Entre A Italia Eo Brasil Meridional Histótias Orais e Narrativas de Imigrantes
Entre A Italia Eo Brasil Meridional Histótias Orais e Narrativas de Imigrantes
Entre A Italia Eo Brasil Meridional Histótias Orais e Narrativas de Imigrantes
Comitê Editorial
CAROLINE TECCHIO
Doutoranda em História, Universidade do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon-PR
DANIELE BROCARDO
Doutoranda em História, Universidade do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon-PR
RAFAEL GANSTER
Mestre em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS
Organizadores:
Antonio de Ruggiero
Leonardo de Oliveira Conedera
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Fotografia de Capa: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami. Caxias do Sul.
Série Historicus - 22
Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes [recurso eletrônico] / Antonio de Ruggiero;
Leonardo de Oliveira Conedera (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.
179 p.
ISBN - 978-65-5917-021-0
DOI - 10.22350/9786559170210
CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
Sumário
Apresentação ............................................................................................................. 9
Antonio de Ruggiero
Leonardo de Oliveira Conedera
1 ................................................................................................................................ 13
Crenças e práticas de cura entre descendentes de imigrantes italianos no Rio Grande
do Sul – Século XX
Karina Bortolanza
Maíra Ines Vendrame
2 ............................................................................................................................... 39
Um grupo minoritário: relatos sobre a vivência metodista na colônia italiana do
nordeste gaúcho
Vicente Dalla Chiesa
3 ............................................................................................................................... 69
Indústria têxtil na colônia italiana no Sul do Brasil: da pesquisa documental à
história oral
Vania B.M Herédia
4............................................................................................................................... 88
Memórias orais arquivadas: a escolarização de imigrantes no meio rural na região
nordeste do Rio Grande do Sul (1910-1940)
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin
5 ...............................................................................................................................112
História oral e narrativas biográficas no estudo da trajetória do marmorista italiano
Leone Lonardi
Regina Zimmermann Guilherme
6.............................................................................................................................. 138
Um Lucano no Novo Mundo: a trajetória de Giuseppe Antonio Marramarco em Porto
Alegre
Leonardo de Oliveira Conedera
7 .............................................................................................................................. 158
“Eu ficava ali, olhando o céu” : Narrativas, imagens, objetos, personagens e lugares
em pesquisas etnográficas com descendentes de imigrantes italianos no Brasil e na
Itália
Maria Catarina Chitolina Zanini
Apresentação
Antonio de Ruggiero
Leonardo de Oliveira Conedera
Italiana no Sul do Brasil, que surgiu como cooperativa têxtil em 1894, fun-
dada por um grupo de italianos provindos do Norte da península, de uma
região caraterizada pela produção de lã. Depois de ter passado por inúme-
ras gestões e uma grave crise enfrentada no final do século XX, o
patrimônio industrial retornou para a gestão de operários descendentes
de italianos. Através de entrevistas recentes dos trabalhadores que enfren-
taram esta experiência, a autora repercorre as estratégias de luta e
negociação para que a mesma não desaparecesse. A utilização destas me-
mórias permitiu estabelecer relações com as dinâmicas históricas que
estimularam a saída dos operários italianos pioneiros, que depois das gre-
ves de 1890-1891 na região de origem, resolveram se mudar para a Serra
Gaúcha.
No quarto capítulo, Luciane Sgarbi Santos Grazziotin aborda a temá-
tica da educação em contextos migratórios, analisando comparativamente
os processos de escolarização no meio rural, em espaços geográficos loca-
lizados no Nordeste do estado do Rio Grande do Sul. Valorizando um rico
patrimônio documental de entrevistas depositadas em dois diferentes ar-
quivos, a autora apresenta os resultados de uma investigação sobre tais
práticas escolares na região rural entre as décadas de 1910 e 1940.
O quinto capítulo, de Regina Zimmermann Guilherme, nos informa
sobre a perspectiva teórico-metodológica ligada à utilização da História
Oral, que orientou o desenvolvimento da dissertação de mestrado da
mesma autora. Através do recurso a entrevistas orais, complementares a
várias outras fontes, Regina foi capaz de penetrar mais a fundo no mundo
de um marmorista italiano que chegou em Porto Alegre na década de 1920,
se inserindo em um setor de mercado favorável naquele contexto. A partir
da trajetória individual, a autora explora a questão da imigração qualifi-
cada, do transnacionalismo, das redes e dos recursos étnicos utilizados por
imigrantes italianos especializados nas artes plásticas.
No sexto capítulo, Leonardo de Oliveira Conedera analisa o percurso
individual do imigrante italiano Giuseppe Antonio Marramarco, que se es-
tabeleceu em Porto Alegre em 1946. Através do depoimento oral do
12 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Karina Bortolanza 1
Maíra Ines Vendrame 2
1
Graduada em história pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Foi bolsista de iniciação científica
UNIBIC.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em História e do Curso de História da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS). Pesquisa financiada pelo projeto ARD/FAPERGS.
3
A emancipação de Farroupilha ocorreu em 11 de dezembro de 1934, através do Decreto Estadual nº 5.779. Fonte:
site da prefeitura de Farroupilha (http://farroupilha.rs.gov.br/cidade/historia/). Acesso: 28 de abril de 2019.
14 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
***
Fonte: Mapa que destaca a região estudada (localiza-se entre as cidades de Bento Gonçalves, Pinto Bandeira, Far-
roupilha, Nova Roma do Sul e Caxias do Sul), a partir dos lotes coloniais e linhas (Cafundó, República, 24 de Maio e
Jacintho), que pertencem à comunidade de São José. (Mapa adaptado através da ferramenta “Colônias”. Disponível
em: <http://colonias.heuser.pro.br/app/>. Acesso: 12 de maio de 2019.
4
Ao total foram realizadas sete entrevistas coletivas: Entrevista nº 1, dois entrevistados; entrevista nº 2, quatro
entrevistados; entrevista nº 3, apenas uma entrevistada. Todas as entrevistas se encontram publicadas na integra na
monografia intitulada “Me Gá contato cozi”: crenças e práticas de cura entre descendentes de imigrantes italianos
em Farroupilha, século XX, (BORTOLANZA, 2019).
18 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
5
Sobre a ideia de escassez de médicos nas regiões de colonização italiana, destacam-se os seguintes autores: Luis A.
de Boni (1996) e Olívio Manfroi (1975).
6
Os relatórios dos agentes consulares que visitaram as regiões de colonização italiana do Rio Grande do Sul no final
do século XIX e início do XX foram agrupados e publicados no livro intitulado “L’emigrazione italiana nel Rio Grande
do Sul Brasiliano (1875-1914)”, organizado por Gianpaolo Romanato e Vânia Merlotti Herédia (2018).
20 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
7
Ministero degli affari esteri. Commissariato dell’emigrazione. Bollettino dell’emigrazione. Anno XII, 15 Agosto 1913,
n. 10. ROMANATO; HERÉDIA, 2018, p. 766.
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 21
8
Ministero degli affari esteri. Commissariato dell’emigrazione. Bollettino dell’emigrazione. Anno XII. 15 Agosto 1913,
n. 10. 789. ROMANATO; HERÉDIA, 2018, p. 789.
9
Ministero degli affari esteri. Commissariato dell’emigrazione. Bollettino dell’emigrazione. Anno XII, 15 Agosto 1913,
n. 10. ROMANATO; HERÉDIA, 2018, p. 766.
10
Ministero degli affari esteri. Commissariato dell’emigrazione. Bollettino dell’emigrazione. Anno 1904, n. 18.
ROMANATO; HERÉDIA, Vania B. M. 2018, p. 474.
11
Leonor Carolina Baptista Schwartsmann (2008), no livro intitulado “Olhares do médico-viajante italiano Giovanni
Palombini no Rio Grande do Sul (1901-1914)”, analisa a presença dos médicos italianos nas regiões que receberam
imigrantes no estado sul-riograndense.
22 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
controle daqueles, mas também uma pressão por parte dos diplomados
sobre os práticos de cura sem formação. Para justificar as práticas realiza-
das por pessoas não formadas, os médicos acusavam os curandeiros de
serem ignorantes. Apesar do combate realizado pelos representantes da
medicina oficial aos curadores, parte da população sentia receio e “medo”
das práticas realizadas pelos médicos (WEBER, 1999, p. 114-15).
No início do século XX, inúmeras pessoas buscavam sobreviver, nos
espaços urbanos e rurais do território sul-rio-grandense, por meio de prá-
ticas que atendessem seus problemas de saúde. A população procurava
contornar as “exigências” que a sociedade médica impunha, continuando
a praticar suas formas de cura. Já os médicos, conforme destaca Weber
(1999, p. 115), estavam empenhados em “demonstrar a sua diferença em
relação a todas as concepções e práticas populares sobre doença e cura”,
reforçando, assim, a “sua autoridade ‘científica’ contra a ignorância dos
que não se utilizavam dos conhecimentos ‘civilizados’ difundidos pelas ins-
tituições médicas”. Era, portanto, bastante comum ouvir médicos
desvalorizando curandeiros e os diminuindo enquanto práticos da cura.
Queriam criar uma hierarquia12 no espaço da saúde. Pela medicina, os cu-
randeiros eram vistos como indivíduos que buscavam abusar da
ignorância das pessoas.
Por utilizarem métodos menos invasivos e conferir explicações que
iam ao encontro dos modos de pensar da população, os curandeiros aca-
bavam desfrutando também de maior confiança, o que fazia com que
fossem procurados como curadores preferenciais no trato dos malefícios.
Os populares apenas recorriam à medicina quando haviam esgotado as
opções que consideravam mais confiáveis (WITTER, 2001). E, apesar de
residirem numa mesma comunidade e partilharem dos mesmos costumes
e valores, as pessoas não percebiam os curadores de igual maneira.
12
Witter (2001) destaca a hierarquia criada no campo da cura pelos médicos diplomados em relação aos curandeiros.
“Na medida em que se avança para o fim do século, os médicos formados aprofundam suas ações no sentido de
diferenciar-se de seus congêneres. Os métodos usados nessa separação, entre quem deveria ter o poder de curar e
quem não deveria, foram múltiplos” (WITTER, 2001, p. 82).
24 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
13
Keith Thomas (1991, p. 40), ao analisar as crenças populares na Inglaterra do século XVI e XVII, ressalta o papel
dos sacerdotes na realização de exorcismos para “tornar os campos férteis, velas sagradas para proteger os animais,
e pragas formais para afastar lagartos e ratos e matar ervas daninhas”. A Igreja atuava como “repositório de poderes
sobrenaturais, que podiam ser distribuídos aos fiéis para auxiliá-los em seus problemas cotidianos”. A permanência
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 25
de uma série de procedimentos religiosos sob a coordenação dos padres continuou a existir para garantir a proteção
dos campos e das colheitas em aldeias europeias do século XVIII, conforme ressalta Peter Burke (1992, p. 121).
14
Entrevista com um casal de moradores da comunidade São José, Marina (75 anos) e Paulo (82 anos). (Entrevista
1). Usamos pseudônimo quando fazemos referência aos depoentes (Entrevista, In: BORTOLANZA, 2019).
26 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Elas benzem e passa. É tudo simpatia, a solana é uma dor de cabeça que dava
de noite ou de noite ou de manhã cedo se era de noite era a da lua e se era de
manhã era a solana [...]. Então tu aia benzer elas tinham uma simpatia de
dobrar as toalhas, para que fique sempre pro lado de fora as pontas né, fazia
isso, fazia acho que fazia isso também, botava a toalha na cabeça com um copo
de água virado pra baixo era a benzedura isso dai [...]. E a água ia descendo e
a agua fervia dentro do copo e ia descendo, ia umas três vezes e passava a dor
de cabeça.15
[...] tipo a Sandra tu vai benzer a ciática, ela benze com uma vela com um
tijolo. A ciática16 né? Ela começa faz as rezas dela, ela vai com a vela até o tijolo
faz aquela cruz. Passa por tudo e faz as cruzes dela, faz as benzeduras dela. E
ela vai... [...]. Ela vai lá em baixo ela faz aquela cruz no tijolo, e melhora.17
15
Entrevista de Marina (75 anos, casada, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
16
Ciática denominação utilizada para se referir à inflamação do nervo ciático.
17
Entrevista de Marina (75 anos, casada, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 27
18
Pomeranos, denominação alemã para o povo originário da região da Pomerânia. Para saber mais, indico a leitura
do livro de Joana Bahia (2011) intitulado “O tiro da Bruxa”.
19
A entrevista de Sandra (81 anos, benzedeira e residente na comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
28 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
algum pelos prestados, aceitando, porém, o que lhe for conferido de ma-
neira espontânea. Todas as pessoas que recorrem às bênçãos e simpatias
da benzedeira costumavam dar algo a ela. Essa questão pode ser entendida
como uma forma de troca, retribuição e compensação. A ideia de que essa
relação entre a curandeira gerava uma relação de “dom” e “contra dom”
(GODELIER, 1996), de dívida que se manifestava na ideia de respeito e
temor em relação a tais curadores.
Quando questionada sobre como começou a benzer, a entrevistada
Sandra afirma que aprendeu com o seu pai, que antes deste seu avô e bi-
savô também benziam. “Eu faço qualquer coisa, benzo de tudo né, eu
tenho um [que] posso te ensinar”. O “dom” aqui era uma herança de fa-
mília que havia sido passado pelos antepassados homens até chegar na
depoente. Era um poder que estava associado ao grupo parental e familiar
e que havia sido transmitido a um integrante da família. Sobre a transmis-
são do dom, a depoente declara que tinha uma “benção” que poderia
“ensinar” para a própria entrevistadora, caso desejasse. É certo a curan-
deira deveria transmitir tudo o que sabia para um familiar, uma vez que
durante gerações o saber havia sido transmitido por linhagem paterna,
sendo passado do patriarca para o filho e filha. A confiança e o interesse
eram questões que podiam marcar a transmissões de alguns saberes, po-
rém não todos, como ressalta a entrevistada. Mais do que um “saber e
poder” que era transmitido de pais para os filhos, que permanecia por ge-
rações dentro de grupo familiar e conferia prestígio e fama, os
conhecimentos passados eram algo que, certamente, eram reconhecidos
como associados a determinados indivíduos na família.
Dentre as benzeduras que realizava, a depoente descreve algumas,
afirmando que ela fazia “qualquer coisa, benzo tudo”. Porém, é certo que
alguns desses ritos não deviam ser compartilhados ou comunicados. Den-
tre as bênçãos e ritos que podiam ser contados, afirma que para colocar
“de volta no lugar” um nervo, osso ou músculo, era necessário ter uma
bacia, um copo/xícara, um barbante e cinco ou sete pedacinhos de pau
com um “nozinho”. A execução da prática foi descrita da seguinte maneira:
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 29
“então precisa botar um barbante assim e uma caneca cheia de água, vira
para trás, reza o pai nosso e antes de começar, né, conta sete ou cinco (...),
reza o pai nosso e sai (...)”.20 Segundo a depoente, qualquer coisa que saísse
do lugar no corpo, como deslocamento de ossos, podia regressar através
da referida benzedura.
Outra benzedura apresentada é a utilizada para amenizar os proble-
mas ligados ao nervo ciático. Novamente, neste caso, aparecem elementos
religiosos católicos no procedimento para curar as dores de ciático. O pro-
cedimento é descrito da seguinte maneira: “vamos lá fora, eu ascendo uma
vela, se deve fazer o sinal da cruz, e tu e ele, devem então dizer quatro pai
nosso (...) ”.21 A benzedeira deve ir ao redor da pessoa rezando a oração do
“pai nosso” quatro vezes e, em seguida, pronunciar a seguinte frase: “ciá-
tico sito andoe, sota la escala ti vá fora par de quá”22 (ciático, tu está aonde,
debaixo da escada, tu vai para fora por aqui). Depois do procedimento des-
crito, o nervo ciático “desinflama” e a dor desaparece, segundo a
depoente.23
Sobre as diferentes benzeduras apresentadas pela depoente, é possí-
vel destacar um aspecto que se sobressai em todas as práticas, que era a
oração do “pai nosso”. Ao ser questionada do por que da oração do pai
nosso ela me respondeu, “É... o pai nosso qualquer coisa vale”24. A utiliza-
ção de oração católica era uma maneira de obter maior aceitação em
relação as práticas realizadas, visto serem os descendentes de imigrantes
italianos na maior parte católicos. Os próprios padres se utilizavam de
bênçãos e orações, bem como da realização de exorcismos para afastar
pragas das lavouras ou curar pessoas e animais.
Assim, a “pedido do povo”, alguns sacerdotes que passaram a traba-
lhar nas comunidades fundadas por imigrantes italianos percorreram as
casas da população para benzer animais, as pessoas enfermas, os produtos
20
Entrevista Sandra (81, viúva, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
21
Idem
22
Tradução da língua dialetal para o português.
23
Entrevista (81, viúva, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
24
Entrevista, Sandra (81, viúva, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
30 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
25
A essa questão está associado o fato de muitos descendentes de imigrantes negarem terem em algum momento da
vida procurado por benzedeiras (os), apesar de saberem da existência das mesmas nas regiões coloniais, bem como
conhecer que elas realizavam bênçãos e também afastavam feitiços (MERLOTTI, 1979, p. 73-5).
26
Entrevista de Everton (69, casado, morador da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 31
devido destino aos livros. Um exemplar foi então levado na missa e tam-
bém entregue “de noite para não ver quem tinha”.27 Através da fala da
entrevista é possível perceber que o padre que estava buscando recolher
os livros de “San Cipriano” o fazia para controlar as crenças locais e co-
mentários que circulavam na comunidade que afirmavam que aqueles que
possuíam o livro tinham poderes sobrenaturais, eram feiticeiras e bruxas.
Na comunidade em que residem os entrevistados, é bastante recor-
rente as afirmações sobre a existência do livro de São Cipriano e dos
poderes que esse dá a quem o possui. Apesar de não ter sido possível en-
contrar maiores informações sobre o livro entre os descendentes, além é
claro de que algumas pessoas do lugar possuíam o mesmo, Cipriano teria
sido um feiticeiro que se dedicou ao estudo do ocultismo e obteve muitos
ensinamentos de uma jovem bruxa, antes de se converter ao cristianismo.
O livro de São Cipriano apareceu apenas no século XIX, muito tempo de-
pois da morte do mesmo, que viveu em Antioquia. Conhecido na cultura
popular europeia, o registro era uma espécie de almanaque de saberes li-
gados a magia e feitiçaria, bem como crenças agrárias muito presentes no
mundo camponês (FERREIRA, 1992).
Para um dos entrevistados, o livro teria sido escrito por São Cipriano
para aqueles que tinham o poder de curar, para poderem ajudar as pes-
soas, e também “pra fazer mal também”.28 A indicação da existência do
mencionado material apontava para a crença de que existiam “streghe”
(bruxas) e “stregoni” (feiticeiros) na comunidade, que eram temidos e pro-
curados pela população para resolver os mais diversos problemas e
impasses cotidianos. A associação entre o livro de São Cipriano e os pode-
res sobrenaturais de certas pessoas, conhecidas como bruxas e feiticeiras,
faz parte de uma tradição popular europeia que havia se perpetuado nas
regiões de colonização italiana do Rio Grande do Sul.
27
Entrevista de Marina (casada, 75 anos de idade, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
28
Entrevista de Everton (69, casado, morador da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
32 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
29
Entrevista de Tamara (69 anos, casada) e Everton (69 anos, casado). No dialeto italiano local, Brondeti significa
uma panela grande (caldeirão) e Pinhatei uma panela que antigamente era utilizada para buscar água
(BORTOLANZA, 2019).
30
Entrevista de Everton (69, casado, morador da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 33
31
Entrevistas de Everton (69 anos, casada) e Tamara (69 anos, casado). Ambos moradores da comunidade São José
(BORTOLANZA, 2019).
31
Entrevista de Everton (69, casado, morador da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
32
Entrevista de Everton (69, casado, morador da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
33
Entrevistamos três homens e quatro mulheres, dentre elas uma benzedeira. Dos entrevistados seis se referem a
mulheres ao se tratar de bruxaria, entre as citadas foi possível destacar no mínimo três mulheres apontadas como
34 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Considerações finais
as suspeitas de praticarem o sobrenatural. Contudo é importante salientar que dois entrevistados (um homem e uma
mulher) citam um homem como sendo suspeito por suas práticas (leitura de cartas), além das benzeduras.
34
Depoente Everton (69, casado, morador da comunidade de São José).
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 35
Referências impressas:
Cinquentenário della Colonizzacione italiana nel Rio Grande do Sul: 1875-1925. Porto
Alegre. Globo, 1925.
Referências bibliográficas:
ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 3ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
BAHIA, Joana. O tiro da Bruxa: Identidade, magia e religião na imigração alemã. Rio
de Janeiro: Garamond, 2011.
BURKE, Peter. O mundo como teatro: estudos de antropologia histórica. Lisboa: Difel,
1992.
BORTOLANZA, Karina. “Me gá contato cozi”: crenças e práticas de cura entre descen-
dentes de imigrantes italianos em Farroupilha – século XX. São Leopoldo:
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2019. (Monografia em história).
DE BONI, Luis A. “O catolicismo da imigração: do triunfo à crise”. In: DACANAL, José Hil-
debrando (org.). RS: Imigração & Colonização. 3ª ed. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1996.
VENDRAME, Maíra Ines. Lá éramos servos, aqui somos senhores: a organização dos
imigrantes italianos na ex-colônia Silveira Martina (1877-1914). Santa Maria:
Ed. Da UFSM, 2007.
WITTER, Nikelen Acosta. Dizem que foi feitiço: as práticas da cura no sul do Brasil
(1845 a 1880). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
Um grupo minoritário:
relatos sobre a vivência metodista na
colônia italiana do nordeste gaúcho
Há historiadores que são fãs dos arquivos, que sentem a necessidade de segu-
rar o papel velho, e que falam disso, do mesmo modo que eu posso falar, depois
da entrevista, do cafezinho servido por aquela velha senhora que quase me
chamou de filho... (POLLAK, 1992, p. 12)
Apresentação
1
Pesquisador membro do Grupo de Pesquisa da História do Metodismo no RS Instituto Teológico João Wesley/IPA
40 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Bom, a minha mãe era da família Bellini, da fábrica de sinos, tu sabe, que exis-
tiu aqui em Garibaldi, né? O meu avô, Elio Bellini, não se dava bem com meu
pai, porque ele não era católico. Chamava os protestantes de ‘porta stanghe’
[risos]. Uma das minhas tias era bem beata, “bigotta”, se dizia. Meus pais ca-
saram na sacristia2, o frei capuchinho não queria fazer o casamento, cedeu
porque o sacristão insistiu, ele também era porteiro da prefeitura, e se dava
com o meu pai. [...]
Olha, pra mim era normal, né… A gente podia… tinha a liberdade de escolher
que igreja queria ir, os pais nunca impuseram nada, não. [...]
É, quando eu fui a namorar a mãe dela, e queria casar [se dirige à filha, pre-
sente à entrevista], o padre me disse que eu tinha que ser batizado católico, e
tal, porque senão não podia casar. Então eu disse: bom, não seja por isso [ri-
sos]. E aí fiz lá, aquela.., aquilo lá, e nós casamos. (GIRONDI, 2015)
2
A respeito deste tópico, o autor tem informações semelhantes referentes ao matrimônio religioso de seus sogros,
ele metodista e ela católica, de origem italiana, celebrado em dezembro de 1963. O pároco católico não aceitou realizar
o casamento no altar principal do templo, afirmando que, por ser o noivo evangélico, a cerimônia somente seria
possível num altar lateral, o que fez a noiva desistir da celebração religiosa no recinto da igreja. A questão foi resolvida
através de contatos com outro padre, amigo da família, que oficiou a cerimônia católica na casa dos pais da noiva.
No mesmo dia, foi realizado o casamento religioso no rito metodista, no templo de Caxias do Sul, sem empecilhos.
44 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Sim, a família paterna era metodista, a da minha mãe era católica. [...] Família
Enriconi. Minha mãe se chamava Arlinda Enriconi Baccin. Os meus avós eram
Antônio Enriconi e Itália Salton. [...] E os paternos eram Dionísio Baccin e
Maria Caimi, ela mesma dizia que o nome correto dela era Marieta. [...] Ela
mesma dizia, mi son milanesa. [...] Ela era católica, mas passou para a Igreja
Metodista quando casou com o meu avô. [...]
Deve ter sido difícil, imagina, naquela época... Quando os meus pais casaram,
a minha avó Itália não aceitou de jeito nenhum. Eles casaram só no civil, e ela
nem foi no casamento! Ela dizia que, além de ele não ser de Deus, era um
aleijado. Isso porque ele nasceu com um defeito na perna direita, ela ficava
sempre meio cruzada, em cima da outra, ele só conseguia se locomover de
muletas. Quando já era bem crescido, o Dr. Giorgi… sabe, o Dr. Beniamino
Giorgi? Operou ele, e ficou bom. [...]
Então, minha avó não aceitou o casamento. Mas, no final, ela morreu na casa
desse genro que ela não queria aceitar. E sempre dizia que nunca imaginava
que ele fosse um homem tão bom. [...]
Sim, fomos batizados na Igreja Metodista. Mas, anos depois, descobri que tí-
nhamos sido batizados também na Igreja Católica, sem o meu pai saber. Minha
avó falou com minha mãe, e ela nos levou lá e fomos batizados. [...] Mas ele [o
pai] só se batizou católico depois, quando casou com a Lélia, de Garibaldi. Tu
sabe, o meu pai casou três vezes [...] Depois ele casou com a minha mãe, Ar-
linda Enriconi, só no civil, porque eram de religiões diferentes. Depois que ela
faleceu, ele casou com a Lélia, como é o sobrenome dela... É uma família co-
nhecida de Garibaldi... Aí ele se batizou católico para casar com ela.
(RESCHKE, 2015)
O padre, um dia, veio visitá-lo. Meu bisavô estava sentado de fora, na área,
lendo a Bíblia, e a bisavó estava preparando o pão e… o padre tirou o livro da
mão dele e jogou no forno. Meu bisavô queimou todo o braço, mas ele foi lá
tirar. E perdeu o emprego. Não deram mais emprego pra ele. Ele tinha que se
virar. Eles anunciavam pra todo mundo que não desse emprego para os me-
todistas, os protestantes. Como aconteceu lá em Veranópolis: os avós da Maria
do Rosário, a deputada federal, também. Ele era sapateiro, mas como era me-
todista3, não podia arrumar os sapatos dos católicos. A senhora pode ver
quanta ignorância havia naquela época. [...] A família começou a ter dificulda-
des financeiras e então, para poder sustentar a família, através de seu trabalho
como sapateiro, ele acabou se tornando católico. Deixou de ser metodista para
poder ter trabalho. (KRATZ, 2006)
São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no
imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impos-
sível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses
acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se
situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeita-
mente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização
histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determi-
nado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada
(POLLAK, 1992, p. 2)
3
A depoente refere-se à família Fiorentin, estabelecida na cidade de Veranópolis.
46 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
dois de seus filhos, Maria Teresa e Giovanni Battista, avô paterno de Nilza.
Porém, os outros dois filhos e a esposa de Domenico, Cecília, permanece-
ram católicos.
Nos relatos, fica evidente também o rigor dos freis capuchinhos, que
estavam presentes em Garibaldi desde 1896 e assumiram plenamente a
paróquia católica local em 1927 (ZUGNO, 2017). Acyr, residente na locali-
dade, relatou a exigência de sua conversão para casar, e os empecilhos
inicialmente postos para o casamento de seus pais. Nilza relata a persegui-
ção que seu bisavô sofreu no lugar, inclusive com dificuldades para obter
trabalho. E Wanda refere que seu pai somente se converteu ao catolicismo
ao casar com uma senhora daquela cidade.
Como eu, na minha infância, tinha as minhas inimigas que, pessoas que não
brincavam comigo porque eu era protestante, toda igreja tinha sempre os
adultos que conseguiam pôs na cabeça dos adolescentes…[...] Diziam que era
o diabo, pronto! Era o diabo, não vamos dizer que era protestante porque era
o contrário, era o diabo. Então, na mesma maneira, eu, como tinha medo do
diabo, eu sei que adolescente tinha medo do diabo, então tinha que apedrejar
o diabo. E apedrejando uma igreja, era apedrejar o diabo. E eu acho que nós,
que dentro de nós, se nós pudéssemos hoje apedrejar o diabo, que ainda é uma
tentação na nossa vida, nós apedrejaríamos. Mas agora contra quem? Nós
Vicente Dalla Chiesa | 47
mudamos, não temos mais o diabo para apedrejar, então passou. Mas nós não
mudamos ainda nossos conceitos [inaudível], então ainda existe o diabo, ainda
existe, apenas o jovem especificava: ‘O diabo é lá, eu vou lá, então vou lá e eu
apedrejo’. (DE NICOL, 1986)
Em Caxias, nós sofremos. Nos primeiros anos, sofremos bastante, quero dizer,
principalmente as crianças, os pequenos…[...] Os estudantes (inaudível) iam
estudar. Meus irmãos começaram a trabalhar antes do que eu, lógico. Eu e
minha irmã, a Idalina, nós dois menores, nós ia na Escola Elementar, ali no
Colégio das Irmãs ali. Ali sofremos muita… por parte dos alunos, né? E tinha…
[...] Aí não teve tanta pressão, mas no Carmo, sim. (BEUX, 1983)
O depoente afirma que, nos anos 1930, evangélicos não eram aceitos
nas escolas católicas de Caxias. Cerca de trinta anos depois, em 1960, seu
filho Evaldo relata ter ocorrido uma distensão, ainda que relativa. Seus
pais o matricularam numa escola católica, onde, pela primeira vez, ele pre-
senciou os ritos religiosos dessa confissão cristã, não sem incidentes:
A minha infância foi na Rua Flores da Cunha, centro de Caxias [do Sul], pró-
ximo do Bairro Pio X, próximo do Colégio Murialdo, que na época era o Abrigo
de Menores São José, também… bem próximo da minha casa tinha o Colégio
Madre Felicidade, que há muitos anos deixou de existir. E a minha infância foi
passada naquela região ali, entre a Rua Visconde de Pelotas e a Rua Garibaldi.
Estudei no Abrigo de Menores como externo, porque o Abrigo de Menores era
um internato e num determinado período eles abriram o externato para es-
tudo também com a finalidade da sustentabilidade, de ganhar um dinheirinho,
então as famílias, vamos dizer assim, da classe média da redondeza, colocaram
os filhos a estudar ali. Uma coisa que me marcou bastante, né, por ser um
colégio de padres, que eu e um vizinho, um colega, éramos os únicos dois não
católicos do colégio, e havia um pouco de discriminação por parte dos padres
em relação à religião. Na época, em comecei a estudar em 1960, e naquele
tempo tinha uma certa perseguição…[...]
Não, mais por parte dos padres, ah, pela crença que a gente tinha, algumas
diferenças em relação à Igreja Católica, ah, eu fui criado na religião metodista,
ou os protestantes, e isso sempre criava uma certa interferência, vamos dizer
assim, no relacionamento. Uma coisa também, que me marcou nessa época,
foi a primeira missa que eu assisti no colégio, obrigado a assistir à missa,
nunca tinha assistido uma missa antes, eu tinha seis anos de idade, e quando
tocou a campainha na hora da consagração, tocou a campainha, todo mundo
abaixava a cabeça e eu fui espiar o que estava acontecendo e levei uma reguada
do padre, do padre prefeito, que a gente chamava, por eu ter levantado a ca-
beça, que era proibido olhar a consagração da hóstia. Eu não sabia daquilo,
não sabia o que era, levei a reguada, fiquei de castigo, aí o meu pai teve que ir
lá conversar com os padres, deu um show de moral nos padres e tal e tudo
bem [risos]. Aí, eu e esse colega, que também era metodista, tínhamos autori-
zação de escolher se queríamos ou não assistir à missa. A missa era em latim,
cantada, era muito bonita a cantoria assim, né? A gente não entendia, mas era
em latim cantado e de costas pro… [...] O padre ficava de frente pro altar e de
costas pro público, pras pessoas. Então a gente não via exatamente o que
Vicente Dalla Chiesa | 49
Ainda que “os protestantes” fossem uma minoria, e que o colégio pos-
suísse regras, isso não acarretava necessariamente uma conduta passiva
ou submissa: o pai compareceu à escola para reclamar da punição aplicada
ao filho e “deu um show de moral”, o que levou a uma modificação da
regra de frequência obrigatória à missa em relação aos dois únicos alunos
não católicos do estabelecimento. Chama atenção também a surpresa do
menino evangélico em relação a aspectos do ritual católico pré-conciliar,
em especial o uso do latim e a celebração da missa de costas para a assis-
tência. Esses pontos eram aspectos enfatizados pelos missionários
protestantes na América Latina como prova de sua superioridade em rela-
ção ao culto católico que predominava na região. Em jornal metodista
publicado no ano de 1908, o pastor Mateus Donati relata ao redator uma
visita feita à cidade de Caxias, e a surpresa provocada nas pessoas pelo fato
de as palavras do rito serem proferidas em língua portuguesa:
Prezado Irmão na Fé:
Queima de bíblias
sagrados. Nega-se que “exista outra autoridade com direito divino, como
o magistério e os concílios” (WESTHELLE, 2017), e afirma-se que a Bíblia
tem primazia absoluta sobre a tradição, no que elas conflitarem. Com base
nisso, Martinho Lutero argumentou e lutou pela liberdade de exame das
escrituras, por cada indivíduo (CARDINI, 2017), como único caminho para
experienciar a fé. A necessidade de acesso à Bíblia é frequentemente invo-
cada, mesmo no senso comum, como incentivo para o desenvolvimento
da imprensa e do sistema escolar dos países europeus onde a Reforma se
enraizou. Tais noções impactaram fortemente a gênese do movimento me-
todista, mesmo que se trate de uma reforma tardia, ocorrida no século
XVIII.
No âmbito católico, a situação é diversa: embora o acesso às Escritu-
ras em si nunca tenha sido formalmente proibido de forma absoluta, vige
o conceito de que a Bíblia deve ser lida com supervisão, com a assistência
do magistério, e a edição deve passar por um processo prévio de checagem
pela autoridade eclesiástica. Representativas desse entendimento são as
seguintes afirmações, retiradas de artigo publicado em um site católico de
cunho conservador:
É uma exigência que a Igreja faz para evitar que aos fiéis sejam entregues
traduções mal feitas, truncadas, falsificadas. As traduções em língua vernácula
devem trazer a aprovação da autoridade eclesiástica e notas explicativas de
pontos de difícil compreensão. Essas notas devem ser tiradas dos Santos Pa-
dres ou de autores reconhecidamente competentes. São absolutamente
proibidas as traduções que não se achem de acordo com esta determinação da
Igreja. Proibidas são as Bíblias dos Metodistas, Evangélicos ou Sociedades bí-
blicas, pelos motivos já explicados. É um livro que traz muitas coisas de difícil
compreensão, coisas que são adulteradas por indoutos e inconstantes, para
ruína de si mesmos”. (II Pet. 3, 16). Todas as heresias tiveram e têm sua ori-
gem na má explicação da Bíblia. Tolice não há, que não encontre argumento
na Bíblia mal explicada. (QUEIMA, 2020)
A perseguição maior aqui, foi por causa da Bíblia. Aqui, naquela época, era
proibido ler a Bíblia. Mas nós, aqui na nossa casa, ninguém podia nos proibir,
porque ainda tem um quadrinho ali na parede que diz: “Em minha casa servi-
remos o Senhor”. Então, quer dizer que ninguém podia proibir nada em nossa
casa. Mas sempre a gente procurava ensinar aos outros. Numa ocasião acon-
teceu que um senhor, morador desta rua, ficou surpreso ao ver o padre
queimando uma porção de coisas. Botava, botava naquela fogueira, e depois
esquecia lá. Ele ficou curioso, mas passou de largo. Ele viu quem estava quei-
mando. Na volta, ele tinha ido visitar a filha, e disse: Eu quero saber o que
52 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
tinha naquele monte. Aí ele pegou um pauzinho que achou por ali e foi tirando
as cinzas. No meio dos escombros, ele achou esse pedaço de Bíblia. Ele ficou
muito triste vendo o padre queimando o livro sagrado, o livro que tem a pala-
vra de Deus, e disse: isso não pode acontecer. Ficou muito triste.
Imediatamente ele veio aqui na minha casa e me entregou e me disse: eu sou
velho e doente. A senhora guarde esse livro. Guarde bem, que um dia, todos
vão ler este livro. E, de fato, hoje a Igreja Católica também tem sempre a Bíblia.
Então, eu fiquei feliz com isso porque eu guardei, sempre com segredo e tudo.
Mas pensei, se um dia o padre vem me falar alguma coisa, eu sei o que res-
ponder. Mas ele não falou nada ainda, até agora [risos]. (KRATZ, 2006)
Então, a partir dali, havia o conceito católico que não se podia usar Bíblia.
Existia fortemente, Tânia, a Bíblia, eu vi sendo queimada em São Pelegrino,
Bíblias aos montes. Agora eu, na época, não posso discernir assim, foi sicrano,
foi beltrano…[...] Não posso, foi sicrano, foi beltrano, como criança não posso
dizer. Mas eu vi! Então, a igreja, dizia: ‘Queimaram a Bíblia”! Então pra mim
a Bíblia, foi sempre uma palavra sagrada, que de maneira nenhuma ela podia
ser queimada. Então, eu corri lá, como criança, para ver a terrível coisa que
tinham feito: queimado Bíblias. Então ia tudo pro inferno, as coisas mais ter-
ríveis de todas, que tu vê Tânia, até agora em filmes, em coisas da história de
sessenta anos passados, era um inferno. (DE NICOL, 1986)
Apedrejamento de templos
Sim, eu estava chegando na igreja com meus filhos, seriam umas sete horas
da noite. Senti as pedras voando e batendo na porta, na parede. Estava com os
filhos... aí eu disse: entrem, entrem, meus filhinhos! Não sei quem foi, até hoje.
Não foi fácil, a gente sofria muito naquela época. Os padres capuchinhos foram
mais de uma vez na minha casa saber por que eu era protestante. Na época
em que eu morava no Borgo, o Redovino Rizzardo brigou com o meu filho e
me chamou de protestante do diabo. [...]
54 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
O próprio Padre Manica dizia que o protestante tinha o diabo atrás da porta
da igreja. Ele cuidava a amizade entre o meu filho e uma colega de escola, a
Luiza Artico. Uma vez [rindo] eu estava no Hospital Tacchini, internada, e ele
entrou para dar a comunhão. Quando viu quem era, parou na metade e voltou
[risos]. (CISLAGHI, 1999)
Não, mas… a nossa igreja sempre foi apedrejada. A nossa igreja sempre foi
apedrejada! Sempre, sempre, sempre. [...] Sempre foi… a sequência, mas
nunca um grupo disse assim, foi aquele que apedrejou, foi aquele outro, aquele
outro. [...]
Sempre (inaudível), porque a Avenida Júlio… vamos supor, foi em [19]37 ela
foi, mais ou menos em [19]37 ou [19]40, a Avenida Júlio ficava mais alta. [...]
A nossa igreja ficava frente à rua, ela não ficava com aquela escadaria. Ela
ficava na mesma altura do Hospital [Nossa Senhora do] Pompéia, ela ficava
porque… E ali houve, vamos supor, uma terraplanagem [rebaixamento]. Mas
antes dessa terraplanagem, então a nossa igreja ficava [ao nível da] na rua. E
nossa igreja diversas vezes, mas não definiram grupos de apedrejamentos,
sem saber o porquê. E sempre eram adolescentes que apedrejavam, mandados
por alguém. [...] E grupos então que iam lá, porque a gente nunca dizia que
era igreja, que essa, essa, ou aquele padre, ou esse ou aquele preconceito…[...]
É a mesma coisa que, na minha infância, meus, minhas amiguinhas diziam
que eu era o diabo, que eu morava numa casa assombrada e que, tanto que eu
era uma sombra também, porque lá quando nós fomos morar não tinha as-
sombração nenhuma, por sinal moramos numa casa gratuitamente, senão a
casa ficava fechada era assombrada. E na época até tinha isso. E era a mesma
coisa. Mas diversas vezes eu presenciei, como presenciei Bíblias queimadas na
Igreja São Pelegrino, eu presenciei minha igreja sendo apedrejada e eu muito
de boca aberta olhando, por que será que tão fazendo isso? E daí, como viam
a gente na frente olhando assim, diziam: Aí, o diabo, o diabo, o diabo! Aí a
gente levava as pedradas junto, porque eles sempre procuravam realmente
quando tinha pessoas unidas, porque não é a… o… Prédio em si que era o di-
abo. O diabo eram as pessoas. [...]
Então, não cheguei nunca a levar pedrada, mas presenciei. Meninos da minha
idade apedrejando a minha igreja, e queimando Bíblias, porque toda vez que
eram queimando Bíblias, porque toda vez que eram queimados, eram meninos
Vicente Dalla Chiesa | 55
adolescentes, não eram pessoas adultas! Mas era sempre o mesmo preconceito
que a Bíblia era o diabo. Então, essa é uma época, vamos supor, gostosa de ser
revivida e, se fosse realmente, que nós pudéssemos queimar o diabo ou ape-
drejar o diabo, seria muito bom [inaudível], mas nós metodistas éramos o
símbolo do diabo. (DE NICOL, 1986)
Ele [Armando], tinha costume de sair sem me dizer onde ia, e certa vez chegou
lá na igreja a família de uma mulher falecida, de quem o padre não queria
fazer o enterro… e eu, como é que ia deixar… Então fui lá e expliquei que o
pastor não estava, fiz um momento devocional, falei e consolei as pessoas.
(BEUX, 1997)
Hoje é diferente, até os padres estão diferentes, né. Eu lembro que o [padre]
Oscar Bertholdo fez um casamento ecumênico lá na igreja da Goretti. Antes
não era assim. Mesmo as pessoas que tiravam a própria vida eram rejeitadas
58 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Virginia Bertuol, jovenzinha de 17 anos, recatada e boa, amada por todos pelas
suas virtudes, se enforcou na noite de 31 de outubro. Parece que a jovem tirou
a própria vida, que lhe deveria dar alegrias e carinhos, porque estava obcecada
pelo pensamento de ter sido responsável pela perda de uma irmãzinha, no ano
passado, em decorrência de severas queimaduras. A triste decisão e a sua
causa foram confirmadas por um bilhete encontrado na casa da infeliz suicida.
Aos funerais, que ocorreram no dia 1º de novembro, acorreu todo o povo
bento-gonçalvense, para render à desgraçada jovem seu último tributo de
honra e condolência. No cemitério, e antes que o caixão fosse coberto de terra,
falaram, comovidos, relatando as virtudes da morta, o pastor evangélico, Sr.
Federico Peyrot, e o distinto Sr. Giulio Lorenzoni. A infeliz jovem era filha de
Girolamo Bertuol, proprietário do hotel e restaurante América
(CORRISPONDENZA, 1914).
Sim, fomos batizados na Igreja Metodista. Mas, anos depois, descobri que tí-
nhamos sido batizados também na Igreja Católica, sem o meu pai saber. Minha
avó falou com minha mãe, e ela nos levou lá e fomos batizados. Meus padri-
nhos foram a minha avó e o próprio padre, que era o Antônio Zattera. Fiz
também a primeira comunhão. O Zattera procurou minha mãe, disse que es-
tava na hora de fazer. Aí... ela perguntou como ia ser, por causa do meu pai,
ele disse que não me preocupasse, que fosse na igreja num determinado sá-
bado, que eu ia receber a comunhão. E foi assim, ele me deu inclusive o vestido
da cerimônia, foi o único presente que ganhei do meu padrinho! Na verdade,
nem foi o vestido, foi o tecido para o vestido, naquela época se mandava fazer.
Isso foi em 1940. Apesar disso, ele e meu pai eram muito amigos, mesmo de-
pois de o Zattera ter se tornado bispo em Pelotas. Ele sempre tentava
convencer meu pai a voltar para o catolicismo. Mas ele só se batizou católico
depois, quando casou com a Lélia, de Garibaldi. (RESCHKE, 2015)
4
A atitude hostil do padre Antônio Zattera em relação aos evangélicos já foi registrada pelo autor em outro trabalho,
onde, entre outros fatos, se relata que ele ameaçava de excomunhão pais católicos que quisessem matricular seus
filhos em uma escola primária metodista (DALLA CHIESA, 2018).
60 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
[...] Sentaram-se ao redor da mesa grande da sala de jantar, ele pediu para a
mulher o seu pince nez, abriu a folha pequena de papel, disse que deveria ter
sido impressa na tipografia do Musacchio mesmo, o papel era igual ao dos seus
volantes, a mulher acercou-se dele, alcançou-lhe os óculos, cuidou para que
ele os ajustasse no nariz, disse: para o dono da tipografia, desde que entre
dinheiro, tanto bota na máquina as cartas do diabo quanto as cartas de Nosso
Senhor Jesus Cristo; o pastor pediu à mulher que tivesse um pouco mais de
compreensão, o negócio dele era imprimir, não tinha nada que perguntar pela
matéria que lhe entregavam e nem podia ser condenado por isso, era mesmo
um bom homem, um bom chefe de família e se estava na religião católica era
mais por ser italiano do que mesmo acreditar no que o seu patrício dizia, que
ela devia saber como eram essas coisas, os dois tinham vindo das terras do
Vaticano, eram patrícios do Papa, falavam a mesma língua dele e isso não era
crime, mas eles, os evangélicos, deviam ser antes de mais nada tolerantes.
(GUIMARÃES, 1987, p. 35).
Observações finais
ele fosse falar com ela sobre a Bíblia queimada que estava em seu poder, e
que ninguém teria direito de proibir a leitura dos textos sagrados em sua
casa.
Sobre isso, é interessante lembrar como as minorias religiosas histo-
ricamente se estruturaram em torno da ideia de serem portadoras do real
conhecimento e de uma missão divina, como veículo de afirmação e auto-
estima. Essa situação ocorreu também entre os valdenses na Europa
(AUDISIO, 2004), historicamente ligados às origens da Igreja Metodista na
colônia italiana gaúcha. No plano brasileiro, a organização dos evangélicos
em torno de sua condição de minoria titular de direitos também ocorreu
em momentos significativos, como quando da oposição às denominadas
“emendas católicas” à Constituição de 1891, em 1925 (GERTZ, 2002).
Por fim, os depoimentos indicam a maneira como as diferenças con-
fessionais puderam, em alguns casos, ser equacionadas: pelo convívio e
pelo conhecimento mútuo, em detrimento de estereótipos. A sogra de Di-
onísio Baccin Filho, que se recusou a ir ao casamento dele com sua filha,
mudou de opinião, dizendo nunca imaginar que “ele fosse um homem tão
bom”. Fato semelhante ocorreu com as irmãs da moça Nilza Covolo, estu-
dantes em uma escola católica dirigida por freiras:
Tanto a Edy, quanto a Áurea Covolo e a Diva, que foram estudar em escola
aqui, que logo no início, tinha um lugar diferente porque elas não era católicas.
Mas, com o passar do tempo, as pessoas, pelo seu testemunho de vida, come-
çaram a perceber que aquilo que elas aprendiam naquela Igreja não era nada
de demoníaco, nem horroroso. Pelo contrário. Tanto é que todas elas acaba-
ram se tornando professoras, mesmo estudando em colégio de freiras. E foram
pessoas de destaque, na época, indicadas como exemplo de vida. (KRATZ,
2006)
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66 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
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Região Colonial Italiana e Campos de Cima da Serra. Porto Alegre: ESTEF, 2017.
Entrevistas
BEUX, Antônio Bartholomeu. [1983]. Entrevistadoras: Tânia Zardo Tonet e Sônia Storchi
Fries. Caxias do Sul, entrevista realizada em 1983, transcrita por Maria Beatrís Gil
da Silva e editada pelo autor, arquivada no Banco de Memória do Arquivo Histórico
Municipal João Spadari Adami.
BEUX, Etelvino Armando; BEUX, Eunice. [1997]. Entrevistadora: Inés Simeone. Passo
Fundo, entrevista realizada em 03/06/1997, transcrita pela entrevistadora, editada
pelo autor, e publicada na Revista “Contando Nossa História”, n.º 01/1998, editada
pelo Grupo de Pesquisa da História do Metodismo no Rio Grande do Sul.
BEUX, Evaldo. [2010]. Entrevistadoras: Sônia Storchi Fries e Susana Storchi. Caxias do
Sul, entrevista realizada em 22/10/2010, transcrita por Sônia Storchi Fries e editada
pelo autor, arquivada no Banco de Memória do Arquivo Histórico Municipal João
Spadari Adami.
68 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
CISLAGHI, Marieta Silva. [1999]. Entrevistador: Vicente Dalla Chiesa. Bento Gonçalves,
entrevista realizada em 26/11/1999, transcrita e editada pelo autor.
DE NICOL, Eulinda Corrêa. [1986]. Entrevistadora: Tânia Zardo Tonet. Caxias do Sul, en-
trevista realizada em 1986, transcrita por Sônia Storchi Fries e editada pelo autor,
arquivada no Banco de Memória do Arquivo Histórico Municipal João Spadari
Adami.
GIRONDI, Acyr. [2015]. Entrevistador: Vicente Dalla Chiesa. Garibaldi, entrevista realizada
em 23/12/2015, transcrita e editada pelo autor.
KRATZ, Nilza Covolo. [2006]. Entrevistadora: Lourdes Maria Fedrigo Riboldi. Bento Gon-
çalves, entrevista realizada em 27/05/2006, transcrita pela entrevistadora, editada
pelo autor e arquivada no Laboratório de Pesquisa em História Oral do PPGH da
PUCRS.
RESCHKE, Wanda Baccin. [2015]. Entrevistador: Vicente Dalla Chiesa. Porto Alegre, en-
trevista realizada em 12/12/2015, transcrita e editada pelo autor.
3
Introdução
1
Várias de suas obras tratam da história desse lanifício e das ações de Alessandro Rossi em prol da indústria têxtil
italiana. Sua análise é resultado da riqueza de pesquisa documental aliada a diversas fontes históricas, incluindo
fontes orais. Nos estudos sobre Alessandro Rossi, Fontana traça toda a trajetória da grande indústria têxtil italiana,
nas comunidades que faziam parte do complexo liderado por esse empresário.
2
FONTANA, Giovanni Luigi (org.). Schio e Alessandro Rossi: imprenditorialità, política, cultura e paesaggi sociali del
secondo ottocento. Roma: Edizione Storia e Letteratura, 1985. v.I e II. Um dos eventos citados trata-se de congresso
nacional que ocorreu em Schio, denominado “Schio e Alessandro Rossi”, em 1979, organizado por Giovanni Luigi
Fontana, cuja comissão científica foi de Gabriele de Rosa, Silvio Lanaro e Angelo Ventura. As atas desse congresso
foram publicadas nos dois volumes citados acima.
3
ROVERATO, Giorgio. L’industria nel Veneto: storia econômica di um caso regionale. Padova: Esedra, 1996.
Vania B.M Herédia | 71
de obra gerou uma classe operária que vivia em torno da indústria têxtil.
Além dos que habitavam em Schio, os da zona rural também foram esti-
mulados ao trabalho fabril, envolvendo mais de quinze comunidades que
produziam mão de obra para esses lanifícios.
Em 1873, o Lanifício Rossi torna-se uma sociedade anônima e, com
a modernização da estrutura industrial, surgiam conflitos operários de-
correntes da demissão por parte dos proprietários de boa parte da mão de
obra ocupada. Desses conflitos laborais nascem duas grandes greves, que
ocorrem com o começo da mecanização nas plantas industriais dessa in-
dústria e que se agudizam quando o processo de instalação das máquinas
realmente se efetiva.
A primeira greve ocorreu em 1873, e a segunda, em 1890-1891, o que
fortaleceu o movimento em favor da emigração, já que muitos operários
decidiram mudar o próprio destino e não mais lutar pela causa local e na-
cional.4 A greve de 1873 politizou aqueles operários que lutavam por seu
emprego e por ideias que julgavam adequadas em torno dos efeitos da
modernização técnica, e que as identificavam na indústria local, como o
desemprego, a proletarização, a necessidade de sindicalização, bem como
algumas mudanças que estavam em fase adiantada de instalação.
Esses operários emigram para a América Latina, sendo que alguns se
instalaram na Colônia Caxias, uma das colônias oficiais do Programa de
Colonização do Império, que tinha a intenção de ocupar o território com
mão de obra branca, semiespecializada e dedicada ao trabalho. Quando
esses operários chegaram nessa região, motivados por uma política impe-
rial que oportunizava o acesso à terra, a primeira parte tinha sido vencida,
já que haviam conquistado uma posição que jamais conseguiriam, se ti-
vessem permanecido em Schio, a de se tornarem proprietários.
4
A greve de 1890-1891 ocorreu por melhores condições de trabalho, o que resultou na expulsão de muitos tecelões
da Itália, já que o proprietário perdoou os casados e expulsou os solteiros, dando-lhes a seguinte opção: “Ou a galera
ou o Brasil” (LANEROSSI IERI, 1967, p.120).
74 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Foto da Cooperativa Têxtil Tevere e Società. Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
5
Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1434323898_ARQUIVO_
TextoANPUHFLORIPA2015.pdf. Acesso em: 22 de setembro de 2020.
Vania B.M Herédia | 77
A fase seguinte ocorre com a compra pelo Grupo Kalil Sehbe das ações
do Lanifício em 1979, administrando-o até 1999, quando retorna para as
mãos dos operários. Esse período, bastante conturbado na história econô-
mica do Brasil refletiu-se em problemas de gestão, decorrentes da política
neoliberal adotada pelo governo brasileiro, e que afetou muitas empresas
nacionais.
O Grupo Kalil Sehbe tinha o modelo de empresa familiar. As empre-
sas familiares têm, em sua forma de gestão, características como fortes
laços afetivos, submissão, sensibilidade nas relações entre os participantes,
privilegiada pela manutenção das relações existentes, em detrimento da
administração racional, já que, na maioria das vezes, muitos dos dirigentes
faziam parte da mesma família. Um problema de trabalho pode afetar o
âmbito social familiar e a eficiência produtiva necessária, devido a alta
competitividade do empreendimento.
78 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Foto: Fachada do Escritório do Lanifício São Pedro S. A. Galópolis, Fotógrafo: Leonardo Herédia, 2016.
[...] Ninguém entende como ia quebrar porque tinha muita produção. Era
muito tecido. Depois vinha os cobertores do Exército, os cachecóis do Exército,
as japonas que o lanifício fabricava o pano e o foro e a Kalil Sehbe confeccio-
nava as japonas, os cachecóis. Os cobertores era fácil, porque a máquina fazia.
O lanifício teve clientes que tinham grandes pedidos como o Exército, as com-
panhias aéreas (Entrevista com ex-dirigente, em 2018).
6
Entrevista realizada em 2018, com um ex-dirigente da Cooperativa, na Universidade de Caxias do Sul, RS.
Vania B.M Herédia | 81
Cada sócio entrou com 300 reais.[...] Primeiro, nós não sabíamos o que ia
acontecer, nós não sabíamos se nós íamos ter trabalho. Assim ou assado, nós
não sabíamos.[...] Nós vamos começar no dia 7 com x funcionários. Então nós
começamos com trinta e poucos, depois no dia seguinte nós víamos, no dia
seguinte, e nós chamávamos mais 10, no outro dia mais 20, no outro dia mais
30 e assim nós fomos. [...] Chegamos em 109 sócios (Entrevista realizada em
2018).
A primeira foi escolhida numa reunião lá no Sindicato, foi feito uma votação
lá no Sindicato, com todas as pessoas interessadas em participar da coopera-
tiva. Embora que ninguém ainda era cooperativado aquela época. Então as
pessoas escolheram o presidente, o vice e o secretário, o conselho fiscal e ad-
ministrativo. Depois cada quatro anos os associados é que faziam, era feito
toda a eleição e era votado (Entrevista realizada em 2018).
Algumas considerações
O Lanifício São Pedro foi a tecelagem mais antiga e com maior ex-
pressão da Região Colonial Italiana. Foi a primeira tecelagem de vulto
dessa região, o que acarretou o seu desenvolvimento industrial e comer-
cial, pela abrangência de seus produtos, numa demonstração da garra e da
força de seus administradores. A atuação do Lanifício fortalece a ideia de
que a indústria têxtil foi um dos setores principais da industrialização ga-
úcha.
De acordo com a história dessa cooperativa, o capital inicial investido
era originário da poupança dos colonos imigrados: alguns haviam trazido
dinheiro da Itália, outros haviam conseguido através do trabalho agrícola.
A maquinaria inicial provinha da Itália, uma vez que um dos imigrantes
que fundaram a cooperativa têxtil Società Tevere e Novità havia se com-
prometido a fazer o negócio, juntamente com os demais 28 sócios.
A ampliação dessa cooperativa, num segundo momento, quando
ocorreu a fusão Chaves & Irmãos, foi feita com capital comercial de Chaves
& Almeida e com o capital de Hércules Galló, proveniente do trabalho in-
dustrial e comercial.
No final do século XIX, e nas duas primeiras décadas do século XX, as
famílias dos colonos eram numerosas e ofereciam uma saudável e abun-
dante força de trabalho para a indústria. Apesar dos baixos salários, o
emprego na indústria garantia não perder a propriedade, sua manutenção
e ainda a subsistência do grupo que não era pequeno.
A indústria cresceu no período da administração da “família”
Chaves & Almeida que investiu em maquinários, tendo um número consi-
derável de operários empregados nessa gestão. Torna-se uma grande
indústria durante a Segunda Guerra Mundial, tendo como cliente o Exér-
cito brasileiro. Ampliou o mercado regional para o nacional, o que
Vania B.M Herédia | 85
Foto: Fábrica Alta em Schio. Local onde houve a greve dos operários em 1891. Acervo: Autora. Itália, 2015.
Referências
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Vania B.M Herédia | 87
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ROVERATO, Giorgio. L’industria nel Veneto: storia econômica di um caso regionale. Pa-
dova: Esedra, 1996.
4
1
professora e pesquisadora na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Escola de Humanidades
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Possui bolsa PQ2 CNPq. E-mail: lusgarbi@terra.com.br
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 89
2
Professora Lucila Maria Sgarbi Santos é professora e historiadora local, idealizadora do projeto “Resgatando nossas
Raízes” e a principal responsável pela criação do Arquivo Municipal de Bom Jesus/RS.
90 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
3
Instituição de ensino superior, comunitária e regional, com atuação na região nordeste do Estado do Rio Grande do
Sul, que se estende a uma área geográfica de 69 municípios, compreendendo uma população de mais de um milhão
de habitantes. O ECIRS não mais existe como projeto, mas a documentação escrita e oral produzida no projeto per-
tence ao Instituto Memória Histórica e Cultural – IMHC.
4
Optou-se por manter a grafia dos depoimentos conforme a pronúncia original das memórias escutadas; os pos-
síveis erros de concordância e de ortografia não foram corrigidos.
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 91
5
As chamadas escolas étnico-comunitárias eram “aulas” elementares que ensinavam as noções básicas de escrita,
leitura e cálculo. Na maioria dos casos, eram ministradas por membros da própria comunidade. As que funcionavam
na região urbana, em geral, foram resultado de empreendimentos das Sociedades de Mútuo Socorro, sendo as
rurais erigidas pelas próprias famílias, que, mediante a inexistência de escolas públicas, em função da distância,
escolhiam os professores entre os moradores mais instruídos. (LUCHESE, 2007, p. 84).
92 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
6
Para saber mais sobre a educação na região dos Campos de Cima da Serra, ver Grazziotin (2008).
94 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
7
Aulas domiciliares – nesse contexto – nada têm a ver com o processo iniciado nos Estados Unidos conhecido como
“Home School”, ou ainda “escola em casa” ou “objeção escolar”. “Essa tem em Ivan Illich, Charles Siberman e,
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 95
especialmente em John Holt, seu embasamento teórico”, que pretende levar a diante a educação das crianças em
seus próprios domicílios (SANTOMÉ et al., 2003, p. 35). Essa experiência tem, nos Estados Unidos, exemplos sig-
nificativos que, na década de 1990, reavivaram o ensino em casa: “[...] num discurso contra a escola pública, em
especial contra o professorado da rede pública, [...] a família chega a usurpar por completo o papel da escola”
(SANTOMÉ et al., 2003, p. 35).
96 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
8
Em todos os relatos foram mantidas, na transcrição, a forma de escrita de acordo com o vocabulário, acento de
sotaque e regionalismos próprios da localidade.
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 97
Teve, nas épocas que me antecederam bons professor, meu pai, meus tios,
homens de 80 anos hoje, tinham uma calegrafia beleza, uma perfeição, era
uma raridade, até hoje. Foi bons professores que vieram [...] João Laurindo,
foi um grande professor, Zé Ribeiro, Tota Rodrigues que lecionava no Faxianal
(Orizon Roque de Souza, seu “Doti”, entrevista, 1995).
[...] estudei muito pouco, porque era só escola particular lá no sítio às vezes
tinha às vezes não tinha. Os pais que pagavam professor. O falecido pai pagou
professor. Professor Otávio Silveira e um tal de Inácio. Eu não estudei. Muito
pouco, aprendi meio a força assim não escrevo muito bem (Seu Ambrosio da
Silva, entrevista, 1994).
O primeiro professor, era escola particular pago pelo pai, era Valter Peixoto,
bom professor, eu tinha oito anos. Depois vieram pra perto, já tinha escola
municipal. Os professores era Ladislau Tietböl, irmão do Maximiliano era lá
no Pascoal e Otávio Silveira, os dois municipal (Seu Edmundo Jacoby, entre-
vista, 1994).
fazenda onde morava com meus avós. O professor era seu João Telatin, a
aula era particular, o professor lecionava na cidade para vários alunos e
vinha para a fazenda só para dar aulas pra mim” (Dona Lili, entrevista,
1997).
Nos aspectos relacionados às aulas domiciliares com professores
contratados pelos pais, a entrevista com Seu Orizon Roque de Souza
(Doti)9 é rica em detalhes, abordando os aspectos discutidos com
informações esclarecedoras e singulares. Em suas memórias, descreve um
cenário de educação em uma das regiões mais distantes da sede do
município de Bom Jesus. A região abrange as localidades denominadas
Silveira, Faxinal Preto10 e São José dos Ausentes.
Ao recordar seus estudos, já na década de 1940, seu Doti relata:
Eu pra estudar, a princípio meu pai contratou uma moça que chamava-se
Dona Ermínia Valim, esposa de seu Ari Valim. [...] ela nos lecionou um ano
em casa. Nós éramos na época, era seis irmãos que estudavam em casa. Eu
estudei um ano em casa depois fui pro Faxinal, estudei com uma professora
municipal, teve uma professora municipal Dona Alice Moreira (Seu Doti, en-
trevista, 1995).
[...] o primário [...] eu comecei com professor particular em casa, era uma
pessoa que se pode dizer semi-analfabeta. A minha mãe não tinha tempo de
nos dar aula, então ela ficava bordando, fazendo o serviço e explicava para o
professor e ele nos dava aula. Hoje, quando penso no professor, ele não tinha
as mínimas condições. Depois desse, tive mais uma professora e um professor
[...] em casa [...] era eu minha irmã e tinha outra pessoa, eu acho que a filha
de um empregado. Depois nós fomos para a escola municipal há 1 km da nossa
9
Seu Doti relata as formas de escolarização de uma região que, na data da pesquisa, era pertencente ao município
de Bom Jesus e muito distante da sede e que, atualmente, pertence a o município de São José dos Ausentes.
10
Silveira e Faxinal Preto são distritos do município de São José dos Ausentes, que foi desmembrado em 1991 do
município de Bom Jesus.
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 99
casa, que nós morávamos no sítio e essa professora também sabia muito pouco
(Lucila, entrevista, 2004).
Meus filhos tiveram professor em casa, paguei professor particular pra lecio-
nar, chamava-se Pedro Henrique Magaldi, apelido Totinha, era de são
Joaquim, mas criado em Bom Jesus. Ele lecionou em duas localidades, eu me
mudava muito, deu aula em Monte Alegre e na Fazenda São Luiz (Argeu, en-
trevista, 1993).
para o trabalho. Essa forma de dar uma instrução formal aos filhos, em
regiões onde não havia escolas e nem sequer uma “aula”11, era alternativa
amplamente adotada na região. A carência de aulas, em muitos casos,
parece acontecer devido à distância da localidade em relação à sede do
município; ou, no caso, devido ao fato de a região ter poucos alunos – o
que se pode concluir pelo Decreto nº. 19 de 1º/08/1926 do município de
Bom Jesus, que “transfere a aula mista de Rondinha para a Ramadinha no
1º distrito desse município, devido à exigüidade de freqüência12”.
No percurso das memórias, é possível observar, ainda, algumas
características comuns na maioria dos relatos: a prática habitual de que o
professor morasse na casa dos pais dos alunos. Em caso de uma
determinada família contratar um professor e haver vizinhos interessados
na aula, as crianças frequentavam a casa dessa família com o propósito de
estudar, e cada pai contribuía, pagando o professor de acordo com o
número de filhos.
Parecia haver colaboração entre famílias, vizinhos, patrões e
empregados na forma de “gerenciar” o ensino. Isso é observado nas
memórias do Seu Doti quando conta sobre o acesso das pessoas da região
ao estudo: “[...] também tinham a oportunidades de estudar, aprender o
ABC, como eles diziam. Então aprendiam a desenhar o nome e tal. Lado
onde passou professor na época, as pessoas, branco, moreno, mulheres,
tudo aprenderam a escrever” (Seu Doti, entrevista, 1995). Ao encontro
disso, disse Dona Emília: “Não tinha colégio, meu marido justava um
professor em casa e juntava os vizinhos para dividir as despesas” (Dona
Emília, entrevista, 1993).
11
“Aula”, ou “aula avulsa”, na região dos CCS, é uma expressão encontrada nos registros do Arquivo Público do RS
para designar um espaço de uma sala no qual há a designação de um professor pago pelo estado ou município.
12
Livro de Registros de decretos governativos municipais D-L-01, 1925 a 1940 (cidade de Bom Jesus).
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 101
13
A palavra “estudo” é empregada em detrimento do termo escolarização, ou educação, por ser essa a palavra utili-
zada nos depoimentos.
102 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
14
“Elementos Culturais das Antigas Colônias Italianas da Região Nordeste do Rio Grande do Sul/ECIRS”, desenvol-
vido desde o ano de 1982 com suporte institucional da Universidade de Caxias do Sul. O projeto, que completou 25
anos em 2007, focaliza o universo rural das Antigas Colônias, que atualmente correspondem a mais de uma dezena
de municípios. Em sua trajetória, o Projeto inventariou elementos de diferentes segmentos, como arquitetura, cultura
material, usos e costumes, literatura oral e aspectos relacionados à educação, nos municípios originários das Antigas
Colônias.
15
O original dessa entrevista está no dialeto italiano próprio da Região; foi transcrito para o arquivo também em
dialeto italiano e traduzido para esta pesquisa.
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 103
nomeada pelo prefeito Miguel Muratori, mas não pôde assumir, pois tinha
somente quinze anos – a idade mínima era dezoito anos.
Com relação aos seus primeiros anos de escolarização, dona Marina
Bridi Moretto conta que começou a frequentar a escola em São Virgílio,
com aproximadamente sete anos, por volta de 1933. A instituição se
chamava Escola São Virgílio. Pelos seus relatos, há indícios de que era uma
instituição municipal; ela afirma que “os professores acho que eram pagos
pelo município, mas a escola em si era da comunidade” (Dona Marina,
entrevista, 1986). Começou a lecionar em 1940 na Linha Barro
Experimental, em uma escola da paróquia, com os professores pagos pela
prefeitura. Era, segundo suas memórias, uma região de colonização alemã;
porém, a família com quem morava era de italianos, assim como ela.
Lembra que “[...] o resto, das crianças, só falavam em alemão. Eu não
entendia nada e eles tão pouco me entendiam. Então na época eu só
ensinava a tabuada, a ler e escrever, outras coisas não havia possibilidade”
(Dona Marina, entrevista, 1986). Ficou um ano nessa escola e, em abril de
1941, foi para a escola Tomé de Sousa, no Travessão Carlos Gomes.
O início da escolarização da senhora Nair Menegotto se deu aos seis
anos; fez até a 5º série em um Grupo Escolar – não fica claro, mas parece
ser em Bento Gonçalves. Prestou concurso para iniciar a carreira do
magistério por volta de 1943: “quando fiz aquele concurso que tirei o
primeiro lugar, aí me deram prá mim escolher e fui lecionar na Linha
Gumercindo, a escola era São Paulo” (Dona Nair, entrevista, 1988). Mais
tarde, fez cursos de aperfeiçoamento.
Observa-se, por meio dos relatos dos professores, que havia, tanto no
período em que estudaram, anterior a 1920, como durante o período em
que lecionaram, de 1920 a 1940, a presença de escolas na RCI, indicando
que, mesmo em meio à precariedade e com poucos recursos, a instrução
era feita em um espaço escolar, com instalações nem sempre específicas,
porém utilizadas para esse fim. Das sete professoras entrevistadas, já na
década de 1920, cinco mencionam a realização de concurso para o ingresso
no magistério. Os concursos, segundo Luchese (2008) e Grazziotin
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 105
mãe não tinha tempo de nos dar aula, então ela ficava bordando, fazendo
o serviço e explicava para o professor e ele nos dava aula. Hoje, quando
penso no professor, ele não tinha as mínimas condições”. Ambos os
depoimentos remontam mais ou menos à década de 1940.
Os professores, na maioria homens, em muitos casos, provinham de
municípios vizinhos do estado de Santa Catarina, como Araranguá e São
Joaquim, que fazem fronteira com a região estudada; eles não tinham
formação para o exercício da docência. O mesmo pode ser percebido na
RCI, onde a precariedade é observada no grau de escolarização dos
professores – média de cinco anos. Nessa região, no entanto, os
professores eram em sua maioria mulheres moradoras da própria colônia.
Uma pergunta que surge no decorrer da pesquisa é: como se media
o grau de escolarização para enquadrar os alunos no ensino regular, visto
que, nas “aulas domiciliares”, isso não ficava definido? Segundo o relato
de Dona Lili, o exame realizado para avaliar o nível de conhecimento do
aluno era o que o enquadraria na série correspondente ao seu
desempenho. O depoimento da professora Lucila corrobora essa prática,
ilustrando um fato específico de sua vida que, penso, poderia ocorrer com
certa frequência com relação a alunos que iniciaram seus estudos fora da
instituição escolar.
[...] teve umas situações bem engraçadas, todo mês tinha sabatina, eu não ti-
nha a mínima idéia o que era isso [...] Chegou o dia da tal sabatina... a
professora ditou, primeira questão, e eu: como professora? A palavra mais pa-
recida que eu conhecia era cristão, então coloquei 1º cristão. 2º cristão [..]
terminada a prova a irmã chamou minha tia - que eu morava com ela - para
me remover para a 1º série. Aí minha tia e minha prima que já estava no 3º
ano do ginásio me ensinaram. Minha tia pediu pra irmã me deixar ficar mais
um pouco para ver se eu acompanhava [...] aí eu aprendi. Naquele ano mesmo
eu fui promovida pra 4º série e elas acharam que eu tinha condições de fazer
o admissão no fim do ano, mas meu pai foi sábio, disse: essa guria tá muito
fraca, pode não acompanhar o ginásio. Aí eu ganhei o ensino regular [...] fiz o
ginásio em Antônio Prado parando na casa da minha Bisavó e de uma tia (Lu-
cila, entrevista, 2004).
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 107
Referências
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1941).
Arquivo Municipal de Bom Jesus. Acervo de Memória Oral (1990-2004). Arquivo do Projeto
ECIRS. Transcrições do Acervo de Memória Oral.
5
1
Licenciada em História pela PUCRS. Mestre em História pela PUCRS.
Regina Zimmermann Guilherme | 113
2
Segundo consta em seu diploma.
3
Disponível em: <https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:JN8V-GJQ>
4
Registro de chegada de Leone Lonardi à Nova York. In: Site familysearch. Disponível em: <https://www.familyse-
arch.org/ark:/61903/3:1:3Q9M-C9T9-HDDB?i=161&cc=1368704>
5
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 2.
Regina Zimmermann Guilherme | 119
6
Conforme registro de imigração de Luigi Lonardi. In: Site familysearch. Disponível em: <https://familyse-
arch.org/ark:/61903/3:1:3Q9M-C95S-YCC9?cc=1368704>
7
É possível concluir que a fotografia de Leone Lonardi junto ao irmão Luigi (Figura 28), encontrada no site MyHe-
ritage foi feita no período em que Leone esteve nos EUA, entre 1924 e 1925, considerando que Luigi migrou para
aquele país em 1907, quando Leone tinha apenas 12 anos, e viveu lá até seu falecimento, aos 80 anos de idade.
8
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 22.
9
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 3.
120 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Voltou para casar. A minha mãe, era... Cinco irmãs e um irmão... Ela estava
cortando o cabelo do irmão que tinha uns 16 anos, quando disseram: “O Leone
chegou, está na estação de trem de Verona”. Na central ferroviária de Verona.
Ela largou a tesoura. Ela sabia que ele iria voltar dos Estados Unidos. Mas pen-
sava que ele ainda estava em Gênova. O porto de Gênova. Já tinha pegado o
trem e já estava em Verona. Aí, ele casou com ela. Os Estados Unidos tinha
restrição de imigração. Se não, ele tinha voltado com a minha mãe.11
10
In: Office of the Historian. Disponível em: https://history.state.gov/milestones/1921-1936/immigration-act
11
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 03.
12
Disponível em: <http://www.catalogo.beniculturali.it/si-
gecSSU_FE/dettaglioScheda.action?keycode=ICCD11160482&valoreRicerca=&titoloScheda=monumento%20ai%2
0caduti&stringBeneCategoria=&selezioneSchede=&contenitore=&flagFisicoGiuridico>
13
Nos registros do Brasil o nome aparece abrasileirado, Pedro Biondani.
Regina Zimmermann Guilherme | 121
14
Depoimentos orais de Julio Lonardi e Renzo Biondani, arquivados no LAPHO PUCRS.
122 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
15
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 02.
16
Entrevista da autora com Renzo Biondani, realizada em 13 de setembro de 2017. Transcrita e depositada no acervo
do Lapho, PUCRS.
124 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
17
Acervo da Casa Aloys – Arquivo DELPHOS – Biblioteca Central – PUCRS.
18
O letreiro era quem produzia as letras, geralmente em metal, que eram colocadas nos túmulos e nos monumentos.
Regina Zimmermann Guilherme | 125
Para ganhar mais. O serviço ali na Itália parou, diminuiu. Fez aquele monu-
mento, fez mais outro em Castelfranco, uma cidadezinha uns 40 quilômetros
de Verona. Depois, viu que... Ele tinha um irmão que era marítimo, trabalhava
no Porto, lá em Nova Iorque...19
Quando ele estava indo para os EUA. Ele estava fazendo o monumento, aquele
em frente à prefeitura, o caduti, o monumento aos mortos da guerra de
19
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 2.
Regina Zimmermann Guilherme | 127
catorze, em Fumane, que era a cidadezinha dele. Passou o Biondani que era
pedreiro, tio do Renzo. O pai disse: “Estou com vontade de ir para os Estados
Unidos trabalhar”. E ele disse: “Eu estou em Porto Alegre, eu tenho uma noiva
lá”. (...)20
20
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 3.
21
Em 1884, o canteiro alemão Miguel Friederichs (1849-1903) fundou uma oficina de cantaria. No mesmo ano, seu
irmão mais novo, Jacob Aloys Friederichs chegou da Alemanha para ser seu aprendiz. Em seguida, Miguel fundou a
firma construtora “Friederichs & Koch”, na Rua Voluntários da Pátria, nº 54, em sociedade com o arquiteto Gustavo
Koch, incorporando a oficina de cantaria. Em 1887 Jacob Aloys se transformara em oficial canteiro. Em 1888 esta
firma foi dissolvida e sucedida pela “Bins & Friederichs”. Miguel se associara a Alberto Bins, recém-chegado da Ale-
manha. Esta firma negociava ferro bruto e materiais de construção, anexada à oficina de cantaria. Em 1891, o jovem
Aloys assumiu a pequena oficina de mármore cantaria. Em dezembro 1893 um grande incêndio destruiu as fábricas
e as moradias de Aloys Friederichs e Jorge Petersen. Em fevereiro de 1894, Aloys conseguiu se instalar na mesma
rua, em prédio cedido pela “Cervejaria Campani”. Em 1897, contava com a colaboração de um grupo de escultores,
marmoristas, canteiros e polidores que deu origem ao renome da futura Casa Aloys. Em 1903, viajou para Alemanha
e Carrara, na Itália, para negociar mármore. Em 1905, conseguiu comprar o terreno e prédio da antiga “Cervejaria
Campani”, com a ajuda do sogro, o canteiro João Grünewald. Em janeiro de 1909, quando comemorava os 25 anos
da fundação da oficina, pelo irmão Miguel Friederichs, o mestre Aloys denominou a oficina de “Casa Aloys”. O espa-
nhol André Arjonas foi seu escultor-chefe. (HISTÓRICO DA CASA ALOYS, 1950).
128 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Eu acho que o Sartori... Ele estava recomendado... “Oh, vai chegar um homem
italiano aí, que é escultor e vamos arrumar pra ele trabalhar na Casa Aloys”.
Daí, meu pai trabalhou seis meses.22
Não temos notícias das obras produzidas por Leone nestes seis meses
em que trabalhou na Casa Aloys. Ali, conheceu o letrista23 Arlindo Teixeira
com quem se associou e, em agosto de 1928, fundou a Marmoraria Lonardi
& Teixeira, instalada na Lomba do Cemitério. Os recursos financeiros de
Leone provinham das economias feitas nos Estados Unidos, conforme re-
lato de seu filho:
O meu pai trabalhou seis meses na Casa Aloys. Ali ele conheceu o Teixeira. (...)
Foi sócio dele. Teixeira... Aí o pai conheceu... O pai estava com os dólares que
tinha arrumado nos Estados Unidos. Compraram a esquina, ali onde é o motel.
Um canto. Depois ampliaram mais tarde.24
22
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 8.
23
O letreiro era quem produzia as letras, geralmente em metal, que eram colocadas nos túmulos e nos monumentos.
24
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 6.
Regina Zimmermann Guilherme | 129
25
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 7.
26
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 4.
27
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 9.
130 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Bom, o monsenhor Balen foi quem me batizou, depois ficou amigo do pai, vi-
nha comer perdiz aí. Ele dizia assim: “Bah, aquela cúria metropolitana é só
alemão. Dom Vicente Scherer. E eles perseguem os italianos que estão lá”. (...)
Aqui tinha a fotografia dele. Não sei onde é que parou. Do lado dos canteiros,
aí. E os canteiros, todos com as ferramentas na mão. E o monsenhor Balen no
meio.28
Agostinho Leite de Farias não teve filhos. Quando a minha mãe foi para o hos-
pital com câncer no seio, nós ficamos lá... Ele morava na Marcilio Dias... Nós
28
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de setembro de 2018. Transcrita e depositada
no acervo do Lapho, PUCRS, p. 4-5.
Regina Zimmermann Guilherme | 131
ficamos, nós quatro lá, dois meses, enquanto a minha mãe estava lá. Meu pai,
coitado, ficou viúvo com quatro filhos, no tempo da Guerra. Senão, teria vindo
a tia Pasquina e teria casado com ele. (...) Ela queria vir pra cá, porque o pai
da minha mãe, o vô Albino, ficava louco sabendo que a Maria tinha morrido e
tinham ficado quatro netinhos órfãos aqui. Mas era tempo da guerra. Ela foi
receber a notícia um ano depois, ou dois anos depois, pela Cruz Vermelha.
Então, meu pai ficou viúvo, depois conheceu na praia a Genoveva, professora
do Julio de Castilhos.29
29
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 10.
30
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 10.
132 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
31
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 10.
32
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 10.
33
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 17.
34
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 5-6.
Regina Zimmermann Guilherme | 133
Considerações finais
35
Entrevista da autora com Renzo Biondani, realizada em 28 de setembro de 2017. Transcrita e depositada no acervo
do Lapho, PUCRS, p.5.
36
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 17.
37
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 13.
38
Mitto é uma marca de tornos mecânicos para indústria pesada.
39
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 16-17.
134 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Referências
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BOM MEIHY, José Carlos Sebe. Manual de história oral. São Paulo. Edições Loyola. 1996.
Regina Zimmermann Guilherme | 135
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MEIHY, José Carlos Sebe Bom, BARBOSA, Fabíola Holanda. História oral: como fazer, como
pensar. São Paulo: Contexto, 2007.
MORAES, Roque; GALIAZZI, Maria do Carmo. Análise textual discursiva. Ijuí: Unijuí, 2007.
MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-
32, 1999.
136 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
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THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. São Paulo: Paz e Terra S.A., 1992.
VENDRAME, Maíra Ines et al. (Org.) Micro-história, trajetórias e imigração. São Leopoldo:
Oikos, 2015.
VENDRAME, Maíra Ines. O poder na aldeia: redes sociais, honra familiar e práticas de jus-
tiça entre os camponeses italianos (Brasil-Itália) / Maíra Ines Vendrame. – São
Leopoldo: Oikos; Porto Alegre: ANPUH-RS, 2016.
Fontes orais:
Fontes da imprensa
A vida não é aquela que se viveu, mas aquela que se lembra e como a recorda
para contá-la.
Gabriel Garcia Márquez
1
Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, realizando
Estágio de Pós-doutoramento na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: leocone5@hot-
mail.com.
Leonardo de Oliveira Conedera | 139
2
A palavra Mezzogiorno refere-se ao Sul da Itália (as Regiões do Abbruzzo, Campania, Basilicata, Calábria, Puglia,
Molise, Sicília e Sardegna).
140 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
A entrevista
3
O CIME foi fundado em 1951, em Bruxelas, e se encarregou do recrutamento e transporte de imigrantes de diversas
nacionalidades europeias. O órgão responsabilizava-se pela pré-seleção e dos cursos profissionalizantes na pátria de
origem do imigrante. No Brasil, o CIME assumiu a maioria das funções anteriormente realizadas pelas autoridades
brasileiras. Na Itália, era responsável pela seleção técnica dos candidatos (FACCHINETTI, 2004).
Leonardo de Oliveira Conedera | 143
[...] narra-se uma vida concreta, uma existência, uma trajetória pessoal.
Narra-se também os nexos e os símbolos, que medeiam culturalmente a vi-
vência relacionados à memória coletiva que, construída sobre vivências
comuns adquire sentidos e reorganiza temporalidades.
Eu vim como imigrante, mas com passagem paga por mim, não vindo através
da passagem paga pelo governo. Eu paguei a minha passagem da Itália para o
Brasil, até Santos. E depois de São Paulo para Porto Alegre. Eu tinha um tio
que morava em Porto Alegre que me pagou e mandou uma passagem de avião.
Então, vim de avião de São Paulo para Porto Alegre, naquelas primeiras linhas
de viagem de avião da Varig.
Desde criança, já tinha este irmão do meu pai que vivia aqui no Brasil, eu dizia:
“um dia eu vou ir para o Brasil!” E eu, quando tinha 4-5 anos dizia, com aquela
mentalidade de criança, eu olhava o mapa que era redondo e dizia: “se eu co-
meçar a cavar um buraco aqui na minha terra vou acabar saindo lá no Brasil!”
[risos] Eu tinha 3-4 anos e eu já dizia isso! Mas naquele tempo o meu tio já
morava no Brasil. Mas naquela época vivia em São Paulo, e ele teve uma desa-
vença com outros conterrâneos da Itália, e por isso decidiu vir para Porto
Alegre. E por isso, quando eu vim, ele fez um ato de chamada para que eu
viesse para Porto Alegre.
4
Aqui a palavra “Americanos” refere-se aos italianos que emigraram para América.
148 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Percebi que para me tornar independente, precisava fazer outra profissão. En-
tão, fui aprender a profissão de açougueiro. Então, trabalhei na Frangosul por
3 meses e depois arrumei um açougue arrendado, no bairro Petrópolis, de um
senhor que estava doente e não podia mais trabalhar. Então, arrendei este
açougue.
5
A palavra lucano refere-se aos italianos nascidos na Basilicata.
Leonardo de Oliveira Conedera | 149
Nos presídios eu era o “padre José” para eles! Logo, quando cheguei no presí-
dio comecei a ver as vidas dos presos, com a presença de muitos pais de
família, e ainda hoje continua a mesma coisa. Começa que um pai de família
fica desempregado 3 a 4 meses, ele vende tudo, e termina com tudo que tem
dentro da casa dele e ele vai fazer o quê? [breve silêncio] Ele então tem que
roubar!
6
Em 1985, os Comitês dos Italianos no Exterior (COMITES) são órgãos que representam os italianos que residem
fora da Itália. Essas instituições encontram-se circunscritas aos consulados que têm, pelo menos, três mil cidadãos
italianos. No Brasil, existem seis circunscrições: Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e
Recife (CONEDERA, 2018).
152 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
artesanato de Natal e alguns industriais aqui do Rio Grande do Sul que nos
ajudavam. E o IASI foi funcionando alguns anos assim. Aí, em 1993, a Srª.
Leonarda não quis mais a presidência do IASI, e, então, eu assumi a presidên-
cia.
Comecei a visitar um por um os italianos que eram ajudados pelo IASI, que
moravam aqui em Porto Alegre, na grande Porto Alegre, e depois comecei a
andar pelo interior. Até a questão dos italianos, que estavam no interior em
dificuldade, nós ficávamos sabendo através de cartas mandadas para o IASI
pelos prefeitos de algumas cidades do interior. E assim eu ia visitando um por
um.
7
A Paróquia Nossa Senhora do Rosário de Pompéia localiza-se na Rua Barros Casal. A instituição foi fundada em
1959 ((ZAMBERLAM, 2010).
Leonardo de Oliveira Conedera | 153
Considerações finais
a sua vida com trabalho no seu destino migratório, como também procu-
rou assistir aqueles que precisavam de auxílio, sendo eles seus
conterrâneos por intermédio do IASI, ou nos presídios a partir das ações
na Pastoral Carcerária.
A trajetória de Giuseppe Antonio Marramarco, portanto, viabiliza
compreender como são multifacetados os itinerários migratórios, bem
como um migrante pode ser ativo e participativo no interior de distintas
esferas onde ele se estabelece.
Referências
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GERTZ, René E.; CORREA, Sílvio Marcus de S. (org.). Historiografia alemã pósmuro:
experiências e perspectivas. Passo Fundo/Santa Cruz do Sul: UPF/EDUNISC, 2007.
p. 60-80.
CERVO, Amado Luiz. As relações históricas entre e Brasil e Itália: o papel da diplomacia.
Brasília: UNB, 1992.
CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Caixas no porão: vozes, imagens, histórias. Porto Ale-
gre: Biblos, 2004a.
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tóricos das migrações. Porto Alegre: Fi, 2018.
DE RUGGIERO, Antonio Os italianos nos contextos urbanos do Rio Grande do Sul: pers-
pectivas de pesquisa. In: VENDRAME, Maíra Inês et al. (org.). Micro-História,
trajetórias e imigração. São Leopoldo: OIKOS, 2015. p. 162-181.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
LOMNITZ, Larissa Adler. Redes sociais, cultura e poder. Rio de Janeiro: E-papers, 2009.
Entrevista
1
Fala de uma ítalo-descendente por mim entrevistada em Roma no ano de 2016.
2
Professora Titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
3
Minhas pesquisas na Itália se centraram entre ítalo-brasileiros, ou seja, brasileiros descendentes de italianos, com
cidadania italiana reconhecida ou em processo de reconhecimento. Também entrevistei migrantes brasileiros sem
ascendência italiana, para melhor compreender algumas questões da vida cotidiana italiana.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 159
4
Para Elias (1994), o corpo permite ao indivíduo se conceber como imagem espaço-temporal entre outras imagens
similares.
5
Fabian (2006) nos alerta acerca da importância de se pensar o tempo e suas complexidades no fazer etnográfico.
De qual tempo falamos? E o tempo para o outro? Quais tempos compartilhamos? O que é possível compartilhar?
6
Para Mauss, “o mana é exatamente o que dá valor às coisas e às pessoas – valor mágico, valor religioso, até mesmo
valor social” (1974, p.138).
160 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
7
Nonna é a terminologia para designar a mãe dos pais, ou seja, avó.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 161
Fonte: Acervo da autora. Objetos familiares guardados por uma descendente de imigrantes italianos na região cen-
tral do Rio Grande do Sul.
8
Fato analisado e também observado por Elhhajii et al (2016), Cogo et al (2012) em seus estudos sobre mídias e por
Zanini entre descendentes de imigrantes italianos (2012).
162 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
9
Por transnacionalismo, segundo Glick-Schiller et al (1992), compreendem-se as práticas estabelecidas pelos mi-
grantes e que possibilitam os vínculos entre seu mundo de origem e o país hospedeiro, para além das fronteiras dos
Estados nacionais. Neste sentido, as novas tecnologias de comunicação têm desempenhado importante papel facili-
tador destas vivências.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 163
10
Como aponta Paul Ricouer (1991, p.168): “A natureza verdadeira da identidade narrativa só se revela, em minha
opinião, na dialética da ipseidade e da mesmidade”. Ou seja, entre um eu e um outro.
11
Minhas pesquisas na Itália se centraram na região do Lázio e do Vêneto.
12
Cuia é o recipiente no qual se prepara o chimarrão. Na cuia se deposita a erva-mate e, posteriormente, a água
quente. A bomba é o utensílio com o qual se bebe esta mistura.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 165
13
Beber chimarrão é um hábito comum no sul do Brasil. Trata-se de uma bebida que se consome quente e que é
preparada com erva-mate e água. Pode-se “beber” individualmente ou coletivamente, fazendo “rodas”, como se
chama. Ou seja, círculos. É um hábito que foi introduzido entre os imigrantes italianos e seus descendentes muito
cedo no processo colonizador em terras brasileiras (ZANINI, 2006).
14
Isto pode ser observado com relação à emigração italiana para outras partes do Brasil também, como salienta
Trento (1988, p.41): “A propósito da proveniência regional, devemos sublinhar que a predominância de trabalhado-
res setentrionais também correspondia às preferências manifestadas pelos fazendeiros por vênetos e lombardos,
devido à sua parcimônia, frugalidade e, sobretudo, docilidade. Em alguns contratos de introdução de emigrantes
166 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
eram explicitamente excluídos emigrantes provenientes da Sicília, da Romanha e das Marcas, porque eram conside-
rados rebeles e mais prontos e repelir o arbítrio”.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 167
15
Neste aspecto, tenho o privilégio de desenvolver, desde 2011, pesquisa etnográfica com feirantes descendentes de
migrantes italianos em Santa Maria e região.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 169
16
Como ressalta Seyferth (1999), este período foi tenso para vários outros grupos também considerados ameaças ao
Estado nacional brasileiro.
170 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
E como cada ser humano, apesar das construções coletivas que são as
memórias e seu processo narrativo por meio da linguagem comum,
podem estabelecer vínculos com determinados objetos para acessa-los ou
fazer com que sejam partilhados na família e nas coletividades de formas
específicas. Foram muitas as surpresas que tive ao longo dos anos de
pesquisa e que, de certa forma, faziam-me repensar o quanto o contato
constante com os colaboradores de pesquisa e com a pesquisa empírica é
relevante e transformador de nossos pontos de vista acadêmicos, sejam
teóricos ou metodológicos. A teoria, desta forma, acaba dialogando e se
transformando com a empiria e com as experiências e trajetórias de vida
dos interlocutores. Por entre fotografias, objetos variados e narrativas,
pude entrar e conhecer muitas casas em seus interiores, muita mobília
antiga, muita vida presente nestes espaços. O espaço é habitado também
pelo tempo e por personagens, por meio do que ali está, sejam objetos
materiais ou imaterialidades também. Alguns destes objetos também se
relacionam com as pessoas (algumas vivas, outras já falecidas), com suas
temporalidades, processos de identificação e com noções de ser/estar no
mundo.
Eu já fui apresentada a roupas intimas, a vestuário dos antepassados,
pedaços de tecidos que hoje são mais memória do que vestimenta, partes
de objetos e elementos, seja do mundo masculino ou feminino que só eram
compreensíveis em suas importâncias quando ouvidas as narrativas
acerca de “seu lugar no mundo” do pesquisado e, algumas vezes, das
famílias destes também. Conheci muitas ferramentas de trabalho,
brinquedos feitos pelos antepassados, já quebrados e sem cor, um mundo
de coisas guardadas que contavam um pouco da vida de seus guardadores.
Algumas ferramentas haviam sido inventadas pelos próprios
descendentes, guardadas em galpões, enfeitando paredes, num zelo
imenso. Mas o que muito me marcou foi, certa vez, quando fui apresentada
a roupas íntimas femininas das antepassadas que eram guardadas e muito
bem cuidadas por uma senhora e tudo o que isto provocou em mim. Ao
olhar uma roupa íntima usada no passado, muito limpa e bem zelada e
172 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
Fonte: Acervo da autora. Gruta de Nossa Senhora de Lourdes, em Vale Vêneto (localidade no interior de São João
do Polêsine), na região central do Rio Grande do Sul. As placas são formas de agradecimento por graças e bênçãos
recebidas.
Fonte: Acervo da autora. Interior de capitel no município de Silveira Martins, na região central do Rio Grande do
Sul.
Considerações Finais
Referências
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Paulo: Brasiliense, 1986.
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BARTH, Frederik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. IN: LASK, Tomke. O guru, o iniciador
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Maria Catarina Chitolina Zanini | 177
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178 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes
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www.editorafi.org
contato@editorafi.org