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Entre A Italia Eo Brasil Meridional Histótias Orais e Narrativas de Imigrantes

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Entre a Itália e o Brasil Meridional

Comitê Editorial

CAROLINE TECCHIO
Doutoranda em História, Universidade do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon-PR

DANIELE BROCARDO
Doutoranda em História, Universidade do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon-PR

DOUGLAS SOUZA ANGELI


Doutorando em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS

EVERTON FERNANDO PIMENTA


Doutorando em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS

GUILHERME FRANCO DE ANDRADE


Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS

LEANDRO DE ARAÚJO CRESTANI


Doutorando em História, Universidade de Évora, Évora (Portugal)

LUIS CARLOS DOS PASSOS MARTINS


Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS

LUIZ ALBERTO GRIJÓ


Doutor em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS

RAFAEL GANSTER
Mestre em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS

RAFAEL HANSEN QUINSANI


Doutor em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS

RAFAEL SARAIVA LAPUENTE


Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS

TIAGO ARCANJO ORBEN


Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS

VINÍCIUS AURÉLIO LIEBEL


Doutor em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ
Entre a Itália e o Brasil Meridional

História Oral e narrativas de imigrantes

Organizadores:
Antonio de Ruggiero
Leonardo de Oliveira Conedera
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Fotografia de Capa: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami. Caxias do Sul.

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

Série Historicus - 22

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


RUGGIERO, Antonio de; CONEDERA, Leonardo de Oliveira (Orgs.)

Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes [recurso eletrônico] / Antonio de Ruggiero;
Leonardo de Oliveira Conedera (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020.

179 p.

ISBN - 978-65-5917-021-0
DOI - 10.22350/9786559170210

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. História; 2. Imigrantes; 3. Itália; 4. Brasil; 5. História Oral; I. Título.

CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
Sumário

Apresentação ............................................................................................................. 9
Antonio de Ruggiero
Leonardo de Oliveira Conedera

1 ................................................................................................................................ 13
Crenças e práticas de cura entre descendentes de imigrantes italianos no Rio Grande
do Sul – Século XX
Karina Bortolanza
Maíra Ines Vendrame

2 ............................................................................................................................... 39
Um grupo minoritário: relatos sobre a vivência metodista na colônia italiana do
nordeste gaúcho
Vicente Dalla Chiesa

3 ............................................................................................................................... 69
Indústria têxtil na colônia italiana no Sul do Brasil: da pesquisa documental à
história oral
Vania B.M Herédia

4............................................................................................................................... 88
Memórias orais arquivadas: a escolarização de imigrantes no meio rural na região
nordeste do Rio Grande do Sul (1910-1940)
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin

5 ...............................................................................................................................112
História oral e narrativas biográficas no estudo da trajetória do marmorista italiano
Leone Lonardi
Regina Zimmermann Guilherme

6.............................................................................................................................. 138
Um Lucano no Novo Mundo: a trajetória de Giuseppe Antonio Marramarco em Porto
Alegre
Leonardo de Oliveira Conedera

7 .............................................................................................................................. 158
“Eu ficava ali, olhando o céu” : Narrativas, imagens, objetos, personagens e lugares
em pesquisas etnográficas com descendentes de imigrantes italianos no Brasil e na
Itália
Maria Catarina Chitolina Zanini
Apresentação

Antonio de Ruggiero
Leonardo de Oliveira Conedera

Os textos que compõem este livro resultam de estudos desenvolvidos


por pesquisadores brasileiros que se depararam com a temática da Histó-
ria da Imigração Italiana, abordando as relações entre a Itália e o Brasil
através do uso de fontes orais. Nos últimos anos, o uso da metodologia da
História Oral tem recebido um destaque em diversas investigações histó-
ricas (livros, teses, dissertações e artigos científicos). Algumas se referem
às representações e às memórias identitárias elaboradas em âmbito fami-
liar e comunitário pelos descendentes dos imigrantes pioneiros chegados
no Brasil no final do século XIX e início do XX. Mas ainda mais o uso da
metodologia se expandiu, especialmente, nos estudos sobre o período su-
cessivo à Segunda Guerra Mundial, assim como sobre mobilidades
humanas mais recentes do Tempo Presente, quando os entrevistados são
os protagonistas diretos dessas experiências.
É importante salientar que, quando se investigam questões identitá-
rias referentes ao fenômeno, a história oral é uma metodologia preciosa
para compreender o cotidiano, os hábitos, a vida privada, as formas de
sociabilidade, o idioma que os imigrantes falavam em casa e muitos outros
elementos relacionados. Nesse sentido, na perspectiva do teórico italiano
Giovanni Contini (2001), a boa utilização da História Oral nos permite
criar uma relação entre a pequena história individual contada pelo entre-
vistado, e a grande história que aprendemos por intermédio dos
documentos “tradicionais”. O pesquisador social terá a habilidade de va-
riar as escalas investigativas, maximizando a fonte oral para compreender
o tipo de subjetividade dentro de uma coletividade específica, enquanto
10 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

reduzirá o campo a ser esclarecido dentro dos grandes acontecimentos


históricos. Ou seja, podemos criar um espaço social intermédio, que se di-
ferencia do micro e também do macro, através da coleta de várias
narrativas biográficas, que além dos aspectos individuais, deixam aparecer
uma tipologia da memória que se torna igual ou parecida em diferentes
entrevistas. Trata-se de uma espécie de “memória coletiva” não extrema,
como a entende Halbwachs, mas que se apresenta como lembrança de um
passado comum dentro uma coletividade que constrói e reconstrói uma
própria identidade compartilhada. Como demonstram os estudos de caso
publicados nesse livro, esta lógica funciona com as comunidades mais ou
menos numerosas de imigrantes italianos, tanto no espaço urbano como
no colonial.
O primeiro texto de Maíra Vendrame e Karina Bortolanza analisa en-
trevistas realizadas com descendentes de imigrantes italianos residentes
na comunidade de São José, localizada na Serra Gaúcha, na cidade de Far-
roupilha. A finalidade é compreender as explicações conferidas a
determinadas práticas de cura, a partir de sujeitos considerados possuido-
res de poderes sobrenaturais, para combater enfermidades e garantir
auxílios diversos. Nesse sentido, as autoras procuram explorar a questão
da crença popular na força do “feitiço” e na “bruxaria”, elementos presen-
tes até hoje na cultura camponesa em algumas regiões de colonização
italiana da Serra Gaúcha.
No segundo capítulo, Vicente Dalla Chiesa aborda, a partir de relatos
orais, a questão das relações sociais e das práticas culturais de um grupo
minoritário de italianos de religião metodista em localidades maciçamente
católicas da Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul. Os depoimen-
tos nos permitem de refletir sobre dinâmicas raramente registradas na
produção historiográfica tradicional, relacionadas com episódios de vio-
lências e limitações na prática do culto, discriminação e conflito em uma
região considerada culturalmente homogênea.
O terceiro capítulo de Vania B.M Herédia descreve em forma sintética
a trajetória da primeira grande indústria têxtil da Região de Colonização
Antonio de Ruggiero; Leonardo de Oliveira Conedera | 11

Italiana no Sul do Brasil, que surgiu como cooperativa têxtil em 1894, fun-
dada por um grupo de italianos provindos do Norte da península, de uma
região caraterizada pela produção de lã. Depois de ter passado por inúme-
ras gestões e uma grave crise enfrentada no final do século XX, o
patrimônio industrial retornou para a gestão de operários descendentes
de italianos. Através de entrevistas recentes dos trabalhadores que enfren-
taram esta experiência, a autora repercorre as estratégias de luta e
negociação para que a mesma não desaparecesse. A utilização destas me-
mórias permitiu estabelecer relações com as dinâmicas históricas que
estimularam a saída dos operários italianos pioneiros, que depois das gre-
ves de 1890-1891 na região de origem, resolveram se mudar para a Serra
Gaúcha.
No quarto capítulo, Luciane Sgarbi Santos Grazziotin aborda a temá-
tica da educação em contextos migratórios, analisando comparativamente
os processos de escolarização no meio rural, em espaços geográficos loca-
lizados no Nordeste do estado do Rio Grande do Sul. Valorizando um rico
patrimônio documental de entrevistas depositadas em dois diferentes ar-
quivos, a autora apresenta os resultados de uma investigação sobre tais
práticas escolares na região rural entre as décadas de 1910 e 1940.
O quinto capítulo, de Regina Zimmermann Guilherme, nos informa
sobre a perspectiva teórico-metodológica ligada à utilização da História
Oral, que orientou o desenvolvimento da dissertação de mestrado da
mesma autora. Através do recurso a entrevistas orais, complementares a
várias outras fontes, Regina foi capaz de penetrar mais a fundo no mundo
de um marmorista italiano que chegou em Porto Alegre na década de 1920,
se inserindo em um setor de mercado favorável naquele contexto. A partir
da trajetória individual, a autora explora a questão da imigração qualifi-
cada, do transnacionalismo, das redes e dos recursos étnicos utilizados por
imigrantes italianos especializados nas artes plásticas.
No sexto capítulo, Leonardo de Oliveira Conedera analisa o percurso
individual do imigrante italiano Giuseppe Antonio Marramarco, que se es-
tabeleceu em Porto Alegre em 1946. Através do depoimento oral do
12 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

protagonista, que teve uma trajetória empreendedora na capital gaúcha


no segundo pós-guerra, se reflete a respeito do fenômeno de uma emigra-
ção espontânea expressiva de italianos na cidade no mesmo período; bem
como sobre as estratégias utilizadas na organização associativa e na defesa
de elementos identitários na sociedade receptora.
No último capítulo, Maria Catarina Chitolina Zanini apresenta os re-
sultados de pesquisas etnográficas que vêm sendo por ela realizadas com
descendentes de imigrantes italianos no Brasil (desde 1997) e na Itália
(desde 2012). No texto se enfatiza o importante papel desempenhado pelas
imagens, objetos, lugares e personagens nas narrativas a respeito do per-
tencimento ao “mundo italiano” pelos descendentes de imigrantes.
Porto Alegre, outubro de 2020.
1

Crenças e práticas de cura entre descendentes de


imigrantes italianos no Rio Grande do Sul – Século XX

Karina Bortolanza 1
Maíra Ines Vendrame 2

Em 1875, os primeiros grupos de imigrantes italianos começaram a


chegar ao território sul-rio-grandense para ocupar colônias criadas por
iniciativa do Império brasileiro. Na região da Serra, nordeste do Rio
Grande do Sul, foram fundadas as três primeiras colônias, sendo elas: Co-
lônia Caxias, hoje compreendendo a atual cidade de Caxias do Sul e
Farroupilha; colônia Conde d'Eu, hoje Garibaldi; e a colônia Dona Isabel,
correspondente à cidade de Bento Gonçalves. Posteriormente, em 1877, foi
criado um quarto núcleo de colonização italiana, esse localizado na região
central do Rio Grande do Sul, próximo à cidade de Santa Maria. Deve-se
ressaltar que a divisão política/geográfica quando da fundação das áreas
coloniais não permaneceu a mesma. Lugares que, atualmente, pertencem
ao município de Farroupilha, antes faziam parte do território de Bento
Gonçalves.3 Este é o caso da comunidade de São José, local em que centra-
remos nossa pesquisa.

1
Graduada em história pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Foi bolsista de iniciação científica
UNIBIC.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em História e do Curso de História da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS). Pesquisa financiada pelo projeto ARD/FAPERGS.
3
A emancipação de Farroupilha ocorreu em 11 de dezembro de 1934, através do Decreto Estadual nº 5.779. Fonte:
site da prefeitura de Farroupilha (http://farroupilha.rs.gov.br/cidade/historia/). Acesso: 28 de abril de 2019.
14 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Os camponeses saíram da Itália nutrindo a expectativa de encontra-


rem um mundo melhor, já que o país recém-unificado (1861) colocava uma
série de dificuldades para eles, tanto do ponto de vista econômico quanto
político e cultural. Além disso, as crises agrícolas faziam aumentar a quan-
tidade de camponeses insatisfeitos, cada vez mais preocupados com a
sobrevivência das suas famílias no campo. Especialmente na região norte
da península itálica estava se tornando difícil viver nas aldeias, e não eram
apenas os camponeses que sentiam essa dificuldade, mas também os pá-
rocos. Por conta disso, alguns padres atuaram como incentivadores dos
deslocamentos de seus paroquianos, estimulando a emigração para luga-
res como o Brasil. Além de incentivarem grupos de famílias camponesas a
buscarem oportunidades na América, muitos sacerdotes decidiram partir
junto com seus paroquianos, estabelecendo-se com eles nas comunidades
recém-constituídas, como os núcleos coloniais do Rio Grande do Sul
(VENDRAME, 2016).
A fundação da comunidade de São José – constituída pelas Linhas Re-
pública, Cafundó, Jacintho e 24 de Maio –, localizada no interior do
município de Farroupilha, teve por base famílias que possuíam vínculos
na Itália. Valores centrados na família e na vida comunitária, como a fra-
ternidade, auxílio-mútuo e assistência entre os vizinhos, marcavam as
relações cotidianas. Apesar disso, não se pode negar a existência de desa-
venças, inimizades, fofocas e intrigas entre aquelas pessoas, aspectos estes
causadores de confrontos e atritos entre os imigrantes.
A comunidade que é tomada como local de estudo no presente traba-
lho não difere em termos culturais de outras existentes nas regiões de
colonização italiana do Rio Grande do Sul. Ela, como as outras, caracteri-
zava-se por ser um espaço onde eram vivenciados, por exemplo, hábitos
alimentares comuns, valores morais, devoções e crenças que tiveram ori-
gem no mundo camponês italiano, sua aldeia de saída na península itálica.
Apesar de nem sempre as famílias vizinhas serem originárias de um
mesmo local, nos núcleos coloniais do sul do Brasil elas irão partilhar afi-
nidades, experiências e percepções que permitirá a constituição de
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 15

discursos de pertencimento. O fortalecimento das redes de apoio e cone-


xões irá ocorrer através das vivências sociorreligiosas nas novas
comunidades. Não mais na Itália, mas em terras gaúchas, que os “imigran-
tes italianos acionarão estratégias de sobrevivência, reafirmando ou
modificando normas, valores e crenças em relação aos diversos aspectos
da vida familiar e comunitária” (VENDRAME, 2016). A partir da convivên-
cia nas comunidades coloniais, das demandas surgidas e dos contatos com
outras culturas, os italianos aprenderão técnicas para sobreviver na nova
terra.

***

O presente texto irá analisar as entrevistas realizadas com descen-


dentes de imigrantes residentes na comunidade de São José. Antes disso,
faremos uma apresentação das comunidades da Serra Gaúcha, fundadas
nas últimas décadas do século XIX e início do XX. Considerada “Berço da
Imigração Italiana no Estado do Rio Grande do Sul”, a cidade de Farroupi-
lha se emancipou em dezembro de 1934, desagregando-se dos municípios
de Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Montenegro. Inicialmente, quando da
chegada das primeiras famílias de imigrantes – Stefano Crippa, Tomazo
Radaelli e Luigi Sperafico – em 1875, vindas da província de Milão, norte
da Itália, o lugar fazia parte da colônia Dona Isabel (Bento Gonçalves). No
alto da serra, um grupo de italianos milaneses fundou a comunidade de
Nova Milano, local este onde nas últimas décadas do século XIX foram se
estabelecendo grupos de famílias de imigrantes.
Nos mapas apresentados abaixo é possível verificar (Figura 1 e 2) a
localização das três primeiras colônias fundadas na região da Serra Gaú-
cha. Em destaque (figura 2) a comunidade de São José, que engloba as
linhas coloniais Cafundó, República, 24 de Maio e Jacintho.
16 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Figura 1: Regiões de colonização italiana da Serra Gaúcha

Fonte: Mapa adaptado de Gallo (1976). Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbtur/v10n3/pt_1982-6125-


rbtur-10-03-00416.pdf>. Acesso em: 12 de maio de 2019.

Figura 2: Localização da comunidade São José e as suas respectivas linhas coloniais.

Fonte: Mapa que destaca a região estudada (localiza-se entre as cidades de Bento Gonçalves, Pinto Bandeira, Far-
roupilha, Nova Roma do Sul e Caxias do Sul), a partir dos lotes coloniais e linhas (Cafundó, República, 24 de Maio e
Jacintho), que pertencem à comunidade de São José. (Mapa adaptado através da ferramenta “Colônias”. Disponível
em: <http://colonias.heuser.pro.br/app/>. Acesso: 12 de maio de 2019.

Partindo das entrevistas realizadas com descendentes de italianos (da


terceira geração), buscaremos compreender as explicações conferidas a
determinadas práticas de cura, especialmente o entendimento de que al-
gumas pessoas tinham poderes sobrenaturais para combater enfermidade
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 17

e garantir auxílios diversos. A crença na força do “feitiço” e na “bruxaria”


é outro aspecto que se faz presente na cultura camponesa da população
que ainda vive nas regiões de colonização italiana da Serra Gaúcha, con-
forme iremos perceber nas entrevistas que serão apresentadas na
sequência.
Entendendo que “a história oral não é um fim em si mesma, e sim
um meio de conhecimento”, conforme afirma Verena Alberti (2005, p. 29),
optamos, portanto, por realizar entrevistas semiestruturadas. Tendo em
vista as dificuldades de as pessoas falarem sobre crenças e poder de deter-
minados procedimentos sobrenaturais, como o feitiço e o poder das
bruxas, decidiu-se por fazer entrevistas coletivas e não individuais. Por-
tanto, foram realizadas três entrevistas semiestruturadas, duas delas com
sete moradores da comunidade de São José e uma outra com apenas uma
moradora do lugar.4 A escolha pelos entrevistados ocorreu devido ao fato
de conhecermos a população e as histórias que circulavam entre as pessoas
que residiam no lugar. Esse conhecimento prévio estava ligado à nossa
vivência local enquanto integrante da comunidade que se tornou lócus da
pesquisa.
A historiografia que trata do tema da imigração italiana e dos modos
de viver desse grupo nas regiões de colonização pouco destaque deu para
as crenças e práticas ligadas à cura, especialmente para as compreensões
presentes entre a população de que certas pessoas tinham poderes sobre-
naturais para curar e causar malefícios. Sacerdotes e curandeiros (as)
eram procurados para, através de suas benções e rituais, propiciar a cura
de enfermidades, afastar malefícios e garantir a proteção em relação a fei-
tiços e possessões. O entendimento de que as doenças estavam ligadas ao
sobrenatural, e que esse era acessado por pessoas que tinham certo poder,
era algo presente entre os imigrantes e descendentes (VENDRAME, 2007).

4
Ao total foram realizadas sete entrevistas coletivas: Entrevista nº 1, dois entrevistados; entrevista nº 2, quatro
entrevistados; entrevista nº 3, apenas uma entrevistada. Todas as entrevistas se encontram publicadas na integra na
monografia intitulada “Me Gá contato cozi”: crenças e práticas de cura entre descendentes de imigrantes italianos
em Farroupilha, século XX, (BORTOLANZA, 2019).
18 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Frente à presença de tais crenças e práticas, a falta de médicos nas


regiões de colonização italiana foi apresentada – conforme veremos na dis-
cussão que será apresentada na sequência – como justificativa para
explicar a existência de alguns procedimentos e o próprio abandono em
que ficaram as famílias de imigrantes italianos nas comunidades coloniais.
Entendemos que a busca por curandeiros, sejam eles padres ou não, ben-
zedoras e a crença no poder de determinados rituais mágicos não deve ser
entendida frente a ausência de profissionais como os médicos. A própria
afirmação de que os imigrantes italianos durante muito tempo ficaram de-
sassistidos por médicos deve ser relativizada, uma vez que parte da ideia
de que o grupo era dependente dos procedimentos de cura realizados ape-
nas por tais profissionais.
Quando nas comunidades coloniais imigrantes ou descendentes fica-
vam doentes, esses, como primeira alternativa, preferiam permanecer em
casa junto às pessoas conhecidas e familiares e receber a visita dos benze-
dores ou curandeiros. “Os curandeiros eram respeitados e suas práticas de
cura eram aceitas e compreendidas por essa população imigrante”
(VENDRAME, 2007, p. 265). Até porque as práticas dos profissionais da
saúde ainda não eram bem aceitas e compreendidas pela população, sendo
os médicos e o internamento (no hospital) procurado quando não podia
mais contar com o atendimento em suas próprias casas, ou quando esti-
vesse em situação de extrema gravidade (...)”. Isso foi destacado em vários
estudos sobre hospitais e instituições assistenciais do Brasil (WEBER,
1999, p. 150). Durante muito tempo, em algumas realidades, as doenças
estavam ligadas ao sobrenatural, sendo a busca por bênçãos e rituais má-
gicos escolhas consideradas legítimas. A essas se somavam a utilização de
chás e unguentos.
O entendimento de que algumas mulheres, por conta de seus poderes
ligados à cura, são consideradas como “bruxas” é uma crença que se en-
contra presente nas regiões de imigração italiana do Rio Grande do Sul.
Passando de geração em geração, certos saberes e compreensões ainda são
vistos como maneiras legítimas para afastar determinados males. A partir
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 19

de alguns depoimentos a respeito de práticas de cura, poderemos visuali-


zar rituais e crenças que ainda permeiam a cultura dos descendentes de
imigrantes italianos. E ainda, obter mais informações sobre as pessoas que
são associadas a feiticeiras e bruxas por praticarem rituais de cura. Além
de analisar as crenças ligadas à cura, buscaremos entender a relação entre
determinados procedimentos curativos e o poder que algumas mulheres
alcançavam ao atuarem como benzedeiras nas comunidades de descen-
dentes de imigrantes italianos.

“Quase não havia médicos”: a saúde na colônia

A historiografia tradicional sobre as regiões de colonização italiana


do Rio Grande do Sul, ao tratar de questões de saúde entre os imigrantes
italianos, ressalta a ausência de médicos nas comunidades.5 Essa ideia foi
ressaltada no livro comemorativo intitulado o Cinquantenario dela colo-
nizzazione italiana nel Rio Grande del Sud (2000, p. XVIII). A falta de
recursos e profissionais de medicina aparece como um dos problemas en-
frentados nas primeiras décadas da colonização. “Nos primórdios, as
distâncias, devido às péssimas vias de comunicação, eram enormes, e os
recursos, parcos. Faltavam hospitais. Quase não havia médicos”. A ausên-
cia de profissionais da saúde também é destacada nos relatórios dos
agentes consulares que circularam pelas áreas urbanas e rurais onde vi-
viam as famílias italianas, na última década do século XIX e início do XX.6
O imigrante Júlio Lorezoni (1975), que chegou ao Rio Grande do Sul
nos últimos anos da década de 1870 e se instalou com familiares e conhe-
cidos na Colônia Silveira Martins, ressalta em suas memórias os recursos
ligados à cura, afirmando que o “óleo de rícino, o sal, as pílulas de Bristol,
o Pagliano e algum outro preparado eram os remédios que tomavam

5
Sobre a ideia de escassez de médicos nas regiões de colonização italiana, destacam-se os seguintes autores: Luis A.
de Boni (1996) e Olívio Manfroi (1975).
6
Os relatórios dos agentes consulares que visitaram as regiões de colonização italiana do Rio Grande do Sul no final
do século XIX e início do XX foram agrupados e publicados no livro intitulado “L’emigrazione italiana nel Rio Grande
do Sul Brasiliano (1875-1914)”, organizado por Gianpaolo Romanato e Vânia Merlotti Herédia (2018).
20 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

nossos colonos quando não se sentiam bem [...]”. O mesmo imigrante


aponta para a falta de médicos, farmácias e parteiras, destacando ainda a
presença de muitos charlatões na região colonial (LORENZONI, 1975, p.
75). Ao se utilizar as memórias de Lorenzoni para analisar os aspectos que
marcavam o cotidiano da população colonial, como os recursos acionados
para tratar das doenças, dos procedimentos de cura e os remédios utiliza-
dos, não podemos deixar de questionar o fato de tais escritos apresentarem
uma narrativa que representa o italiano como alguém que muito sofreu
frente às dificuldades e carências presentes nos núcleos coloniais.
A ausência de médicos é, portanto, apontada como um aspecto que
propiciou o aparecimento de “charlatões” e curandeiros entre a população
imigrante. Recorrer a tais curadores aparece como uma alternativa viável,
uma vez que as famílias que residiam nas colônias e povoados rurais se
encontravam totalmente desassistidas. No entanto, entendemos que essa
perspectiva que explica a busca por curandeiros devido à não presença de
médicos é algo que precisa ser relativizada. Mesmo frente ao progresso e
desenvolvimento econômico das antigas áreas de colonização italiana, al-
gumas práticas de curas muito presentes desde o início da ocupação
continuaram a existir. A presença de médicos não inibiu que antigos pro-
cedimentos fossem realizados e nem eliminou a crença no poder de
curandeiros e seus ritos. Para entender as crenças ligadas às doenças e à
cura entre a população colonial, tanto de imigrantes como de descenden-
tes, utilizaremos, nesta parte do trabalho, alguns estudos que analisaram
as práticas de cura no Rio Grande do Sul do final do século XIX e início do
XX.
No que diz respeito às condições relativas à saúde e aos doentes nas
regiões coloniais, os agentes consulares também apontaram para a falta
de médicos e farmacêuticos.7 Além das dificuldades em encontrar
profissionais da medicina que pudessem atender os doentes, os cônsules

7
Ministero degli affari esteri. Commissariato dell’emigrazione. Bollettino dell’emigrazione. Anno XII, 15 Agosto 1913,
n. 10. ROMANATO; HERÉDIA, 2018, p. 766.
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 21

ressaltam em seus relatórios a presença de curandeiros.8 Enquanto uns


não viam como problema a atuação de tais práticos de cura, outros, não
simpatizantes, declaravam que a presença de curandeiros/as era um dos
males presente nos núcleos coloniais.9 Sobre a colônia de Bento Gonçalves,
um dos agentes consulares, durante uma de suas visitas no ano de 1904,
destaca a situação como a seguinte: “existem três farmácias; o serviço de
saúde é prestado por um único médico formado na Itália e por dois
curandeiros”,10 concluindo que a situação do local era satisfatória.
A autora Yonissa Wadi (2009, p. 169) retrata também a situação sa-
nitária nas colônias italianas da Serra Gaúcha. Ressalta que, ao lado de
médicos, alguns não diplomados atuavam “curandeiros, parteiras, benze-
deiras” e “giusta-óssi [arrumador de ossos]”. Apesar de a região colonial
contar com médicos, mesmo que poucos, a maior parte da população não
tinha acesso a eles, uma vez que não podia pagar por seus serviços. É pro-
vável que os mencionados profissionais ficassem nas sedes das antigas
colônias, sendo procurados nos momentos em que o paciente não apre-
sentava melhora com os procedimentos de cura mais acessíveis.
No rastro dos primeiros grupos de imigrantes camponeses que pas-
saram a se fixar nas regiões de colonização como agricultores, chegaram
também conterrâneos que haviam saído da Itália sem o diploma de mé-
dico. A presença de médicos nas diferentes colônias e nos espaços rurais
pode ser conferida em estudos já realizados11, como também através das
fontes judiciais, onde muitos destes profissionais aparecem como réus em
processos-crimes.
Em relação à consolidação da medicina no Rio Grande do Sul nas pri-
meiras décadas da República Rio-Grandense (1889 – 1928), Beatriz

8
Ministero degli affari esteri. Commissariato dell’emigrazione. Bollettino dell’emigrazione. Anno XII. 15 Agosto 1913,
n. 10. 789. ROMANATO; HERÉDIA, 2018, p. 789.
9
Ministero degli affari esteri. Commissariato dell’emigrazione. Bollettino dell’emigrazione. Anno XII, 15 Agosto 1913,
n. 10. ROMANATO; HERÉDIA, 2018, p. 766.
10
Ministero degli affari esteri. Commissariato dell’emigrazione. Bollettino dell’emigrazione. Anno 1904, n. 18.
ROMANATO; HERÉDIA, Vania B. M. 2018, p. 474.
11
Leonor Carolina Baptista Schwartsmann (2008), no livro intitulado “Olhares do médico-viajante italiano Giovanni
Palombini no Rio Grande do Sul (1901-1914)”, analisa a presença dos médicos italianos nas regiões que receberam
imigrantes no estado sul-riograndense.
22 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Teixeira Weber (1999) constata que a população gaúcha acionava diferen-


tes recursos para tratar de seus males. Os padres, bem como os
curandeiros, atendiam os doentes receitando chás e benzendo as pessoas.
Esse fator afetava a tentativa de estabelecer uma medicina de formação
acadêmica – médicos formados – que tinha métodos desconhecidos para a
população. Os médicos, além disso, não contavam com a preferência da
clientela, muito porque os colonos não acreditavam nas receitas deles.
Sobre as funções que os padres assumiam nas regiões coloniais do
território gaúcho, Vendrame analisa de que maneira eles foram conquis-
tando espaço e certa fama entre a população imigrante ao atender as mais
diversas demandadas. A crença de que a doença podia ser consequência de
um malefício, bem como a visão de que certos sacerdotes tinham o poder
de curar doenças e perturbações através de ritos mágicos e exorcismos,
fazia com que as pessoas recorressem a determinados padres. Na visão dos
imigrantes, o “mal físico” normalmente era entendido dentro de um “con-
texto que não era naturalista, e sim cósmico”, motivo pelo qual alguns
males somente seriam afastados quando da realização de bênçãos e ritos
apropriados (2007, p. 271).
O surgimento de um embate entre curandeiros e médicos, bem como
a preocupação desses últimos em ganhar espaço e combater aqueles que
eram vistos como “charlatões”, passou a ser mais presente no Rio Grande
do Sul nas últimas décadas do século XIX e primeiras do XX, especialmente
a partir da proclamação da República. As ideias positivistas buscavam fir-
mar a ciência médica dentro do estado, procurando as autoridades
republicanas tornar a “cidade mais saudável”. Para isso era necessário a
institucionalização das práticas de cura, bem como o incentivo à higieni-
zação pública.
Diante dessas novas ideias, surgiu a necessidade de combater os prá-
ticos de cura que não tinham uma formação científica. Existia uma coesão
de médicos com diploma contra o livre exercício da profissão, afirmando
que seus métodos eram mais eficazes do que os dos curandeiros. A partir
disso é possível identificar não só uma intervenção das autoridades no
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 23

controle daqueles, mas também uma pressão por parte dos diplomados
sobre os práticos de cura sem formação. Para justificar as práticas realiza-
das por pessoas não formadas, os médicos acusavam os curandeiros de
serem ignorantes. Apesar do combate realizado pelos representantes da
medicina oficial aos curadores, parte da população sentia receio e “medo”
das práticas realizadas pelos médicos (WEBER, 1999, p. 114-15).
No início do século XX, inúmeras pessoas buscavam sobreviver, nos
espaços urbanos e rurais do território sul-rio-grandense, por meio de prá-
ticas que atendessem seus problemas de saúde. A população procurava
contornar as “exigências” que a sociedade médica impunha, continuando
a praticar suas formas de cura. Já os médicos, conforme destaca Weber
(1999, p. 115), estavam empenhados em “demonstrar a sua diferença em
relação a todas as concepções e práticas populares sobre doença e cura”,
reforçando, assim, a “sua autoridade ‘científica’ contra a ignorância dos
que não se utilizavam dos conhecimentos ‘civilizados’ difundidos pelas ins-
tituições médicas”. Era, portanto, bastante comum ouvir médicos
desvalorizando curandeiros e os diminuindo enquanto práticos da cura.
Queriam criar uma hierarquia12 no espaço da saúde. Pela medicina, os cu-
randeiros eram vistos como indivíduos que buscavam abusar da
ignorância das pessoas.
Por utilizarem métodos menos invasivos e conferir explicações que
iam ao encontro dos modos de pensar da população, os curandeiros aca-
bavam desfrutando também de maior confiança, o que fazia com que
fossem procurados como curadores preferenciais no trato dos malefícios.
Os populares apenas recorriam à medicina quando haviam esgotado as
opções que consideravam mais confiáveis (WITTER, 2001). E, apesar de
residirem numa mesma comunidade e partilharem dos mesmos costumes
e valores, as pessoas não percebiam os curadores de igual maneira.

12
Witter (2001) destaca a hierarquia criada no campo da cura pelos médicos diplomados em relação aos curandeiros.
“Na medida em que se avança para o fim do século, os médicos formados aprofundam suas ações no sentido de
diferenciar-se de seus congêneres. Os métodos usados nessa separação, entre quem deveria ter o poder de curar e
quem não deveria, foram múltiplos” (WITTER, 2001, p. 82).
24 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Na percepção popular, as doenças também eram entendidas como


consequência de malefícios causados por pessoas que tinham acesso ao
sobrenatural. Sobre os “feiticeiros”, o antropólogo Claude Lévi-Strauss
(1975, p, 182) ressalta:

[...] a crença do feiticeiro reside na eficácia de suas técnicas; depois, a do do-


ente de que ele trata ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio
feiticeiro; e, finalmente, a confiança e as exigências da opinião coletiva, que
formam continuamente uma espécie de campo de gravitação no interior do
qual se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça.

A presença de mulheres atuantes no universo da cura possivelmente


era maior do que a de homens, sendo aquelas também consideradas “bru-
xas”. Mesmo que o curandeirismo fosse praticado por ambos os sexos, era
mais frequente associarem as mulheres à prática de feitiçaria. Essa ques-
tão será retomada na sequência do presente do trabalho.

“(...) elas benzem e o mal passa”

A prática de benzer era muito comum entre os imigrantes italianos


que chegaram ao sul do Brasil nas últimas décadas do século XIX. Crenças
e ritos próprios de uma cultura agrária camponesa foi transplantada da
Itália para as regiões de colonização do Rio Grande do Sul. Muitos padres
irão adquirir prestígio entre os imigrantes por atenderem aos pedidos dos
paroquianos de realizar bênçãos e exorcismos para afastar as pragas que
destruíam as plantações, consumiam os produtos das colheitas, faziam
adoecer os animais e doenças que atingiam as pessoas. A tolerância dos
padres para com as crenças populares das populações rurais é uma ques-
tão que irá marcar a história da Igreja Católica mesmo após o Concílio
Trento.13 Foi impossível evitar que uma série de rituais mágicos fosse

13
Keith Thomas (1991, p. 40), ao analisar as crenças populares na Inglaterra do século XVI e XVII, ressalta o papel
dos sacerdotes na realização de exorcismos para “tornar os campos férteis, velas sagradas para proteger os animais,
e pragas formais para afastar lagartos e ratos e matar ervas daninhas”. A Igreja atuava como “repositório de poderes
sobrenaturais, que podiam ser distribuídos aos fiéis para auxiliá-los em seus problemas cotidianos”. A permanência
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 25

compreendida como eficaz no controle dos mais variados problemas coti-


dianos. Objetos religiosos e ritos eram percebidos como detentores de
poderes sobrenaturais, motivo pelo qual deviam ser acionados para garan-
tir proteções para as pessoas e seus bens.
Como já mencionamos, os padres das regiões coloniais do Rio Grande
do Sul irão buscar atender muitos dos pedidos dos imigrantes no sentido
de realizar rituais e bênçãos, conquistando, assim, certo prestígio. Além de
procurar manter os paroquianos próximos do seu controle, atender aos
pedidos da população tornou-se uma estratégia utilizada pelos sacerdotes
para garantir o domínio sobre determinados ritos que eram realizados por
curandeiros e outros práticos (VENDRAME, 2007). Os padres que atuaram
entre os imigrantes nos diferentes locais de colonização reclamavam do
“espírito supersticioso” da população, uma vez que acreditavam na força
dos feitiços, em bruxas e buscavam persegui-las. Porém, contra isso deve-
riam lutar através das pregações e advertências, buscando, assim,
esclarecer a população que não existia “feitiçaria” e “bruxas”
(D’APREMONT; GILLONNY, 1976, p. 109-114).
Além de terem transplantado para o sul do Brasil uma série de cren-
ças e práticas próprias do mundo camponês europeu, ao chegarem ao solo
gaúcho, os imigrantes passaram a entrar em contato com novos saberes,
passando a utilizar ervas e outros procedimentos para alcançar a cura das
enfermidades e as proteções contra os malefícios que podiam causar in-
fortúnios diversos. Foi através do contato com a população local (índios,
negros e luso-brasileiros) que aprenderam a respeito dos poderes curati-
vos de certas plantas, recorrendo a essas para tratar os mais diversos
males.
Nas entrevistas realizadas,14 a prática das benzeduras é mencionada
como algo bastante frequente ao longo da vida. Apresentamos, na sequên-
cia, alguns dos procedimentos curativos realizados por mulheres. De

de uma série de procedimentos religiosos sob a coordenação dos padres continuou a existir para garantir a proteção
dos campos e das colheitas em aldeias europeias do século XVIII, conforme ressalta Peter Burke (1992, p. 121).
14
Entrevista com um casal de moradores da comunidade São José, Marina (75 anos) e Paulo (82 anos). (Entrevista
1). Usamos pseudônimo quando fazemos referência aos depoentes (Entrevista, In: BORTOLANZA, 2019).
26 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

acordo com a depoente Marina as benzeduras eram utilizadas frequente-


mente para curar a dor de cabeça, denominada por ela como “solana”:

Elas benzem e passa. É tudo simpatia, a solana é uma dor de cabeça que dava
de noite ou de noite ou de manhã cedo se era de noite era a da lua e se era de
manhã era a solana [...]. Então tu aia benzer elas tinham uma simpatia de
dobrar as toalhas, para que fique sempre pro lado de fora as pontas né, fazia
isso, fazia acho que fazia isso também, botava a toalha na cabeça com um copo
de água virado pra baixo era a benzedura isso dai [...]. E a água ia descendo e
a agua fervia dentro do copo e ia descendo, ia umas três vezes e passava a dor
de cabeça.15

É importante ressaltar que não eram todas as benzeduras que po-


diam ser realizadas na própria residência do doente, devendo alguns
procedimentos de cura serem realizados por curandeiros na casa deles.
Esse é o caso da benzedura para curar a inflamação do nervo ciático. Em
depoimento, Marina descreve como uma curandeira local procedia em tais
casos:

[...] tipo a Sandra tu vai benzer a ciática, ela benze com uma vela com um
tijolo. A ciática16 né? Ela começa faz as rezas dela, ela vai com a vela até o tijolo
faz aquela cruz. Passa por tudo e faz as cruzes dela, faz as benzeduras dela. E
ela vai... [...]. Ela vai lá em baixo ela faz aquela cruz no tijolo, e melhora.17

A afirmação de que a dor passa após a benzedura demostra que a


entrevistada acredita em tal procedimento curativo. Sendo assim, como
ressalta Webber (1999, p. 227), para esses grupos a saúde é mais que o
bem-estar físico, é também conforto, socialização, proteção e explicação
para seus problemas a partir de um universo compreensível a eles. Con-
tudo, durante a entrevista, dona Marina deixa transparecer o “receio” em
dizer que frequentava a benzedeira e que acredita na eficácia dos métodos.

15
Entrevista de Marina (75 anos, casada, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
16
Ciática denominação utilizada para se referir à inflamação do nervo ciático.
17
Entrevista de Marina (75 anos, casada, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 27

É certo que os curandeiros tinham respeito e suas práticas de curas


eram aceitas pelos imigrantes, uma vez que partilhavam da visão de
mundo das pessoas que os procuravam, conferindo explicações compre-
ensíveis e creditadas pela população sobre a origem dos seus males. Esse
aspecto demonstra que por mais que exista receio por parte dos entrevis-
tados em mostrar que frequentavam curandeiros/as, as pessoas os
procuram para tratar das mais diversas enfermidades (VENDRAME, 2007,
p. 265).
Em relação à temática das práticas cura e o constrangimento em con-
fessar que acreditam e recorrem aos curandeiros, é possível relacionar
com os comportamentos e crenças de outro grupo de descendentes de imi-
grantes europeus. Joana Bahia (2011, p. 320), ao analisar os saberes e
procedimentos praticados pelos pomeranos,18 afirma que ao serem acres-
centados “gestos e palavras mágicas às suas descrições, a reação inicial era
sorrir e afirmar que “não faziam mais”. Os entrevistados tinham inclusive
receio de mencionar as palavras que utilizavam, atribuindo “as práticas
aos antigos, seus parentes já falecidos, ou aos vizinhos.” E simplesmente
sorriam, afirmando em pomerano: “Dat ist ouwagloba!” (Ah, isto é supers-
tição!). Ou então afirmavam: “Eu não sou bruxo, mas o vizinho é...!”, “O
vizinho acredita nessas coisas, eu não...!”.
Diante disso, é possível encontrar semelhanças entre as práticas rea-
lizadas entre os descendentes de imigrantes pomeranos e italianos. Ambos
os grupos reviveram em terras brasileiras crenças e práticas mágicas de
cura trazidas dos seus países de origem.
A depoente Sandra19, conhecida como benzedeira, mencionou algu-
mas das benzeduras por ela praticadas, que tinham por objetivo aliviar a
dores nas costas, na cabeça, a inflamação do nervo ciático e dos poros.
Também ressalta conhecer simpatias contra mau-olhado e para “segurar
namorado”. Para qualquer dessas atividades, menciona não cobrar valor

18
Pomeranos, denominação alemã para o povo originário da região da Pomerânia. Para saber mais, indico a leitura
do livro de Joana Bahia (2011) intitulado “O tiro da Bruxa”.
19
A entrevista de Sandra (81 anos, benzedeira e residente na comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
28 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

algum pelos prestados, aceitando, porém, o que lhe for conferido de ma-
neira espontânea. Todas as pessoas que recorrem às bênçãos e simpatias
da benzedeira costumavam dar algo a ela. Essa questão pode ser entendida
como uma forma de troca, retribuição e compensação. A ideia de que essa
relação entre a curandeira gerava uma relação de “dom” e “contra dom”
(GODELIER, 1996), de dívida que se manifestava na ideia de respeito e
temor em relação a tais curadores.
Quando questionada sobre como começou a benzer, a entrevistada
Sandra afirma que aprendeu com o seu pai, que antes deste seu avô e bi-
savô também benziam. “Eu faço qualquer coisa, benzo de tudo né, eu
tenho um [que] posso te ensinar”. O “dom” aqui era uma herança de fa-
mília que havia sido passado pelos antepassados homens até chegar na
depoente. Era um poder que estava associado ao grupo parental e familiar
e que havia sido transmitido a um integrante da família. Sobre a transmis-
são do dom, a depoente declara que tinha uma “benção” que poderia
“ensinar” para a própria entrevistadora, caso desejasse. É certo a curan-
deira deveria transmitir tudo o que sabia para um familiar, uma vez que
durante gerações o saber havia sido transmitido por linhagem paterna,
sendo passado do patriarca para o filho e filha. A confiança e o interesse
eram questões que podiam marcar a transmissões de alguns saberes, po-
rém não todos, como ressalta a entrevistada. Mais do que um “saber e
poder” que era transmitido de pais para os filhos, que permanecia por ge-
rações dentro de grupo familiar e conferia prestígio e fama, os
conhecimentos passados eram algo que, certamente, eram reconhecidos
como associados a determinados indivíduos na família.
Dentre as benzeduras que realizava, a depoente descreve algumas,
afirmando que ela fazia “qualquer coisa, benzo tudo”. Porém, é certo que
alguns desses ritos não deviam ser compartilhados ou comunicados. Den-
tre as bênçãos e ritos que podiam ser contados, afirma que para colocar
“de volta no lugar” um nervo, osso ou músculo, era necessário ter uma
bacia, um copo/xícara, um barbante e cinco ou sete pedacinhos de pau
com um “nozinho”. A execução da prática foi descrita da seguinte maneira:
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 29

“então precisa botar um barbante assim e uma caneca cheia de água, vira
para trás, reza o pai nosso e antes de começar, né, conta sete ou cinco (...),
reza o pai nosso e sai (...)”.20 Segundo a depoente, qualquer coisa que saísse
do lugar no corpo, como deslocamento de ossos, podia regressar através
da referida benzedura.
Outra benzedura apresentada é a utilizada para amenizar os proble-
mas ligados ao nervo ciático. Novamente, neste caso, aparecem elementos
religiosos católicos no procedimento para curar as dores de ciático. O pro-
cedimento é descrito da seguinte maneira: “vamos lá fora, eu ascendo uma
vela, se deve fazer o sinal da cruz, e tu e ele, devem então dizer quatro pai
nosso (...) ”.21 A benzedeira deve ir ao redor da pessoa rezando a oração do
“pai nosso” quatro vezes e, em seguida, pronunciar a seguinte frase: “ciá-
tico sito andoe, sota la escala ti vá fora par de quá”22 (ciático, tu está aonde,
debaixo da escada, tu vai para fora por aqui). Depois do procedimento des-
crito, o nervo ciático “desinflama” e a dor desaparece, segundo a
depoente.23
Sobre as diferentes benzeduras apresentadas pela depoente, é possí-
vel destacar um aspecto que se sobressai em todas as práticas, que era a
oração do “pai nosso”. Ao ser questionada do por que da oração do pai
nosso ela me respondeu, “É... o pai nosso qualquer coisa vale”24. A utiliza-
ção de oração católica era uma maneira de obter maior aceitação em
relação as práticas realizadas, visto serem os descendentes de imigrantes
italianos na maior parte católicos. Os próprios padres se utilizavam de
bênçãos e orações, bem como da realização de exorcismos para afastar
pragas das lavouras ou curar pessoas e animais.
Assim, a “pedido do povo”, alguns sacerdotes que passaram a traba-
lhar nas comunidades fundadas por imigrantes italianos percorreram as
casas da população para benzer animais, as pessoas enfermas, os produtos

20
Entrevista Sandra (81, viúva, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
21
Idem
22
Tradução da língua dialetal para o português.
23
Entrevista (81, viúva, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
24
Entrevista, Sandra (81, viúva, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
30 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

agrícolas, os galpões e as residências. Isso tudo porque era muito presente


o entendimento de que bênção tinha o poder de modificar diversas situa-
ções, sendo, portanto, usada para resolver os problemas físicos, proteger
os animais e bens, bem como evitar os mais diversos infortúnios. Assim,
os padres tiveram que legitimar as crenças que faziam parte da visão de
mundo dos imigrantes, buscando, através disso, controlar as atividades
exercidas por curandeiros e benzedores. Uma das estratégias para garantir
prestígio pelos sacerdotes que chegavam à região colonial era atender as
diferentes solicitações utilizando ritos mágicos, buscando conquistar a
confiança e trazer para o seu controle as atividades acreditadas para aces-
sar o sobrenatural (VENDRAME, 2007). Procurando assumir a posição
como os únicos que podiam ser procurados para realizar bênçãos e afastar
os infortúnios, os padres, através de suas prédicas, passaram a condenar
as visitas às benzedeiras, associando as práticas realizadas por essas como
responsáveis por desencadear os mais diversos prejuízos às pessoas que a
elas recorriam.25
Indicando a relação não amistosa entre um sacerdote e um benzedor,
um dos entrevistados26 faz o seguinte relato: durante uma missa na comu-
nidade, foi perguntado pelo pároco se o coroinha tinha coragem de pegar
na sua estola e olhar para o teto da igreja, pois ao fazer isso ele veria todas
as bruxas da localidade. O garoto “el gá varda alto e gá visto una par una”
(olhou alto e viu uma por uma). Ao fazer isso, o padre buscava lançar acu-
sações sobre o comportamento de algumas pessoas conhecidas por suas
práticas, bem como demostrar controle sobre as próprias “bruxas” ao
atrair e identificar as mesmas dentro da igreja.
Acrescentando outras informações em relação ao comportamento
das lideranças religiosas, outra entrevistada afirma que o sacerdote solici-
tou na comunidade que quem tinha o livro “São Cipriano” – material sobre
práticas sobrenaturais – deveria levá-los até a igreja para que ele desse o

25
A essa questão está associado o fato de muitos descendentes de imigrantes negarem terem em algum momento da
vida procurado por benzedeiras (os), apesar de saberem da existência das mesmas nas regiões coloniais, bem como
conhecer que elas realizavam bênçãos e também afastavam feitiços (MERLOTTI, 1979, p. 73-5).
26
Entrevista de Everton (69, casado, morador da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 31

devido destino aos livros. Um exemplar foi então levado na missa e tam-
bém entregue “de noite para não ver quem tinha”.27 Através da fala da
entrevista é possível perceber que o padre que estava buscando recolher
os livros de “San Cipriano” o fazia para controlar as crenças locais e co-
mentários que circulavam na comunidade que afirmavam que aqueles que
possuíam o livro tinham poderes sobrenaturais, eram feiticeiras e bruxas.
Na comunidade em que residem os entrevistados, é bastante recor-
rente as afirmações sobre a existência do livro de São Cipriano e dos
poderes que esse dá a quem o possui. Apesar de não ter sido possível en-
contrar maiores informações sobre o livro entre os descendentes, além é
claro de que algumas pessoas do lugar possuíam o mesmo, Cipriano teria
sido um feiticeiro que se dedicou ao estudo do ocultismo e obteve muitos
ensinamentos de uma jovem bruxa, antes de se converter ao cristianismo.
O livro de São Cipriano apareceu apenas no século XIX, muito tempo de-
pois da morte do mesmo, que viveu em Antioquia. Conhecido na cultura
popular europeia, o registro era uma espécie de almanaque de saberes li-
gados a magia e feitiçaria, bem como crenças agrárias muito presentes no
mundo camponês (FERREIRA, 1992).
Para um dos entrevistados, o livro teria sido escrito por São Cipriano
para aqueles que tinham o poder de curar, para poderem ajudar as pes-
soas, e também “pra fazer mal também”.28 A indicação da existência do
mencionado material apontava para a crença de que existiam “streghe”
(bruxas) e “stregoni” (feiticeiros) na comunidade, que eram temidos e pro-
curados pela população para resolver os mais diversos problemas e
impasses cotidianos. A associação entre o livro de São Cipriano e os pode-
res sobrenaturais de certas pessoas, conhecidas como bruxas e feiticeiras,
faz parte de uma tradição popular europeia que havia se perpetuado nas
regiões de colonização italiana do Rio Grande do Sul.

27
Entrevista de Marina (casada, 75 anos de idade, moradora da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
28
Entrevista de Everton (69, casado, morador da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
32 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

“Streghe” e “stregoni”: bruxas e feiticeiros

Como vimos anteriormente, nas comunidades coloniais a crença de


que existiam bruxas e feiticeiros que podiam auxiliar no combate as doen-
ças e aos infortúnios, mas também possuíam poderes para causar
maléficos, era muito presente entre a população, estando, portanto, ligada
a uma herança cultural agrária camponesa que havia chegado com os imi-
grantes italianos. A força de tais entendimentos persistiu apesar da
atuação dos padres no combate das mesmas. Essa persistência pode ser
verificada nos relatos dos entrevistados sobre a presença de grupos de bru-
xos e feiticeiros. Na comunidade de São José, o grupo de “bruxos” era
conhecido como Brondeti e Pinhatei29, palavras do dialeto “talian”, para
definir as pessoas que haviam se fixado inicialmente na região e que pos-
suíam poderes sobrenaturais. Em relação ao primeiro nome, um dos
depoentes declara, “Os brondeti estão do nosso lado”, tendo eles “se insta-
lado na cabeceira da linha República”. Indicando que era um grupo
conhecido como feiticeiro, deixa a entender que aqueles seriam do bem,
pois “os pinhatei te fea morir” (os pinhatei te fazem morrer).30
Apesar de num primeiro momento parecer que se referiam a um
mesmo grupo, podemos perceber que indicam que existia uma diferenci-
ação, um deles estava do “nosso lado” e outros, “te fazem morrer”. Mesmo
frente à impossibilidade de estabelecer diferenciações mais claras em re-
lação aos mencionados grupos, “os pinhatei” e os “brondeti”, é certo que
ambos eram temidos e possuíam poderes. Eles também eram acusados de
possuírem o livro de São Cipriano, sendo as pessoas que eram considera-
das feiticeiras/os ou bruxas possuírem ligação parental. Nesse sentido, os
sobrinhos/as, primos/as, filhos/as com ascendentes bruxos/as são acusa-
dos de possuírem o “livro negro” por herança e carregarem um legado
sobrenatural (BORTOLANZA, 2019).

29
Entrevista de Tamara (69 anos, casada) e Everton (69 anos, casado). No dialeto italiano local, Brondeti significa
uma panela grande (caldeirão) e Pinhatei uma panela que antigamente era utilizada para buscar água
(BORTOLANZA, 2019).
30
Entrevista de Everton (69, casado, morador da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 33

Por meio dos depoimentos, percebemos que os temores em relação


aos feiticeiros(as) eram marcados também por questões de gênero. Se en-
tre os vizinhos podiam ser identificados “streghe” e “stregoni” do bem,
enquanto entre aqueles mais afastados eram os do mal, as mulheres que
atuavam como benzedeiras eram associadas à feitiçaria e bruxaria. Esse
era o caso da depoente que realizava benzeduras para os diversos tipos de
doenças e infortúnios, conforme apresentado anteriormente. Logo, o en-
tendimento de que as mulheres que sabiam curar podiam também causar
danos variados, era um entendimento que se encontrava presente nas co-
munidades rurais de descendentes de imigrantes italianos. Vistas como
velhas “streghe” e “esquirata”, com seus poderes podiam ocasionar a
morte de animais e doenças nos vizinhos rivais.31
Os poderes sobrenaturais poderiam ser acionados para o bem e para
o mal, bem como para alcançar vantagens diversas. De acordo com relato
de um dos depoentes, na comunidade de São José tinha uma mulher que
era vista como bruxa pelo fato de ser “muito vaidosa” e interessada nos
negócios familiares, tendo seu esposo se tornado um dos proprietários de
terras mais ricos da região32. Não somente as mulheres que eram partei-
ras, curandeiras e benzedeiras podiam ser definidas como bruxas e
temidas nas localidades onde residiam. A ascensão social e o sucesso em
algumas escolhas poderiam ser interpretadas, por vizinhos e conhecidos,
como resultantes de pactos com entidades sobrenaturais. Nesse sentido, o
êxito em relação as práticas de cura conferiam ascendência e prestígio en-
tre a população, garantindo ao mesmo tempo também certa desconfiança
e temor. Essa questão é percebida nas entrevistas realizadas, bem como
no fato de existir um maior número de mulheres que eram consideradas
bruxas se comparado com os homens.33

31
Entrevistas de Everton (69 anos, casada) e Tamara (69 anos, casado). Ambos moradores da comunidade São José
(BORTOLANZA, 2019).
31
Entrevista de Everton (69, casado, morador da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
32
Entrevista de Everton (69, casado, morador da comunidade de São José), (BORTOLANZA, 2019).
33
Entrevistamos três homens e quatro mulheres, dentre elas uma benzedeira. Dos entrevistados seis se referem a
mulheres ao se tratar de bruxaria, entre as citadas foi possível destacar no mínimo três mulheres apontadas como
34 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

As acusações de bruxaria e feitiçaria apontam para os temores e dis-


putas que marcavam a realidade cotidiana nas comunidades rurais.
Conforme ressalta Joana Bahia (2011, p. 325), que estudou questões seme-
lhantes entre os descendentes de imigrantes pomeranos no estado de
Santa Catarina, as incriminações revelavam as diferenças e divisões inter-
nas entre a população de um determinado povoado. O rompimento das
reciprocidades locais na vizinhança podia ser um fator para o surgimento
de acusações, conforme aponta um dos depoentes ao contar um evento
ocorrido ligado à negação, por parte de um vizinho, de vender uma vaca
para uma “esquirata”. Essa, descontente, afirmou: “está bem, tu não me
vendes, mas a vaca vai morrer”; depois de três dias, a vaca morreu.34
A falta de solidariedade e caridade, ao não querer emprestar algo para
alguém, ou mesmo não prestar assistência a um vizinho, fazia surgir di-
vergências, motivando instabilidades e o aparecimento de temores. O
vizinho ou vizinha não atendido/a poderia lançar malefícios ao outro, ge-
rando, desse modo, algum temor.

Considerações finais

O presente trabalho procurou analisar crenças relacionadas às práti-


cas de cura entre descendentes de imigrantes italianos na Serra Gaúcha.
Através de entrevistas com moradores de uma comunidade rural, busca-
mos perceber os procedimentos de cura empregados para tratar algum
malefício físico, bem como as explicações de que enfermidades e infortú-
nios podiam ser causados por forças sobrenaturais. Nesse campo, a figura
feminina aparece como protagonista nas práticas de cura, logo, as mesmas
são as mais acusadas de bruxaria.
Analisou-se que o papel das mulheres nas regiões de colonização ita-
liana está intimamente associado aos saberes transmitidos de geração para

as suspeitas de praticarem o sobrenatural. Contudo é importante salientar que dois entrevistados (um homem e uma
mulher) citam um homem como sendo suspeito por suas práticas (leitura de cartas), além das benzeduras.
34
Depoente Everton (69, casado, morador da comunidade de São José).
Karina Bortolanza; Maíra Ines Vendrame | 35

geração. Por atuarem como benzedeiras, curandeiras e serem conhecedo-


ras das propriedades medicinais de plantas diversas, bem como por darem
continuidade às práticas realizadas pelos antepassados, muitas delas pas-
saram a ser conhecidas como “esquirata” e “stregue”, denominação que
significava bruxas. Nas questões ligadas aos cuidados dos males que afli-
giam a população, a figura feminina irá encontrar um espaço de atuação
que garantirá poder. Detentoras dos saberes mágicos, “guardiãs” da me-
mória do grupo, eram elas os principais alvos das acusações de bruxaria
nas comunidades rurais, especialmente nos momentos em que surgiam
conflitos entre os vizinhos, quando do não cumprimento das normas de
convivência e de assistência.
Entendemos que existe uma relação entre feitiço e práticas de cura
porque a população camponesa compreende que determinados males po-
dem ser tratados através das benzeduras realizadas por pessoas que
possuem certo poder de curar, mas também de causar malefícios. Dessa
maneira, ser possuidor de poderes sobrenaturais pode trazer tanto res-
peito quanto desconfiança, como é o caso quando se é acusada/o de
feitiçaria. Caracteriza-se o grupo “brondeti” e “pinhatei” como sendo
aqueles que possuem o livro de São Cipriano, chamado de “Livro Negro”,
pessoas com ligação com o sobrenatural e práticas “ocultistas”. É impor-
tante salientar que os mencionados termos são atribuídos àquelas pessoas
que eram vistas como bruxos/as, apesar de parecer existir uma diferenci-
ação entre eles.
Apesar de os padres terem atuado nas comunidades coloniais empe-
nhando-se em combater e controlar determinadas crenças e práticas, eles
não conseguiram eliminar certas compreensões. Doenças, infortúnios e
adversidades cotidianas poderiam ser causados por forças sobrenaturais.
O entendimento de que algumas mulheres e homens eram bruxas e feiti-
ceiros, que tinham poderes para fazer o bem e o mal, continuou a existir
por muito tempo, sendo ainda hoje comentadas entre a população local as
histórias sobre os poderes sobrenaturais de algumas mulheres. Benzedo-
ras e curandeiras, reconhecidas pela força de suas bênçãos e ritos,
36 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

continuam a ser procuradas para atender os mais diversos pedidos, como


os ligados ao restabelecimento da saúde. Porém, as atividades dessas pes-
soas vão além das relacionadas apenas à cura de doenças, servindo
também para desfazer feitiços, alcançar determinados desejos e garantir
proteções. É através da atuação como benzedoras que mulheres garantem
reconhecimento e, por outro lado, causam certo temor entre os vizinhos.

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2

Um grupo minoritário:
relatos sobre a vivência metodista na
colônia italiana do nordeste gaúcho

Vicente Dalla Chiesa 1

Há historiadores que são fãs dos arquivos, que sentem a necessidade de segu-
rar o papel velho, e que falam disso, do mesmo modo que eu posso falar, depois
da entrevista, do cafezinho servido por aquela velha senhora que quase me
chamou de filho... (POLLAK, 1992, p. 12)

Apresentação

A temática da presença metodista na região colonial italiana do nor-


deste gaúcho (RCI), vem sendo estudada pelo autor há alguns anos,
inclusive dentro da metodologia da História Oral (DALLA CHIESA, 2016).
No entanto, este texto se distingue dos precedentes por algumas caracte-
rísticas. Em primeiro lugar, o recorte temporal: os estudos anteriores não
avançaram além da década de 1930, final da época em que a marca étnica
italiana da Igreja Metodista na RCI foi mais marcante. Neste trabalho, os
relatos colhidos abordam principalmente o período de meados da década
de 1930 a meados da década de 1960, ainda que alguns entrevistados men-
cionem fatos mais remotos. Além disso, a temática também é diversa, o
eixo central deste texto somente foi abordado de forma periférica nos tra-
balhos anteriores: as experiências de pessoas evangélicas dentro de uma

1
Pesquisador membro do Grupo de Pesquisa da História do Metodismo no RS Instituto Teológico João Wesley/IPA
40 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

zona de imigração italiana, maciçamente católica, sob o prisma da vivência


de preconceito por serem parte de um grupo religioso minoritário.
As referências sobre discriminação, atritos ou limitações de culto vi-
venciadas por minorias religiosas evangélicas nos séculos XIX e XX é
razoavelmente presente dentro do cenário nacional, inclusive no âmbito
metodista (LONG, 1968; VIEIRA, 1980; SALVADOR, 1983; GUELIS, 2013).
O que se pretende apresentar de novo aqui, através de depoimentos, é esse
recorte dentro de comunidades metodistas situadas no seio de uma região
de imigração italiana, onde formavam grupos pequenos, e onde a presença
de não-católicos é pouquíssimo registrada, inclusive na historiografia.
Nesse sentido:

Então, quando buscamos fontes orais, as buscamos em primeiro lugar porque


na oralidade encontramos a forma de comunicar específica de todos os que
estão excluídos, marginalizados, na mídia e no discurso público. Buscamos
fontes orais porque queremos que essas vozes – que, sim, existem, porém nin-
guém as escuta, ou poucos as escutam – tenham acesso à esfera pública, ao
discurso público, e o modifiquem radicalmente. Com frequência se diz que, na
História Oral, damos voz aos sem voz. Não é assim. Se não tivessem voz, não
teríamos nada a gravar, não teríamos nada a escutar. Os excluídos, os margi-
nalizados, os sem-poder sim, têm voz, mas não há ninguém que os escute.
Essa voz está incluída num espaço limitado. O que fazemos é recolher essa voz,
amplificá-la e levá-la ao espaço público do discurso e da palavra (PORTELLI,
2010, p. 3).

O que une os relatos entre si são as particularidades religiosas e étni-


cas dos entrevistados. Quanto à confissão religiosa, todos são membros da
Igreja Metodista, ou o foram no período temporal a que se referem as en-
trevistas. No tocante ao aspecto étnico, os depoentes são pessoas de origem
italiana, com exceção das entrevistadas Marieta e Eulinda, as quais, con-
tudo, residiram durante a maior parte de suas vidas na região de imigração
italiana e casaram com pessoas dessa origem. Tendo em conta a repetição
de determinados tópicos em mais de uma entrevista, o texto será organi-
zado em cortes temáticos: tentativas de assimilação forçada à religião
majoritária, vivências escolares e infantis, relatos de queima de Bíblias,
Vicente Dalla Chiesa | 41

apedrejamento de templos, atos fúnebres de suicidas, e, por fim, uma pos-


sível diferenciação étnico-social dentro das vivências de exclusão e
preconceito que foram relatadas. Os assuntos muitas vezes se interpene-
tram dentro das entrevistas, sendo transcritos os trechos mais
representativos dentro de cada tópico.
Na década de 1930, o metodismo já tinha uma trajetória de pelo me-
nos meio século na RCI. Tendo iniciado em 1887, em Bento Gonçalves, a
atividade metodista espalhou-se nos anos 1890 para Forqueta Baixa e Al-
fredo Chaves - atual Veranópolis - e nas duas primeiras décadas do século
XX, para Guaporé, Gramado, Caxias e Nova Vicenza - hoje Farroupilha
(DALLA CHIESA, 2015). Considerando a atividade itinerante dos pastores,
houve presença metodista na maior parte das cidades da área mais antiga
de imigração italiana. A partir de 1947, por decisões administrativas da
igreja, a atuação foi muito reduzida. Restaram comunidades somente em
Bento Gonçalves, Caxias, Garibaldi e Gramado, sendo toda a região aten-
dida por somente um pastor, que, em regra, tinha sua sede em Caxias.
Portanto, boa parte das declarações referem-se a um lapso temporal onde
a presença metodista sofreu uma retração.
Para melhor compreensão do conteúdo das entrevistas, é útil apre-
sentar alguns dados biográficos a respeito dos entrevistados. Acyr Girondi,
nascido em Garibaldi em 16/11/1931, neto do italiano Cesare Girondi, fun-
dador da comunidade metodista daquela cidade, foi membro regular da
Igreja Metodista até seu casamento. Antônio Bartholomeu Beux, neto de
Bartolomeo Beux e Antonio Premaor, imigrantes italianos pioneiros do
metodismo no Rio Grande do Sul, nasceu em 10/02/1921 na Forqueta
Baixa, interior de Caxias do Sul, e seus pais foram para o núcleo urbano
daquele município em fins da década de 1920. Etelvino Armando Beux,
irmão de Antônio, nascido em 10/08/1915 na Forqueta Baixa, tornou-se
pastor da Igreja Metodista, e casou em 1942 com Eunice, nascida em
06/11/1922. Eulinda Corrêa De Nicol nasceu em Taquara em 1927, e foi
residir em Caxias em 1931. Evaldo Beux, filho de Antônio Bartholomeu
Beux, nasceu em Caxias do Sul em 23/01/1955. Marieta Silva Cislaghi,
42 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

nascida em Quaraí em 29/12/1919, mudou-se para Bento Gonçalves, já ca-


sada, em 1944. Nilza Covolo Kratz, nascida em Garibaldi em 11/02/1923,
neta do imigrante italiano Giovanni Battista Covolo, foi membro das co-
munidades metodistas de Garibaldi e de Bento Gonçalves, para onde se
mudou em 1948. Wanda Baccin Reschke, nascida em Bento Gonçalves em
15/04/1929, neta de Dionisio Baccin, fundador da comunidade metodista
daquela cidade, frequentou a igreja local até 1941, quando sua família se
mudou para a cidade de Passo Fundo.

A pressão do meio circundante

Os freis capuchinhos de Sabóia, que iniciaram trabalho missionário


na zona colonial italiana em 1896, foram uma das principais forças da Res-
tauração Católica no interior gaúcho (RAMBO, 1998). Em obra que trata
da sua presença entre os italianos, lê-se o seguinte trecho:

Quando a persuasão não era suficiente, os missionários não hesitavam em uti-


lizar a força para barrar a presença de igrejas concorrentes. [...] A simples
presença de fiéis de outras igrejas, mesmo que sem nenhum propósito ou cri-
ação de uma comunidade, era vista como uma ameaça e repelida. Em
Vespasiano Corrêa, no ano de 1901, o pároco Teodósio Sanson impediu que
um colono vendesse seu lote a um protestante. Em Garibaldi, em dezembro de
1902, um médico protestante foi impedido de ali se instalar. A conversão dos
poucos protestantes presentes na RCI era um objetivo perseguido com obsti-
nação. (ZUGNO, 2017, p. 141).

Não se trata de um relato de perseguições produzido por uma fonte


metodista, o que reforça sua verossimilhança. Ainda que se possa imagi-
nar que a força da pressão conversionista possa ter variado de acordo com
as condições e os agentes locais, é previsível que algum grau dela tenha
sido percebido por todos os metodistas residentes na região colonial itali-
ana. O depoente Acyr Girondi mencionou as diferenças familiares e as
dificuldades para os casamentos entre pessoas de diferentes confissões:
Vicente Dalla Chiesa | 43

Bom, a minha mãe era da família Bellini, da fábrica de sinos, tu sabe, que exis-
tiu aqui em Garibaldi, né? O meu avô, Elio Bellini, não se dava bem com meu
pai, porque ele não era católico. Chamava os protestantes de ‘porta stanghe’
[risos]. Uma das minhas tias era bem beata, “bigotta”, se dizia. Meus pais ca-
saram na sacristia2, o frei capuchinho não queria fazer o casamento, cedeu
porque o sacristão insistiu, ele também era porteiro da prefeitura, e se dava
com o meu pai. [...]
Olha, pra mim era normal, né… A gente podia… tinha a liberdade de escolher
que igreja queria ir, os pais nunca impuseram nada, não. [...]
É, quando eu fui a namorar a mãe dela, e queria casar [se dirige à filha, pre-
sente à entrevista], o padre me disse que eu tinha que ser batizado católico, e
tal, porque senão não podia casar. Então eu disse: bom, não seja por isso [ri-
sos]. E aí fiz lá, aquela.., aquilo lá, e nós casamos. (GIRONDI, 2015)

É curiosa a expressão dialetal utilizada pelo avô do entrevistado e por


ele reproduzida. O substantivo “stanga”, plural “stanghe”, significa “ripa”,
“sarrafo” ou “vara” e o verbo “portar” tem o sentido de “carregar” ou “le-
var” (STAWINSKI, 1987). As acepções citadas correspondem àquelas que
o autor, também falante do dialeto, tem conhecimento. “Porta stanghe”,
portanto, seriam aqueles que carregam algo sustentado por um cabo, ou
uma vara. Num primeiro momento, pode parecer que essa designação se-
ria mais adequada ao católico, que leva, em procissões, as cruzes,
bandeiras e quadros com as imagens sacras. No entanto, parece que aqui
a ideia de um sarrafo - stanga - é alusiva à vedação do uso de imagens no
protestantismo: aqueles que não têm um estandarte ou símbolo para co-
locar no alto, levariam somente cabos ou varas vazios.
Se os pais de Acyr puderam ter uma cerimônia de matrimônio religi-
osa, ainda que com relutância por parte do sacerdote católico, o mesmo
não ocorreu quando do casamento dos pais de Wanda Baccin Reschke. A
entrevistada iniciou falando das origens familiares:

2
A respeito deste tópico, o autor tem informações semelhantes referentes ao matrimônio religioso de seus sogros,
ele metodista e ela católica, de origem italiana, celebrado em dezembro de 1963. O pároco católico não aceitou realizar
o casamento no altar principal do templo, afirmando que, por ser o noivo evangélico, a cerimônia somente seria
possível num altar lateral, o que fez a noiva desistir da celebração religiosa no recinto da igreja. A questão foi resolvida
através de contatos com outro padre, amigo da família, que oficiou a cerimônia católica na casa dos pais da noiva.
No mesmo dia, foi realizado o casamento religioso no rito metodista, no templo de Caxias do Sul, sem empecilhos.
44 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Sim, a família paterna era metodista, a da minha mãe era católica. [...] Família
Enriconi. Minha mãe se chamava Arlinda Enriconi Baccin. Os meus avós eram
Antônio Enriconi e Itália Salton. [...] E os paternos eram Dionísio Baccin e
Maria Caimi, ela mesma dizia que o nome correto dela era Marieta. [...] Ela
mesma dizia, mi son milanesa. [...] Ela era católica, mas passou para a Igreja
Metodista quando casou com o meu avô. [...]
Deve ter sido difícil, imagina, naquela época... Quando os meus pais casaram,
a minha avó Itália não aceitou de jeito nenhum. Eles casaram só no civil, e ela
nem foi no casamento! Ela dizia que, além de ele não ser de Deus, era um
aleijado. Isso porque ele nasceu com um defeito na perna direita, ela ficava
sempre meio cruzada, em cima da outra, ele só conseguia se locomover de
muletas. Quando já era bem crescido, o Dr. Giorgi… sabe, o Dr. Beniamino
Giorgi? Operou ele, e ficou bom. [...]
Então, minha avó não aceitou o casamento. Mas, no final, ela morreu na casa
desse genro que ela não queria aceitar. E sempre dizia que nunca imaginava
que ele fosse um homem tão bom. [...]
Sim, fomos batizados na Igreja Metodista. Mas, anos depois, descobri que tí-
nhamos sido batizados também na Igreja Católica, sem o meu pai saber. Minha
avó falou com minha mãe, e ela nos levou lá e fomos batizados. [...] Mas ele [o
pai] só se batizou católico depois, quando casou com a Lélia, de Garibaldi. Tu
sabe, o meu pai casou três vezes [...] Depois ele casou com a minha mãe, Ar-
linda Enriconi, só no civil, porque eram de religiões diferentes. Depois que ela
faleceu, ele casou com a Lélia, como é o sobrenome dela... É uma família co-
nhecida de Garibaldi... Aí ele se batizou católico para casar com ela.
(RESCHKE, 2015)

Aqui, o preconceito assume múltiplas formas: no juízo da avó, o pai


da entrevistada estava fora dos círculos da normalidade, pela confissão re-
ligiosa e pela limitação física, que se aglutinam num só bloco. No entanto,
a pressão para adesão ao credo majoritário se dava de várias maneiras,
além dos ritos de passagem do casamento. Se havia esforço para atrair os
metodistas ao catolicismo, também havia sanções para os que fizessem o
caminho contrário. Nilza Covolo Kratz, ao rememorar fatos ocorridos com
o bisavô Domenico Covolo, que o levaram a se tornar membro da Igreja
Metodista, relatou:
Vicente Dalla Chiesa | 45

O padre, um dia, veio visitá-lo. Meu bisavô estava sentado de fora, na área,
lendo a Bíblia, e a bisavó estava preparando o pão e… o padre tirou o livro da
mão dele e jogou no forno. Meu bisavô queimou todo o braço, mas ele foi lá
tirar. E perdeu o emprego. Não deram mais emprego pra ele. Ele tinha que se
virar. Eles anunciavam pra todo mundo que não desse emprego para os me-
todistas, os protestantes. Como aconteceu lá em Veranópolis: os avós da Maria
do Rosário, a deputada federal, também. Ele era sapateiro, mas como era me-
todista3, não podia arrumar os sapatos dos católicos. A senhora pode ver
quanta ignorância havia naquela época. [...] A família começou a ter dificulda-
des financeiras e então, para poder sustentar a família, através de seu trabalho
como sapateiro, ele acabou se tornando católico. Deixou de ser metodista para
poder ter trabalho. (KRATZ, 2006)

Ao se rememorar o fato dramático ocorrido com o antepassado, e as


dificuldades postas para o exercício de seu trabalho, existe uma memória
não vivida pessoalmente, mas repassada por gerações:

São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no
imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impos-
sível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses
acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se
situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeita-
mente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização
histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determi-
nado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada
(POLLAK, 1992, p. 2)

A mesma história relatada por Nilza, com algumas variações, consta


em um artigo publicado no jornal metodista “O Expositor Cristão” em
1952, escrito pelas tias de Nilza, filhas de sua tia-avó Maria Teresa, por
ocasião do falecimento dessa (DADOS, 1952). Nesse relato, não é a avó que
assa o pão, é o avô que utiliza o forno para assar tijolos; de qualquer forma,
o fato permaneceu na memória familiar. No mesmo artigo, também há
interessante descrição de como a família se dividia em termos confessio-
nais: o bisavô Domenico se tornou metodista no Brasil, juntamente com

3
A depoente refere-se à família Fiorentin, estabelecida na cidade de Veranópolis.
46 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

dois de seus filhos, Maria Teresa e Giovanni Battista, avô paterno de Nilza.
Porém, os outros dois filhos e a esposa de Domenico, Cecília, permanece-
ram católicos.
Nos relatos, fica evidente também o rigor dos freis capuchinhos, que
estavam presentes em Garibaldi desde 1896 e assumiram plenamente a
paróquia católica local em 1927 (ZUGNO, 2017). Acyr, residente na locali-
dade, relatou a exigência de sua conversão para casar, e os empecilhos
inicialmente postos para o casamento de seus pais. Nilza relata a persegui-
ção que seu bisavô sofreu no lugar, inclusive com dificuldades para obter
trabalho. E Wanda refere que seu pai somente se converteu ao catolicismo
ao casar com uma senhora daquela cidade.

Vivências escolares e infantis

O papel da escola como lugar reprodutor de conceitos, onde reverbe-


ram as questões tratadas no ambiente social, é bem conhecido, e vem
sendo estudado inclusive no âmbito das comunidades de origem italiana
no Brasil (LUCHESE, 2018; MASCHIO, 2018). Três dos entrevistados, to-
dos residentes em Caxias do Sul, relatam que foi no ambiente escolar, ou
no relacionamento com colegas de escola, que as situações de preconceito
religioso se manifestaram, e onde as diferenças confessionais em relação
à maioria católica foram mais evidenciadas. Eulinda De Nicol falou sobre
a relação com suas colegas católicas e teceu considerações interessantes
sobre alteridade:

Como eu, na minha infância, tinha as minhas inimigas que, pessoas que não
brincavam comigo porque eu era protestante, toda igreja tinha sempre os
adultos que conseguiam pôs na cabeça dos adolescentes…[...] Diziam que era
o diabo, pronto! Era o diabo, não vamos dizer que era protestante porque era
o contrário, era o diabo. Então, na mesma maneira, eu, como tinha medo do
diabo, eu sei que adolescente tinha medo do diabo, então tinha que apedrejar
o diabo. E apedrejando uma igreja, era apedrejar o diabo. E eu acho que nós,
que dentro de nós, se nós pudéssemos hoje apedrejar o diabo, que ainda é uma
tentação na nossa vida, nós apedrejaríamos. Mas agora contra quem? Nós
Vicente Dalla Chiesa | 47

mudamos, não temos mais o diabo para apedrejar, então passou. Mas nós não
mudamos ainda nossos conceitos [inaudível], então ainda existe o diabo, ainda
existe, apenas o jovem especificava: ‘O diabo é lá, eu vou lá, então vou lá e eu
apedrejo’. (DE NICOL, 1986)

A questão do apedrejamento de templos será tratada adiante. Aqui,


ressalto a sagacidade das observações da depoente sobre como a hostili-
dade é alimentada pela estigmatização: o protestante é o diabo, então não
só pode como deve ser apedrejado e afastado. A entrevistada vai além, e se
dá conta desse processo mental e comportamental, extremamente hu-
mano, afirmando que ela mesma fica tentada a apedrejar ‘o diabo’, em que
pese a mudança de conceitos ocorrida ao longo do tempo.
Antônio Bartholomeu Beux, referindo-se aos anos 1930, descreveu
sua infância em Caxias, recém chegado da Forqueta Baixa, e falou sobre as
diferentes escolas que existiam na cidade:

Em Caxias, nós sofremos. Nos primeiros anos, sofremos bastante, quero dizer,
principalmente as crianças, os pequenos…[...] Os estudantes (inaudível) iam
estudar. Meus irmãos começaram a trabalhar antes do que eu, lógico. Eu e
minha irmã, a Idalina, nós dois menores, nós ia na Escola Elementar, ali no
Colégio das Irmãs ali. Ali sofremos muita… por parte dos alunos, né? E tinha…
[...] Aí não teve tanta pressão, mas no Carmo, sim. (BEUX, 1983)

Interrogado se as escolas de confissão católica aceitavam alunos me-


todistas, Antônio Beux foi muito enfático ao dizer que não havia essa
possibilidade, naquele tempo. O entrevistado menciona também que prin-
cipalmente as crianças sofreram “nos primeiros anos em Caxias”. Isso
pode ser um indicativo de que a identidade metodista não fosse algo tão
distintivo no lugar de onde ele vinha. A Forqueta Baixa, mesmo sendo uma
localidade interiorana, tinha uma comunidade metodista desde 1892, o
que não apenas trazia visibilidade ao grupo, como também permitia o es-
tabelecimento de múltiplas relações entre as pessoas, mesmo
considerando as diferenças confessionais (DALLA CHIESA, 2017). Parado-
xalmente, isso pode ter tornado o ambiente local mais distendido do que
na sede municipal, muito mais populosa.
48 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

O depoente afirma que, nos anos 1930, evangélicos não eram aceitos
nas escolas católicas de Caxias. Cerca de trinta anos depois, em 1960, seu
filho Evaldo relata ter ocorrido uma distensão, ainda que relativa. Seus
pais o matricularam numa escola católica, onde, pela primeira vez, ele pre-
senciou os ritos religiosos dessa confissão cristã, não sem incidentes:

A minha infância foi na Rua Flores da Cunha, centro de Caxias [do Sul], pró-
ximo do Bairro Pio X, próximo do Colégio Murialdo, que na época era o Abrigo
de Menores São José, também… bem próximo da minha casa tinha o Colégio
Madre Felicidade, que há muitos anos deixou de existir. E a minha infância foi
passada naquela região ali, entre a Rua Visconde de Pelotas e a Rua Garibaldi.
Estudei no Abrigo de Menores como externo, porque o Abrigo de Menores era
um internato e num determinado período eles abriram o externato para es-
tudo também com a finalidade da sustentabilidade, de ganhar um dinheirinho,
então as famílias, vamos dizer assim, da classe média da redondeza, colocaram
os filhos a estudar ali. Uma coisa que me marcou bastante, né, por ser um
colégio de padres, que eu e um vizinho, um colega, éramos os únicos dois não
católicos do colégio, e havia um pouco de discriminação por parte dos padres
em relação à religião. Na época, em comecei a estudar em 1960, e naquele
tempo tinha uma certa perseguição…[...]
Não, mais por parte dos padres, ah, pela crença que a gente tinha, algumas
diferenças em relação à Igreja Católica, ah, eu fui criado na religião metodista,
ou os protestantes, e isso sempre criava uma certa interferência, vamos dizer
assim, no relacionamento. Uma coisa também, que me marcou nessa época,
foi a primeira missa que eu assisti no colégio, obrigado a assistir à missa,
nunca tinha assistido uma missa antes, eu tinha seis anos de idade, e quando
tocou a campainha na hora da consagração, tocou a campainha, todo mundo
abaixava a cabeça e eu fui espiar o que estava acontecendo e levei uma reguada
do padre, do padre prefeito, que a gente chamava, por eu ter levantado a ca-
beça, que era proibido olhar a consagração da hóstia. Eu não sabia daquilo,
não sabia o que era, levei a reguada, fiquei de castigo, aí o meu pai teve que ir
lá conversar com os padres, deu um show de moral nos padres e tal e tudo
bem [risos]. Aí, eu e esse colega, que também era metodista, tínhamos autori-
zação de escolher se queríamos ou não assistir à missa. A missa era em latim,
cantada, era muito bonita a cantoria assim, né? A gente não entendia, mas era
em latim cantado e de costas pro… [...] O padre ficava de frente pro altar e de
costas pro público, pras pessoas. Então a gente não via exatamente o que
Vicente Dalla Chiesa | 49

estava acontecendo. [...] Depois que inverteram, né? Começaram a ficar de


frente para o público e a dizer… [...] E a rezar em português. [...]
Não, eu acho que em termos de perseguição assim, vamos dizer mais, mais
declaradamente, né, não houve. Tinha algumas reservas, né, tinha gente que,
sabe, ficava com um pé atrás dos filhos brincarem com quem não era católico,
de achar que a gente estava condenado ao fogo do inferno porque a gente não
era católico, a gente não acreditava em santos, então era essa questão… (BEUX,
2010)

Ainda que “os protestantes” fossem uma minoria, e que o colégio pos-
suísse regras, isso não acarretava necessariamente uma conduta passiva
ou submissa: o pai compareceu à escola para reclamar da punição aplicada
ao filho e “deu um show de moral”, o que levou a uma modificação da
regra de frequência obrigatória à missa em relação aos dois únicos alunos
não católicos do estabelecimento. Chama atenção também a surpresa do
menino evangélico em relação a aspectos do ritual católico pré-conciliar,
em especial o uso do latim e a celebração da missa de costas para a assis-
tência. Esses pontos eram aspectos enfatizados pelos missionários
protestantes na América Latina como prova de sua superioridade em rela-
ção ao culto católico que predominava na região. Em jornal metodista
publicado no ano de 1908, o pastor Mateus Donati relata ao redator uma
visita feita à cidade de Caxias, e a surpresa provocada nas pessoas pelo fato
de as palavras do rito serem proferidas em língua portuguesa:
Prezado Irmão na Fé:

Graças a Deus, ontem de noite realizamos um culto com numerosa assistência,


na casa do irmão Zanella. Na presença do povo reunido, administrei o sacra-
mento de batismo ao menino Pedro, filho do nosso irmão João Ruaro. Os
Romanistas, que pela primeira vez presenciaram um batizado evangélico, fi-
caram admirados, ouvindo as exortações e orações na língua portuguesa, ao
invés do obscuro latim. (DONATI, 1908, p. 3)

Queima de bíblias

Uma das muitas inovações trazidas pela Reforma Protestante do sé-


culo XVI foi quanto à relação estabelecida entre o crente e os textos
50 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

sagrados. Nega-se que “exista outra autoridade com direito divino, como
o magistério e os concílios” (WESTHELLE, 2017), e afirma-se que a Bíblia
tem primazia absoluta sobre a tradição, no que elas conflitarem. Com base
nisso, Martinho Lutero argumentou e lutou pela liberdade de exame das
escrituras, por cada indivíduo (CARDINI, 2017), como único caminho para
experienciar a fé. A necessidade de acesso à Bíblia é frequentemente invo-
cada, mesmo no senso comum, como incentivo para o desenvolvimento
da imprensa e do sistema escolar dos países europeus onde a Reforma se
enraizou. Tais noções impactaram fortemente a gênese do movimento me-
todista, mesmo que se trate de uma reforma tardia, ocorrida no século
XVIII.
No âmbito católico, a situação é diversa: embora o acesso às Escritu-
ras em si nunca tenha sido formalmente proibido de forma absoluta, vige
o conceito de que a Bíblia deve ser lida com supervisão, com a assistência
do magistério, e a edição deve passar por um processo prévio de checagem
pela autoridade eclesiástica. Representativas desse entendimento são as
seguintes afirmações, retiradas de artigo publicado em um site católico de
cunho conservador:

É uma exigência que a Igreja faz para evitar que aos fiéis sejam entregues
traduções mal feitas, truncadas, falsificadas. As traduções em língua vernácula
devem trazer a aprovação da autoridade eclesiástica e notas explicativas de
pontos de difícil compreensão. Essas notas devem ser tiradas dos Santos Pa-
dres ou de autores reconhecidamente competentes. São absolutamente
proibidas as traduções que não se achem de acordo com esta determinação da
Igreja. Proibidas são as Bíblias dos Metodistas, Evangélicos ou Sociedades bí-
blicas, pelos motivos já explicados. É um livro que traz muitas coisas de difícil
compreensão, coisas que são adulteradas por indoutos e inconstantes, para
ruína de si mesmos”. (II Pet. 3, 16). Todas as heresias tiveram e têm sua ori-
gem na má explicação da Bíblia. Tolice não há, que não encontre argumento
na Bíblia mal explicada. (QUEIMA, 2020)

Ao utilizar a expressão “Bíblias dos Metodistas, Evangélicos ou Soci-


edades Bíblicas”, o autor do texto, que não se identifica, faz referência às
diferentes versões da Escritura. Não apenas os comentários e notas
Vicente Dalla Chiesa | 51

explicativas diferem conforme o editor, mas o próprio conteúdo. Lutero


optou por adotar, em relação ao Antigo Testamento, o cânon da Bíblia He-
braica, que não contém livros e trechos escritos originalmente em língua
grega (OLIVEIRA, 1996). Essas diferenças de composição e edição foram,
historicamente, pontos de confronto entre católicos e protestantes das di-
versas denominações. Além disso, um dos eixos da atividade missionária
do século XIX - demonstrado pela fundação da Sociedade Bíblica Britânica
e Estrangeira, em 1804, e Americana, em 1816 - era a difusão da leitura da
Bíblia, sendo uma sociedade semelhante fundada no Brasil em 1948
(BASTIAN, 1986; REILY, 2003).
Entre as acusações feitas pelos evangélicos aos católicos nos séculos
XIX e XX, é recorrente a queima das escrituras sagradas. O já citado Ma-
teus Donati, que atuou na colônia italiana do Rio Grande do Sul como
pastor metodista de 1892 até sua morte, em 1919, fez publicar na Itália, em
1906, um opúsculo de sua autoria intitulado Crucifige! Discorso sopra la
cremazione delle Bibbie fatta dai nemici di Cristo, que pode ser traduzido
como ‘Crucifica-o! Discurso sobre a queima das Bíblias feitas pelos inimi-
gos de Cristo’ (DONATI, 1906, s.p.), onde a mesma temática é abordada.
Ainda que esse texto não faça menção específica à realidade local, é rele-
vante o autor ter escolhido esse tema para um ensaio quando atendia as
colônias italianas, a cujos membros esses opúsculos eram destinados.
Essa mesma temática foi abordada por duas das pessoas entrevista-
das. Nilza Covolo Kratz rememora um fato ocorrido quando já residia em
Bento Gonçalves, no Bairro São Roque:

A perseguição maior aqui, foi por causa da Bíblia. Aqui, naquela época, era
proibido ler a Bíblia. Mas nós, aqui na nossa casa, ninguém podia nos proibir,
porque ainda tem um quadrinho ali na parede que diz: “Em minha casa servi-
remos o Senhor”. Então, quer dizer que ninguém podia proibir nada em nossa
casa. Mas sempre a gente procurava ensinar aos outros. Numa ocasião acon-
teceu que um senhor, morador desta rua, ficou surpreso ao ver o padre
queimando uma porção de coisas. Botava, botava naquela fogueira, e depois
esquecia lá. Ele ficou curioso, mas passou de largo. Ele viu quem estava quei-
mando. Na volta, ele tinha ido visitar a filha, e disse: Eu quero saber o que
52 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

tinha naquele monte. Aí ele pegou um pauzinho que achou por ali e foi tirando
as cinzas. No meio dos escombros, ele achou esse pedaço de Bíblia. Ele ficou
muito triste vendo o padre queimando o livro sagrado, o livro que tem a pala-
vra de Deus, e disse: isso não pode acontecer. Ficou muito triste.
Imediatamente ele veio aqui na minha casa e me entregou e me disse: eu sou
velho e doente. A senhora guarde esse livro. Guarde bem, que um dia, todos
vão ler este livro. E, de fato, hoje a Igreja Católica também tem sempre a Bíblia.
Então, eu fiquei feliz com isso porque eu guardei, sempre com segredo e tudo.
Mas pensei, se um dia o padre vem me falar alguma coisa, eu sei o que res-
ponder. Mas ele não falou nada ainda, até agora [risos]. (KRATZ, 2006)

A filha da depoente, Vânia, conserva em seu poder o volume parcial-


mente queimado, o qual é muito semelhante a outro que pertenceu à
entrevistada Nilza, editado pelos Gideões Missionários, uma entidade que
pode ser considerada sucessora das Sociedades Bíblicas Britânica e Ame-
ricana. Declarações semelhantes foram prestadas por Eulinda, residente
em Caxias do Sul, a qual também afirma que os católicos não estariam
autorizados a usar a Bíblia:

Então, a partir dali, havia o conceito católico que não se podia usar Bíblia.
Existia fortemente, Tânia, a Bíblia, eu vi sendo queimada em São Pelegrino,
Bíblias aos montes. Agora eu, na época, não posso discernir assim, foi sicrano,
foi beltrano…[...] Não posso, foi sicrano, foi beltrano, como criança não posso
dizer. Mas eu vi! Então, a igreja, dizia: ‘Queimaram a Bíblia”! Então pra mim
a Bíblia, foi sempre uma palavra sagrada, que de maneira nenhuma ela podia
ser queimada. Então, eu corri lá, como criança, para ver a terrível coisa que
tinham feito: queimado Bíblias. Então ia tudo pro inferno, as coisas mais ter-
ríveis de todas, que tu vê Tânia, até agora em filmes, em coisas da história de
sessenta anos passados, era um inferno. (DE NICOL, 1986)

Fica evidenciada aqui a importância da leitura bíblica na tradição


evangélica: a proibição da livre interpretação das Escrituras, ou o acesso a
uma versão não autorizada, na memória das entrevistadas, é equivalente
a uma proibição total de utilização dos textos sagrados. Além disso, even-
tual conhecimento das diferenças existentes entre as versões da Bíblia não
surge nas entrevistas. Isso parece ficar ofuscado pela visão chocante da
Vicente Dalla Chiesa | 53

palavra divina, fonte única da fé, sendo deliberadamente consumida pelas


chamas.

Apedrejamento de templos

Quando da fundação da primeira comunidade metodista na RCI, em


Bento Gonçalves, no ano de 1889, a edificação de templos não católicos
com aspecto exterior de igrejas não era permitida, por expressa disposição
do art. 5º da Constituição de 1824. Com o advento do regime republicano,
tal dispositivo foi revogado, porém a aceitação da presença física de tem-
plos evangélicos percorreu um caminho mais tortuoso. A prática de
vandalismo em relação a eles tem registros na historiografia (VIEIRA,
1980), ainda que muito esporádicos. Na RCI, há um precedente, em relação
ao templo de Caxias, citado nos diários de Elizabeth Price, esposa do pastor
John Watkin Price, que atendeu aquela cidade de 1922 a 1926. Nos regis-
tros referentes ao ano de 1922, juntamente com a menção às obras de
construção do templo, ela refere que o pastor proibira qualquer pessoa da
família de se aproximar do local, porque alguém ameaçara explodi-lo, o
que não ocorreu. Curiosamente, na mesma página há menção a um co-
lapso nervoso sofrido pelo mesmo pastor em 1925, que o levou a um
internamento hospitalar nos Estados Unidos. Naquele texto, não é estabe-
lecida relação entre os dois fatos (GORSUCH, 1984).
Entre os depoimentos colhidos, Marieta Silva Cislaghi informou ao
autor ter vivenciado pessoalmente uma situação de ataque à igreja, que
também a vitimou:

Sim, eu estava chegando na igreja com meus filhos, seriam umas sete horas
da noite. Senti as pedras voando e batendo na porta, na parede. Estava com os
filhos... aí eu disse: entrem, entrem, meus filhinhos! Não sei quem foi, até hoje.
Não foi fácil, a gente sofria muito naquela época. Os padres capuchinhos foram
mais de uma vez na minha casa saber por que eu era protestante. Na época
em que eu morava no Borgo, o Redovino Rizzardo brigou com o meu filho e
me chamou de protestante do diabo. [...]
54 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

O próprio Padre Manica dizia que o protestante tinha o diabo atrás da porta
da igreja. Ele cuidava a amizade entre o meu filho e uma colega de escola, a
Luiza Artico. Uma vez [rindo] eu estava no Hospital Tacchini, internada, e ele
entrou para dar a comunhão. Quando viu quem era, parou na metade e voltou
[risos]. (CISLAGHI, 1999)

A aproximação entre o protestante e o diabo já foi referida em outros


depoimentos, entre os quais o de Eulinda Corrêa De Nicol, que volta a falar
de vandalismo em outro trecho da entrevista:

Não, mas… a nossa igreja sempre foi apedrejada. A nossa igreja sempre foi
apedrejada! Sempre, sempre, sempre. [...] Sempre foi… a sequência, mas
nunca um grupo disse assim, foi aquele que apedrejou, foi aquele outro, aquele
outro. [...]
Sempre (inaudível), porque a Avenida Júlio… vamos supor, foi em [19]37 ela
foi, mais ou menos em [19]37 ou [19]40, a Avenida Júlio ficava mais alta. [...]
A nossa igreja ficava frente à rua, ela não ficava com aquela escadaria. Ela
ficava na mesma altura do Hospital [Nossa Senhora do] Pompéia, ela ficava
porque… E ali houve, vamos supor, uma terraplanagem [rebaixamento]. Mas
antes dessa terraplanagem, então a nossa igreja ficava [ao nível da] na rua. E
nossa igreja diversas vezes, mas não definiram grupos de apedrejamentos,
sem saber o porquê. E sempre eram adolescentes que apedrejavam, mandados
por alguém. [...] E grupos então que iam lá, porque a gente nunca dizia que
era igreja, que essa, essa, ou aquele padre, ou esse ou aquele preconceito…[...]
É a mesma coisa que, na minha infância, meus, minhas amiguinhas diziam
que eu era o diabo, que eu morava numa casa assombrada e que, tanto que eu
era uma sombra também, porque lá quando nós fomos morar não tinha as-
sombração nenhuma, por sinal moramos numa casa gratuitamente, senão a
casa ficava fechada era assombrada. E na época até tinha isso. E era a mesma
coisa. Mas diversas vezes eu presenciei, como presenciei Bíblias queimadas na
Igreja São Pelegrino, eu presenciei minha igreja sendo apedrejada e eu muito
de boca aberta olhando, por que será que tão fazendo isso? E daí, como viam
a gente na frente olhando assim, diziam: Aí, o diabo, o diabo, o diabo! Aí a
gente levava as pedradas junto, porque eles sempre procuravam realmente
quando tinha pessoas unidas, porque não é a… o… Prédio em si que era o di-
abo. O diabo eram as pessoas. [...]
Então, não cheguei nunca a levar pedrada, mas presenciei. Meninos da minha
idade apedrejando a minha igreja, e queimando Bíblias, porque toda vez que
eram queimando Bíblias, porque toda vez que eram queimados, eram meninos
Vicente Dalla Chiesa | 55

adolescentes, não eram pessoas adultas! Mas era sempre o mesmo preconceito
que a Bíblia era o diabo. Então, essa é uma época, vamos supor, gostosa de ser
revivida e, se fosse realmente, que nós pudéssemos queimar o diabo ou ape-
drejar o diabo, seria muito bom [inaudível], mas nós metodistas éramos o
símbolo do diabo. (DE NICOL, 1986)

Conforme a depoente, o mal supremo, o diabo, estava personificado


nas pessoas dos metodistas e no seu templo. Mas é interessante notar que
o relato, em certo momento, assume contornos difusos. Ao contrário de
Marieta, que relatou ter sido vitimada pessoalmente pelo apedrejamento -
mas não identificou os autores por já estar escuro - Eulinda diz não poder
dizer quem foram os agentes, embora logo depois reafirme, de forma en-
fática, ter presenciado a igreja sendo atacada. É possível que essa relativa
incerteza ocorra pela pouca idade da depoente à época dos fatos. Mas tam-
bém cabe aqui lembrar a força mnemônica de fatos incorporados ao
imaginário evangélico:

Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou co-


letiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em
segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de "vividos por tabela",
ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa
se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre parti-
cipou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das
contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se for-
mos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos
os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de
um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou
da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação
com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase
que herdada (POLLAK, 1992, p. 2).

Nos meios evangélicos, tais narrativas sobre os ataques a templos fo-


ram razoavelmente conhecidas e divulgadas dentro do grupo, tanto que
apresentadas inclusive na ficção. O romancista gaúcho Josué Guimarães,
nascido em 1921, filho de Georgina Marques e José Guimarães, telegrafista
e pastor leigo da Igreja Episcopal (GRECCO, 1988), criou na sua obra Os
56 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Tambores Silenciosos um núcleo familiar semelhante ao seu, composto


pelo telegrafista e pastor leigo episcopal Ezequiel Azevedo e sua esposa,
Georgeta. Em um trecho do livro, ambientado na cidade fictícia de Lagoa
Branca, o pastor acusa o sacerdote católico de promover o apedrejamento
de sua capela:

[...] então ele quer que eu vá desempenhar o papel de guarda-noturno, ficar


na espreita a noite inteira para pegar os moleques que apedrejam a igreja pa-
gos por ele; ele quer que eu prove, pois lá estão os vidros partidos, as marcas
nas paredes e as pedras jogadas e que ficaram no jardim e ainda estão lá; ou
ele não sabe, o padreco ingênuo, que o sacristão cumpre as suas ordens e
manda aqueles menininhos dele praticarem o crime? (GUIMARÃES, 1987, p.
36)

É possível que o autor do romance tenha ouvido ou, talvez, presenci-


ado fatos parecidos, inclusive pelas semelhanças das personagens com sua
família de origem.

Atos fúnebres dos suicidas

Conforme o Código de Direito Canônico de 1917, vigente no lapso


temporal das entrevistas, era negada sepultura eclesiástica aos suicidas
(Cânone 1240, § 1º, n.º 3), bem como missa de corpo presente e quaisquer
ofícios fúnebres públicos, conforme o Cânone 1241 (CÓDIGO, 1917). Dessa
forma, os sacerdotes católicos não estavam autorizados a celebrar funerais
de pessoas em relação às quais não houvesse dúvida que haviam tirado a
própria vida. O dispositivo fala em atos fúnebres públicos, de forma que
isso deve ter possibilitado aos sacerdotes, em tese, providenciar algum tipo
de amparo religioso aos familiares do falecido privadamente. Contudo, não
há dúvida que os velórios não tinham presença de padres, nem poderiam
ser celebrados em igrejas católicas.
Não obstante sua aderência ao discurso cristão tradicional da valori-
zação da vida como uma dádiva de Deus, sendo obrigação do crente zelar
por ela, a Igreja Metodista não possuía uma vedação semelhante na época
Vicente Dalla Chiesa | 57

dos relatos. Os Cânones da Igreja Metodista do Brasil de 1934, os primeiros


a serem elaborados após a autonomia formal obtida frente às juntas de
missão norte-americanas, e que reproduziam essencialmente as normati-
vas vigentes naquele país, nada dizem especificamente a respeito. Isso fez
com que também na região colonial italiana ocorresse um fato verificado
em outros locais do país, a realização de exéquias fúnebres de católicos em
igrejas evangélicas ou o sepultamento em cemitérios evangélicos (VIEIRA,
1980; BLUME, 2015).
Os relatos que se tem sobre essa situação são todos relativos a Bento
Gonçalves. Eunice Beux rememorou uma situação ocorrida na década de
1950, quando seu esposo atendia essa comunidade, mas não estava na ci-
dade, e ela teve que atender a família de uma pessoa que havia tirado a
vida, assumindo o papel que seria desempenhado pelo pastor:

Ele [Armando], tinha costume de sair sem me dizer onde ia, e certa vez chegou
lá na igreja a família de uma mulher falecida, de quem o padre não queria
fazer o enterro… e eu, como é que ia deixar… Então fui lá e expliquei que o
pastor não estava, fiz um momento devocional, falei e consolei as pessoas.
(BEUX, 1997)

Mesmo se tratando de uma família católica, diante da recusa da rea-


lização de atos fúnebres, os parentes da falecida procuraram a igreja
metodista. Mesmo que se considere a falta de outra opção - era a única
outra confissão cristã estabelecida na localidade - não é desarrazoado ima-
ginar que essa procura também ocorresse por ser sabido que lá não
haveria rejeição a uma pessoa que havia tirado a própria vida.
Sem precisar datas precisas ou uma situação específica, os mesmos
fatos foram trazidos na entrevista feita pelo autor com Marieta Cislaghi,
ao relatar a diferença entre a postura dos padres católicos antes e depois
do Concílio Vaticano II:

Hoje é diferente, até os padres estão diferentes, né. Eu lembro que o [padre]
Oscar Bertholdo fez um casamento ecumênico lá na igreja da Goretti. Antes
não era assim. Mesmo as pessoas que tiravam a própria vida eram rejeitadas
58 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

na Igreja Católica. Então, iam fazer o velório lá na nossa igreja. (CISLAGHI,


1999)

A depoente utilizou o plural “as pessoas”, dando a entender que a


situação teria acontecido mais de uma vez. Isso é indicativo de que tais
fatos não eram totalmente inusitados na época a que as entrevistas se re-
ferem, meados do século XX. Aparentemente, havia precedentes. O autor
localizou uma reportagem do ano de 1914, publicada em um jornal em lín-
gua italiana editado em Caxias, dando conta de uma ocorrência
semelhante em Bento Gonçalves. Segue sua tradução, feita pelo autor:

Virginia Bertuol, jovenzinha de 17 anos, recatada e boa, amada por todos pelas
suas virtudes, se enforcou na noite de 31 de outubro. Parece que a jovem tirou
a própria vida, que lhe deveria dar alegrias e carinhos, porque estava obcecada
pelo pensamento de ter sido responsável pela perda de uma irmãzinha, no ano
passado, em decorrência de severas queimaduras. A triste decisão e a sua
causa foram confirmadas por um bilhete encontrado na casa da infeliz suicida.
Aos funerais, que ocorreram no dia 1º de novembro, acorreu todo o povo
bento-gonçalvense, para render à desgraçada jovem seu último tributo de
honra e condolência. No cemitério, e antes que o caixão fosse coberto de terra,
falaram, comovidos, relatando as virtudes da morta, o pastor evangélico, Sr.
Federico Peyrot, e o distinto Sr. Giulio Lorenzoni. A infeliz jovem era filha de
Girolamo Bertuol, proprietário do hotel e restaurante América
(CORRISPONDENZA, 1914).

Frederico Peyrot, nascido em Caxias, filho de um imigrante vindo do


Piemonte, foi o pastor que atendeu a comunidade metodista de Bento Gon-
çalves de 1913 a 1916. A descrição do jornal de que “todo o povo bento-
gonçalvense” prestigiou o funeral parece não ser um mero recurso de lin-
guagem. Prova disso é a presença e a fala de uma destacada liderança local,
Giulio Lorenzoni, que exerceu diversas atividades na comunidade, inclu-
sive como escrivão e notário, e cujo nome foi notabilizado pela publicação
das memórias que escreveu nas primeiras décadas do século XX
(LORENZONI, 1975). A leitura desse volume deixa evidente que ele se fazia
presente em todas as atividades de relevância que aconteciam em Bento
Gonçalves.
Vicente Dalla Chiesa | 59

Diferença confessional e etnia

Há um aspecto interessante presente no relato da depoente Wanda,


a desenvoltura notável com que o pároco católico atua em relação à sua
família. Retoma-se aqui o trecho integral onde a entrevistada fala sobre
seu duplo batismo:

Sim, fomos batizados na Igreja Metodista. Mas, anos depois, descobri que tí-
nhamos sido batizados também na Igreja Católica, sem o meu pai saber. Minha
avó falou com minha mãe, e ela nos levou lá e fomos batizados. Meus padri-
nhos foram a minha avó e o próprio padre, que era o Antônio Zattera. Fiz
também a primeira comunhão. O Zattera procurou minha mãe, disse que es-
tava na hora de fazer. Aí... ela perguntou como ia ser, por causa do meu pai,
ele disse que não me preocupasse, que fosse na igreja num determinado sá-
bado, que eu ia receber a comunhão. E foi assim, ele me deu inclusive o vestido
da cerimônia, foi o único presente que ganhei do meu padrinho! Na verdade,
nem foi o vestido, foi o tecido para o vestido, naquela época se mandava fazer.
Isso foi em 1940. Apesar disso, ele e meu pai eram muito amigos, mesmo de-
pois de o Zattera ter se tornado bispo em Pelotas. Ele sempre tentava
convencer meu pai a voltar para o catolicismo. Mas ele só se batizou católico
depois, quando casou com a Lélia, de Garibaldi. (RESCHKE, 2015)

Mesmo que se considere a conivência da mãe e da avó paterna, e o


fato de se tratar de um grupo familiar de diferentes confissões cristãs, é
surpreendente o fato de a depoente ter sido batizada e feito a primeira
comunhão na Igreja Católica à revelia e sem o conhecimento do pai meto-
dista. Além disso, é muito significativo o verbo utilizado pela entrevistada
ao seu referir à relação entre seu pai e o referido padre4: este insiste para
o genitor da depoente “voltar” ao catolicismo. O pai da depoente, Dionísio
Baccin Filho, nascido em 1902, nunca fora católico. Era filho de um casal
de imigrantes italianos que havia se tornado metodista ainda em fins da

4
A atitude hostil do padre Antônio Zattera em relação aos evangélicos já foi registrada pelo autor em outro trabalho,
onde, entre outros fatos, se relata que ele ameaçava de excomunhão pais católicos que quisessem matricular seus
filhos em uma escola primária metodista (DALLA CHIESA, 2018).
60 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

década de 1880, e batizado todos os seus filhos somente naquela igreja. A


atitude do padre, em insistir em uma volta ao catolicismo, reflete uma vi-
são de quem enxergava a pessoa como afastada temporariamente de um
grupo ao qual era naturalmente pertencente.
A mesma proximidade relativa se encontra no relato do depoente
Acyr, que afirmou poder frequentar ambas as igrejas. Além disso, bastou
um mero ato, um rito sumário, para que o depoente - cujo pai e avô pa-
terno eram metodistas - transpusesse o fosso confessional e pudesse casar
com a moça católica com quem estava comprometido. A celeridade da con-
versão foi tanta, que o próprio entrevistado nem mesmo nomina o ato,
simplesmente dizendo que fez “aquilo lá”. Já a menina Wanda não preci-
sou frequentar aulas ou ser instruída para receber sua primeira
comunhão, como ocorria com outras crianças: tudo ocorreu em dois dias.
Os relatos dos depoentes Wanda Baccin e Acyr Girondi convergem
também em outros pontos, inclusive no que não é dito: ambos são os en-
trevistados que não referem a vivência de preconceito religioso como algo
próximo da sua realidade pessoal imediata. Os dois relatam dificuldades
vividas pela geração anterior, a de seus pais, devido aos casamentos mistos
do ponto de vista confessional, mas não em relação a questões concretas
envolvendo eles mesmos. A única dificuldade relatada por Acyr, a conver-
são exigida para o casamento, é rememorada com humor e risos, e não o
impediu de frequentar a igreja metodista após o matrimônio. Ao mesmo
tempo, é de se observar que esses dois depoentes, entre todos os ouvidos,
são os que pertenciam às famílias mais bem situadas econômica e social-
mente nas cidades onde viviam, descendentes de troncos familiares
estabelecidos nas áreas urbanas de Bento Gonçalves e Garibaldi desde a
primeira metade dos anos 1880, no caso dos Baccin, e desde 1890, no caso
dos Girondi.
Tais fatos permitem que se questione a gradação do preconceito de
acordo com um termômetro étnico e - talvez - social. Essas informações
podem representar um indicativo de que o senso comum percebia os ítalos
como “naturalmente” católicos, e que eventual filiação a outra confissão
Vicente Dalla Chiesa | 61

religiosa seria somente um afastamento temporário. Dentro dessa pers-


pectiva, em que se parte de uma identificação automática entre “católico”
e “italiano”, não seria exigido grande esforço ou formalidade para uma
reaproximação. Dentro dessa linha de pensamento, na mesma obra acima
citada, Josué Guimarães constrói o seguinte diálogo entre o pastor e sua
esposa:

[...] Sentaram-se ao redor da mesa grande da sala de jantar, ele pediu para a
mulher o seu pince nez, abriu a folha pequena de papel, disse que deveria ter
sido impressa na tipografia do Musacchio mesmo, o papel era igual ao dos seus
volantes, a mulher acercou-se dele, alcançou-lhe os óculos, cuidou para que
ele os ajustasse no nariz, disse: para o dono da tipografia, desde que entre
dinheiro, tanto bota na máquina as cartas do diabo quanto as cartas de Nosso
Senhor Jesus Cristo; o pastor pediu à mulher que tivesse um pouco mais de
compreensão, o negócio dele era imprimir, não tinha nada que perguntar pela
matéria que lhe entregavam e nem podia ser condenado por isso, era mesmo
um bom homem, um bom chefe de família e se estava na religião católica era
mais por ser italiano do que mesmo acreditar no que o seu patrício dizia, que
ela devia saber como eram essas coisas, os dois tinham vindo das terras do
Vaticano, eram patrícios do Papa, falavam a mesma língua dele e isso não era
crime, mas eles, os evangélicos, deviam ser antes de mais nada tolerantes.
(GUIMARÃES, 1987, p. 35).

O trecho transcrito faz referência a uma troca de farpas e argumentos


alegadamente teológicos entre o pastor episcopal Ezequiel Azevedo e o pa-
dre católico Inácio Bartelli, através de panfletos impressos na tipografia
local, de propriedade de um italiano. Na argumentação do pastor, sua mu-
lher já deveria saber que qualquer italiano é automaticamente católico, por
vir das “terras do Vaticano” e falar a mesma língua do Papa, independen-
temente de sua convicção íntima. Nesse aspecto, Ezequiel Azevedo e
Antônio Zattera aparentemente estariam de acordo.

Observações finais

O próximo nível concerne ao que fazemos quando acaba a entrevista, porque,


quando a entrevista termina, voltamos para casa, para a universidade, e
62 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

começamos a escrever nossos artigos, nossos livros, ou a fazer nossos vídeos,


nossos documentários, ou algo assim. E, nesse momento, o poder está em nos-
sas mãos. Porque a palavra que recebemos é uma palavra alheia; porém a
palavra que escrevemos, essa é nossa, essa está em nosso nome, aquele que
aparece na capa dos livros que escrevemos (PORTELLI, 2010, p. 6).

As entrevistas citadas abordam múltiplos aspectos das vivências de


uma minoria religiosa em um âmbito regional, sendo destacados os que
foram considerados mais representativos pelo autor. No entanto, alguns
pontos merecem pequenas considerações adicionais.
No discurso dos entrevistados, as situações surgidas na RCI não se
distinguem fundamentalmente daquelas que ocorreram em outros lugares
do Brasil, sobre as quais há comprovação em outras fontes, como o ape-
drejamento dos templos, a queima de Bíblias, e as conversões forçadas.
Ainda que se possa cogitar dessa repetição, em certa medida, como me-
mória de grupo, herdada e cultivada, autorreferenciante, ela também
parece ser um indicativo da uniformidade das formas que tomaram as
fricções inter-religiosas no Brasil do século XX.
Outra circunstância digna de nota é a visão que perpassa algumas das
entrevistas, no sentido de que o protestante seria o outro, um ser “de fora”.
O metodista parece ser o que está além do tabu, do limiar, alguém que
pode morar numa casa com fama de assombrada, onde ninguém quer vi-
ver - como relatou Eulinda - ou que pode receber em seu templo o corpo
de um suicida. Um vez rompida a barreira do desconhecido, não há limi-
tação, até o diabo é um personagem familiar, aparentado ao evangélico.
No entanto, a vivência de minoria na região colonial italiana não re-
presentou somente sofrimento ou agruras. Os depoentes também
manifestaram ser muito ciosos da fé que praticavam, e mesmo orgulhosos
dela, o que é evidenciado pela segurança argumentativa que demonstram.
A convicção pessoal permitiu que Antônio Bartholomeu Beux fosse à escola
católica frequentada por seu filho para protestar sobre uma punição in-
justa, ocasionada pelo desconhecimento do culto católico. Na mesma linha,
Nilza Covolo Kratz afirmou saber exatamente o que dizer ao sacerdote caso
Vicente Dalla Chiesa | 63

ele fosse falar com ela sobre a Bíblia queimada que estava em seu poder, e
que ninguém teria direito de proibir a leitura dos textos sagrados em sua
casa.
Sobre isso, é interessante lembrar como as minorias religiosas histo-
ricamente se estruturaram em torno da ideia de serem portadoras do real
conhecimento e de uma missão divina, como veículo de afirmação e auto-
estima. Essa situação ocorreu também entre os valdenses na Europa
(AUDISIO, 2004), historicamente ligados às origens da Igreja Metodista na
colônia italiana gaúcha. No plano brasileiro, a organização dos evangélicos
em torno de sua condição de minoria titular de direitos também ocorreu
em momentos significativos, como quando da oposição às denominadas
“emendas católicas” à Constituição de 1891, em 1925 (GERTZ, 2002).
Por fim, os depoimentos indicam a maneira como as diferenças con-
fessionais puderam, em alguns casos, ser equacionadas: pelo convívio e
pelo conhecimento mútuo, em detrimento de estereótipos. A sogra de Di-
onísio Baccin Filho, que se recusou a ir ao casamento dele com sua filha,
mudou de opinião, dizendo nunca imaginar que “ele fosse um homem tão
bom”. Fato semelhante ocorreu com as irmãs da moça Nilza Covolo, estu-
dantes em uma escola católica dirigida por freiras:

Tanto a Edy, quanto a Áurea Covolo e a Diva, que foram estudar em escola
aqui, que logo no início, tinha um lugar diferente porque elas não era católicas.
Mas, com o passar do tempo, as pessoas, pelo seu testemunho de vida, come-
çaram a perceber que aquilo que elas aprendiam naquela Igreja não era nada
de demoníaco, nem horroroso. Pelo contrário. Tanto é que todas elas acaba-
ram se tornando professoras, mesmo estudando em colégio de freiras. E foram
pessoas de destaque, na época, indicadas como exemplo de vida. (KRATZ,
2006)

O historiador italiano Franco Cardini, profundo conhecedor do Islã e


das relações entre cristãos e muçulmanos, em seus livros frequentemente
enfatiza que as melhores formas de lidar com a diferença e o preconceito
são o estudo, o conhecimento mútuo e a assunção de que existem outras
realidades:
64 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Arte difícil e dura disciplina, a da compreensão. Essa somente se impõe seria-


mente na medida em que se deixa de partir do pressuposto que verdade, razão
e natureza se baseiam em princípios que parecem verdadeiros, racionais e na-
turais; e se aceita que outras “verdades”, outras “naturezas”, outras “razões”,
se afirmam e vigem em outros lugares, sob outros céus, em culturas diferentes
da nossa (CARDINI, 1994, p. 107).

Tal reflexão, ainda que elaborada pensando-se em outro contexto,


também é válida para as relações entre metodistas e católicos na colônia
italiana do Rio Grande do Sul.

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Entrevistas

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Fries. Caxias do Sul, entrevista realizada em 1983, transcrita por Maria Beatrís Gil
da Silva e editada pelo autor, arquivada no Banco de Memória do Arquivo Histórico
Municipal João Spadari Adami.

BEUX, Etelvino Armando; BEUX, Eunice. [1997]. Entrevistadora: Inés Simeone. Passo
Fundo, entrevista realizada em 03/06/1997, transcrita pela entrevistadora, editada
pelo autor, e publicada na Revista “Contando Nossa História”, n.º 01/1998, editada
pelo Grupo de Pesquisa da História do Metodismo no Rio Grande do Sul.

BEUX, Evaldo. [2010]. Entrevistadoras: Sônia Storchi Fries e Susana Storchi. Caxias do
Sul, entrevista realizada em 22/10/2010, transcrita por Sônia Storchi Fries e editada
pelo autor, arquivada no Banco de Memória do Arquivo Histórico Municipal João
Spadari Adami.
68 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

CISLAGHI, Marieta Silva. [1999]. Entrevistador: Vicente Dalla Chiesa. Bento Gonçalves,
entrevista realizada em 26/11/1999, transcrita e editada pelo autor.

DE NICOL, Eulinda Corrêa. [1986]. Entrevistadora: Tânia Zardo Tonet. Caxias do Sul, en-
trevista realizada em 1986, transcrita por Sônia Storchi Fries e editada pelo autor,
arquivada no Banco de Memória do Arquivo Histórico Municipal João Spadari
Adami.

GIRONDI, Acyr. [2015]. Entrevistador: Vicente Dalla Chiesa. Garibaldi, entrevista realizada
em 23/12/2015, transcrita e editada pelo autor.

KRATZ, Nilza Covolo. [2006]. Entrevistadora: Lourdes Maria Fedrigo Riboldi. Bento Gon-
çalves, entrevista realizada em 27/05/2006, transcrita pela entrevistadora, editada
pelo autor e arquivada no Laboratório de Pesquisa em História Oral do PPGH da
PUCRS.

RESCHKE, Wanda Baccin. [2015]. Entrevistador: Vicente Dalla Chiesa. Porto Alegre, en-
trevista realizada em 12/12/2015, transcrita e editada pelo autor.
3

Indústria têxtil na colônia italiana no Sul do Brasil:


da pesquisa documental à história oral

Vania B.M Herédia

Introdução

O presente estudo descreve de forma sucinta a trajetória da primeira


grande indústria têxtil da Região de Colonização Italiana no Sul do Brasil,
RS, que nasceu como cooperativa têxtil em 1894. Foi fundada por um
grupo de italianos, provindos do Norte da Itália, de uma região que se de-
dicava à produção de lã. Após cem anos, esse estabelecimento industrial
retorna para o controle de operários, descendentes desses emigrantes, que
permaneceram na vila operária e que lutaram para manter o patrimônio
industrial, após ter passado por diversas gestões, distintas entre si e mar-
cadas por conjunturas históricas.
O estudo tem como base teórico-metodológica a História Oral, par-
tindo de premissas apresentadas por Portelli (2016), como fundamentais
na arte da escuta e por Queiroz (1988), nos estudos sobre fontes orais.
Utiliza alguns referenciais teóricos que tratam da memória histórica como
autores da emigração, da industrialização e da história da indústria em
questão. Os entrevistados foram ex-operários e operários que viveram a
experiência da crise pela qual a indústria passou, aproximadamente cem
anos depois de sua criação. Algumas questões permearam este estudo, que
trata da história de uma indústria têxtil que nasce da vontade de operários
italianos, e que é revisitada pela memória de vários outros, com o sentido
70 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

de explicitar o percurso histórico e seus desdobramentos. A luta para que


essa indústria não desaparecesse, devido a conflitos laborais, é semelhante
a fatos históricos que promoveram a saída de operários da Itália na greve
de 1890-1891, na cidade de Schio, na Província de Vicenza.
Por meio das fontes orais, muitos espaços de compreensão foram re-
escritos, e essas narrativas colaboraram para escrever e descrever a
criação da “Cooperativa Têxtil de Galópolis” no RS, no final do século XX.
A história dessa indústria está vinculada aos estudos migratórios, ao
mundo do trabalho, à organização da classe operária, às diversas formas
de gestão industrial e, principalmente, aos estudos de comunidade. O uso
da História Oral foi uma estratégia metodológica escolhida para registrar
a última fase que, aparentemente, pressupunha o fim de uma das mais
antigas indústrias têxteis da Região de Colonização Italiana no Rio Grande
do Sul, localizada em Galópolis, na época chamada Lanifício Sehbe S.A.
O estudo está dividido em três partes: a primeira remonta a história
de onde partiram os operários italianos que vieram ao Brasil, no século
XIX. Os autores que ajudaram a contextualizar a análise crítica, na área de
história econômica são: Giovanni Luigi Fontana, que tem uma série de es-
tudos publicados1 sobre a industrialização têxtil no Norte da Itália e que se
dedicou ao estudo do Lanifício de Alessandro Rossi, denominado “Lane-
rossi”. Algumas de suas obras são resultados de seminários2 dos quais
participaram históricos italianos, que contribuíram para a discussão desse
tema tão importante. Sobre história econômica da indústria no Venêto,
foram usadas as obras de Giorgio Roverato3 que é especialista em história
regional italiana, cujo tema também versa sobre a indústria têxtil. O polo

1
Várias de suas obras tratam da história desse lanifício e das ações de Alessandro Rossi em prol da indústria têxtil
italiana. Sua análise é resultado da riqueza de pesquisa documental aliada a diversas fontes históricas, incluindo
fontes orais. Nos estudos sobre Alessandro Rossi, Fontana traça toda a trajetória da grande indústria têxtil italiana,
nas comunidades que faziam parte do complexo liderado por esse empresário.
2
FONTANA, Giovanni Luigi (org.). Schio e Alessandro Rossi: imprenditorialità, política, cultura e paesaggi sociali del
secondo ottocento. Roma: Edizione Storia e Letteratura, 1985. v.I e II. Um dos eventos citados trata-se de congresso
nacional que ocorreu em Schio, denominado “Schio e Alessandro Rossi”, em 1979, organizado por Giovanni Luigi
Fontana, cuja comissão científica foi de Gabriele de Rosa, Silvio Lanaro e Angelo Ventura. As atas desse congresso
foram publicadas nos dois volumes citados acima.
3
ROVERATO, Giorgio. L’industria nel Veneto: storia econômica di um caso regionale. Padova: Esedra, 1996.
Vania B.M Herédia | 71

de lã, da Província de Vicenza, é um lugar histórico da industrialização


italiana, e os estudos de Roverato contemplam a passagem da fase agrária
para a industrial, pelas evidências de como constrói a narrativa histórica.
Por meio de suas análises, é possível entender as diferenças de um país
que tem, antes da sua industrialização, o processo de protoindustrialização
daqueles que entraram diretamente na indústria, sem ter os quesitos bá-
sicos, dos quais ela necessita para o seu desenvolvimento.
A segunda parte trata da chegada dos italianos no Brasil e a constru-
ção de uma cooperativa que dá início ao lanifício em estudo. Além da
pesquisa documental, uma parte da análise foi construída a partir de rela-
tos orais que colaboraram para entender momentos de rupturas entre as
fases, pelas quais a indústria passou, em toda a sua trajetória. Os autores
utilizados como referência para o estudo da imigração, no Sul do Brasil
foram: Franzina (2006), estudioso da emigração italiana no mundo, Man-
froi (1975), De Boni (1979), Costa (1979), Frosi e Mioranza (1975).
A terceira parte trata da luta dos operários para manterem a coope-
rativa sob seu domínio. A análise foi construída por meio da História Oral;
muitas entrevistas foram realizadas sobre o momento da crise do lanifício,
a ação dos operários, a organização do movimento de greve e a negociação
entre operários, sindicato e proprietários. Como referências metodológi-
cas foram utilizadas as orientações teóricas de Portelli (1997, 2010, 2016),
que colaboraram para nortear os diálogos entre o pesquisador e os entre-
vistados, principalmente nos limites que o método poderia oferecer à
análise; as recomendações de Queiroz (1988) também foram observadas
quanto ao uso do método. As entrevistas foram realizadas em locais esco-
lhidos pelos entrevistados e transcritas pelo pesquisador. As entrevistas
foram realizadas entre outubro de 2016 a agosto de 2018, tendo como cri-
tério para a escolha dos entrevistados a experiência fabril e o aceite de
registrar sua experiência nessa trajetória industrial. Além das entrevistas,
foram usadas fontes complementares que ajudaram a elucidar algumas
narrativas, tais como: atas, correspondências, estatutos, documentos da
fábrica e fotografias.
72 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Uma parte da história

A história da industrialização italiana remete aos estudos da indústria


têxtil no Norte da Itália. Muitos historiadores italianos trataram desse
tema, mostrando a relação entre a passagem do capitalismo agrário para
o capitalismo industrial e como a sociedade italiana enfrentou as mudan-
ças de mercado internacional no século XIX, com a instalação do Reino da
Itália.
Muitas das grandes indústrias haviam nascido antes da Unificação
Italiana. É o caso do Lanifício Rossi, uma das primeiras grandes indústrias
de lã, localizada na Província de Vicenza, cuja fundação ocorreu ainda no
século XVIII, antes da anexação do território do Vêneto ao Reino da Itália.
A história do Lanifício Rossi remete à história da família Rossi que, em
1818, constitui uma sociedade que se denominava Sociedade Rossi & Pa-
sini, uma tecelagem que se solidifica e se mantém no mercado por quase
dois séculos.
No século XVIII, Schio era conhecida como “o coração manufatureiro”
da República Vêneta pelas atividades econômicas desenvolvidas, o que per-
mitiu o crescimento da indústria têxtil, beneficiada pela posição
geográfica, pelos recursos hídricos, pela disponibilidade da matéria-prima
e pelas tradições seculares artesanais. A localidade de Schio era diferente
das demais localidades protoindustriais, porque o trabalho não tinha vín-
culos corporativistas, dado que o empreendedor podia se dedicar às
atividades econômicas de iniciativa privada.
O Lanifício Rossi tornou-se o “maior complexo têxtil da Itália”,
quando o Vêneto é anexado ao Reino da Itália, em 1866. Em 1869, a Família
Rossi investe capital e moderniza tanto a fiação como a tecelagem mecâ-
nica, o que permite a expansão do capital, por meio da instalação de outros
estabelecimentos, além de Schio, Piovenne, Rocchette, Torrebelvicino e Pi-
evebelvicino. Com o investimento industrial, muitos camponeses, artesãos
e trabalhadores a domicílio tornaram-se operários. A necessidade de mão
Vania B.M Herédia | 73

de obra gerou uma classe operária que vivia em torno da indústria têxtil.
Além dos que habitavam em Schio, os da zona rural também foram esti-
mulados ao trabalho fabril, envolvendo mais de quinze comunidades que
produziam mão de obra para esses lanifícios.
Em 1873, o Lanifício Rossi torna-se uma sociedade anônima e, com
a modernização da estrutura industrial, surgiam conflitos operários de-
correntes da demissão por parte dos proprietários de boa parte da mão de
obra ocupada. Desses conflitos laborais nascem duas grandes greves, que
ocorrem com o começo da mecanização nas plantas industriais dessa in-
dústria e que se agudizam quando o processo de instalação das máquinas
realmente se efetiva.
A primeira greve ocorreu em 1873, e a segunda, em 1890-1891, o que
fortaleceu o movimento em favor da emigração, já que muitos operários
decidiram mudar o próprio destino e não mais lutar pela causa local e na-
cional.4 A greve de 1873 politizou aqueles operários que lutavam por seu
emprego e por ideias que julgavam adequadas em torno dos efeitos da
modernização técnica, e que as identificavam na indústria local, como o
desemprego, a proletarização, a necessidade de sindicalização, bem como
algumas mudanças que estavam em fase adiantada de instalação.
Esses operários emigram para a América Latina, sendo que alguns se
instalaram na Colônia Caxias, uma das colônias oficiais do Programa de
Colonização do Império, que tinha a intenção de ocupar o território com
mão de obra branca, semiespecializada e dedicada ao trabalho. Quando
esses operários chegaram nessa região, motivados por uma política impe-
rial que oportunizava o acesso à terra, a primeira parte tinha sido vencida,
já que haviam conquistado uma posição que jamais conseguiriam, se ti-
vessem permanecido em Schio, a de se tornarem proprietários.

4
A greve de 1890-1891 ocorreu por melhores condições de trabalho, o que resultou na expulsão de muitos tecelões
da Itália, já que o proprietário perdoou os casados e expulsou os solteiros, dando-lhes a seguinte opção: “Ou a galera
ou o Brasil” (LANEROSSI IERI, 1967, p.120).
74 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Outra parte da história

A história dessa indústria está dividida em seis momentos distintos


que abarcaram praticamente um século. Começa quando os emigrantes
italianos chegaram ao Brasil e se instalaram na Capela da Maternidade, na
Quinta Légua da Colônia Caxias. Alguns anos mais tarde, construíram um
barracão para abrigar a Cooperativa Têxtil, chamada Società Tevere e No-
vità. Foram eles que fundaram o povoado de Galópolis, sendo que alguns
eram de origem camponesa e outros tinham formação artesã, provenien-
tes das comunidades de Schio e Valle dos Signori (Livro de Tombo da
Paróquia de Galópolis, 1936, p.1). Esse grupo de operários italianos, que
se uniram com imigrantes, que já moravam no local, deu início à coopera-
tiva com capital inicial de L.100.000 liras.
A ideia de fundar um lanifício semelhante àquele deixado na Itália
começou a surgir entre esse grupo de emigrantes, que se uniu a alguns
colonos que já moravam no local. A proposta se realizou quando um desses
idealizadores comprou vários teares de uma tecelagem italiana que havia
falido. Instalaram a cooperativa em um barracão, nas proximidades de um
arroio, o que garantiu a energia necessária para o desenvolvimento da ati-
vidade econômica.
Os fundadores da cooperativa e da futura vila operária foram: José
Comerlato, João Batista Mincatto, José Berna, Ângelo Basso, José Casa,
Ottávio Curtulo, Pedro Sbabo, Jacinto Vial, João Sartor, Batista Tisot e José
Bolfe.
A cooperativa foi inaugurada em 29 de janeiro de 1898, formada por
28 sócios, localizava na Quinta Légua da Colônia Caxias. A fiação era feita
à mão e desenvolvida por mulheres em casa. Eram sócios da cooperativa:
“Giuseppe Berne; Giovani Batista Tisotti; Giuseppe Bolfe; Henrique Can-
tergiani; Bortolo Cortese; Valdevino Mendes Torta; Giovanni; Giovanni
Rech; Giuseppe Formolo; Maria Cesa; Luiz Curtulo; Angelo Basso; Jacinto
Vial; Giovanni Mincato; Giuseppe Casa; Giovanni Stragliotto; Maria
Vania B.M Herédia | 75

Dalmedico; Abramo Zardin; Francisco Formighieri e Giuseppe Comerlato”


(CONTRATO DE COMPRA E VENDA DA COOPERATIVA, 1898).

Foto da Cooperativa Têxtil Tevere e Società. Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.

A primeira fase durou praticamente dez anos e foi administrada pelos


emigrantes e por suas famílias. Ao enfrentarem problemas de natureza
econômica, venderam a cooperativa têxtil para o italiano Hércules Galló,
que tinha experiência em indústria de lã e havia chegado ao Brasil em
1899, com a intenção de fazer muitos investimentos no País. Ao chegar ao
Brasil, identificara o potencial da indústria têxtil enquanto trabalhava
numa tecelagem no Rio de Janeiro e, depois, na Fiação de Tecidos Portoa-
legrense, em Porto Alegre, como químico tintureiro.
Os dez anos seguintes, de 1904 a 1913, Hércules Galló administrou a
indústria de lã, colocando-a entre as dez maiores empresas do Rio Grande
do Sul, o que identifica a segunda fase. Essa fase fez a passagem de coope-
rativa para companhia de lã, criando uma estrutura material mais ampla
e também com ampliação de mercado. Hércules Galló tinha experiência
no setor e tinha contatos com o mercado regional. A visualização desse
empreendimento industrial, a partir de uma fusão de capitais com a Fa-
mília Chaves & Almeida, que entrou com capital importado da
76 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

“Companhia de Tecidos de Lã”, marcou a terceira fase dessa indústria, que


compreendeu o período de 1913-1928.
A proposta de fusão das duas firmas se efetivou em 13 de agosto de
1913, com o nascimento do estabelecimento Chave Irmãos & Cia. A socie-
dade contava com os sócios da firma Chaves & Almeida que eram: Pedro
Chaves Barcellos, Paulino d’Almeida Chaves Barcellos e Comendador An-
tônio Chaves Barcellos e, da parte da Companhia de Tecidos de Lã,
Hércules Galló. Naquele período, o lanifício contratou mestres italianos;
ampliou a capacidade industrial, por meio da compra de novos maquiná-
rios; investiu na construção da vila operária,5 que abrigava a mão de obra
que trabalhava na fábrica, qualificou a oferta de energia, e entrou no mer-
cado nacional.
A quarta fase começou com a transformação do “Lanifício São Pedro”
em Sociedade Anônima, cujo crescimento da atividade industrial no País
era visível. Compreendeu o período de 1928 a 1979, que começou com a
venda total das ações da família Galló para a empresa Chaves & Almeida,
quando o lanifício tornou-se Sociedade Anônima Companhia Lanifício São
Pedro. Esse período foi beneficiado pela política industrial que o governo
de Getúlio Vargas adotou no País, substituindo às importações. Foi um pe-
ríodo de crescimento econômico para o lanifício, pois a indústria têxtil
abasteceu o Exército nacional e, no período da Segunda Guerra Mundial,
foi considerada de “interesse nacional”, e aumentou de forma considerável
a produção.
Na década de 60, do século XX, a indústria reequipou e modernizou
seu aparato produtivo, através de um projeto aprovado pelo Conselho de
Desenvolvimento Industrial, órgão do Ministério da Indústria e Comércio,
financiado pelo Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul, pela
Caixa Econômica Federal, com recursos do PIS. O Banco Regional de De-
senvolvimento do Extremo Sul havia sido criado na década de 60, com a
proposta de recuperar o atraso e o processo de marginalização que a

5
Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1434323898_ARQUIVO_
TextoANPUHFLORIPA2015.pdf. Acesso em: 22 de setembro de 2020.
Vania B.M Herédia | 77

Região Sul estava vivenciando economicamente, através de projetes de re-


cuperação do parque industrial, de empresas afetadas pela situação crítico-
estrutural da economia brasileira. O setor têxtil era considerado por esse
Banco de Desenvolvimento como área de prioridade, visto que as indús-
trias instaladas possuíam considerável maquinário, mercado, estrutura de
comércio e necessitavam de auxílio com capital de giro.

Galópolis. Vista do Lanifício S. Pedro S. A.


Acervo Histórico Municipal de Caxias do Sul A. 3416

A fase seguinte ocorre com a compra pelo Grupo Kalil Sehbe das ações
do Lanifício em 1979, administrando-o até 1999, quando retorna para as
mãos dos operários. Esse período, bastante conturbado na história econô-
mica do Brasil refletiu-se em problemas de gestão, decorrentes da política
neoliberal adotada pelo governo brasileiro, e que afetou muitas empresas
nacionais.
O Grupo Kalil Sehbe tinha o modelo de empresa familiar. As empre-
sas familiares têm, em sua forma de gestão, características como fortes
laços afetivos, submissão, sensibilidade nas relações entre os participantes,
privilegiada pela manutenção das relações existentes, em detrimento da
administração racional, já que, na maioria das vezes, muitos dos dirigentes
faziam parte da mesma família. Um problema de trabalho pode afetar o
âmbito social familiar e a eficiência produtiva necessária, devido a alta
competitividade do empreendimento.
78 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Foto: Fachada do Escritório do Lanifício São Pedro S. A. Galópolis, Fotógrafo: Leonardo Herédia, 2016.

O retorno ao começo da primeira história

Na década de 90, do século XX, o Lanifício Sehbe começou a apresen-


tar problemas de natureza econômica, não conseguindo pagar a folha de
pagamento, o que começou a gerar tensões com seus trabalhadores. Os
problemas foram se agravando, e o Lanifício enfrentou uma forte crise que
evidenciou necessidades de mudanças na gestão, ou a perda do controle
acionário. O Grupo Kalil Sebbe dirigia o Lanifício desde 1980 e havia en-
frentado problemas econômicos antes, mas não tão graves quanto este
último, que se agudizava com o atraso dos salários dos trabalhadores na
década de 90. A situação financeira gerara uma crise que não foi solucio-
nada devido à falta de recursos financeiros naquele momento.
O Sindicato de Fiação e Tecelagem de Galópolis negociava as tensões
entre os operários e a direção da fábrica, que era dirigida por Alfredo
Sehbe, filho de Miguel Sehbe, presidente do Grupo. Na presidência do
Sindicato estava Renato Dall’Agnol, que conhecia bem a situação finan-
ceira e administrativa do Lanifício. À medida que os salários não eram
pagos e que se discutia as condições financeiras, o clima de solução do im-
passe tornou-se cada vez mais hostil, o que, em abril de 1999, impediu que
os operários continuassem no trabalho. A greve foi a solução encontrada
pela maioria dos trabalhadores, que reconheciam o problema, mas preci-
savam do salário para garantir seus meios de vida. Nesse intervalo da
Vania B.M Herédia | 79

produção, com a greve declarada começou a ser pensada a ideia de criar


uma cooperativa de trabalho, que pudesse administrar a fábrica e garantir
os direitos dos trabalhadores, com o objetivo de não perderem seu em-
prego e também a própria fábrica. A solução para o conflito surgiu,
portanto, do próprio diretor, quando sugeriu a criação de uma cooperativa
que pudesse arrendar o parque fabril do próprio Lanifício. A ideia era criar
uma cooperativa de serviços, com o intuito de que os donos não perdessem
o patrimônio. Os resultados, entretanto, foram distintos e foi criada uma
cooperativa de trabalho.

Naquele momento, alguns operários, sob a coordenação de Luis Carlos Tonolli,


funcionário do escritório central, responsável pelo planejamento e controle da
produção, pensaram a fundação de uma cooperativa que poderia abrigar a
proposta feita por Alfredo Sehbe. O acordo entre a direção da fábrica, e o Sin-
dicato dos Trabalhadores das Indústrias de Fiação e Tecelagem de Galópolis,
presidido por Renato Dall’Agnol acontece em 9 de abril de 1999 (HERÉDIA,
2017, p. 256).

O acordo assinado entre a direção do Lanifício e o sindicato definiu


que os operários poderiam pagar pelo maquinário e pelo aluguel do es-
paço, e o Lanifício ficaria encarregado de acertar as rescisões dos contratos
de todos os trabalhadores. Os operários constituíram uma comissão para
defender seus interesses, formada por Luís Carlos Tonolli, Fernando Mar-
chioro, Sidnei Canutto, Márcio André Kirshi e Arlindo Fermino Coelli.
Depois de muitas discussões e negociações, a Cooperativa Têxtil de
Galópolis foi criada, e sua primeira assembleia ocorreu em 7 de junho de
1999, no Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem, no bairro de Ga-
lópolis.
A Cooperativa nasce com a participação de 32 associados, que elabo-
raram o estatuto social de sua fundação. Foram seus fundadores: Luís
Carlos Tonolli, Fernando Marchioro, Sidnei Roberto Canuto, Félix Luiz
Bridi, Márcio André Kich, Amadeu Matté, Marcos Antônio Diligenti, Clark
Moschen, Dinarte Henrique Matté, Susana Bridi Cecchin, Rita Formolo
Bridi, Ivete Maria Pedron, Elisabete Bordin Pegorini, Lourdes Lorenzi,
80 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Maria Bernardete Pires Valduga, Leonice Maria Moschen, Arlindo Fermino


Coelli, Valderez Umberto Toniolli, Beloni Fátima Giacomelli Matte, José
Antoniollo, Selvino Formigheri, Sérgio Antonio Basso, Nelson Antoniolli,
Ivanir Maria Neuschrank Rigon, Julio Bordin, Terezinha Antoniolli Stra-
gliotto, Fabio Galietti, Urcina de Souza Frassini, Agostinho Vitório
Bortolozo, Renato João Dall’Agnol, Rosmari Fátima Canalli e Clarisse Aneli
Antoniolli.
O estatuto social foi aprovado pelos cooperativados, e o Conselho de
Administração foi constituído por: Luís Carlos Tonolli como presidente;
Fernando Marchioro como Vice-presidente; Sidnei Roberto Canuto como
secretário; Félix Luis Bridi, Agostinho Vitório Bortolozo, Fábio Galietti, Sel-
vino Formigheri, Marcio André Kich e Nelson Antoniollo como
conselheiros. Para o Conselho Fiscal, os membros efetivos foram: Arlindo
Coelli, Amadeu Matté e Renato João Dall’Agnol, e suplentes: Júlio Bordin,
Maria Bernardete Pires Valduga e Beloni Matté.
Segundo relatos de operários,6 a crise do Lanifício começou com a
compra de mais um lanifício, por parte do Grupo Kalil Sehbe, que se loca-
liza em Novo Hamburgo. Na gestão desses dois lanifícios não estava muito
claro qual dos dois tinha mais problemas.

[...] Ninguém entende como ia quebrar porque tinha muita produção. Era
muito tecido. Depois vinha os cobertores do Exército, os cachecóis do Exército,
as japonas que o lanifício fabricava o pano e o foro e a Kalil Sehbe confeccio-
nava as japonas, os cachecóis. Os cobertores era fácil, porque a máquina fazia.
O lanifício teve clientes que tinham grandes pedidos como o Exército, as com-
panhias aéreas (Entrevista com ex-dirigente, em 2018).

A partir de relatos orais, essa parte da história do Lanifício é descrita.


Os operários entrevistados compararam a gestão anterior com a gestão
enquanto cooperativa. Um dos depoentes diz que a compra de maquiná-
rios modernos pela cooperativa foi mais adequada do que em décadas
anteriores. Esta foi a explicação dada pelo entrevistado:

6
Entrevista realizada em 2018, com um ex-dirigente da Cooperativa, na Universidade de Caxias do Sul, RS.
Vania B.M Herédia | 81

Quando nós começamos, as máquinas que faziam a carda precisavam de 16


pessoas para fazer esse trabalho (a carda), e às vezes apanhavam, até porque
tinham que fazer serão, porque um fio que tinha mais irregularidades e preci-
sava de mais tempo (Entrevista com operário, em 2018).

Houve, por parte da gestão cooperativada, a preocupação de incre-


mentar a estrutura fabril com máquinas novas. Tinham ciência de que os
maquinários precisavam ser modernizados para atenderem à nova reali-
dade. De acordo com relato de um dos entrevistados, houve procura de
máquinas no Brasil, mas não era disso que a cooperativa necessitava. En-
tão conversaram com representantes de uma fábrica japonesa que visitou
a cooperativa e entendeu o tipo de máquinas das quais precisavam.
Os relatos apontam que a Cooperativa começou a se organizar com
uma nova mentalidade, voltada apenas para os interesses do que produzia
e os interesses dos seus cooperativados. Tinha iniciativas de inovação e
começou a fazer investimentos, após pagar as pendências relacionadas
com o acordo pelo qual nascera. A greve começara em abril de 1999, mas
a fábrica parou em 30 de março de 1999. Os operários trancaram a entrada
da fábrica, e a negociação ocorreu da seguinte maneira:

[...] Na época eu acho que tinha em torno de duzentos e cinquenta, se não me


engano, em torno de duzentas e cinquenta pessoas. E resolveram fazer a greve.
Trancaram a entrada, então os encarregados, também, se quisessem, não po-
diam entrar, porque daí ficou uma turma lá 24 horas na portaria, e também
para evitar que saísse o maquinário. [...] O que o pessoal tinha medo, inclusive
eu também, que o pessoal tirasse as máquinas que importasse mais e vendes-
sem (Entrevista com ex-operário, em 2018).

Segundo vários entrevistados, o Sindicato de Fiação e Tecelagem de


Galópolis teve uma participação fundamental na construção do acordo. O
Sindicato estava atualizado em questões semelhantes de falência, e condu-
ziu a discussão de forma propícia, o que fez com que a classe operária
envolvida recebesse seus direitos. A combinação do aluguel do espaço foi
atrelada ao faturamento da cooperativa e a produção pagava as dívidas e,
82 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

ao mesmo tempo, a massa falida. Alguns clientes compraram tecidos pa-


gando antecipadamente, o que fez com que o ponto de partida fosse
positivo para os envolvidos.
A cooperativa voltou a funcionar e partiu do ponto inicial com operá-
rios que haviam se dedicado à produção de lã, ao longo da vida, e de tecidos
e que não queriam ver a fábrica desaparecer. A greve havia mudado o
rumo de suas vidas, assim como a greve de seus antepassados também
mudara a trajetória das suas famílias. Cem anos haviam se passado, e a
fábrica sobrevivera. No fundo, a Cooperativa Têxtil de Galópolis pagou as
dívidas por meio do pagamento do aluguel que ficou depositado em juízo,
pagou os operários que começaram a trabalhar e, com o tempo, o maqui-
nário. Cada sócio entrava com cotas iniciais que eram, à época, de
R$300,00. Segundo relato do primeiro presidente da Cooperativa, Luis
Carlos Tonolli, havia um valor por cota e não tinham a dimensão de quan-
tos operários entrariam para a cooperativa.

Cada sócio entrou com 300 reais.[...] Primeiro, nós não sabíamos o que ia
acontecer, nós não sabíamos se nós íamos ter trabalho. Assim ou assado, nós
não sabíamos.[...] Nós vamos começar no dia 7 com x funcionários. Então nós
começamos com trinta e poucos, depois no dia seguinte nós víamos, no dia
seguinte, e nós chamávamos mais 10, no outro dia mais 20, no outro dia mais
30 e assim nós fomos. [...] Chegamos em 109 sócios (Entrevista realizada em
2018).
A primeira foi escolhida numa reunião lá no Sindicato, foi feito uma votação
lá no Sindicato, com todas as pessoas interessadas em participar da coopera-
tiva. Embora que ninguém ainda era cooperativado aquela época. Então as
pessoas escolheram o presidente, o vice e o secretário, o conselho fiscal e ad-
ministrativo. Depois cada quatro anos os associados é que faziam, era feito
toda a eleição e era votado (Entrevista realizada em 2018).

A composição do Conselho Administrativo e Fiscal foi feita por as-


sembleia de operários. Cada gestão durava quatro anos, eleita pelos
associados. Cada setor tinha que ter o mínimo de mão de obra, e eram
diversos os setores envolvidos: tecelagem, fiação, urdição, acabamento, ex-
pedição, tinturaria. Depois de um ano, o parque das máquinas foi leiloado
Vania B.M Herédia | 83

e não conseguiram comprar na primeira proposta, sendo que, na segunda


tentativa, deram R$1.700.000,00 e parcelaram o restante em prestações,
que foram sendo pagas mensalmente durante vários anos. Os operários
haviam trabalhado muito e não deixavam morrer suas expectativas com a
compra do parque de máquinas. Após seis anos de muito trabalho e estru-
tura da fábrica, foi paga e novamente retornava para o domínio dos
operários, o que garantia o retorno às origens.
Na leitura do ex-presidente da Cooperativa Têxtil de Galópolis Luís
Carlos Tonolli três foram as principais ações desencadeadas pela coopera-
tiva, durante a gestão de 1999-2011. A primeira era ter conseguido
negociar o aluguel e o valor do aluguel ser depositado, a fim de pagar as
rescisões trabalhistas. A quitação da dívida e a compra do parque fabril
fizeram com que o resultado da produção fosse investido na própria planta
industrial. O fato de os operários serem indenizados também promoveu a
certeza de que o que havia sido decidido e feito era o melhor para todos. A
segunda ação foi a modernização das máquinas, o que permitiu concorrer
no mercado e atender às demandas frente às exigências competitivas que
o setor têxtil enfrentava.

[...] A gente conseguiu modernizar todos os setores da Cootegal. Nós começa-


mos onde era mais precário: na tinturaria. Comprando máquinas usadas e
novas de ótima qualidade, melhorando assim o tingimento muito. Na tecela-
gem, nós compramos teares que antes precisavam de uma pessoa por tear,
fazendo 100 batidas por minuto. Nós compramos teares e não foram novos,
foram de segunda mão de boa qualidade, batiam 160, 170, cada pessoa tocava
quatro, então quatro máquinas uma pessoa, antes era uma pessoa por uma
máquina (Entrevista com o ex-presidente da Cooperativa, em 2018).

A terceira ação foi capacitar operários no Centro de Tecnologia da


Indústria Química e Têxtil no Rio de Janeiro, a fim de que pudessem cola-
borar com o crescimento da Cooperativa. O investimento em mão de obra
de técnicos têxteis foi importante para qualificar os serviços. Os relatos
evidenciam a preocupação que a cooperativa teve na qualificação da mão
84 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

de obra, na aquisição de novas máquinas e na sustentabilidade do estabe-


lecimento.

Algumas considerações

O Lanifício São Pedro foi a tecelagem mais antiga e com maior ex-
pressão da Região Colonial Italiana. Foi a primeira tecelagem de vulto
dessa região, o que acarretou o seu desenvolvimento industrial e comer-
cial, pela abrangência de seus produtos, numa demonstração da garra e da
força de seus administradores. A atuação do Lanifício fortalece a ideia de
que a indústria têxtil foi um dos setores principais da industrialização ga-
úcha.
De acordo com a história dessa cooperativa, o capital inicial investido
era originário da poupança dos colonos imigrados: alguns haviam trazido
dinheiro da Itália, outros haviam conseguido através do trabalho agrícola.
A maquinaria inicial provinha da Itália, uma vez que um dos imigrantes
que fundaram a cooperativa têxtil Società Tevere e Novità havia se com-
prometido a fazer o negócio, juntamente com os demais 28 sócios.
A ampliação dessa cooperativa, num segundo momento, quando
ocorreu a fusão Chaves & Irmãos, foi feita com capital comercial de Chaves
& Almeida e com o capital de Hércules Galló, proveniente do trabalho in-
dustrial e comercial.
No final do século XIX, e nas duas primeiras décadas do século XX, as
famílias dos colonos eram numerosas e ofereciam uma saudável e abun-
dante força de trabalho para a indústria. Apesar dos baixos salários, o
emprego na indústria garantia não perder a propriedade, sua manutenção
e ainda a subsistência do grupo que não era pequeno.
A indústria cresceu no período da administração da “família”
Chaves & Almeida que investiu em maquinários, tendo um número consi-
derável de operários empregados nessa gestão. Torna-se uma grande
indústria durante a Segunda Guerra Mundial, tendo como cliente o Exér-
cito brasileiro. Ampliou o mercado regional para o nacional, o que
Vania B.M Herédia | 85

permitiu investimentos na própria planta industrial. Entretanto, na dé-


cada de 70, do século XX, enfrentou problemas no mercado financeiro e
também pelas políticas adotadas de desvalorização da moeda brasileira.
No final daquela década, o Lanifício é vendido para o Grupo Kalil Sehbe,
que dá sequência a trajetória fabril, durante praticamente vinte anos.
No final do século XX, o Lanifício Sehbe passou por uma crise finan-
ceira que afetava o pagamento do salário dos operários e a possibilidade
de novos investimentos. A crise financeira - produto de políticas neolibe-
rais adotadas pelo País, a partir do governo Collor de Melo - fez com que
muitas empresas foram afetadas pelo modelo econômico. Como solução
desse impasse, após uma greve operária de mais de um mês de fecha-
mento da fábrica, nasce a proposta de formar uma cooperativa de
trabalho. A administração do Lanifício não tinha condições de pagar salá-
rios atrasados e colocá-lo novamente em funcionamento. A proposta de
formação de uma cooperativa foi aceita, e o Lanifício recomeça uma nova
fase administrada pelos operários.
A análise recupera parte de uma história que começa no século XIX,
numa sociedade em transformação e que se estende para outro país, vin-
culada também à história da industrialização e de uma classe operária que
carregava na bagagem técnicas e saberes tradicionais.
Além do patrimônio construído, a força da memória étnica é evidente
nessa trajetória que, em cem anos, mantém laços com seu passado, com
suas raízes e com seu legado. É uma história de tramas, de conexões, de
movimentos, de rupturas e continuidades que esses estudos permitem re-
cuperar para que não se perca no esquecimento as relações que foram
construídas pelas necessidades da classe trabalhadora os seus espaços de
trabalho.
86 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Foto: Fábrica Alta em Schio. Local onde houve a greve dos operários em 1891. Acervo: Autora. Itália, 2015.

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4

Memórias orais arquivadas:


a escolarização de imigrantes no meio rural na
região nordeste do Rio Grande do Sul (1910-1940)

Luciane Sgarbi Santos Grazziotin 1

A região nordeste do estado do Rio Grande do Sul é composta por


três microrregiões geográficas. Este estudo está circunscrito a
determinados municípios pertencentes a duas delas: microrregião de
Vacaria e microrregião de Caxias do Sul, espaços conhecidos como Campos
de Cima da Serra e Serra Gaúcha, respectivamente.
A recolha, a salvaguarda e o inventário de documentos escolares,
assim como a produção de arquivos de memória oral, fazem parte de ações
que têm, de modo geral, o objetivo de ampliar o repertório documental e,
por conseguinte, a capacidade de compreensão acerca das instituições
escolares e/ou dos processos de escolarização, não só em sua dimensão
histórica, mas em âmbito social, cultural e das relações dos sujeitos com
seu tempo. As ações que visam a custodiar fontes documentais individuais
ou coletivas, institucionais ou não, têm possibilitado uma produção
historiográfica em espaços geográficos por vezes pouco estudados pela
carência de fontes escritas ou iconográficas.
As memórias orais arquivadas, foco deste estudo, contituem-se em
elemento emblemático para pensar a cultura escolar produzida em
determinados lugares. As memórias relacionadas às elites, aos imigrantes

1
professora e pesquisadora na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Escola de Humanidades
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Possui bolsa PQ2 CNPq. E-mail: lusgarbi@terra.com.br
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 89

de determinadas etnias, aos religiosos, aos operários, aos professores e


alunos aportam bens culturais específicos que são primordiais em
pesquisas de microanálise.
Nesse sentido, a História Oral como metodologia “congrega vários
campos do conhecimento e de práticas profissionais, ampliando os
horizontes de indagações [...] e a consciência crítica” sobre determinados
âmbitos da História (KHOURY, 2010, p. 7). Foi justamente com o objetivo
de ampliar a possibilidade de entendimento de certos aspectos
relacionados à cultura escolar produzida a partir da contratação de
professores de maneira autônoma, sem a intervenção do estado, pelas
famílias de imigrantes e pelo surgimento das primeiras Escolas Isoladas,
na região nordeste do estado, que optei por trabalhar com dois arquivos
de memória oral.
Um dos arquivos foi produzido a partir de uma iniciativa denominada
“Projeto Ouvindo e Lembrando”, que teve como finalidade conhecer a
história do município de Bom Jesus, localizado nos Campos de Cima da
Serra, por meio do registro da memória daqueles que ali viveram. Para tal,
foram realizadas entrevistas orais com pessoas de idade superior a 65
anos. Até 2020, o Acervo de Memória Oral (AMO) continha uma média de
167 entrevistados, com uma média 70 anos de idade.
Nas entrevistas, as narrativas iniciam pela genealogia, seguida pelas
experiências de vida, dando ênfase a aspectos como profissão – se fosse o
caso –, alimentação diária, alimentação de domingos e festas, tipo de
vestuário, lazer da época, músicos locais, participantes da comunidade que
se destacavam, médicos, parteiras, sacerdotes, professores. Ainda foram
abordadas as práticas cotidianas, as benzeduras, as simpatias e a educação,
destacando-se as escolas existentes, os primeiros professores e a prática
de aulas em casa.
As entrevistas do Acervo foram feitas sempre pela mesma pessoa, a
prof.ª Lucila2 Sgarbi, durante os aproximados 23 anos de existência,

2
Professora Lucila Maria Sgarbi Santos é professora e historiadora local, idealizadora do projeto “Resgatando nossas
Raízes” e a principal responsável pela criação do Arquivo Municipal de Bom Jesus/RS.
90 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

concretizando aquilo que Bonazzi (2002, p. 244) afirma ser um sonho


quando escreve: “[...] além disso, caso disponha de tempo, inclinação e
pessoal capacitado – não é proibido sonhar de vez em quando –, o
arquivista pode realizar ele mesmo as entrevistas, selecionando os temas
prioritários”. A partir desse arquivo, as entrevistas selecionadas para esta
pesquisa foram aquelas que tratavam das práticas de escolarização
adotadas pelos moradores da região, tanto dos imigrantes alemães que
migraram de outras regiões do país para Bom Jesus, nas últimas décadas
do século XIX, como dos italianos que ali foram morar nas primeiras
décadas do século XX – incluindo alguns descendentes das primeiras
famílias de luso-brasileiros que receberam as sesmarias ainda no século
VXIII.
O outro arquivo cujas memórias serviram de fonte para esta pesquisa
pertence à Universidade de Caxias do Sul3, cujo projeto intitulado
“Elementos Culturais das Antigas Colônias Italianas da Região Nordeste
do Rio Grande do Sul – ECIRS”, implantado em 1978, teve como foco o
universo rural das antigas Colônias de Caxias, Dona Isabel, Conde D'Eu e
Antônio Prado, que atualmente correspondem a mais de uma dezena de
municípios.
Desse modo, o texto trata de uma investigação nas regiões já
mencionadas, ambas localizadas no nordeste do estado do Rio Grande do
Sul. Por meio das memórias de quinze sujeitos, sete da Região Colonial
Italiana (RCI) e oito da Região dos Campos de Cima da Serra (RCCS),
foram identificadas e analisadas as práticas de escolarização desenvolvidas
na região rural entre as décadas de 1910 e 1940. O estudo inventariou,
assim, os traços, gestos e indícios que sobreviveram ao tempo e que, por
meio da “utilização da História Oral4 como metodologia, permitiram a
atribuição de outros significados e entendimentos para a História, além

3
Instituição de ensino superior, comunitária e regional, com atuação na região nordeste do Estado do Rio Grande do
Sul, que se estende a uma área geográfica de 69 municípios, compreendendo uma população de mais de um milhão
de habitantes. O ECIRS não mais existe como projeto, mas a documentação escrita e oral produzida no projeto per-
tence ao Instituto Memória Histórica e Cultural – IMHC.
4
Optou-se por manter a grafia dos depoimentos conforme a pronúncia original das memórias escutadas; os pos-
síveis erros de concordância e de ortografia não foram corrigidos.
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 91

daqueles postulados pela análise dita tradicional” (GRAZZIOTIN, 2008, p.


78).
Embora a pesquisa esteja circunscrita a um espaço geográfico com
características marcadas, os aspectos aqui abordados não têm a intenção
de salientar especificidades regionais e culturais como únicas, em uma
espécie de “narcisismo das pequenas diferenças”, como afirma Burke
(2002), e sim identificar algumas particularidades que, provavelmente,
façam parte de uma história de maior amplitude e que são peças
importantes na composição do mosaico que as pesquisas em História da
Educação ajudam a organizar.
Quanto à RCCS, o estudo inicia com a narrativa do senhor Doti, cujas
memórias da escolarização remontam à década de 1910, e termina com a
professora Lucila, que rememora seu tempo de educação rural na década
de 1940. No que se refere à RCI, inicia com Dona Rosa Menegatti Bovo, no
que se refere à década de 1910, e termina com a Dona Nair, quanto à
década de 1940, percorrendo assim 40 anos de história da educação fora
do contexto urbano. Na RCCS, vários elementos compõem o processo de
entender as práticas que instituíram, em certa medida, uma maneira
específica de escolarização que denominei de “aulas domiciliares”, prática
adotada sobretudo no meio rural devido à ausência de escolas. Na RCI, as
especificidades com relação às práticas adotadas dizem respeito à
indicação de professores pela comunidade para ministrar aulas em escolas
étnico- comunitárias5; ao ensino em italiano, que acarretou problemas no
período do Estado Novo; à nomeação dos docentes pelos intendentes
municipais, em alguns casos, antes da idade legal mínima; à faixa etária
média de cinco a seis anos para o ingresso no processo de escolarização; e
ao ensino do catecismo, central nessa região.

5
As chamadas escolas étnico-comunitárias eram “aulas” elementares que ensinavam as noções básicas de escrita,
leitura e cálculo. Na maioria dos casos, eram ministradas por membros da própria comunidade. As que funcionavam
na região urbana, em geral, foram resultado de empreendimentos das Sociedades de Mútuo Socorro, sendo as
rurais erigidas pelas próprias famílias, que, mediante a inexistência de escolas públicas, em função da distância,
escolhiam os professores entre os moradores mais instruídos. (LUCHESE, 2007, p. 84).
92 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

As práticas são aqui entendidas a partir dos estudos de Roger


Chartier (2004 p. 13) como sendo “criadoras de usos ou de representações
que não são absolutamente redutíveis às vontades dos produtores de
discursos e de normas”. Algumas práticas observadas e que são comuns às
duas regiões relacionam-se aos concursos, sempre mencionados pelos
professores, e ao fato de eles residirem na casa dos membros da
comunidade.
O objetivo da pesquisa foi compreender a cultura escolar produzida
nos processos de escolarização no meio rural em dois espaços geográficos
distintos pertencentes a uma mesma região: o nordeste do estado do Rio
Grande do Sul. Nesse processo, visa-se a identificar as especificidades de
uma região de colonização homogênea, italiana, e outra cuja população de
imigrantes italianos e alemães se misturaram com a comunidade lusa que,
acompanhada de seus escravos, se estabeleceu na região a partir de 1755,
com a doação das primeiras sesmarias (OLIVEIRA, 1996).
No processo de ouvir memórias, vai-se tecendo um cenário
educacional, com suas especificidades regionais interligadas às políticas
públicas da educação em âmbito nacional e estadual.

A escolarização no meio rural

A dinâmica das aulas domiciliares e o trabalho em pequenas


comunidades rurais podem ser percebidos nos fragmentos que seguem.
Tais excertos abordam aspectos distintos onde é possível entender um
determinado contexto que caracteriza a história dos estudos daqueles que
viviam na zona rural, primeiros moradores da região, imigrantes ou não.
São relatos de cada um em particular e que, no entanto, entrelaçam-se,
de forma a constituírem-se no que Borne (1998) chama de “comunidade
de memória”, para assim compor certa dinâmica comum de cada região.
No momento de trazer à memória tempos, espaços e pessoas de outras
épocas, cada um dos entrevistados parece compartilhar novamente as
situações com aqueles com quem conviveu e a quem a lembrança foi
buscar.
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 93

Na cidade de Bom Jesus, situada nos CCS, o desenvolvimento da


educação, de modo geral, e o ensino rural, de forma específica, estão
relacionados aos interesses da população em busca da ampliação das
condições de estudo para seus filhos. As memórias refletem algumas
marcas desse local, cuja educação “escolarizada” está mediada não só pela
escola, espaço delimitado, mas por outros lugares, tais como: a casa de pais
que, mediante a contratação de um professor, recebiam outras crianças
além de seus filhos; a casa de professores que hospedavam os alunos de
lugares distantes; e as casas de família, onde muitas crianças “paravam”
com o objetivo de frequentar uma aula próxima. Essas formas de criar e
gerir a educação no meio rural, dentro do possível, seguem os
pressupostos de uma certa formalidade.
A zona rural de Bom Jesus, à medida que organiza o saber de
diferentes formas, determina as concepções de vida na cidade e as
prioridades que são assumidas no decorrer de seu desenvolvimento, em
termos de educação6. Já na Região Colonial Italiana, a educação está
relacionada a pequenas escolas em comunidades rurais denominadas
colônias, onde grande parte das crianças é originária de famílias que não
dominam completamente o idioma português, predominando assim, na
localidade, o dialeto vêneto. Antes das proibições advindas do Estado Novo,
ensinavam em italiano, embora, segundo os relatos, sentissem
necessidade de “aprender o português”.
Os professores, de modo geral, lecionavam em escolas comunitárias,
subsidiadas pelo poder público ou mantidas pelos pais dos alunos. Eram
indicados por membros da localidade onde iriam atuar e/ou nomeados
pelos intendentes.
As práticas observadas são identificadas nos pais, professores e
alunos e traduzem, em alguns casos, formas específicas de conceber o
ensino, produzindo um legado de cultura escolar próprio da região que,
segundo Viñao Frago (1995, p. 64),

6
Para saber mais sobre a educação na região dos Campos de Cima da Serra, ver Grazziotin (2008).
94 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Abarcaría la historia de la cultura material y del mundo de las emociones, los


sentimientos, y lo imaginario, así como el de las representaciones e imágenes
mentales, la de la cultura de la élite […] y la de la cultura popular, la de la
mente humana como producto socio histórico […].

Tais aspectos estão, de diferentes maneiras, expressos nos


documentos analisados.
O período do estudo é atravessado por questões políticas em níveis
distintos, que podem ser observadas nos documentos, permitindo uma
aproximação entre o espaço rural estudado e o contexto urbano. Essas
aproximações acontecem não só em uma escala micro, mas de forma mais
ampla, em esfera nacional e estadual. Tal justaposição emerge das
memórias que chegam aos nossos dias “captadas pela história” (NORA,
1984, p. xxxvi).

Os Campos de Cima da Serra e as “aulas domiciliares”

No município de Bom Jesus, na Região dos Campos de Cima da Serra


(RCCS), as escolas municipais eram praticamente inexistentes; são poucos
os documentos que fazem referência à existência de uma “aula”. É possível
perceber que, nesse município, a educação sistematizada vai,
gradativamente, sendo constituída e se manifesta, por muitas décadas,
com soluções particulares para resolver o problema – visto que não
dependia de meios públicos para ser instituída –, com práticas que
assumem códigos e regras próprias.
No contexto da zona rural, as “aulas domiciliares”, com professores
particulares, contratados pelos pais, são frequentemente mencionadas nos
relatos escutados, seguindo uma dinâmica própria dependendo da região
– se mais próxima ou mais distante da sede do município. É essa prática
que supre, em certa medida, a carência de escolas públicas.
As primeiras referências encontradas no Brasil relativas a essa
prática de “aulas domiciliares7” é circunscrita à cidade do Rio de Janeiro

7
Aulas domiciliares – nesse contexto – nada têm a ver com o processo iniciado nos Estados Unidos conhecido como
“Home School”, ou ainda “escola em casa” ou “objeção escolar”. “Essa tem em Ivan Illich, Charles Siberman e,
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 95

por Vasconcelos, no final do século XIX (FERNANDES, 2005). Segundo


Fernandes (2005, p. xii), o “Ensino Doméstico”, denominação utilizada em
Portugal e que foi adotada também por Vasconcelos, “[...] não é um tema
cuja pertinência se meça exclusivamente em relação ao passado” visto que
“o desejo, por parte das famílias, de eficiência pedagógica, de permanência
de valores e de segurança física leva que se recorra ao ensino no interior
do lar [...]”. A origem dessa prática, porém, está no passado “[...] desde os
tempos mais remotos, caracterizada em determinados períodos da história
como o único recurso para a educação de crianças e jovens e, em outros
tempos [...] utilizada pelas elites econômicas e políticas para educar seus
filhos” (VASCONCELOS, 2005, p. 1). Essa forma de educação, que remonta
à Idade Antiga, modifica-se e se amplia na Modernidade graças às
mudanças paradigmáticas ocorridas, principalmente, no chamado Século
das Luzes (VASCONCELOS, 2005).
Nesta pesquisa, opto pela denominação de “aulas domiciliares”, em
detrimento de outras como professores particulares, preceptores, aulas
domésticas e mestre-escola, utilizadas por diferentes autores para
designar aulas fora de uma instituição escolar, por entender que esse
termo melhor dá conta das especificidades da região. Assim, o termo
“aulas domiciliares” é aqui empregado para caracterizar um sistema de
educação institucionalizada, pois segue regras e certa seriação, atribuindo
graus progressivos de dificuldade aos conteúdos e avaliação. Os conteúdos
são transmitidos especificamente por “professores”, mesmo que não
tenham diploma formal para esse fim. Desse sistema, podem fazer parte
um ou mais alunos, mas o estabelecimento de ensino é sempre a residência
de uma família. Essa prática não está vinculada somente à elite, mas a
camadas sociais distintas, em diferentes regiões do município; embora o
fator econômico seja relevante, não é o único a ser considerado.

especialmente em John Holt, seu embasamento teórico”, que pretende levar a diante a educação das crianças em
seus próprios domicílios (SANTOMÉ et al., 2003, p. 35). Essa experiência tem, nos Estados Unidos, exemplos sig-
nificativos que, na década de 1990, reavivaram o ensino em casa: “[...] num discurso contra a escola pública, em
especial contra o professorado da rede pública, [...] a família chega a usurpar por completo o papel da escola”
(SANTOMÉ et al., 2003, p. 35).
96 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

As memórias das “aulas domiciliares” compõem um conjunto


singular de informações, não sendo possível contar com registros escritos
a respeito disso, tendo em vista a transitoriedade e precariedade com que
eram ministradas.

Apesar de sua constatação e reconhecimento como prática instituída [...] a


educação doméstica pressupunha um atendimento [...] realizado na esfera pri-
vada. Em conseqüência disso ela às vezes era alijada dos registros oficiais e
não deixava vestígios e arquivos (VASCONCELOS, 2005, p. 12).

Os registros constam exclusivamente na fonte oral. Esse tipo de aula


aparece nos depoimentos como forma de contornar a carência de escolas.
Em livros de contra tos e atas da prefeitura de Bom Jesus, São Francisco
de Paula ou de Vacaria, bem como em Livros de Tombo da Igreja, não se
encontram referências às questões relativas ao ensino “em casa”. Qual a
dimensão dessa prática tão usual nos relatos dos sujeitos da pesquisa?
Histórias de educação permeadas por alegrias, frustrações e sacrifícios
envolveram o cotidiano de pais, professores e alunos. Eles tiveram seu
primeiro contato com a escolarização na ausência de escola.
Foi, portanto, o Acervo de Memória Oral do Arquivo Municipal de
Bom Jesus que possibilitou o contato com outro mundo da escolarização,
o mundo do “estudo” e da “aula”, não aquele legado pelos registros das
escolas, pela secretaria de educação ou outros órgãos oficiais. Trata-se de
um mundo lembrado por cada sujeito entrevistado, que traz ao presente
as lembranças da zona rural, dos primeiros professores, das aulas, das
dificuldades de chegar à casa de um vizinho; de enfrentar frio, da
precariedade das aulas de alguns professores, de formas diversas de
aprender as “primeiras letras”.
Entre os documentos escolhidos, inicio com as memórias de seu Doti,
que recorda a forma com que pais e tios estudaram por volta da década de
19108.

8
Em todos os relatos foram mantidas, na transcrição, a forma de escrita de acordo com o vocabulário, acento de
sotaque e regionalismos próprios da localidade.
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 97

Teve, nas épocas que me antecederam bons professor, meu pai, meus tios,
homens de 80 anos hoje, tinham uma calegrafia beleza, uma perfeição, era
uma raridade, até hoje. Foi bons professores que vieram [...] João Laurindo,
foi um grande professor, Zé Ribeiro, Tota Rodrigues que lecionava no Faxianal
(Orizon Roque de Souza, seu “Doti”, entrevista, 1995).

Como eram esses professores? Quem os pagava? Essa é uma


preocupação visível nas perguntas da entrevistadora, que obtém a
resposta: “Eram pagos digamos assim, um fazendeiro contratava esse
professor pra lecionar, e esse aí agrupava os sobrinhos, as famílias, os
amigos os parentes de perto” (Seu Doti, entrevista, 1995).
Dona Maria dos Prazeres, quanto à década de 1920, lembra: “Estudei
em casa com o professor Antônio Tato, que depois foi substituído por um
outro professor que vinha de São Joaquim, para terminar as séries iniciais
fui para a cidade estudar com a D. Nair Boff [...]” (Dona Maria dos
Prazeres, entrevista, 1990).Seu Ambrosio da Silva, na mesma década,
conta:

[...] estudei muito pouco, porque era só escola particular lá no sítio às vezes
tinha às vezes não tinha. Os pais que pagavam professor. O falecido pai pagou
professor. Professor Otávio Silveira e um tal de Inácio. Eu não estudei. Muito
pouco, aprendi meio a força assim não escrevo muito bem (Seu Ambrosio da
Silva, entrevista, 1994).

Seu Edmundo Jacoby recorda-se das aulas em casa, com professor


contratado, no início da década de 1920.

O primeiro professor, era escola particular pago pelo pai, era Valter Peixoto,
bom professor, eu tinha oito anos. Depois vieram pra perto, já tinha escola
municipal. Os professores era Ladislau Tietböl, irmão do Maximiliano era lá
no Pascoal e Otávio Silveira, os dois municipal (Seu Edmundo Jacoby, entre-
vista, 1994).

Continuando com as memórias sobre as aulas em casa, Dona Lili


recorda como iniciou seus estudos: “Iniciei meus estudos em casa, na
98 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

fazenda onde morava com meus avós. O professor era seu João Telatin, a
aula era particular, o professor lecionava na cidade para vários alunos e
vinha para a fazenda só para dar aulas pra mim” (Dona Lili, entrevista,
1997).
Nos aspectos relacionados às aulas domiciliares com professores
contratados pelos pais, a entrevista com Seu Orizon Roque de Souza
(Doti)9 é rica em detalhes, abordando os aspectos discutidos com
informações esclarecedoras e singulares. Em suas memórias, descreve um
cenário de educação em uma das regiões mais distantes da sede do
município de Bom Jesus. A região abrange as localidades denominadas
Silveira, Faxinal Preto10 e São José dos Ausentes.
Ao recordar seus estudos, já na década de 1940, seu Doti relata:

Eu pra estudar, a princípio meu pai contratou uma moça que chamava-se
Dona Ermínia Valim, esposa de seu Ari Valim. [...] ela nos lecionou um ano
em casa. Nós éramos na época, era seis irmãos que estudavam em casa. Eu
estudei um ano em casa depois fui pro Faxinal, estudei com uma professora
municipal, teve uma professora municipal Dona Alice Moreira (Seu Doti, en-
trevista, 1995).

A professora Lucila Sgarbi, também na década de 1940, rememora as


aulas que teve em casa, na mesma época que seu Argeu, quando fala da
educação dos filhos.

[...] o primário [...] eu comecei com professor particular em casa, era uma
pessoa que se pode dizer semi-analfabeta. A minha mãe não tinha tempo de
nos dar aula, então ela ficava bordando, fazendo o serviço e explicava para o
professor e ele nos dava aula. Hoje, quando penso no professor, ele não tinha
as mínimas condições. Depois desse, tive mais uma professora e um professor
[...] em casa [...] era eu minha irmã e tinha outra pessoa, eu acho que a filha
de um empregado. Depois nós fomos para a escola municipal há 1 km da nossa

9
Seu Doti relata as formas de escolarização de uma região que, na data da pesquisa, era pertencente ao município
de Bom Jesus e muito distante da sede e que, atualmente, pertence a o município de São José dos Ausentes.
10
Silveira e Faxinal Preto são distritos do município de São José dos Ausentes, que foi desmembrado em 1991 do
município de Bom Jesus.
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 99

casa, que nós morávamos no sítio e essa professora também sabia muito pouco
(Lucila, entrevista, 2004).

Meus filhos tiveram professor em casa, paguei professor particular pra lecio-
nar, chamava-se Pedro Henrique Magaldi, apelido Totinha, era de são
Joaquim, mas criado em Bom Jesus. Ele lecionou em duas localidades, eu me
mudava muito, deu aula em Monte Alegre e na Fazenda São Luiz (Argeu, en-
trevista, 1993).

Dona Emília, quanto aos estudos de seus filhos, relata:

Aprenderam a escrever com sabugos, faziam as letras com sabugo, a primeira


aula foi em roda do fogo, os pais e os tios que ensinavam os filhos, o tio mais
velho era responsável por cuidar de todas as crianças. Aprendiam com o tio o
alfabeto fazendo todo o alfabeto com sabugo de milho. Não tinha colégio, meu
marido justava um professor em casa e juntava os vizinhos para dividir as
despesas. O primeiro professor contratado na fazenda das Almas, para ensinar
meus filhos foi seu Alfeu ele era do 8º distrito, além de professor era também
artesão de chifre. O professor morava na fazenda, ganhava casa e comida e
cada vizinho pagava para seu filho. Pra fazer o admissão nós justava um pro-
fessor mais sabido (Dona Emília, entrevista, 1993).

Pelo que é possível projetar partindo da idade dos sujeitos, as


memórias das aulas domiciliares percorrem uma temporalidade
relativamente extensa, desde as memórias iniciais de seu Doti, atinentes a
1910; passando pelas de seu Ambrósio e Edmundo, que circunscrevem a
década de 1920; até novamente seu Doti, professora Lucila e os filhos de
seu Argeu, na década de 1940. São, portanto, 40 anos de formas de ensinar
e aprender que se dão na zona rural, durante um determinado tempo, fora
da instituição escolar, e que, no entanto, seguem certas normas da cultura
escolar.
Dominique Julia (2001) aponta o espaço escolar como um dos
elementos essenciais à constituição de uma cultura escolar, mesmo que as
aulas em casa, obviamente, não contemplem essa premissa. Nesse
processo, percebem-se os outros dois elementos enunciados por Julia, que
são certa graduação nos conteúdos e um professor, profissional específico
100 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

para o trabalho. Essa forma de dar uma instrução formal aos filhos, em
regiões onde não havia escolas e nem sequer uma “aula”11, era alternativa
amplamente adotada na região. A carência de aulas, em muitos casos,
parece acontecer devido à distância da localidade em relação à sede do
município; ou, no caso, devido ao fato de a região ter poucos alunos – o
que se pode concluir pelo Decreto nº. 19 de 1º/08/1926 do município de
Bom Jesus, que “transfere a aula mista de Rondinha para a Ramadinha no
1º distrito desse município, devido à exigüidade de freqüência12”.
No percurso das memórias, é possível observar, ainda, algumas
características comuns na maioria dos relatos: a prática habitual de que o
professor morasse na casa dos pais dos alunos. Em caso de uma
determinada família contratar um professor e haver vizinhos interessados
na aula, as crianças frequentavam a casa dessa família com o propósito de
estudar, e cada pai contribuía, pagando o professor de acordo com o
número de filhos.
Parecia haver colaboração entre famílias, vizinhos, patrões e
empregados na forma de “gerenciar” o ensino. Isso é observado nas
memórias do Seu Doti quando conta sobre o acesso das pessoas da região
ao estudo: “[...] também tinham a oportunidades de estudar, aprender o
ABC, como eles diziam. Então aprendiam a desenhar o nome e tal. Lado
onde passou professor na época, as pessoas, branco, moreno, mulheres,
tudo aprenderam a escrever” (Seu Doti, entrevista, 1995). Ao encontro
disso, disse Dona Emília: “Não tinha colégio, meu marido justava um
professor em casa e juntava os vizinhos para dividir as despesas” (Dona
Emília, entrevista, 1993).

A Região Colonial Italiana e as escolas étnico-comunitárias

Uma das características das duas regiões estudadas está relacionada


ao aspecto geográfico, no que diz respeito à distância dos distritos com

11
“Aula”, ou “aula avulsa”, na região dos CCS, é uma expressão encontrada nos registros do Arquivo Público do RS
para designar um espaço de uma sala no qual há a designação de um professor pago pelo estado ou município.
12
Livro de Registros de decretos governativos municipais D-L-01, 1925 a 1940 (cidade de Bom Jesus).
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 101

relação à sede do município – na RCI, Caxias do Sul, e na RCCS, Bom Jesus


–, e deste com os centros maiores, às estradas sem pavimentação e ao
clima frio no inverno. Essas características são fatores determinantes, em
alguns casos, nas práticas adotadas em relação à educação.
As longas distâncias – tendo-se em conta a época pesquisada –,
acrescidas de estradas precárias e da carência de meios de transporte,
dificultavam o acesso à escola por parte das crianças de algumas
comunidades. Esse aspecto nos remete a uma problematização central:
como, nas primeiras décadas do século XX, com os obstáculos agudizados
por falta de professores, dificuldades financeiras e localização geográfica –
além de práticas familiares e necessidades individuais –, desenvolviam-se
as possibilidades de estudar? Para refletir sobre essa questão, diferentes
fatores se interligam, caracterizando a história da educação de modo a dar
a ver o lugar e a importância conferida ao estudo13 nas comunidades rurais
das duas regiões analisadas.
De acordo com Kreutz (2000), nos estados com número expressivo
de imigrantes, como é o caso do Rio Grande do Sul, a falta de escolas
públicas foi suprida em regiões de colonização homogênea pelas escolas
étnicas; assim, poucas escolas havia no estado, excetuando-se, talvez, as
que existiam nessas regiões.
No Brasil, nas regiões de imigração alemã, até o ano de 1939, havia
1579 escolas étnico-comunitárias, seguidas pelas regiões de imigração
italiana, que, no mesmo período, contavam com um número de 396
escolas. Kreutz (2000) estima que, no Rio Grande do Sul, as escolas étnico-
comunitárias alemãs totalizavam aproximadamente 1200. Quanto às
italianas, segundo Luchese, não é possível ter um número aproximado em
função de sua efemeridade. A história das escolas, nos anos finais do século
XIX e nas três primeiras décadas do século XX, no Rio Grande do Sul, está,
portanto, articulada, entre outros fatores, à vinda de imigrantes e à
formação das colônias na serra gaúcha.

13
A palavra “estudo” é empregada em detrimento do termo escolarização, ou educação, por ser essa a palavra utili-
zada nos depoimentos.
102 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Na análise do contexto da escolarização na RCI, os documentos orais


do acervo do ECIRS14 indicaram algumas especificidades das escolas
étnicas presentes na zona rural da RCI. As memórias analisadas foram dos
professores: Rosa Meneguetti Bovo15, Lídia Lamper de Freitas, Ludvina
Sirtole Tisott, Catarina Rosa Piva Foppa, Dorotéia Rizzon Corte, Marina
Bridi Moretto e Nair Menegotto Pedreira Grandi, que lecionaram na RCI
entre as décadas de 1910 e 1940.
As primeiras informações dizem respeito a Rosa Meneguetti Bovo,
que, em suas memórias, traça o cenário de um país necessitado de
“alguém” que cumprisse o papel de professor. Ela nasceu na Itália e chegou
ao Brasil 1908. Dona Rosa ficou somente um ano em São Paulo; depois se
mudou para Caxias. Ela e o marido foram contratados pelo intendente
para lecionar na escola de San Giacomo, onde permaneceram por um ano.
“Depois de San Giacomo me demitiram” (Dona Rosa, entrevista, 1980).
Fazendo referência ao conteúdo escolar, recorda: “Primeiro de tudo eu
começava a alfabetizar, [...] depois vinham aqueles livros que chegavam,
belos e ilustrados. Começava com a base alfabética e alfabetizava [...] O
meu lema era ‘sou italiana’ mas censuraram essa frase aqui” (Dona Rosa,
entrevista, 1980).
Segundo Luchese (2007), até meados da década de 1930, ainda se
encontrava, nas escolas étnico-comunitárias na RCI, material didático
vindo da Itália, o que indica ser o que foi utilizado por Rosa. Tal recurso
era custeado pelo governo italiano para fins de difundir os ideais
patrióticos característicos do Fascismo de Mussolini.
Por sua vez, Dona Lídia iniciou seus estudos em uma escola na cidade
de Montenegro; ingressou na carreira do magistério em 1921; e relata que

14
“Elementos Culturais das Antigas Colônias Italianas da Região Nordeste do Rio Grande do Sul/ECIRS”, desenvol-
vido desde o ano de 1982 com suporte institucional da Universidade de Caxias do Sul. O projeto, que completou 25
anos em 2007, focaliza o universo rural das Antigas Colônias, que atualmente correspondem a mais de uma dezena
de municípios. Em sua trajetória, o Projeto inventariou elementos de diferentes segmentos, como arquitetura, cultura
material, usos e costumes, literatura oral e aspectos relacionados à educação, nos municípios originários das Antigas
Colônias.
15
O original dessa entrevista está no dialeto italiano próprio da Região; foi transcrito para o arquivo também em
dialeto italiano e traduzido para esta pesquisa.
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 103

“[...] a prefeitura resolveu também fazer os concursos. Então eu aprovei,


estava... já tinha tirado a 6ª série, e aprovei, fiz o concurso e passei muito
bem. Aí me nomearam em Arroio Canoas [...] fiz até a 6ª série, mas eu
continuei sempre estudando nas férias” (Dona Lídia, entrevista, 1987).
A senhora Ludvina iniciou seus estudos com 11 anos; e entrou na
escola por volta de 1923. Segundo seu relato, sua carreira no magistério
iniciou aos 15 anos; após ter frequentado a escola por cinco anos, foi
indicada pelo intendente da época, o senhor Celeste Gobato15. Fez um
exame para iniciar a carreira; no entanto, só pôde lecionar “provisório”,
pois não tinha a idade mínima necessária – nesse caso, dezoito anos.
Lecionou em duas escolas na localidade de São João, 4º Légua, colônia 22,
e no Travessão Tirolês, colônia 17, em duas escolas municipais. Morava na
casa dos colonos e priorizava o ensino do catecismo.
Dona Catarina iniciou seus estudos em Garibaldi, aprendendo o
catecismo por volta de 1917, com aproximadamente sete anos, com uma
professora que ensinava no colégio das irmãs. Para ingressar na carreira
do magistério, em 1929, submeteu-se a um exame: “mandaram fazer uma
redação, depois fizeram umas perguntas, também de gramática e aí então
mandou fazer umas continhas e só”. Iniciou a careira na Boa Vista; residia
em uma casa de família, porque não queria morar sozinha na “aula”.
Posteriormente, foi lecionar na Escola Coronel Pilar, também morando na
casa de pessoas da comunidade.
Dona Dorotéia relata que ingressou na escola com cinco anos e meio,
em 1925. A escola era no Tuiutí; a professora se chamava Marcolina
Zacaron; e ensinavam em italiano “[...] porque ninguém entendia nada”
(Dona Dorotéia, entrevista, 1986). Explica que falavam italiano em casa e
na escola também, “porque nós não entendia, depois então que nós fomos
nos adaptando aos pouquinhos, o professor explicava e a gente ia...” (Dona
Dorotéia, entrevista, 1986). Iniciou sua carreira lecionando de forma
particular em 1932, auxiliando outra professora, a senhora Marcolina
Barcaron, em uma escola municipal. Os pais pagavam a ela 200 réis; na
época, estava com treze anos. Um tempo depois, fez concurso e foi
104 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

nomeada pelo prefeito Miguel Muratori, mas não pôde assumir, pois tinha
somente quinze anos – a idade mínima era dezoito anos.
Com relação aos seus primeiros anos de escolarização, dona Marina
Bridi Moretto conta que começou a frequentar a escola em São Virgílio,
com aproximadamente sete anos, por volta de 1933. A instituição se
chamava Escola São Virgílio. Pelos seus relatos, há indícios de que era uma
instituição municipal; ela afirma que “os professores acho que eram pagos
pelo município, mas a escola em si era da comunidade” (Dona Marina,
entrevista, 1986). Começou a lecionar em 1940 na Linha Barro
Experimental, em uma escola da paróquia, com os professores pagos pela
prefeitura. Era, segundo suas memórias, uma região de colonização alemã;
porém, a família com quem morava era de italianos, assim como ela.
Lembra que “[...] o resto, das crianças, só falavam em alemão. Eu não
entendia nada e eles tão pouco me entendiam. Então na época eu só
ensinava a tabuada, a ler e escrever, outras coisas não havia possibilidade”
(Dona Marina, entrevista, 1986). Ficou um ano nessa escola e, em abril de
1941, foi para a escola Tomé de Sousa, no Travessão Carlos Gomes.
O início da escolarização da senhora Nair Menegotto se deu aos seis
anos; fez até a 5º série em um Grupo Escolar – não fica claro, mas parece
ser em Bento Gonçalves. Prestou concurso para iniciar a carreira do
magistério por volta de 1943: “quando fiz aquele concurso que tirei o
primeiro lugar, aí me deram prá mim escolher e fui lecionar na Linha
Gumercindo, a escola era São Paulo” (Dona Nair, entrevista, 1988). Mais
tarde, fez cursos de aperfeiçoamento.
Observa-se, por meio dos relatos dos professores, que havia, tanto no
período em que estudaram, anterior a 1920, como durante o período em
que lecionaram, de 1920 a 1940, a presença de escolas na RCI, indicando
que, mesmo em meio à precariedade e com poucos recursos, a instrução
era feita em um espaço escolar, com instalações nem sempre específicas,
porém utilizadas para esse fim. Das sete professoras entrevistadas, já na
década de 1920, cinco mencionam a realização de concurso para o ingresso
no magistério. Os concursos, segundo Luchese (2008) e Grazziotin
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 105

(2008), consistiam em pouco mais que uma verificação de que o sujeito


sabia ler e escrever.
Observa-se que, dos entrevistados da RCI que exerceram a docência
entre os anos de 1910 e 1940, todas eram mulheres. Na RCCS, não se
observa o mesmo: tanto nos relatos como nos documentos oficiais dessa
região, há a predominância de homens, sobretudo até a década de 1920.

O nordeste do Rio Grande do Sul: aproximações e diferenças entre a


Região Colonial Italiana e os Campos de Cima da Serra

Ainda que estejam próximos geograficamente – aproximadamente


150 km de distância uma da outra –, a RCCS e a RCI apresentam
aproximações nas práticas de escolarização em alguns aspectos, e
características distintas em outros.
O município de Bom Jesus, na RCCS, também se encontra próximo a
algumas das regiões de imigração alemã no RS, como Três Forquilhas e
Taquara, porém não recebeu diretamente esses imigrantes. Para Bom
Jesus, migraram, em período posterior, descendentes de italianos e
alemães que se misturaram aos luso-brasileiros que ali já se encontravam,
não formando as colônias homogêneas observadas em outras regiões, o
que pode ter lhe conferido práticas distintas de escolarização quando
comparada à educação nas colônias italianas estudadas.
Assim, contrariamente ao observado nos trabalhos de Werle (2005)
e Kreutz (2000), não se percebe que a forma de contornar o problema da
escolarização tenha sido por meio da implantação de escolas comunitárias,
nem de uma nem de outra etnia, mesmo sendo o ensino público precário
e deficiente. As práticas observadas na RCCS dizem respeito, em sua
maioria, à forma de escolarização que eu denominei de “aulas
domiciliares”.
NA RCCS, a precariedade na formação dos professores é percebida
em alguns casos; essa afirmação se constata nas seguintes lembranças:
“Pra fazer o ‘Admissão’ nós justava um professor mais sabido”; “A minha
106 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

mãe não tinha tempo de nos dar aula, então ela ficava bordando, fazendo
o serviço e explicava para o professor e ele nos dava aula. Hoje, quando
penso no professor, ele não tinha as mínimas condições”. Ambos os
depoimentos remontam mais ou menos à década de 1940.
Os professores, na maioria homens, em muitos casos, provinham de
municípios vizinhos do estado de Santa Catarina, como Araranguá e São
Joaquim, que fazem fronteira com a região estudada; eles não tinham
formação para o exercício da docência. O mesmo pode ser percebido na
RCI, onde a precariedade é observada no grau de escolarização dos
professores – média de cinco anos. Nessa região, no entanto, os
professores eram em sua maioria mulheres moradoras da própria colônia.
Uma pergunta que surge no decorrer da pesquisa é: como se media
o grau de escolarização para enquadrar os alunos no ensino regular, visto
que, nas “aulas domiciliares”, isso não ficava definido? Segundo o relato
de Dona Lili, o exame realizado para avaliar o nível de conhecimento do
aluno era o que o enquadraria na série correspondente ao seu
desempenho. O depoimento da professora Lucila corrobora essa prática,
ilustrando um fato específico de sua vida que, penso, poderia ocorrer com
certa frequência com relação a alunos que iniciaram seus estudos fora da
instituição escolar.

[...] teve umas situações bem engraçadas, todo mês tinha sabatina, eu não ti-
nha a mínima idéia o que era isso [...] Chegou o dia da tal sabatina... a
professora ditou, primeira questão, e eu: como professora? A palavra mais pa-
recida que eu conhecia era cristão, então coloquei 1º cristão. 2º cristão [..]
terminada a prova a irmã chamou minha tia - que eu morava com ela - para
me remover para a 1º série. Aí minha tia e minha prima que já estava no 3º
ano do ginásio me ensinaram. Minha tia pediu pra irmã me deixar ficar mais
um pouco para ver se eu acompanhava [...] aí eu aprendi. Naquele ano mesmo
eu fui promovida pra 4º série e elas acharam que eu tinha condições de fazer
o admissão no fim do ano, mas meu pai foi sábio, disse: essa guria tá muito
fraca, pode não acompanhar o ginásio. Aí eu ganhei o ensino regular [...] fiz o
ginásio em Antônio Prado parando na casa da minha Bisavó e de uma tia (Lu-
cila, entrevista, 2004).
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 107

As memórias analisadas apontam diferentes aspectos surgidos em


decorrência da necessidade de educação formal – questões comuns a uma
determinada época, porém, um tanto distintas quando se comparam as
duas regiões de abrangência da pesquisa. Como aspectos comuns, pode-se
indicar, entre outros, a prática de morar com familiares longe de casa, a
falta de qualificação dos docentes, as dificuldades de enquadramento no
ensino regular, as longas distâncias e a precariedade de acesso que separa
a zona rural da sede dos municípios.
O hábito de morar com parentes ou conhecidos, ou com pais dos
alunos, é relatado nas duas regiões. Na RCCS, isso é corroborado por dona
Maria dos Prazeres, que “parou na casa do Seu Francisco Spinelli”; pela
professora Lucila, que foi morar em Antônio Prado com a “nona16” e uma
tia solteira; e por Dona Júlia, que morava com as próprias professoras, no
caso, as Irmãs Ramos. Na RCI, Dona Ludvina morava com os colonos;
Dona Catarina morava “em casa de família”; e Dona Marina Bridi Moretto,
que lecionava em uma região de colonização predominantemente alemã,
morava com uma família de italianos. As entrevistadas não comentam
sobre ter de pagar alguma importância pela hospedagem – nem alunos,
nem professores. Isso parece ser aquele exemplo de solidariedade
compartilhada, prática que diz respeito, talvez, à cultura da região. Assim,
a prática de “parar”17 com alguém para estudar ou lecionar parece ter sido,
em função das distâncias, das dificuldades financeiras e da inexistência de
escolas para continuação dos estudos, uma necessidade e uma alternativa.
No processo de sistematização da educação analisado, emergem
formas específicas de ensino, práticas singulares às culturas do lugar,
mesclando-se na zona rural, no mesmo espaço temporal, as aulas
domiciliares, com professores pagos pelos pais, e as pequenas escolas,
mantidas pela comunidade. Essas práticas, no meu entendimento,
constituem uma cultura escolar, conceito com o qual opero e que foi
introduzido no âmbito histórico-educativo por historiadores, em sua
maioria europeus, na segunda metade da década de 1990. Desde então,
esse conceito vem sendo regiamente utilizado sempre que se tenciona
108 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

definir o conjunto formado pelas práticas escolares, as regras, os


comportamentos, enfim, as formas de viver o ambiente escolar e/ou fazer
parte dele (GRAZZIOTIN, 2019).
A cultura escolar identificada nas duas regiões está vinculada a “um
conjunto de ideias, princípios, normas, pautas, rituais, inércias, hábitos e
práticas” (VIÑAO FRAGO, 2006, p. 73). São as maneiras de agir e de
pensar, as mentalidades e os comportamentos produzidos e sedimentados
que, ao longo do tempo, tornaram-se tradições, constituíram-se em
regularidades, em regras seguidas e não questionadas. São, de fato,
práticas compartilhadas por seus atores no processo educativo (VIÑAO
FRAGO, 2006).
A especificidade está no vivido, na experiência de vida de cada sujeito
que rememora. A universalidade está nos pontos de contato entre essas e
outras memórias, outras culturas, nas práticas adotadas, nas formas de
contornar os problemas relativos à educação que, ao longo do tempo,
instituíram-se, permanecendo durante décadas em diferentes espaços.
Diferentes aspectos demarcam diferenças e/ou semelhanças, funcionando
como dispositivo discursivo para determinar particularidades regionais ou
identificações com um contexto maior (BASTOS, 2009).
A análise circunscrita na perspectiva desta pesquisa, que priorizou a
metodologia da História Oral, trabalhando com memórias já arquivadas e
não produzidas por mim, vislumbrou a educação em uma região
determinada; mas considero que forma parte de um todo, permitindo a
construção do mosaico da história da educação não só gaúcha, mas ao
nível nacional.

Referências

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uma mediação para a escrita da História da Educação. In: MENDONÇA, Ana Waleska
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Municipais de Bom Jesus – D-L-01 (1925-1940).
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin | 111

Arquivo histórico do Rio Grande do Sul. Livro de Contratos do Município de Vacaria (1909-
1941).

Arquivo Municipal de Bom Jesus. Acervo de Memória Oral (1990-2004). Arquivo do Projeto
ECIRS. Transcrições do Acervo de Memória Oral.
5

História oral e narrativas biográficas no estudo da


trajetória do marmorista italiano Leone Lonardi

Regina Zimmermann Guilherme 1

Neste trabalho pretendo demostrar como utilizei as metodologias de


História Oral, de José Carlos Sebe Bom Meihy e Narrativas Biográficas, de
Gabriele Rosenthal no desenvolvimento da minha dissertação de mes-
trado. Para tanto, inicialmente, apresento algumas considerações sobre
tais métodos, passando em seguida para a apresentação dos objetivos da
pesquisa, assim como de algumas questões teóricas e metodológicas que
permearam o meu trabalho. Na sequência, apresento as contribuições das
entrevistas, expondo trechos e resultados retirados dos depoimentos. Para
as interpretações foram utilizados os métodos de análise de conteúdo, de
Roque Moraes e também de Narrativas Biográficas de Rosenthal, além das
reflexões sobre memória de Michael Polak, Maurice Halbwachs e Paul
Thompson.
As entrevistas realizadas com Julio Lonardi, filho do marmorista que
é o meu principal objeto de pesquisas, Leone Lonardi, seguiram as diretri-
zes de Bom Meihy, entretanto não foi possível utilizar o modelo de
“entrevista aberta”, em função da necessidade de buscar respostas para
uma série de questões que emergiram da documentação escrita, especial-
mente, livros caixas e livros pontos da Marmoraria Lonardi & Teixeira. A
primeira entrevista gerou uma série de questionamentos que serviram
como ponto de partida para a primeira busca no corpus documental. As

1
Licenciada em História pela PUCRS. Mestre em História pela PUCRS.
Regina Zimmermann Guilherme | 113

análises prévias dessa documentação, por sua vez, geraram um questioná-


rio de mais de cinquenta questões a respeito da rede de relacionamentos
de Leone Lonardi.
A entrevista com Renzo Biondani, sobrinho de Pedro Biondani -
amigo de Leone Lonardi que o convidou para migrar para Porto Alegre –
resultou de um experimento de utilização da técnica de Narrativas Biográ-
ficas da socióloga alemã Gabriele Rosenthal, que propõe um novo modelo
de entrevistas e de interpretação. Após algumas experiências com o mé-
todo, concluí que esse oferece excelentes resultados na realização de
depoimentos autobiográficos. Porém, no que tange à interpretação, a me-
todologia de Rosenthal é mais adequada aos trabalhos realizados com
entrevistas em série, que, por sua vez, são mais recorrentes na Sociologia
do que na História.
Sendo bastante atual a metodologia de Narrativas Biográficas, consi-
dero importante apresentar aqui alguns de seus pressupostos. Rosenthal
procura fundamentar teoricamente suas escolhas pelos próprios procedi-
mentos adotados na produção e análise dos dados, ou seja, a teoria emerge
da pesquisa e da análise dos dados pesquisados. O método para a condução
da entrevista visa narrativas biográficas produzidas pelos próprios entre-
vistados, sendo que a interferência do entrevistador deve ser a mínima
possível. O primeiro item a ser seguido no método de condução das entre-
vistas de Rosenthal é que a entrevista deve ser aberta. O entrevistador não
apresenta um questionário ao entrevistado ou estrutura a entrevista de
antemão, apenas anuncia o tema da pesquisa e solicita que o entrevistado
conte toda a sua história de vida, desde os seus pais. Para Rosenthal (2014,
p. 171), a entrevista deve ser aberta a fim de “evidenciar os processos inte-
rativos da produção de significado e de conhecimento”. O “princípio de
abertura” oferece ao autobiografado “espaço para o desenvolvimento da
Gestalt” (ROSENTHAL, 2017, p. 251). Além disso, a autora considera que
a história da família é de suma importância para entender a história do
indivíduo, evitando que o relato se restrinja ao eixo temático.
114 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Tanto em Narrativas Biográficas quanto na História Oral, estímulos


podem ser utilizados no decorrer da entrevista, como esboçar um “sim”,
por exemplo. Rosenthal (2017, p. 242) orienta que o entrevistador proceda
a uma escuta atenta e ativa, oferecendo apoio não verbal, sobretudo por
meio de gestos, contato visual e postura corporal. Desta forma, o entrevis-
tador demonstra seu interesse pelo relato do entrevistado. Eis que
Rosenthal traz uma novidade que considero uma das maiores contribui-
ções no que se refere ao método da entrevista: o entrevistador, em
constante atenção ao entrevistado, deve anotar os tópicos da sequência te-
mática espontaneamente proposta pelo entrevistado, respeitando
mudanças repentinas de assunto e de ritmo. A estruturação do fluxo dos
relatos do entrevistado deve ser respeitada. Desta forma, o fluxo de me-
mória não será interrompido. O principal objetivo deste procedimento é
obter relatos mais longos, formulados autonomamente sobre histórias de
vida ou a respeito de determinada temática. Os tópicos anotados constitui-
rão o roteiro para a segunda fase da entrevista, que deve se iniciar após o
entrevistado sinalizar o término de sua narrativa.
Esta segunda fase, é a fase de perguntas e estas devem levar em conta
os códigos linguísticos do entrevistado (deve ser anotado tal como o entre-
vistado falou) e a sequência da narrativa. Nesta fase, haverá o
desdobramento dos temas apontados como importantes pelo entrevistado,
confirmando passagens do relato ou aprofundando algum assunto tratado.
Se, porventura, o tema principal da pesquisa não for mencionado, na úl-
tima fase da entrevista o entrevistador poderá propor relatos sobre
aspectos até então não mencionados, mas que podem ser de seu interesse.
Para a transcrição da entrevista, Rosenthal estabelece que esta deva ser
completa e de acordo com sua forma audível, ou seja, o mais fielmente
possível, reproduzindo erros linguísticos, sotaques e os mais diversos sons
produzidos pelo entrevistado, como tosse, suspiros etc. Para representar
estes sons, assim como os silêncios, interrupções, ênfases, etc., a autora
oferece uma série de sinais de transcrição (ROSENTHAL, 2017, p. 293).
Regina Zimmermann Guilherme | 115

O objetivo da minha pesquisa de mestrado foi entender o universo


dos imigrantes qualificados que foram partícipes do desenvolvimento ur-
bano ocorrido em Porto Alegre desde o final do século XIX, através da
análise da trajetória do marmorista italiano Leone Domenico Lonardi e dos
seus diversos contextos, espaciais e temporais. Mais especificamente, bus-
quei analisar a dinâmica do processo imigratório urbano no início do
século XX, na perspectiva da imigração qualificada; contextualizando a tra-
jetória de Leone Lonardi - a partir da bibliografia, da sua documentação
pessoal, dos jornais e de relatos - entre os imigrantes italianos, os marmo-
ristas e a cidade de Porto Alegre, no período estudado; examinando as
peculiaridades relacionadas à mobilidade do imigrante qualificado, princi-
palmente dos marmoristas italianos; avaliando como se constituíram e
funcionaram as redes sociais estabelecidas por Leone Lonardi, bem como
a forma de organização social e de identificação étnica dos marmoristas
italianos; assim como, identificando as atividades transnacionais de Leone
Lonardi e dos marmoristas italianos estabelecidos em Porto Alegre.
Pesquisas anteriores evidenciaram que sólidas redes, baseadas na
proteção e na solidariedade, deram origem a uma verdadeira cadeia de
imigração “espontânea”. Neste grupo, entre comerciantes, operários e ou-
tros imigrantes urbanos, estão incluídos os imigrantes qualificados, que
não estavam ligados aos programas imigratórios do governo. Imigrantes
anteriores forneciam informações a respeito das dificuldades e das opor-
tunidades no local de destino. As redes de sociabilidade tiveram um
importante papel nos fluxos imigratórios, tanto na sociedade de origem,
quanto na sociedade receptora.
Baseada na micro-história italiana que mostra que o estudo das redes
sociais possibilita o entendimento de um universo maior, relacionado aos
diversos contextos, espaciais e temporais, nos quais os indivíduos se inse-
rem, optei por estudar a trajetória de Lonardi como marmorista e como
imigrante, a partir de suas redes de relacionamento. Assim, o estudo da
trajetória do marmorista italiano Leone Domenico Lonardi surgiu como
pretexto para um estudo mais amplo, acreditando que o entendimento da
116 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

atuação dos marmoristas italianos no processo do desenvolvimento ur-


bano de Porto Alegre poderá revelar questões sobre importantes aspectos
relacionados à imigração qualificada, como: a mobilidade, as redes de so-
ciabilidade que sustentaram cadeias migratórias e o transnacionalismo
produzido por elas.
Considerando Leone Lonardi como representativo de um grupo, re-
laciono sua trajetória a de indivíduos presentes em seus diversos
contextos, a partir de sua rede de sociabilidade e da teia de acontecimentos
em que estiveram envolvidos. Assim, procurei reconstruir a rede de soci-
abilidade de Leone Lonardi, realizando uma busca por nomes em diversas
fontes, como: livros caixas e livro ponto da empresa, jornais, almanaques,
inventários e outros documentos.
A partir deste primeiro levantamento de nomes, busquei novas fontes
em arquivos públicos e hemerotecas – físicos e digitais –, sites de genealo-
gias e entrevistas. A teia começava a se “desenhar” na medida em que
avançava a pesquisa. Novos nomes surgiam e, com eles, novos questiona-
mentos. A construção das trajetórias de cada um dos envolvidos nesta teia
– marmoristas, artesãos, construtores, arquitetos e engenheiros – recons-
truía, pouco a pouco, o panorama da urbanização de Porto Alegre. Por isso,
considero que o estudo das redes de sociabilidade de um indivíduo, além
do aporte teórico que o envolve, constitui-se em um método de pesquisas,
na medida em que fornece o fio condutor para a pesquisa e o elo entre as
fontes.
A realização de um trabalho sistemático de categorização das fontes,
durante todo o período de coleta de dados, facilitou significativamente a
redação do texto final, na medida em que a partir das categorias estabele-
cidas a priori foi possível produzir textos sínteses com as observações e
interpretações referentes àqueles conjuntos de fontes. Além disso, a cons-
tante observação da documentação possibilitou a imersão de novos
questionamentos que deram origem a novas buscas. Muitas destas ques-
tões foram resolvidas a partir dos depoimentos orais.
Regina Zimmermann Guilherme | 117

O marmorista italiano Leone Domenico Lonardi, nascido em Fu-


mane, Verona, Itália, em 16 de junho de 1896, chegou a Porto Alegre em
novembro de 1927, trazendo consigo uma importante bagagem técnica.
Iniciou sua formação aos 14 anos de idade na Academia de Pintura e Es-
cultura de Verona. Produziu vários trabalhos em seu país e trabalhou nos
Estados Unidos por dois anos. Até onde se sabe, ele foi o último de uma
série de marmoristas italianos que chegaram e se estabeleceram nesta ca-
pital. Assim como aos marmoristas, desde o século XIX, Porto Alegre
acolhe arquitetos, engenheiros, construtores e muitos outros imigrantes
qualificados. A qualificação profissional era o elemento principal para a
colocação destes imigrantes no mercado de trabalho dos pequenos centros
do país, que viviam um acelerado crescimento urbano. Analisar a trajetória
de Leone Lonardi e observar o seu pequeno universo poderá nos ajudar a
entender melhor o mundo destes imigrantes qualificados, as questões que
envolveram o evento imigratório, suas formas de inserção na nova socie-
dade, suas dificuldades enfrentadas e as soluções encontradas.
A trajetória de Leone Lonardi é importante para mostrar um contexto
mais amplo no qual ele está inserido, mais especificamente dos marmoris-
tas italianos e dos imigrantes qualificados chegados a Porto Alegre no
início do século XX. Este contexto está relacionado às atividades dos co-
merciantes, artistas, artesãos e operários que contribuíram para a
construção da capital. O termo “imigração qualificada” trata daqueles imi-
grantes, geralmente, com formação técnica ou superior que procuravam
os centros urbanos em expansão econômica e carentes de profissionais es-
pecializados nas mais diversas áreas.
Os marmoristas italianos traziam a qualificação profissional em suas
“bagagens”. A longa tradição artística italiana, que no período do Renasci-
mento teve um crescimento impar, deu origem às inúmeras escolas de
Belas Artes que formaram verdadeiras legiões de pintores e escultores que
difundiram a cultura artística italiana por todo o mundo ocidental. Muitos
dos marmoristas que aqui chegaram frequentaram escolas superiores de
Belas Artes na Itália, se especializando em escultura, modelagem e
118 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

desenho. Outros frequentavam escolas profissionais, tendo uma formação


de nível técnico, como canteiros, por exemplo, que se encarregavam dos
primeiros cortes e desbaste da pedra bruta, quando o Brasil não contava
com escolas que oferecessem esta formação. Em muitos casos, imigrantes
qualificados foram protagonistas da abertura de novas escolas superiores
ou profissionais, no Brasil. Além dos imigrantes com formação superior
ou técnica, vieram também muitos artesãos com conhecimento prático,
aprendido nas oficinas que sempre mantiveram a tradição mestre-apren-
diz, surgida nas guildas.
Leone Domenico Lonardi se acostumou desde cedo à vida longe da
casa dos pais. Em 1910, aos catorze anos de idade ingressou na Academia
de Pintura e Escultura de Verona, a Escola Brenzoni. Como sua família
vivia na comuna de Fumane, cerca de 20 km do centro de Verona, Leone
ficava em uma pensão durante o período letivo. Leone concluiu seus estu-
dos em 1915, com menção honrosa.2 Em 1916, aos 20 anos, foi convocado
pelo exército e enviado para a região dos Alpes, em virtude da Primeira
Guerra Mundial. Quando a guerra acabou, ele permaneceu nos campos,
por um ano, recolhendo armas e metais. Ao retornar para a sua cidade, foi
convidado a esculpir monumentos aos mortos de guerra, entre outros tra-
balhos, em Fumane e outras comunas de Verona.
Logo após ficar noivo de Maria Carolina Beghini, em 30 de dezembro
de 1923, Leone partiu para os Estados Unidos, saindo do porto de Gênova,
aos 27 anos de idade, no navio Conte Verde, tendo seu irmão Luís (Luigi),
como contato de chegada, conforme consta em seu registro de entrada na
Ellis Island, Nova York, EUA 3. Leone chegou à Ellis Island, na cidade de
Nova York, em 11 de janeiro de 19244. Segundo depoimento de seu filho
Julio, buscava a oportunidade de ganhar mais dinheiro5. O imigrante

2
Segundo consta em seu diploma.
3
Disponível em: <https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:JN8V-GJQ>
4
Registro de chegada de Leone Lonardi à Nova York. In: Site familysearch. Disponível em: <https://www.familyse-
arch.org/ark:/61903/3:1:3Q9M-C9T9-HDDB?i=161&cc=1368704>
5
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 2.
Regina Zimmermann Guilherme | 119

qualificado está sempre em busca de melhores oportunidades. E a qualifi-


cação profissional sempre foi um fator facilitador para a imigração. Alguns
historiadores consideram que a mobilidade faz parte da cultura italiana,
que seria uma tradição, principalmente no que se refere à elite intelectual
e ao profissional qualificado.
Um movimento em cadeia, tal como define Truzzi (2008, p. 209), é
observado no caso de Leone Lonardi que foi para os Estados Unidos ao
encontro do irmão Luigi que lá estava havia cerca de dezenove anos6, e
naquele momento trabalhava na cidade de Nova Iorque, como portuário7.
No site MyHeritage se encontra uma fotografia de Leone Lonardi junto ao
irmão Luigi. Considerando que Luigi migrou para os EUA em 1907,
quando Leone tinha apenas 12 anos, e viveu lá até seu falecimento, aos 80
anos de idade, podemos concluir que esta foto foi feita no período em que
Leone esteve naquele país, entre 1924 e 1925.
Segundo depoimento de Julio Lonardi, filho de Leone Lonardi, a vida
boemia do irmão não agradou seu pai que decidiu seguir para a Filadélfia,
onde se instalou na residência de membros da colônia italiana daquela ci-
dade e trabalhou esculpindo capitéis de colunas em prédios bancários.8
Leone pretendia ligar sua noiva italiana a esta corrente migratória. Se-
gundo seu filho Julio, pretendia retornar aos Estados Unidos, com sua
esposa, logo após o casamento.9 Entretanto, foi impedido de retornar, de-
vido às restrições à imigração impostas pelo governo daquele país. No
Emergency Immigration Restriction Act de 1921, que foram mantidas no
Immigration Act de 1924 (SILVA, 2013, p. 12), foi introduzida uma medida
para criar cotas de imigração que foram fixadas em três por cento da po-
pulação total de nascidos no exterior de cada nacionalidade nos Estados

6
Conforme registro de imigração de Luigi Lonardi. In: Site familysearch. Disponível em: <https://familyse-
arch.org/ark:/61903/3:1:3Q9M-C95S-YCC9?cc=1368704>
7
É possível concluir que a fotografia de Leone Lonardi junto ao irmão Luigi (Figura 28), encontrada no site MyHe-
ritage foi feita no período em que Leone esteve nos EUA, entre 1924 e 1925, considerando que Luigi migrou para
aquele país em 1907, quando Leone tinha apenas 12 anos, e viveu lá até seu falecimento, aos 80 anos de idade.
8
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 22.
9
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 3.
120 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Unidos10. Por isso, passados menos de dois anos, em 14 de outubro de 1925,


Leone retornou para a Itália para se casar com Maria Beghini que ficara a
sua espera, segundo conta seu filho Julio:

Voltou para casar. A minha mãe, era... Cinco irmãs e um irmão... Ela estava
cortando o cabelo do irmão que tinha uns 16 anos, quando disseram: “O Leone
chegou, está na estação de trem de Verona”. Na central ferroviária de Verona.
Ela largou a tesoura. Ela sabia que ele iria voltar dos Estados Unidos. Mas pen-
sava que ele ainda estava em Gênova. O porto de Gênova. Já tinha pegado o
trem e já estava em Verona. Aí, ele casou com ela. Os Estados Unidos tinha
restrição de imigração. Se não, ele tinha voltado com a minha mãe.11

De volta à Itália, Leone trabalhou em um monumento aos mortos em


Badia Calavena, em Verona, entre 1925 e 192612. Neste período, fez ami-
zade com um jovem chamado Pietro Biondani13, que trabalhava na
construção de uma estrada de ferro próxima dali. Pietro contou a Leone
que havia estado em Porto Alegre e planejava retornar, pois lá estava noivo
da filha de um grande construtor italiano e, então, convidou Leone para
acompanhá-lo. No dia 7 de maio de 1926, Leone Domenico Lonardi se
casou com Maria Carolina Beghini.
O casamento impedia o jovem casal Lonardi de migrar para os Esta-
dos Unidos, e talvez por isso Leone tenha decidido ceder ao convite do
amigo Pietro. Assim, o casal saiu do porto de Gênova, no dia 17 de novem-
bro de 1927, a bordo do Navio Conte Verde, viajando na segunda classe do
mesmo navio em que, na primeira classe, viajava o Conde Francisco Ma-
tarazzo com mais cinco membros da sua família que também embarcaram
em Gênova e desembarcam no Porto de Santos, segundo consta na lista de

10
In: Office of the Historian. Disponível em: https://history.state.gov/milestones/1921-1936/immigration-act
11
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 03.
12
Disponível em: <http://www.catalogo.beniculturali.it/si-
gecSSU_FE/dettaglioScheda.action?keycode=ICCD11160482&valoreRicerca=&titoloScheda=monumento%20ai%2
0caduti&stringBeneCategoria=&selezioneSchede=&contenitore=&flagFisicoGiuridico>
13
Nos registros do Brasil o nome aparece abrasileirado, Pedro Biondani.
Regina Zimmermann Guilherme | 121

passageiros do referido navio. Os Lonardi seguiram viagem e chegaram a


Porto Alegre em 29 de novembro de 1927.
Desde a primeira experiência imigratória de Leone, para os Estados
Unidos, o apoio das redes sociais fica evidenciado. Leone Lonardi foi ao
encontro de seu irmão Luigi, que apesar de não ter a mesma profissão
poderia oferecer informações a respeito do “Novo Mundo” e fornecer con-
tatos que poderiam apontar locais de alojamento e referências para
emprego. Segundo depoimento de Julio Lonardi, ao surgir uma oportuni-
dade de trabalho na Filadélfia, para produzir capitéis para colunas de
grandes bancos, Leone se instalou junto à colônia italiana daquela cidade.
Segundo depoimentos orais, a ideia da imigração de Leone Lonardi
para o Brasil surgiu de conversas que este teve com seu novo amigo Pietro
Biondani, em sua cidade, Fumane, em 1927. Os fragmentos dos diálogos
entre Pietro e Leone são memórias herdadas pelo filho de Leone, Julio Lo-
nardi e do sobrinho de Pietro, Renzo Biondani.14 Para Michael Pollak, tanto
a memória individual quanto a coletiva são constituídas, em primeiro lu-
gar, por acontecimentos vividos pessoalmente e em segundo lugar, por
acontecimentos que ele chama de "vividos por tabela", que são os aconte-
cimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade a qual a pessoa se sente
pertencer. Além dos acontecimentos, a memória é constituída de persona-
gens e lugares que também podem ser memórias pessoais ou herdadas
(POLAK, 1992. p. 201). Ao utilizarmos depoimentos orais, precisamos ter
em mente também que a memória é construída coletivamente e, como tal,
sofre constantes mudanças, transformações e flutuações. Pollak lembra
também que na maioria das memórias existem marcos ou pontos relati-
vamente invariantes e imutáveis (POLAK, 1992. p. 201).
Portanto, os depoimentos orais são utilizados aqui com a mesma lu-
cidez com que utilizamos outras fontes, como documentos escritos e
fotografias, por exemplo. Ou seja, devemos ter presente que as fontes não
contêm verdades absolutas, que são produzidas pelo homem e que, por-
tanto, estão sujeitas a múltiplas interferências e contradições.

14
Depoimentos orais de Julio Lonardi e Renzo Biondani, arquivados no LAPHO PUCRS.
122 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Reconhecendo a impossibilidade de atingir a verdade absoluta, meu es-


forço é, tão somente, de tentar entender o passado, buscando me
aproximar ao máximo possível da verdade em relação aos acontecimentos
passados, acreditando que esta aproximação se dá a partir do confronto
entre diversas fontes, de naturezas também diversas.
Segundo Renzo Biondani, seu tio Pietro chegou a Porto Alegre em
1927, no mesmo ano da chegada de Leone. Julio Lonardi, em seu depoi-
mento, diz que os dois não vieram juntos. Confirmando este depoimento,
o nome de Pietro não consta na lista de passageiros do navio em que o
casal Lonardi viajou para o Brasil. Portanto, não temos a data exata da
chegada de Pietro Biondani. Em 1931, o jornal A Federação publica o edital
de preparação de casamento de Pietro (Pedro) Biondani e Helenita Coelho
Caldas (A FEDERAÇÃO, 09.03.1931, p.03 e 07). O casamento se realizou
na igreja São Pedro. Esta era uma das igrejas mais requisitadas para os
casamentos da elite porto-alegrense.
Não podemos resgatar, na integra, os diálogos entre Leone e Pietro
na Itália, mas é possível imaginar que Pedro tenha passado para Leone as
informações sobre as oportunidades de trabalho existentes em Porto Ale-
gre, relacionadas ao crescimento urbano da capital, assim como os
contatos que viabilizaram moradia e trabalho no primeiro momento da
imigração, considerando que Pietro era construtor e conhecia bem este
mercado. Os conhecimentos adquiridos em sua experiência anterior, re-
passados a Leone, caracterizam uma cadeia ou rede migratória, tal como
define Oswaldo Truzzi. O autor utiliza os termos para dar conta dos even-
tos imigratórios apoiados em informações prévias de imigrantes
anteriores a respeito de oportunidades e dificuldades relacionadas às ques-
tões de emprego, alojamento e recursos para financiar a viagem. Estas
cadeias ou redes se formam a partir de laços de parentesco, amizade e vi-
zinhança entre migrantes, migrantes anteriores e não migrantes, nas
áreas de origem e de destino (TRUZZI, 2008, p. 203).
Regina Zimmermann Guilherme | 123

Segundo os relatos de Julio Lonardi15 e Renzo Biondani16, Leone es-


tava esculpindo um monumento aos mortos da Primeira Guerra, em sua
cidade, Fumane, comuna da província de Verona, quando conheceu Pietro
Biondani que trabalhava na construção de uma estrada de ferro, próxima
dali. Os dois começaram a conversar e se tornaram amigos. Pietro contou
que estivera em Porto Alegre, para onde pretendia retornar, pois estava
noivo da filha de um grande construtor italiano para o qual trabalhara. E,
então, convidou Leone para vir para Porto Alegre com ele. Ao ser questio-
nado sobre a ida de Leone para os Estados Unidos, Julio Lonardi disse que
“O serviço ali na Itália parou, diminuiu”. Provavelmente, esta foi a ideia
que seu pai lhe passou. Entretanto, não conhecemos as circunstâncias que
levaram a esta diminuição de trabalho e se isso era uma realidade do país,
da região ou pessoal de Leone.
Sabemos que em 1923, quando Leone foi para os Estados Unidos, a
Itália ainda passava por dificuldades, se recuperando lentamente dos pre-
juízos contabilizados com sua participação na Primeira Guerra Mundial.
Porém, em 1927, quando Leone veio para o Brasil, seu país vivia um perí-
odo de ascensão econômica. Apesar disso, é possível imaginar que o
mercado de trabalho para os escultores fosse um tanto saturado naquela
região, considerando que Verona formava estes profissionais, além da pro-
ximidade com Florença e Veneza, grandes centros artísticos da Itália. Não
há relatos ou fontes escritas que mostrem que Leone tivesse vínculo com
alguma empresa na Itália, assim como não encontramos nenhum outro
escultor na família Lonardi. Podemos imaginar, portanto, que lhe faltasse
uma rede de relações forte, ligada a sua profissão, que garantisse seu pleno
estabelecimento na Itália e que, por isso, procurasse estabelecer vínculos
com profissionais da construção civil, área em que havia trabalhado nos
Estados Unidos.

15
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 02.
16
Entrevista da autora com Renzo Biondani, realizada em 13 de setembro de 2017. Transcrita e depositada no acervo
do Lapho, PUCRS.
124 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Logo no início da pesquisa, numa das primeiras conversas com o se-


nhor Julio Lonardi, antes de começar as entrevistas, ele me contou que
quem buscou seu pai no porto, na chegada a Porto Alegre, fora um homem
do qual ele só lembrava o sobrenome, Sartori. Contou também que logo
que seu pai chegou, foi trabalhar na Casa Aloys, uma das maiores marmo-
rarias do Rio Grande do Sul deste período. Examinando o Histórico
Comemorativo da Casa Aloys, de 1950, encontrei o nome de Leonildo Sar-
tori, um contramestre da Aloys que, segundo este histórico, teria
trabalhado na empresa de 1916 a 1944. No entanto, a assinatura de Leo-
nildo aparece na lista dos funcionários grevistas de 1914, da Casa Aloys17,
o que prova que ele já trabalhava há mais tempo nesta firma.
O jornal A Federação do dia 18 de fevereiro de 1928, reproduz um
comunicado do Rio de Janeiro de que o Ministro da Justiça havia naturali-
zado brasileiros, dois italianos residentes no Rio Grande do Sul, entre eles,
Leonildo Sartori (A FEDERAÇÃO, 16.02.1928, p.06). Na listagem eleitoral
de 1929, publicada no mesmo jornal, consta que Leonildo Sartori tinha 46
anos de idade, era marmorista, residia à Avenida Teresópolis, número
2128 e apresentara carta de naturalização (A FEDERAÇÃO, 24.09.1929,
p.12). Segundo depoimento de Julio Lonardi, seu pai residiu à Rua Santo
Antonio, logo que chegou a Porto Alegre, mas, pouco tempo depois, se mu-
dou para o bairro Teresópolis. As coincidências do local de trabalho e de
residência entre Leone Lonardi e Leonildo Sartori, levam a crer que tenha
sido este o Sartori que buscou Lonardi no porto.
Após trabalhar seis meses na Casa Aloys, em agosto de 1928, como
consta no primeiro livro caixa da empresa, Leone se associou a Arlindo
Teixeira que fora letrista18 daquela empresa. Os dois fundaram a Marmo-
raria Lonardi & Teixeira, instalada na Lomba do Cemitério.
Provavelmente, a possibilidade de ser proprietário de uma marmoraria foi
a maior motivação da decisão de imigração de Leone Lonardi. O objetivo
geral dos imigrantes era de alcançar fortuna. Para Stella Borges, se tornar

17
Acervo da Casa Aloys – Arquivo DELPHOS – Biblioteca Central – PUCRS.
18
O letreiro era quem produzia as letras, geralmente em metal, que eram colocadas nos túmulos e nos monumentos.
Regina Zimmermann Guilherme | 125

pequenos e médios proprietários também era um objetivo dos imigrantes


urbanos (BORGES, 1995, p. 130).
Nos negócios realizados no segundo mês de funcionamento da mar-
moraria, os sobrenomes italianos prevalecem. Entre vários registros, na
página referente às saídas de caixa de setembro, há o pagamento de
500$000 (quinhentos mil réis) por conta da construção da marmoraria,
pagos a Pedro. Segundo depoimento de Julio Lonardi, este era o amigo,
Pedro Biondani, aquele que convidou Leone para vir para Porto Alegre e
que agora prestava serviços de construção nas obras da marmoraria Lo-
nardi & Teixeira. No mês seguinte, Julio Brunelli se tornou sócio de
Lonardi e seu irmão Luiz emprestou dinheiro para a firma. Segundo de-
poimento de Julio Lonardi, Julio Brunelli era apenas sócio de capital e
resolveu investir na marmoraria por conta de um contrato conseguido
para a realização de serviços na Catedral Metropolitana que estava em
construção. Julio Lonardi contou também que seu pai conheceu a família
Brunelli quando foi morar em Teresópolis e que Brunelli era um capitalista
que havia comprado uma pedreira para colocar granito na obra da catedral
para a qual havia sido contratado.
Numa segunda fase da pesquisa, quando tomei o depoimento de
Renzo Biondani, este mencionou que seu tio Pietro queria casar com a filha
de Brunelli. Mas, tanto Julio Lonardi quanto Renzo Biondani, se referiam
somente a Julio Brunelli. Porém, observando a idade deste em 1927, ano
da chegada de Pietro Biondani, Julio seria muito jovem para ser pai de sua
noiva. Segundo a listagem eleitoral de 1929, Julio Brunelli, filho de José
Brunelli, tinha 24 anos de idade e era solteiro (A FEDERAÇÃO, 24.09.1929,
p.14). Portanto, em 1927, Julio Brunelli tinha apenas 22 anos idade. Surge,
então, um novo Brunelli, José Brunelli, o pai de Julio e Luiz. Talvez a jovem
em questão fosse irmã de Julio e o Brunelli ao qual Renzo se referiu, fosse
seu pai, José. Esta hipótese é reforçada pelo anúncio de nascimento de
Othylia, filha de José Brunelli no jornal A Federação do dia 04 de novembro
de 1907 (A FEDERAÇÃO, 04.11.1907, p.02). Ela teria, portanto, 20 anos de
idade quando Pietro retornou para o Brasil. Seria, então, possível que ela
126 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

fosse a mencionada noiva do amigo de Leone Lonardi. Esse exemplo nos


mostra a necessidade de confrontar diversas fontes, por considerar suas
limitações, que, no caso dos depoimentos orais, se deparam com os limites
da memória.
Em meu trabalho, os depoimentos orais reforçaram alguns pressu-
postos teóricos da pesquisa. Apesar de não haver fontes que atestem que
Leone financiou sua viagem com recursos próprios, é possível imaginar
que isso tenha ocorrido, considerando que realizou os trabalhos acima
mencionados em sua cidade antes desse evento migratório. Ao ser questi-
onado a respeito do motivo que levou Leone Lonardi aos Estados Unidos,
seu filho Julio Lonardi respondeu:

Para ganhar mais. O serviço ali na Itália parou, diminuiu. Fez aquele monu-
mento, fez mais outro em Castelfranco, uma cidadezinha uns 40 quilômetros
de Verona. Depois, viu que... Ele tinha um irmão que era marítimo, trabalhava
no Porto, lá em Nova Iorque...19

Este depoimento do filho de Leone Lonardi evidencia duas das prin-


cipais características dos imigrantes qualificados: a mobilidade, sempre
em busca de melhores oportunidades e o apoio em redes de relaciona-
mento e de parentesco. A qualificação profissional permite que o imigrante
se desloque de um local que não o agrada para outro que ofereça melhores
condições de trabalho e de vida, quantas vezes ele julgar necessário Apesar
da campanha de Mussolini na Itália já mostrar avanços econômicos neste
período, é possível imaginar que o mercado da escultura estivesse um
tanto saturado naquele país, considerando o enorme contingente de escul-
tores formados em suas escolas. Procurando uma alternativa, Leone se
lembrou da conversa que teve com seu novo amigo Pedro Biondani, antes
de viajar para os Estados Unidos. Segundo seu filho, Julio:

Quando ele estava indo para os EUA. Ele estava fazendo o monumento, aquele
em frente à prefeitura, o caduti, o monumento aos mortos da guerra de

19
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 2.
Regina Zimmermann Guilherme | 127

catorze, em Fumane, que era a cidadezinha dele. Passou o Biondani que era
pedreiro, tio do Renzo. O pai disse: “Estou com vontade de ir para os Estados
Unidos trabalhar”. E ele disse: “Eu estou em Porto Alegre, eu tenho uma noiva
lá”. (...)20

Em 1927, influenciado pelo amigo Pietro Biondani, decidiu migrar


para o Brasil. Não conhecemos os detalhes que envolveram esta decisão,
os contatos realizados com sua rede de relacionamentos e as tratativas que
viabilizaram a sua colocação imediata no mercado. Sabemos que o mer-
cado era promissor, haja vista a grande quantidade de esculturas públicas
e funerárias produzidas naquele período e a presença de grandes marmo-
rarias, como Casa Aloys, Marmoraria Floriani, Irmãos Piattelli, Irmãos De
Angeli, entre tantas. Sabemos também que a Casa Aloys realizava grande
parte de seus trabalhos para a comunidade alemã do Rio Grande do Sul.21
Apesar das dúvidas que acompanhavam qualquer imigrante, Leone Dome-
nico Lonardi quando chegou a Porto Alegre em novembro de 1927 tinha
como garantia a qualificação profissional e o apoio do amigo Pietro Bion-
dani que provavelmente foi o responsável pelo contato que levou à sua
colocação na Casa Aloys.
Recebido no porto por um homem de sobrenome Sartori, como rela-
tou seu filho Julio, logo começou a trabalhar na famosa Casa Aloys, a
marmoraria de Jacob Aloys Friederichs, localizada nos números 589 e 630
da Rua Voluntários da Pátria (HISTÓRICO DA CASA ALOYS, 1950, n.p). É

20
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 3.
21
Em 1884, o canteiro alemão Miguel Friederichs (1849-1903) fundou uma oficina de cantaria. No mesmo ano, seu
irmão mais novo, Jacob Aloys Friederichs chegou da Alemanha para ser seu aprendiz. Em seguida, Miguel fundou a
firma construtora “Friederichs & Koch”, na Rua Voluntários da Pátria, nº 54, em sociedade com o arquiteto Gustavo
Koch, incorporando a oficina de cantaria. Em 1887 Jacob Aloys se transformara em oficial canteiro. Em 1888 esta
firma foi dissolvida e sucedida pela “Bins & Friederichs”. Miguel se associara a Alberto Bins, recém-chegado da Ale-
manha. Esta firma negociava ferro bruto e materiais de construção, anexada à oficina de cantaria. Em 1891, o jovem
Aloys assumiu a pequena oficina de mármore cantaria. Em dezembro 1893 um grande incêndio destruiu as fábricas
e as moradias de Aloys Friederichs e Jorge Petersen. Em fevereiro de 1894, Aloys conseguiu se instalar na mesma
rua, em prédio cedido pela “Cervejaria Campani”. Em 1897, contava com a colaboração de um grupo de escultores,
marmoristas, canteiros e polidores que deu origem ao renome da futura Casa Aloys. Em 1903, viajou para Alemanha
e Carrara, na Itália, para negociar mármore. Em 1905, conseguiu comprar o terreno e prédio da antiga “Cervejaria
Campani”, com a ajuda do sogro, o canteiro João Grünewald. Em janeiro de 1909, quando comemorava os 25 anos
da fundação da oficina, pelo irmão Miguel Friederichs, o mestre Aloys denominou a oficina de “Casa Aloys”. O espa-
nhol André Arjonas foi seu escultor-chefe. (HISTÓRICO DA CASA ALOYS, 1950).
128 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

provável que o cicerone de Leone fosse o contramestre italiano da Casa


Aloys, Leonildo Sartori e que este tenha sido o contato entre Pietro Bion-
dani e o mestre Aloys, a fim de arranjar a colocação de Leone naquela
firma, como acredita seu filho Julio:

Eu acho que o Sartori... Ele estava recomendado... “Oh, vai chegar um homem
italiano aí, que é escultor e vamos arrumar pra ele trabalhar na Casa Aloys”.
Daí, meu pai trabalhou seis meses.22

Não temos notícias das obras produzidas por Leone nestes seis meses
em que trabalhou na Casa Aloys. Ali, conheceu o letrista23 Arlindo Teixeira
com quem se associou e, em agosto de 1928, fundou a Marmoraria Lonardi
& Teixeira, instalada na Lomba do Cemitério. Os recursos financeiros de
Leone provinham das economias feitas nos Estados Unidos, conforme re-
lato de seu filho:

O meu pai trabalhou seis meses na Casa Aloys. Ali ele conheceu o Teixeira. (...)
Foi sócio dele. Teixeira... Aí o pai conheceu... O pai estava com os dólares que
tinha arrumado nos Estados Unidos. Compraram a esquina, ali onde é o motel.
Um canto. Depois ampliaram mais tarde.24

Novos desafios, novos riscos e novas incertezas surgiam com a deci-


são de abrir uma empresa em tão pouco tempo após a chegada ao novo
país. Era a primeira experiência de Lonardi como empresário e ele conhe-
cia o seu novo sócio havia tão pouco tempo quanto conhecia Porto Alegre.
Além disso, havia a concorrência. A estatística comercial de Porto Alegre,
do ano de 1928, mostra que havia nove escultores e oito marmoristas na
zona urbana (A FEDERAÇÃO, 15.10.1928, p. 39). Possivelmente, alguns ar-
tistas foram contabilizados nas duas categorias. A marmoraria de José
Floriani era, provavelmente, a segunda maior marmoraria no que

22
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 8.
23
O letreiro era quem produzia as letras, geralmente em metal, que eram colocadas nos túmulos e nos monumentos.
24
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 6.
Regina Zimmermann Guilherme | 129

concerne a produção de esculturas em Porto Alegre, naquele período. O


terreno adquirido por Lonardi ficava há poucos metros da Marmoraria
Floriani. Segundo relato de seu filho Julio, Leone comprou o terreno na
Lomba do Cemitério, para a construção da marmoraria, durante a noite
para que José Floriani, que estava instalado na outra esquina, não visse,
pois acreditava que Floriani não gostaria de ter mais concorrentes.25
Julio Lonardi conta que o desenho da nova catedral veio da Itália e foi
construída com blocos de pedras sobrepostos que se encaixavam perfeita-
mente. Quando seu pai chegou a Porto Alegre, a construção estava a cerca
de dois metros de altura, vista pela Rua Duque de Caxias. Segundo ele, o
italiano Sylvio Giusti esculpiu em granito os capitéis das colunas da cate-
dral a partir dos moldes produzidos por seu pai, Leone, primeiro em barro,
depois em gesso.26
O trabalho com o granito para a construção da catedral exigia a mão-
de-obra de bons canteiros. Talvez este tenha sido o motivo que levou Leone
a tomar para sócio o mestre canteiro da marmoraria Keller, o português
Agostinho Leite de Farias.27 Os portugueses possuem longa tradição de
cantaria. A cantaria é a técnica de trabalhar a pedra bruta dando forma e
acabamento para a utilização na construção civil. A maior parte das obras
realizadas pelas marmorarias de Porto Alegre, a partir da década de 1920,
utilizava o granito. Os blocos de granito eram transformados em arcos,
colunas, chapas para revestimento de túmulos, pisos, escadas, paredes de
edifícios, etc. Após o corte, a pedra recebia acabamento apicoado, polido
ou martelado. Alguns prédios foram construídos com imensos blocos de
granito, sobrepostos, como foi o caso da Catedral Metropolitana de Porto
Alegre. Quem dirigia as obras da Catedral era o monsenhor João Maria
Balen, filho de italianos das colônias de camponeses. Sua família foi grande

25
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 7.
26
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 4.
27
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 9.
130 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

colaboradora destas obras (Jornal A FEDERAÇÃO, 09.13.1933. p. 5.). Leone


se tornou amigo do monsenhor Balen, como conta seu filho Julio:

Bom, o monsenhor Balen foi quem me batizou, depois ficou amigo do pai, vi-
nha comer perdiz aí. Ele dizia assim: “Bah, aquela cúria metropolitana é só
alemão. Dom Vicente Scherer. E eles perseguem os italianos que estão lá”. (...)
Aqui tinha a fotografia dele. Não sei onde é que parou. Do lado dos canteiros,
aí. E os canteiros, todos com as ferramentas na mão. E o monsenhor Balen no
meio.28

Nos primeiros anos de funcionamento da empresa, Leone ainda tra-


balhou muito com mármore, apesar de estar ocorrendo, neste período,
uma transição para o uso de granito e bronze como substituição aquele
material que era importado. Em 1940, Leone Lonardi adquiriu o visto de
permanência definitiva no Brasil, o que mostra que ele estava inteiramente
estabelecido em Porto Alegre. A firma estava em funcionamento havia 12
anos e o volume de serviços aumentava gradativamente. Realizou uma in-
finidade de trabalhos, tanto para Porto Alegre como para o interior do Rio
Grande do Sul e também para outros estados.
Em 1941, Leone ficou viúvo, com quatro filhos. Durante os dois meses
em que a sua esposa Maria ficou no hospital, a amizade do sócio português,
Agostinho de Farias - padrinho dos quatro filhos de Leone - foi imprescin-
dível, como conta Julio Lonardi. Os quatro ficaram na casa do senhor
Agostinho durante esses dois meses, para que Leone pudesse cuidar da
esposa. O depoimento a respeito desta passagem de suas vidas também
revela que era desejo de Leone e de seu sogro que ele se casasse em segun-
das núpcias com a cunhada Pasquina, que vivia na Itália, para que essa
terminasse de criar os sobrinhos, o que foi impossível em função da
guerra:

Agostinho Leite de Farias não teve filhos. Quando a minha mãe foi para o hos-
pital com câncer no seio, nós ficamos lá... Ele morava na Marcilio Dias... Nós

28
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de setembro de 2018. Transcrita e depositada
no acervo do Lapho, PUCRS, p. 4-5.
Regina Zimmermann Guilherme | 131

ficamos, nós quatro lá, dois meses, enquanto a minha mãe estava lá. Meu pai,
coitado, ficou viúvo com quatro filhos, no tempo da Guerra. Senão, teria vindo
a tia Pasquina e teria casado com ele. (...) Ela queria vir pra cá, porque o pai
da minha mãe, o vô Albino, ficava louco sabendo que a Maria tinha morrido e
tinham ficado quatro netinhos órfãos aqui. Mas era tempo da guerra. Ela foi
receber a notícia um ano depois, ou dois anos depois, pela Cruz Vermelha.
Então, meu pai ficou viúvo, depois conheceu na praia a Genoveva, professora
do Julio de Castilhos.29

A marmoraria estava em pleno funcionamento, e oferecia muitos ser-


viços, como especifica a nota fiscal do túmulo da família Abraão Sada,
construído em 1941. Especialista em figuras, a empresa executava traba-
lhos em mármore, pedra grés, granito e bronze, como: monumentos,
mausoléus, túmulos, cruzes, guarnições, estátuas, bustos, placas comemo-
rativas, ornamentos, escadarias, móveis, entre outros. Neste mesmo ano,
segundo Julio Lonardi, seu pai construiu a capela das irmãs Bangel no ce-
mitério São Miguel e Almas. Eram quatro irmãs que tinham uma famosa
floricultura na Rua da Praia. “Então, nós estávamos colocando até de noite.
E se via as luzes do Congresso Eucarístico”.30 Leone esculpiu também, na-
quele ano, a estátua jacente de Dom Hermeto Pinheiro para o interior da
catedral de Uruguaiana. O grande prestígio deste trabalho pode ser perce-
bido em um episódio de 1963. Quando, naquele ano, faleceu o então bispo
de Uruguaiana, Dom Luís Filipe De Nadal, novamente, a empresa Lonardi,
Teixeira & Cia foi contratada para realizar uma estátua jacente. Porém,
Leone já havia falecido. Foi, então, que seu filho Julio teve a ideia de utilizar
o mesmo molde produzido por seu pai para a estátua de Dom Hermeto
Pinheiro que ficara guardada na marmoraria durante todos aqueles anos.
O escultor espanhol André Arjonas ajudou, colocando no molde o rosto de
Dom Luís De Nadal. O molde foi serrado ao meio para ser enviado a São
Paulo, onde foi fundido em bronze. Porém, o novo bispo, Dom Augusto

29
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 10.
30
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 10.
132 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Petró, percebeu a montagem e não gostou. Segundo Julio Lonardi, o bispo


enviou uma carta reclamando, enquanto reverenciava o trabalho do sau-
doso escultor Leone Lonardi.31
Ainda em 1948, houve em Porto Alegre o V Congresso Eucarístico
Nacional. Um evento católico de grandes proporções, ocorrido na última
semana de outubro, que movimentou a cidade e encheu as páginas dos
jornais à época. Segundo Julio Lonardi, seu pai participou do congresso:

O pai fez os anjinhos no Congresso Eucarístico, em 48. No carro alegórico, ele


com a corneta, assim ó. Os barrigudinhos, os anjinhos, né? Anjinho assim, de
um metro. O pai também fez. Saiu no jornal. Teve congresso eucarístico em
1948.32

Segundo Julio Lonardi, seu pai trabalhou muito para as cidades da


fronteira, construindo túmulos, principalmente de granito vermelho e
cinza. Considera que construíram grande parte do cemitério de Alegrete.33
Provavelmente, sua fama tenha se espalhado a partir da produção da es-
tátua jacente do bispo de Uruguaiana. As famílias abastadas desta região
tinham grande apreço pelos túmulos suntuosos e pelas esculturas.
Em 1952, o irmão de Pedro Biondani, Ghino Biondani chegou a Porto
Alegre com a esposa Maria e um casal de filhos, Renzo e Ana Maria. Logo,
Ghino se tornou amigo de Leone. Seus filhos, os jovens Renzo Biondani e
Julio Lonardi, por sua vez, também se tornaram amigos. A amizade dos
dois durou até 2017, quando Renzo faleceu aos 86 anos de idade. Julio Lo-
nardi conta que seu pai e Ghino Biondani ficavam conversando durante
horas, no período em que Ghino e Renzo trabalhavam no Cemitério da
Santa Casa.34 Segundo Renzo Biondani, ele e o pai construíram a capela e

31
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 10.
32
Trecho da entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no
acervo do Lapho, PUCRS, p. 10.
33
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 17.
34
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 5-6.
Regina Zimmermann Guilherme | 133

as galerias de catacumbas do cemitério da Santa Casa de Misericórdia,


onde construíram cerca de quatro mil túmulos.35 Segundo Julio Lonardi,
seu pai trabalhou mais para o cemitério São Miguel e Almas do que para o
cemitério da Santa Casa, em função da sua amizade com Vitorio Semen-
sato, que por muitos anos foi zelador daquele cemitério.36
Quando Leone Lonardi faleceu, em 1961, segundo conta seu filho Ju-
lio, ficaram alguns projetos em sua mesa. Um deles foi do túmulo de
Cipriano Michelleto, encomendado pela viúva Elisa Micheletto.37 Cipriano
Michelleto foi um rico empresário que possuía uma grande oficina de tor-
nos Mitto38. Outro projeto foi do altar da igreja Sagrada Família, localizada
na Rua José do Patrocínio em Porto Alegre.39 Julio Lonardi assumiu a em-
presa e cumpriu os contratos de seu pai.

Considerações finais

Os depoimentos orais foram de suma importância na análise da tra-


jetória de Leone Lonardi, assim como para a realização das “pequenas
biografias” dos indivíduos que se relacionaram com ele, a fim de recons-
truir sua rede de sociabilidade. Tais depoimentos foram constantemente
confrontados com uma diversificada documentação, como o acervo da fa-
mília Lonardi, jornais e outros. A análise das entrevistas gerou
questionamentos sobre a documentação escrita e iconográfica, assim
como, essas deram origem a questões que puderam ser resolvidas através
de novos depoimentos.

35
Entrevista da autora com Renzo Biondani, realizada em 28 de setembro de 2017. Transcrita e depositada no acervo
do Lapho, PUCRS, p.5.
36
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 17.
37
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 13.
38
Mitto é uma marca de tornos mecânicos para indústria pesada.
39
Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e depositada no acervo do
Lapho, PUCRS, p. 16-17.
134 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

O trabalho demonstrou que a trajetória de Leone Lonardi esteve re-


lacionada às atividades dos comerciantes, artistas, artesãos e operários
inseridos numa dinâmica de história social, das relações internacionais e
da imigração da Itália em direção ao Brasil. Sem dúvida, o fato dele possuir
a qualificação profissional que o desenvolvimento urbano carecia, de tra-
zer em sua bagagem a cultura clássica italiana e o ideário europeu que
satisfazia o gosto das elites e de contar com o apoio de uma rede de relaci-
onamentos, foram elementos determinantes à sua permanência.
Estudar o trabalho dos escultores traz também novas reflexões a res-
peito dos trabalhos manuais, os manufaturados, que resistiram por algum
tempo à concorrência da produção industrial, por carregarem o valor in-
trínseco do objeto de arte, que conferia status a quem o adquiria. Nos dias
atuais essa produção se torna cada vez mais rara. E não se trata apenas da
substituição do trabalho manual pela produção em série da indústria ou
pelas novas tecnologias, como do desenho gráfico que substituiu o desenho
e a pintura, realizados manualmente, e a impressora 3D que é capaz de
realizar esculturas. Trata-se de novos valores da sociedade. Até o início do
século XX, as pessoas eram definidas pelo trabalho. Hoje, cada vez mais,
as pessoas são definidas por suas posses, pelos seus bens.
Por fim, é possível dizer que a partir do caso do marmorista italiano
Leone Domenico Lonardi foi possível demonstrar, em primeiro lugar, o
caráter de mobilidade dos imigrantes qualificados. E, assim como em ou-
tros trabalhos sobre imigração urbana, a análise demonstrou a grande
importância do papel das redes sociais, tanto no evento imigratório, desde
as primeiras informações sobre as oportunidades de trabalho, as possibi-
lidades de alojamento e possível financiamento da viagem, quanto na
inserção dos imigrantes italianos qualificados na nova sociedade.

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Fontes orais:

Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 01 de agosto de 2018. Transcrita e


depositada no acervo do Lapho, PUCRS.

Entrevista da autora com Julio Lonardi, realizada em 29 de agosto de 2018. Transcrita e


depositada no acervo do Lapho, PUCRS.

Entrevista da autora com Renzo Biondani, realizada em 13 de setembro de 2017. Transcrita


e depositada no acervo do Lapho, PUCRS.
Regina Zimmermann Guilherme | 137

Entrevista da autora com Renzo Biondani, realizada em 28 de setembro de 2017. Trans-


crita e depositada no acervo do Lapho, PUCRS.

Fontes da imprensa

Almanak Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial (RJ) - 1891 a 1940.

Jornal A Federação, Porto Alegre.


6

Um Lucano no Novo Mundo:


a trajetória de Giuseppe Antonio Marramarco
em Porto Alegre

Leonardo de Oliveira Conedera 1

A vida não é aquela que se viveu, mas aquela que se lembra e como a recorda
para contá-la.
Gabriel Garcia Márquez

No presente capítulo propõe-se analisar a trajetória do imigrante ita-


liano Giuseppe Antonio Marramarco, em Porto Alegre. Giuseppe encontra-
se entre os inúmeros imigrantes peninsulares que desembarcaram no Rio
Grande do Sul após a Segunda Guerra Mundial. Logo, procura-se corro-
borar com os estudos a respeito do processo migratório italiano no
contexto brasileiro.
A partir da trajetória desse imigrante proveniente da Basilicata pre-
tende-se contextualizar a imigração italiana no período do pós-guerra
(1946-1976) em Porto Alegre. Além disso, visa-se apresentar a trajetória
de um empreendedor italiano na capital gaúcha, que se caracteriza por
uma imigração espontânea; por último, pretende-se tratar a questão do
percurso social e comunitário realizado pelo imigrante na sociedade que o
acolheu.
Portanto, a reflexão que aqui se presenta propõe uma análise inter-
disciplinar que se aproveita de aportes de distintas áreas do conhecimento,

1
Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, realizando
Estágio de Pós-doutoramento na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: leocone5@hot-
mail.com.
Leonardo de Oliveira Conedera | 139

privilegiando a metodologia da História Oral para a compreensão do fenô-


meno migratório italiano e as suas especificidades no Brasil.

A migração italiana no após a Segunda Guerra (1948-1976)

A emigração, para muitos italianos, alcançou grande estímulo após o


final da Segunda Guerra Mundial. As adversidades econômicas, políticas,
sociais e de infraestruturas existentes na península posteriormente ao en-
ceramento do conflito propiciaram o recomeço dos deslocamentos.
Durante o período do pós-guerra (1946-1976) partiram da Itália cerca
de 7.447.370 peninsulares. Um novo momento nos fluxos constituiu-se,
primeiramente, nas regiões do Norte da península. Em seguida, os deslo-
camentos recomeçaram de maneira acentuada também no Mezzogiorno2,
que tinha as províncias mais populosas do país (DE CLEMENTI, 2010).
Além disso, a partir de 1945, desencadeou-se uma progressiva erosão
dos impérios coloniais na Ásia e na África. Esse acontecimento promoveu
o aumento de novos êxodos populacionais. Em um primeiro momento, a
mobilidade foi fomentada pelo retorno de europeus para seus países de
origem (CORTI, 2007).
Os desdobramentos no novo contexto internacional, desde meados
do novecentos, com o processo de descolonização, engendraram diversas
movimentações populacionais e o recrudescimento do número de migran-
tes, devido a três elementos, que se mantiveram regulares nas dinâmicas
de diversos fluxos migratórios no contexto contemporâneo. O primeiro foi
o fim do domínio das antigas potências; o segundo, o paralelo apareci-
mento de novos países; e, o terceiro, a explosão demográfica transcorrida
nos países em desenvolvimento (CORTI, 2007).
Sabe-se que a reabertura das fronteiras de inúmeros países no perí-
odo do pós-guerra fomentou o alvorecer de um novo ciclo migratório,
especialmente no ocidente. Entre 1947 e 1951, na Europa, mais de 460.000

2
A palavra Mezzogiorno refere-se ao Sul da Itália (as Regiões do Abbruzzo, Campania, Basilicata, Calábria, Puglia,
Molise, Sicília e Sardegna).
140 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

indivíduos migraram, dos quais 218.000 deixaram a sua própria pátria de


maneira espontânea, enquanto 242.000 seguiram conduzidos e assistidos
por organizações internacionais de refugiados; entretanto, essas acabaram
dissolvidas em 1951 (CORTI, 2007).
Os destinos escolhidos pelas novas mobilidades vincularam-se a al-
gumas tendências embasadas em ondas migratórias precedentes. Grande
parte dos migrantes da Europa Setentrional encaminharam-se para Esta-
dos de cultura anglo-saxã, como Estados Unidos, Canadá e Austrália; em
contrapartida, os provenientes dos países meridionais dirigiram-se espe-
cialmente para Estados da América do Sul, como Argentina, Brasil,
Uruguai, Venezuela, entre outros (CONEDERA, 2018).
O aumento da atividade do setor secundário foi bastante significativo,
sobretudo na Argentina, no Brasil e no Uruguai, por intermédio da expan-
são verificada no panorama da Segunda Guerra Mundial e mantido
posteriormente, por meio de uma forte influência dos Estados Unidos nas
economias desses países. Todavia, a distinção com o passado é que as no-
vas ondas não se deslocavam somente para os maiores países de
imigração, assim como se disseminaram por todos os Estados latino-ame-
ricanos. Argentina, Brasil e Uruguai permaneceram tendo um papel
importante, já que possuíam um crescimento na sua produção industrial
em meados do século passado (CORTI, 2007).
No entanto, um evento considerável na década de 1950 foi que alguns
Estados da Europa Centro-Setentrional não readquiriram as posições eco-
nômicas ulteriores à Guerra, mas ainda apresentaram um aumento que os
colocou a níveis superiores aos resultados industriais atingidos pelos Es-
tados Unidos, tornando-se inquestionáveis protagonistas na economia
mundial. Vários casos corroboraram para o recrudescimento da estabili-
dade monetária, que foi por fim alcançada depois dos altos índices
inflacionários do pós-guerra – os incentivos na industrialização, que foram
oportunizados pelas políticas econômicas nacionais e pelos subsídios in-
ternacionais, e a positiva atuação praticada para a formação do mercado
econômico europeu (CORTI, 2007, p. 90).
Leonardo de Oliveira Conedera | 141

Assim, os italianos cuja meta era os Estados distantes da Europa dis-


tinguiram-se por uma migração de caráter definitivo. Enquanto aqueles
que se deslocaram para os Estados europeus se caracterizaram por uma
duração temporária. A proximidade dos migrantes das suas cidades de ori-
gem e o fato de se deslocarem desacompanhados de seus familiares
colaboraram para que a mobilidade perdurasse por uma curta duração.
O Brasil acolheu em torno de 12,6% dos peninsulares que migraram
para a América Latina no período do pós-guerra. Trento (1989, p. 408)
sublinha que “[...] o fluxo de emigrantes da Itália teria podido ser mais
consistente, especialmente durante os primeiros anos posteriores à
guerra, se um acordo emigratório entre os dois países tivesse sido firmado
a tempo”.
Durante o pós-guerra os peninsulares apresentavam uma maior es-
colaridade que a de seus patrícios desembarcados no final do oitocentos. A
maioria havia terminado os seus estudos primários e sabia ler e escrever
(FACCHINETTI, 2004). Nesse sentido, dentre vários outros elementos,
Angelo Trento (1989, p. 421) destaca que:

O emigrante do pós-guerra não se parecia em nada com o de décadas atrás;


ele era portador de exigências bem diferentes e tinha consciência de seus di-
reitos e uma dignidade humana totalmente desconhecidas dos trabalhadores
que abandonaram a pátria no início do século.

Na esfera das relações diplomáticas entre Brasil e Itália, a temática da


migração era um assunto assíduo nas tratativas entre os dois Estados. Os
dois governos pretendiam providenciar tratados para promovê-la; entre-
tanto, o entendimento demorou muito para ocorrer. Então, a estrada
diplomática pouco incentivou a migração de italianos para o contexto bra-
sileiro no período do pós-guerra (CERVO, 1992).
A respeito das viagens dos migrantes, a maior parte dos desembar-
ques dos peninsulares em território brasileiro, como também os demais
migrantes de outras nacionalidades, transcorreu nos portos de Santos e do
Rio de Janeiro. Em meados de 1950, o porto de Santos foi o espaço onde
142 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

aportaram mais de 50% dos estrangeiros que chegavam ao Brasil, ao


passo que o Rio de Janeiro absorveu pouco mais de 30%; os remanescen-
tes dispersaram-se entre os portos de Paranaguá e Porto Alegre, entre
outros lugares (DIÉGUES JUNIOR, 1964).
Sabe-se que nos Censos dos decênios de 1940 e 1950 os peninsulares
despontavam como a etnia com a maior quantidade de estrangeiros inse-
ridos na sociedade brasileira. A maioria dos italianos morava em Estados
das Regiões Sudeste e Sul do país (ZAMBERLAM, 2004).
É preciso lembrar que no Rio Grande do Sul existiam aproximada-
mente 24.549 e 15.003 peninsulares, respectivamente, de acordo com os
registros dos Censos de 1940 e de 1950. Os dados indicavam os migrantes
da península como o maior contingente de estrangeiros existentes no Es-
tado. Nos Censos seguintes, os peninsulares continuaram com números
significativos na comparação com os demais estrangeiros; no entanto, ter-
minaram sobrepujados pelos contingentes de uruguaios e alemães
(CONEDERA, 2018).
Em síntese, o Brasil, como outros países americanos, foi uma das
principais metas para vários italianos no período do pós-guerra. Sobre-
tudo por intermédio de atos de chamadas ou por Agências internacionais,
como o Comitê Intergovernamental para as Migrações Europeias (CIME)3.

A entrevista

Como já assinalado no princípio deste texto, a intenção foi tratar o


processo migratório italiano no Brasil e em Porto Alegre a partir da traje-
tória do Giuseppe Antonio Marrramarco. Nesse sentido é importante
apontar algumas informações acerca da História Oral e a entrevista pro-
duzida com a colaboração do depoente.
Sabe-se que os desafios dos historiadores que empregam a História
Oral é justamente encontrar pessoas dispostas a falarem para o gravador,

3
O CIME foi fundado em 1951, em Bruxelas, e se encarregou do recrutamento e transporte de imigrantes de diversas
nacionalidades europeias. O órgão responsabilizava-se pela pré-seleção e dos cursos profissionalizantes na pátria de
origem do imigrante. No Brasil, o CIME assumiu a maioria das funções anteriormente realizadas pelas autoridades
brasileiras. Na Itália, era responsável pela seleção técnica dos candidatos (FACCHINETTI, 2004).
Leonardo de Oliveira Conedera | 143

já que muitas expressam timidez ou receio de se expor. O diálogo com o


Giuseppe configurou-se em entre/vista. A saber, Alessandro Portelli (2010,
p.213) frisa que “[...] a entre/vista, afinal, é uma troca de olhares. É bem
mais do que outras formas de arte verbal, a história oral é um gênero mul-
tivocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de autores em
diálogo”.
É oportuno esclarecer que a entrevista com o depoente ocorreu nas
dependências da Paróquia Nossa senhora da Pompeia, onde o Giuseppe
comparecia regularmente para exercer suas funções voluntárias como
Presidente do Instituto de Assistência Social dos Italianos (IASI), no dia 30
de março de 2011. O interesse em entrevistar Giuseppe Antonio Marra-
marco era justamente conhecer o instituto, bem como um pouco da
trajetória do imigrante que foi um dos seus idealizadores.
Então, para a estruturação da entrevista selecionou-se a modalidade
da História Oral Temática. Núncia Santoro de Constantino (2004b, p. 64)
destaca que essa modalidade:

[...] preocupa-se com o testemunho sobre algum assunto específico. O teste-


munho é usado como qualquer outro documento, é equiparado ao código
escrito, com preciso recorte temático. Busca-se principalmente a informação
do depoente. Organiza-se roteiro e a inferência do investigador é mais clara e
objetiva. As entrevistas tornam ser mais curtas e, quanto mais as pessoas re-
petirem as mesmas formas, quanto mais forem constatadas as mesmas
informações, quanto maior for o prestígio do depoente, mais sentido terá a
entrevista.

Ainda a respeito da realização da entrevista, essa transcorrera a par-


tir do contato prévio, por telefone, e o local escolhido foi pensado a fim de
conhecer o ambiente do IASI.
A entrevista ocorreu de forma tranquila, pois o senhor Giuseppe, na
ocasião com 82 anos, era um narrador acostumado a compartilhar as suas
histórias e experiências e se exprimia com facilidade e clareza a respeito
das curiosidades do seu entrevistador.
144 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

O uso da História Oral possibilita a intermediação entre a micro e a


macro história, permitindo a análise das experiências de vida em relação
às estruturas do contexto social. Constituindo-se conexões entre a história
narrada e as manifestações sociais, econômicas e políticas na qual o indi-
víduo encontra-se posto, para assim se avaliar a narrativa propriamente
dita, a contar do presente do depoente (CONEDERA, 2018).
Assim, as histórias relatadas pelos narradores viabilizam, como ou-
tras fontes investigadas, a observação de indícios por parte dos
pesquisadores. Carlo Ginzburg (2007, p. 178-179) sublinha que “[...] a re-
alidade é opaca, mas existem certos pontos privilegiados – indícios,
sintomas – que nos permite decifrá-la”. As experiências narradas pelos mi-
grantes encontram-se repletas de marcas e ordinários indícios que podem
apontar para fenômenos sociais mais vastos e complexos. Além disso,
Constantino (2004a, p. 34) lembra que a narrativa cruza dois imprescin-
díveis aspectos, visto que durante a entrevista:

[...] narra-se uma vida concreta, uma existência, uma trajetória pessoal.
Narra-se também os nexos e os símbolos, que medeiam culturalmente a vi-
vência relacionados à memória coletiva que, construída sobre vivências
comuns adquire sentidos e reorganiza temporalidades.

Dessa forma, a memória permite a apreensão e a condensação de


percepções dos sentidos e dos processos psíquicos de maneira inconsciente
(BAUER, 2007). O caráter involuntário da lembrança é único. Logo, lem-
brar é reelaborar as vivências de um tempo pregresso com as percepções
do hodierno.
Em síntese, o indivíduo que narra a sua própria história, ou conta
acerca de sua trajetória de vida, não reconstrói, ele mesmo, o objeto de
pesquisa; compõe um testemunho, a matéria-prima para o conhecimento
histórico e social que busca, por meio do entrevistado e da experiência por
ele vivida, compreender as relações sociais que ocorreram no seu percurso
(BAUER, 2007).
Leonardo de Oliveira Conedera | 145

Entre Itália e Brasil: a trajetória de Giuseppe Antonio Marramarco

Giuseppe Antonio Marramarco nasceu em 1928, em Corleto Perti-


cara, província de Potenza, localizada na área Central da Basilicata.
Giuseppe vivenciou os anos do pós-Segunda Guerra na Itália, um período
difícil, no qual o país apresentava a realidade de um Estado que padeceu
duras perdas e dificuldades em meio aos anos do conflito, bem como du-
rante o período subsequente.
Figura 1 - Mapa da Itália com destaque para a Região da Basilicata

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Basilicata acessado em 20 de maio de 2019.

É importante referir que, na província de Potenza, da qual o imi-


grante é originário, a experiência migratória era uma constante desde o
oitocentos. Vittorio Cappelli (2007, p. 11), em seus estudos sobre a imigra-
ção italiana para as zonas periféricas da América Latina, frisa que:

Essa emigração espontânea é constituída frequentemente por correntes mi-


gratórias que partem de uma pequena área na Itália meridional, no limite
entre as províncias de Cosenza, Potenza e Salerno, portanto entre três regiões
italianas: Calábria, Basilicata e Campânia. Trata-se de uma parte do Apenino
146 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

meridional, onde o fenômeno da emigração para as Américas manifesta-se de


forma precoce, já a partir da década de 1860, estimulando uma ativa experi-
ência de mobilidade, relacionada a hábitos dos vendedores ambulantes e,
sobretudo, ao articulado mundo dos artesãos: douradores, artífices em esta-
nho e em cobre, cinzeladores, prateiros, ourives, caldeireiros, fabricantes de
instrumentos de corda, tintureiros, alfaiates, sapateiros.

No período do pós-guerra (1946-1976), o trajeto realizado por inú-


meros peninsulares até Porto Alegre era feito por trem. Entretanto, o
deslocamento para a capital gaúcha também poderia ser realizado por in-
termédio do transporte marítimo e aéreo. Giuseppe chegou ao Brasil em
março de 1951 e narra que:

Eu vim como imigrante, mas com passagem paga por mim, não vindo através
da passagem paga pelo governo. Eu paguei a minha passagem da Itália para o
Brasil, até Santos. E depois de São Paulo para Porto Alegre. Eu tinha um tio
que morava em Porto Alegre que me pagou e mandou uma passagem de avião.
Então, vim de avião de São Paulo para Porto Alegre, naquelas primeiras linhas
de viagem de avião da Varig.

O destino escolhido foi a capital do Rio Grande do Sul, onde Giuseppe


encontraria seu tio que, ulteriormente à segunda Guerra Mundial se des-
locara para a capital do Rio Grande do Sul. Sobre sua vinda o depoente
comenta que:

Desde criança, já tinha este irmão do meu pai que vivia aqui no Brasil, eu dizia:
“um dia eu vou ir para o Brasil!” E eu, quando tinha 4-5 anos dizia, com aquela
mentalidade de criança, eu olhava o mapa que era redondo e dizia: “se eu co-
meçar a cavar um buraco aqui na minha terra vou acabar saindo lá no Brasil!”
[risos] Eu tinha 3-4 anos e eu já dizia isso! Mas naquele tempo o meu tio já
morava no Brasil. Mas naquela época vivia em São Paulo, e ele teve uma desa-
vença com outros conterrâneos da Itália, e por isso decidiu vir para Porto
Alegre. E por isso, quando eu vim, ele fez um ato de chamada para que eu
viesse para Porto Alegre.

Giuseppe Marramarco, como diversos conterrâneos da Península Itá-


lica, efetuou uma imigração espontânea, motivado por uma cadeia
migratória. De acordo com a tipologia proposta de Charles Tilly, o tipo de
Leonardo de Oliveira Conedera | 147

imigração em cadeia particulariza-se por “[...] envolver o deslocamento de


indivíduos motivados por uma série de arranjos e informações fornecidas
por parentes e conterrâneos já instalados no local de destino” (TILLY apud
TRUZZI, 2008, p. 200).
É preciso referir que o intercâmbio de informações propiciou a dinâ-
mica migratória italiana que causou muitas modificações para a
mentalidade das famílias e sociedades que tiveram contato com esse fenô-
meno social. Piero Bevilacqua (2002, p. 110) destaca que:

Os americanos4, quando voltavam nos paesi de origem para se estabelecer ou


passar provisoriamente, traziam ares de novidade no âmbito comportamental
e de hábitos que provocavam rumores. Estes haviam, geralmente, abandonado
a antiga frugalidade vegetariana de um tempo e se tornaram generosos apre-
ciados da carne, mas bebiam também licores e cafés, transformaram-se
frequentadores de bares e estalagens.

Sabe-se que o processo migratório propiciava modificações tanto nas


sociedades de destino como naquelas de origem, pois era normal os deslo-
camentos e a longevidade dessas dinâmicas. Os migrantes eram os
responsáveis por comunicar suas cidades natais com outras dispersas pelo
globo onde conseguiam se estabelecer.
Durante os anos subsequentes à Segunda Guerra Mundial (1946-
1976), a maior parte dos italianos existentes na capital gaúcha continuava
sendo constituída por migrantes provenientes do Sul da Itália. As investi-
gações históricas revelam que a maioria do peninsulares era oriunda da
Calábria (especialmente da província de Cosenza). Mantinha-se, em nú-
meros, como o contingente mais representativo, sendo acompanhada em
menor medida por indivíduos da Campania (sobretudo da província de
Salerno) e Sicília (principalmente das províncias de Enna e Catania)
(CONEDERA, 2013, p. 428).
Giuseppe foi recebido por seu tio que já habitava na sua meta de imi-
gração. Quando desembarcou no Brasil era um jovem de 22 anos com

4
Aqui a palavra “Americanos” refere-se aos italianos que emigraram para América.
148 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

muitas expectativas, e seu primeiro emprego foi como frentista no posto


Sagol na área central de Porto Alegre. E, após trabalhar como empregado,
expõe que:

Percebi que para me tornar independente, precisava fazer outra profissão. En-
tão, fui aprender a profissão de açougueiro. Então, trabalhei na Frangosul por
3 meses e depois arrumei um açougue arrendado, no bairro Petrópolis, de um
senhor que estava doente e não podia mais trabalhar. Então, arrendei este
açougue.

O imigrante lucano5 optou por desempenhar a profissão de açou-


gueiro que inúmeros italianos meridionais desempenharam em Porto
Alegre. Sabe-se, também, que a atividade comercial caracterizou os mi-
grantes originários do Mezzogiorno nas cidades gaúchas (DE RUGGIERO,
2015).
Como empreendedor, Giuseppe, a partir do seu primeiro açougue no
Bairro Petrópolis de Porto Alegre, sempre administrou seu próprio negó-
cio. Mas ele se estabeleceu em diferentes bairros na capital gaúcha. Seu
segundo foi na Rua Duque de Caxias (Centro Histórico), durante os anos
de 1960. Já na década de 1970, adquiriu uma lancheria na Praça XV (tam-
bém no Centro Histórico). Ulteriormente, Giuseppe comprou um açougue
na rua Getúlio Vargas, na esquina com a Botafogo (no Bairro Menino
Deus), e encerrou seu percurso como açougueiro e proprietário na Rua
Florêncio Ygartua (Bairro Moinhos de Vento) em meados da década de
1980, quando se aposentou.
O entrevistado em sua trajetória profissional revela o seu caminho
enquanto migrante-empreendedor. Sabe-se que, ao longo dos anos de
1950, havia uma ampla oferta de trabalho fabril com uma baixa remune-
ração; no entanto, oferecia uma renda segura para os indivíduos que
residiam nos arredores do Quarto Distrito da capital gaúcha (FORTES,
2004).

5
A palavra lucano refere-se aos italianos nascidos na Basilicata.
Leonardo de Oliveira Conedera | 149

Entrementes, Giuseppe, como grande parte de seus patrícios, pros-


seguiu trabalhando no comércio da cidade. O depoente, assim como outros
peninsulares – que desembarcaram na capital do Rio Grande do Sul –
transformou-se, na sociedade receptora, o comerciante empreendedor e
proprietário do próprio estabelecimento.

Entre italianos e brasileiros: trabalho assistencial e pastoral

Em 1985, Giuseppe aposentou-se e, neste mesmo ano, o imigrante


lucano comenta que:

Começou a transformação da minha vida. No dia 2 de junho de 1985, conheci,


em Santa Maria, o diácono João Luis Pozzobom, que carregava a imagem da
mãe peregrina por mais de 25 anos. Ele andou por mais de 150 km carregando
a imagem da mãe peregrina, ele também levou a imagem até a Alemanha. E
eu olhando aquele uomo (homem) rústico, um agricultor, que mal conseguia
escrever o nome dele, que tinha problema de visão. E eu visitei com ele um dia
com a minha esposa e mais um casal junto. E peguei na mão dele e ele me
levou até o sacrário. E eu imagino que ele pediu para a mãe peregrina que
pegasse esse burrinho (Giuseppe), que era igual a mim. A mão dele até era
parecida com a minha, grande como raquete de tênis. E nos abraçamos, e acre-
dito que a partir daquele momento aconteceu uma transformação na minha
vida. Eu continuei trabalhando por mais três anos (depois deste encontro).

O entrevistado questionava-se acerca de sua vida e de seu futuro. No


dia 11 de junho de 1988 comprometeu-se com a imagem peregrina como
auxiliar do Santuário de Schoestatt de Porto Alegre e, daquele momento
em diante, percebeu que não poderia servir a Deus e ao trabalho, ao
mesmo tempo, retirando-se de suas atividades comerciais, iniciando sua
vida missionária, visitando hospitais, famílias e doentes.
Todavia, prosseguiu a se questionar sobre qual seria sua verdadeira
missão, a quem deveria realmente levar a imagem da Mãe Peregrina.
Nesse sentido, expandiu seus horizontes e a vontade de carregar a imagem
aos mais desfavorecidos de todos, que foram os presos em seus presídios,
e entrou em contato com a equipe da Pastoral Penitenciária.
150 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Posteriormente, Giuseppe foi chamado para entrar, em novembro de


1988, pela primeira vez no Presídio Central de Porto Alegre com a imagem
da Santa. Desde o final da década de 1980, o imigrante italiano permane-
ceu realizando visitas frequentes ao Presídio de Charqueadas, que
prosseguiram até o primeiro decênio do século XXI. Sobre a sua experiên-
cia nos presídios Giuseppe comenta que:

Nos presídios eu era o “padre José” para eles! Logo, quando cheguei no presí-
dio comecei a ver as vidas dos presos, com a presença de muitos pais de
família, e ainda hoje continua a mesma coisa. Começa que um pai de família
fica desempregado 3 a 4 meses, ele vende tudo, e termina com tudo que tem
dentro da casa dele e ele vai fazer o quê? [breve silêncio] Ele então tem que
roubar!

A partir da descoberta dessa realidade dos presidiários do Rio Grande


do Sul Giuseppe visualizou a realidade de inúmeros presos e suas famílias.
Sobre isso, o imigrante italiano observou que as famílias dos presos esta-
vam efetivamente abandonadas, com esposas e crianças enfrentando uma
situação de duras adversidades. Giuseppe começou a falar com membros
do Governo e do Ministério Público do Rio Grande do Sul a fim de sensi-
bilizar as autoridades sobre a necessidade de atender as famílias dos
presos.
Figura 2: Giuseppe Antonio Marramarco

Fonte: Disponível em: https://www.schoenstatt.org/pt/vida-em: alianca/2016/03/giuseppe-marramarco-um-fiel-


missionario-de-maria/ acessado em: 16 de ago. 2020.
Leonardo de Oliveira Conedera | 151

Em 1997, ocorreu a Campanha da Fraternidade, que trazia o seguinte


lema: “Jesus e os Encarcerados”. Durante uma palestra proferida por Giu-
seppe no Tribunal de Justiça, as esposas dos desembargadores de justiça e
juízes ficaram sensibilizadas pelo argumento e pela situação exposta a res-
peito dos egressos do Sistema Penitenciário. Ocorreu, então, a iniciativa de
criar a FAESP (Fundação de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário),
na qual Giuseppe seria membro da diretoria, desde sua criação até o ano
de 2004.
Em 2004, após o seu desempenho em prol das famílias de diversos
presos da FAESP, Giuseppe foi nomeado pela CNBB (Conselho Nacional
dos Bispos do Brasil) Coordenador da Pastoral Penitenciária da Regional
Sul III, que abrangia todo o Estado do Rio Grande do Sul. Em sua atividade
voluntária e pastoral junto aos presos e suas famílias Giuseppe permane-
ceu trabalhando por mais de 15 anos. O imigrante aponta que quando se
despediu de suas atividades para a Pastoral Carcerária atendia uma média
de 30 famílias, alcançando um universo superior a 200 pessoas.
Após se aposentar – além de se dedicar a levar a imagem da Mãe Pe-
regrina – Giuseppe foi eleito como conselheiro do Primeiro COMITES6 do
Rio Grande do Sul em 1986. Ao lado de seu colega Ferruccio Bianchino
assumiu o encargo da assistência social e assim contribuiu para a idealiza-
ção e formação do Instituto de Assistência Social aos Italianos (IASI). O
instituto seria uma forma de organizar uma entidade que auxiliasse os ci-
dadãos italianos que se encontrassem em uma situação de adversidades de
saúde e financeiras, principalmente.
Sobre o início da instituição, em 1986, o depoente narra que:

A senhora [Leonarda] Mastroggiacomo na presidência, e então a instituição


começou a funcionar. Mesmo que nos primeiros tempos recebíamos uma
verba muito pequena da Itália. E nós fazíamos 2 a 3 almoços e jantares aqui
(Igreja Pompéia) para angariar fundos para o IASI. Também tínhamos

6
Em 1985, os Comitês dos Italianos no Exterior (COMITES) são órgãos que representam os italianos que residem
fora da Itália. Essas instituições encontram-se circunscritas aos consulados que têm, pelo menos, três mil cidadãos
italianos. No Brasil, existem seis circunscrições: Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e
Recife (CONEDERA, 2018).
152 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

artesanato de Natal e alguns industriais aqui do Rio Grande do Sul que nos
ajudavam. E o IASI foi funcionando alguns anos assim. Aí, em 1993, a Srª.
Leonarda não quis mais a presidência do IASI, e, então, eu assumi a presidên-
cia.

Em 1994, Giuseppe procurou ampliar a rede de assistência, quando


assumiu a presidência do IASI, e comenta que:

Comecei a visitar um por um os italianos que eram ajudados pelo IASI, que
moravam aqui em Porto Alegre, na grande Porto Alegre, e depois comecei a
andar pelo interior. Até a questão dos italianos, que estavam no interior em
dificuldade, nós ficávamos sabendo através de cartas mandadas para o IASI
pelos prefeitos de algumas cidades do interior. E assim eu ia visitando um por
um.

Durante a gestão do imigrante lucano na presidência do IASI, o insti-


tuto recebia o pedido de auxílio de italianos em situação de vulnerabilidade
por intermédio de cartas que eram encaminhadas para o próprio IASI por
prefeitos de cidades do interior gaúcho, bem como por familiares ou
mesmo pelo próprio italiano que pedia ajuda. Em algumas oportunidades
os encaminhamentos de auxílios também decorriam via Consulado itali-
ano.
O IASI, desde o seu princípio até hoje, é uma entidade que surgiu para
auxiliar os cidadãos italianos residentes no Rio Grande do Sul. Ainda hoje
funciona nas dependências da Paróquia Nossa Senhora da Pompeia na
área Central de Porto Alegre.
É necessário assinalar que o fato de o IASI funcionar nas dependên-
cias da Paróquia não foi por acaso. Sabe-se que a Paróquia Nossa Senhora
do Rosário de Pompéia7 era um espaço de encontro para os imigrantes
italianos do pós-guerra. A paróquia foi fundada e prossegue mantida pela
ordem de São Carlos (os Scalabrinianos) (CONEDERA, 2012).

7
A Paróquia Nossa Senhora do Rosário de Pompéia localiza-se na Rua Barros Casal. A instituição foi fundada em
1959 ((ZAMBERLAM, 2010).
Leonardo de Oliveira Conedera | 153

O IASI funcionou sempre com o auxílio de pessoas da comunidade


que apoiavam a instituição (comparecendo em almoços e rifas promovidos
pela diretoria, organizados pela entidade para angariar fundos), bem como
a ajuda de empresas e empresários que queriam contribuir com a entidade
e, claro, com o apoio de recursos financeiros do Ministero Affari Esteri
(Ministério das Relações Exteriores da Itália), por intermédio do Consu-
lado Italiano em Porto Alegre.
A partir da existência e atividade do IASI é possível visualizar um as-
pecto da dificuldade que um migrante pode enfrentar durante a sua
trajetória migratória. A maioria dos indivíduos assistidos pelo IASI eram
de pessoas idosas que se encontravam em situação de vulnerabilidade
(portadores de doença incurável ou excepcional), ou de famílias italianas
que tinham membros com alguma excepcionalidade médica ou havia al-
guma necessidade de tratamento médico especial). Nesse sentido, a
entidade ajudava os migrantes e suas famílias por meio do pagamento de
tratamento de saúde ou, mesmo em alguns casos, o pagamento de casas
geriátricas.
Então, o trabalho desempenhado pelo IASI aponta que, como no caso
da migração, nem sempre a experiência de mobilidade revela-se exitosa, e
o migrante e seus familiares necessitam da colaboração e apoio de entida-
des, com a disposição de ajudar o próximo, como foi o caso de Giuseppe
Antonio Marramarco, que, mesmo tendo construído uma trajetória de tra-
balho tendo o seu próprio negócio e formando a sua família, também
dedicou muitos anos de sua vida ao trabalho voluntario no IASI, como tam-
bém levando uma palavra de consolo com a imagem da Mãe Peregrina em
hospitais e presídios do Rio Grande do Sul.
O trabalho voluntário de Giuseppe não passou despercebido pelas au-
toridades políticas de Porto Alegre. Em 2005, a partir da proposta do
Vereador conhecido por Professor Garcia, filiado ao PMDB, através do pro-
cesso nº 1065/06, em 2005, para conceder o título honorífico de Cidadão
de Porto Alegre para o imigrante italiano.
154 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Figura 2: Giuseppe Antonio Marramarco


recebendo homenagem na Câmara de Porto Alegre

Fonte: Disponível em: https://www.camarapoa.rs.gov.br/noticias/giuseppe-marramarco-e-cidadao-de-porto-


alegre acessado em: 25 de ago. 2020.

Considerações finais

A partir do uso das fontes orais é viável, utilizando-se a metodologia


da História Oral, a investigação das migrações contemporâneas, que opor-
tuniza ao historiador observar a complexidade do fenômeno social por
intermédio da narrativa do indivíduo que vivenciou a experiência migra-
tória e como ela disserta a respeito dessa sua vivência.
Giuseppe Antonio Marramarco realizou um percurso semelhante a
de seus conterrâneos originários do Sul da Itália, que se radicaram em
Porto Alegre, alcançando êxito na sua trajetória profissional, como propri-
etário do seu próprio empreendimento e formando sua família no Brasil.
No entanto, a trajetória do migrante lucano não se limitou somente a
sua vida laboral e familiar. Giuseppe constitui-se em um indivíduo cari-
doso que buscou ajudar seus patrícios em dificuldades, bem como levar
um pouco de esperança para enfermos e presidiários no Estado no qual
escolheu viver.
Além disso, a partir da narrativa do imigrante italiano foi possível
visualizar como os migrantes são atores importantes na sociedade recep-
tora, pois Giuseppe não só contribuiu como empreendedor que construiu
Leonardo de Oliveira Conedera | 155

a sua vida com trabalho no seu destino migratório, como também procu-
rou assistir aqueles que precisavam de auxílio, sendo eles seus
conterrâneos por intermédio do IASI, ou nos presídios a partir das ações
na Pastoral Carcerária.
A trajetória de Giuseppe Antonio Marramarco, portanto, viabiliza
compreender como são multifacetados os itinerários migratórios, bem
como um migrante pode ser ativo e participativo no interior de distintas
esferas onde ele se estabelece.

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MARRAMARCO, Giuseppe Antonio. Imigração e História do IASI [mar. 2011]. Entrevista-


dor: Leonardo de Oliveira Conedera. Porto Alegre.
7

“Eu ficava ali, olhando o céu” 1:


Narrativas, imagens, objetos, personagens e
lugares em pesquisas etnográficas com descendentes
de imigrantes italianos no Brasil e na Itália

Maria Catarina Chitolina Zanini 2

Introdução: caminhos de pesquisa

Partindo de pesquisas etnográficas que vêm sendo por mim realiza-


das com descendentes de imigrantes italianos no Brasil (desde 1997) e na
Itália (desde 2012), este artigo tem por objetivo analisar o importante pa-
pel desempenhado pelas imagens, objetos, lugares e personagens nas
narrativas acerca do pertencimento ao “mundo italiano” advindo de suas
ascendências. Trata-se de uma experiência compartilhada entre pesquisa-
dora e colaboradores de pesquisa ao longo dos anos, seja no Brasil ou na
Itália3, havendo a constante presença de materialidades e imaterialidades
que acompanham as narrativas sobre o processo migratório, seja dos pró-
prios descendentes ou aquelas relativas a seus antepassados. Falar de si é,
também, falar da família, das origens, dos lugares, dos valores e elementos
que estiveram presentes nas trajetórias e itinerários de cada um. Tempos
e espaços que se cruzam nas narrativas e nas corporalidades (LE BRETON,

1
Fala de uma ítalo-descendente por mim entrevistada em Roma no ano de 2016.
2
Professora Titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
3
Minhas pesquisas na Itália se centraram entre ítalo-brasileiros, ou seja, brasileiros descendentes de italianos, com
cidadania italiana reconhecida ou em processo de reconhecimento. Também entrevistei migrantes brasileiros sem
ascendência italiana, para melhor compreender algumas questões da vida cotidiana italiana.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 159

2007) repletas de sentidos e significações que se processam durante o en-


contro etnográfico4, coetaneamente ou não, por vezes (FABIAN, 2006)5.
Muitos dos objetos, lugares e imagens que conheci durante as pes-
quisas são por mim compreendidos como portadores de mana (Mauss,
1974)6, de uma energia especial, de uma força e poder simbólico imenso e
potencializador de narrativas e pertencimentos. Trata-se de patrimônios
familiares e que, muitas vezes, possuem guardiões “oficiais” que por eles
zelam (ZANINI, 2006). Os objetos, em suas complexidades, como salienta
Miller (2013), são, em meu ponto de vista, um caminho para os antropó-
logos melhor compreenderem a “vida dos outros” e o poder de alguns
elementos materiais, imateriais ou virtuais nas construções narrativas e
nas experiências de vida dos indivíduos. Pode-se pensar, como ressalta
Halbwachs (1990), que a materialidade espacial traz alguma fixidez. Desta
forma, em contextos de ruptura provocados pelos processos migratórios,
determinados objetos podem possibilitar alguma noção de estabilidade,
continuidade e pertencimento entre trânsitos e permanências. O que se
leva consigo quando se parte? Por quê? Como ressaltam Berger e Luck-
mann (1997, p.180), as biografias subjetivas não são completamente
sociais, pois cada indivíduo “aprende-se a si próprio como um ser ao
mesmo tempo interior e exterior à sociedade”. Durante minhas pesquisas,
ao longo dos anos, fui apresentada a fotografias, livretos de orações, livros
de família, santinhos, santos, roupas, objetos domésticos, cartas, escritos,
pedaços de papel e de embalagens, utensílios de cozinha, documentos dos
antepassados, louças, joias, cadernos de receitas, utensílios de carpintaria,
ferramentas de trabalho diversas, maquinários de agricultura, vídeos, en-
fim, uma infinidade de objetos e imagens que muitas vezes me causavam
surpresa porque alguns estavam ressemantizados, colocados em

4
Para Elias (1994), o corpo permite ao indivíduo se conceber como imagem espaço-temporal entre outras imagens
similares.
5
Fabian (2006) nos alerta acerca da importância de se pensar o tempo e suas complexidades no fazer etnográfico.
De qual tempo falamos? E o tempo para o outro? Quais tempos compartilhamos? O que é possível compartilhar?
6
Para Mauss, “o mana é exatamente o que dá valor às coisas e às pessoas – valor mágico, valor religioso, até mesmo
valor social” (1974, p.138).
160 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

dispendiosas molduras, digitalizados, pintados, remontados, revitalizados


e restaurados, ocupando espaços especiais nas casas urbanas ou rurais,
nos celulares ou computadores dos descendentes, seja no Brasil ou na Itá-
lia. Havia, igualmente, a vida de gerações sendo ali narradas e décadas de
história familiar e individual também. O bilhete de viagem já ilegível, o
documento apagado e incompreensível, o pano de louça encardido pelo
tempo, mas com o crochê da nonna,7 a tigela quebrada, a panela sem
tampa, o sapatinho usados pelos filhos quando bebês, enfim, objetos que,
para os narradores, eram potencialmente repletos e plenos em si mesmos.
Traços e fixidez de um tempo que não voltaria mais a não ser pela narra-
tiva, revivido em cada palavra.
Algumas vezes havia objetos que estavam guardados em caixas sim-
ples (mas especiais), muito bem cuidados, aguardando o momento de
serem novamente manuseados e narrados. Eram uma evocação ao vivido
e experenciado, seja dos próprios descendentes ou das narrativas acerca
dos antepassados, das origens, da família, de acontecimentos ou ciclos de
vida. Também conheci alguns objetos que nem sequer podiam ser toca-
dos, tamanha sua força, sacralidade e poder nos domínios familiares.
Eram para serem contemplados, admirados e reverenciados. Enfim, im-
possível generalizar o papel, a importância e o significado que cada um
destes adquiria na experiência de vida dos descendentes de italianos en-
trevistados ao longo dos anos. Mas, com certeza, sua relevância nos
processos de identificação, de construção de memórias e narrativas é
muito constante. Para além dos valores mercantis, penso que os objetos
devem ser observados e analisados em todas as suas complexidades, sua
“vida social”, como ressalta Appadurai (2008). E, nas situações por mim
presenciadas, do importante papel das origens familiares, da família como
importante valor e das narrativas acerca do pertencimento do “mundo ita-
liano” advindo do processo migratório dos antepassados.

7
Nonna é a terminologia para designar a mãe dos pais, ou seja, avó.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 161

Fonte: Acervo da autora. Objetos familiares guardados por uma descendente de imigrantes italianos na região cen-
tral do Rio Grande do Sul.

E, entre os ítalo-brasileiros na Itália, pude conhecer o poder das ima-


gens e das novas tecnologias de comunicação nos processos de
identificação e nos pertencimentos, especialmente na manutenção de vín-
culos afetivos, familiares e nas construções das memórias e das
narrativas.8 Cada fotografia compartilhada virtualmente, cada imagem,
áudio ou vídeo era recebido pelos descendentes que lá estavam com muita
emoção e narrativas. Conheci muitas famílias extensas ao longo dos anos
de pesquisa. Neste aspecto, também se observa a importância das paisa-
gens (SANSOT,1983) e de seu relevante papel nos pertencimentos,
construções identitárias e emoções. Os cenários, os personagens, a vida
que se expressava por meio destas trocas virtuais era algo muito significa-
tivo para os descendentes (ítalo-brasileiros) que estavam habitando na

8
Fato analisado e também observado por Elhhajii et al (2016), Cogo et al (2012) em seus estudos sobre mídias e por
Zanini entre descendentes de imigrantes italianos (2012).
162 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Itália. Da saudade de casa (brasileira), da família, dos amigos, dos lugares


e sentidos, das comidas, as imagens e áudios via aplicativos (Facebook,
Instagram, Whatshapp e outros), emails e outras novas tecnologias de co-
municação, possibilitavam a noção de estar/ser em tempos e espaços
diferentes. Num transnacionalismo9 vivido cotidianamente, entre mun-
dos, o processo migratório parecia mais fácil e mais viável para os ítalo-
brasileiros que rumaram do Brasil para a Itália, fazendo o caminho inverso
de seus antepassados (ZANINI et al, 2013). A maior parte das entrevistas
na Itália foi efetuada em locais considerados especiais para os entrevista-
dos: em Roma, pude conhecer estações de trem e metrô, locais históricos,
ruas e avenidas, cafés, monumentos, livrarias, restaurantes, mercados, lo-
jas, feiras, igrejas, casas, partes da cidade que traziam memórias e algum
vínculo de pertencimento para os ítalo-brasileiros que lá estavam habi-
tando. Dentro de uma perspectiva de não-lugares (Auge, 1994), fui
apresentada a alguns destes cenários da metrópole urbana como lugares,
repletos de significados. Aquele café, no qual se ficava um pouco, na saída
de uma estação de metrô, entre o trabalho da manhã e o trabalho da tarde,
quando se tinha um pouco de tempo de não-trabalho e uma pausa para
olhar o céu e a paisagem. Depois de algumas entrevistas, era comum me
convidarem para passear por determinados lugares, salientando a impor-
tância que tiveram em seu processo “migratório” e na nova vida na Itália.
Seja de metrô, de ônibus, de carro ou a pé, fiz muitos passeios na Itália
com meus entrevistados. Assim, cidades, vilas, ruas, prédios, restaurantes,
lanchonetes e praças também entram nestas materialidades narrativas de
pertencimentos e nas complexidades dos processos de mobilidade e suas
narrativas. Se no Brasil eu era convidada a conhecer jardins, hortas, gal-
pões, mobílias, pedaços de terra, capitéis e casas, na Itália também fui
convidada a fazer passeios por paisagens exteriores e interiores dos des-
cendentes de imigrantes italianos. Nos entrecruzamentos entre

9
Por transnacionalismo, segundo Glick-Schiller et al (1992), compreendem-se as práticas estabelecidas pelos mi-
grantes e que possibilitam os vínculos entre seu mundo de origem e o país hospedeiro, para além das fronteiras dos
Estados nacionais. Neste sentido, as novas tecnologias de comunicação têm desempenhado importante papel facili-
tador destas vivências.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 163

exterioridades e interioridades, as narrativas se tornam possíveis ou mais


absorvíveis, por vezes. Assim, este olhar mais sensorial na pesquisa etno-
gráfica deve ser exercitado e as caminhadas (MAUSS, 1974; INGOLD e
VERGUNBST, 2008; DE CERTEAU, 1994,1996) com nossos interlocutores
são espaços privilegiados para melhor se conhecer determinados proces-
sos pelos quais passaram, como os de mobilidade, por exemplo. Bachelard
(1996, p.28) chega a declarar que o calendário de nossa vida só poderia ser
estabelecido em seu processo produtor de imagens. Imagens estas que são
tanto interiores quanto exteriores, muito além dos marcos demarcatórios
dos Estados nacionais e suas fronteiras.

Fonte: Acervo da autora. Fontana di Trevi, em Roma.

Em Roma, uma entrevistada (ítalo-brasileira) me levou para o local


no qual começou sua estadia na cidade, há décadas atrás, em tempos que,
para ela, foram muito difíceis e me mostrou os lugares nos quais cami-
nhava nos horários de folga do trabalho, quando saia para estar um pouco
“consigo mesma”. Não eram locais de consumo, mas de passeio contem-
plativo. Andamos bastante pela cidade e pude compreender, por meio da
narrativa e da caminhada, como teria sido sua experiência de ítalo-
164 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

brasileira na Itália. Anos narrados em palavras, compreensíveis e agora


também, reflexivamente, olhados pela interlocutora. Eu visitei seu passado
pelas ruas de Roma e ela também. Fizemos juntas. E esta possibilidade do
encontro etnográfico é sempre surpreendente. Como salienta Ricouer
(1994), o mundo exibido pelas narrativas é sempre um mundo temporal,
na tentativa de poder expressar o caráter temporal da experiência hu-
mana. Desta forma, há uma circularidade entre narratividades e
temporalidades. É também uma possibilidade de partilha de significados
que se estabelece no tempo e no espaço do encontro entre um eu e um
“outro” (RICOUER, 1991)10. Neste espaço, como ressalta Ricouer (Idem,
p.191), há lugar para “um misto instável entre fabulação e experiência
viva”, para atualizações e reconstruções do vivido. Como bem reflete Por-
telli (1996) em seu estudo sobre a trajetória de Alfredo Filipponi, o passado
pode ser reinventado, dependendo de fatores pessoais e coletivos (idem,
p.43). E, cabe lembrar, como salienta Bachelard (1994, p.88), que o tempo
pensado e o tempo vivido não são sincrônicos. O tempo é, antes, como
ressalta o autor, lacunar e dialético (Idem, p.87) no qual o devaneio se
torna, em si mesmo, “uma melodia espiritual, com os incidentes parado-
xalmente livres e fundidos (Idem, p.104)”. Assim, pelas ruas de Roma,
conheci um pouco dos ciclos de vida de uma ítalo-brasileira, relatados
como fatos da juventude (no passado) e fatos da maturidade (no presente
da narrativa).
Na região do Vêneto italiano11 e seus interiores, fui apresentada a ca-
sas, espaços de trabalho, paisagens encantadoras e a cenários diversos, em
diálogos nos quais muitas vezes eu era alertada acerca da semelhança en-
tre o Rio Grande do Sul e aquele pedaço da Itália, especialmente. Na casa
dos ítalo-brasileiros, um dos objetos mostrados eram a cuia e a bomba12
para chimarrão, hábito que tinham no Brasil, especialmente os

10
Como aponta Paul Ricouer (1991, p.168): “A natureza verdadeira da identidade narrativa só se revela, em minha
opinião, na dialética da ipseidade e da mesmidade”. Ou seja, entre um eu e um outro.
11
Minhas pesquisas na Itália se centraram na região do Lázio e do Vêneto.
12
Cuia é o recipiente no qual se prepara o chimarrão. Na cuia se deposita a erva-mate e, posteriormente, a água
quente. A bomba é o utensílio com o qual se bebe esta mistura.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 165

descendentes provindos do sul do Brasil. E me mostravam porque, como


também sou originária do sul do Brasil, talvez esperassem que eu compre-
endesse o ritual, a sociabilidade e demais elementos que estão presentes
na prática de “beber o chimarrão”13 e da falta que sentiam deste hábito
cotidianamente. Embora eu tenha entrevistado ítalo-brasileiros de regiões
diversas do Brasil, foi com os descendentes do sul que minha rede de pes-
quisa mais se estendeu e com quem tive mais tempo de convivência
presencialmente e hoje virtualmente. Em minhas viagens do Brasil para a
Itália, quase sempre levei com muito gosto erva-mate para chimarrão e
outros produtos que me eram solicitados. Compreendia que era um gesto
de retribuição e carinho pelo tempo que minhas perguntas de pesquisa
tomavam das pessoas, sempre sobrecarregadas com muito trabalho e afa-
zeres. Também era interessante observar as redes de comunicação que se
estabeleciam virtualmente para saber onde se encontrar na Itália erva-
mate, feijão preto, farofa e outros elementos considerados típicos da “co-
mida brasileira”.

A imigração italiana para o Brasil e suas memórias

Para melhor se compreender a migração italiana para o Brasil, deve-


se observar que ela começa ainda no Brasil Império e se estende no Brasil
República havendo, entre ambos os governos, diferentes negociações ao
longo das décadas em que esta mobilidade vai se estabelecendo. Os
emigrados italianos que se dirigiram ao sul do Brasil em finais do século
XIX, ancestrais dos descendentes de imigrantes italianos que pesquisei,
eram predominantemente do Norte da Itália, católicos, camponeses e
migravam em família.14 Havia, entre eles, aqueles com algum capital

13
Beber chimarrão é um hábito comum no sul do Brasil. Trata-se de uma bebida que se consome quente e que é
preparada com erva-mate e água. Pode-se “beber” individualmente ou coletivamente, fazendo “rodas”, como se
chama. Ou seja, círculos. É um hábito que foi introduzido entre os imigrantes italianos e seus descendentes muito
cedo no processo colonizador em terras brasileiras (ZANINI, 2006).
14
Isto pode ser observado com relação à emigração italiana para outras partes do Brasil também, como salienta
Trento (1988, p.41): “A propósito da proveniência regional, devemos sublinhar que a predominância de trabalhado-
res setentrionais também correspondia às preferências manifestadas pelos fazendeiros por vênetos e lombardos,
devido à sua parcimônia, frugalidade e, sobretudo, docilidade. Em alguns contratos de introdução de emigrantes
166 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

econômico, instrução e influência política, salientando o quanto foi uma


migração diversificada e que ainda merece maiores estudos em suas
temporalidades, espacialidades e especificidades. Partiam da Itália recém-
unificada em família (nuclear e extensa), em sua maioria com poucos bens
e objetos, fazendo a travessia transoceânica e depois rumando para as
colônias. Algumas localidades na Itália ficavam praticamente vazias, como
relata o jovem emigrado Julio Lorenzoni em suas memórias
(LORENZONI, 1975). Franzina (2006), em seus estudos acerca do mundo
camponês do norte italiano, também salienta isto, mostrando dados
quantitativos acerca desta mobilidade. As memórias escritas deixadas por
Julio Lorenzoni (idem) e Andrea Pozzobon (1997) relatam com detalhes
este processo, desde a saída da Itália até o processo colonizador no sul do
Brasil.
A migração massiva para o Rio Grande do Sul começou em 1875, para
as colônias de Conde D´Eu (hoje Garibaldi), Dona Isabel (hoje Bento Gon-
çalves) e Caxias. Para a região central do Rio Grande do Sul, lócus maior
de meus estudos, a vinda dos imigrantes italianos teria começado em 1877
(ANCARANI, s.d). Variados foram os motivos que influenciaram aquelas
famílias para a empreitada emigratória, não podendo haver generaliza-
ções. A literatura acerca daquele período, contudo, aponta para aspectos
comuns que se desenvolveram tanto na saída da Itália quanto na chegada
em terras brasileiras (vide ALVIM, 1986; HUTTER, 1972; GROSSELLI,
1987; LORENZONI, 1975; POZZOBON, 1997; FRANZINA, 2006; TRENTO,
1988; GANDINI, 2000: DE BONI e COSTA, 1984; CENNI, 1975, entre ou-
tros). No Rio Grande do Sul os emigrados italianos terão acesso à
propriedade da terra, podendo, por meio do trabalho familiar, reproduzir
a condição camponesa e ascender socialmente ao longo dos anos.
Importante neste artigo retomar a concepção de Sayad (2006) acerca
da migração como um fato social total, observando quem o migrante é
historicamente como indivíduo membro de uma sociedade (anterior ao

eram explicitamente excluídos emigrantes provenientes da Sicília, da Romanha e das Marcas, porque eram conside-
rados rebeles e mais prontos e repelir o arbítrio”.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 167

processo migratório), como subjetividade e como corpo que migra. E os


valores atribuídos aos objetos e imagens aqui discutidos, fazem parte de
uma subjetividade coletivamente exercitada e aprendida que deve ser
compreendida por meio dos vínculos entre a terra de origem, a Itália, e o
mundo brasileiro e, no caso dos descendentes atuais que se deslocam para
a Itália, numa releitura e trânsitos destes pertencimentos, muitas vezes.
São mobilidades que se fazem entre Estados nacionais, mas também entre
mundos, entre condições “objetivas” e “subjetivas”, dialogicamente.
Observando o poder atribuído a objetos, imagens e lugares e sua
capacidade de gerar memórias, compreende-se o quanto fizeram parte de
processos socializadores (BERGER e LUCKMANN, 2008) e coletivos, na
formação das experiências e trajetórias de vida, na composição de um
habitus e de gostos (BOURDIEU, 1983), seja entre os descendentes
advindos do mundo urbano ou aqueles do mundo rural. Por memória,
compreendo, conforme Halbwachs (1990), a leitura sobre o passado que é
elaborada no presente. Falo aqui do tempo presente vivenciado durante as
conversas, prosas e entrevistas. O tempo do encontro entre pesquisador e
colaboradores de pesquisa e suas narrativas, propiciadas pela troca de
experiências (BENJAMIN, 1994). São releituras sobre o passado,
negociações entre sentidos e valores que se processam na possibilidade do
encontro etnográfico, sempre único e irrepetível. Conforme salienta
Halbwachs (1990), por mais que a memória seja coletiva, quem lembra é
o indivíduo. E é este, com sua subjetividade socialmente construída, que
narra por meio de gestos, corporalidades, sentimentos e emoções ali
contidas (CANDAU, 2012). Como ressalta De Certeau (1998, p.163), as
memórias são também tocadas pelas circunstâncias, “como o piano que
“produz” sons aos toques das mãos”. Enfim, são construções inacabadas
sempre.
Toda narrativa é sempre uma negociação entre o dizível e o indizível,
bem como as memórias, que passam por seleções (POLLAK, 1989),
aproximações, durações e distanciamentos, no tempo e no espaço vivido e
narrado (BACHELARD, 1994; ECKERT, 1993). Foram estes descendentes
168 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

e suas narrativas que me permitiram entrar em suas vidas (tempos e


espaços) e conhecer as multiplicidades e variedades das italianidades no
sul do Brasil (ZANINI, 2006) e também na Itália (ZANINI, 2013, 2014,
2018). Dentre as memórias que eu mesma construí do processo de
pesquisa ao longo dos anos, posso dizer, que tive (e tenho) um prazer
imenso em conhecer hortas, saber acerca das plantas para alimentação, as
plantas medicinais, o que é produzido para consumo doméstico e o que é
para comercialização, como e quando consomem, quando plantam, como
as sementes e as mudinhas de plantas circulam e quais são as lógicas de
reciprocidade e também de mercado nestes espaços.15 Também aprendi
muitas receitas culinárias e ainda tenho a pretensão de, em algum
momento de minha vida acadêmica, poder me dedicar mais enfaticamente
à análise destas comensalidades e destas práticas alimentares e de saúde
também. Como passei anos de minha infância numa zona colonial rural,
hortas e jardins são lugares repletos de significados, lógicas e sentidos.
Aprendi, desde muito pequena, a “ler” hortas e jardins e a classifica-los
dentro de uma perspectiva familiar de descendentes de imigrantes
italianos. Havia hortas grandes, pequenas, caprichadas, bem ou mal
cuidadas, bonitas e feias, enfim, há uma série de adjetivos classificatórios
pelos quais se pode “ler” estes espaços.

15
Neste aspecto, tenho o privilégio de desenvolver, desde 2011, pesquisa etnográfica com feirantes descendentes de
migrantes italianos em Santa Maria e região.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 169

Fonte: Acervo da autora. Horta de uma família no interior de Santa Maria-RS.

Objetos perdidos, encontrados, guardados e narrados

Importante salientar que os períodos do Estado Novo (1937-1945) e


da II Guerra Mundiais (1939-1945) foram tensos para os italianos e para
seus descendentes no Rio Grande do Sul (ZANINI, 2005, 2006; DAL
MOLIN, 2005; SGANZERLA, 2001) e no Brasil também (CANCELLI, 1993),
fazendo com que muitas famílias se desfizessem de objetos (fotografias,
quadros, documentos, móveis, cartas, entre tantos outros) que
remetessem ao pertencimento italiano, uma vez que, em 1942, o Brasil
ingressa na II Guerra Mundial lutando contra o Eixo, formado por Itália,
Japão e Alemanha16. Os imigrantes e descendentes eram, assim, do ponto
de vista político, considerados “inimigos” de guerra. Denominei tal
processo de “varredura cultural” (ZANINI, 2006) e muitas foram as
narrativas que tive acerca deste período e dos procedimentos que cada
família teve para se proteger, esconder ou destruir objetos com receio de
represálias, prisões ou perseguições. Estas ofensivas foram mais comuns
na zona urbana, contudo, em muitas localidades rurais também estiveram
presentes. Não se pode generalizar e nem afirmar que foram perceptíveis
para todos da mesma forma. Pode-se dizer que, naquele período, houve
uma vigilância que se deu por meio do aparato policial e outra, mais sutil
e danosa, pela invocação da sociedade civil como cúmplice, solicitando a
vigilância de uns sobre outros (ZANINI, 2005, 2006, 2015).
Nas construções identitárias atuais dos descendentes de italianos no
Rio Grande do Sul, minhas pesquisas tem apontado que os sinais
diacríticos constituintes do pertencimento étnico (BARTH, 2000) se
ressemantizam e atualizam, em constante negociação nos processos
interativos aos quais os imigrantes e descendentes foram expostos e se
expuseram. Também se atualizam devido às mudanças nas trajetórias de
vida dos descendentes, de questões de classe, gênero, geração e também

16
Como ressalta Seyferth (1999), este período foi tenso para vários outros grupos também considerados ameaças ao
Estado nacional brasileiro.
170 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

de vínculos com outros pertencimentos sociais, como trânsitos religiosos,


por exemplo. Estes objetos e imagens, desta forma, podem invocar
narrativas diferenciadas no interior da mesma família e dos próprios
descendentes em momentos diferentes de sua existência. Visitei casas nas
quais havia imagens de santos católicos convivendo em harmonia no
espaço com objetos do budismo ou de religiões afro-brasileiras.
Alguns destes objetos são potencialmente polissêmicos e capazes de
gerar disputas familiares tensas também. Quem tem o direito de ficar com
a máquina de costura da nonna? E os bordados e crochês? E os
documentos antigos para uma possível tentativa de reconhecimento da
cidadania italiana? E as fotos dos pais? E as louças? E as joias? E os
escritos? E os livros de receitas? E as mobílias? E os santos e objetos
religiosos? E os quadros? Pode-se dizer, como ressaltei em outros escritos
(ZANINI, 2006), que após 1975, quando se comemorou o Centenário da
Imigração Italiana, havendo a visibilidade e reconhecimento público da
contribuição desta imigração, fez-se uma valorização dos elementos de
pertencimento à italianidade no mercado de bens simbólicos regional e
nacional. Foi elaborada e legitimada uma narrativa positiva acerca da
imigração italiana para o Brasil. Esta foi considerada desenvolvimentista,
os “italianos” (os imigrantes e seus descendentes) vistos como
empreendedores, trabalhadores, valorizadores da família, da religiosidade
e do trabalho. Desta forma, invocar pertencimento e origem italiana traz
distinção em contextos interativos específicos que devem ser analisados
situacionalmente pelo pesquisador. Esta valorização da italianidade faz
com que alguns destes objetos legitimadores da ascendência gerem
disputas tensas e sofridas, por vezes.

As surpresas, as reflexividades e aquilo que nos move nas pesquisas


empíricas

Por vezes eu conto em aulas nas disciplinas de Memória e de


Metodologia alguns eventos que marcaram minha vida de pesquisadora.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 171

E como cada ser humano, apesar das construções coletivas que são as
memórias e seu processo narrativo por meio da linguagem comum,
podem estabelecer vínculos com determinados objetos para acessa-los ou
fazer com que sejam partilhados na família e nas coletividades de formas
específicas. Foram muitas as surpresas que tive ao longo dos anos de
pesquisa e que, de certa forma, faziam-me repensar o quanto o contato
constante com os colaboradores de pesquisa e com a pesquisa empírica é
relevante e transformador de nossos pontos de vista acadêmicos, sejam
teóricos ou metodológicos. A teoria, desta forma, acaba dialogando e se
transformando com a empiria e com as experiências e trajetórias de vida
dos interlocutores. Por entre fotografias, objetos variados e narrativas,
pude entrar e conhecer muitas casas em seus interiores, muita mobília
antiga, muita vida presente nestes espaços. O espaço é habitado também
pelo tempo e por personagens, por meio do que ali está, sejam objetos
materiais ou imaterialidades também. Alguns destes objetos também se
relacionam com as pessoas (algumas vivas, outras já falecidas), com suas
temporalidades, processos de identificação e com noções de ser/estar no
mundo.
Eu já fui apresentada a roupas intimas, a vestuário dos antepassados,
pedaços de tecidos que hoje são mais memória do que vestimenta, partes
de objetos e elementos, seja do mundo masculino ou feminino que só eram
compreensíveis em suas importâncias quando ouvidas as narrativas
acerca de “seu lugar no mundo” do pesquisado e, algumas vezes, das
famílias destes também. Conheci muitas ferramentas de trabalho,
brinquedos feitos pelos antepassados, já quebrados e sem cor, um mundo
de coisas guardadas que contavam um pouco da vida de seus guardadores.
Algumas ferramentas haviam sido inventadas pelos próprios
descendentes, guardadas em galpões, enfeitando paredes, num zelo
imenso. Mas o que muito me marcou foi, certa vez, quando fui apresentada
a roupas íntimas femininas das antepassadas que eram guardadas e muito
bem cuidadas por uma senhora e tudo o que isto provocou em mim. Ao
olhar uma roupa íntima usada no passado, muito limpa e bem zelada e
172 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

apresentada a mim com naturalidade, senti que eu estava entrando no


domínio da intimidade. Tive pudor e algo de estranhamento, o que me fez
pensar o quanto não estamos, às vezes, preparados para algumas
situações. Era um dom da entrevistada para comigo. E me senti
responsável por tudo o que aprendi sobre o mundo das “antigas”. Por
antigas se entende a geração considerada pela senhora como distante
temporalmente da sua, no tempo presente. Aqui falava de sua mãe e de
sua avó, mais especificamente. Como estas produziam suas roupas, como
se cuidavam, como cuidavam do corpo. Enfim, por meio de uma roupa
íntima ingressei no mundo narrativo das mulheres do passado. Aprendi
muito sobre o mundo masculino e feminino dos imigrantes e seus
descendentes por meio de objetos, tanto com entrevistadas mulheres
quanto com entrevistados homens. Aprendi também sobre o mundo do
trabalho, do cotidiano, da saúde, do lazer e dos cuidados. Fiquei atenta
para olhar com mais atenção para as particularidades e para as
generalidades também
Durante as pesquisas, pude também conhecer lugares considerados
sagrados por alguns descendentes, como a gruta a Nossa Senhora de
Lourdes em Vale Vêneto. Depois de saber de sua importância para muitos
descendentes e também da beleza do lugar, eu a tornei um passeio
obrigatório quando apresentava a região para pessoas vindas de fora.
Também eu hoje tenho muitas memórias sobre a Gruta e os passeios e
preces que pude lá fazer.
Maria Catarina Chitolina Zanini | 173

Fonte: Acervo da autora. Gruta de Nossa Senhora de Lourdes, em Vale Vêneto (localidade no interior de São João
do Polêsine), na região central do Rio Grande do Sul. As placas são formas de agradecimento por graças e bênçãos
recebidas.

Conheci, igualmente, alguns capitéis, que eram pequenas capelas que


os imigrantes e seus descendentes construíam nas estradas ou nos
caminhos entre propriedades para que, eles mesmos ou as pessoas que ali
passassem pudessem fazer alguma prece. Muitos destes capitéis foram
construídos como forma de agradecimento por graças recebidas, por fé e
devoção. E alguns eram muito bem cuidados. Na fotografia abaixo,
mostra-se o interior de um destes capitéis na região central do Rio Grande
do Sul. Apresentei também muitos destes capitéis para visitantes que
vinham conhecer a região. Alguns são de uma beleza ímpar. A migração
italiana foi marcada também pela migração do catolicismo vivido pelos
imigrantes que, em terras brasileiras, desenvolveu-se e fez com que várias
congregações religiosas logo para cá viessem também. A religiosidade se
fez presente de formas variadas, seja na vida cotidiana ou
institucionalmente, merecendo, com certeza, estudos mais pontuais e
situacionais.
174 | Entre a Itália e o Brasil Meridional: História Oral e narrativas de imigrantes

Fonte: Acervo da autora. Interior de capitel no município de Silveira Martins, na região central do Rio Grande do
Sul.

Considerações Finais

Este artigo procurou salientar o quanto objetos, lugares e imagens


são importantes e se fizeram presentes nos processos narrativos acerca
das memórias, pertencimentos e trajetórias por mim pesquisados. No caso
aqui analisado, com pesquisas realizadas com descendentes de imigrantes
italianos nascidos no Brasil, relativas ao pertencimento ao “mundo
italiano”, advindo das origens dos antepassados. Esta origem está
assentada no processo de imigração italiana para o Brasil ocorrido em
finais do século XIX. Tanto entre descendentes residentes no Brasil ou
naqueles que rumaram para a Itália, observa-se o importante papel das
“origens” nas construções narrativas.
A pesquisa etnográfica nos possibilita ter acesso ao teor de algumas
destas construções, seja em suas particularidades como em suas
similaridades com outros processos migratórios. Por meio de observação
participante, entrevistas e conversas, pode-se estabelecer relações de
confiança que me permitiram o acesso ao mundo doméstico, cotidiano e,
em algumas vezes, das intimidades destes descendentes. Assim, as
narrativas possibilitadas pelo encontro pesquisador/pesquisados,
Maria Catarina Chitolina Zanini | 175

analisadas como construções possíveis e permeadas pela historicidade e


subjetividade estabelecidas pelo momento da pesquisa, tornam-se fontes
extremamente ricas para o estudo dos processos migratórios, sejam os
históricos ou contemporâneos. Entre imagens, lugares, objetos a “vida dos
outros” (pesquisados) e seus cotidianos e trajetórias se tornam
compreensíveis no limite da nossa capacidade de traduzi-los em
linguagem antropológica. As experiências de vida dos colaboradores de
pesquisa e suas trajetórias são, com certeza, muito mais ricas do que
qualquer texto acadêmico poderia querer ser. Além disto, a pesquisa
etnográfica nos possibilita reflexivamente o encontro conosco mesmos e
nossas próprias historicidades e subjetividades. De nossos limites e
constrangimentos, por vezes. O que, com certeza, é sempre muito positivo.
Em suma, objetivou-se, por meio deste artigo, refletir brevemente
sobre como a pesquisa etnográfica por mim realizada ao longo dos anos
com descendentes de imigrantes italianos foi possibilitada e enriquecida
pela presença de objetos, imagens, personagens, lugares e suas narrativas.
Conviver com estes descendentes no Brasil e na Itália muito me alertou
acerca das multiplicidades dos elementos que envolvem os processos de
identificação e de reconhecimento das alteridades. E, por meio das novas
tecnologias de comunicação, diferentes formas de acesso ao passado e suas
narrativas tem se tornado possíveis, bem como os vínculos que estas
propiciam, seja nos domínios familiares ou coletivos mais amplos. Desta
forma, estar atento, nos momentos empíricos da pesquisa, acerca destas
presenças e destes movimentos de significação, é algo muito enriquecedor
para melhor se compreender os processos que procuramos estudar e como
podemos interpretá-los.
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