprecia as formas defi- vel de ser situado”. Apenas continuo obstinadamente a recorrer
nitivas, como se nada bastasse para reduzir uma imagem a às tradições de pensamento como a iconologia de Warburg, a
uma dimensão única. Deixando de lado uma definição (que crítica literária de Walter Benjamin, a filosofia de Deleuze e
é impossível), há mesmo assim tipos de imagens pelas quais Foucault, e muitas outras coisas mais. Porém, é verdade que a
você é obcecado? Quais? “circulação”, como você disse, estremece um pouco as lógicas
territoriais que, no mundo universitário, têm vida dura.
É verdade que eu gosto de apreciar a variedade infinita
que as imagens são capazes de produzir. Tentando responder LES INROCKUPTIBLES. Paris, 12 abr. 2014. Entrevista
honestamente à sua questão, constato que há uma espécie de concedida por Georges Didi-Huberman. Acesse:
ligação entre meus primeiros objetos de trabalho e os mais Original francês disponível em: <http://www.
recentes: eu me orientei livremente – quando era jovem – lesinrocks.com/2014/02/12/arts-scenes/tout-est-
para certa relação entre a imagem e a dor (sem dúvida há la-rien-nest-cache-11472282/>. Acesso em: 10
algo de autobiográfico nisso, mas não vem ao caso agora). out. 2015. (Tradução nossa.)
É por isso que Goya me fascinou com tanta potência. É
por isso que pude fazer trabalhos sobre os doentes mentais
do hospital La Salpêtrière: as fotografias documentavam
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
ao mesmo tempo o “charme” deles e um sofrimento mais
profundo. Digamos, então: éros (desejo) e tánathos (mor- DANTO, A. O descredenciamento filosófico da arte. Tradução
te). Mais do que isso, digamos: páthos (paixão). A monta- Rodrigo Duarte. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
gem de filmes projetados no chão, durante a exposição do HELLOT, E. O homem: a vida, a ciência e a arte. Tradução
Palais de Tokyo, em Paris, tem como tema a lamentação Roberto Mallet. São Paulo: Ecclesiae, 2015.
pelos mortos e, mais particularmente, a energia dos vivos LACOSTE, J.-Y. A filosofia da arte. Tradução Álvaro Cabral.
– a dança dos vivos – em torno desses mortos. O desafio Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
não é mórbido ou mortífero; ele consiste, ao contrário, em RAGO CAMPOS, M. J. Arte e verdade. São Paulo: Loyola,
mostrar que os “povos em lágrimas” – como vemos em uma 1992.
cena famosa do filme O encouraçado Potemkin, de Sergeï
Eisenstein – podem transformar sua queixa em apelo à jus- SCRUTON, R. Beleza. Tradução Hugo Langone. São Paulo:
tiça: eles, então, “dão queixa” perante a História e podem É Realizações, 2015.
tornar-se povos revolucionários. Mas, para dizer tudo isso, WISNIK, J. M. O som e o sentido. São Paulo: Companhia
é preciso também um lógos: uma língua, uma lógica, uma das Letras, 1989.
análise, um ato de conhecimento. A ligação entre páthos WOLFE, G. A beleza salvará o mundo: redescobrindo o ho-
e lógos – essencial no pensamento de Warburg e em um mem numa era ideológica. Tradução Marcelo G. de Oliveira.
autor fundamental a meu ver e ao qual já consagrei um São Paulo: Vide, 2015.

Manual do Professor 493


Capítulo 13 A experiência religiosa

OBJETIVO
Apresentar a possibilidade de compreensão filosófica da Sem pressupor a necessidade de uma linha histórica
experiência religiosa como percepção e nomeação (interpreta- progressiva, mas com atenção à continuidade temática, é
ção) de uma dimensão suprarracional na realidade (chamada de grande importância filosófica o exercício de escuta dos
de “Deus” por grande parte das religiões), sem que tal percep- pensadores contrários à religião e/ou à afirmação religiosa
ção e tal nomeação sejam entendidas como necessariamente da existência de Deus. Metodologicamente, é adequado
irracionais ou absurdas. Por outro lado, visa-se compreender distinguir entre autores irreligiosos (contrários à religião) e
também algumas das principais reflexões do ateísmo, em cli- autores ateus. Esse exercício permite identificar em autores
ma de diálogo e debate filosófico com o teísmo e o deísmo. religiosos (teístas) ou deístas elementos nem sempre percep-
tíveis quando eles são lidos segundo clichês interpretativos
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS estabelecidos sem crítica. É nesse sentido que os textos de
A estratégia central do capítulo consiste em compreen- Tomás de Aquino e de Karl Rahner são apresentados ape-
der o tema da experiência religiosa por meio de atenção à nas ao final do capítulo como elaborações filosóficas, re-
vivência das pessoas de fé. É por esse motivo que o capítulo sultantes não apenas de um esforço analítico-racional, mas
se inicia pela leitura do poema de Paul Claudel, e não por também de um diálogo universal que vai além da simples
alguma teoria filosófica sobre religião. Por analogia com a tentativa de provar a existência daquela realidade que as re-
relação entre os filósofos e a arte (caso em que se corre o ligiões consideram divina. Por fim, dada essa base comum
risco de teorizar sobre o fazer artístico sem conhecê-lo “por de inteligibilidade, o tema da experiência religiosa requer
dentro”), parece mais adequado um tratamento filosófico da imediatamente uma reflexão sobre a convivência humana
religião pela atenção à experiência das pessoas religiosas. Esse (aqui acentuada como convivência republicana).
cuidado metodológico implica, no entanto, uma dificuldade: Na página ao lado propõe-se um esquema visual de sín-
a possibilidade de pensar que a experiência religiosa (assim tese do capítulo.
como a artística) seja compreensível apenas para quem tem
tal experiência. Se fosse assim, toda tentativa de reflexão OBSERVAÇÃO METODOLÓGICA ESPECÍFICA
filosófica sobre a religião seria impossível ou mesmo anti- A respeito da noção de experiência (e da distinção entre
filosófica, uma vez que a experiência religiosa mesma não experimentar e experienciar), segue um texto do filósofo bra-
seria universal nem acessível a todos. Essa problemática tem sileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz, que pode servir de
uma longa história em Filosofia e já recebeu tratamentos aprofundamento teórico aos colegas professores:
que, em vez de oferecer interpretações sobre a “essência” da
experiência religiosa (caso em que esta é analisada “de fora”, Experiência e consciência
com o risco de projetar-se nela o que ela não é, ou é reduzi- Henrique C. de Lima Vaz
da a meros códigos de conduta moral), procuram explorar
experiências humanas universais que dão inteligibilidade à A oposição entre experiência e pensamento é o primeiro
experiência religiosa. Em outras palavras, trata-se de consi- falso lugar-comum que convém remover. [...] Com efeito, a
derar a possibilidade de identificar uma base “objetiva” de experiência não é senão a face do pensamento que se volta
tal experiência: o mistério, o incondicionado ou o indeter- para a presença do objeto. Daqui se infere imediatamente
minado a que se costuma chamar de Deus. Se a dimensão uma proporção direta entre a plenitude da presença e a pro-
incondicionada da realidade constitui a base “objetiva” da fundidade da experiência, ou seja, a penetração dessa ple-
experiência religiosa, essa experiência só é possível na volta nitude pelo ato de pensar. [...] [É o caso, por exemplo, do]
do sujeito sobre si mesmo, o que dá a “demonstrabilidade” sentimento de presença que acompanha a percepção de um
da base objetiva da religião, fazendo com que a experiência objeto exterior, a emoção ou a vivência que nascem desse
religiosa seja inteligível e universal. Por fim, essa universa- sentimento. [...] As origens etimológicas do termo experiência
lidade legitimamente racional ou filosófica confirmaria, do oferecem-nos o melhor caminho para alcançarmos a sua es-
ponto de vista histórico, a universalidade do fato religioso e sência. Seja o grego empeiría seja o latim experientia falam-
seria também confirmada por ele. nos de “tentar”, “comprovar”, “assegurar-se”, o que significa
Tendo em vista essa delicada articulação entre expe- percorrer o objeto em todos os sentidos. O que caracteriza,
riência e inteligibilidade, o capítulo explora a necessidade pois, a experiência é a penetração e como que a transfixão
de refinamento das noções de percepção e de experiência, do objeto, o que, de um lado, libera o conhecimento do
apontando para o mistério (ou a dimensão racionalmente caráter lábil, precário ou confuso da simples sensação e,
inesgotável) que envolve a existência humana e suscita uma de outro, suprime o vazio das formas puramente lógicas. A
reação específica. Essa reação foi chamada por Friedrich partir desse ponto de vista, a experiência articula-se entre
Schleiermacher de sentimento religioso; e o seu objeto foi dois polos bem definidos: o objeto que é fenômeno ou que
chamado de Sagrado ou Numinoso por Rudolf Otto. aparece, e o sujeito que é ciência ou consciência que retorna

494 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


sobre o objeto para penetrá-lo e igualmente penetrar-se da com ele se identifica (um axioma da ontologia clássica do
sua presença. [...] conhecimento diz, numa aparente tautologia que encerra
[...] convém acentuar que a experiência, como o conhe- profunda intuição: o inteligente em ato é o inteligível em ato
cimento em geral, é uma forma de relação ativa entre a (Aristóteles, De anima III, 430; Tomás de Aquino, Suma
consciência e o fenômeno. A presença que se manifesta na contra os gentios II, cap. 59). Mas, expressão pluriforme, na
experiência não ocupa a consciência como um objeto que medida mesma em que a noção de presença, como a noção
invade um espaço vazio. Manifestar-se à consciência significa de ser com a qual é logicamente coextensiva, é uma noção
manifestar-se segundo leis estruturais da consciência mesma, analógica. Presença e expressão se diversificam; e a expe-
que tornam possível a manifestação como tal. Eis por que riência obedece a essa diversificação. No entanto, podemos
não há experiência sem uma forma de expressão do objeto estabelecer desde já que toda experiência verdadeiramente
pelo sujeito da experiência. Aqui surge um segundo aspec- tal deve encontrar sua expressão, ou seja, sua linguagem;
to que convém pôr em relevo: a pluralidade das formas de e que toda expressão ou linguagem da experiência traduz
expressão da consciência. Mas essa pluralidade supõe o ato uma experiência.
original e constitutivo da expressão mesma. Expressão ativa,
ou seja, acolhimento da manifestação do objeto ao sujeito LIMA VAZ, H. C. de. Escritos de Filosofia I: Problemas de
que o interioriza, assume a sua presença e, de certo modo, fronteira. São Paulo: Loyola, 1986. p. 243-244.

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

SENTIDO TRANSCENDENTE

Acolhido na Recusado na
experiência religiosa irreligiosidade e no ateísmo

F. Schleiermacher Rudolf Otto Nietzsche Espinosa

sentimento Sagrado religião doentia não há


religioso transcendência

Justificativas filosóficas religião e tristeza

Tomás de Aquino Karl Rahner

causa primeira horizonte infinito

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 310)
1. Apresente os cinco elementos identificados na expe- 2. Qual é, em resumo, o sentido fundamental da expe-
riência religiosa. riência religiosa?
Gosto de viver; abertura aos outros seres, vendo-os como A experiência religiosa é a experiência da pessoa em re-
portadores de um sentido que os torna membros de um gran- lação ao ser divino.
de conjunto; abertura ao mundo como um todo que partilha
do mesmo horizonte; solidariedade universal e percepção de 3. Considerando-se o sentido fundamental da religião, é
valores; busca por satisfação do desejo em uma dimensão que possível pensar que ela pode não ser autêntica? Explique.
não se resolve apenas no horizonte do mundo finito, mas que Sim. A experiência religiosa pode ser apenas uma ex-
é misteriosa e transcendente. periência de si mesmo(a) (resumida ao nível estritamente

Manual do Professor 495


humano, social e psicológico), e não uma experiência de si Porque, no dizer de Otto, era necessário garantir que a
em relação ao ser divino. Assim, o fato de uma pessoa pra- experiência religiosa autêntica não fosse confundida com um
ticar uma religião não significa necessariamente que ela mero subjetivismo nem restrita a uma experiência produzida
pense em um sentido transcendente para a existência ou pela consciência dos indivíduos (o que poderia não passar
experimente uma relação com o mistério. de ilusão ou fantasia). Era preciso garantir que um objeto ou
um conteúdo se apresentasse à consciência, possibilitando
4. Pense em pessoas e grupos religiosos que você conhece. falar sobre ele. É nesse sentido que Otto passou a analisar,
Essas pessoas e esses grupos dão sinais de uma experiência da perspectiva do objeto ou do conteúdo, a especificidade
religiosa autêntica? Lembre-se que analisar o comporta- da consciência religiosa.
mento de pessoas e grupos não significa fazer um julga-
mento sobre eles, sobretudo porque, no limite, nenhum ser 2. Quais as características do Sagrado conforme a obser-
humano conhecerá plenamente o que há na consciência vação de Rudolf Otto?
de outro. Analisar o comportamento de pessoas e grupos Segundo a observação de Rudolf Otto, pode-se chamar
significa procurar sinais que permitam conhecer o senti- de Sagrado aquele objeto ou conteúdo que se apresenta à
do que eles dão à própria vida. Com essa intenção é que consciência com as seguintes características: (1) é encontrado
convidamos você a refletir. como algo que provoca um sentimento do estado de criatura
Reposta pessoal. (quando a pessoa percebe o Sagrado, sente que a vida é re-
cebida e que nada no mundo é suficiente para explicar esse
EXERCÍCIO B (p. 313) sentimento); (2) é encontrado como mistério tremendo ou
1. O que permite afirmar que na experiência religiosa a mistério que causa espanto (ao perceber o Sagrado, a pessoa
pessoa experiencia a si mesma sem que, por isso, ela viva tem a certeza de estar diante de algo maior do que ela e do
uma ilusão ou uma fantasia? que tudo o que existe; em contrapartida, essa experiência faz
O fato de que em uma experiência religiosa autêntica a com que a pessoa tenha noção também de sua pequenez); (3)
pessoa experiencia a si mesma, em relação a uma realidade é encontrado como mistério fascinante (a pessoa não sente
que a transcende. Não se trata de uma ilusão ou fantasia, medo diante do Sagrado, mas fascinação; sente-se fortemen-
porque é justamente em uma relação que a pessoa se expe- te atraída por ele, desejando conhecê-lo); (4) é encontrado
riencia: a relação com um polo ou um horizonte de sentido como algo que produz uma força ou energia nova (a pessoa
ilimitado, com a concomitante percepção da incapacidade religiosa sente um impulso ou uma vitalidade nova quando
de dominar intelectualmente esse polo ou horizonte. estabelece uma relação com o ser divino).

2. Por que Friedrich Schleiermacher defendeu a necessida- 3. Com base no uso da analogia, explique a seguinte frase:
de de identificar um sentimento especificamente religioso? “Uma pessoa religiosa pode crer que conhece Deus, mas
Porque as formas modernas de referir-se aos diferentes não pode ter a pretensão de dizer que Deus é só aquilo
tipos de experiência não eram suficientes para retratar a que ela pensa que ele é”.
experiência religiosa, uma vez que a reduziam a algo de Como mistério transcendente, Deus não é algo que pode
caráter metafísico (compreensão intelectual do modo de ser ser dominado conceitualmente (retratado segundo os limites
das coisas) ou a algo de caráter moral (um código de normas da razão humana). Dessa perspectiva, tudo o que se afirma
de conduta). Considerando que sentimento é diferente de sobre ele, inclusive nas diversas religiões (com ou sem livros
emoção, Schleiermacher propõe chamar de sentimento reli- sagrados), é afirmado por analogia. A analogia, ao mesmo
gioso a experiência relativa à percepção do mistério divino. tempo que permite falar sobre o transcendente tal como o
percebemos, evita a pretensão de que se acredite que aquilo
3. Qual o conteúdo do sentimento religioso segundo que se pensa sobre ele corresponde exatamente ao que ele
Schleiermacher? é. Assim, por exemplo, quando se afirma que o ser divino é
A percepção da dependência total do ser humano com “pai”, “amoroso”, “fonte de equilíbrio” etc., isso quer dizer
relação aos outros seres e à totalidade do mundo ou o infi- apenas que ele é “como um pai” (imaginando que todo pai
nito, uma dependência que não pode ser definida nem in- deveria ser bom), “como um ser que ama”, “como uma fonte
teiramente explicada, mas sentida. Essa percepção causa a de equilíbrio”, mas ele não é exatamente um “pai” (se ele
aceitação amorosa da totalidade da existência. fosse um pai, teria todas as falhas que os pais humanos têm e
teria ainda um pai, um avô etc., deixando de ser o princípio
4. Observando sua própria vida, você considera que possui divino de tudo), nem “amoroso” ao modo do amor imperfei-
sentimento religioso? Justifique sua resposta. to que percebemos no mundo, nem uma “fonte”, que pode
Resposta pessoal. se esgotar. Aliás, Deus também pode ser visto como “mãe”
(imaginando que toda mãe deveria ser boa), já que ele não
EXERCÍCIO C (p. 317) é nem “pai” nem “mãe”, pois não tem sexo.
1. Por que Rudolf Otto viu a necessidade de comple-
mentar a filosofia da religião desenvolvida por Friedrich 4. Explique o Princípio de Clifford e o Outro Princípio
Schleiermacher? de Clifford.

496 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


O Princípio de Clifford diz que é racionalmente errado 2. Quais as razões de Tomás de Aquino para afirmar que
e moralmente desonesto acreditar em algo sem evidências. nada, no mundo natural, pode ser causa de si mesmo?
Desse princípio, alguns extraem a conclusão de que cabe às O fato de que, para ser causa de si, algo precisaria já
pessoas que têm fé o ônus da prova da existência de Deus. existir para poder causar-se, o que é absurdo. Além disso,
Já o Outro Princípio de Clifford afirma que é desonesto e segundo Tomás, a observação sensível mostra que todas as
equivocado rejeitar sem provas algo que faz parte de nossas coisas do mundo são produzidas por outras e não são a cau-
crenças. Em outras palavras: é legítimo crer em algo que sa de si mesmas.
a nossa razão não nos obriga a rejeitar. Dessa perspectiva,
o ônus da prova cabe a quem nega a existência de Deus. 3. Segundo Tomás de Aquino, defender que o mundo tem
uma causa significa necessariamente que o mundo come-
EXERCÍCIO D (p. 323) çou a existir em um momento preciso? Explique.
1. Resuma a crítica de Nietzsche à religião. Não. O termo causa, aqui, não se refere a começo tempo-
Para Nietzsche, a prática religiosa nega o que existe de ral, mas a uma origem na ordem das causas (o que pode se
mais autêntico no ser humano: seus impulsos e suas forças dar fora do tempo). Para Tomás, mesmo que o mundo seja
vitais de autoafirmação e domínio de todos os obstáculos. eterno e sem um começo temporal, ele necessita de uma
Para ele, a prática religiosa leva ao enfraquecimento, à ne- causa que seja diferente dele mesmo e que possa ser a fonte
gação da vida e à hipocrisia, a partir da afirmação de que de seu movimento (uma vez que no mundo não se observa
é melhor ser fraco e humilde. Assim, as pessoas religiosas nada que seja causa de si mesmo, dificultando dizer que o
ocultariam seu desejo de dominar e condenariam os mais mundo se cause a si mesmo em seu conjunto).
fortes como maus e pecadores. Na realidade, elas seriam
movidas por um desejo doentio de vingança, cultivando a 4. Por que, segundo Tomás de Aquino, nada obriga racio-
tristeza e o pessimismo diante da vida. nalmente a afirmar que Deus é incapaz de produzir seres
diferentes dele mesmo?
2. Por que, mesmo falando de Deus, Baruch Espinosa Para Tomás de Aquino, era mais racional pensar que
ataca a base da religião? Deus pode produzir seres diferentes dele mesmo, pois essa
Para Espinosa, o mundo pode ser explicado por si mesmo, possibilidade significa que o ser divino é ainda mais perfei-
sem nenhuma necessidade de recorrer a algo transcendente, to do que se pudesse produzir apenas a si mesmo. Sendo
inclusive porque a existência de duas substâncias (uma mundana a causa primeira e sendo infinito, é mais coerente pensar
e uma transcendente) seria contraditória, uma vez que substân- Deus como um ser consciente e livre (do contrário, se lhe
cia é o que existe por si e que não requer outra coisa para ser faltasse consciência e liberdade, ele seria limitado e, portan-
compreendido. Portanto, o mundo passa a ser visto como auto- to, finito). Ser consciente e livre, por sua vez, requer que ele
manifestação do ser divino; e Deus, como a própria Natureza. possa fazer ou não aquilo que se passa em sua “mente”. Ora,
conceber seres diferentes de si e criá-los mostram-se como
3. Explique por que, segundo Espinosa, a religião nasce atos de um ser mais perfeito do que seria um que apenas
de emoções tristes. produzisse a si mesmo.
Segundo Espinosa, a religião e toda superstição nascem
de emoções tristes porque são emoções ligadas ao medo, que 5. Por que Karl Rahner, para falar de Deus, inicia pela
tem sua origem na ignorância humana (falta do uso da razão). análise da atividade humana de conhecer?
Porque Rahner adota a estratégia de mostrar que mesmo
4. Em que consiste o núcleo do ateísmo tal como praticado aquilo que é considerado como conhecimento claro e segu-
por Bertrand Russell? ro (conhecimento racional) se fundamenta em um mistério
Russell nega a ideia de causa primeira, procurando de- que não pode ser dominado pela razão (mistério suprarracio-
monstrar que o argumento para defendê-la é falacioso: se nal). Trata-se do mistério que envolve nossos pressupostos
tudo tem uma causa, então Deus mesmo seria causado, metafísicos e históricos. Somente numa atitude de aceitação
deixando de ser a “causa primeira”. desse mistério é que a razão pode funcionar com coerência
(uma vez que ela não é capaz de demonstrar a verdade dos
EXERCÍCIO E (p. 329) pressupostos com que ela opera). Ora, se a própria razão se
1. Diferencie teísmo e deísmo. fundamenta em um mistério, ela mesma aponta para uma
A diferença entre o teísmo e o deísmo está no modo infinitude que ela não pode dominar conceitualmente, um
como compreendem a possibilidade de uma relação com o abismo sem fundo de possibilidades que, em termos religio-
ser divino: enquanto o teísmo é uma postura filosófica que, sos, designa-se pelo nome Deus.
além de procurar justificar a existência de Deus, concebe
a possibilidade de se estabelecer uma relação com ele (por EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 331)
exemplo, com o auxílio dos textos sagrados), o deísmo é uma 1. Dissertação de síntese filosófica
postura que procura afirmar a existência de um ser divino Como em uma dissertação de síntese filosófica o objetivo é
para explicar o próprio mundo, sem, no entanto, supor qual- tornar claras as articulações feitas no tratamento de um tema,
quer tipo de relação com Ele. é importante lembrar que o que articula os itens 1, 2 e 3 do

Manual do Professor 497


Capítulo 13 é o tema da experiência religiosa: de uma primeira base nesse núcleo que elas elaboram suas visões de mundo.
caracterização geral (item 1, A experiência religiosa), o capítulo No debate, espera-se que os representantes religiosos con-
passa ao tratamento da maior dificuldade filosófica implicada sigam articular a visão do ser divino promovida por suas
nessa experiência, a saber, a legitimidade de falar de “experiência” religiões com o modo como elas entendem a inserção na
quando o objeto não é físico, o que encaminha para a solução vida social. Esta é também uma ocasião privilegiada para
proposta por Friedrich Schleiermacher, autor que explorou os refletir sobre a laicidade do Estado brasileiro e, por outro
aspectos subjetivos da experiência religiosa (item 2, A experiência lado, a sempre mais crescente influência das religiões na
religiosa é uma experiência de quê?); por fim, o capítulo procura organização da vida pública. Isso é bom ou ruim? Tem
completar essa análise por meio do estudo das contribuições vantagens ou desvantagens? Ou tem vantagens e desvanta-
de Rudolf Otto, autor que investigou os aspectos propriamente gens para a vida pública? Um dado de grande importância
objetivos dessa experiência (item 3, O Sagrado ou o Numinoso). sociológica e filosófica é o fato de que, embora o Estado
Tendo essa articulação em mente, espera-se que os estudantes se brasileiro seja laico, a Sociedade certamente não é laica,
beneficiem das orientações fornecidas na página 138 e consigam pois ela contém inúmeros indivíduos e grupos religiosos.
sintetizar filosoficamente os itens 1, 2 e 3 do Capítulo 13, explici- Por isso o desafio de articular adequadamente a vida civil
tando justamente as articulações aqui mencionadas. Dito de outra (Sociedade) com a representação política e governamental
maneira, trata-se de partir da descrição da experiência religiosa (Estado). Os textos que são propostos no próximo item des-
como uma experiência em que as pessoas remetem sempre ao te Manual (Proposta de atividade complementar) são um
mistério divino na construção de suas visões de mundo e em suas valioso material para a preparação do debate. Além desses
interpretações de tudo o que envolve a existência (experiência textos, é bastante esclarecedor o artigo “Laicidade, laicismo
que teria cinco dimensões, elementos ou “passos”: gosto de viver, e secularização: definindo e esclarecendo Acesse:
abertura aos outros seres, abertura ao mundo e sentimento de conceitos”, de César A. Ranquetat Júnior,
que todos os seres têm um destino comum, sentimento de uma disponível no link: <periodicos.ufsm.br/so
solidariedade universal e interpretação dessa experiência em ciaisehumanas/article/download/773/532>
termos de transcendência do mundo, chamando de Deus essa (Acesso em: 31 maio 2016). Os professores
dimensão transcendente). Na sequência, dado que o objeto ou também terão muito proveito se consultarem
o conteúdo dessa experiência é transcendente, é filosoficamen- o modelo português de projeto de laicidade Acesse:

te legítimo perguntar em que sentido se fala de “experiência”, do Estado, disponível no site < http://www.
uma vez que essa noção parecer referir-se ao conhecimento por laicidade.org/documentacao/textos-criticos-
meio dos cinco sentidos. O que alguns filósofos enfatizam, para tematicos-e-de-reflexao/aspl/> (Acesso em:
responder a essa pergunta, é o fato de que a experiência religiosa 31 maio 2016).
não é experiência de “algo”, mas experiência da “própria pessoa
em relação a algo”: ela experimenta, em sua vida, os efeitos da
relação que ela interpreta como uma relação com o ser conside- PROPOSTA DE ATIVIDADE COMPLEMENTAR
rado transcendente. Friedrich Schleiermacher chamava a aten- Algumas das críticas mais duras à religião foram feitas
ção para a especificidade dessa experiência (por ele denominada por Karl Marx e por Sigmund Freud. Elas foram tão bem
“sentimento religioso”), associando-a a um sentimento de total formuladas que grande parte dos pensadores passou a afir-
dependência em relação ao conjunto dos seres e ao mistério in- mar que, depois de Marx, não há mais espaço para Deus e
finito que envolve a existência. Em continuidade com o traba- para a religião em Filosofia e em Ciências Humanas. Do
lho de Schleiermacher, porém atento ao risco da acusação de mesmo modo que, depois de Freud, também a Psicologia
“subjetivismo”, Rudolf Otto procurou esclarecer melhor a espe- e a Psicanálise só poderiam tratar o tema Deus como re-
cificidade da experiência religiosa, não se concentrando apenas sultado de uma doença psíquica. No entanto, pensadores
nos aspectos subjetivos, mas também nos objetivos. Com base inspirados pelo mesmo trabalho de Marx e Freud chegaram
em uma análise comparativa de diferentes religiões, Otto identi- a conclusões diferentes. É o caso, por exemplo, de Claude
ficou características comuns ao modo como o ser transcendente Lefort, em Filosofia, e de Donald Winnicott, em Psicologia
ou divino “apresenta-se” nas religiões ou como é visto por elas: e Psicanálise. Lefort não acreditava em Deus, mas também
ele sempre provoca um sentimento de estado de criatura; é um não via na experiência religiosa, como Marx, apenas o “ópio
mistério que transcende o mundo, fascina e produz uma nova do povo”, quer dizer, uma droga que alucina e impede as
energia na vida de quem com ele depara. Ao objeto transcen- pessoas de enxergar a realidade. Por sua vez, Winnicott
dente que se apresenta à experiência religiosa, Otto denominou compreende como algo positivo e autenticamente huma-
“Sagrado” ou “Numinoso”, de modo que, embora pareça uma no aquilo que Freud considerava doentio: a capacidade de
tautologia ( p. 101), resulta filosoficamente legítimo dizer que recriar o sentido da realidade sem se concentrar apenas no
“a experiência religiosa é uma experiência do Sagrado”. que parece “natural” e “objetivo”. A fim de apontar para os
debates no interior da tradição marxista e psicanalítica, se-
2. Debate público guem quatro textos para serem lidos em paralelo. Os colegas
O objetivo central desta proposta de debate é chamar a professores podem servir-se deles tanto para seu aprofun-
atenção para o fato de que o núcleo autêntico das religiões damento pessoal como para uma atividade complementar
é sempre a sua visão do ser transcendente, divino. É com com os estudantes:

498 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


Contraponto A
A religião segundo Karl Marx e Claude Lefort

A religião é o ópio do povo A força simbólica da religião


Karl Marx Claude Lefort

O fundamento da crítica irreligiosa é este: é o ser hu- Seria querer dar um salto impossível pretender que o elemento
mano que inventa a religião; não é a religião que faz o ser religioso como tal possa e deva apagar-se na sociedade moderna
humano. A religião é, a bem da verdade, a consciência de ou fechar-se nos limites da opinião privada. Com efeito, como
si e o sentimento de si típicos de quem ainda não se con- admitir isso sem perder precisamente a noção de sua dimensão
quistou ou que se perdeu novamente. Mas “ser humano”, simbólica, de uma dimensão constitutiva das relações do ser
aqui, não é uma essência abstrata, fixada fora do mundo. humano com o mundo? [...] O que ela [a Filosofia] descobre
O ser humano é seu mundo, o Estado, a Sociedade. Esse na religião é um modo de figuração, de dramatização das re-
Estado e essa Sociedade produzem a religião, uma cons- lações que os humanos estabelecem com aquilo que vai além
ciência invertida do mundo; afinal, o próprio Estado e a do tempo empírico, o espaço no qual se amarram seus próprios
própria Sociedade são um mundo invertido. [...] A religião vínculos. Esse trabalho da imaginação põe em cena outro tem-
é a realização imaginária da essência humana, porque a po e outro espaço. Não faria sentido querer reduzi-lo a apenas
essência humana não possui realidade verdadeira. A luta um produto da atividade humana. [...] A filosofia moderna não
contra a religião é, portanto, imediatamente, a luta contra pode ignorar o que ela deve à religião; ela não pode manter-se à
esse mundo cujo perfume espiritual é a religião. A miséria distância do trabalho da imaginação, querendo submetê-la a si
religiosa é, pois, ao mesmo tempo, a expressão da miséria mesma como um puro objeto de conhecimento. [...] Apesar de
real e o protesto contra essa miséria. A religião é o suspiro sua pretensão ao Saber absoluto, a substituição do conceito pela
da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, imagem deixa intacta para o filósofo a experiência de uma alte-
do mesmo modo que ela é o espírito de um estado de coisas ridade na linguagem, aquela de um desdobramento entre uma
desprovido de espírito. A religião é o ópio do povo. Abolir criação e um desvelamento, entre a atividade e a passividade,
a felicidade ilusória do povo oferecida pela religião é o re- entre a expressão e a impressão do sentido. Talvez toquemos,
quisito para sua felicidade real. por essas últimas observações, na razão mais secreta da ligação
do filósofo ao dado religioso. Por mais fundamentada que seja a
MARX, K. Critique de La Philosophie du Droit de Hegel. reivindicação de seu direito a pensar, retirando-o de debaixo de
Tradução E. Kouvélakis. Paris: Ellipses, 2000. p. 7-8. (Crítica da toda autoridade instituída, ele não somente tem a ideia de que
Filosofia do Direito de Hegel. Tradução nossa para o português.) uma sociedade que esquecesse seu fundamento religioso vive-
ria na ilusão de uma pura imanência a si mesma e apagaria, ao
mesmo tempo, o lugar da Filosofia, mas também pressente que
a Filosofia está ligada à religião por uma aventura da qual ela, a
Filosofia, não possui o segredo.

LEFORT, C. Permanence du théologico-politique. In: . Essais


sur la Politique. Paris: Seuil, 1986. p. 260-264. (Permanência do
teológico-político. Tradução nossa.)

Manual do Professor 499


Contraponto B
A religião segundo Sigmund Freud e Donald Winnicott

Religião e ilusão infantil Religião e boa ilusão


Sigmund Freud Donald Winnicott

As ideias religiosas que se apresentam como dogmas não são As memórias são construídas a partir de inúmeras impressões
um resíduo da experiência ou o resultado final da reflexão: elas sensoriais, associadas à atividade da amamentação e ao encontro
são ilusões, a realização dos desejos mais antigos, os mais fortes, do objeto. No decorrer do tempo surge um estado no qual o bebê
os mais prementes da humanidade; o segredo de sua força é a sente confiança em que o objeto do desejo pode ser encontrado;
força desses desejos. Nós já o sabíamos: a impressão aterrorizante isso significa que o bebê gradualmente passa a tolerar a ausência
da impotência infantil tinha despertado a necessidade de ser do objeto. Dessa forma, inicia-se no bebê a concepção da reali-
protegido – protegido sendo amado –, necessidade à qual o pai dade externa, um lugar de onde os objetos aparecem e no qual
deveria satisfazer. O reconhecimento de que essa impotência eles desaparecem. Podemos dizer que o bebê, por meio da magia
dura toda a vida fez com que o ser humano se agarrasse a um do desejo, tem a ilusão de possuir uma força criativa mágica; e a
pai, mas, dessa vez, um pai mais potente. A angústia humana onipotência existe como um fato, através da sensível adaptação da
em face dos perigos da vida apazigua-se com o pensamento do mãe. O reconhecimento gradual que o bebê faz da ausência de
reino benfeitor da Providência divina; a instauração de uma um controle mágico sobre a realidade externa tem como base a
ordem moral do Universo assegura a realização das exigências onipotência inicial transformada em fato pela técnica adaptativa
de justiça, tão frequentemente irrealizadas nas civilizações da mãe. No dia a dia da vida do bebê, podemos observar como
humanas; e o prolongamento da existência terrestre por uma ele explora esse terceiro mundo, um mundo ilusório que nem é
vida futura enriquece o quadro do tempo e o lugar onde esses sua realidade interna, nem é um fato externo, e que toleramos
desejos serão realizados. [...] É um formidável alívio para a alma num bebê, ainda que não o façamos com adultos ou mesmo com
humana ver os conflitos da infância emanados do complexo crianças mais velhas. Vemos o bebê chupando os dedos [...] ou
paterno – conflitos jamais inteiramente resolvidos – serem ti- agarrando um pano [...] prologando a onipotência originalmente
rados daí e receberem uma solução aceita por todos. satisfeita pela adaptação realizada pela mãe. Considerei útil de-
nominar “transicionais” os objetos e fenômenos que pertencem
FREUD, S. L’avenir d’une illusion. Tradução Marie Bonaparte. a esse tipo de experiências. [...] Como são importantes, então,
Paris: PUF, 2002. p. 43. (O futuro de uma ilusão. Tradução nossa.) esses primeiros objetos e técnicas transicionais! Sua importância
se reflete em sua persistência, uma persistência feroz por anos a
fio. A partir desses fenômenos transicionais, desenvolve-se grande
parte daquilo que costumamos admitir e valorizar de várias ma-
neiras sob o título de religião e arte [...]. Entre o subjetivo e aquilo
que é objetivamente percebido, existe uma terra de ninguém,
que na infância é natural e que é por nós esperada e aceita. [...]
Na religião e nas artes vemos essa reivindicação socializada, de
modo que o indivíduo não é chamado de louco e pode usufruir,
no exercício da religião ou na prática e apreciação das artes, do
descanso necessário aos seres humanos em sua eterna tarefa de
discriminar entre os fatos e a fantasia.

WINNICOTT, D. Natureza humana. Tradução Davi Litman


Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 1990. p. 126-127.

500 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO DE OLIVEIRA, M. A religião na sociedade urbana MATA, S. História e religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
e pluralista. São Paulo: Paulus, 2009.
MICHELETTI, M. Filosofia analítica da religião. Tradução
CUOCO PORTUGAL, A. Filosofia ana- Acesse: José Afonso Beraldin. São Paulo: Loyola, 2007.
lítica da religião como pensamento “pós-
SAVIAN FILHO, J. Religião. São Paulo: WMF Martins Fontes,
metafísico”. Horizonte, Belo Horizonte, v. 8,
2010. (Coleção Filosofias: o prazer do pensar).
n. 16, p. 80-98, 2010. Disponível em: <http://
repositorio.unb.br/bitstream/10482/9680/1/ SIMMEL, G. Religião: ensaios. Tradução Leopoldo Waizbort.
ARTIGO_FilosofiaAnaliticaReligiao.pdf>. São Paulo: Olho d’Água, 2011. 2 v.
Acesso em: 18 abr. 2016. WILKINSON, M. B.; CAMPBELL, H. N. Filosofia da reli-
GRONDIN, J. Que saber sobre filosofia da religião? Tradução gião: uma introdução. Tradução Anoar J. Provenzi. São Paulo:
Lucia M. E. Orth. Aparecida: Ideias e Letras, 2012. Paulinas, 2014.

Capítulo 14 O conhecimento

OBJETIVO
Apresentar algumas das mais influentes concepções filosó- novas possibilidades conceituais, centradas na linguagem,
ficas do conhecimento, por meio de uma dupla possibilidade mais do que em faculdades do sujeito cognoscente (como
de compreensão: o conhecimento é uma representação da fez a maioria dos filósofos modernos, se não a totalidade
realidade; o conhecimento é uma relação com a realidade. deles). Apesar disso, no entanto, é um dado inegável que
Com base nesse debate, visa-se apresentar também o modo a filosofia wittgensteiniana suscitou diferentes epistemolo-
como hoje os diferentes tipos de conhecimento da reali- gias, as quais, mesmo sendo “linguísticas”, não deixam de
dade são divididos, de modo geral, em ciências naturais e ser epistemologias. Por essa razão, o presente livro toma a
ciências humanas. liberdade de introduzir elementos da filosofia da linguagem
de Wittgenstein no capítulo sobre o conhecimento, embora
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS seja conveniente deixar claro que essa apropriação não pode
O capítulo adota um par de concepções que, apesar de sugerir um compromisso de Wittgenstein com a afirmação
bastante amplas, permitem apresentar algumas das mais de alguma estrutura subjetiva humana. A esse respeito,
influentes posições filosóficas a respeito do conhecimento: os colegas professores lerão com enorme proveito o livro
a ideia de representação da realidade e a ideia de relação Wittgenstein: o eu e sua gramática, de Sílvia Faustino de
direta com a realidade e na presença dela (por meio daquilo Assis Saes, e os capítulos “Epistemologia”, “Filosofia da lin-
que, de modo mais geral, se chama de consciência). Nesse guagem” e “Wittgenstein”, do livro Compêndio de Filosofia,
sentido, o capítulo se inicia por uma breve apresentação do organizado por Nicholas Bunnin e E. P. Tsui-James (2002).
racionalismo, do empirismo e da filosofia crítica de Kant, Também por contraposição à ideia de representação (na ver-
extraindo deles a ideia de representação. Obviamente, essa dade, à concepção de conhecimento como elaboração do sujei-
ideia não aparece do mesmo modo nas três filosofias e talvez to), o capítulo passa a uma apresentação geral de duas maneiras
nem fosse adequado dizer que ela se aplica a autores como de entender o conhecimento como uma relação estabelecida
Descartes e Hume. A esse respeito, os colegas professores entre quem conhece (o sujeito) e aquilo que é conhecido (o
são convidados a nuançar o estudo, percebendo que o que objeto). Basicamente se apresenta a posição da fenomenologia
interessa não é o conceito técnico de representação, mas a de Edmund Husserl e o modo como a consciência deixa de ser
compreensão geral do conhecimento como algo que se pro- descrita como uma operação ou uma “capacidade” do sujeito,
duz no sujeito ou no indivíduo que conhece. para ser entendida como a relação estabelecida no presente do
Na sequência, o capítulo apresenta, por um lado, o estudo encontro entre o sujeito e aquilo que é conhecido (“externo”
crítico da ideia de representação, tal como operado desde a ou “interno” ao sujeito). Aqui também os colegas professores
Antiguidade pela postura cética; e, por outro, o deslocamento são convidados a redobrar a atenção, a fim de não sugerir que o
do tema da relação com a realidade, fazendo-o sair do regis- conhecimento, segundo Husserl, é dado “na presença” da coisa
tro de um conhecimento propriamente dito para o do uso conhecida, pois o que opera desse modo é o que se pode chamar
da linguagem, tal como operado por Ludwig Wittgenstein. de consciência ou o fluxo da consciência. O conhecimento,
Para esse aspecto, os colegas professores são convidados a propriamente falando, se dá na investigação que o sujeito opera
redobrar a atenção, pois, de acordo com os especialistas, não sobre o objeto que ele “contém” (não como representação, mas
é uma tarefa simples inserir a filosofia de Wittgenstein em como objeto intencional).
uma “teoria do conhecimento”. Para alguns, é até mesmo Esse cuidado metodológico permite que se introduza
impossível. Com efeito, o filósofo austríaco buscava explorar um breve estudo sobre as semelhanças entre o pensamento

Manual do Professor 501


fenomenológico e o pensamento medieval. Diferentemente fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensamento
do que muitos clichês afirmam sobre os autores medievais fenomenológico. Os colegas professores também terão algum
(considerando-os como “empiristas”, “objetivistas” etc.), hoje proveito com a leitura do prefácio intitulado “Fenomenologia,
não há mais dúvida de que conhecer, para muitos medievais, antropologia e releitura da tradição filosófica em Edith Stein”,
não é representar a coisa conhecida. Essa operação poderia no livro Pessoa humana e singularidade em Edith Stein, de
ser associada à percepção física; o conhecimento propria- Francesco Alfieri (2014).
mente dito ocorreria, como afirma Tomás de Aquino, por Enfim, com base na elucidação da participação do sujeito
exemplo, quando quem conhece se dá conta da diferença na atividade do conhecimento, o capítulo introduz temas
entre si mesmo e aquilo que é conhecido, visto precisamente clássicos de filosofia da ciência (a classificação ampla dos sa-
como conhecido. Em outras palavras, o conhecimento se dá beres em “ciências naturais” e “ciências humanas”, podendo
por um retorno do pensamento sobre si mesmo. a Matemática e áreas afins receber qualificativos próprios
A respeito da fenomenologia de Husserl, um dos me- tanto de uma como de outra dessas áreas, segundo a aborda-
lhores estudos em língua portuguesa, se não o melhor, é a gem que se adote), a começar pela relativização operada por
obra Crítica da razão na fenomenologia, de Carlos Alberto Albert Einstein na ideia de verdade objetiva no conhecimen-
Ribeiro de Moura (1989). A respeito das relações entre a to natural, passando à distinção entre explicar e interpretar,
fenomenologia e o pensamento medieval, o melhor estudo tal como elaborada por Dilthey, até chegar às reflexões que
em português é o livro de André de Muralt, Metafísica do articulam crítica social e produção do conhecimento.

PROPOSTA DE ESQUEMA VISUAL

Racionalismo
Representação
e Exame crítico
Empirismo
realidade (Cetismo)
Filosofia Transcendental

Conhecer Linguagem e realidade – Wittgenstein

Fenomenologia

Consciência e realidade

Tradição medieval

Ciências naturais Ciências humanas

Criação Paradigmas Falseabilidade Explicar ≠ compreender Indivíduo e Sociedade


Einstein, Infeld Kuhn Popper Dilthey Escola de Frankfurt

RESPOSTAS AOS EXERCÍCIOS


EXERCÍCIO A (p. 340)
Em uma redação de síntese filosófica ( p. 138), apre- A novidade de Kant está em coordenar os dois “acertos” em
sente a filosofia transcendental de Kant com base em sua filosofia transcendental. Espera-se que, retomando os
sua tentativa de combinar elementos do pensamento de dados expostos no capítulo para apresentação do pensamen-
Descartes e de Hume. to kantiano, os estudantes sejam capazes de explicá-lo em
Nessa redação, o fundamental é que o estudante seja referência a Descartes e Hume.
capaz de destacar os elementos articulados por Kant em
sua fundação de uma nova concepção do conhecimento EXERCÍCIO B (p. 343)
e tomados do empirismo de Hume e do racionalismo de 1. Em que consiste a epoché cética e qual seu objetivo?
Descartes. Se Hume “acertou” em sua ênfase na importân- A epoché é a atitude de contenção do juízo como forma
cia da experiência sensível, Descartes também “acertara” de não dar assentimento diante de afirmações sobre a ver-
ao apontar para estruturas inatas que permitem conhecer. dade das coisas. Com isso, segundo os céticos, evita-se toda

502 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


perturbação e toda preocupação causada pela busca dogmá- Não. Para Husserl, o conhecimento não se dá como uma
tica da verdade. A justificativa maior para defender a epoché representação feita na consciência, mas como uma atividade
vinha da constatação da diversidade de concepções filosó- da consciência que, por meio do fenômeno da coisa conhe-
ficas ao mesmo tempo conflitantes e defensáveis, levando a cida, se encontra na presença da própria coisa conhecida.
crer que, se a verdade existe, ela ainda não foi encontrada e
talvez nem sequer possa ser encontrada. 2. Apresente resumidamente a concepção husserliana de
consciência servindo-se das expressões aparelho cogniti-
2. Explique por que, segundo Carnéades, é mais adequado vo e presença.
falar de conhecimento provável, e não de conhecimento Husserl não via sentido em falar da consciência como se
verdadeiro. ela pudesse ser entendida por si mesma, sem relação com os
Para Carnéades, como não é possível esclarecer e justi- seus conteúdos. A experiência indica que não existe cons-
ficar os fundamentos mesmos de qualquer representação, ciência “vazia”, pois “ter consciência” é sempre “ter cons-
uma vez que cada representação pressupõe aquilo que ela ciência de algo”; é estar na presença de algo. Assim, mais do
pretende representar, também não é possível decidir qual que um aparelho cognitivo à espera de alguma sensação que
representação é realmente verdadeira ou falsa. Por essa ra- lhe permita formular uma representação, a consciência é a
zão, Carnéades fala apenas de conhecimento provável, ou relação mesma de um sujeito com a presença daquilo de que
de conhecimento mais provável e menos provável. ele tem consciência. Dessa perspectiva, os seres humanos
não têm consciência, mas são consciência.
3. Em sentido cético, o que é uma crença justificada?
A crença justificada diz respeito à aceitação dos fenôme- 3. Como Husserl analisaria o exemplo wittgensteiniano
nos e do apelo das sensações e percepções de modo invo- da dor de dente? Em sua resposta, utilize as palavras em-
luntário, assim como a certa adesão à percepção comum do patia e intersubjetividade.
mundo, baseando-se em razões e justificativas que reduzam Husserl concordaria com o fato de que os nomes dados
ao máximo a possibilidade de erro, permitindo a ação social às vivências dependem dos usos linguísticos e dos costu-
e uma vida tranquila. mes construídos socialmente. No entanto, para ele, mesmo
quem nunca viveu a experiência da dor de dente pode com-
EXERCÍCIO C (p. 348) preender, em primeira pessoa, o significado dessa expressão
1. O que pretendia Wittgenstein com o exemplo do simplesmente porque, no ato intercomunicativo, pode ter
pato-coelho? consciência da dor de dente de alguém ao associar a ideia de
Ele pretendia mostrar que não existe um simples “ver” a dor, que já lhe é conhecida, à ideia de dente, que também
realidade, mas um “ver como”. Nesse sentido, referindo-se lhe é conhecida. A essa “consciência da consciência alheia”
ao desenho do pato-coelho, a frase “Isto é um coelho” e a (expressão da filósofa Edith Stein), que ocorre mesmo quan-
frase “Isto é um pato” podem ser, ambas, verdadeiras e fal- do duas pessoas não têm exatamente a mesma experiência
sas ao mesmo tempo, dependendo de como se vê a imagem. (pois a experiência é sempre individual), Husserl chamava
de empatia ou intropatia. A empatia relaciona-se diretamen-
2. Por que o “primeiro” Wittgenstein entende as palavras te com a possibilidade humana chamada por Husserl de
como “etiquetas”? intersubjetividade, que consiste em poder perceber que os
Porque ele concebia a linguagem como representação conteúdos de experiência não são “inventados” nem “cons-
do mundo, como se houvesse uma correspondência direta truídos” pelos indivíduos (ou pela linguagem), uma vez que,
entre a linguagem e o mundo. Nesse sentido, as palavras apesar de as experiências serem sempre individuais e inco-
exprimiriam diretamente as coisas; e as proposições seriam municáveis em seu caráter de ato singular, elas apontam
expressões de estados de coisas ou fatos. para coincidências de conteúdo que podem ser observadas
por diferentes sujeitos. Por exemplo, duas pessoas têm suas
3. Como a linguagem é entendida pelo “segundo” experiências individuais sobre a cor vermelha de determi-
Wittgenstein? nado objeto. As experiências das duas pessoas são incomu-
No “segundo” Wittgenstein, a linguagem deixa de ser nicáveis em si mesmas, mas, pela percepção de que as duas
entendida em correlação direta com o mundo e passa a ser pessoas entendem a expressão de suas experiências, elas se
vista como expressão de jogos estabelecidos pelos próprios dão conta de que nem a cor vermelha do objeto nem o pró-
falantes em função de seu modo de vida e de seu contexto. prio objeto foram produzidos por elas. Em outras palavras,
As regras desses jogos não são dadas pelo mundo ou pelo a “autonomia” da cor e do objeto é garantida pelo encontro
modo como são as coisas, mas pela prática linguística das comunicativo ou intersubjetivo.
pessoas. Dessa perspectiva, a linguagem revela mais sobre o
modo de vida de seus falantes do que sobre o mundo. 4. Husserl foi um idealista estrito? Justifique sua resposta
servindo-se da expressão dupla orientação.
EXRCÍCIO D (p. 353) Não, porque sua ênfase na consciência não implicava
1. É correto classificar Husserl como um filósofo da represen- afirmar que o mundo ou as coisas exteriores são criações
tação? Justifique sua resposta servindo-se da palavra presença. da consciência. No dizer de Husserl, investigar o mundo

Manual do Professor 503


tal como ele aparece para a consciência (sem interesse pelo EXERCÍCIO F (p. 361)
caráter físico do mundo) é tarefa da filosofia fenomenológi- 1. Explique como a metáfora do relógio impossível de abrir
ca. Mas isso não significa afirmar que é a consciência que permite a Einstein e Infeld apresentar a objetividade cien-
produz o mundo; cabe à ciência ocupar-se com as coisas e tífica como uma criação.
procurar explicá-las fisicamente. Filosofia ou atitude crítica, Para Einstein e Infeld, mais do que constatar coisas (como
por um lado, e ciência ou atitude “natural”, por outro, cons- se se abrisse um relógio), conhecer cientificamente significa
tituiriam a dupla orientação de que a consciência é capaz. elaborar um modo de unificar dados em uma construção
A orientação natural, comum e mesmo ingênua (despreo- que os explique. Explicar, porém, é uma atividade que vai
cupada com questões filosóficas relativas ao funcionamento além de conhecer as partes ou os elementos em que os da-
da consciência) corresponde ao olhar dirigido ao mundo e dos podem ser divididos. Essa atividade se parece mais com
equivale à percepção sensível, fundamentando, por isso, o o estar diante de um relógio fechado cujo funcionamento
trabalho da ciência. A orientação filosófica ou fenomenoló- interno é apenas imaginado por nós. Mesmo se abríssemos
gica busca entender o modo mesmo de ocorrer da consciên- o relógio, só veríamos partes; não explicaríamos o mecanis-
cia e é nesse sentido preciso que ela deixa de concentrar-se mo do relógio. Explicar requer ir além da simples observa-
sobre as coisas empíricas e as põe entre parênteses, fixando ção e exige um passo adiante: a criatividade de propor uma
sua atenção no fluxo da consciência. teoria que correlacione as partes e invente um porquê para
o resultado que elas produzem.
EXERCÍCIO E (p. 356)
1. O que fez Agostinho de Hipona chamar o ceticismo de 2. De acordo com Thomas Kuhn, como a objetividade
“a mais prudente das filosofias”? científica é construída?
O fato de que ele experimentou a mesma decepção cética Para Kuhn, a objetividade científica depende do olhar de
com as filosofias e a mesma dificuldade na busca da verda- cada cientista para o mundo, uma vez que a visão da reali-
de. Evitar a ilusão da possibilidade de conhecer a verdade dade depende sempre de um “como” se olha. Esse “como se
das coisas, confiando apenas nos fenômenos, pareceu então olha” depende, por sua vez, das vivências e das crenças sociais
mais prudente a ele, pois evitaria a perturbação. de cada época. Kuhn observou que as ciências operam por
meio de grandes rupturas, que ele chamou de revoluções e
2. O que permitiu a Agostinho superar o ceticismo? que também se mostram em cumplicidade com as mudanças
Agostinho constatou que, se a busca filosófica se concen- históricas da Sociedade. Diante do surgimento de certas ano-
trar apenas no nível dos discursos e das proposições sobre o malias que não podem ser explicadas, gera-se uma crise em
mundo, realmente será difícil decidir entre o melhor discurso determinado modelo científico, levando os cientistas à criação
ou a melhor proposição. Nesse sentido, seria mais prudente de novos paradigmas, até que surjam novas crises e anomalias.
ser cético. Porém, se dermos a devida atenção ao ato mesmo
de pensar ou à possibilidade mesma de elaborar discursos ou 3. Por que Karl Popper recusa a ideia de verificação dos
proposições, constataremos que esse ato de pensar aparece enunciados científicos?
como uma verdade da qual não é possível duvidar. Podemos Porque o ideal de verificação de um enunciado equiva-
duvidar da verdade das diferentes expressões do pensamen- leria a pensar que as infinitas possibilidades naturais são
to, mas não fará sentido duvidar do fato de que pensamos. pré-conhecidas no enunciado “verificado” e permanecerão
as mesmas em todos os tempos, o que é manifestamente pro-
3. Explique por que, segundo Tomás de Aquino, o conhe- blemático. Em vez de defender a verificação, Popper defen-
cimento não é um retrato direto da realidade. de a falseabilidade ou a possibilidade de que um enunciado
Porque, segundo Tomás, um conhecimento verdadeiro seja construído de modo que possa ser realmente comparado
não é uma simples adequação do intelecto à coisa conhecida, com a experiência sensível e eventualmente refutado por ela.
mas a atividade refletida de pronunciar-se sobre o mundo com
base na percepção da diferença entre aquilo que o mundo é 4. Por que um enunciado como Todos os seres humanos
e aquilo que se pensa sobre ele. O conhecimento só ocorre são mortais não é falseável, segundo Popper, ao passo que
quando alguém percebe as coisas como realidades “existentes é falseável um enunciado como Todos os corvos são pretos?
para o intelecto”, ou seja, quando as coisas são percebidas em Porque o primeiro enunciado não pode ser comparado
sua diferença com relação a quem as percebe. Se é assim, o com a realidade e refutado por ela, uma vez que não é pos-
conhecimento, segundo Tomás, não é um retrato direto da sível encontrar, no nível da Natureza, um caso de homem
realidade, mas passa pela percepção que o intelecto tem da imortal. Já o segundo enunciado é falseável porque ele é
sua diferença própria em relação àquilo que ele conhece. formulado de modo que o seu conteúdo pode ser avaliado
em termos estritamente naturais; ele é aberto à refutação por-
4. O que pretendia Avicena com a hipótese do “homem que é possível que se encontre um corvo que não seja preto.
voador”?
Mostrar que a afirmação da própria existência e a iden- EXERCÍCIO G (p. 365)
tidade da consciência com si mesma independe do contato 1. O que levou historicamente à diferenciação entre ciên-
dos sentidos com coisas singulares. cias naturais e ciências humanas?

504 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


A percepção de que, operando com a ideia de que a sombras (como o resultado da manipulação em massa dos
Natureza segue leis fixas e imutáveis, as ciências naturais indivíduos, a perda da paixão como algo essencialmente
mostravam-se insuficientes para investigar o ser humano, ligado à razão, a transformação do prazer em um aspecto
uma vez que ele revela a possibilidade de dar sentido à sua apenas secundário da vida e um motor do consumo de bens
própria existência, superando, em alguma medida, os próprios materiais).
condicionamentos naturais. Para corresponder à especifici-
dade humana, surgiram as ciências humanas (inicialmente EXERCÍCIOS COMPLEMENTARES (p. 365)
chamadas de ciências do espírito). 1. Dissertação A
A estratégia proposta para a dissertação (contrapor o ra-
2. Explique a diferença entre explicar e compreender, tal cionalismo e o empirismo considerando o pensamento car-
como entendia Dilthey. tesiano como tese, o pensamento humiano como antítese
A diferença entre explicar e compreender reside no tipo e a filosofia kantiana como síntese) permite concentrar a
de tratamento dado aos fenômenos estudados: enquanto ex- atenção não apenas nos fundamentos do racionalismo e do
plicar consiste em analisar os elementos que compõem as empirismo, mas sobretudo na filosofia crítico-transcenden-
realidades estudadas e em identificar as causas que levam tal de Kant. Espera-se que os estudantes beneficiem-se das
esses elementos a produzir seus efeitos correspondentes (em orientações dadas na página 106 e problematizem o raciona-
termos de leis ou regularidades), compreender consiste em lismo (ênfase na prioridade da razão ou das potencialidades
tratar dos fenômenos em seus conjuntos, quer dizer, em uni- anímicas no conhecimento) por meio da postura empirista
dades maiores e produtoras de novos sentidos exatamente (ênfase na origem do conhecimento na ativação dos cinco
como conjuntos. Dilthey atribuía a explicação às ciências sentidos), concluindo com a “síntese” kantiana que inclui
naturais e reservava a compreensão às ciências humanas. tanto a importância das potencialidades do sujeito (categorias
do entendimento) como a necessidade da base experiencial-
3. Considere o caso da Psicologia como exemplo que ex- empírica (as formas da sensibilidade) e resulta na concepção
plica a diferença entre explicar e compreender. do sujeito transcendental.
A Psicologia pode concentrar-se apenas nos aspectos
causais das experiências humanas, buscando mostrar por 2. Dissertação B
que elas ocorrem e baseando-se em um modelo explicativo Como em uma dissertação de síntese filosófica o objetivo é
segundo o qual uma experiência gera sempre determinadas tornar claras as articulações feitas no tratamento de um tema,
consequências. O trabalho do psicólogo poderá encontrar é importante lembrar que o fio condutor da apresentação
essas relações de causa e efeito; sua psicologia será, então, da concepção de conhecimento de Wittgenstein e Husserl,
uma ciência explicativa e natural. Mas a Psicologia tam- tal como feita neste capítulo, é o compromisso com uma
bém pode ser descritiva e analítica, isto é, pode tratar o ser “estrutura” subjetiva (uma alma, consciência, pensamento,
humano como um conjunto de fatores bioquímico-físicos subjetividade). Wittgenstein fixa-se na linguagem como
(constituição corpórea), psíquicos (vivências perceptivas e modo de ser tipicamente humano e, nesse sentido, não se
emocionais) e espirituais (vivências de pensamento reflexi- compromete com a afirmação de algo como uma subjetivi-
vo e de liberdade). O trabalho do psicólogo, de acordo com dade (consciência, alma, pensamento). Husserl, por sua vez,
essa segunda metodologia, será encontrar ligações entre as vê sentido em comprometer-se com a afirmação da subjeti-
experiências, além de ver a experiência no singular (a expe- vidade, pois lhe parecia coerente investigar as capacidades
riência de uma pessoa), sem interpretá-la como apenas mais ou potencialidades dadas pela “natureza humana” para a
um caso das relações entre causa e efeito do psiquismo. Pode atividade de perceber/conhecer (e mesmo para servir-se da
considerar também as influências tanto naturais quanto so- linguagem). Espera-se, então, que os estudantes, benefician-
ciais sobre as pessoas e descrever as conexões espontâneas do-se das orientações fornecidas na página 138, apresentem
que aparecem na sua experiência como fontes de sentido esse fio condutor e as razões que levaram Wittgenstein a tirar
não necessariamente preestabelecidas. Trata-se da visão da o foco da subjetividade na análise do conhecimento (respeito
pessoa como ser que pode operar com seus condicionamentos ao mundo tal como o mundo se mostra na linguagem), bem
e participar do sentido dado à própria existência. De acordo como as razões de Husserl para manter o foco da análise do
com esse modelo, a Psicologia será uma ciência humana. conhecimento nas condições subjetivas (consideração das
potencialidades humanas e concepção da consciência não
4. Explique por que Herbert Marcuse pode ser tomado como como polo que representa o mundo, mas polo de uma rela-
um representante do modo como a Escola de Frankfurt se ção presente com aquilo que é conhecido).
relaciona com o Iluminismo ou a razão iluminista.
Porque, segundo Marcuse, embora seja impossível negar 3. Dissertação C
o ganho que as luzes do pensamento moderno trouxeram à Espera-se que os estudantes, inspirando-se nas orientações
Humanidade (por exemplo, com a ideia de uso individual da dadas na página 106, reproduzam à sua maneira os pensamen-
razão, de valor universal do ser humano, de universalidade tos de Thomas Kuhn e Karl Popper em relação à natureza
da experiência, de capacidade de sempre melhorar etc.), é do conhecimento científico, chegando à “conciliação” ou
preciso reconhecer que junto dessas luzes vieram também “síntese” de ambos no pensamento de Imre Lakatos. Assim,

Manual do Professor 505


o fio condutor que articula os três momentos é o tema da – Sim, naturalmente; é um livro. Mas o que você vê de
objetividade do conhecimento científico: se em Kuhn não verdade?
há objetividade ou pontos de vista neutros (tese), em Popper – O que você quer dizer com essa pergunta? Eu já disse
defende-se o encontro de uma objetividade pela possibili- que vejo um livro, um pequeno livro vermelho com uma
dade de falsear enunciados (antítese); longe, porém, de se- capa vermelha.
rem posições contraditórias, os trabalhos de Kuhn e Popper O psicólogo insiste:
mostram-se conciliáveis ou mesmo complementares, como – Qual é realmente a sua percepção? Peço que você a
fez Lakatos (síntese) ao mostrar que, se Kuhn compreendia descreva com a maior precisão possível.
que a ciência progride por refutação de projetos de pesquisa, – Você quer dizer que isso não é um livro? Então é o
então o princípio da falseabilidade de Popper é preservado. quê? Uma armadilha?
A pessoa começa a ficar impaciente.
4. Pesquisa – Sim, é um livro; não há nenhuma armadilha aqui. O
O objetivo da atividade é pôr os estudantes em contato com que eu quero é que você me descreva exatamente aquilo
maneiras variadas de conceber as ciências humanas por meio da que você observa, nem mais nem menos.
observação dos modos como algumas universidades apresentam Desconfiada, a pessoa entrevistada responde:
seus cursos nessa área. As variações resultam da complexidade – Bem... Daqui de onde eu vejo, a capa parece um para-
do objeto das ciências humanas: o ser humano, tanto em nível lelogramo vermelho escuro.
individual como grupal. Entram em jogo, portanto, não apenas Essa cena foi imaginada pelo psicólogo George Miller,
concepções de Ciência, mas do que é o próprio ser humano. um dos pais da psicologia cognitiva, a fim de mostrar como
funciona o ato de percepção. Espontaneamente, simplesmente
5. Comparação olhando, cremos ver um livro sobre a mesa. Na realidade, o
Os vídeos propostos aqui almejam ilustrar as diferentes que percebemos é um retângulo vermelho sobre um fundo
concepções de Ciência tal como apresentadas neste livro. cinza (a cor da mesa), mas sabemos que se trata de um livro.
Espera-se que os estudantes, comparando os vídeos, identifi- Assim, damo-nos conta de que uma interpretação dos dados
quem elementos conceituais levantados neste capítulo, espe- visuais se sobrepõe à percepção; e que no ato da percepção
cialmente no item 5 (O conhecimento nas ciências naturais) a pura sensação se mistura já com a consciência.
relacionado ao vídeo do professor Murray Gell-Mann e no
item 6 (O conhecimento nas ciências humanas) relacionado DORTIER, J.-F. La perception, une lecture du monde. Revue
ao vídeo dos professores de Ciências Sociais da Fundação des Sciences Humaines, n. 7, p. 22, 2007. (A percepção, uma
Getúlio Vargas. Nesse contexto, é importante perceber leitura do mundo. Tradução nossa.)
também a especificidade e autonomia da Filosofia (vídeo
da professora Marilena Chaui). De acordo com o texto de Jean-François Dortier, perceber
é fazer uma “leitura” da realidade, e não somente observá-la
passivamente. Nessa “leitura” há três processos que não ocor-
PROPOSTA DE ATIVIDADE COMPLEMENTAR
rem necessariamente um depois do outro, mas sim ao mesmo
Apresente aos estudantes o quadro A con- tempo. Acontece a sensação (percepção sensível ou experiên-
Acesse:
dição humana, de 1933, pintado por René cia sensorial): graças à nossa “aparelhagem” cognitiva (órgãos
Magritte (Disponível em: <http://class físicos, sistema nervoso, cérebro), identificamos características
connection.s3.amazonaws.com/262/flash do mundo exterior; por exemplo, a cor do livro (vermelho), a
cards/705262/jpg/803464d1329445063426. luminosidade (vermelho escuro), a cor da mesa (cinza) etc.
jpg>. Acesso em: 16 abr. 2016.). Solicite que Simultaneamente, acontece a experiência propriamente per-
eles comentem o quadro com base no texto que segue: ceptiva: nossa “aparelhagem” cognitiva agrupa os elementos
mais próximos e identifica formas geométricas; por exemplo,
percebemos os pontos mais próximos e falamos de retângulo,
Percepção: uma leitura do mundo paralelogramo etc. Ao mesmo tempo, dá-se a atividade cognitiva:
Jean-François Dortier interpretamos as formas de acordo com dados que nossa cultura
nos transmite; é por isso que a pessoa entrevistada associa com
Nossos olhos não são uma simples janela transparente um livro o paralelogramo ou o conjunto de pontos que ela vê.
para o mundo. Ver não é somente ser sensível às informa-
ções vindas do mundo exterior, mas é também selecioná-las,
organizá-las e interpretá-las em função de nossos esquemas TEXTOS COMPLEMENTARES E DE
mentais. Trata-se de uma percepção que pode ser descrita APROFUNDAMENTO
em três grandes etapas. O filósofo francês Gaston Bachelard, especialista nos deba-
Imaginemos a seguinte cena como se ela acontecesse em tes da primeira metade do século XX em torno da identidade
um laboratório de Psicologia. Um psicólogo pergunta a uma da ciência, propõe uma explicação para o estabelecimento
pessoa: “O que você vê sobre a mesa?”. de verdades objetivas. Sua posição lembra fortemente a de
– Um livro. David Hume, que discutia o conhecimento sob a perspectiva

506 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


da nossa disposição a operar com hábitos e pressupunha, por- aprender com os artistas a refinar nossa percepção, entrando
tanto, um olhar ao mesmo tempo voltado para o passado, pois em relação direta (sem intermediários) com a realidade:
os hábitos se constroem, e para o futuro, pois, ao conhecer,
os seres humanos creem que os fenômenos se comportarão A percepção do artista pode melhorar
do mesmo modo como se comportaram no passado. nossa percepção cotidiana
Hume, no entanto, insistia que a crença no comporta- Henri Bergson
mento futuro dos fenômenos não é garantida por nada; afi-
nal, por exemplo, pode ser o caso de que o Sol não nascerá Qual é o objeto da arte? Se a realidade viesse tocar dire-
amanhã. Gaston Bachelard, de certo modo, concorda com tamente nossos sentidos e nossa consciência, se nós pudésse-
Hume, mas não vê sentido em afirmar que nada garante mos entrar em comunicação imediata com as coisas e com
que os fenômenos não adotarão o mesmo comportamento nós mesmos, então a arte seria inútil; ou, então, todos nós
no futuro. Essa afirmação seria tão injustificada como a seríamos artistas, pois nossa alma vibraria continuamente em
crença na regularidade dos fenômenos. Em vez disso e sem uníssono com a Natureza. Nossos olhos, ajudados pela nossa
afirmar nem que os fenômenos se comportarão do mesmo memória, recortariam quadros inimitáveis no espaço e os fi-
modo nem que nada garante que eles não se comportarão xariam no tempo. Nosso olhar colheria, esculpindo para nós
do mesmo modo, Bachelard prefere falar de um “mistério no mármore vivo do corpo humano, fragmentos de estátuas
do real” (da realidade), mas não no sentido de algo que não tão belos quanto aqueles do estatuário antigo. [...] Tudo isso
pode ser conhecido, e sim como algo que pode ser investi- está em torno de nós; e, no entanto, nada disso é percebido
gado sempre mais, nunca vindo a ser esgotado. O passado, distintamente por nós. O que eu diria sobre o que há entre a
desse ponto de vista, mostra-se como fonte de conhecimento, natureza e nós? Há um véu que se interpõe, véu espesso para
principalmente porque permite identificar e superar erros. o comum dos mortais, mas fino e leve, quase transparente,
para os artistas e os poetas. Qual fada teceu esse véu? Ela fez
O conhecimento e os olhos isso por maldade ou por amizade? Era preciso viver... E a vida
voltados para o passado exige que nós apreendamos as coisas na relação que elas têm
Gaston Bachelard com nossas necessidades. Viver significa agir.

O conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas BERGSON, H. Le rire. Paris: PUF, 1997. p. 115. (O riso.
sombras. Nunca é imediato e pleno. As revelações do real são Tradução nossa.)
recorrentes. O real nunca é “o que se poderia achar”, mas é
sempre “o que se deveria ter pensado”. O pensamento empírico
torna-se claro depois, quando o conjunto de argumentos fica
estabelecido. Ao retomar um passado cheio de erros, encon- SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS
tra-se a verdade num autêntico arrependimento intelectual. ALFIERI, F. Pessoa humana e singularidade em Edith Stein.
No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento Tradução Clio Francesca Tricarico. São Paulo: Perspectiva, 2014.
anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, supe- ALVES-MAZZOTTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O
rando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização. método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa
A ideia de partir do zero para fundamentar e aumentar o e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 1999.
próprio acervo só pode vingar em culturas de simples justa- BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Tradução
posição, em que um fato conhecido é imediatamente uma Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
riqueza. Mas, diante do mistério do real, a alma não pode,
por decreto, tornar-se ingênua. É impossível anular, de um BERGSON, H. O riso. Tradução Ivone C. Benedetti. São
só golpe, todos os conhecimentos habituais. Diante do real, Paulo: Martins Fontes, 2004.
aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que devería- BUNNIN, N.; TSUI-JAMES, E. P. (Orgs.). Compêndio de
mos saber. Quando o espírito se apresenta à cultura científica, Filosofia. Tradução Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola,
nunca é jovem. Aliás, é bem velho, porque tem a idade de seus 2002.
preconceitos. Aceder à ciência é rejuvenescer espiritualmen- BURKE, P. Uma história social do conhecimento. Tradução
te, é aceitar uma brusca mutação que contradiz o passado. Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. 2 v.
DE MURALT, A. Metafísica do fenômeno: as origens medie-
BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Tradução Estela vais e a elaboração do pensamento fenomenológico. Tradução
dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 17-18. Paula Martins. São Paulo: Editora 34, 1998.
FAUSTINO, S. Wittgenstein: o eu e sua gramática. São Paulo:
De acordo com Henri Bergson, nem todos somos artistas;
Ática, 1995.
e nosso conhecimento é, em geral, menos profundo do que o
conhecimento dos artistas, pois quem não é artista está acostu- HABERMAS, J. Conhecimento e interesse. Tradução Luiz
mado a perceber somente aquilo que é necessário para viver, Repa. São Paulo: Unesp, 2014.
estabelecendo um intermediário entre si mesmo e a realida- RIBEIRO DE MOURA, C. A. Crítica da razão na fenomeno-
de: o intermediário do interesse. Dessa perspectiva, é possível logia. São Paulo: Edusp/Nova Stella, 1989.

Manual do Professor 507


UNIDADE 3 A Filosofia e sua história

Chaves de leitura para o estudo de


História da Filosofia

O objetivo da Unidade 3 é oferecer alguns dados his- dá sentido à própria existência. Além disso, do ponto de
tóricos e historiográficos atualizados que permitam obter vista da classificação marxista, o Japão continuou com o
uma visão de conjunto da História da Filosofia, de acordo modo de produção feudal até praticamente o século XIX,
com a divisão tradicional da História nos períodos Antigo, o que dificultaria chamá-lo de “medieval” ou afirmar que
Medieval, Renascentista, Moderno e Contemporâneo, a Idade Média continuou até o século XIX. Porém, como
sem subscrever propriamente essa divisão e sem sugerir a maioria dos livros de História e de História da Filosofia
a ideia de que as concepções filosóficas possuem desen- adotam a classificação tradicional nos períodos Antigo,
volvimento linear. Medieval, Renascentista, Moderno e Contemporâneo, este
Com efeito, no tocante à divisão tradicional dos períodos livro, alertando para a fragilidade dessas etiquetas metodo-
históricos, ela não é a única maneira de dividir a História da lógicas, também adota tal classificação, com o objetivo de
Humanidade, nem certamente hoje a mais indicada. Basta simplesmente facilitar a comunicação.
pensar, por exemplo, que a palavra moderna, em nosso vo- No que toca ao tratamento histórico dos temas filosó-
cabulário cotidiano, faz pensar no período em que vivemos; ficos e à suposição de que eles possuem desenvolvimento
nós nos consideramos modernos, não antigos nem medie- linear, vários aspectos merecem ser ressaltados. Um deles
vais... Além disso, só em contextos mais “técnicos” fala-se consiste no que Henri Bergson (2006), na Introdução da
de Contemporaneidade. Mas, na escrita historiográfica, a obra O pensamento e o movente, chamou de “efeito retroa-
palavra moderna refere-se aos séculos XVI-XVIII, pois essa tivo da afirmação do verdadeiro” ou “movimento retroativo
divisão foi criada no século XVIII, quando aqueles que a do verdadeiro”: dito de modo simplificado e bastante geral,
propuseram consideravam-se precisamente modernos. trata-se da atitude dos filósofos ou filósofas que, ao produzir
Posteriormente, para marcar a diferença entre o nosso período sua filosofia, muitas vezes “constroem” a tradição com a
e o período dos séculos XV-XVIII ou XVI-XVIII, criou-se a qual querem pôr-se em continuidade ou com a qual querem
expressão história contemporânea ou Contemporaneidade, romper. Numa palavra, os filósofos costumam “projetar”
quer dizer, o momento histórico do nosso tempo. Esse é só sua visão filosófica para o passado, seja para identificá-la
um exemplo de dificuldade. Outro poderia ser o seguinte: em autores que os precederam, seja para dizer que sua vi-
como falar de História Antiga e de História Medieval para são é original e sem precedentes. Ocorre, porém, que essa
o mundo todo, se não houve propriamente nem período “licença filosófica” (ao modo de uma licença poética) não
antigo nem Idade Média nos continentes não europeus? permite afirmar que aquilo que é identificado ou negado
Diante de dificuldades como essas surgiram outras pro- no passado realmente existiu ou não existiu. As projeções
postas de dividir os períodos históricos, como o trabalho se devem ao modo como os filósofos interpretam o passado
marxista, que classifica os modos de vida dos diferentes e, nesse sentido, são perfeitamente legítimas. Cabe, porém,
grupos sociais tomando por base a maneira como eles pro- a quem estuda a História da Filosofia, sobretudo com os
duzem sua subsistência, o seu modo de produção. Essa recursos mais atualizados e que estão à disposição de todos
classificação permite identificar sociedades muito diferentes no momento presente, distinguir o que, de fato, correspon-
coexistindo ao mesmo tempo e, muitas vezes, no mesmo de ao passado e o que é projeção sobre o passado. Alguns
espaço: há grupos que praticam o que os marxistas chamam exemplos são bastante conhecidos: nem tudo o que Tomás
de modo de produção comunitário (produção em conjunto, de Aquino encontra nos textos de Aristóteles corresponde
divisão comum dos bens produzidos etc.), enquanto outras ao que o Estagirita realmente pensou e escreveu; Hegel diz
vivem no modo de produção capitalista (industrialização, que Heráclito é o criador da dialética, mas hoje se sabe que
mercado, mundo financeiro etc.). Considerando essas a dialética de Heráclito é bastante diferente da dialética
diferenças, o que significaria dizer que essas sociedades hegeliana; Nietzsche identifica uma oposição entre o es-
são “contemporâneas”? Só significa que estão no mesmo pírito apolíneo e o espírito dionisíaco em Platão, mas hoje
tempo cronológico (que, no fundo, tem um forte compo- se sabe que Platão não os opôs; Wittgenstein pretendeu
nente de convenção). Às vezes, essas sociedades não têm edificar sua filosofia da linguagem sobre a recusa do mo-
nada em comum quanto ao estilo de vida. Obviamente, delo representacionista de Agostinho de Hipona, embora
uma comparação entre elas não permite dizer que uma hoje se saiba que há claros elementos de intersubjetividade
é melhor ou pior do que a outra, pois tudo depende de na concepção agostiniana da linguagem; Deleuze afirma
como cada sociedade é estruturada e de como cada grupo que sua concepção da diferença já estava em Duns Escoto,

508 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


entendido como pensador da extrema individualidade, Um caso cada vez mais claro para os especialistas é o con-
sem nada de universal, quando, na verdade, embora acen- ceito de ser: embora Heidegger diga referir-se ao mesmo
tuasse a individualidade, Escoto supunha universalidades. conceito que possui esse nome em Platão, Aristóteles e
Tantos outros exemplos poderiam ser aqui citados. Mas o outros, discute-se hoje se Heidegger realmente se referia
fato de Tomás de Aquino, Hegel, Nietzsche, Wittgenstein ao mesmo conceito tal como ele aparece em Platão e
e Deleuze terem fundado suas afirmações mais sobre “pro- Aristóteles, ainda que o nome ser seja o mesmo na obra do
jeções” do que em “dados” que correspondem realmente filósofo alemão e dos filósofos por ele criticados. Pode-se
à “verdade” histórica não diminui em nada a importância mesmo discutir se Heidegger entendeu corretamente (do
e a grandiosidade das filosofias produzidas por eles sobre ponto de vista histórico-filosófico, quer dizer, do sentido
a base dessas “projeções”. Dificilmente alguém poria em dado pelos autores em suas obras) os conceitos platônico
questão o valor filosófico do que fez Tomás sobre a base e aristotélico de ser. Tal descompasso aponta para a possi-
do “seu” Aristóteles, nem da filiação de Hegel a Heráclito bilidade de pensar que, em Heidegger, mesmo o conceito
ou da refinada crítica da cultura e da Filosofia produzida que ele identificava nos filósofos antigos corresponde a
por Nietzsche sobre a base do que teria sido a oposição um conceito diferente daquele empregado por eles. Não
entre espírito apolíneo e dionisíaco, nem a filosofia da lin- haveria, então, uma continuidade direta entre eles e o
guagem elaborada por Wittgenstein a partir de um caráter pensador alemão. Em outras palavras, o “ser” de Platão e
estritamente representacionista em Agostinho, tal como o Aristóteles não seria exatamente o mesmo investigado por
filósofo austríaco supunha, ou ainda da filosofia da dife- Heidegger. Dessa perspectiva, mais do que um desenvol-
rença de Deleuze, construída sobre sua leitura particular vimento linear, a História da Filosofia parece ser o con-
de Duns Escoto. junto de filosofias que se retomam entre si, se distanciam,
Em contrapartida, é certo que, quanto mais dispõem de refazem caminhos já percorridos, abrem novos caminhos.
dados históricos e historiográficos atualizados e assentados Considerando esses aspectos, a Unidade 3 apresenta
entre os especialistas, melhores “projeções” os filósofos chaves de leitura distribuídas metodologicamente de
operam sobre o passado. A esse respeito, Michel Foucault modo a ressaltar algumas especificidades exploradas nos
(apesar de alguns deslizes históricos), Giorgio Agamben e diferentes períodos filosóficos, sem insinuar que tais pe-
Georges Didi-Huberman são casos exemplares. No entanto, ríodos constituam “tendências”. Eles são, na realidade,
mais do que avaliar o trabalho dos filósofos, a percepção formas de reunir filósofos ou filosofias que, apesar de
do movimento retroativo do verdadeiro permite esclarecer revelarem elementos comuns, guardam singularidades
que os temas, as questões e os conceitos não possuem his- típicas de cada pensador. A unidade encerra-se com al-
tória linear. Aliás, nem sempre os filósofos falam das mes- gumas indicações para o estudo da Filosofia no Brasil. A
mas coisas, ainda que usando o mesmo vocabulário ou um esse respeito, é importante distinguir entre, de um lado,
conceito expresso por um mesmo nome. Dessa perspecti- a Filosofia e sua história no Brasil (a História da Filosofia
va, estudar História da Filosofia torna-se algo muito mais no sentido da narrativa histórica, próxima à História das
estimulante e vivo do que se fosse a identificação de uma Ideias, e não no sentido técnico-filosófico da História da
galeria de pensadores e pensamentos mortos, retomados ou Filosofia) e, de outro, a Filosofia do Brasil, tal como se tem
abandonados hoje. Ainda, pensadores “passados” podem tornado comum dizer (por exemplo, por Paulo Margutti
mostrar-se perfeitamente “presentes” quando se constata [2013] e Ricardo Timm de Souza [2013]1). A Filosofia no
que os aspectos antes considerados “passados” não cor- Brasil não se reduz à prática filosófica acadêmica, tipi-
respondem exatamente ao que pensaram esses filósofos e camente nascida no século XX. Ela merece ser inserida
que, muitas vezes, tais aspectos não apenas permanecem no contexto latino-americano mais amplo, remontando
no pensamento de outros filósofos, mas continuam válidos à Escolástica colonial, tal como pesquisas recentes têm
por si mesmos. O desenvolvimento extraordinário que os demonstrado (ver referências a seguir). Sobre a filosofia do
estudos de História da Filosofia receberam no século XX Brasil ou a tentativa de identificar um ou mais modos de
expandiu consideravelmente o horizonte desse tipo de pes- “pensar” filosoficamente o Brasil, o debate é de extrema
quisa (e a comunidade filosófica brasileira, nesse quesito, complexidade e requer cuidado redobrado, porque corre-
dá exemplos impactantes de especializações respeitadas no se o risco de, por um lado, transformar uma realidade
mundo todo). É na direção dessa expansão de horizonte que tão variada como a de nosso país em algo como uma
procuram ir as chaves de leitura oferecidas na Unidade 3. substância metafísica ou em uma essência e, por outro,
Em correspondência com a atenção ao movimento re- de acentuar particularismos e elevá-los à categoria de
troativo do que se considera verdadeiro, cabe lembrar que
a História da Filosofia não é composta de problemas fun-
dacionais ou “arquiproblemas” que, uma vez elaborados, 1
A ideia de uma “filosofia do Brasil” não é recente. Não se pode deixar de
seriam sempre os mesmos a receberem tratamento dos evocar o debate ocorrido nos anos 1960 em torno do livro Consciência
e realidade nacional, de Álvaro Vieira Pinto (1960), principalmente
diferentes filósofos ao longo dos tempos. Como já foi dito
com a análise detalhada e a refutação do projeto de Vieira Pinto
acima, nem sempre o conceito de um filósofo precedente por parte de Henrique C. de Lima Vaz (1962), que explicitava as
é retomado de fato por filósofos que utilizam o mesmo consequências totalitárias e fascistas da ideia de realidade nacional.
termo, já que podem operar com um conceito diferente. Cf. também Lebrun (1962).

Manual do Professor 509


representantes de uma “cultura nacional” (ato que pode afirmação injustificada de uma cultura nacional é muito
incorrer explicitamente em uma generalização indevida tênue. A respeito desse debate, são bastante esclarecedo-
e também em uma substancialização metafísica da “cul- ras as ideias de Paulo Margutti (2013), Ricardo Timm de
tura brasileira” ou da “identidade nacional”). O limite Souza (2013), Renato Ortiz (1998) e Eduardo Viveiros de
entre a identificação de unidades culturais brasileiras e a Castro (1996, 2015).

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS Sobre a Filosofia no Brasil e o que se começa a chamar


ARIEL PORTA, M. G. Filosofia e História Acesse: de filosofia “do” Brasil, sugerem-se:
da Filosofia. Cognitio: Estudos, v. 8, n. 2, p. ARANTES, P. E. Um departamento francês de ultramar. São
141-148, 2011. Disponível em: <http://revistas. Paulo: Paz e Terra, 1994.
pucsp.br/index.php/cognitio/article/view
CULLETON, A. Tomás de Mercado on Slavery: Just According
File/9924/7381>. Acesso: 15 abr. 2016.
to Law, Unjust in Practice. Patristica et Mediaevalia, v. 36,
BERGSON, H. O pensamento e o movente. Tradução p. 29-38, 2015. [Tomás de Mercado sobre a escravidão: de
Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006. cap. 1. acordo com a lei, em desacordo com a prática]
Introdução, Primeira parte.
FRANCO, R. O probabilismo na Scholastica Acesse:
CARVALHO, M.; SANTOS, M. Debate com Marilena Colonialis segundo Diego de Avendaño.
Chaui, João Carlos Salles e Marcelo Guimarães. In: Dissertação (Mestrado em: Filosofia)-Faculdade
CARVALHO, M.; DANELON, M. Filosofia: Ensino de Filosofia, Universidade do Vale do Rio dos
Médio. Brasília: MEC/ Secretaria de Educação Básica. p. Sinos, São Leopoldo, RS, 2012. Disponível em:
13-44. (Coleção Explorando o Ensino). v. <http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/
Acesse:
14. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/ UNISINOS/2996>. Acesso em: 22 abr. 2016.
index.php?option=com_dcman&view=down HOFFMEISTER PICH, R.; CULLETON, A. (Orgs).
load&alias=7837-2011-filosofia-capa-pdf&ca Scholastica colonialis: Reception and Development of
tegory_slug=abril-2011-pdf&Itemid=30192>. Baroque Scholasticism in Latin America, 16th-18th Centuries
Acesso em: 15 abr. 2016. / Scholastica coloniali: Recepción y desarrollo de la escolás-
FABBRINI, R. N. O ensino de Filosofia: a Acesse: tica barroca en América Latina, siglos 16 a 18. Turnhoult:
leitura e o acontecimento. Trans/Form/Ação, v. Brépols, 2016.
28, n. 1, p. 7-27, 2005. Disponível em: <http:// JAIME, J. História da Filosofia no Brasil. Petrópolis: Vozes,
www.scielo.br/pdf/trans/v28n1/29404.pdf>. 2012. 4 v.
Acesso em: 15 abr. 2016.
LEBRUN, G. A realidade nacional e seus equívocos. Revista
FAVARETO, C. Sobre o ensino de Filosofia. Acesse: Brasiliense, Brasília, n. 44, p. 42-62, 1962.
Revista da Faculdade de Educação da USP, v.
LIMA VAZ, H. C. Consciência e realida-
19, n. 1, p. 97-102, 1993. Disponível em: <http:// Acesse:
de nacional [Sobre o livro de Álvaro Vieira
www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ccs/pebII/
Pinto]. Síntese, Belo Horizonte, v. 4, p. 92-
ensino_filosofia.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2016.
109, 1962. Disponível em: <http://faje.edu.
GOLDSCHMIDT, V. Tempo histórico e br/periodicos2/index.php/Sintese/article/
tempo lógico na interpretação dos sistemas Acesse: view/3186/3266>. Acesso: 24 maio 2016.
filosóficos. In: . A religião de Platão. MARGUTTI, P. História da filosofia do Brasil. São Paulo:
Tradução Oswaldo e Ieda Porchat. São Paulo: Loyola, 2013.
Difusão Europeia do Livro, 1963. p. 139-147.
Disponível em: <http://www.dfmc.ufscar. ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. São
br/uploads/documents/5078a0dc6a473.pdf>. Paulo: Perspectiva, 1998.
Acesso em: 12 abr. 2016. SCHOLASTICA colonialis. Projeto internacio- Acesse:
Acesse:
nal sediado no Brasil para estudo das formas de
LEBRUN, G. Por que filósofo? Estudos
pensamento filosófico desenvolvidas na América
Cebrap, n. 15, p. 148-153, 1976. Disponível
colonial. Disponível em: <http://www.scholas
em: <http://www.cebrap.org.br/v2/files/upload/
ticacolonialis.com>. Acesso em: 22 abr. 2016.
biblioteca_virtual/por_que_filosofo.pdf>.
Acesso em: 15 abr. 2016. TIMM DE SOUZA, R. O Brasil filosófico.
São Paulo: Perspectiva, 2013.
LEOPOLDO E SILVA, F. História da Filosofia, Acesse:

formação e compromisso. Trans/Form/Ação, v. 25, VIEIRA PINTO, A. Consciência e realidade nacional. Rio
n. 1, p. 7-18, 2012. Disponível em: <http://www2. de Janeiro: ISEB, 1962.
marilia.unesp.br/revistas/index.php/transformacao/ VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São
article/view/820/733>. Acesso em: 15 abr. 2016. Paulo: Cosac Naify, 2015.

510 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA E RECOMENDADA NO
MANUAL DO PROFESSOR1

AGOSTINHO DE HIPONA. A vida feliz. Tradução Nair A. Oliveira. São Paulo: Paulus, 1998.

ALBARNOZ, S. G. (Org.). A Filosofia e a felicidade. Florianópolis: EDUNISC, 2004.

ALFIERI, F. Pessoa humana e singularidade em Edith Stein. Tradução Clio F. Tricarico.


São Paulo: Perspectiva, 2014.

ALMEIDA JÚNIOR, J. B. A avaliação em Filosofia. Princípios, v. 12, p. 145-156, 2005.


Disponível em: <http://www.principios.cchla.ufrn.br/arquivos/17-18P-145-156.pdf>. Acesso
em: 19 abr. 2016.

ALMEIDA, G. A. Perspectivas da Filosofia no Brasil do ponto de vista de um scholar.


Kriterion, Belo Horizonte, v. 129, p. 411-416, 2014.

ALMEIDA, J. M. (Org.). Subjetividade, Filosofia e Cultura. São Paulo: Liber Ars, 2011.

ALVES-MAZZOTTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e


sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 1999.

ARANTES, P. E. et al. A filosofia e seu ensino. 2. ed. São Paulo: Vozes/Educ, 1995.

ARANTES, P. E. Um departamento francês de ultramar. São Paulo: Paz e Terra, 1994.

ARAÚJO DE OLIVEIRA, M. A religião na sociedade urbana e pluralista. São Paulo: Paulus,


2009.

ARENDT, H. Entre o passado e futuro. Tradução Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo:
Perspectiva, 1972.

ARIEL PORTA, M. G. Filosofia e História da Filosofia. Cognitio: Estudos, v. 8, n. 2, p.


141-148, 2011. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/cognitio/article/viewFi
le/9924/7381>. Acesso: 15 abr. 2016.

AZAR FILHO, C. M.; CUNHA RIBEIRO, L. A. Para que Filosofia? Um guia de leitura para
o Ensino Médio. Rio de Janeiro: Nau, 2014.

BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio
de Janeiro: Contraponto, 1996.

BERGSON, H. O pensamento e o movente. Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. cap. 1. Introdução, Primeira parte.

BERGSON, H. O riso. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BERGSON, H. O riso. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BERLENDIS FIGUEIREDO, V. Falta debate. Kriterion, Belo Horizonte, v. 129, p. 417-


424, 2014.

BITPOL, M. La conscience a-t-elle une origine? Des neurosciences à la pleine conscience:


une nouvelle approche de l’esprit. Paris: Flammarion, 2014.

BJÖRK. All is Full of Love. Londres: One Little Indian, 1997.

1
Para os casos de material disponibilizado na Internet, os respectivos links são indicados na página em
que se dá sua referência neste Manual do Professor.

Manual do Professor 511


BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares
para o Ensino Médio. v. 3: Ciências Humanas e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_03_internet.pdf>.
Acesso em: 19 abr. 2016.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros Curriculares


Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: MEC/SEB, 1999. Disponível em: <http://portal.
mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ciencian.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2016.

BOFF, C. O livro do sentido: crise e busca de sentido hoje. São Paulo: Paulus, 2015. Parte
crítico-analítica.

BORNHEIM, G. Introdução ao filosofar. São Paulo: Globo, 2009.

BUNNIN, N.; TSUI-JAMES, E. P. (Orgs.). Compêndio de Filosofia. Tradução Luiz Paulo


Rouanet. São Paulo: Loyola, 2002.

BURKE, P. Uma história social do conhecimento. Tradução Denise Bottmann. Rio de Janeiro:
Zahar, 2002. 2 v.

CERLETTI, A. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

CARVALHO, M.; SANTOS, M. Debate com Marilena Chaui, João Carlos Salles e Marcelo
Guimarães. In: CARVALHO, M.; DANELON, M. Filosofia: Ensino Médio. Brasília: MEC/
Secretaria de Educação Básica. p. 13-44. (Coleção Explorando o Ensino). v. 14. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=7837-2011-
filosofia-capa-pdf&category_slug=abril-2011-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 15 abr. 2016.

CHAUI, M. Contra o febeapá. Kriterion, Belo Horizonte, v. 129, p. 431-438, 2014.

CHAUI, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2005.

CHAUI, M. Ideologia e educação. Educação e pesquisa, v. 42, p. 245-258, 2016. Disponível


em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022016000100245&ln
g=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 19 abr. 2016.

CHAUI, M. Percursos de Marilena Chaui: Filosofia, Política, Educação. Educação e


pesquisa, v. 42, p. 259-277, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1517-97022016000100259&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 19 abr. 2016.

COELHO, M. J. Corpo, pessoa e afectividade: da fenomenologia à bioética. Dissertação


(Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Nova de
Lisboa, 1997. Disponível em: <http://purl.pt/5485/1/sa-87495-v_PDF/sa-87495-v_PDF_X-C/
sa-87495-v_0000_1_tX-C.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2016.

COLLINGWOOD, R. G. Toute histoire est histoire d’une pensée. Paris: EPEL, 2010. Tradução
de: An Autobiography.

COMTE-SPONVILLE, A. O amor. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins


Fontes, 2011.

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), n. 65.


Tradução oficial disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_
council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html>. Acesso em: 14 jun. 2015.

CONTO chinês anônimo. In: PIQUEMAL, M. Les philo-fables. Paris: Albin Michel, 2008.
p. 45-47.

CRITELLI, D. M. Analítica do sentido: uma aproximação e interpretação do real de orien-


tação fenomenológica. São Paulo: Brasiliense, 2006.

CRITELLI, D. M. História pessoal e sentido da vida: historiobiografia. São Paulo: EDUC


& FAPESP, 2009.

512 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


CULLETON, A. Tomás de Mercado on Slavery: Just According to Law, Unjust in Practice.
Patristica et Mediaevalia, v. 36, p. 29-38, 2015.

CUOCO PORTUGAL, A. Filosofia analítica da religião como pensamento “pós-metafísico”.


Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 16, p. 80-98, 2010. Disponível em: <http://repositorio.unb.
br/bitstream/10482/9680/1/ARTIGO_FilosofiaAnaliticaReligiao.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2016.

DANNER, L. F. Ensino de Filosofia e interdisciplinaridade. Porto Alegre: Fi, 2013.

DANTO, A. O descredenciamento filosófico da arte. Tradução Rodrigo Duarte. Belo Horizonte:


Autêntica, 2014.

DE LIBERA, A. Arqueologia do sujeito. Tradução Fátima Conceição Murad. São Paulo:


FAP-Unifesp, 2013. v. 1.

DE MURALT, A. Metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do pensa-


mento fenomenológico. Tradução Paula Martins. São Paulo: Editora 34, 1998.

DEBRAY, R. L’État séducteur. Paris: Gallimard, 1997.

DEBRAY, R. Manifestos midiológicos. Tradução João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1999.

DELEUZE, G. A lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo:
Perspectiva, 2015.

DIXSAUT, M. Nietzsche lecteur de Platon. In: NESCHKE-HENTSCHKE, A. (Ed.). Images


de Platon et lectures de ses oeuvres. Louvain: Peeters, 1997.

DOMINGUES, I. Painel: Filosofia no Brasil: perspectivas no ensino, na pesquisa e na vida


pública. Kriterion, v. 129, p. 389-396, 2014.

DORTIER, J.-F. La perception, une lecture du monde. Revue des Sciences Humaines, n. 7,
p. 22, 2007.

DUARTE, R. Varia aesthetica: ensaios sobre arte e sociedade. Belo Horizonte: Relicário, 2014.

DUNKER, C. História, gênero e sexualidade. Cadernos Cinema e Psicanálise, São Paulo:


Nversos, v. 5, 2014.

DURKHEIM, É. As regras do método sociológico. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.

DUSSEL, E. Filosofia da libertação. Tradução Georges I. Massiat. São Paulo: Paulus, 1995.

ÉTICA. São Paulo: TV Cultura, 2003. Série televisiva.

ESPINOSA, B. Tratado político. Tradução Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes,
2009.

FABBRINI, R. N. O ensino de Filosofia: a leitura e o acontecimento. Trans/Form/Ação, v.


28, n. 1, p. 7-27, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/trans/v28n1/29404.pdf>.
Acesso em: 15 abr. 2016.

FAUSTINO, S. Wittgenstein: o eu e sua gramática. São Paulo: Ática, 1995.

FAVARETO, C. Sobre o ensino de Filosofia. Revista da Faculdade de Educação da USP, v.


19, n. 1, p. 97-102, 1993. Disponível em: <http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ccs/pebII/
ensino_filosofia.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2016.

FILOSOFIA e verdade. Direção Jean Flechet. França, 1965. Documentário. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=bmWhgV6RAVU>. Acesso em: 12 abr. 2016.

FOUCAULT, M. Em defesa da Sociedade. Tradução Maria Ermantina A. P. Galvão. São


Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

Manual do Professor 513


FOUCAULT, M. Ética, sexualidade, política. Organização Manoel Barros da Motta. Vários
tradutores. São Paulo: Forense, 2012.

FOUCAULT, M. História da sexualidade. Tradução Maria Thereza C. Albuquerque. Rio


de Janeiro: Graal, 1988. 3 v.

FRANCO, R. O probabilismo na Scholastica Colonialis segundo Diego de Avendaño.


Dissertação (Mestrado em: Filosofia)-Faculdade de Filosofia, Universidade do Vale do Rio
dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2012. Disponível em: <http://www.repositorio.jesuita.org.br/
handle/UNISINOS/2996>. Acesso em: 22 abr. 2016.

FREUD, S. L’avenir d’une illusion. Tradução Marie Bonaparte. Paris: PUF, 2002.

FREUD, S. L’hypothèse de l’Inconscient. In: . Métapsychologie. Tradução Jean Laplanche


e J.-B. Pontalis. Paris: Gallimard, 1989.

FREUD, S. O mal-estar na cultura. Tradução Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2010.

GADAMER, H.-G. Verdade e método. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999.

GALLO, S. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio. Campinas,
SP: Papirus, 2012.

GEORGIADIS, J. R.; KRINGELBACH, M. L.; PFAUS, J. G. Sex for Fun: a Synthesis of


Human and Animal Neurobiology. Nature Reviews (Urology), v. 9, p. 498, 2012.

GOLDSCHMIDT, V. Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filo-


sóficos. In: . A religião de Platão. Tradução Oswaldo e Ieda Porchat. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1963. p. 139-147. Disponível em: <http://www.dfmc.ufscar.br/uploads/
documents/5078a0dc6a473.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2016.

GRANGER, G.-G. Filosofia, linguagem, ciência. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida: Ideias
e Letras, 2013.

GRANGER, G.-G. Por um conhecimento filosófico. Campinas: Papirus, 1989.

GREGÓRIO DE NISSA. A criação do homem & A alma e a ressurreição & A grande cate-
quese. Tradução Bento Silva Santos. São Paulo: Paulus, 2011.

GRONDIN, J. Que saber sobre filosofia da religião? Tradução Lucia M. E. Orth. Aparecida:
Ideias e Letras, 2012.

GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

GUIMARÃES, B. et al. Filosofia como esclarecimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

HAACK, S. Filosofia das Lógicas. Tradução Cezar A. Mortari e Luiz Henrique A. Dutra.
São Paulo: UNESP, 2002.

HABERMAS, J. Conhecimento e interesse. Tradução Luiz Repa. São Paulo: Unesp, 2014.

HELLOT, E. O homem: a vida, a ciência e a arte. Tradução Roberto Mallet. São Paulo:
Ecclesiae, 2015.

O ENIGMA de Kaspar Hauser. Direção Werner Herzog. Alemanha, 1974. Filme.

HINTIKKA, J. Gaps in the Great Chain of Being: An Exercise in the Methodology of the
History of Ideas. Proceedings and Addresses of the American Philosophical Association, v. 49,
p. 22-38, 1975-1976.

HOFFMEISTER PICH, R.; CULLETON, A. (Orgs). Scholastica colonialis: Reception and


Development of Baroque Scholasticism in Latin America, 16th-18th Centuries / Scholastica
colonialis: Recepción y desarrollo de la escolástica barroca en América Latina, siglos 16 a
18. Turnhoult: Brépols, 2016.

JAIME, J. História da Filosofia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2012. 4 v.

514 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


JAPIASSU, H. Nem tudo é relativo: a questão da verdade. Rio de Janeiro: Letras e Letras, 2000.

JOAS, H. A sacralidade da pessoa. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Ed. da Unesp, 2012.

JORNALISMO e ética. São Paulo: TV Cultura, 2011. Reportagem. Disponível em: <http://
tvcultura.com.br/videos/132_jornalismo-e-etica-vitrine-06-09-2011.html>. Acesso em: 18
abr. 2016.

JUSTINO DE ROMA. I e II Apologias & Diálogo com Trifão. Tradução Ivo Storniolo. São
Paulo: Paulus, 2009.

JUSTINO DE ROMA. Dialogue avec Tryphon 7,2 – 8,3. Tradução Philippe Bobichon.
Friburgo: Academic Press, 2003.

KIKHÖFEL, E. As neurociências: questões filosóficas. São Paulo: WMF Martins Fontes,


2014. (Coleção Filosofias: o prazer do pensar).

KNIGHT, C. Unit-Ideas Unleashed: A Reinterpretation and Reassessment of Lovejovian


Methodology in the History of Ideas. Journal of the Philosophy of History, v. 6, p. 195-217, 2012.

KNUUTTILA, S. Time and Modality in Scholasticism. In: (Ed.). Reforging the Great
Chain of Being. Studies of the History of Modal Theories. Londres: Reidel, 1981. p. 163ss.

KOHAN, W. (Org.). Filosofia: caminhos para seu ensino. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

KOHAN, W. Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

LACOSTE, J.-Y. A filosofia da arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

LALANDE, A. Vocabulário técnico-crítico da Filosofia. Tradução Fátima Sá Pereira: São


Paulo: WMF Martins Fontes, 1993.

LEBRUN, G. A realidade nacional e seus equívocos. Revista Brasiliense, Brasília, n. 44, p.


42-62, 1962.

LEBRUN, G. Por que filósofo? Estudos Cebrap, v. 15, p. 148-153, 1976. Disponível em:
<http://www.cebrap.org.br/v2/files/upload/biblioteca_virtual/por_que_filosofo.pdf>. Acesso
em: 15 abr. 2016.

LEFORT, C. Essais sur le politique. Paris: Seuil, 1986.

LENOIR, F. Sobre a felicidade: uma viagem filosófica. Tradução André Fontenelle. São
Paulo: Objetiva, 2016.

LEOPOLDO E SILVA, F. A ética pós-moderna. Campinas: Fundação CPFL Cultura, 2013.


Conferência televisiva. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1lBjle0JnAk>.
Acesso: 18 abr. 2016.

LEOPOLDO E SILVA, F. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo: Loyola, 1993.

LEOPOLDO E SILVA, F. História da Filosofia, formação e compromisso. Trans/Form/Ação,


v. 25, n. 1, p. 7-18, 2012. Disponível em: <http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/
transformacao/article/view/820/733>. Acesso em: 15 abr. 2016.

LE PENVEN, F. Marcel Duchamp dans les collections du Musée National d’Art Moderne.
Paris: Centre Georges Pompidou, 2001. p. 62-65.

LEOPOLDO E SILVA, F. Por que filosofia no Segundo Grau. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 6, n. 14, 1992. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0103-40141992000100010>. Acesso em: 12 abr. 2016.

LES INROCKUPTIBLES. Paris, 12 abr. 2014. Entrevista concedida por Georges Didi-
Huberman. Disponível em: <http://www.lesinrocks.com/2014/02/12/arts-scenes/tout-est-la
-rien-nest-cache-11472282/>. Acesso em: 10 out. 2015.

Manual do Professor 515


LEVY, L.; ZINGANO, M.; PEREIRA, L. C. (Org.) Metafísica, Lógica e outras coisas mais.
Rio de Janeiro: Nau, 2011.

LIMA VAZ, H. C. Antropologia filosófica. 2 v. São Paulo: Loyola, 1992.

LIMA VAZ, H. C. Consciência e História. In: . Ontologia e História. São Paulo: Loyola,
2001. p. 219-230.

LIMA VAZ, H. C. Consciência e realidade nacional [Sobre o livro de Álvaro Vieira Pinto].
Síntese, Belo Horizonte, v. 4, p. 92-109, 1962. Disponível em: <http://faje.edu.br/periodicos2/
index.php/Sintese/article/view/3186/3266>. Acesso: 24 maio 2016.

LIMA VAZ, H. C. Escritos de Filosofia I: problemas de fronteira. São Paulo: Loyola, 1986.

LIMA VAZ, H. C. Itinerário da ontologia clássica. In: . Ontologia e História. São Paulo:
Loyola, 2001. p. 62-63.

LOVEJOY, A. A grande cadeia do ser. Tradução Aldo Fernando Barbieri. São Paulo: Palíndromo,
2005. Tradução de: The Great Chain of Being: A Study of the History of an Idea.

LÖWY, M.; SAYRE, R. Revolta e melancolia: o Romantismo na contracorrente da Modernidade.


São Paulo: Boitempo, 2015.

MAAMARI, A. et al. Filosofia na Universidade. Ijuí, RS: Ed. da Unijuí: 2006.

MAGRITTE, R. A condição humana. 1933. Disponível em: <http://classconnection.


s3.amazonaws.com/262/flashcards/705262/jpg/803464d1329445063426.jpg>. Acesso em:
16 abr. 2016.

MARGUTTI, P. História da filosofia do Brasil. São Paulo: Loyola, 2013.

MARGUTTI, P. Sobre a nossa tradição exegética e a necessidade de uma reavaliação do


ensino de Filosofia no país. Kriterion, Belo Horizonte, v. 129, p. 397-410, 2014.

MARTINS, M. F.; REIS PEREIRA, A. (Orgs.). Filosofia e educação: ensaios sobre autores
clássicos. São Carlos: EdUFSCar, 2014.

MARX, K. Critique de La Philosophie du Droit de Hegel. Tradução E. Kouvélakis. Paris:


Ellipses, 2000.

MATA, S. História e religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

MAY, S. Amor: uma história. Tradução Maria Luiza X. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

MEDINA SILVA, I. A avaliação no ensino de Filosofia. Philosophica 7, Lisboa, p. 151-162,


1996. Disponível em: <www.centrodefilosofia.com/uploads/pdfs/philosophica/7/8.pdf>.
Acesso em: 19 abr. 2016.

MERLEAU-PONTY, M. A Natureza. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: WMF Martins


Fontes, 2006.

MERLEAU-PONTY, M. Em toda e em nenhuma parte. In: Textos selecionados. Tradução


Marilena de Souza Chaui. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Coleção Os Pensadores).

MICHELETTI, M. Filosofia analítica da religião. Tradução José Afonso Beraldin. São


Paulo: Loyola, 2007.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Básica. Filosofia: Ensino Médio.


CARVALHO, Marcelo; CORNELLI, Gabriele (Orgs.). Brasília: MEC/SEB, 2010. (Coleção
Explorando o Ensino). v. 14. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_
docman&view=download&alias=7837-2011-filosofia-capa-pdf&category_slug=abril-2011-
pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 19 abr. 2016.

MIRANDA DE ALMEIDA, R. A fragmentação da Cultura e o fim do sujeito. São Paulo:


Loyola, 2014.

516 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


MONTAIGNE, M. Ensaios. Tradução Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes,
2000. 3 v.

MONZANI, L. R. O que é Filosofia da Psicanálise? Philosophos, v. 13, n. 2, 2008. Disponível


em: <http://revistas.ufg.br/index.php/philosophos/article/view/5735/6714#.VMale_7F9Bo>.
Acesso em: 26 jan. 2016.

MORESCHINI, C. História da literatura cristã antiga grega e latina. Tradução Marcos


Bagno. São Paulo: Loyola, 2000. 2 vols.

MURCHO, D. Avaliação em Filosofia e subjetividade. Crítica na rede, jun. 2003. Disponível


em: <http://criticanarede.com/fil_avaliacao2.html>. Acesso em: 19 abr. 2016.

NASCIMENTO, C. A. De Tomás de Aquino a Galileu. Campinas: IFCH-Unicamp, 1995.

NASCIMENTO, C. A. Para ler Galileu Galilei. São Paulo: EDUC, 1990.

NOBRE, M.; TERRA, R. Ensinar Filosofia: uma conversa sobre aprender a aprender.
Campinas: Papirus, 2007.

NOGUEIRA, R. O ensino de Filosofia e a Lei 10.639. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

NOVAES, J.; AZEVEDO, M. A. O. (Orgs.). Filosofia e seu ensino: desafios emergentes.


Porto Alegre: Sulina, 2010.

ORTEGA, F. Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras, 2002.

ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Perspectiva, 1998.

O GAROTO selvagem. Direção François Truffaut. França, 1969. Filme.

OS CAMINHOS da Felicidade. O Globo, Rio de Janeiro, 17 nov. 2012. Disponível em:


<http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/os-caminhos-da-felicidade-6758750>. Acesso
em: 28 ago. 2014.

PAREYSON, L. Os problemas da estética. Tradução Maria Helena N. Garcez. São Paulo:


Martins Fontes, 1989.

PAVIANI, J. Éros, desejo e Bem em O Banquete de Platão. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2015.

PIOVESAN, A. et al. Filosofia e ensino em debate. Ijuí, RS: Unijuí, 2002.

PIQUEMAL, M. Les philo-fables. Paris: Albin Michel, 2008.

POPPER, K. Conjectures and Refutations: the Growth of Scientific Knowledge. Londres:


Routledge and Kegan Paul, 1963.

PLANTINGA, A.; TOOLEY, M. Conhecimento de Deus. Tradução Desidério Murcho. São


Paulo: Vida Nova, 2014.

PLATÃO. Sofista. In: . Diálogos. Tradução Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo:
Nova Cultural, 1984. p. 177-179 e 181 (números 254b-255e; 256d-e). (Coleção Os Pensadores).

POLANYI, M. A lógica da liberdade. Tradução Joubert O. Brizida. São Paulo: Topbooks, 2003.

PORTA, Mario. A filosofia a partir de seus problemas. São Paulo: Loyola, 2003.

PRADO JÚNIOR, B. Erro, ilusão e loucura. São Paulo: Editora 34, 2004.

PRADO JÚNIOR, B. Um convite à falsificação. Folha on line. 19 dez. 1999. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_2_2.htm>. Acesso em: 18 abr. 2016.

RAGO CAMPOS, M. J. Arte e verdade. São Paulo: Loyola, 1992.

RENAULT, A. O indivíduo: reflexão acerca da filosofia do sujeito. Tradução Helena Gaidano.


São Paulo: Difel, 1999.

Manual do Professor 517


RIBEIRO DE MOURA, C. A. Crítica da razão na fenomenologia. São Paulo: Edusp & Nova
Stella, 1989.

RIBEIRO DE MOURA, C. A. História stultitiae e história sapientiae. Discurso 17, p. 151-


171, 1988. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37935/40662>.
Acesso em: 12 abr. 2016.

ROHDEN, L. Amizade entre filosofia e educação. In: PIOVESAN, A. Filosofia e ensino em


debate. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2002.

ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da Educação. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

SACHS, J. A Economia da Felicidade. Valor Econômico, São Paulo, 30 ago. 2011. Disponível em:
<http://www.valor.com.br/opiniao/992070/economia-da-felicidade>. Acesso em: 14 maio 2015.

SÁ JUNIOR, L. A. Ensino de filosofia: experiências e problematizações. Campinas: Pontes, 2014.

SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e fim do indivíduo. Belo
Horizonte: Autêntica, 2016.

SALLES, J. C. Os livros e a noite. Kriterion, Belo Horizonte, v. 129, p. 425-431, 2014.

SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, T. (Org.). Filosofia, Sociedade e Direitos Humanos. São


Paulo: Manole, 2012.

SANGALLI, I. J. O filósofo e a felicidade: o ideal ético do aristotelismo radical. Caxias do


Sul: EDUSC, 2013.

SARTRE, J.-P. La Nausée. Paris: Gallimard Poche, 1938.

SAVIAN FILHO, J. Religião. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. (Coleção Filosofias:
o prazer do pensar).

SAVIAN FILHO, J. Seria o sujeito uma criação medieval? Temas de arqueologia filosófica.
Trans/Form/Ação, v. 38, n. 2, p. 175-204, 2015. Disponível em: <http://www2.marilia.unesp.
br/revistas/index.php/transformacao/article/view/5239/3690>. Acesso em: 15 abr. 2016.

SCHELER, M. Da reviravolta dos valores. Tradução Marco Antonio Casanova. Petrópolis:


Vozes, 2012.
SCHOLASTICA colonialis. Projeto internacional sediado no Brasil para estudo das formas
de pensamento filosófico desenvolvidas na América colonial. Disponível em: <http://www.
scholasticacolonialis.com>. Acesso em: 22 abr. 2016.
SCRUTON, R. Beleza. Tradução Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2015.
SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paralipomena II. Tradução Jarlee Salviano apud
SALVIANO, J. Labirintos do Nada: a crítica de Nietzsche ao niilismo de Schopenhauer.
2006. Tese (Doutorado em: Filosofia)–Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. p. 2.
SIMMEL, G. Filosofia do amor. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SIMMEL, G. Religião: ensaios. Tradução Leopoldo Waizbort. São Paulo: Olho d’Água,
2011. 2 v.
SOUZA, M. G. A construção do conceito de cidadania. Entrevista concedida à TV Univesp,
2008. Parte 1. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zNxlHZSAerw>. Acesso
em: 2 maio 2016.
SOUZA, M. G. A construção do conceito de cidadania. Entrevista concedida à TV Univesp,
2008. Parte 2. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kszNS4731EE>. Acesso
em: 2 maio 2016.
STEGMÜLLER, W. Filosofia contemporânea. Tradução Edwino A. Royer. São Paulo:
Forense, 2012.

518 Filosofia e filosofias – existência e sentidos


STORCK, A. Filosofia medieval. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. (Coleção Passo a Passo).
TIMM DE SOUZA, R. O Brasil filosófico. São Paulo: Perspectiva, 2013.
TOMÁS DE AQUINO. Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio. Tradução, estudos e
notas de Carlos Arthur R. Nascimento. São Paulo: UNESP, 1999. Questões 5 e 6.
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. Vários tradutores. São Paulo: Loyola, 2000. v. 1.
Parte I, questão 2, artigo 3.
VALLÉE, M.-A. Culture, appartenance et dialogue: trouver la juste articulation. In:
MULTICULTURALISMO E RECONHECIMENTO, 2003. São Paulo: Agência da
Francofonia; Consulado da França; Bureau do Quebec; Unifesp; PUC, 2013. p. 7-11.
VASILIU, A. EIKÔN: L’image dans le discours des trois Cappadociens. Paris: PUF, 2010.
VEYNE, P. Como se escreve a História. Tradução Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp.
Brasília: EdUnB, 1982.
VEYNE, P. Quando nosso mundo se tornou cristão. Tradução Marcos de Castro. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.

VIEIRA PINTO, A. Consciência e realidade nacional. Rio de Janeiro: ISEB, 1960.

VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac & Naif, 2015.

VIVEIROS DE CASTRO, E. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio.


Mana, v. 2, n. 2, 1996. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0104-93131996000200005>. Acesso em: 18 abr. 2016.

WEIL, S. Aulas de filosofia. Tradução Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1991.

WILKINSON, M. B.; CAMPBELL, H. N. Filosofia da religião: uma introdução. Tradução


Anoar J. Provenzi. São Paulo: Paulinas, 2014.

WINNICOTT, D. Natureza humana. Tradução Davi Litman Bogomoletz. Rio de Janeiro:


Imago, 1990.

WISNIK, J. M. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

WIZISLA, E. Benjamin e Brecht: história de uma amizade. Tradução Rogério Silva Assis.
São Paulo: Edusp, 2013.

WOLFE, G. A beleza salvará o mundo: redescobrindo o homem numa era ideológica.


Tradução Marcelo G. de Oliveira. São Paulo: Vide, 2015.

Manual do Professor 519

Você também pode gostar