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2021/2022

SEBENTA DE 1.º SEMESTRE

D I R E
I T O
ADMINISTRATIVO
Duarte Nogueira
Com os apontamentos de
Débora Sá
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Sebenta – Direito Administrativo

Notas introdutórias
Esta sebenta de Direito Administrativo, disponibilizada pela Comissão de Curso dos
alunos do 2º ano da licenciatura em Direito, foi elaborada pelo estudante Duarte Nogueira
e revista pelos estudantes: José Santos e Eduardo Vasconcelos. Esta sebenta tem por base
as aulas teóricas lecionadas pelo Sr. Professor Pacheco de Amorim bem como as suas
Lições, os apontamentos semanais da estudante Débora Sá e o Curso de Direito
Administrativo (volumes I e II) do Professor Freitas do Amaral, sendo que constitui um
mero complemento do estudo, não dispensando, por isso, a leitura das obras obrigatórias
e a frequência das aulas teóricas e páticas.

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Índice

Parte I – Introdução ao Direito Administrativo ...........................................................4


Título I – Noções Fundamentais sobre a Administração Pública e o Direito
Administrativo ...................................................................................................................4
Capítulo I – Noções Fundamentais ......................................................................4
1. Noções de Administração Pública ...................................................................4
2. Os vários sentidos do conceito de Administração Pública ..............................7
3. Noção de Direito Administrativo...................................................................11
4. Função Administrativa e outras Funções do Estado ......................................12
Capítulo II – Perspetiva Histórica e Comparatística .........................................16
1. Evolução histórica da Administração Pública ...............................................16
2. Os sistemas de Administração: executiva e judicial ......................................27
Título II – A Administração e o Direito .........................................................................31
Capítulo I – A Administração e o Direito Administrativo: a problemática do
Poder Discricionário ...........................................................................................31
1. Noção de Discricionariedade .........................................................................31
2. Discricionariedade Administrativa e conceitos normativos imprecisos ........36
3. Discricionariedade Administrativa e prerrogativas de avaliação, natureza e
fundamento da discricionariedade, legalidade vs. juridicidade .....................39
Capítulo II – Os Princípios Gerais da Atividade Administrativa ......................45
1. Notas Introdutórias ........................................................................................45
2. Princípios Gerais da Atividade Administrativa .............................................46
1. Legalidade ............................................................................................46
2. Interesse Público ..................................................................................47
3. Respeito pelos Direitos e Interesses Legalmente Protegidos ...............48
4. Boa Administração...............................................................................49
5. Igualdade ..............................................................................................49
6. Proporcionalidade ................................................................................51
7. Justiça e Razoabilidade ........................................................................51
8. Racionalidade .......................................................................................52
9. Imparcialidade .....................................................................................52
10. Boa-fé .................................................................................................52
Capítulo III – A Administração e o Direito .......................................................53
1. A Atividade da Administração e os Contratos da Administração; A Atividade
da Gestão Púbica e o Direito Administrativo como Direito Estatutário da
Administração ................................................................................................53
2. A Administração e o Direito Privado ............................................................60
3. A fuga para o Direito Privado ........................................................................62

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Parte II – Direito da Organização Administrativa .....................................................64


Título I – Noções Gerais e Sistema Organizativo ..........................................................64
Capítulo I – Noções de Organização Administrativa .........................................64
1. Noções Introdutórias ......................................................................................64
2. Os Princípios Constitucionais da Organização Administrativa e o Sistema
Organizativo da Administração Pública neles Fundado ...............................64
1. Desburocratização ................................................................................64
2. Descentralização ..................................................................................65
3. Desconcentração .................................................................................67
4. Participação. .........................................................................................69
5. Subsidiariedade ....................................................................................71
6. Unidade da Administração ...................................................................74
7. Imparcialidade......................................................................................78
Capítulo II – Elementos da Organização Administrativa...................................79
1. Pessoas Coletivas Públicas, órgãos e serviços públicos ................................79
2. Atribuições, competências e legitimação.......................................................87
Título II – Os Setores da Administração Pública; Tipologia e Regime das pessoas
Públicas ............................................................................................................................91
Capítulo I – Os Setores da Administração Pública; Tipologia e Regime das
Pessoas Coletivas Públicas ..................................................................................91
1. Noções Gerais ................................................................................................91
2. Administração Estadual Direta ......................................................................91
3. Administração Estadual Indireta ....................................................................93
4. Administração Estadual Independente.........................................................100

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Parte I – Introdução ao Direito Administrativo


Título I – Noções fundamentais sobre a administração pública e o direito
administrativo
Capítulo I – Noções Fundamentais
1. Noções de Administração Pública e Interesse Público
O Direito Administrativo é constituído pelo conjunto de normas jurídicas que regulam
a organização e o funcionamento da Administração Pública, bem como as relações que a
Administração estabelece com outros sujeitos de Direito.
A Administração Pública é constituída pelo conjunto de entidades, órgãos e serviços
articulados entre si que executam tarefas preordenadas à satisfação de interesses públicos.
A Administração segue fins heterónimos – ou seja, não são escolhidos por si, mas por um
terceiro, pelo legislador.
A Administração visa satisfazer certas necessidades comuns – necessidades coletivas que
pertencem à comunidade em geral, no entanto, nem todas as necessidades comuns são
necessidades públicas, sendo que existe um processo de seleção dos interesses que devem
ser tutelados pela Administração Pública.
Exemplos dados pelo prof. Freitas do Amaral:
o Necessidade de proteção de pessoas e bens contra incêndios – satisfeita através de
um serviço de bombeiros;
o Necessidade de segurança e proteção dos cidadãos contra perturbadores da ordem
e tranquilidade pública – satisfeita pelos serviços de polícia;
o Necessidade de ensino da população – satisfeita por um serviço de escolas;
o Necessidade de prestar habitação;
o Necessidade de zelar pela saúde da população – serviço de hospitais.
“Onde quer que exista e se manifeste com intensidade suficiente uma necessidade
coletiva, aí surgirá um serviço público destinado a satisfazê-la, em nome e no interesse
da coletividade”.
Desdobrando o Conceito de Administração Pública:
§ Elemento substantivo – Administração, pois trata-se da atividade de quem gere
bens e recursos afetos ao bem comum, por definição escassos, administrados em
benefício da comunidade;
§ Elemento adjetivo – Pública, pois visa satisfazer determinadas necessidades de
uma sociedade mais ou menos homogénea;
§ Administração em sentido objetivo, enquanto atividade – conjunto de tarefas
atribuídas;
§ Administração em sentido subjetivo – a um sistema de entidades, órgãos e
serviços organizados que, de acordo com determinados princípios se manifestam

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através de atos com valor e força jurídica própria (sujeição em regra da


Administração a um direito próprio – o Direito Administrativo).
O Conceito de Interesse Público
Trata-se sempre de um fim prosseguido pela Administração Pública para a satisfação de
necessidades de uma sociedade politicamente organizada que o legislador dessa
sociedade qualifica como indispensáveis.
De entre o universo vasto dos interesses gerais da comunidade existem alguns de tal modo
importantes, que a sua satisfação influencia o normal funcionamento e o equilíbrio da
sociedade, que levam o Estado a chamar até si a responsabilidade pela sua satisfação.
Assim, do leque possível de interesses gerais/coletivos, apenas se transformam em
interesses públicos aqueles cuja satisfação, dada a sua importância, for confiada aos
órgãos político-legislativos e administrativos da comunidade.
É importante precisar que um interesse público não é um interesse individual nem a soma
de todos os interesses individuais.
A existência da Administração resulta do facto de haver interesses que não podem ser
espontaneamente satisfeitos pelos indivíduos de uma sociedade – devendo ser assumidos
pelo Estado – cabendo assim ao legislador avaliar quais os interesses coletivos que se
devem tornar interesses públicos, fixando desde logo com isso os parâmetros de atuação
por que se vai reger a Administração – Princípio da Prossecução do Interesse Público.
Dentro do Conceito de Interesse Público podemos fazer uma dupla divisão:
Interesse Público Primário e Interesses Públicos Secundários
o Interesse Público Primário (bem comum) – corresponde aos valores básicos que
orientam uma comunidade política, cuja escolha, definição e satisfação está
confiada aos seus órgãos político-legislativos, essencialmente através do exercício
da função legislativa, desde logo no próprio poder constituinte.
o Interesse Público Secundário (instrumentais) – constituem concretizações do
interesse público primário, meios/instrumentos para a sua realização, e cuja
satisfação está confiada a órgãos e serviços da máquina do Estado: segurança
social, saúde, educação, transportes, ambiente…
A realização do interesse público primário traduz-se na criação das condições de paz,
segurança, justiça e desenvolvimento necessárias ao bem-estar material e espiritual da
comunidade – são objetivos últimos de qualquer sociedade, difíceis de atingir, nunca
inteiramente efetiváveis e cuja realização imediata é pedida aos órgãos político-
legislativos da comunidade.
Referências ao Bem Comum na Constituição da República Portuguesa – artigos 1.º, 2.º,
3.º, 9.º, 20.º, 80.º e 81.º, mas tais valores situam-se a um nível muito abstrato.
Já os interesses secundários são os meios que se definem como politicamente necessários
para a realização do interesse público primário (bem comum).

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A quem cabe a definição dos interesses públicos secundários? Cabe ao legislador


definir tais interesses, competindo por sua vez ao poder executivo ou administrativo a sua
realização no plano concreto.
Assim, há um vasto elenco de interesses públicos secundários, que uma determinada
sociedade entende reservar para os seus órgãos, variando a composição desses interesses
em função das opções políticas da mesma comunidade.
Princípio da prossecução do interesse público e princípio da legalidade
O poder administrativo ou executivo é um poder de execução que prossegue os interesses
definidos apenas pelo legislador. Isto significa que a Administração Pública não tem
liberdades propriamente ditas, ou seja, não dispõe de espaços de licitude onde possa atuar
fora do Direito, em função de fins por si livremente escolhidos. A Administração está
vinculada à satisfação de necessidades, interesses ou fins que lhe são fixados
externamente (pelo legislador), os quais ela tem obrigatoriamente de prosseguir.
Cada vez mais, a Lei outorga poderes discricionários à Administração Pública, mas tais
poderes traduzem-se quando muito numa escolha de meios e não de fins, na verdade esta
nunca escolhe os seus fins – não é possível a cada órgão administrativo usar os poderes
que o legislador lhe atribuiu para prosseguir outros fins que não aqueles que cada lei lhe
fixa especificadamente.
Por isso se diz que os poderes públicos que integram a competência de cada órgão são
Poderes Funcionais – poderes atribuídos em função exclusivamente da prossecução de
fins públicos específicos e predeterminados. Não pode, por isso, a Administração exercer
um poder que a lei lhe outorga para a prossecução de um outro fim público que o que
presidam por força da mesma lei que esse poder.
§ Assim o Princípio da Prossecução do Interesse Público dita que a Administração
Pública foi criada precisamente e apenas para servir a comunidade, ou seja, para
prosseguir o interesse público que a lei lhe fixa (artigo 26.º, n.º 1 e 269.º, n. º1 da
CRP; e artigos 3.º e .4º do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
§ Este princípio é uma decorrência do princípio da Legalidade da Administração
(dada a necessidade de prévia fixação por lei do interesse público) presente nos
artigos 266.º n.º 2 da CRP; e 3.º do CPA.
Recapitulando, o legislador define uma situação da vida real e indica uma solução para o
caso, podendo ou não delegar poder de escolha à Administração. Esta, por sua vez,
convoca e aplica à situação concreta as regras que o legislador definiu. A esta operação
chama-se Subsunção.
Concluindo, a Administração prossegue o interesse público na medida em que atua em
conformidade com as indicações do legislador.
Prossecução do interesse público e proteção dos direitos e interesses dos particulares
A prossecução do interesse público acarreta uma tensão entre os particulares e a
Administração Pública. Desde logo, a Administração, enquanto autoridade pública,
detém de um poder de imperium, a que corresponde uma situação de sujeição geral dos
particulares.

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O exemplo da expropriação pública reflete isso – se a Administração entender que


determinada estrada terá de passar pelo meio de uma propriedade de um particular, sendo
do interesse público que assim seja, este terá de se sujeitar e ceder o terreno para o efeito
mediante uma justa indemnização que o expropriante está obrigado a pagar (artigo 62.º
n.º 2 CRP). Este exemplo demonstra que o interesse público prevalece sempre sobre os
interesses particulares, em caso de colisão de interesses.
Assim, verifica-se uma perpétua procura pelo equilíbrio entre a prossecução do interesse
público e a máxima proteção possível dos direitos e interesses dos particulares – com
efeito a Constituição e Lei consagram, a par dos interesses públicos, direitos e interesses
legalmente protegidos dos particulares (artigo 266.º n.º 1 CRP; artigo 4.º CPA). A própria
lei faz uma ponderação entre a medida dos interesses públicos e privados em colisão,
estabelecendo uma solução:
o Umas vezes a ponderação é feita por Lei ou pela Constituição e pode redundar na
atribuição de verdadeiros direitos subjetivos públicos aos particulares, direitos a
que correspondem poderes vinculados da Administração;
o Outras vezes o legislador delega tal tarefa de ponderação de interesses na
Administração, através da atribuição de poderes discricionários sem deixar,
todavia, a ordem jurídica de reconhecer concomitantemente aos particulares
interessados naquela atuação o poder de exigir da Administração que tal atuação
não seja não discriminatória, imparcial, justa, proporcionada, racional, razoável e
pautada pela boa-fé (artigos 266.º n.º 2; e 5.º a 10.º CPA)
Nos últimos 30 anos, com o primeiro CPA (1991), as revisões constitucionais de 1989 e
1997 e a grande reforma do contencioso administrativo de 2002, assistiu-se em Portugal
a um reforço dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.

2. Os Vários Sentidos do Conceito de Administração Pública


A primeira distinção a fazer é entre a Administração em:
o Sentido orgânico/subjetivo - surge como sinónimo de organização administrativa
o Sentido objetivo – surge como sinónimo de atividade administrativa
Com efeito, aquele conjunto vasto e complexo de organismos a que nos referimos, e que
existe e funciona para satisfação das necessidades coletivas, não é mais do que um sistema
de serviços e entidades (sentido orgânico/subjetivo) que atuam por forma regular e
contínua para cabal satisfação das necessidades coletivas (sentido objetivo).
Administração em sentido objetivo
Podemos fazer uma tripartição:
a. Sentido Material – atividade administrativa como conjunto típico de tarefas
reconduzíveis à ideia de administrar. Reflete os princípios e apresenta as
características especiais que a atuação da Administração deve por norma observar
e possuir.

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Tarefas essas que associamos normalmente ao aparelho administrativo em sentido


subjetivo devido à sua substância indissociável. Inclui-se o exercício por entidades
privadas de poderes públicos, delegados pelo Estado. Exclui-se desta dimensão as
atuações dos órgãos da administração que se reconduzam a outras funções do Estado que
não a Administrativa.
b. Sentido Funcional – abarca toda a atividade administrativa resultante do
exercício da função administrativa pelas entidades nesta investidas, de natureza
pública ou privada;
c. Sentido Formal – atos jurídicos típicos da função administrativa com valor
formal e força jurídica própria através dos quais se manifesta normalmente a
atividade administrativa, dos quais se destacam os seguintes:
a. Regulamento Administrativo – normas jurídicas próprias;
b. Ato Administrativo – decisões concretas;
c. Contrato Administrativo – contratos celebrados com o particular
preordenados à prossecução de um interesse público e cuja formação e
execução são regidas pelo direito administrativo.
Na Administração em Sentido Formal também se inclui todos os típicos atos
administrativos e regulamentares (desde que dotados de força e valor jurídico), mesmo
que, materialmente, se reconduzam a outras funções do Estado (por exemplo – função
jurisdicional).
Administração pública em sentido subjetivo ou orgânico
Traduz-se no complexo e entidades, órgãos, serviços e agentes que tem como tarefa
fundamental a satisfação do interesse público. Todos eles se estruturam e funcionam de
forma articulada. A expressão administração assume o significado de organização.
A Administração Pública em sentido organizativo, numa aceção estrita ou clássica, é
composta pelo Estado-Administração e pelos demais entes públicos com natureza
jurídico-organizativa pública, compreendendo dois grandes níveis: Administração
Estadual e Administração Autónoma.
o Administração Estadual
o Administração direta do Estado
o Administração indireta do Estado
§ Institutos públicos
§ Fundações públicas
§ Empresas públicas institucionais
o Administração estadual independente
§ Entidades administrativas independentes
§ Entidades reguladoras independentes
o Administração Autónoma
o Territorial
o Funcional
§ Associações públicas económicas ou profissionais
§ Instituições de ensino superior público

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Administração Estadual
o Administração Estadual Direta
Formada por um conjunto de órgãos não personalizados (sem personalidade jurídica pois
pertencem à pessoa coletiva pública Estado-Administração, cujo órgão máximo é o
Governo) assistidos por serviços que preparam e executam as respetivas decisões e que
se estruturam em forma de pirâmide ou árvore invertida. Todos estes estão sujeitos à
direção e fiscalização de um poder situado no Governo. Esta tipo de Administração
apresenta uma estrutura bastante hierarquizada.
Estes órgãos e serviços podem ser:
Ø Centrais (administração central, fisicamente sediada, por norma, em Lisboa);
Ø Periféricos (administração periférica, compreende os órgãos e serviços sediados
noutros pontos do território nacional e pontualmente no estrangeiro).

o Administração Estadual Indireta


Composta por pessoas coletivas públicas distintas do Estado-Administração à cabeça dos
quais temos os:
§ Institutos Públicos
o Entes criados pelo Estado, a quem o ato de criação legislativa
atribui tarefas administrativas específicas que se reconduzem a
atribuições estaduais;
o Cujos dirigentes máximos são nomeados e livremente exonerados
pelo Governo;
o Gozam de autonomia jurídica, administrativa, financeira e
patrimonial;
o Escapam ao poder de direção do Governo, ficando apenas
subordinados a meros poderes de orientação e de controlo (tutela)
do executivo – artigo 199.º d) CRP);
o Cada um destes entes reproduz no seu interior a hierarquia que
caracteriza a Administração Direta do Estado.
§ Fundações Públicas
o De Direito Público – é uma espécie de instituto público. Tem como
função básica gerir uma massa de bens, fiscalizar e apoiar tudo o
que é investigação científica/tecnológica.
• Exemplos: Fundação para a Ciência e Tecnologia; Fundo
de resolução bancária.
o De Direito Privado – pessoas coletivas públicas sujeitas, na sua
atividade, ao Direito Privado, mas seguem o modelo de
organização e funcionamento do Direito Público.
§ Empresas públicas institucionais (que a lei designa por Entidades
Públicas Empresariais – EPE’s)
o Pessoas coletivas de cariz institucional criadas pelo Governo;
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o Com cariz empresarial – sujeitas ao Direito Privado (procuram o


lucro), mas não deixam de ter como objetivo responder a um
interesse público;
o O seu funcionamento e organização é regido pelo Direito Público;
o Têm um regime jurídico próprio – são entidades autonomizadas.
Há uma questão controversa no que toca a apurar se as Associações públicas de entidades
privadas se situam na Administração Indireta ou na Administração Autónoma (a maioria
concorda com a última hipótese), assim como também se discute onde se insere os
concessionários de serviços públicos e demais entidades privadas com poderes públicos.

o Administração Estadual Independente (artigo 267.º n.º 3)


Composta por autoridades também criadas por Lei para prosseguir interesses estaduais,
sendo que nem todas são dotadas de personalidade jurídica própria, mas que dispõe de
poderes regulatórios especialmente intensos (normativos, jurisdicionais e
administrativos).
Este tipo de Administração Estadual não responde perante o governo pela sua atividade
e pelo exercício de tais poderes, não estando sujeitos a ordens ou instruções de qualquer
instância superior ou a poderes de mera orientação (superintendência) ou controlo (tutela)
do Governo. São nomeados pelo Governo, mas deixam de ter responsabilidade perante
este quando constituídos, respondendo apenas perante a lei.
Podem ser de dois tipos:
o Entidades Administrativas Independentes – têm capacidade para resolver
conflitos entre particulares – participação antecipada de forma a não recorrem aos
Tribunais. Nem todos têm personalidade jurídica.
o Entidades Reguladoras Independentes – têm personalidade jurídica e têm como
função regular os mercados onde se prestam serviços de interesse económico
geral.

Administração Autónoma
Podem ser de dois tipos:
o Administração Autónoma Territorial
Formada por entes autónomos com uma base geográfica que coincide com determinada
parcela do território do Estado:
§ Autarquias Locais (freguesias e municípios)
o Sujeitas a uma mera tutela da legalidade exercida pelo Governo –
tutela inspetiva.
§ Regiões Autónomas.
Juridicamente são pessoas coletivas que têm por substrato uma comunidade de vizinhos
– um conjunto de pessoas que por habitarem numa determinada área contígua têm entre

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si laços de vizinhança geradores de interesses comuns múltiplos (multiplicidade de Fins)


e que se autoadministram, elegendo os residentes de cada uma dessas parcelas do
território nacional os titulares dos órgãos de topo dos respetivos entes.
Elementos essenciais destas figuras – Território, População e Autogoverno.

o Administração Autónoma Funcional


Composta por entes autónomos não territoriais de base associativa ou institucional,
podendo se dividir em:
§ Associações Públicas (de entidades privadas)
o Ordens Profissionais
o Associações de regantes com natureza pública
§ Instituições do Ensino Superior Público
o Universidades
o Institutos Politécnicos
Estes entes não prosseguem interesses próprios das respetivas comunidades-substrato,
mas antes fins específicos e de cariz estadual (atinentes a toda a comunidade estadual).
Têm uma base corporativa e associativa (a direção é eleita pelos próprios membros).
A Constituição (no caso das Instituições de Ensino Superior) e a Lei (no caso das
Associações Públicas) afastam os poderes de superintendência e quase todos os poderes
de controlo do Governo, gozando por isso tais entes de uma autonomia muito próxima
daquela que a Constituição garante aos entes autónomos territoriais.

3. Noção de Direito Administrativo


O Direito Administrativo é o Direito disciplinador da Administração Pública.
É um ramo do Direito formado por um conjunto de normas dotadas de uma lógica própria
e com traços específicos, normas essas que regulam a organização, o funcionamento, a
atividade e as relações que a Administração Pública estabelece com outros sujeitos de
Direito.
O Direito Administrativo está vocacionado, em primeira linha, para a tutela do interesse
público e não de interesses privados (embora também vise a proteção de particulares).
O Direito Administrativo é constituído por três tipos de normas:
1) Normas Orgânicas – dizem respeito à organização da Administração, com eficácia
externa, assumindo importante relevância no que concerne à proteção dos direitos
e interesses do cidadão. (Artigo 267.º CRP);
2) Normas Funcionais – disciplinam o modo de agir no interior da Administração
Ou seja: instruções de atualização; procedimentos a adotar; formalidades a
cumprir… ao contrário do passado, hoje, muitas destas normas podem ser
invocadas pelos particulares quando violadas pela Administração (artigo 267.º n.º
5 CRP);

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3) Normas Relacionais – normas que disciplinam as relações que a Administração


estabelece com outros sujeitos de Direito, no âmbito da sua atividade de gestão
pública. Não só regula as relações entre a Administração com os particulares, mas
também as relações entre duas ou mais entidades públicas e entre dois ou mais
particulares, desde que no exercício de poderes jurídico-administrativos.
A Administração exerce uma atividade de gestão pública (quando dotada de poder de
imperium) e de gestão privada (quando se encontra numa situação paritária com os
particulares). Nesta sua atividade de gestão privada a Administração encontra-se sujeita
a uma dupla subordinação:
a. Pública – decorrente de todos os princípios subordinadores à Administração
Pública;
b. Privada – quando os atos praticados se subsumam na alçada do Direito Privado
O Direito Administrativo tem pouco mais de 200 anos – só surge com o surgimento do
Estado Liberal (após a Revolução Francesa) – a partir do momento em que a
Administração Pública passa a ter que se sujeitar à lei, ou seja, desde que o poder
executivo do Estado passa a estar subordinado a um direito escrito, na altura,
obrigatoriamente emanado por um outro poder do Estado independente do executivo – o
Parlamento, que com o Estado Liberal viu acentuada a sua primazia face aos demais
poderes.
Não obstante, a função administrativa já existe há mais tempo (desde a elevação do Estado
como forma histórica de organização política da sociedade – séculos XIV/XV), mas só
ganha autonomia face às demais funções do Estado com o nascimento do Estado Liberal.

4. Função Administrativa e outras Funções do Estado


Princípio da Separação de Poderes
Este princípio foi inicialmente formulado pelo filósofo John Locke e pelo também
filósofo Charles de Montesquieu, tendo sido objeto de uma expressa consagração no
artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Este Princípio
defende o governo limitado em oposição ao governo absoluto – distribuição das diferentes
funções do Estado por órgãos (ou complexo de órgãos), por poderes distintos e separados
entre si. São poderes soberanos porque não conhecem outro poder que lhes seja superior,
detêm apenas parte daquele que fora outrora o poder soberano uno e pleno, originário e
exclusivo, do monarca absoluto nos séculos XVII e XVIII.
Assim, assistia-se a uma tripartição das funções do Estado:
o Legislativa (competia a uma Assembleia Representativa);
o Executiva ou Administrativa (competia ao rei e mais tarde ao governo);
o Jurisdicional (competi aos tribunais).
Cada um destes três poderes para além das suas limitadas competências atribuídas tem a
faculdade de impedir os outros de extravasar os respetivos limites.

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No entanto, a ideia original destes filósofos, de uma rígida separação entre poderes
legislativo, executivo e judicial não foi inteiramente respeitada pelas Revoluções Liberais
(principalmente pela Revolução Francesa) tendo resultado numa absoluta primazia do
Parlamento, uma vez que este era considerado como o único poder criador do Direito e a
competência dos outros poderes era apenas executar e aplicar o Direito (pretendia-se
confinar o executivo e o judicial a uma atividade de cega execução da lei).
Os vários sentidos do Princípio da Separação de Poderes:
o Sentido Político
Este sentido relaciona-se com a questão da titularidade do poder (onde reside a soberania).
Montesquieu, com os olhos postos no sistema político inglês – um sistema misto de vários
portadores legítimos do poder – advogou a coexistência de várias legitimidades. Assim,
para além do monarca, também o povo, o clero e a nobreza seriam legítimos e originários
detentores do poder.
o Sentido Organizativo
Está presente a ideia da divisão dos serviços dentro da organização estadual – similar com
um sistema monista uma vez que o Parlamento assume o centro da vida política e jurídica
do país, em vez do monarca absoluto. Esta conceção resulta do facto dos revolucionários
liberais apenas reconhecerem verdadeira legitimidade ao Parlamento, dada a sua
qualidade de assembleia representativa da nação e por isso atribuíam uma quase absoluta
primazia ao poder legislativo.
o Sentido Funcional ou Material
Tem a ver com a determinação de atividades, tarefas ou funções fundamentais do Estado
e a respetiva caracterização material, a fim de se proceder à sua correta distribuição pelos
complexos orgânicos que constituem cada um dos três poderes do Estado. Procura-se,
assim, que cada complexo de órgãos de soberania desempenhe as funções para que está
mais vocacionado, em razão das respetivas características.
Foi a constatação de uma maior complexidade da matéria, à entrada do século XX, que
levou ao surgimento de uma nova função – Política ou Governamental. E também foi à
luz deste entendimento que se deu a evolução do tradicional esquema de rígida separação
de poderes para um sistema flexível de divisão de poderes.
A Função Administrativa no contexto de uma Separação de Poderes Funcional ou
Material das Funções do Estado
Apesar do modelo originário da separação de poderes, que pressupunha a perfeita
correspondência entre cada um dos três poderes do Estado e a respetiva função, as
profundas mudanças políticas, sociais, económicas e tecnológicas, durante a segunda
metade do século XIX ditaram o seguinte:
o A função legislativa começou também a ser exercida pelo poder executivo, ou
seja, face à incapacidade de o Parlamento responder às carências do regime o
governo passou a ter competências para emanar decretos com força de lei
(decretos-lei) sem a necessidade de autorização parlamentar;

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o A Administração passa a emitir normas gerais e abstratas (regulamentos


administrativos) muitas vezes com um conteúdo praeter legem (vai além da lei);
o O parlamento passa a aprovar leis-individuais e leis-medida.
Devido a estas mudanças, necessárias face à complexidade da vida social, a conceção do
princípio da separação de poderes passou a consistir numa mera caracterização típica da
função cometida a cada um dos poderes, mas sem pretensões hegemónicas ou
exclusivistas. Em suma, evoluiu-se de uma separação rígida para uma separação
funcional.
Distinção entre a Função Administrativa e a Função Legislativa
Há uma certa dificuldade em distinguir estas funções uma vez que:
a. A Administração também emite regras jurídicas (os regulamentos
administrativos) que, tal como a lei, são normas gerais e abstratas, dotadas de ius
imperium e coercivas, sendo que os regulamentos praeter legem partilham com
as leis a característica de inovação;
b. O legislador também adota medidas concretas e individualizadas, através das leis
individuais e das leis-medida;
a. O legislador pode proceder à regulamentação de aspetos até ao mais
ínfimo pormenor nas matérias a conformar – não há uma reserva de
regulamento.
A verdadeira distinção reside no facto de continuar a caber ao legislador o papel de definir
e regular primeiramente e de forma inovadora as relações da vida social – compete ao
legislador uma primeira regulamentação da vida de qualquer setor. Enquanto os outros
poderes são poderes derivados ou secundários – não lhes cabe regular em primeira mão
relações da vida social.
O caso das leis-medida e leis individuais são respostas a exigências próprias da
sociedade dos nossos dias em que o legislador se vê obrigado a utilizar para prosseguir
fins concretos, na medida em que consubstancie a tomada de opções fundamentais da
vida comunitária, considera-se traduzir ainda um modo de exercício da função legislativa.
Não obstante, a Constituição, no seu artigo 18.º, só admite leis restritivas de direitos,
liberdades e garantias, dotadas de generalidade e abstração, pelo que não poderá haver
recurso a leis-medida e a leis individuais nesta matéria.
Distinção entre a Função Administrativa e a Função Jurisdicional
A função judicial é a que corre mais risco de ser confundida com a Administrativa devido
às suas semelhanças:
o São ambas funções derivadas ou secundárias, subordinadas ao Direito;
o A sua atividade traduz-se em atos individuais e concretos – são ações de gestão
do dia-a-dia, no âmbito de assuntos correntes:
o A sentença (função jurisdicional);
o O ato/decisão administrativa (função administrativa).

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Diferenças:
§ Imparcialidade vs. Parcialidade
O ato jurisdicional é um ato praticado por autoridades do Estado que são por definição
imparciais, neutras e independentes. Os juízes apenas estão subordinados à Lei, não
havendo nenhuma relação hierárquica entre juízes. Estes não estão implicados em
qualquer um dos interesses em jogo que lhe cabe arbitrar, nem mesmo o juiz
administrativo está mais comprometido com o interesse público do que com os legítimos
interesses dos particulares: a sua posição é de perfeita equidistância relativamente às
partes em conflito e aos interesses representados por eles.
A Função Administrativa é levada a cabo por agentes e órgãos do Estado que não são de
moldo algum neutros, são parciais – A Administração Pública é parte interessada nos
procedimentos em que entra em relação com os particulares, sendo que lhe cabe defender
o interesse público que a lei lhe que confia. A Administração prossegue interesses que a
levam a entrar em colisão com os particulares (com interesses opostos). A postura da
imparcialidade da Administração apenas se circunscreve aos vários interesses privados
contrapostos eventualmente envolvidos, que o Princípio da Imparcialidade (artigo 9.º
CPA) exige (não podem ser prejudicados nem beneficiados por motivos irrelevantes ao
Direito).
§ Passividade vs. Atividade
A Função Jurisdicional é uma função passiva na medida de que tem como conteúdo e fim
a atuação a conservação da ordem jurídica, através da aplicação do Direito ao caso
concreto.
Já a Função Administrativa é uma função ativa e que tem como objetivo a mudança e
transformação do status quo, executando a Administração as tarefas necessárias à
modelação da sociedade em função dos fins cuja prossecução em concreto a Constituição
e a lei põem a seu cargo.
A Função Jurisdicional também é passiva na medida em que o juiz não procura de uma
forma proativa litígios para resolver, ele espera que os conflitos cheguem até ele para os
resolver enquanto a Função Administrativa é uma função ativa na medida em que tem
iniciativa na procura pela transformação da realidade em prol de dar resposta aos
interesses públicos.
Distinção entre a Função Administrativa e a Função Política e Governamental
A função política ou governamental situa-se a par da F. Legislativa na medida em que
são ambas funções primárias, situam-se no âmbito das decisões/escolhas fundamentais da
comunidade política.
No entanto, a Função Política realiza em termos concretos o interesse geral definido
enquanto política – por isso tal função se manifesta essencialmente, enquanto função
autónoma da legislativa, em decisões individuais e concretas (tal como a Função
Administrativa).
São atos políticos por excelência os atos constitucionais (exemplo: atos da competência
do PR). Mas a Função Política manifesta-se também na gestão corrente dos negócios

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públicos (tal como a Função Administrativa) quando esteja em causa a soberania do


Estado nas relações internacionais. Isto acontece nomeadamente no âmbito das Pastas:
o Da defesa
o Exemplo – Decisão de envio de um contingente militar para operações de
manutenção da paz;
o Dos negócios estrangeiros
o Exemplo – Expulsão de um diplomata de um país estrangeiro por
atividades incompatíveis com o seu estatuto;
o Da administração interna
o Exemplo – Serviços de informação e contrainformação.
Todos estes atos gozam de uma especial legitimidade por serem praticados por órgãos de
soberania (AR, PR, Governo, ou membros do Governo) decorrendo da respetiva
responsabilidade política, razão pela qual não são controlados pelos tribunais. O único
controlo a que estão sujeitos é ao controlo político pelos outros órgãos tendo em conta o
esquema de freios e contrapesos inerente ao sistema de poderes constitucionalmente
consagrado.
Conclusão sobre este capítulo – A Função Administrativa abrange toda a atividade
pública subordinada à Lei que, não consistindo a título principal na resolução de questões
de Direito, nem se traduzindo na realização de escolhas fundamentais da comunidade
política, visa a criação de condições concretas de realização dos ideais de Paz, Justiça e
Desenvolvimento (bem comum) definidas pelos órgãos superiores da comunidade.

Capítulo II – Perspetiva histórica e comparatística


1. Evolução histórica da Administração Pública
Época Medieval – Ausência do Estado de Justiça
A comunidade política medieval constituía um universo pluricêntrico, onde nenhuma
figura concreta recebia o encargo de representar, ordenar ou dirigir os interesses comuns
ao grupo situado numa zona territorial delimitada. A comunidade era um complexo de
organizações com fins diversos, que se cruzavam entre si, equilibrando-se
predominantemente através de laços de subordinação pessoal.
A noção de comunidade alimentava-se da subordinação a um direito imanente que
assinalava a cada uma daquelas variadas figuras o seu próprio estatuto, um catálogo de
privilégios e obrigações (é neste quadro que atingem o seu apogeu as corporações
profissionais enquanto detentoras de uma quota-parte do poder político no universo
medieval que tinham como obrigação garantir a satisfação das necessidades do mercado)
Ausência de Administração Pública
A Época Medieval vai do século V até ao século XV, sendo que no período que
compreende os séculos X a XIII ainda não existiam aquelas realidades institucionais que
hoje conhecemos sob as designações de Estado e de Administração Pública (abstraindo-

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nos do Reino de Portugal e da Inglaterra onde o fenómeno do fortalecimento da coroa se


deu muito mais cedo).
Não quer isto dizer que não subsista uma ideia de interesse público, na verdade desde o
século X já eram sentidos como interesses comuns ou gerais das comunidades medievais
as necessidades de Defesa e de Justiça. Mas como se satisfazia esses interesses se não
existia qualquer realidade que se aproximava da atual Administração Pública?
Ora, este período era caracterizado pela estrutura económica do Feudalismo (sistema que
assentava em laços de fidelidade pessoal, os laços de vassalagem), nos termos da qual o
poder era exercido e detido por pessoas físicas, concretas, não havia um poder
institucionalizado. Assim, o Senhor adquiria poder sobre outras pessoas (vassalos), os
quais se submetiam a uma situação de sujeição em troca de proteção. Inexistia, pois, a
realidade hoje da Administração Pública em consequência nomeadamente do caráter não
institucionalizado da sociedade política, da ausência de uma unidade que servisse de
referência ao interesse público e de um aparelho organizado que tivesse como função a
sua realização.
Inexistia um poder institucionalizado na medida em que com a morte do soberano,
terminava a relação de dependência e submissão até ao estabelecimento de uma nova
relação de vassalagem com um novo Senhor. A esta submissão por parte dos vassalos
correspondia uma proteção por parte do Senhor que satisfazia então o interesse público
referido: a justiça e a defesa.
Os embriões da Administração Pública
Não obstante, desta época retiram-se três experiências importantes que ajudaram a definir
o conceito de Administração Púbica hoje:
o Administração Municipal
Estas entidades apresentavam formas incipientes de racionalização de tarefas
administrativas. O governo dos concelhos/cidades estava na mão da burguesia comercial
sendo que esta beneficiava da organização e dos métodos de trabalho próprios da
atividade desta classe (exemplo – surgimento da escrita mercantil);
o Administração da Igreja
Apresentam maior significado a nível de contributo. Era um poder que se fazia sentir
através de um modelo hierárquico de tipo piramidal, ocupando o Papa o topo da pirâmide
e os párocos das aldeias a base: estes últimos recebiam ordens e instruções do escalão
imediatamente superior. Também na Igreja verificava-se uma distribuição racional de
funções.
Os poderes da Igreja eram exercidos de forma institucional porque estavam desligados
das pessoas físicas dos seus titulares, exemplo – em caso de morte do papa a instituição
mantinha-se.
o Exército de mercenários
Também estes se estruturavam hierarquicamente: a utilização da cadeia de comando
transformava cada um destes exércitos num corpo uno, com uma “cabeça e membros”

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que prontamente obedeciam em uníssono às ordens emanadas de cima, do “cérebro”


ganhando uma considerável vantagem no campo de batalha sobre as desordenadas hostes
adversárias que não possuíssem tal organização uma vez que não era dotados desta
planificação e estruturação hierárquica fundamentais.

Época Moderna (o Estado sem Direito)


Constituição do Estado Moderno e formação da Administração (séc. XV-XVI)
O feudalismo termina nos séculos XIV e XV, altura em que se dá o início dos
descobrimentos portugueses que viria a ditar a consolidação das modernas nações
europeias. A emergência das nações europeias proporcionou a racionalização da vida
social, ditando por isso o nascimento do Estado Moderno e da sua Administração, através
do triplo processo de institucionalização, concentração e territorialização do poder em
torno da coroa.
Com efeito, sobreveio a necessidade da criação de poderes unos aptos a administrar tão
vastos territórios – surgindo a figura da coroa como instituição. Com a definição de
fronteiras, todos os senhores feudais passam a servir exclusivamente o respetivo monarca.
Mas como é que o monarca agora iria conseguir fazer chegar todo o seu poder a todo o
território? Através da criação de um corpo de funcionários ao seu serviço e dotados pelo
rei dos necessários poderes de autoridade – um Aparelho Administrativo, segundo o
modelo hierárquico da Igreja, que vem cuidar especialmente dos interesses gerais do
reino. Assim, este modelo tinha como base uma pirâmide que se vai alargando do topo
para a base, estando o Rei no topo e na base o funcionário do Concelho.
O crepúsculo das figuras medievais
Por via da referida centralização do poder nos monarcas, paralelamente à criação de um
aparelho administrativo que começa a assumir tarefas necessárias à satisfação dos
interesses imputáveis a toda a comunidade, dá-se o declínio das corporações e das demais
figuras medievais, como os municípios e as regiões que cuidavam desses interesses até
então com cunho “particularista”.
É sobretudo nos séculos XVII e XVIII que se assiste à consolidação do Estado e da
Administração Pública – é nestes dois séculos que o imperium se aparta definitivamente
da sociedade e passam a coexistir duas realidades diversificadas: “um Estado cune
imperium e uma Sociedade sine imperium” (Batista Machado).

Evolução para o Estado de Polícia (séc. XVII-XVIII)


Com a progressiva assunção pelo monarca de um poder absoluto, nivelador do corpo
social e fortemente intervencionista, deu-se o desenvolvimento da Administração
Estadual:
§ Criação de órgãos gerais (com jurisdição em todo o território);
§ Consolidação e crescimento exponencial de um corpo organizado de funcionários
profissionais;
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§ Incremento de uma atividade intensa e variada desta máquina para a satisfação de


interesses públicos.
Os funcionários régios entreviam em todas as áreas da sociedade, sendo meros
executantes da vontade real – através deles o Rei dominava a sociedade a todos os níveis.
O despotismo do monarca é esclarecido e não aceita, por isso, outra limitação que não a
do Direito Natural, ou seja, a ditada pela sua consciência. Vigoravam apenas normas
avulsas que hoje qualificaríamos como sendo de:
a) Direito Constitucional – regras de sucessão ao trono;
b) Direito Administrativo – “embargos de execução” (regulavam e limitavam o
poder régio).
c) Institutos Desgarrados – o expediente do Fisco (um instrumento privado vigente
nos principados germânicos de compensação pela lesão de interesses particulares
de ordem patrimonial, que está na origem do atual instituto da Responsabilidade
Civil da Administração).
Estava-se, todavia, muito longe ainda da realidade que viria a emergir com o Estado de
Direito, de um corpo homogéneo e sistematizado de normas limitadoras do poder político
e administrativo.
Não obstante a expressão “Estado de Polícia”, este hoje terá o significado de Estado
Administrativo (em contraste com o Estado Policial, dos regimes totalitários). Todo este
processo de centralização foi conformado por uma ética de serviço público ditada de
cima: o monarca absoluto, que a si próprio se considerava como o primeiro dos servidores
da coisa pública, não pretendia desenvolver uma atividade arbitrária, mas sim de
incremento civilizacional do Estado.
Esta ética de serviço público era encarada à luz da ideia de bem comum preponderante
nesse tempo, que acentuava mais o brilho e ostentação do reino face às nações rivais do
que os valores hoje comummente aceites.
Típico a este espírito era o pensamento económico então dominante – o mercantilismo –
que defendia, a par do protecionismo económico, uma política agressiva de exportações
ou vendas ao exterior, de forma a incrementar ao máximo a produção e a riqueza
nacionais.

Época Contemporânea
O Estado de Direito Liberal
O Estado de Direito que na primeira metade do século XIX se implanta de forma
generalizada na Europa é um Estado baseado no:
§ Sistema de Governo representativo;
§ Princípio da Separação ou divisão de poderes;
§ Princípio da Igualdade;
§ Supremacia da Lei sobre todas as demais atividades do Estado (Princípio da
legalidade);

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§ Garantia dos direitos fundamentais (liberdade e propriedade).


O Estado de Direito surge como uma reação ao Estado de Polícia que constituiu a última
fase do triplo processo de concentração, institucionalização e territorialização do poder
na coroa. As monarquias absolutas foram assim derrubadas (França), ora objetos de
profundas transformações (países germânicos), em nome da liberdade individual,
contra o arbítrio e a opressão, e em nome da liberdade económica e social, contra o
intervencionismo real e dos poderes particularistas que ainda se faziam sentir.
A Administração Pública constitui-se como uma administração genuinamente estadual,
dirigida ao desempenho das tarefas específicas do Estado:
§ Manutenção da ordem e da paz públicas;
§ Administração da justiça;
§ Recolha de meios financeiros;
§ Relações Externas;
§ Criação de Infraestruturas de comunicação e a prestação de certos serviços
considerados essenciais.
Neste tipo de Estado as atenções centravam-se na preservação da total autonomia do
indivíduo considerado isoladamente, já com absoluta exclusão dos “corpos intermédios”
(poderes sociais organizados), por se entender então que estes constituíam uma limitação
àquela liberdade individual.
De realçar que, no respeitante à Administração municipal, surgem as primeiras definições
de administração autónoma territorial, consideradas como um elemento de ligação entre
o Estado e a Sociedade.
A conceção liberal do Estado e da Administração
A compreensão liberal do princípio da separação de poderes confere um papel de
primordial importância ao Parlamento e à função legislativa a este atribuída em exclusivo.
A conceção liberal de Estado parte da ideia de subordinação do Estado ao Direito. A Lei
é agora entendida como necessariamente geral e abstrata, enquanto expressão da
racionalidade e já não da vontade de um soberano. Ela é também autodefinição de
interesses pela comunidade política afirmada no Parlamento, por um acordo de vontades
que constitui a expressão da vontade geral.
O conceito de Lei resulta de um repositório histórico de variados contributos:
§ Dimensão material e universal da lei como “boa e justa”, racional, virada para o
bem comum, sempre presente no pensamento ocidental;
§ Hobbes – destaca o elemento voluntarista e positivo da lei – lei imposta com o
elemento coercivo, ideia de imposição da lei;
§ Locke – acentua as características da lei como instrumento para alcançar a
liberdade – a lei permite aos cidadãos prosseguir interesses, através da segurança
jurídica conferida, permitindo uma proteção dos súbditos em relação ao rei;
§ Montesquieu – estabelece a ligação da lei ao poder legislativo próprio das
Assembleias representativas, no quadro do princípio da separação de poderes e da
fiscalização recíproca pelos próprios poderes;

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§ Rousseau – a lei como instrumento de atuação da igualdade política, a Lei é


duplamente geral: quanto ao objeto e quanto à origem – dirigida a todos, fruto da
vontade de todos;
§ Kant – a lei como expressão da razão.
Para além da característica da generalidade e abstração, a eficácia externa e a
identificação do seu objeto próprio com a liberdade e propriedade dos cidadãos são
características do novo conceito de lei.
O Parlamento é tido como o fórum de representação da sociedade, por contraposição aos
outros dois poderes cuja legitimidade é apenas indireta (judicial e executivo).
O Direito Administrativo, que concretiza a subordinação do Estado à lei, nasce com o
Estado de Direito – trata-se de um direito especial, relativo à Administração Pública, que
visa proteger os particulares contra as autoridades administrativas. Consequentemente,
nasce o princípio da Legalidade Administrativa (nos termos do qual a Administração
apenas pode atuar por meios jurídicos e sempre com sujeição a uma lei prévia), que
constitui a expressão fundamental da submissão do Estado ao Direito.
Com efeito, a novidade é que a Administração passa a estar sujeita a normas que lhe são
impostas já não pelo seu supremo dirigente, mas de fora, ou seja, por um outro poder do
Estado – o Parlamento.
O liberalismo económico
Com o Estado de Direito Liberal, o objetivo era reduzir o Estado e as tarefas a assumir
por ele a uma expressão mínima. A “obsessão” pela liberdade leva a uma: limitação
interna do poder político (pela sua divisão), mas também a uma limitação externa
(redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade). O Estado passa a ter como
única tarefa manter a paz social e a segurança dos bens e das vidas, de forma a permitir o
pleno desenvolvimento da sociedade civil de acordo com as suas próprias leis naturais.
Assim, o Estado procurar intervir ao mínimo na sociedade, desde logo na atividade
económica. Para a teoria económica liberal em que assenta o novo modelo de Estado a
economia autorregula-se, não precisando de se regular pelo direito (apoia-se nas teses de
Adam Smith sobre a “mão invisível” do mercado) – há uma ordem económica. A vida
económica é deixada ao livre jogo dos agentes económicos, que a modelam e conformam
através de instrumentos jurídicos exclusivamente fornecidos pelo direito privado.
Entendia-se, então, que qualquer intervenção dos poderes públicos no mercado seria por
definição arbitrária e atentatória da liberdade individual.
Modelo Jurídico Liberal
O Estado liberal não tem fins próprios: com a sua atividade visa apenas assegurar a
coexistência dos cidadãos e garantir a possibilidade de cada um por si alcançar o próprio
bem-estar, através do livre desenvolvimento da sua atividade económica individual.
Estamos perante uma compreensão do Estado e do Direito essencialmente:
§ Negativa – ausência de fins próprios e de um “dever fazer” de funções e tarefas
para a realização de certos fins;

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§ Formal – ausência de conteúdo das normas jurídicas, as quais se limitam a fixar


o quadro geral e as condições de realização das atividades individuais, a ordem
jurídica é neutra no respeitante ao conteúdo e fins celebrados sob a sua égide,
assim como à função e destino da propriedade privada que garante e regula (os
quais são deixados à livre disposição dos respetivos titulares);
§ Jurídica – compete ao Estado, através do Direito, estabelecer o quadro geral das
regras dentro do qual a liberdade individual de cada cidadão possa coexistir com
a liberdade dos demais.
Estado Liberal e Direito Público
O papel do Direito é, portanto, tão só o de proporcionar as condições necessárias para que
a liberdade económica individual se possa exercer em toda a sua plenitude com os
razoáveis limites do exercício da liberdade.
Por conseguinte, o direito público não se interessa pela economia, preocupando-se apenas
com a salvaguarda da ordem pública – ele só tem em mente o objetivo de garantir a
segurança e as demais condições necessárias ao desenvolvimento dos negócios privados
fruto da livre iniciativa económica dos indivíduos.
O modelo jurídico do Estado Liberal não gira, pois, em torno do direito público, pelo
contrário, de acordo com os postulados do capitalismo: o sistema concretiza-se
logicamente em torno do princípio do dispositivo e não a partir de normas imperativas,
sendo os indivíduos particulares os protagonistas do processo de criação jurídica no
âmbito económico – os instrumentos deste processo são a liberdade contratual e o
princípio da autonomia da vontade privada.
No domínio económico predominava as figuras do contrato e do direito de propriedade –
as quais constituem os fundamentos últimos do modelo jurídico do Estado Liberal, o
mesmo é dizer que este se apoia essencialmente no direito privado.
Não obstante caber ao direito público zelar pelo interesse coletivo, não lhe cabia intervir
na esfera privada da atividade económica, pois os interesses da coletividade eram aí
realizados espontaneamente através do livre jogo da iniciativa e do risco individuais,
permeáveis tão só ao direito privado comum e comercial.
Uma ordem jurídica assente no contrato, no direito de propriedade e na proteção da
empresa capitalista
§ Num primeiro momento – os primeiros interesses a serem objeto de tutela
jurídica no Estado Liberal são os dos proprietários.
Dá-se a abolição dos institutos tradicionais que estratificavam e condicionavam a
propriedade plena, com base em critérios singularizados e, frequentemente, de privilégio,
sendo tais institutos substituídos por disposições de caráter geral e abstrato, normalmente
inseridas em códigos que tornam a propriedade num direito absoluto/ilimitado e
tendencionalmente pleno.
§ Num segundo momento – opera-se o reconhecimento de uma propriedade
dinâmica apoiada no sistema de produção e no tráfico mercantil que, inclusive,
passará a ser protegida com preferência sobre a dos proprietários em sentido

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estrito, acabando a tutela jurídica do comerciante, do industrial e do financeiro a


prevalecer sobre a do proprietário.
Há uma superação da ideia de ‘propriedade’ por ‘empresa’, com a comercialização do
direito – procura-se, agora, proteger o diligente homem de negócios. Vão desaparecendo
as vantagens jurídicas dos burgueses de campo, artesãos (economia tradicional) em
contraste com o aumento dos direitos dos comerciantes, industriais, financeiros e
prestamistas.
Em sede de fontes de direito é atribuído valor coercivo geral às regras promulgadas pelas
grandes empresas, ou seja, às condições gerais de contratação por estas impostas.
Esta simpatia pelos negócios abstratos leva ao reforço da propensão para banir quaisquer
considerações para lá da vontade declarada, e com isso toda a significação social do
negócio – mercantilizando-se o direito privado que desta forma se coloca ao serviço do
capitalismo. O direito do Estado rebaixa-se à condição de direito supletivo na medida em
que prevalecem as regras convencionais fruto da autonomia privada, que ficam
axiomaticamente fora do controlo estadual.

O Estado de Direito Social ou Estado Administrativo (século XX)


Com a 1ª Guerra Mundial os Estados apossam-se da direção da economia para fazer face
ao esforço de guerra e no final da guerra mantêm importantes poderes de intervenção na
vida económica. Mas é sobretudo com a crise de 1929 que se iniciam, com caráter
sistemático, as políticas económicas dirigidas e o chamado Estado-Providência. Políticas
essas teorizadas por J. M. Keynes e implementadas, nos EUA, por F. D. Roosevelt (New
Deal) e ainda na Europa, quer sob regimes democráticos, quer sob a égide dos regimes
autoritários.
No período entre as guerras emergem as chamadas Constituições de transição (do Estado
Liberal para o Estado Social) cujos textos já assinalam ao Estado a prossecução de tarefas
e fins de caráter económico, atribuindo-lhe consideráveis poderes de intervenção nas
atividades económicas:
§ Constituição mexicana (1917)
§ Constituição alemã de Weimar (1919), que influenciou a:
o Constituição portuguesa (1933)
o Constituição italiana (1947)
§ Constituição espanhola (1933)
Os regimes autoritários que proliferaram na Europa, neste período, tentam ressuscitar o
corporativismo medieval, como reação ao individualismo liberal do século anterior, dum
Estado autoritário e centralizador, já negador da autonomia local.
Só após a 2ª Guerra Mundial, com a consolidação do Estado Social de Direito, as
corporações são extintas enquanto o Estado chama a si novas e múltiplas funções e
atribuições – ressurgem no seio da Sociedade os centros de ação e de poder independentes
do Estado.

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Essa consolidação dá-se com o aumento significativo da esfera de intervenção estadual


na vida económica e social – as necessidades ditadas pela reconstrução de uma Europa
devastada pela guerra levaram ao:
§ Decretamento de nacionalizações;
§ Assunção pelo Estado da atividade bancária;
§ Advento nos países ocidentais do fenómeno da planificação económica.
Assim, passa a haver uma intervenção económica por parte do Estado em contraste com
o tradicional abstencionismo público na economia.
Traços Essenciais do Estado Social de Direito
o Estado Descentralizado – deixou de haver uma única Administração central ou
centralizada e passou a coexistirem muitas administrações em diferentes níveis
territoriais.
o A partir da década de 50 chega a vez da multiplicação das administrações
institucionais, quer de tipo associativo, quer de tipo fundacional,
dinamizando-se um processo de descentralização imprópria, dita técnica,
funcional ou por serviços (“devolução de poderes”).
o Aumento dos domínios de intervenção da Administração Pública – a par da
tradicional Administração de Polícia, consolidam-se os primeiros organismos de
coordenação económica e nasce uma nova Administração de serviço público, de
fomento e de infraestrutura.
o O Estado deixou de ter uma postura meramente negativa ou passiva, de
simples proteção da ordem pública, para passar a agir sobre a sociedade e
sobre a economia.
Tudo isto (a nova posição de Estado como produtor de bens e serviços essenciais) passou
a ser possível pelo o Ocidente ter conhecido como era de inédita prosperidade entre
meados/finais da década de 40 e os meados/finais da década de 70 – trinta anos de
crescente e contínua prosperidade do mundo ocidental, onde o Estado Providência
conheceu o seu apogeu, em que os poderes públicos chamaram a si a maioria das
atividades hoje designadas de interesse económico geral – de produção e distribuição dos
bens e serviços essenciais ao bem-estar das populações.
Construíram-se novas infraestruturas e erigiram-se, a partir delas, os grandes serviços
públicos nos setores dos: Transportes Públicos; Telecomunicações e da Energia. Essas
atividades económicas (ex novo ou pela via da nacionalização das empresas desses
setores) passaram a ser exploradas por empresas públicas, muitas vezes em regime de
monopólio legal – sendo quando muito objeto de concessão a privados, mas sempre sob
direta supervisão dos poderes públicos.
Dá-se por isso uma atenuação da separação Estado-Sociedade – a Administração deixa
de ser a portadora de uma lógica estranha à sociedade, passando a: prestar bens e serviços;
a contratar e a utilizar inclusive formas organizativas e de atuação de direito privado – é
a chamada Administração de Concertação. A Administração abre-se também à
participação dos administrados – seja a título consultivo, seja mesmo por associação ao
exercício do poder administrativo.

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As transformações sofridas pelo Direito Público


§ Princípio da Legalidade Administrativa – A Administração passa a estar sujeita
ao Direito e não apenas à Lei.
o Este princípio transmuta-se num mais lato Princípio da Juridicidade, em
que a Administração passa a estar também sujeita aos direitos
fundamentais e aos princípios gerais do Direito Administrativo.
o Em contrapartida, tende-se a admitir uma discricionariedade
administrativa limitada pelos direitos fundamentais e por princípios
jurídicos, bem como, dentro de certos limites de forma e competência.
§ Novo conceito de Lei – a generalidade e a abstração deixam de integrar o
conceito, admitindo-se em certos casos, como atos próprios da função legislativa,
a lei-individual e a lei-medida.
o Carl Schmitt – deve-se a ele a primeira teorização sobre a figura da lei-
medida, a qual seria uma ordenança de um legislador extraordinário com
valor de lei.
o Ernst Forsrhoff – após uma posterior reflexão, este autor, defende que a
lei-medida provém não de um legislador ordinário, mas sim de um
legislador ordinário que, em resposta às exigências próprias da sociedade
técnica do século XX, se vê obrigado a utilizar a lei para prosseguir
escopos concretos, assim invadindo a esfera de ação tradicionalmente
reservada ao poder executivo.
§ Estas lei são constitucionalmente admissíveis se forem orientadas
por uma dimensão de justiça material.
o A lei perde o timbre da verdade racional, esvanecendo-se o seu tradicional
caráter exclusivamente garantístico dos direitos dos particulares;
o A lei passa a ser, também, um instrumento de definição dos interesses
públicos a cargo da Administração, fenómeno que adquire uma especial
importância precisamente no domínio do direito administrativo.
§ Evolução do princípio da separação de poderes
o Há uma diluição da fronteira entre o poder legislativo e executivo – o
século XX marca o fim da lei enquanto reserva do Parlamento. O governo
recebe poderes normativos e até competência legislativa normal,
nomeadamente a figura do ‘decreto-lei’, isto devido à necessidade imposta
pela complexidade da vida social e, consequentemente, da incapacidade
do parlamento para tomar conta de todas as matérias.
o Por outro lado, há um reforço do poder judicial, que passa a controlar não
apenas a legalidade da atuação administrativa (nas áreas de atuação
vinculada), mas mais amplamente a juridicidade (controlo jurisdicional às
zonas de atuação discricionária).
§ Alarga-se o domínio do juridicamente relevante, deixando a lei de
ser a única fórmula de criação do direito – fim da lei como reserva
de criação de direito.

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Último quartel do século XX e primeira década do século XXI


a) a Crise do Estado Social; ressurgimento do liberalismo económico
Nas décadas de 70 e 80 do século XX as economias dos países ocidentais, em particular,
conhecem uma crise profunda, sofrendo profundas mudanças que ditaram uma irresistível
alteração do estado das coisas. Para tal apontam-se uma série de causas que combinadas
levaram a este estado de crise, sendo de realçar:
§ O fim dos acordo de Bretton-Woods (presidente norte-americano deixa de
seguir o padrão-ouro);
§ Os Choques Petrolíferos – aumento abrupto da subida dos preços do petróleo
(encontra-se à cabeça das causas mais imediatas e notórias e aponta-se este
acontecimento como a marca do início do declínio do modelo intervencionista de
Estado).
O facto é que se chegou ao fim da era de prosperidade do mundo ocidental, com a
consequente necessidade de alteração dos fins e funções do Estado (no sentido de uma
forte redução).
A primeira resposta chegou do mundo anglo-saxónico, com a verdadeira revolução
política e ideológica iniciada no final da década de 70 com a subida ao poder do presidente
Reagen nos EUA, e pela primeira-ministra Margaret Tatcher no Reino Unido. Estes novos
governos limitaram-se a pôr em prática as teses neoliberais dos economistas da Escola de
Chicago (destaque para Milton Friedman) e dos pensadores como Friederich Hayek (mais
uma vez a mudança política foi procedida por uma mudança nas mentalidades).
Os bons resultados contagiaram as políticas económicas e de reforma administrativa de
muitos outros países do mesmo espaço civilizacional, tendo-se iniciado o forte
emagrecimento do cada vez mais agigantado Estado-Providência.
b) A implosão da URSS e a “globalização”
Este processo de mudança acelerou-se em consequência do fenómeno da chamada
“globalização” que se seguiu à implosão da URSS e do fim da Guerra-Fria,
consequentemente. Esta mudança, assumiu uma especial relevância na China, cuja
economia se liberalizou radicalmente no sentido de maior liberdade económica.
Com a adesão à União Europeia, e em geral, com o incremento do comércio mundial
pressionado pelas mudanças políticas referidas, as economias da Europa Ocidental
abriram-se muito mais à concorrência dos produtos provenientes do resto do mundo.
c) A reforma do Estado Social
A reforma do Estado-Providência levada a cabo para tentar contrariar a progressiva
debilitação das finanças públicas continuou-se a guiar por critérios de eficiência,
passando no:
• Campo laboral
o maior flexibilidade da legislação laboral;
o uma maior racionalização do sistema de segurança social;
• Campo económico

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o Privatização de organizações e tarefas públicas.


Esta privatização traduziu-se na passagem de um Estado prestador de bens e serviços para
um Estado regulador; com efeito não houve lugar a uma desregulamentação propriamente
dita das atividades económicas – ao invés, a retirada do Estado dos setores produtivos
onde intervinha diretamente, foi compensada pela recriação de quadros regulatórios por
vezes bastante extensos, cuja atuação passou a ser confiada não ao governo e à
Administração dele dependente, mas a entidades reguladoras independentes dotadas de
fortes poderes de intervenção.
São vários os caminhos e as formas da privatização de organizações e tarefas públicas.
§ Privatização Formal – levada a cabo em nome da eficácia da atuação dos poderes
públicos. É a chamada “fuga para o direito privado”, que se processa através da
adoção pelas organizações públicas de formas jurídico-organizativas privadas –
sociedades comerciais – com vista à total submissão ao direito privado – quer da
atividade de novos entes, quer da sua organização e funcionamento;
§ Privatização Material e Organizativa – uma verdadeira privatização de
atividades tradicionalmente reservadas à Administração, com substancial
privatização também das próprias entidades que as desenvolviam – simultânea
venda a privados de parte ou da totalidade do capital social das empresas públicas
que até esse momento exploravam tais atividades (é esta modalidade que estava
em causa na década de 90);
o Como pano de fundo à criação de entidades reguladoras independentes
cuja missão é assegurar a livre concorrência entre os operadores que agora
desenvolvem essas atividades económicas e os direitos dos utentes dos
bens e serviços de interesse económico geral.
§ Privatização Funcional – entrega a privados da exploração de atividades que,
não obstante continuam reservadas à Administração Pública (continuando esta a
responsabilizar-se pela respetiva execução, dispondo para tanto dos necessários
poderes de supervisão e intervenção na atividade concessionada).
o Celebração de contratos de prestação de serviços de imediata utilidade
pública;
o Constituição de sociedades de capitais mistos sob controlo público.

2. Os sistemas de Administração: executiva e judicial


a) O Sistema Britânico ou de Administração Judiciária
Este sistema adotado pelo Reino Unido e pelas suas antigas colónias caracteriza-se pelas
seguintes características:
o Organização administrativa descentralizada;
o Subordinada ao Direito comum (não existe em rigor um Direito Administrativo
como ordenamento distinto do direito comum);
o Como a Administração não dispõe de prerrogativas de autoridade, o direito que
rege as relações entre a Administração e os particulares é também o Direito
Privado, encontrando-se os dois numa posição de paridade;

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o Existe uma única ordem jurisdicional: inexistência de tribunais administrativos –


tribunais comuns ou judiciais: julgam indiferenciadamente quer os litígios entre
particulares, quer os litígios entre a Administração e os privados;
o Inexistência da figura abstrata do Estado, ou seja, do conceito de Estado como
pessoa jurídica de direito interno, titular de direitos e adstrito a obrigações face ao
cidadão – em vez disso, mantém-se a figura da Coroa como referencial político e
administrativo da nação britânica. Tudo se imputa à Coroa, não obstante o Rei ser
política e juridicamente irresponsável;
o Poder de plena jurisdição face à Administração cometido aos Tribunais - estes não
estão circunscritos a uma fiscalização de legalidade da atividade administrativa,
podendo anular atos e obrigar a administração à pratica de atos em razão da
avaliação do interesse publico que fizerem em cada caso.
Evolução das instituições sem qualquer rutura revolucionária – o Reino Unido não
sofreu a influência do Direito Romano Justinianeu, tendo por isso sobrevivido as
características medievais da comunidade altamente descentralizada: continuou a ser um
sistema organizado “da base para o topo”, com uma progressiva “fragilização” das
instâncias superiores (construídas posteriormente).
O território do Reino poder ser dividido em dois níveis:
§ Paróquias;
§ Condados
Ou seja, comunidades locais que elegem os seus órgãos e que, através destes, satisfazem
os seus interesses próprios: Sistema de Self Government ou Autoadministração – há uma
total independência face ao governo central – não temos a figura subjacente a uma
pluralidade de figuras.
Relativamente à Separação de Poderes o facto de não se ter implantado no território,
sob a égide da coroa, uma administração estadual hierarquicamente estruturada e
dependente do executivo traduziu-se na inexistência de um poder administrativo forte e
estruturado “a par” dos outros poderes públicos (Parlamento e Tribunais) - inviabilizando
por isso um esquema de separação orgânica de poderes. Isto abriu caminho a um papel
preponderante dos Tribunais – justifica a designação pela qual o sistema é conhecido.

No fundo, quem administra são os Tribunais – estes têm o poder de decidir em sentido
contrário às pretensões da administração, em função da avaliação que levarem a cabo em
cada caso do interesse público invocado por aquela.

Exemplo – Entre nós, bem como nos demais sistemas administrativos continentais, para
construir uma estrada que tenha de passar num terreno de um particular, o Governo,
através de um seu Ministro, ou um município, por deliberação da respetiva assembleia
municipal, expropria o terreno ao particular, através de um ato administrativo (um ato
unilateral e autoritário que opera por si só a transferência da propriedade do bem imóvel
para a titularidade do ente publico, contra o pagamento da indemnização arbitrada), e
pode executar logo o ato expropriativo (pois os atos administrativos são títulos
executivos), apoderando-se materialmente do terreno, com recurso à forca se necessário
(porque para além de executivos, os atos administrativos são também executórios).

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Tudo sem interferência dos Tribunais, não sendo necessária qualquer previa declaração
ou autorização judicial para o efeito. No entanto, no caso do sistema judiciário, a
Administração não tem este prévio poder de autoridade: para obrigar o particular (no
mesmo exemplo, o proprietário do terreno) nos termos que se acaba de referir. Terá que
haver recurso aos tribunais – e só se este decidir que o terreno deve ser efetivamente
expropriado, é que o proprietário, por ordem do Tribunal, e na sequência do pedido da
Administração nesse sentido, se verá forçado a vender-lhe o dito terreno. Compete, pois,
neste sistema aos tribunais a prévia avaliação do interesse público da passagem da estrada
por aquele terreno, face aos direitos do proprietário.

Por isso sustenta a nossa doutrina juspublicista que no sistema de administração judiciária
quem administra são afinal os Tribunais.

b) Sistema de Administração Executiva, continental ou de tipo francês

o Sistema centralizado;
o Sistema fortemente hierarquizado;
o A Administração apresenta-se como um poder forte, autónomo, que existe a par
dos outros poderes do Estado – corresponde a um poder soberano do Estado (como
figura abstrata);
o A Administração Pública goza de poder de autoridade para definir o direito
aplicável em cada situação concreta, bem como o poder de impor as
determinações de um ato aos particulares sem recorrer previamente aos tribunais,
uma vez que a Lei confia, a esta, a realização de um determinado interesse público
cuja satisfação envolva e afete direitos e interesses dos particulares;
o Existe uma rede de tribunais distinta da ordem jurisdicional comum, de
competência especializada – ordem jurisdicional dos tribunais administrativos,
mas não têm plena jurisdição como os tribunais comuns;
o A atividade administrativa rege-se por um direito próprio (o Direito
Administrativo).

A progressiva convergência entre os dois sistemas:

Nas últimas décadas tem-se verificado uma aproximação do Sistema Britânico ao sistema
continental, e vice-versa. Quanto ao sistema britânico:

§ A construção da União Europeia (apesar do Reino Unido já ter abandonado) e a


generalização do Estado Social contribuiu para essa convergência;
§ Administrativização do Sistema Britânico, através da sua centralização: criação
de ministérios nas áreas sociais (saúde, ensino, emprego e SS) com corpos
hierarquizados de funcionários;
§ Transferência de certas competências para órgãos regionais devido à crescente
burocratização da Administração;
§ Multiplicação das normas administrativas e consequente e progressiva
sujeição da Administração a um universo crescente de regras e princípios distintos
do direito comum, podendo hoje se dizer que a Administração de sistema britânico
também se encontra numa posição de submissão ao princípio da legalidade;

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§ Surgimento dos Administrative Tribunals – entidades especializadas em razão


da matéria que julgam recursos dos atos da Administração, mas que não são
verdadeiros tribunais nem são compostos por juízes, acabando, todavia, por
desempenhar as funções que entre nós cabem aos tribunais administrativos.

Quanto ao sistema continental:

§ Surgimento de uma Orientação Descentralizadora, em prol dos princípios da


eficácia e unidade de ação e descentralização administrativa, que tende, «a
jusante», a esvaziar o Estado em benefício das regiões e das comunidades locais
– em paralelo com a perda de importância daquele também «a montante», aqui
em benefício da União Europeia;
§ Diminuição do peso do Estado na sociedade;
§ Progressivo recurso ao Direito Privado por parte da Administração, em moldes
idênticos ao sistema britânico (“fuga para o Direito Privado”);
§ Aumento dos poderes dos Tribunais, no âmbito do reforço dos direitos
fundamentais dos cidadãos e da concretização do princípio da tutela jurisdicional
efetiva no plano legislativo. Tem-se vindo a reforçar o poder decisório destes
tribunais desde logo no âmbito da tutela cautelar, com atribuição de poderes de
condenação à Administração e inclusive de simples substituição desta,
designadamente no âmbito da execução de julgados.
Reflexo dessa convergência em Portugal – a reforma do contencioso administrativo
português de 2002.

c) O Sistema de Administração Português:


O nosso sistema partilha de características dos dois sistemas, não obstante a influência do
sistema de tipo francês ser predominante. As características em si:
o Há uma forte centralização da Administração Pública (como evidenciado no
artigo 271º nº 3 CRP), mas esta centralização não se encontra totalmente na pessoa
coletiva do Estado. Por força do Princípio da Descentralização assistiu-se ao
aparecimento da Administração Autónoma de base territorial, constituindo
verdadeiros governos locais;
o A Administração é regulada por um Direito Especial (Direito Administrativo);
o Como consequência de um Direito Especial, o ordenamento jurídico português
também dispõe de tribunais de competência especializada:
o Tribunais Administrativos de Círculo (1ª instância);
o Tribunais Centrais Administrativos;
o Supremo Tribunal Administrativo.
o Deixou de ser regra as decisões administrativas sem prévia intervenção do poder
jurisdicional (artigo 176º n.º 1 do CPA);
o O tribunal poderá controlar a legalidade da atuação administrativa, o respeito
pelos direitos e interesses protegidos dos cidadãos – podendo anular ou declarar
nulas as decisões administrativas, desde que não contendam com a esfera da
discricionariedade administrativa.

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Título II – A Administração Pública e o Direito Administrativo


Capítulo I – A Administração e o Direito Administrativo: A Problemática do
Poder Discricionário, os Princípios Gerais da Atividade Administrativa
1. Noção de Discricionariedade Administrativa
Quando a Administração exerce poderes discricionários, esta deixa de atuar na zona da
legalidade estrita, para o fazer na zona do mérito. A Administração passa a guiar-se por
critérios de oportunidade ou conveniência – cabe-lhe a si escolher, em cada situação
concreta, os meios mais adequados à realização do interesse público, em função de
parâmetros técnicos à luz de ditames de eficácia e eficiência (está presente um dever de
boa administração resultante do Princípio da Prossecução do Interesse Público). Os
Tribunais perdem o poder de controlar a conformidade da atuação concreta da
administração com regras jurídicas – resta-lhes apenas efetuar um controlo em razão de
princípios jurídicos.
Podemos definir a competência discricionária como – a Liberdade atribuída a um órgão
administrativo de ser ele a conformar o conteúdo das decisões relativas a casos concretos
numa determinada matéria, ou seja, o conteúdo dos atos administrativos resultantes do
exercício dessa competência.
Não entanto, o termo “liberdade” refere-se a uma posição de poder-dever. Giannini fala
numa “liberdade juridicamente determinada” – está obrigada a prosseguir o interesse
público.
A posição da Administração aquando da atribuição de poderes discricionários não deve
ser equiparada à posição dos privados que têm liberdade de construírem juridicamente a
sua vida com base num princípio de liberdade de escolha (de Fins e meios de atuação).
Assim:
o A Administração dá uso à sua liberdade tendo em conta o interesse público como
a sua “estrela polar”, a Administração só pode atuar se para tal houver base legal,
constituindo elementos vinculados da sua atuação externa, que da mesma lei (lato
sensu) têm que constar, a própria outorga da competência, o fim público que a
esta preside e, em regra, os pressupostos da mesma atuação.
o Aos Privados o Direito permite tudo aquilo que não for objeto de proibição legal.
Discricionariedade quanto ao conteúdo e demais elementos do ato administrativo
O poder discricionário não se esgota numa liberdade de conformação do conteúdo do ato
a praticar. Na verdade, também pode ser concedida discricionariedade aos órgãos
administrativos no respeitante a outros elementos, tais como à escolha da:
§ Forma (exemplo – portaria, despacho normativo…);
§ Procedimento de formação;
§ Momento da prática do ato;
§ Pressupostos (nos domínios do planeamento económico, urbanístico. Em regra,
os pressupostos não são de escolha discricionária).

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No entanto, a própria competência, o fim público a que lhe preside e (em regra) os
pressupostos do ato não são de escolha discricionária.
Nota – ao longo da unidade curricular, a discricionariedade de conteúdo será a mais
estudada, devido à sua maior importância.

A discricionariedade administrativa como espécie do género “discricionariedade”


A par da discricionariedade administrativa deparam-se-nos idênticas liberdades de
conformação no exercício das restantes funções do Estado. Discricionariedade:
• Política – Ato político
• Legislativa – Lei
• Jurisdicional – Sentença
Discricionariedade legislativa vs. administrativa
A atividade legislativa é uma atividade de cumprimento de tarefas assinaladas na
Constituição, à qual está materialmente vinculada. Contudo, não é definível como uma
atividade de execução de normas constitucionais.
O legislador ordinário tem de respeitar os pressupostos da sua atuação e os fins
assinalados na CRP, mas não existe uma sistemática precedência da lei fundamental que
condicione a atividade do legislador – pode criar os pressupostos da sua atuação e
escolher livremente os fins visados por qualquer lei.
Fala-se numa Discricionariedade fortíssima ou soberana;
Já a Administração nunca deixa de desenvolver uma atividade de execução ou
complemento da Lei (mesmo quando pratica atos discricionários). Ou seja, tem que haver
sempre uma norma legal que preceda à atividade administrativa – esta gozará de uma
oportunidade relativa apenas quanto à ponderação dos meios para alcançar os fins que a
lei assinala.
O Professor adota a posição de Fernanda Paula Oliveira, defendendo que a diferença entre
estas duas discricionariedades é de grau/quantitativa e não qualitativa, isto porque:
è Muitas são as matérias em que o legislador conhece idênticas limitações quanto
aos prossupostos e mesmo quanto aos fins da sua atividade;
è Em certos tipos de atuação concreta da Administração, os pressupostos de facto
da sua atuação não estão legalmente determinados (no domínio do planeamento);
è A administração no que toca ao exercício da autonomia contratual pública, mais
do que complementar, procede na aplicação da Lei à sua criação.
Discricionariedade judicial vs. administrativa
Devido às novas correntes do século XX – escola do direito livre, jurisprudência dos
interesses e dos valores, ao crescente recurso do legislador a conceitos de valor e cláusulas
gerais - o juízo subjacente à sentença deixou de ser considerado um processo de decisão
puramente lógico-dedutivo, por se traduzir ele necessariamente em raciocínios de

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concordância prática, em valorações autónomas e em apreciações teleológicas, como


momentos também emotivos/volitivos e não exclusivamente cognoscitivos.
Assim, os Tribunais não se limitam a uma mera execução da lei gozando de uma
conformação, tão ampla como a Administração, no exercício dos seus poderes
discricionários apesar dessa discricionariedade em tudo ser distinta daquela que é
especifica da Função Administrativa.

Vinculação e discricionariedade administrativas em perspetiva histórica


Nos primórdios do Estado Liberal
A Administração Pública, desde a sua origem, assenta em duas premissas essenciais:
o A priori – sujeição da Administração à lei (princípio da legalidade
administrativa);
o A posteriori – controlo judicial da respetiva atividade externa da Administração.
Devido ao papel reduzido da Administração e do Estado, as poucas leis que compunham
o direito administrativo atribuíam, em regra, aos órgãos administrativos competências
vinculadas. A Administração desempenhava as tarefas que lhe eram confiadas pelo
ordenamento jurídico através do exercício de tais poderes vinculados. O mesmo é dizer
que no exercício desses poderes externos não assistia, normalmente, à Administração
liberdade de conformação do conteúdo das decisões que lhe competia tomar.
Este paradigma correspondia por inteiro à conceção do princípio da separação de poderes
dos protagonistas das revoluções liberais.
Na transição para o Estado Administrativo do século XX
Com todas as transformações na sociedade a partir de meados do século XIX, houve uma
ampliação dos Fins e funções do Estado – há um aceleramento da produção legislativa,
sobretudo na área do Direito Administrativo. Esta inevitável evolução do Direito
Administrativo foi-se compadecendo cada vez menos com a regra dos meros poderes
vinculados aos órgãos administrativos, sendo que o legislador passa a utilizar neste setor
do ordenamento jurídico conceitos imprecisos e cláusulas gerais e a conceder-lhes
poderes discricionários com maior frequência – isto devido à complexidade da realidade,
conformada pelo Direito Administrativo, e à consciência das naturais limitações
individuais do legislador de forma a não conseguir prever todos os circunstancialismos
próprios de cada situação concreta – as leis gerais e abstratas requeriam regulações mais
ajustadas ao concreto.
Na aplicação desses conceitos e cláusulas no exercício de tais poderes discricionários, à
Administração passou a assistir uma maior liberdade de conformação do conteúdo do ato
a praticar em cada situação concreta.
Também os Tribunais foram forçados a uma reflexão similar, sendo que os juízes
passaram a dar-se conta da impropriedade das incursões nesses espaços de mérito,
oportunidade ou conveniência da Administração ativa que o legislador começou a
proporcionar a esta.

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Hoje, esta é a problemática mais importante e complexa do Direito Administrativo – os


limites do controlo jurisdicional da Administração.
Primeira reação a esta problemática
Considerada tendencial ou instintiva, parte de uma posição de máxima desconfiança face
à Administração, privilegiando o papel de controlo sucessivo dos tribunais como
“remedio” para as (desse ponto de vista) sempre indesejáveis indeterminações das normas
jurídico-administrativo.
No entanto, esta visão é considerada “constitucionalmente desadequada” devido:
> À sua pouca atualidade e a sua parcialidade face à conceção do princípio da
separação de poderes, conceção esta que não só reconhece a cada um dos poderes
do Estado autonomia orgânico/formal, mas também material/substantiva;
> É criticável no plano da ciência do Direito Administrativo;
> Não só o legislador apresenta naturais limitações, mas também os Tribunais.

Os três distintos planos em que se coloca a problemática da discricionariedade


administrativa
I. Identificação ou localização da discricionariedade na estrutura lógico-formal da
norma jurídico-administrativa (perspetiva teórico-normativa);
Duas questões são suscitadas:
o Interpretação vs. Discricionariedade – distinguir entre operações de mera
interpretação e de integração de lacunas extralegais (domínio vinculado das
normas jurídico-administrativas) e operações que já traduzem o exercício do
poder discricionário = conceitos normativos imprecisos vs. discricionariedade
administrativa.
o Escolha destas duas alternativas:
i. A discricionariedade constitui um fenómeno das normas jurídico-
administrativas indeterminadas limitado ao âmbito da consequência
jurídica da norma – habilitação legal de escolha pela Administração de
qualquer das condutas à partida possibilitadas pela norma.
ii. Limita-se ao âmbito do pressuposto de facto da norma – habilitação legal
para a Administração completar ou integrar primeiramente o pressuposto
de facto em cada caso concreto, para depois poder determinar a
consequência jurídica.
Nos segmentos de estrita vinculação, os tribunais administrativos podem e devem levar a
cabo um controlo total e positivo do modo como a Administração aplicou a Lei (positiva
pois o tribunal não se deve cingir à anulação ou declaração de nulidade, mas também
incluir a determinação do conteúdo do ato a praticar). Já nos segmentos discricionários,
por não ter a administração como parâmetros de atuação regras jurídicas, já não se segue
necessariamente a consequência da sujeição da atividade administrativa a um controlo
total e positivo.

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II. Alcance e limites do controlo jurisdicional dos atos administrativos discricionários


(perspetiva jurídico-metodológica);
A questão já se centra ao nível constitucional, nomeadamente das decorrências do
princípio da separação de poderes. Está em causa o posicionamento de maior ou menor
independência da Administração face aos outros dois poderes do Estado. Neste plano,
pode inclusive acontecer que o exercício de uma competência qualificável como
discricionária no plano antecedente, por motivos de outra ordem, acabe por ser submetido
também a esse controlo total e positivo.
Por Exemplo – a atribuição a órgãos administrativos, por parte do legislador, do exercício
daqueles poderes, mas que têm natureza jurisdicional. Incluem-se neste universo: os
poderes sancionatórios, de aplicação de direitos penais e processuais penais menores;
competências atribuídas às entidades reguladoras de atividades ou serviços de interesse
económico geral…
Assim, ao exercer uma competência materialmente jurisdicional funciona com um
tribunal de primeira instância. Por isso mesmo, caberá aos verdadeiros tribunais exercer
um controlo total e positivo destas específicas atividades.
Num primeiro sentido estamos perante poderes discricionários, mas já não num segundo
sentido uma vez que estão sujeitos a um controlo judicial sucessivo máximo.
Mas também acontece o fenómeno inverso – sucede nomeadamente com os atos de
diagnose, exame ou avaliação de conhecimentos. Esses atos condicionam mesmo o
acesso a uma profissão ou estudos académicos, estando por isso em causa normas
restritivas de DLGs – razão pela qual constituem matéria da reserva de lei do Parlamento
e a competência da Administração não pode deixar de ser considerada vinculada.
No entanto por se considerarem fatores como a prática “em massa” e também com a sua
incontornável natureza subjetiva, “altamente pessoal” – não podem ser submetidos ao
controlo total e positivo, devendo o juiz submeter-se a uma autocontenção.

III. Limites constitucionais à atribuição de poderes discricionários à Administração pelo


legislador (perspetiva dogmático-constitucional).
Está em causa a questão prévia da constitucionalidade da norma legal atributiva desse
poder discricionário. O controlo judicial incide sobre a legitimidade da atribuição desse
poder pelo legislador, adotando como parâmetro imediato de controlo a Constituição. São
os casos das matérias objeto de reserva de lei.

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2. Discricionariedade Administrativa e conceitos normativos imprecisos


Interpretação, integração de lacunas extralegais e discricionariedade
administrativa
No que toca à interpretação e à integração de lacunas:
o São levadas a cabo pela Administração Pública, mesmo que a norma aplicada lhe
confira meros poderes vinculados. Mas elas não suscitam naturalmente os
problemas levantados pelo exercício de poderes discricionários;
o Constituem operações típicas da ciência jurídica, essencialmente objetivas, cujo
acerto pode e deve por isso o juiz administrativo controlar;
o Não são puramente lógico-dedutivas;
o Estamos na zona de legalidade ou juridicidade – no campo próprio de atuação dos
juristas e, por conseguinte, também dos juízes. Ou seja, continuamos ainda no
domínio do exercício de poderes vinculados, por contraposição aos dos poderes
discricionários.
“A discricionariedade começa quando a interpretação acaba” – a questão é saber quando
é que nos encontramos nesse momento. Esta problemática surge quando estamos no
domínio dos conceitos imprecisos e a utilização pela Administração de uma margem de
livre apreciação/decisão nesse preenchimento.
A verdadeira questão – será esse preenchimento uma mera tarefa interpretativa, ou
estaremos já perante a modalidade de exercício de discricionariedade administrativa? O
Professor Pacheco de Amorim defende esta última opção ao contrário da Professora que
acha estarmos ainda perante a modalidade de interpretação.

A discricionariedade administrativa em sentido estrito


Indeterminações normativas estruturais
a. Discricionariedade de decisão
Quando o legislador atribui à Administração o poder de uma vez verificados na vida real
os pressupostos que convocam a sua intervenção, tomar ou não tomar uma determinada
decisão prefigurada na estatuição da norma.
A ligar a previsão e a estatuição está um operador deôntico de permissão – “pode” – a
faculdade de escolher entre tomar ou não tomar a medida tipificada na estatuição da
norma.
b. Discricionariedade de escolha de medida
Quando o legislador predetermina um leque de medidas alternativas, podendo a
Administração escolher qualquer uma dessas medidas: estando obrigada a escolher uma
delas.
O operador deôntico presente é – “tomará o órgão uma das seguintes medidas”.

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Indeterminações conceituais
a. Discricionariedade de escolha criativa (mais forte que as anteriores)
O legislador confia à Administração a escolha da medida a tomar, mas sem sequer
prefigurar as alternativas possíveis. Há uma grande liberdade por parte da Administração,
pois o legislador apenas enuncia uma orientação genérica. Fala-se numa
discricionariedade máxima, não obstante a norma não ter uma estrutura aberta.
São utlizados conceitos extremamente vagos, tais como: “interesse público”, “o que for
necessário”, “o que for conveniente”. São também chamados de Conceitos Subjetivos ou
Conceitos discricionários.

Os conceitos normativos imprecisos


No Direito Administrativo e nos outros ramos do direito
Uma primeira explicação para o particular relevo que os conceitos imprecisos assumem
no direito administrativo relativamente a outros ramos do direito, reside no facto de
estarem muito mais sedimentados tanto o significado como o alcance dos conceitos
normativos em setores do ordenamento jurídico (como o direito penal ou civil que contam
com muitos anos de história, ao contrário do direito administrativo que é muito recente).
Mas a explicação mais importante é o facto de nestes ramos de direito que não o
administrativo as suas normas serem interpretadas e aplicadas por uma única autoridade,
um único poder do Estado – os tribunais. É o juiz quem fixa a interpretação da norma e
preenche os respetivos conceitos, sem nenhuma outra autoridade no seu caminho, que
com ele concorre, em razão do princípio da separação de poderes, ao contrário do que
acontece nas normas jurídico-administrativas.
Nas controvérsias entre os particulares e a Administração, um dos destinatários dessas
normas e parte dessa relação controvertida é a própria Administração que desenvolve
também ali uma função estadual que, não obstante a sua vinculação à lei, pode requerer
algum espaço de manobra, alguma autonomia quer face ao legislador, quer face aos
tribunais. Terá por isso o juiz de proceder a um prudente exercício de autocontenção.
Conceitos subjetivos/discricionários e conceitos classificatórios
Os conceitos imprecisos acabam por se reconduzir também ao fenómeno da
indeterminação normativa, mas a indeterminação está em conceitos da norma, e não na
estrutura desta, surgindo novamente a questão se o preenchimento desses conceitos
imprecisos ou indeterminados pela Administração constitui uma operação de
interpretação, ou diferentemente, já estamos no domínio da discricionariedade
administrativa – consoante a resposta se haverá lugar ou não à revisão desse
preenchimento pelo juiz administrativo.
a. Conceitos Subjetivos/discricionários
Como supra se confirmou, a sua utilização pelo legislador é uma modalidade de
concessão de poder discricionário, uma verdadeira delegação de poder pelo legislador na
Administração.
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b. Conceitos Classificatórios
Contrariamente, relativamente a estes conceitos entende-se que a sua aparente imprecisão
é resolvida em sede ainda de interpretação jurídica, em virtude das remissões que eles
operam para parâmetros decisórios tão precisos quanto os das regras jurídicas, não
deixando margem de manobra. Importa distinguir os diversos tipos de parâmetros
decisórios a que a Administração deverá recorrer por vias de tais remissões:
i. Conceitos jurídicos (quando se remete para a própria ciência jurídica,
conceitos já enraizados na dogmática jurídica e cujo exato significado
pode e deve ser encontrado nesta ciência que o juiz domina, não
obstante a existência de controvérsias doutrinárias – aplicador adota
uma das posições);
ii. Conceitos técnico-científicos (quando se remete para normas
extrajurídicas das ciências exatas);
iii. Conceitos descritivo-empíricos (quando se remete para
circunstâncias de tempo ou de lugar ou para conhecimentos empíricos,
que estão na posse de pessoas comuns que lidam com a matéria em
causa – o aplicador deve procurar perceber naquele campo qual é o
conhecimento comum/geral).
a. Exemplo – uma norma dita que os vendedores-ambulantes não
podem vender durante a noite, mas a “noite começa mais cedo”
no campo, na medida em que as pessoas regressam a casa mais
cedo em contraste com a azáfama da cidade.
Conceitos imprecisos-tipo: as teorias da margem de livre apreciação
É hoje mais ou menos consensual na doutrina e na jurisprudência que, por força do
princípio da separação de poderes, assiste sempre à Administração uma margem de livre
apreciação ou decisão, no preenchimento deste tipo de conceitos, gozando dentro dessa
margem de uma liberdade de subsumir ou não ao conceito a situação concreta que se lhe
depare.
Teoria de Jellinek e a teoria da folga de Otto Bachof – quando se diz que à
Administração se assiste uma margem de livre apreciação no preenchimento de conceitos
imprecisos, significa isto que:
• Tais conceitos apresentam um “núcleo duro” de situações passiveis de ocorrer na
vida real onde não existe qualquer possibilidade de valoração administrativa
autónoma;
• Por outro lado, há um conjunto virtual de situações que manifestamente não
cabem nesse núcleo.
Em ambas as hipóteses o preenchimento do conceito constitui uma tarefa interpretativa
necessariamente objeto de controlo judicial a posteriori.

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§ No entanto, os conceitos têm sempre uma zona cinzenta, uma auréola, que nem
sempre é do mesmo tamanho e representa uma zona de indefinição, onde se
agrupam situações intermédias – que proporcionam à Administração uma folga
em cada operação de subsunção do caso concreto à previsão normativa, que lhe
permite incluir ou excluir do conceito a situação concreta cuja resolução lhe
incumba e presume-se que o legislador pretendia atribuir poderes discricionários.
Outras teses que chegam a idênticos resultados, mas por caminhos diferentes: Teoria da
Defensabilidade/sustentabilidade (de Ule) – o aplicador deve questionar-se como é que
a maioria das pessoas preencheria aquele conceito:
i. Se a maioria decidisse de certa maneira, então o aplicador deveria seguir essa
orientação;
ii. Em caso de divisão de opiniões, aquela que for a decisão do aplicador deve ser
respeitada.
Também existe a teoria da Razoabilidade (de origem francesa) que faz um apelo à razão,
se o conceito foi preenchido de forma razoável, então o juiz deve conter-se e não substituir
o aplicador, mesmo que não concorde.
Em conclusão – nesta margem livre de apreciação, a Administração deve proceder a uma
integração ou preenchimento definitivo dos conceitos indeterminados, atendendo às
circunstâncias do caso concreto, com recurso à sua experiência, designadamente através
da formulação de juízos valorativos – não devendo então o juiz sobrepor o seu juízo ao
juízo administrativo, num exercício de autocontenção dos seus poderes.

3. Discricionariedade administrativa e prerrogativa de avaliação; natureza e


fundamento da discricionariedade; legalidade vs. juridicidade
A reserva de discricionariedade da administração: as prerrogativas de avaliação
Como foi abordado supra, o juiz deve fazer um esforço de autocontenção aquando do
exercício de poderes discricionários pela Administração.
No entanto, o julgador deve determinar onde começa e acaba o espaço/margem e livre
apreciação ou decisão por parte da Administração, relevando para a determinação desses
limites as chamadas Prerrogativas de Avaliação, tema no qual o professor Vieira de
Andrade desenvolveu e cujo trabalho será analisado de seguida. Oferecerão maiores ou
menores dificuldades em termo de controlo judicial sucessivo, os fatores que se passa a
identificar:
i. A qualidade do sujeito administrativo;
A maior ou menor capacidade técnica ou científica requerida jogará a favor ou contra a
ampliação da margem de livre decisão – ela será maior em júris universitários constituídos
para a realização de provas de progressão nas carreiras académicas, por exemplo; e
menor:
a. Nos normais júris formados para avaliar candidatos ao ingresso na função pública;

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b. No âmbito da prestação de provas para a progressão na carreira geral da função


pública;
c. Júris profissionais/corporativos.
Um fator também importante que confere maior liberdade de apreciação é a legitimidade
política do órgão (ser o próprio governo o seu autor, por exemplo, assim como ao nível
do poder local também terá maior legitimidade político-social um órgão colegial em que
participem representantes das forças sociais).
Joga contra a reserva da discricionariedade se o órgão competente for um órgão individual
inserido numa cadeia hierárquica, como um diretor-geral ou um diretor de serviços.
ii. A qualidade da matéria;
Quando se está perante atos de aplicação de normas restritivas de direitos, liberdades e
garantias terá que se reduzir ao mínimo a dita margem de livre apreciação (quando não a
zero) e o mesmo se aplica às demais matérias reservadas à Lei.
A necessidade de ponderação de interesses complexos, públicos ou privados releva
também e muito, só que agora no sentido oposto, ou seja, no sentido do reforço da reserva
da discricionariedade.
iii. O tipo ou modo de decisão
1) Atos de Exame, diagnose ou avaliação de conhecimentos
São atos à partida vinculados, mas que levantam problemas em sede de revisão judicial,
sendo em muitos casos, atos praticados “em massa”. Está-se perante decisões altamente
pessoais, cujo resultado enferma por isso sempre de alguma incerteza – estes exames não
são tão exatos como um sistema automático de conhecimentos, em virtude das
condicionantes e características pessoais do examinador que sempre nele se projetam,
impossibilitando uma total objetividade. Estas características e circunstâncias dificultam
a possibilidade da sua revisão pelo tribunal.
2) Conceitos de valor no âmbito de juízo sobre aptidões pessoais e profissionais
Apontam para um aumento do espaço ou margem de livre apreciação ou decisão em que
implica a atribuição de uma prerrogativa de avaliação à Administração Pública utilizando
conceitos como: “especialista”, “jurista de reconhecido mérito”, “profissional reputado”.
3) Conceitos de valor no âmbito de avaliações técnicas especializadas
Estes conceitos também reforçam a reserva de discricionariedade administrativa. Não são
necessariamente conceitos científicos, mas sim conceitos valorativos que fazem um apelo
a experiência dos órgãos administrativos. São exemplos os conceitos como “potencial
petrolífero relevante”, terreno com “aptidão agrícola”.
4) Num sentido oposto – conceitos que apontam para um maior controlo judicial
Menção aos conceitos cujo preenchimento não requer uma valoração eminentemente
pessoal do órgão administrativo, mas antes objetiva, como são desde logo os que dizem
respeito à moral pública e aos bons costumes.

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Estes dois conceitos apelam a valorações pré-existentes na comunidade, às conceções


éticas vigentes, que a Administração deverá primeiramente averiguar e para as quais se
terá que remeter, não devendo o titular do órgão administrativo sobrepor a essas
valorações objetivas o seu próprio juízo ético pessoal. É claro o parentesco do
preenchimento destes conceitos com a operação de subsunção: ao intérprete e aplicador
da lei podem-se-lhe deparar neste caso parâmetros cognitivos/decisórios tão precisos
como os das regras jurídicas.
5) Decisões de Prognose e Decisões com consequências políticas – apontam para
uma maior autolimitação judicial.
Exemplos de decisões de prognose – “justo receio de vir a ser perseguido no seu país de
origem”; “perigo para pessoas e bens”.

A natureza e fundamento da discricionariedade administrativa


A grande questão que se coloca é a de se saber se, por norma, a discricionariedade
constitui ou não um fenómeno limitado ao âmbito da consequência jurídica das normas
jurídico-administrativas, existindo assim duas alternativas:
o A discricionariedade administrativa é uma habilitação legal para a
Administração complementar um pressuposto de facto normativo
imperfeito.
§ Em regra, a Lei enuncia os pressupostos cuja verificação habilitam a Administração
a agir – elementos vinculados, não cabe à Administração apreciar livremente;
§ Ou seja, o poder discricionário não é mais do que uma habilitação para a
Administração completar um pressuposto imperfeito, que o legislador deixou por
completar;
§ Assim, a discricionariedade administrativa traduz-se na atividade de complementação
de pressupostos legais, caso a caso;
§ A atividade discricionária passa por uma prévia tarefa de complementação, em
concreto, dos ditos pressupostos normativos imperfeitos ou incompletos;
§ O legislador quis intencionalmente delegar no órgão administrativo a tarefa de
complementar os pressupostos caso a caso, enunciando a norma que o legislador faria
se tivesse completado as situações que não estão previstas.

o A discricionariedade constitui um fenómeno que se limita ao âmbito da


consequência jurídica das normas jurídico-administrativas
§ Não se está perante a incumbência do legislador, dirigido à Administração, para que
esta complete o pressuposto;
§ Mas sim, uma verdadeira liberdade da Administração que pode escolher entre duas
ou mais condutas/consequências jurídicas possíveis – todas elas igualmente legítimas
face à lei.

O Professor defende a primeira alternativa, assim como a maioria da doutrina. Afasta-se


a hipótese de a conduta adotada pela Administração resultar de uma escolha livre, uma

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vez que quase toda a atividade administrativa, incluindo a discricionária, é uma atividade
jurídica – está sujeita ao Direito e também é criadora de Direito.

Assim, a Administração está obrigada a duas operações consecutivas:


1) Complementar os pressupostos legais através da adoção de critérios objetivos face
a cada situação (a Administração coloca-se no lugar do legislador e cria a norma
que o legislador faria para aquela situação concreta, através de um critério
objetivo);
2) Tomar a decisão/medida resultante da aplicação cumulada dos critérios legais +
critérios objetivos adotados para o caso concreto que, face a tais critérios (no seu
conjunto), será a única solução possível.
Fundamento desta tese: a fim de evitar a arbitrariedade em que obviamente se traduziria
uma completa indiferença da lei e do direito perante a escolha pela Administração de uma
outra de entre um leque de condutas legalmente admissíveis, a determinação de quaisquer
dessas consequências jurídicas terá sempre que se basear em critérios objetivos também
por ela previamente definidos.
A Administração deve orientar-se pelos princípios gerais da atividade administrativa,
principalmente pelos princípios da razoabilidade e da racionalidade.
Exceções à regra: alguns exemplos de verdadeira escolha entre duas ou mais
consequências jurídicas
Existem exceções no ordenamento jurídico face às quais somos obrigados a reconhecer
que existe uma verdadeira liberdade da Administração Pública, pelo que qualquer das
consequências da norma jurídico-administrativas será avaliada para o legislador.
Trata-se sobretudo de decisões de escolha de pessoas, de entre conjuntos restritos e
predeterminados de elegíveis, para as investir em cargos dirigentes ou para lhes atribuir
novas responsabilidades, através de atos de delegação de poderes – nestes casos, a Lei
permite que as decisões assentem em critérios subjetivos:
• Competência dos órgãos delegantes para a prática de atos de delegação de poderes
e para a respetiva revogação – artigo 44º/1 e 50º/b) do CPA;
• Tomada de decisões de avocação – artigo 49º/2 do CPA;
Sendo tais atos intuitu, assiste aos órgãos seus autores na respetiva emanação uma
discricionariedade de decisão máxima, uma verdadeira e própria liberdade de escolha
entre as duas alternativas que se lhe afiguram (a de praticar ou não o ato delegatório, a de
revogá-lo ou não, a de avocar ou não…).
• Competência de um membro do governo dotado de um poder de livre escolha
entre os três candidatos melhores classificados no âmbito do procedimento
concursal de seleção previamente levado a cabo para o efeito pela CRESAP
(comissão de recrutamento para a Administração Pública) – artigo 19.º/8 da Lei
n.º 2/2004;

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• Regime de designação pelo Conselho Superior da Magistratura dos presidentes


dos tribunais de comarca constante da Lei da Organização do Sistema Judiciário
– artigo 92.º/2 da Lei n.º 62/2013.
Não obstante a exigência de certos requisitos, uma vez preenchidos, fala-se apenas em
escolha ou nomeação sem estabelecer qualquer restrição ou condicionante, estando-se
perante o exercício de uma discricionariedade máxima.
Assim, nestes casos não faz sentido falar de discricionariedade administrativa como
habilitação legal para completar ou integrar um pressuposto de facto normativo.
Poder discricionário e poder regulamentar
Em ambos os casos a Administração procede a uma complementação da lei, contudo, os
seus parâmetros de atuação são diferentes.
Poder discricionário
o Exercido caso a caso, para situações individuais e concretas;
o Não é um poder que se cristaliza com o seu exercício – é concedido à
Administração para esta ter a flexibilidade necessária para adotar a melhor
solução, para cada caso concreto – inclusive até pode alterar critérios.
o Existem várias hipóteses de alteração de critérios que podem levar a que, para
uma situação em que a Administração decidiu de uma dada maneira um caso
anterior, poderá e deve tomar uma decisão diferente num caso semelhante.
o Quando há uma alteração do titular do órgão: é normal que o novo titular
tenha uma perspetiva diferente do interesse público atual;
o O mesmo titular pode e deve adotar uma orientação diferente, tendo como
fundamento o interesse público atual (podem mudar as circunstâncias ou
o titular pode perceber que a orientação que estava a seguir não era a mais
adequada).
Poder regulamentar
§ O exercício traduz-se no comando geral e abstrato (e não individual e concreto);
§ Tem a mesma natureza das normas legais, é lei em sentido amplo: não pode haver
alteração arbitrária do critério seguido anteriormente – o princípio da igualdade
proíbe o arbítrio;
§ Visa o estabelecimento de um regime complementar do regime legal, por
definição de aplicação uniforme – não admite derrogações singulares nem
qualquer alteração, que o faça alcançar casos situados para lá do seu objetivado
âmbito de aplicação;
§ Objetivo do regulamento: cristalizar soluções – o órgão tem de aplicar a norma,
não podendo projetar nem deslocar o âmbito de aplicação do regulamento.

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Submissão do poder discricionário ao Direito: juridicidade vs. legalidade


As primeiras reações à ampliação do fenómeno da discricionariedade administrativa

> O alargamento das competências discricionárias foi enorme na 2ª metade do século


XIX e início do século XX, tendo atingido o apogeu após II GM;
> As primeiras reações da doutrina e jurisprudência foram condicionadas pela conceção
antiga do modelo jurídico do Estado Liberal: a primeira ideia era de que os poderes
discricionários eram desvinculados do Direito - eram uma verdadeira liberdade dada
à Administração. Logo, era visto como um mal, embora necessário;
> As escolhas da competência discricionária eram livres - motivo pelo qual a conceção
que punha foco nas consequências da norma jurídico-administrativa é desatualizada
porque remete-nos para esta conceção do Estado de Direito;
> A resposta à problemática do poder discricionário passa pela imposição à
Administração, em primeiro lugar, de criar critérios objetivos que complementem os
critérios legais bem como pela sujeição do poder discricionário aos princípios gerais
da atividade administrativa;
> O exercício do poder discricionário não pode ser indiferente ao Direito. Não obstante,
tudo o que é regra (interpretação e integração de lacunas), isto é, os normais
instrumentos do jurista para resolver um litígio, ficou para trás, mas os órgãos
administrativos, quando exercem poder discricionário, estão sujeitos ao Direito;
> A atividade dos órgãos administrativos e a atividade discricionária está subordinada
ao Direito (não necessariamente à lei), no sentido de, por um lado, a sua atividade ter
de estar sempre sujeita a critérios objetivos e ao cumprimento de um princípio de boa
administração que passa pela adoção desses critérios (o dever de boa administração é
um dever jurídico) e, por outro lado, é um poder criador de Direito.

Da Legalidade à juridicidade: os princípios gerais da atividade administrativa


Esta ligação da atuação da Administração Pública ao Direito no exercício do poder
discricionário, da autonomia privada e da autonomia contratual pública são faculdades de
ação em situações relativamente às quais se pode estabelecer um paralelismo com o poder
discricionário, que têm uma atuação que vai para lá das regras escritas.
Os parâmetros são os princípios gerais da atividade administrativa, normas jurídico-
administrativas com características diferentes das regras.
Diferentemente da crença positivista do início do século XIX, o Direito não são apenas
regras, mas também são princípios.

Os princípios gerais do Direito Administrativo (que nunca deixaram de constituir


obrigatórios parâmetros de decisão para toda a atividade administrativa, também onde o
império da regra escrita não chegasse) são:
o Princípio da legalidade;
o Princípio da prossecução do interesse público e pelo respeito pelos interesses
protegidos dos particulares;

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Para além destes, outros foram revelados pela jurisprudência administrativa, sendo os
mais importantes:
o Princípio da igualdade;
o Princípio da imparcialidade;
o Princípio da justiça;
o Princípio da proporcionalidade;
o Princípio da racionalidade;
o Princípio da razoabilidade;
o Princípio da boa-fé: é transposto do Direito Civil para o Direito Administrativo,
com as necessárias adaptações.

Com esta significativa evolução a Administração passa a estar (mais amplamente) sujeita
ao Direito, e não apenas à lei.
O clássico e fundamental parâmetro da atividade administrativa começa a ser entendido:
> Já não como princípio de legalidade estrita (de sujeição a regras legais);
> Mas sim como: um princípio de juridicidade, através designadamente da sujeição
da Administração, quer na atividade de gestão pública, quer na atividade de gestão
privada, não apenas à lei (no sentido estrito de regras legais), mas também aos direitos
fundamentais e aos princípios gerais de Direito Administrativo.

Capítulo II – Os princípios gerais da Atividade Administrativa


1. Notas Introdutórias
Cada vez mais, as constituições introduzem os demais ramos do direito. Sob o ponto de
vista material (quanto ao seu objeto) o direito constitucional, além do direito do Estado
em sentido estrito, abrange também princípios essenciais dos ramos infraconstitucionais
do direito. Em maior ou menor medida os vários ramos de direito têm as suas bases na
Constituição – e como diz Vital Moreira “se existe um ramo do direito público com uma
presença significativa na Constituição esse é – a par do direito penal – o direito
administrativo. É nas normas constitucionais administrativas que se encontram as bases
do direito administrativo, sendo elas direito administrativo material.
Com a nova Constituição de 1976, pode-se dizer que se deu uma verdadeira revolução
administrativa, posto que nunca até então a administração tinha tido tanta atenção
constitucional – efetivamente, para além de um capítulo especialmente dedicado ao tema
(artigos 266º a 272º da CRP), abundam no texto constitucional as disposições com
incidência direta na administração pública. De entre essas disposições, será analisada
aquela que se refere aos princípios constitucionais da atividade administrativa material –
o artigo 266º da CRP.
É importante realçar que todos estes princípios apresentam igual valor e força jurídica,
no entanto, alguns podem apresentar um valor reforçado em setores especiais do direito
administrativo, o qual deverá ser levado em conta em situações de concorrência ou colisão
de direitos.

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Princípios Jurídicos e regras jurídicas


A sua distinção reside no facto de que, enquanto as regras são normas que, verificados
determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos,
sem expressões vagas ou elásticas; os princípios são normas que exigem a realização de
algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas – os
princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de “tudo ou nada”; impõem
a otimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a reserva do possível.
Por outro lado, enquanto a convivência dos princípios é conflitual, a convivência das
regras é antinómica: os princípios coexistem, as regras antinómicas excluem-se (Freitas
do Amaral).
As funções dos Princípios
Como sublinha Pedro F. Sánchez, os princípios “constituem, antes do mais, os
fundamentos da razão de peso que conduzem o legislador a optar por uma solução em
detrimento de outra quando aprova uma regra”- donde “decorre que, quando o intérprete
se encara com a tarefa de averiguar qual o sentido que deve ser extraído de uma norma-
regra, deve apelar aos princípios que fundamentam a aprovação dessa regra para perceber
qual o entendimento interpretativo que melhor favorece a aplicação prática do princípio
que o legislador pretendeu densificar ou concretizar” – tal função enquadra-se na
interpretação sistemático-lógica, na medida em que a interpretação nunca poder ser feita
isoladamente, devendo tomar em consideração todo o ordenamento.
Podemos falar em:
§ Função positiva – a respetiva contribuição para a regulação da situação concreta,
ora autonomamente, valendo como fundamento do direito da solução jurídica a
dar ao caso, ora em concorrência com regras jurídicas;
§ Função negativa – afastando-se de regras infraordenadas desconformes com eles.
Outra distinção:
§ Função interpretativa – um princípio conduz ao desempate entre as várias
interpretações possíveis de uma norma ambígua;
§ Função integrativa – um princípio preenche as lacunas intralegais em que se
traduz o exercício do poder discricionário da Administração.

2. Princípios Gerais da Atividade Administrativa


2.1 Princípio da Legalidade
Este princípio, previsto no artigo 266º/2 do CRP e no artigo 3º do CPA, no que respeita
designadamente à atividade da administração de gestão pública, desdobra-se em três
subprincípios:
§ Princípio do primado da lei – a atividade da administração não pode contrariar
a lei – a lei irá sempre prevalecer em caso de contrariedade, com a consequente
invalidade do ato, regulamento ou contrato administrativo;
§ Princípio da precedência de lei – exige-se que o fim de uma atuação da
administração esteja fixado em lei própria.

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§ Princípio da reserva de lei – exige-se que nas matérias cuja regulação a


constituição reserve à Lei não pode o próprio legislador atribuir à Administração
o poder de praticar atos discricionários ou de emanar regulamentos praeter legem.
Significado e alcance do princípio da precedência da lei
O princípio da legalidade deve ser entendido nos quadros da conformidade com a lei, ou
seja, na necessidade de precedência de lei para toda a atividade administrativa externa,
como está explicito no artigo 3º/1 do CPA.
Tal conformidade limita-se todavia a exigências de precedência em matéria de normas de
competências e de fins, constituindo expressão da legitimidade da discricionariedade
administrativa outorgada por lei à Administração e da autonomia regulamentar e
contratual pública desta, a habilitação constitucional constante do artigo 199º/alínea g)
para serem praticadas e tomadas administrativamente quaisquer medidas jurídicas
“necessárias ao desenvolvimento económico e social e à satisfação de necessidades
coletivas”.
Assim, são ilegais tanto os atos administrativos produzidos contra proibição legal como
também aqueles que não tenham previsão ou habilitação legal, ainda que genérica.
Alcance do princípio da legalidade relativamente à atividade dos privados e à atividade
de gestão privada da Administração
O princípio em causa não tem o mesmo alcance no diz respeito à atividade de gestão
privada da Administração – a exigência de precedência legal limita-se ao ato jurídico-
público de execução de lei do qual derivou o recurso a meios ou instrumentos jurídicos
de direito privado, precisamente porque a legalidade do exercício destes é apreciada
segundo os regimes de compatibilidade por que se rege a atuação dos privados.
Consequências possíveis da inobservância da lei pela Administração
A violação ou inobservância da lei poderá gerar, conforme os casos, a:
§ Irregularidade formal ou procedimental (não invalidante do ato final ou principal
ou do contrato)
§ Invalidade
§ Ineficácia – quando não se observem os requisitos de que esta depende.
Quando da prática de condutas violadoras da lei resultarem danos para terceiros, essa
inobservância poderá gerar (cumulativamente à consequência mencionada supra) a:
§ Responsabilidade da pessoa coletiva pública;
§ Responsabilidade disciplinar
o Mandatária (perda do mandato ou dissolução do órgão colegial);
o Criminal.

2.2 Princípio da Prossecução do Interesse Público


Vem patente no artigo 266º/1 da CRP e no artigo 4º do CPA – o poder administrativo é
um poder de execução que prossegue os interesses definidos pelo legislador e só pelo

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legislador, ou seja, a Administração não tem liberdades propriamente ditas – ela não
dispõe de espaços de licitude onde possa atuar fora do direito, em função de fins por si
livremente escolhidos. Enquanto aos privados é permitido tudo o que a lei não proíba, a
Administração está vinculada a satisfação de necessidades, interesses ou fins fixados
externamente, pelo legislador. Esta vinculação impõe-se a toda a Administração e a toda
e qualquer pessoa coletiva que, não integrando aquela, exerça a atividade administrativa
(por exemplo, os concessionários).
À luz deste interesse público primário (definido pelo legislador), a Administração Pública
atua em cada procedimento administrativo e ao longo deste, o interesse público será
relativizado face ao caso concreto, de acordo com o princípio da proporcionalidade, até
se chegar ao ato administrativo que satisfaz o interesse público concreto.
Assim, aquando da atribuição de poderes discricionários à Administração, tais poderes
traduzem-se quando muito numa escolha de meios e não de fins – não é, pois, possível a
cada órgão administrativo usar os poderes que o legislador lhe atribui para prosseguir
outros fins que não aqueles que cada lei lhes fixa especificamente.
Fala-se em desvio de poder quando:
v O fim prosseguido no procedimento administrativo é de interesse privado –
sanção jurídica prevista no artigo 161º/2/a) do CPA (nulidade);
v Prossegue um fim de interesse público diferente daquele que é imposto por lei
àquela pessoa coletiva específica.

2.3 Princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos


particulares (também patente nos mesmos artigos mencionados supra), este decorre do
princípio do Estado de Direito Democrático e de uma conceção personalista do Direito
Administrativo. O respeito que se impõe à Administração Pública, na sua atuação, a estes
direitos e interesses, não depende do seu conteúdo. Isto envolve um conjunto de
obrigações para a Administração Pública:
§ Dever de não violarem ou lesarem, por ação ou omissão, direitos e interesses
legalmente protegidos;
§ Dever de proteger, adotando as medidas necessárias, esses mesmos direitos e
interesses legalmente protegidos;
§ Remover quaisquer obstáculos jurídicos ou materiais ao usufruto desses direitos
interesses legalmente protegidos;
§ Dever de defender contra agressões, efetivas ou potencias, de terceiros contra
direitos e interesses legalmente protegidos;
§ Dever de ressarcir danos provocados por ação ou omissão administrativa a
interesses legalmente protegidos.
Quando esteja em causa a violação deste princípio, fala-se de um vício material, cuja
consequência jurídica é anulabilidade, previsto no artigo 163º/1 do CPA; exceto quando
esteja em causa a violação do núcleo essencial de um direito fundamental – artigo
161º/2/alínea d) do CPA.

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2.4 Princípio da Boa Administração


Previsto no artigo 5º do CPA, este princípio é um corolário do princípio da prossecução
do interesse público. Consagram-se duas vertentes do dever de boa administração:
o Celeridade;
o Eficiência/economicidade (conseguir os melhores resultados possíveis com os
recursos disponíveis).
No artigo em questão falta uma expressa menção à vertente da eficácia, mas não deixa
esta de ser uma componente indissociável do dever de boa administração.
A relevância jurídica deste princípio não é equiparável aos demais princípios. Segundo o
entendimento tradicional este princípio é um dever jurídico imperfeito, por falta de sanção
jurisdicional: não havendo um direito dos administrados à boa administração
judicialmente sindicável pelo facto de os tribunais controlarem apenas a legalidade e não
o mérito, oportunidade ou conveniência da atividade administrativa, como está patente
nos artigos 3.º/1 e 71.º/1 do CPTA [Código do Processo nos Tribunais Administrativos].
Falta a este princípio o elemento subjetivizante e garantístico caracterizador dos demais
princípios gerais da atividade administrativa. Há, todavia, vários aspetos desta atividade
em cujo incumprimento desse dever gera consequências, por expressa determinação legal,
como por exemplo:
o Reclamações e recursos administrativos, conducentes à revogação, anulação,
suspensão, modificação, substituição de atos da Administração, previstos nos
artigos 184º a 199º do CPA, como garantias dos particulares e que se podem
fundar em vícios de mérito do ato impugnado;
o A violação por um funcionário público dos chamados deveres de zelo e aplicação
constitui infração disciplinar, originado a aplicação de sanções disciplinares ao
infrator;
o No âmbito da responsabilidade da Administração pelos danos causados no
exercício da sua atividade da prática de um facto ilícito e culposo por um órgão
ou agente administrativo que cause prejuízos a terceiros ou da chamada “falta de
serviços” causadora também de danos (artigo 7º/3 e 4 do Regime da
Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas),
na medida em que quer o grau de diligencia e zelo (primeiro caso), quer o caráter
anómalo ou não do funcionamento do serviço (segundo caso) contribuem para
definir a medida da culpa do agente ou da imputabilidade do dano ao serviço.
o O controlo do Tribunal de Contas sobre a atividade de gestão pública e privada da
Administração. Não se cinge à verificação da legalidade financeira da despesa
pública, mas também analisa a racionalidade económico-financeira das decisões
da Administração.

2.5 Princípio da Igualdade


Previsto nos artigos 266º/2 da CRP, 13º da CRP e 6º do CPA, este princípio não se resume
à proibição de tais discriminações enunciadas nos artigos em questão – sucede que o
tratamento desigual pela Administração em razão de qualquer um destes fatores
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constituirá uma agravante do respetivo vício, podendo o ato praticado padecer de nulidade
naquelas situações em que a arbitrariedade seja mais evidente ou manifesta.
O princípio da igualdade de tratamento traduz-se numa autovinculação da Administração
no âmbito dos seus poderes discricionários, devendo ela utilizar critérios
substancialmente idênticos para a resolução de casos idênticos – a mudança de critérios,
sem qualquer fundamento material, é violadora do princípio da igualdade.
Momentos mais relevantes da vinculação da Administração:
o Proibição de medidas administrativas portadoras de incidências coativas desiguais
na esfera jurídica dos cidadãos;
o Exigência de igualdade de benefícios ou prestações concedidas pela
Administração;
o Direito à compensação de sacrifícios quando a Administração impôs aos cidadãos
sacríficos especiais, violadores do princípio da igualdade perante cargos públicos
(artigo 22º da CRP e 16º da Lei 67/2007).
Há que entender que a ideia de igualdade formal contempla por vezes exceções
(convertendo-se em desigualdade), podendo ser corrigida de forma a assegurar a
igualdade material (artigo 9º/alínea d) da CRP). Ou seja, o princípio da igualdade pode
impor, em certos casos, a obrigação de distinção por forma a poder compensar-se a
desigualdade fáctica de oportunidades.
Podemos considerar que estamos perante uma violação do princípio da igualdade quando:
o Existem dois atos jurídicos contraditórios para situações fácticas semelhantes;
o Existem dois atos jurídicos iguais para situações de facto que exigem um
tratamento diferenciado.
Por vezes, pode haver um conflito entre o princípio da igualdade e da legalidade.
Questiona-se se poderá haver direito à igualdade na ilegalidade, havendo uma divisão na
doutrina:
Ø Há quem considere que, havendo uma atuação ilegal da Administração Pública,
estando em causa a mesma autoridade administrativa, deve se dar prevalência ao
princípio da igualdade;
Ø Há quem considere que o facto da Administração Pública adotar uma conduta
ilegal perante um particular não significa que deva adotar perante todos essa
conduta em virtude do princípio da igualdade (posição defendida pelo Prof.
Pacheco de Amorim).

Sanções da violação do princípio da igualdade pela Administração


Importa distinguir a qualificação, posição jurídica do particular – se o seu direito a um
tratamento igual configura um direito fundamental. Com efeito:
Ø Se vingar a qualificação do direito como direito fundamental, então o ato
administrativo desigual padecerá de nulidade – artigo 161º/2/alínea d) do CPA;
Ø Se não, aplica-se o regime-regra da anulabilidade – artigo 163º do CPA.

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A jurisprudência do STA é uniforme em afirmar que a violação deste princípio acarreta


em regra a mera anulabilidade do ato administrativo, todavia, é defensável a nulidade de
atos administrativos que ofendam de modo grosseiro ou gravoso os ditames da igualdade
jurídica do tratamento para além dos demais casos em que está em causa os valores
referidos nos artigos 6º do CPA e 13º da CRP.

2.6 Princípio da Proporcionalidade


Previsto no artigo 266.º/2 da CRP e no artigo 7.º do CPA, este princípio constitui um
limite interno da discricionariedade administrativa que apela à Administração conseguir
alcançar os fins visados pelo legislador pelo meio que represente, relativamente às
posições jurídicas dos particulares, um menor sacrifício, desdobrando a disposição legal
nas ideias de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito/proibição do
excesso.
a. Adequada – a lesão de posições jurídicas dos administrados tem de revelar-se
adequada, apta à prossecução do interesse público visado, tendo em conta os
resultados que se pretende alcançar (princípio da adequação);
b. Necessária – a lesão daquelas posições tem que se mostrar necessária ou exigível
(princípio da necessidade);
c. Proporcional – impõem-se a verificação de uma relação de proporção entre o
benefício alcançado para o interesse público pela dita medida e o sacrifício
imposto por ela ao particular, mesmo descontando já os diferentes pesos à partida
dos interesses em confronto (princípio da proibição do excesso, subprincípio da
proporcionalidade em sentido estrito).

2.7 Princípios da Justiça e da Razoabilidade


Previstos nos artigos 266.º/1 da CRP e 8.º do CPA, quer um, quer outro são princípios
com uma forte componente prática ou pragmática, que fazem apelo ao conceito de
“Homem médio” ou “Bom Pai de Família”, respetivamente ao sentimento dominante de
justiça e ao bom senso comum.
Quanto à sua distinção, as menções às “soluções manifestamente razoáveis” dizem
respeito ao princípio da razoabilidade, enquanto a invocação da “ideia de direito” remete
para o princípio de justiça.
Princípio da Justiça – é relativamente recente a transição deste princípio da zona do mérito
para a zona da legalidade, tendo ele gerado, enquanto princípio jurídico, dificuldades de
interpretação e aplicação. O problema é que a justiça se apresenta como um ideal por
definição inatingível. Situa-se assim num patamar superior de abstração, tendo um papel
subsidiário face aos demais, só sendo por isso convocável quando a decisão sindicada,
apesar de não ser discriminatória, parcial, desproporcionada ou tomada de má-fé, for
mesmo assim clamorosamente injusta.
A moderna filosofia do direito designa através da expressão “ideia de direito” a ideia de
que ‘sendo os princípios causa de justificação de regras, só podem ser justos os que por

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sua vez remetam, a partir de uma carga de sentido imediata, para um sentido de base ou
último, um fim derradeiro que preside a todo o direito e que constitui a causa final de
justificação de toda a pretensão normativa’.
Sublinha-se que a ideia de direito não é uma pura abstração, apresentando um conteúdo
mínimo identificável com os valores da paz jurídica e da realização da justiça, nas suas
várias concretizações.
Princípio da Razoabilidade – a aplicação deste princípio traduz-se num controlo da
qualidade global da ponderação dos interesses efetuada pela Administração, numa
verificação, por definição, não aprofundada ou detalhada da genérica e prévia
aceitabilidade, justificabilidade ou plausibilidade da decisão em causa. Não está em causa
uma aferição da “justa quantidade” da medida ou intensidade do sacrifício imposto a um
determinado interesse em razão da satisfação de outro interesse.

2.8 Princípio da Racionalidade


As exigências de razoabilidade ou de justiça não se confundem com a exigência de
racionalidade, coerência lógica ou completude material das decisões administrativas – é
por força deste princípio que as ditas decisões não podem assentar substantivamente em
fundamentos entre si antinómicos, ou contraditórios com o fim que expressamente se visa
atingir, ou ainda em fundamentos obscuros, falsos, contraditórios entre si ou com a
decisão tomada, inexistentes ou insuficientes.

2.9 Princípio da Imparcialidade


Vem previsto no artigo 9.º do CPA e no artigo 266.º/2 da CRP e podemos identificar duas
vertentes deste princípio:
• Função preventiva – este princípio subjaz a regras que impedem situações
suscetíveis de viciar a formação da vontade dos órgãos administrativos, como
acontece desde logo com o regime geral das garantias da imparcialidade:
impedimentos, escusas e suspeições, consagrado nos artigos 69.º a 76.º do CPA.
• Função sucessiva – este princípio obriga o órgão administrativo, no processo da
respetiva vontade, a ponderar positivamente todos os interesses que lhe cumpra
considerar e, na sua vertente negativa, a desconsiderar interesses irrelevantes
(como afinidades ou desarmonias).

2.10 Princípio da Boa-fé


Previsto no artigo 10.º do CPA e no artigo 266.º/2 da CRP, este princípio parte da
consideração de uma conduta criadora de confiança, enquanto comportamento ativo ou
omissivo no exercício da função administrativa, que é apreendida pelos seus destinatários
como indiciadora de uma determinada conduta, que funda as expetativas e a confiança
dos referidos destinatários na concretização da dita conduta futura.

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No número 2 do artigo 10.º, a “contraparte” mencionada diz respeito aos interessados


num procedimento administrativo em curso, designadamente num procedimento pré-
contratual.
Boa-fé subjetiva – a administração está obrigada a atuar lealmente e de forma
transparente;
Boa-fé objetiva – a administração não pode lesar a confiança que o particular foi
legitimamente depositando nela.
A não observância destes sentidos da boa-fé implica a invalidade dos atos
administrativos.

Capítulo III – A Administração Pública e o Direito


1. A Atividade da Administração e os Contratos da Administração; a
Atividade da Gestão Pública e o Direito Administrativo como Direito
Estatutário da Administração
A Administração Pública, no seu sentido subjetivo ou orgânico mais rigoroso, desenvolve
normalmente uma atividade de gestão pública através das principais formas jurídicas de
direito administrativo, regulados por este ramo do direito: regulamento, ato e contrato
administrativo. O Direito Administrativo constitui, pois, o quadro regulador próprio da
Administração na sua atividade de gestão pública – o seu direito estatuário, onde encontra
nele não apenas os fundamentos, mas também os limites da sua atividade externa.
A atividade de gestão pública caracteriza-se pela:
o Outorga de prerrogativas especiais;
o Sujeição a restrições especiais.
Este dualismo expressa “as duas preocupações fundamentais cuja síntese em cada época
tem traduzido diferentes graus de equilíbrio interno do Direito Administrativo: o interesse
geral e os legítimos interesses dos particulares”.
Contudo, a Administração Pública não é só regulada pelo Direito Administrativo,
recorrendo em certos casos ao Direito Privado, não se separando daquele – é o fenómeno
da ‘fuga para o Direito Privado’.
Nota – dada a especificidade do direito administrativo existe a par da ordem jurisdicional
comum, uma distinta ordem jurisdicional destinada a apreciar e jugar os litígios
emergentes das relações jurídico-administrativas e fiscais – Tribunais Administrativos e
Fiscais, cuja organização, funcionamento e atividade destes tribunais está regulada no
ETAF.

A Utilização do Contrato pela Administração


O contrato como categoria geral do Direito

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Apesar de ter origem e principal campo de aplicação no direito privado, a figura do


contrato é hoje também uma categoria central do direito público. Com efeito, tanto no
direito privado, como no direito público temos sempre a presença do contrato enquanto:
a. Acordo de vontades entre dois sujeitos de direito com vista à produção de um
resultado jurídico comum;
b. Resulta em efeitos que se projetam nas esferas dos contratantes.
Não são essenciais para a configuração do contrato: uma total paridade das partes, nem o
caráter contraposto dos respetivos interesses.
Regra de utilização pela Administração do contrato administrativo
o Obrigatoriedade de, por norma, os órgãos administrativos, na prossecução das
atribuições das respetivas pessoas coletivas públicas, e designadamente no âmbito
do seu relacionamento com os particulares, sempre que prefiram utilizar
instrumentos jurídicos de consenso terem de recorrer ao contrato
administrativo.
o Contudo, os instrumentos fornecidos pelo direito privado podem também ser
utilizados pela Administração complementarmente aos disponibilizados pelo
direito administrativo – podendo utilizar a figura do contrato privado.
A utilização do contrato de Direito privado
Quando falamos da capacidade jurídica das pessoas coletivas públicas de recorrer ao
contrato privado, estamos a falar de uma capacidade jurídica especial, que não anula a
capacidade jurídica de gozo e exercício de direitos que é seu apanágio (de todas as pessoas
coletivas). É no exercício de tal capacidade que ela se sujeita, também, a normas de direito
privado – despe-se das suas vestes de imperium.
Assim, entramos no domínio da atividade de gestão privada da Administração, o qual se
contrapõe à sua atividade de gestão pública, possuindo por isso o regime jurídico da
Administração uma estrutura dualista, que se evidencia sobretudo quando os instrumentos
de direito privado são utilizados para a direta prossecução dos fins públicos posto por lei
a seu cargo.
No que toca à atividade de gestão privada, a Administração:
o Deixa de se submeter ao esquema de “predeterminação legal dos efeitos jurídicos
que decida desencadear”;
o Apenas está vinculada pelo princípio da especialidade – significa que o
ordenamento jurídico procede só a uma delimitação negativa dos fins que não
correspondam a qualquer atribuição (demarcação negativa da esfera da ilicitude);
o Não está vinculada diretamente à prossecução de um fim público determinado de
forma evidente, na celebração desse contrato;
o Mas continua a sua atividade a ter de ser motivada pelo interesse público.

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Limites Constitucionais
Para os entes públicos tal capacidade geral assume papel secundário por força do direito
administrativo, que fixa previamente os termos e os limites do exercício da autonomia
privada da Administração.
Sempre que, no contexto do contrato a celebrar, esteja presente pelo menos um dos fatores
de administratividade enunciados nas alíneas a) a d) do artigo 280.º/1 do Código dos
Contratos Públicos, o recurso ao contrato de direito privado só terá lugar se a lei
expressamente o impuser ou permitir. Em especial:
§ Artigo 280.º/1/alínea a) – Contratos Administrativos Nominados (por força da
lei, são qualificados como contratos administrativos), um exemplo é o contrato de
empreitada de obras públicas;
§ Artigo 280.º/1/alínea b) – Contratos com o objeto passível de ato administrativo e
demais contratos sobre o exercício de poderes públicos, um exemplo é o direito
urbanístico;
§ Artigo 280.º/1/alínea c) – Contratos que confiram ao cocontratante direitos
especiais sobre coisas públicas/exercício de funções dos órgãos do contratante
público: quando há transferência de funções para o privado, tem de ser por
contrato administrativo;
§ Artigo 280.º/1/alínea d) – Contratos que a lei submeta a um procedimento de
formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do
cocontratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das
atribuições do contraente público.
Casos em que a Lei proíbe o recurso ao direito privado:
o Proibição de criação de entidades de direito privado que impende sob os institutos
públicos (artigo 13.º/1 da Lei-Quadro dos Institutos Públicos);
o Interdição que recai sobre as pessoas coletivas públicas de criar ou participar em
novas fundações públicas de direito privado (artigo 57.º/1 da Lei-Quadro das
Fundações).
Casos em que a Lei impõe o recurso a instrumentos de direito privado:
o Instituição de empresas públicas que não assumam o formato de entidade pública
empresarial ou de serviço municipalizado – tais empresas devem ser constituídas
sob a forma de sociedade comercial de responsabilidade limitada e nos termos da
lei comercial;
o Empresas públicas devem-se submeter ao direito privado, inclusive das com
natureza jurídico-organizativa pública;
o Obrigatoriedade de as entidades expropriantes tentarem adquirir o bem de que
necessitam pela via do direito privado, antes de requerer a declaração de utilidade
púbica para efeitos de expropriação.
E quando a Lei nada diz quanto à utilização do direito privado?
Desde logo, relativamente a determinadas tarefas públicas fundamentais (da reserva
constitucional de Direito Administrativo) está a discricionariedade de escolha da
Administração limitada por esta reserva. Em certas atividades, em razão da salvaguarda

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de certos bens jurídico-constitucionais, não poderá aquela prescindir dos seus poderes de
autoridade – “sendo o direito administrativo um direito de imperium, não o pode o Estado
de Direito Democrático dele prescindir quando tal seja reclamado pelo interesse geral da
comunidade política”.
Tal ocorre com o núcleo das suas funções de autoridade, que inclui entre outras, as:
o Atividades sancionatórias (contraordenacional e disciplinar);
o Atividades de licenciamento;
o Atividades de fiscalização de atividades privadas.
Fora dessa reserva constitucional, os entes públicos apenas podem recorrer a instrumentos
de direito privado:
a. No contexto da especialidade das respetivas atribuições;
b. Se tal for comprovadamente necessário ou conveniente à prossecução dos fins
públicos a seu cargo.
Por isso, o artigo 200.º/1 do CPA deverá ser alvo de uma interpretação restritiva, quando
enuncia a aparente ampla discricionariedade de que dispõe a Administração de celebrar
contratos administrativos ou contratos de direito privado.

Primeiras considerações em torno do conceito de contrato público


Conceito amplo de contrato público
Abrange não só os contratos de direito administrativo como também os contratos privados
cuja fase de formação está submetida a uma disciplina procedimental de Direito
Administrativo.
O professor Mário Aroso de Almeida afirma que não estamos perante um ‘conceito
operativo’, mas sim um “conceito-quadro, destinado a designar de forma genérica, os
contratos que, na nossa ordem jurídica, estão submetidos a regimes de direito público,
independentemente da heterogeneidade de conteúdo que possa caracterizar esses regimes
jurídicos”.
O contrato público em sentido amplo define-se, pois, pelo regime que lhe é aplicável: Se
a Formação, a Execução e o Contencioso de um dado contrato da Administração for
objeto de uma específica (e minimamente densa) regulamentação do direito público.
Conceito estrito de Contrato Público
Acresce um conceito de contrato público com contornos específicos no nosso direito
positivo, mas oriundo do Direito da União Europeia, que se sobrepõe parcialmente ao
conceito amplo. Quanto ao seu:
§ Elemento Subjetivo – é um pouco mais lato do que o outro, pois abrange não
apenas os entes públicos tradicionais e as entidades privadas investidas em
poderes públicos, mas também todo um conjunto de entidades afins, compondo o
universo mais alargado das chamadas entidades adjudicantes;

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§ Elemento Objetivo – abrange os contratos (administrativos ou de direito privado)


desde que celebrados pelas ditas entidades adjudicantes, que apresentem um cariz
económico e interesse concorrencial, ou seja, que estejam submetidas à
concorrência de mercado – artigo 201.º/1 do CPA.
Este novo conceito veio substituir a definição de conceito amplo de contrato público que
até 2015 aparecia na alínea e) do número 1 do artigo 4.º do ETAF.
Deste conceito em sentido estrito, excluem-se certos contratos privados da
Administração, como:
o Os contratos individuais de trabalho celebrados pelas universidades públicas com
estatuto de fundação com os seus docentes;
o Ou pelos Hospitais Públicos criados sob o formato de entidade pública
empresarial com os respetivos médicos/enfermeiros.
Não obstante estes contratos serem revestidos de uma disciplina de direito administrativo
aquando do procedimento de formação de tais contratos, falta-lhes o cariz económico,
elemento obrigatório neste sentido de contrato público.
Adiante-se, por fim, que o Código dos Contratos Públicos contém:

> na sua Parte II: o regime geral regulador do procedimento pré-contratual ou de


formação dos contratos públicos: tomado o conceito neste sentido estrito;
> na sua Parte III: o regime geral substantivo de todos os contratos
administrativos (e não apenas, portanto, dos contratos administrativos com cariz
económico e com interesse concorrencial).

Contratados Administrativos e contratos públicos no CCP


Enquanto contrato que cria, modifica ou extingue uma relação jurídico-administrativa,
pode ser celebrado entre:
o um contraente público e outro contraente público;
o um contraente público e um cocontratante (por norma um privado), verificando-
se qualquer um dos heterogéneos e indiciários fundamentos das alíneas a) a d)
do número 1 do artigo 280.º do CCP.
O contrato administrativo rege-se, em termos substantivos, pelo direito administrativo
material vertido na Parte III do CCP.
Nota – quanto aos entes instrumentais das tradicionais pessoas coletivas de direito
público, a que se referem o artigo 2.º/2 e o 7.º/1/alínea a) do CCP: Quando não estejam
investidos em funções materialmente administrativas não estão, em regra, obrigados a
celebrar contratos administrativos, mas apenas a adotar os procedimentos pré-contratuais
regulados na Parte II.

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Contencioso Administrativo dos contratos públicos e tendencial expansão da jurisdição


administrativa aos litígios emergentes de relações jurídicas de direito privado, em que os
entes públicos sejam partes
Os dois tipos distintos de contratos públicos suprarreferidos são ambos submetidos à
jurisdição dos tribunais administrativos, como o dita o artigo 4.º/1/alínea e) do ETAF:
compete à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objetos todas
as questões relativas à:
• validade de atos pré-contratuais;
• interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer
outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública,
por pessoas coletivas públicas ou outras entidades adjudicantes.
Em regra, quando a Administração atua ao abrigo do direito privado, são os tribunais
comuns competentes para apreciar e julgar os litígios emergentes das relações jurídicas
de direito privado em que as pessoas coletivas de direito público sejam parte. Todavia,
tem se verificado uma tendência expansiva da jurisdição administrativa, no sentido de
abranger também (e cada vez mais) litígios emergentes de relações jurídicas de direito
privado em que as pessoas coletivas de direito público sejam parte.
Isto acontece com o contencioso emergente de questões de validade, interpretação,
execução e incumprimento dos contratos de direito privado com cariz económico e
interesse concorrencial (contratos públicos em sentido estrito). A estes contratos, a lei
determina o dever de serem antecedidos por procedimentos mais ou menos exigentes
regulados pelo direito administrativo, em regra de tipo concursal.
Assim, é confiada à jurisdição administrativa a competência de resolução:
> Litígios emergentes desses atos e trâmites procedimentais – normal, uma vez que
estamos perante questões suscitadas no âmbito de relações jurídico-
administrativas procedimentais;
> Controvérsias que venham a ocorrer em sede de validade, interpretação e
execução dos próprios contratos para cuja celebração tendem aqueles
procedimentos.

O Contrato na ação da Administração em breve perspetiva histórica


No surgimento do Estado Liberal, princípios do século XIX, o contrato utilizado pela
Administração era excluído da esfera do direito público – o contrato de direito civil
constituía o modo normal de relacionamento entre a Administração e os particulares até
ao último cartel do século XIX.
A figura suis generis do contrato administrativo apenas emerge em finais do século
XIX/inícios do século XX, em França, onde se dá a definitiva publicitação, pela via
jurisprudencial, dos contratos de empreitada de obras públicas e de concessão de
exploração de obras e serviços públicos, tendo passado a constituir os distintos termos da
vinculação de cada uma das partes (pública e privada) o fator de diferenciação da nova
figura face à figura civilística do contrato.

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Ao longo do século XX consolidou-se o contrato administrativo como figura central da


teoria geral do direito administrativo em França e nos países que sofreram a sua influência
jurídica – como foi o caso de Portugal, sendo que pelos meados do século passou a ter
assento igualmente entre nós a teoria clássica do contrato administrativo, baseada na
existência de uma dualidade de regimes jurídicos substantivos e uma dualidade de
competência jurisdicional.
A partir dos anos 80 generalizou-se a utilização pela Administração dos contratos
administrativos e, mais amplamente, dos contratos públicos designadamente com o
processo de privatização orgânica e funcional das empresas e tarefas públicas.
A partir do último quartel do século XX foi através dos:
§ Contratos de venda de títulos – os Estados alienaram as suas participações
sociais nas empresas públicas objeto de privatização;
§ Contratos administrativos mistos (de empreitada de obras públicas e de
concessão de obras e serviços públicos ou de gestão de estabelecimentos públicos)
– que se estabeleceram por toda a parte as chamadas parcerias público-privadas.
§ Contratos de sociedade – que se constituiu sociedades de economia mista sob
influência pública dominante.
Subjaz a esta tendência uma lógica de consenso, que privilegia o recurso ao contrato em
alternativa ao ato (unilateral), fomentando-se a “cultura do contrato”.

Os Contratos da Administração e o Direito Administrativo


Uma classificação tripartida dos contratos de Administração, tese do Prof. Pedro C.
Gonçalves
a. Contrato e Direito Administrativo
São contratos celebrados por pessoas coletivas publicas sobre os quais incidem
pontualmente determinadas normas de direito administrativo só por serem tais contratos
celebrados por entidades da Administração, mas são regulados, no essencial pelo direito
privado. São tipicamente as situações:
i. Na fase de formação do contrato, das normas reguladoras da decisão prévia de
contratar, incluindo, sendo o caso, as normas relativas à autorização de despesa.
ii. Na fase de execução do contrato, do imperativo da observância dos princípios
gerais da atividade administrativa e das normas do CPA concretizadoras de
preceitos constitucionais (artigos 202.º/2 da CRP e artigo 2.º/3 do CPA)

b. Contrato no Direito Administrativo


Certos contratos celebrados por entidades administrativas ou afins, sobre os quais incidem
normas jurídicas de Direito Administrativo que regulam, com um mínimo de densidade,
aspetos parcelares desses contratos – “o contrato já mergulha no Direito Administrativo”.
São os casos da:

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i. Sujeição da respetiva fase de formação a normas de direito administrativo


procedimental – Parte II do CCP;
ii. Submissão da execução dos mesmos contratos de direito privado a certos aspetos
do regime substantivo dos contratos administrativos, mais precisamente aos
preceitos dos regimes de invalidade e de modificação objetiva e subjetiva (artigos
283.º a 285.º; e do artigo 331.º ao 324.º, tudo do CCP), que, tal como as da Parte
II do CCP, tem também por objeto a defesa dos mesmos princípios da
concorrência, da igualdade de tratamento e da não discriminação que subjazem à
disciplina da contratação pública

c. Contrato de Direito Administrativo


São os contratos da Administração sobre os quais incidem normas jurídicas de Direito
Administrativo que os regulam em todos os aspetos essenciais e de forma detalhada,
constituindo, por isso, a sua fonte primaz.
São contratos regulados em todas as suas vertentes, pelo Direito Administrativo – a nível:
procedimental, substantivo, contencioso.
Estamos perante verdadeiros e próprios contratos administrativos (que são também
contratos públicos – relação género-espécie), sujeitos no seu regime substantivo à Parte
III do CCP e/ou legislação especial do direito administrativo substantivo.

Nota – os contratos administrativos constituem uma categoria de contratos públicos (lato


sensu) que se autonomizam dos demais pela respetiva submissão a um regime substantivo
de direito público relativo aos momentos da sua execução, modificação ou extinção. Mas,
os contratos podem ser públicos por estarem essencialmente sujeitos apenas a uma
disciplina administrativa procedimental, que regule a sua formação (procedimentos pré-
contratuais), não deixando de ser contratos de direito privado. Isto porque, um contrato é
público por se submeter, pelo menos em alguns aspetos relevantes do seu regime, a
normas de Direito Administrativo.

2. Os Contratos Privados da Administração


i. Na Administração Clássica
Desde que, a partir de 2008, os contratos de Locação e Aquisição de bens móveis e de
Aquisição de serviços passara, por disposição de Lei, a ser qualificados como contratos
administrativos – que se reduziu consideravelmente o leque dos contratos de direito
privado a que a Administração Clássica ainda pode recorrer – uma vez que, se a Lei não
lho permite expressa e pontualmente, ela está impedida de escolher a respetiva versão
privatística.
Campos em que a Administração pode celebrar contratos de direito privado (cujo regime
substantivo será o Código Civil):

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v Quando pretenda prestar serviços;


v Quando pretenda alienar, ou dar em locação bens móveis;
v Quando pretenda celebrar contratos de sociedade, designadamente com
particulares;
v Quando pretenda adquirir, alienar, permutar, arrendar ou dar de arrendamento
bens imóveis do seu domínio privado.
A Administração poderá recorrer ao direito privado também para celebrar outros
contratos, desde logo os demais contratos disciplinados pelo Código Civil, desde que não
se verifique qualquer dos pressupostos já enunciados e mencionados no artigo 280.º/1 do
CCP:
a) O da respetiva qualificação legal como contrato administrativo (sendo a
Administração parte), ou o da sujeição a um regime substantivo de direito
administrativo;
b) O traduzir-se o seu objeto num exercício de poderes públicos;
c) O da outorga ao contraente privado, através deles, de direitos especiais sobre
coisas públicas ou do exercício de funções administrativas que caibam aos órgãos
do contraente publico;
d) O do cúmulo da submissão, nos termos de lei, a um procedimento pré-contratual
regulado por normas de direito público, com a previsão de prestações do
contraente privado que venham a condicionar ou a substituir, de forma relevante,
as atribuições do contraente público.
É de notar que:
i. Os contratos de sociedade celebrados por entidades adjudicantes do artigo 2.º/1
do CCP, assim como;
ii. Os de alienação de bens móveis usados e;
iii. De venda de participações sociais do setor público e;
iv. Ainda alguns dos relativos a bens móveis do domínio privado do Estado e dos
institutos públicos.
Não obstante serem à partida contratos de direito privado, estão também sujeitos por regra
a procedimentos pré-contratuais regulados por normas de direito administrativo
procedimental.
Nota – se, ao invés dos exemplos que acabamos de referir, não tiverem os contratos
privados da Administração cariz económico e interesse concorrencial, e não se
sujeitarem, na fase da respetiva formação, à disciplina de contratação pública, já não serão
eles, em rigor, contratos públicos, nem sequer no sentido amplo do termo – serão
contratos (privados) da Administração.
ii. Na Administração em forma privada
4. A par da Administração tradicional, perfilha-se hoje um heterogéneo universo de
entidades em forma privada, como por exemplo: as EPEs, as Fundações Públicas de
Direito Privado, que, não obstante serem entidades públicas, estão em primeira linha
sujeitas ao direito privado, sendo, por isso, os contratos por si celebrados serem civis
ou comerciais.

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3. A Fuga para o Direito Privado


Este fenómeno, que se agravou nas últimas décadas, refletiu-se:
§ Num considerável aumento das situações de prossecução de parcelas da função
administrativa por entidades administrativas privadas;
§ Na sujeição ao direito privado de substanciais áreas de atuação de muitas das
clássicas pessoas coletivas de direito público.
Tal tendência tem descaracterizado a tradicional Administração Pública, já não
subsistindo nos nossos dias, pelo menos com a clareza de outrora, a premissa base da –
essencial correspondência entre a natureza jurídico-organizativa de um ente e do direito
que em regra lhe é aplicável, enquanto seu direito estatuário.
Nota – Esta derrogação do princípio da correspondência entre a natureza jurídico-pública
de um ente e o seu direito estatuário versa sobre as situações em que há uma certa sujeição
ao direito privado por categorias de entes públicos não empresarias, muitos dos quais
desenvolvem inclusive uma típica administração de autoridade.
Multiplicação do fenómeno da “dupla capacidade jurídica” – a par das competências de
direito público, em determinados âmbitos de atividade, são submetidas ao direito privado.
I. Exemplo – a Agência para a Modernização Administrativa, IP
A lei orgânica da AMA, depois de no seu artigo 1.º (do decreto-lei 43/2012) qualificar-se
como um instituto público integrado na Administração Indireta do Estado que prossegue
atribuições nas áreas da modernização e simplificação administrativa eletrónica, equipara
no seu artigo 3.º/3 este organismo como uma “entidade empresarial, para efeitos de
desenvolvimento e gestão de redes de lojas para os cidadãos e para as empresas” – o
mesmo é dizer que remete para o exercício de toda esta atividade a desenvolver pela AMA
para o direito privado.
II. Exemplo – Fundações Públicas Universitárias
No que se refere a estes entes, aplica-se o:
§ Direito privado a certas áreas de atuação, como: a gestão patrimonial, financeira
e de pessoal;
§ Direito público às demais áreas.
Estes termos são explicitamente utilizados pelo Regime Jurídico das Instituições do
Ensino Superior, aprovado pela Lei n.º 62/2007, em especial no seu artigo 134.º/1.
III. Exemplo – Associações Públicas Profissionais
Determina o artigo 2.º/2/alínea b) da Lei n.º 2/2013 (que estabelece a comum disciplina
das Associações Públicas Profissionais) que tais entidades são regidas pelas normas e
princípios que disciplinam as associações privadas no que concerne à respetiva
“organização interna”, ou seja, às ordens profissionais se aplicará por regra o direito
privado nos seus assuntos domésticos.

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Em contrapartida, aplica-se o direito público à atividade de gestão pública por si


desenvolvida, em direta prossecução das atribuições que constituem a sua razão de existir.
IV. Exemplo – Entidades Reguladoras Independentes
Relativamente à gestão financeira e patrimonial manda o artigo 4.º/3, da respetiva Lei-
Quadro (Lei n.º 67/2013), que se lhe aplique, supletivamente, o regime das entidades
públicas empresariais, remetendo-as assim para o direito privado. Assim como na área da
gestão pessoal, o artigo 32.º/1 do referido diploma remete o regime do contrato individual
de Trabalho.
Conclusão – Após a observância desses exemplos, não obstante a pouca clareza das
normas definidoras dos respetivos regimes, estamos longe ainda do figurino das entidades
públicas empresariais: em caso de dúvida a regra é a da aplicação do direito público,
configurando-se a sujeição ao direito privado como exceção. No entanto, as exceções,
agora, já não são apenas casos pontuais (uma outra prerrogativa de autoridade, por
exemplo), mas inteiras áreas de atuação.
Relativamente ao contencioso da atividade das:
o Pessoas coletivas públicas sujeitas em primeira linha ao Direito Privado (EPEs e
fundações públicas de direito privado);
o Quaisquer entidades privadas, quando investidas de poderes públicos
(substantivamente privadas – empresas concessionárias, ou públicas desde que
tenham natureza jurídico organizativa privada).
São competentes os tribunais comuns (cíveis) em caso de, porquanto é o direito privado
que rege, em primeira linha, a respetiva atividade.
Diverso, todavia, será o regime contencioso aplicável, se qualquer uma destas entidades
estiver investida de poderes públicos de autoridade, e sempre que exerça tais poderes,
como dita o artigo 4.º/alínea d) do ETAF.

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Parte II – Direito da Organização Administrativa


Título I – Noções Gerais e Sistema Organizativo
Capítulo I – Noção de Organização Administrativa
1. Noções Introdutórias
A organização administrativa é o modo de estruturação em concreto que a Constituição e
a Lei dão à Administração Pública numa dada época. Recapitulando, a Administração
Pública é o conjunto de entidades, órgãos e serviços do Estado dotados da competência,
primacialmente, do desempenho da função administrativa.
É importante precisar que a Administração Pública não é uma organização, mas antes um
conjunto de organizações ou um sistema organizativo plural, e por isso, a organização
administrativa é, na definição do Prof. Vital Moreira – “o sistema de entidades, órgãos,
serviços e agentes do Estado, bem como das demais pessoas coletivas públicas, que
asseguram a título principal, em nome da coletividade, a satisfação regular e contínua dos
interesses públicos”.

2. Os Princípios Constitucionais da Organização Administrativa e o Sistema


Organizativo da Administração Pública neles fundado
Partindo dos números 1 e 2 do artigo 267.º da CRP consegue-se retirar os princípios
constitucionais da organização administrativa:
§ Desburocratização;
§ Descentralização;
§ Desconcentração;
§ Participação;
§ Subsidiariedade;
§ Unidade da Administração;
§ Imparcialidade.
Nestes assenta todo o sistema organizativo da Administração Pública portuguesa. É de
realçar que os primeiros quatro constituem desdobramentos de um princípio mais amplo
que é o Princípio da Aproximação dos Serviços Públicos aos Interessados.
Na redação daquele artigo, pretendeu o constituinte contrariar normativamente a
tendência natural de se centralizar e concentrar o poder nos órgãos centrais do Estado.

2.1 Princípio da Desburocratização


Surgiu como forma de simplificar a administração, com o intuito de dotá-la de toda a
eficiência e celeridade, de forma a abreviar os procedimentos e facilitar a vida aos
administrados – artigo 5.º do CPA.

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2.2 Princípio da Descentralização


Está previsto nos artigos 6.º/1, 267.º/2 e 235.º e seguintes da Constituição e traduz-se
numa imposição aos poderes constituintes de transferência de poderes administrativos
(atribuições e competências) do centro para a periferia: Transferência Intersubjetiva, que
se processa a partir do Estado a favor de pessoas coletivas distintas (nomeadamente
territoriais: autarquias locais – artigo 235.º e seguintes).
Um sistema descentralizado implica a transferência de poderes decisórios para outros
entes que não o Estado, assumindo estes últimos e a título próprio a prossecução de
interesses públicos que presidem àqueles poderes.
Podemos falar em duas vertentes deste princípio:
o Estática – esgota-se com a criação de novas pessoas coletivas públicas dotadas de
atribuições e competências “herdadas do Estado”;
o Dinâmica – é um inacabado processo de transferência de novas atribuições e
competências do Estado-Administração para os entes públicos menores.
Vantagens da Descentralização:
§ Garantia das liberdades locais;
§ Abertura às sensibilidades próprias da população local;
§ Concretização da participação política dos cidadãos no âmbito local e regional.
Desvantagens da Descentralização:
§ Esbatimento da unidade do Estado;
§ Menor homogeneidade da ação política e administrativa;
§ Possibilidade de resultar num mau uso dos poderes administrativos.
No entanto, todas estas desvantagens não têm comparação com o mal maior que a
descentralização impede – a hipertrofia do Estado.
Conceito de Descentralização em sentido estrito
É a descentralização territorial, constitucionalmente garantida pelo princípio da
autonomia local. Diz respeito apenas à:
i. (re)criação das autarquias locais sob a nova ordem constitucional com uma
autêntica autonomia que a Constituição expressamente consagra e garante;
ii. criação de novas autarquias (nomeadamente as futuras regiões administrativas);
iii. processo de transferência para as autarquias já existentes de novas atribuições e
competências provindas do Estado-Administração, com base na incidência local
das matérias ou assuntos em causa que os qualifica como interesses próprios das
autarquias locais.
Conceito de Descentralização em sentido amplo
Esta definição engloba o processo de devolução de poderes, conducente à também
chamada Descentralização técnica, funcional ou por serviços.

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A Devolução de Poderes implica a criação de pessoas públicas de fins singulares, com


outorga a estas de atribuições e competências até então assumidas diretamente pelo
Estado, mas que nem por isso deixam de ser reconduzíveis a interesses públicos estaduais
imputáveis a toda a comunidade nacional. Por conseguinte, as atribuições próprias das
pessoas coletivas públicas criadas pelo processo de devolução de poderes pertencem, de
raiz, ao Estado – a nova pessoa coletiva irá prosseguir as atribuições conferidas pelo
Estado enquanto ente instrumental deste.
Não obstante, formalmente, tudo se passa como se tais atribuições pertencessem por
inteiro e desde a origem ao ente público que as recebe. Estas entidades gozam de
autonomia: Jurídica; Patrimonial; Administrativa e Financeira.
Este processo é bem distinto do da verdadeira descentralização (em sentido estrito ou
propriamente dita), pois essa:
§ Circunscreve-se à criação de pessoas coletivas públicas de âmbito territorial e fins
múltiplos;
§ Há uma transferência (a título de interesses próprios – da respetiva comunidade
substrato) de novas atribuições e competências que dessa forma são
verdadeiramente subtraídas ao feixe das atribuições e competências da
Administração Estadual e ao círculo de interesses públicos estaduais;

A criação de novos entes (pessoas coletivas públicas com fins específicos), tais como:

o Os institutos públicos;
o As fundações públicas;
o As entidades públicas empresariais/institucionais;
o As associações públicas de entidades privadas;
o Os institutos de ensino superior público.

Constitui um expediente que a nossa doutrina administrativa designa tradicionalmente


por devolução de poderes – erigindo-se como modelo alternativo de organização de
Administração Pública, que se opõe a outro modelo (o da integração de poderes – quando
o Estado procede diretamente à prossecução desses interesses, pese a sua especificidade,
estamos perante um sistema de integração de poderes).
Estas novas pessoas coletivas públicas criadas:

> Passam a ter a seu cargo um específico conjunto de interesses públicos restritos a
um determinado domínio, descarregando o Estado (ou a região autónoma, ou o
município) do desempenho das tarefas correspondentes;
> Ficam, em regra, submetidas aos poderes de superintendência do governo, assim
como à tutela e aos demais poderes tutelares legalmente fixados;
> São entes de tipo institucional ou fundacional – têm apenas um órgão de
administração e um órgão de fiscalização.
A razão de ser deste desdobramento reside nas especiais exigências que as matérias em
causa requerem aos organismos públicos incumbentes. Com efeito, estes novos entes:

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§ Terão de usufruir, para o desempenho das funções em causa, de um mínimo de


autonomia administrativa e financeira, pois entende-se que a tradicional
burocracia da Administração Direta do Estado é inadequada para levar a cabo tais
tarefas.
o No caso dos institutos públicos o Governo deverá dispor da possibilidade
de nomear para os seus conselhos diretivos dirigentes recrutados fora do
aparelho burocrático.

2.3 Princípio da Desconcentração


Previsto expressamente no número 2 do artigo 267.º da CRP, este princípio traduz-se
numa imposição aos poderes constituídos no sentido de estes transferirem competências
do centro para a periferia, com a especificidade de essa transferência se operar em regra
dentro da pessoa coletiva pública, ou seja, entre órgãos do mesmo ente público –
Transferência Intrasubjetiva.
Em regra, transferem-se apenas competências e não atribuições.
Quando estamos perante uma Desconcentração de poderes, o poder decisório reparte-se
entre os vários órgãos da cadeia hierárquica, havendo lugar a uma maior diversidade de
competência dentro da mesma organização. A Desconcentração consiste numa atribuição
de poderes decisórios a órgãos intermédios da pirâmide hierárquica.
Vantagens da Desconcentração:
§ Maior eficiência, rapidez e qualidade das decisões tomadas pelas instâncias
subalternas (resulta do facto de melhor se adequarem essas decisões a uma
realidade de que os seus autores têm, por razões de proximidade, um mais
completo e preciso conhecimento);
Desvantagens da Desconcentração:
§ Menor preparação dos subalternos para dar resposta aos problemas (mas é
ultrapassada com o tempo/experiência do próprio exercício dessas competências).
A desconcentração pode ser originária (legal) ou derivada (voluntária).
Desconcentração originária
Quando é feita pelo próprio legislador – é a Lei que reparte o poder decisório por diversos
órgãos.
a) Desconcentração originária intersubjetiva
Não obstante ser mais comum a desconcentração intersubjetiva ser derivada, pode a Lei
estabelecer, atipicamente, um mecanismo de desconcentração simultaneamente originária
e intersubjetiva – entre órgãos de pessoas coletivas distintas, mas sem implicar qualquer
transformação nas respetivas atribuições.
Nestes casos, preexiste sempre uma posição de sujeição do ente público para quem sejam
transferidas as competências a poderes de superintendência do sujeito que é o titular

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originário de tais competências – o órgão em posição de sujeição integra a administração


indireta do segundo. Os Fins prosseguidos pelas entidades que prosseguem a
administração indireta do ente primário são sempre fins que a este último continuam a
pertencer.
Ou seja, neste tipo de desconcentração, o legislador, sem alterar as atribuições do ente
matriz, procede a uma repartição das correspondentes competências entre órgãos de
pessoas coletivas distintas, sendo que o órgão desconcentrado passa a assumir um caráter
duplo:
§ Continua integrado na pessoa coletiva em que inicialmente se insere;
§ No respeitante à competência desconcentrada ele transforma-se num órgão
indireto ou secundário da entidade titular da correspondente atribuição,
renascendo a hierarquia afastada pelo véu da personalidade jurídica própria do
ente instrumental.
Consequentemente:
§ Os atos praticados no exercício da competência desconcentrada são juridicamente
imputados à pessoa coletiva titular da correspondente atribuição, sendo esta quem
responde civilmente pelos prejuízos causados por tais atos;
§ O órgão titular originário da competência mantém poderes de supervisão sobre os
atos praticados pelo órgão para quem a competência é transferida, não podendo
os mesmos atos ser revogados por outro órgão da pessoa coletiva de fins
singulares a que pertence o órgão beneficiário da competência transferida.
Exemplos – Hospitais EPEs, o conselho de Administração do Hospital torna-se
sincronicamente órgão de duas pessoas coletivas públicas, nomeadamente do próprio
instituto público/empresa pública hospitalar e do Estado – Ministério da Saúde. Assim,
sempre que exerça a competência desconcentrada, o órgão seu titular está a prosseguir
não as atribuições próprias da pessoa coletiva em que se insere, mas as atribuições da
entidade onde inicialmente se concentram todos os poderes que constituem instrumentos
jurídicos dessas atribuições.
b) Desconcentração originária intersubjetiva com transferência de atribuições =
desconcentração personalizada (prof. Vital Moreira)
Certa parte da doutrina adota o conceito de Desconcentração Personalizada como
alternativa às expressões “devolução de poderes” e “descentralização técnica, funcional
ou por serviços”. E tal doutrina fá-lo com um duplo intuito:
§ Excluir deste âmbito as associações públicas de entidades privadas, colocando-as
a par das autarquias locais, no fenómeno da verdadeira descentralização;
§ Sublinhar a dupla ficção jurídica que traduz o processo de criação dos institutos
públicos e das empresas públicas institucionais, por confronto com os especiais
contextos da criação, funcionamento e atividade das associações públicas (de
entidades privadas),

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Contudo, não é de seguir esta orientação na medida em que:


§ As associações públicas reconduzem-se prima facie ao fenómeno da devolução
de poderes;
§ Na criação de institutos públicos, fundações públicas e empresas públicas
institucionais presidem motivações e objetivos que não é possível confinar à
figura da desconcentração de poderes.

Não obstante, dentro do fenómeno da devolução de poderes, a personalização de certos


serviços públicos é de tal modo artificial que nesses casos se justifica por inteiro uma
designação que os distinga dos demais casos de devolução de poderes - «desconcentração
personalizada».

Paradigmático é o caso do Ministério da Saúde, cujos serviços foram objeto de uma


completa segmentação, através da respetiva transformação em diferentes institutos
públicos. A estrutura piramidal do Ministério da Saúde manteve-se qua tale sob as novas
vestes institucionais, não deixando os membros de Governo e o próprio diretor-geral
manter o seu comando - a sua influência dominante ou determinante, sobre toda a referida
estrutura. Nestes casos, pois, temos um fenómeno que é, todo ele de – Desconcentração
Originária Intersubjetiva com partilha de atribuições.

Desconcentração derivada (já abordado supra e remissão para as aulas práticas)


Neste caso, a transferência de poderes não se processa a título definitivo; acresce que,
sendo necessariamente e em abstrato objeto de expressa previsão legal, é uma mera
possibilidade que só se concretiza caso a caso através do instituto da delegação de
poderes, mais precisamente por ato administrativo ou, em certos casos de delegação
intersubjetiva, por contrato administrativo.
o Por ato administrativo – a Lei, não obstante atribuir o poder decisório de raiz a
um único órgão, concede a este a possibilidade de delegar parte da sua
competência noutro órgão: instituto da Delegação de Poderes, regulado nos
artigos 44.º a 50.º do CPA
o Por contrato administrativo – regulado nos artigos 116.º a 136º da Lei das
Autarquias Locais (Lei n.º 75/2013) – requer a lei que o prévio acordo entre
delegante e delegado, não se aplicando o regime da delegação por ato
administrativo.

2.4 Princípio da Participação


Previsto no artigo 267.º nº 1 e 5 da Constituição, este princípio é o resultado da moderna
tendência, nas democracias de tipo ocidental, de reformulação dos quadros da democracia
representativa tradicional.
Com efeito, a estatização da vida em sociedade, que caracteriza a segunda metade do
século XX, provocou o agigantamento do aparelho administrativo do Estado, bem como
uma crescente complexidade e tecnicização, aumentando a sua distância quer dos:

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a. Órgãos político-legislativos dotados de legitimidade democrática (parlamento e o


próprio governo) quer dos;
b. Administrados.
Participação individual e coletiva
O número 1 do artigo 267.º dita que a Administração – será estruturada de modo a garantir
a participação dos interessados na sua gestão efetiva – ou seja, prevê a participação
coletiva na organização administrativa, através do assento em órgãos administrativos
colegiais de representantes de interesses setoriais privados.
O número 5 deste mesmo artigo dita que o processamento da atividade administrativa
será objeto de lei especial que assegurará a participação dos cidadãos na formação da
deliberação no âmbito da atividade administrativa – prevê a participação individual no
âmbito da atividade administrativa, mais precisamente no procedimento administrativo,
traduzida sobretudo no trâmite da audiência dos interessados.
Participação consultiva e participação com associação ao exercício do poder
Tal como na modalidade de participação individual, a participação consultiva pode-se dar
no procedimento administrativo através da audiência dos interessados.
Ocorre também que os representantes de interesses setoriais privados com assento em
órgãos administrativos colegiais têm também caráter consultivo – é esta a última
modalidade prevista no artigo 7.º/1 do Regime da Organização Direta do Estado (Lei n.º
4/2004) – “os órgãos consultivos apoiam a formulação e acompanhamento de políticas
públicas da responsabilidade do Governo, através da cooperação entre a Administração
Pública, individualidades de reconhecido mérito e representantes de interesses
económicos e sociais”. Mas pode haver lugar a uma forma mais intensa de participação
na gestão dos negócios públicos, com associação ao exercício do poder – nestes casos, os
representantes de interesses setoriais privados têm assento em órgãos colegiais de
administração ativa, sendo titulares de verdadeiros poderes administrativos.
O Fenómeno da participação de privados na gestão dos negócios públicos
Nas palavras de Mário Nigro, a participação “indica e realiza o «tomar parte», num
processo de decisão, de sujeitos diversos daqueles aos quais um ordenamento atribui
institucionalmente a competência para prover e que ordena estavelmente o seu escopo”.
Logo aquele que participa é um “outro” que é admitido tão só a acompanhar o sujeito
primário no caminho de uma escolha.
a) A participação coletiva na gestão da Administração através da representação de
interesses setoriais
A atual Constituição substituiu o princípio corporativista da autorregulação profissional
e social pelo princípio da participação na vida política e administrativa, através da
intervenção das associações de caráter económico e social junto do Governo e demais
centros de poder político e administrativo, como o Conselho Económico e Social (artigo
92.º da CRP).
São frequentes as previsões específicas de participação dos interessados por intermédio
das referidas organizações representativas de interesses setoriais em instâncias da

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Administração, como estabelecimentos ou serviços públicos de ensino (artigo 77.º da


CRP); segurança social (artigo 56.º/2/b) da CRP) e de saúde (artigo 64.º/4 da CRP). Em
todos estes casos, a eleição como técnica de participação dos cidadãos na gestão
administrativa assinala o seu caráter representativo ou indireto.
b) As associações públicas de entidades privadas como típica modalidade de
participação dos interessados na gestão dos negócios públicos
Traduzem por excelência a ideia de participação dos interessados em assuntos público-
estaduais, no desempenho de tarefas que o ordenamento jurídico atribui primeiramente
ao Estado-administração, mas que o legislador delega nos mesmos interessados, por
devolução de poderes.
Estas não podem ter por objeto interesses socioprofissionais, mas sim interesses públicos.
Correspondem à implementação do princípio da participação (são um instituto de
democracia participativa, distinguindo-se das autarquias locais – institutos de democracia
representativa) e são qualificadas no artigo 267.º/1 da CRP como instrumentos de
desburocratização e de participação de interessados na gestão dos serviços públicos.
c) A associação de entidades privadas ao exercício da função administrativa
Esta constitui uma modalidade sui generis de participação dos interessados na
organização administrativa. Esta associação pode ser:
o Em substituição das entidades públicas concedentes ou delegantes;
o Através de uma parceria institucionalizada com os poderes públicos –
designadamente por intermédio de uma participação minoritária em empresas
públicas societárias de economia mista que desempenhem elas próprias uma
função administrativa.
Estas são chamadas a colaborar com o Estado (ou outro ente público) por uma ordem de
razões distinta das que entroncam na democracia direta, e que se ligam antes à
necessidade da Administração recorrer ao investimento privado para a execução de
tarefas públicas.

2.5 Princípio da Subsidiariedade


Com a entrada em vigor da Carta Europeia de Autonomia Local e com a revisão
constitucional de 1992, ganhou um expresso assento constitucional (no artigo 6.º) o
princípio da subsidiariedade, enquanto novo princípio da organização administrativa
interna do Estado português.
Este princípio apenas diz respeito às autarquias locais, complementando o princípio da
descentralização territorial – segundo este, as autarquias locais, gozam de uma
preferência relativamente ao Estado na satisfação das necessidades coletivas em geral, ou
seja, o Estado deve atuar a título subsidiário, assumindo apenas as tarefas que pelas
respetivas características e por razões de maior escala ele possa desempenhar com
substanciais ganhos de eficácia e eficiência.

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Com este princípio ultrapassa-se o tradicional critério de repartição de atribuições de


acordo com a clássica distinção entre interesses locais e nacionais. Nos dias de hoje, numa
situação de potencial concorrência entre os poderes estadual, regional e local para a
satisfação de interesses cada vez mais homogéneos e indiferenciados, os critérios que
deverão passar a ditar a respetiva outorga ao Estado ou às autarquias devem ser:
§ Amplitude e natureza da tarefa;
§ Exigências da eficácia e eficiência económicas
O princípio da subsidiariedade vem, pois, trazer uma maior flexibilidade neste domínio,
no sentido das mesmas matérias ou assuntos, desde que correspondam a atribuições de
entidades públicas, poderem ser prosseguidas seja por entidades locais ou regionais, seja
pelo Estado, por aplicação apenas dos suprarreferidos critérios.
Questão – será que o princípio da subsidiariedade se dirige:
o Apenas ao legislador;
o Ou se, no que concerne às matérias e assuntos não expressamente atribuídas por
lei ao Estado, ou às autarquias, - ou seja, em caso de silêncio do legislador – se o
princípio constitui ele próprio um critério de repartição de atribuições –
legitimando a assunção pelas mesmas autarquias das tarefas que elas entendam
poder levar a cabo com ganhos de eficiência e eficácia, através de uma ocupação
pela via regulamentar do “terreno deixado vago pelo legislador”.
É uma questão difícil, pois, não obstante a máxima efetividade deste princípio
constitucional apontar para a segunda das hipóteses referidas, o princípio da legalidade
administrativa (artigo 112.º da CRP) requer especiais cautelas.
A prévia e necessária delimitação por lei dos domínios de atuação em cujo âmbito podem
as autarquias locais “ocupar os espaços livres deixados pelo legislador”
Fugindo à regra dos regulamentos administrativos, os regulamentos independentes não
são antecedidos, no plano substantivo, por qualquer específico regime legal, procedendo
a Administração, por seu intermédio, e num modo em tudo idêntico ao do legislador, à
disciplina inicial de uma matéria virgem no ordenamento jurídico,
Tal característica dos regulamentos independentes leva a que, apenas tenham
legitimidade para os emanar:
5. O governo, no exercício da função administrativa [regulamentos independentes do
governo – artigo 112.º/6 e 7 e artigo 199.º/alínea g) da CRP];
6. Governos e Assembleias Regionais [regulamentos autónomos das Regiões
Autónomas – artigo 227.º/alínea g) e artigo 233.º/1 da CRP];
7. Autarquias Locais [regulamentos autónomos – artigo 241.º da CRP].
Mas até os regulamentos independentes não deixam de se subordinar ao Princípio da
Precedência da Lei que se traduz na impossibilidade de a Administração fazer algo que
afete a esfera de terceiros sem prévia e específica permissão legal, não podendo
desenvolver qualquer atuação externa se lhe faltar o devido suporte legal na lei.

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Segundo o artigo 112.º/7 da Constituição os regulamentos independentes são sempre por


isso regulamentos delegados ou autorizados. Extrai-se desta disposição a exigência de
todos os regulamentos (independentes inclusive) se ancorarem em lei que, no mínimo,
fixe previamente a competência subjetiva e objetiva para a respetiva emissão – podendo
a lei habilitante ser a própria lei fundamental.
No caso das Autarquias Locais a norma diretamente habilitante é o artigo 241.º da CRP.
Este preceito constitucional deverá conjugar-se com a:
§ Lei das Autarquias Locais (prevista no artigo 237.º/1), diploma que elenca
obrigatoriamente, num plano mais elevado ou abstrato, os respetivos domínios de
atuação e os domínios de atuação comuns/concorrenciais relativamente ao Estado;
§ Legislação avulsa que fixa as múltiplas atribuições das autarquias locais (tarefas
ou fins a estas outorgados).
Configura-se, pois, esta legislação, sobretudo a lei das autarquias locais, como a
normação definidora dos assuntos ou matérias passíveis de virem a ser conformados
através da atividade regulamentar independente das autarquias (definição da
«competência objetiva»).
Nota – o artigo 23.º da Lei das Autarquias Locais (Lei n.º 75/2013) enuncia os domínios
de atuação concorrencial/comuns do Estado e das autarquias locais.

Respondendo à pergunta inicial – desde que reconduzíveis aos grandes domínios de


atuação fixados pela legislação autárquica, o Estado e as autarquias locais ficam numa
situação de verdadeira concorrência em sede de atribuições públicas, em caso de silêncio
da lei, relativamente à satisfação e prossecução de quaisquer interesse público.
Como um e outro, por força do princípio da subsidiariedade, têm base jurídica no texto
constitucional para exercer o poder em causa, deverão fazê-lo de acordo com tal princípio,
respeitando sempre o princípio da precedência da lei.
Configura-se, pois, esta legislação, sobretudo a lei das autarquias locais, como a
normação definidora dos assuntos ou matérias passíveis de virem a ser conformados
através da atividade regulamentar independente das autarquias (definição da
«competência objetiva»).
Nota – o artigo 23.º da Lei das Autarquias Locais (Lei n.º 75/2013) enuncia os domínios
de atuação concorrencial/comuns do Estado e das autarquias locais.

b) Proibição do legislador estabelecer uma lista taxativa de atribuições


Decorre da dita Carta Europeia de Autonomia Local a impossibilidade de os legisladores
dos Estados membros da União procederem a uma enumeração legal taxativa e fixa de
atribuições das autarquias locais, por tal elenco fechado violar o princípio da
subsidiariedade.
Por isso, a nossa atual lei das autarquias locais apenas enumera uma adequada repartição
entre as atribuições estaduais e as atribuições das freguesias e dos municípios.

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Os quatro princípios constitucionais até agora abordados são princípios que concretizam
o imperativo da aproximação dos serviços públicos às populações – são princípios
centrífugos, ou seja, tendencionalmente desagregadores da unidade da Administração. No
entanto é preciso ter em conta a Unidade do Estado (artigo 267.º/2 da CRP) que é o ponto
de partida de toda a organização administrativa – o Estado não pode deixar de ser uno. O
artigo 199.º/alínea d) da CRP também dita competências ao órgão executivo do Estado.
Assim, surge o próximo artigo.

2.6 Princípio da Unidade da Administração


De forma a equilibrar a força dos princípios centrífugos nas relações de
suprainfraordenação entre sujeitos e órgãos públicos, este princípio concretiza-se através
dos poderes de: direção, de superintendência e de tutela.
§ Poderes de Direção
i. É o mais importante cimento da unidade do Estado que se exerce no seu
interior;
ii. É o primeiro travão ao princípio da desconcentração;
iii. Assistem ao governo e aos seus membros sobre toda a Administração
Direta Estadual;
iv. São poderes hierárquicos que se reproduzem na esfera de todos os órgãos
administrativos sobre os órgãos e agentes subalternos, do topo para a base
da pirâmide hierárquica;
v. Estes poderes presumem-se – são naturais à organização administrativa,
não é necessária nenhuma disposição legal expressa que os preveja, no
entanto está expresso no artigo 199.º/d) da CRP, mas por necessidade de
estabelecer com rigor a distinção entre os poderes de direção e
superintendência.
§ Poderes de Superintendência
i. São o travão à devolução de poderes/princípio da descentralização técnica
ou funcional;
ii. Estabelecem-se entre o Estado e os entes públicos que formam a
Administração Indireta:
i. Institutos públicos;
ii. Fundações públicas;
iii. EPEs…
iii. Limita-se à emanação de diretivas e instruções genéricas, estando o
governo interdito a dar ordens e instruções concretas;
iv. São poderes de direção enfraquecidos, regulamentados por lei.
§ Poderes de tutela
i. Travão à devolução de poderes e à descentralização em sentido estrito ou
territorial;
ii. É expresso em vários tipos – poder de controlo que se desmultiplica em
vários tipos de tutela:
i. Inspetiva;
ii. Substitutiva;

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iii. Sancionatória
iii. Por regra têm que ser objeto de expressa previsão legal;
iv. Esses poderes assistem ao governo e demais entes públicos territoriais
sobre as respetivas administrações indiretas; e ao governo e aos governos
regionais sobre as respetivas autarquias locais;
v. Quando são assinalados os poderes de tutela sobre a Administração
Autónoma, pretende esta norma interditar, por sua vez, o próprio poder de
superintendência sobre esta administração.
Relações de equiordenação entre sujeitos públicos
Certos entes que são criados, fruto dos princípios da descentralização e da devolução de
poderes, são dotados de esferas materiais próprias de atuação que em certos casos estão
inclusive protegidas por uma autonomia constitucionalmente qualificada. No caso das
autarquias locais, tal autonomia proporciona-lhes a capacidade para intervir em espaços
territorialmente delimitados de acordo com as estratégias de ação definidas
autonomamente pelos respetivos órgãos representativos.
A organização administrativa portuguesa pode ser desdobrada em diferentes níveis de
intervenção territorial a que correspondem diferentes tipos de organização:
i. Nacional (abrange a totalidade do território português e é composto pela pessoa
coletiva Estado e pelas pessoas coletivas públicas que integram a sua
administração indireta);
ii. Regional (abrange as parcelas do território nacional sob alçada das regiões
autónomas);
iii. Local
a. Subnível municipal (município)
b. Subnível paroquial (freguesia)
A cada um destes níveis de administração compete a satisfação de diferentes necessidades
coletivas, as quais são identificadas e prosseguidas com referência a uma determinada
comunidade e no âmbito dessa mesma comunidade.
O modelo de repartição das esferas de atuação pode ser representado também por:
§ Atribuições e competências concorrentes;
§ Atribuições e competências paralelas;
No que toca às Atribuições e Competências Concorrentes:
§ São tituladas e exercidas por diferentes entes territoriais;
§ Respeitam a uma mesma matéria/assunto;
§ São exercidas na mesma área geográfica.
Este fenómeno pode verificar-se na relação entre:
ü O Estado (ou as Regiões Autónomas) e as Autarquias Locais – o interesse
nacional não é limitado quanto à sua substância e quanto à sua incidência
territorial, enquanto os interesses locais são sempre identificados e prosseguidos
com referência a uma determinada parcela do território nacional

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ü Um município e as freguesias – o mesmo fenómeno decorre da maior


abrangência das atribuições e competências municipais em face daquelas que são
conferidas às freguesias e do facto de a intervenção do município recair sobre toda
a circunscrição municipal (todas as freguesias).
Esta concorrência de competências pode gerar conflitos (positivos de competência) ou
também levar à adoção de mecanismos de articulação: coordenação, cooperação ou
colaboração.
No que toca à Atribuição e Competências paralelas:
§ São tituladas e exercidas por diferentes entes territoriais;
§ Dizem respeito ao mesmo tipo de atribuições e competências;
§ São exercidas com referência a diferentes circunscrições territoriais.
Os municípios (ou freguesias) são dotados, normalmente, do mesmo estatuto funcional –
possuem as mesmas atribuições e competências. No entanto, essas competências só
podem ser exercidas no âmbito da respetiva circunscrição territorial:
§ No caso das Freguesias – as limitações funcionais em matéria de intervenção
territorial podem ser sempre supridas pela intervenção do município;
§ No caso dos Municípios – exige-se a necessidade de promover a ação conjunta e
concertada entre municípios: cooperação intermunicipal, devido:
o Às limitações funcionais dos municípios em matéria de intervenção
territorial (resultantes de restrições financeiras, técnicas e organizativa);
o À ausência de um nível intermédio de decisão política entre a
Administração-Estadual e Municipal;
o Ao centralismo na definição e execução das políticas estratégicas de
investimento e intervenção territorial.
Assim, há a necessidade de se promover a ação conjunta e concertada entre municípios
(em especial, municípios contíguos), de modo a elevar a capacidade, a eficácia e a
eficiência da intervenção da Administração Local e garantir uma adequada promoção do
desenvolvimento territorial – domínio da Cooperação Intermunicipal.
Os três modelos que permitem assegurar a articulação do exercício de competências por
parte de diferentes entidades públicas em domínios de intervenção concorrentes ou
paralelas:
1) Princípio da Coordenação
a. Consagrado nos artigos 77.º do CPA e seguintes;
b. Estão em causa duas ou mais entidades em domínios de intervenção
concorrente;
c. Cada órgão exerce a sua competência isoladamente, mas de forma
articulada (necessário haver uma entidade coordenadora – uma das
intervenientes);
d. A entidade coordenadora vai ter uma certa proeminência, mas coordenar
é diferente de dirigir/controlar: quem coordena não recorre a imposição,
não assenta na coerção/imposição;

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e. Opera por via procedimental. A entidade coordenadora vai instruir o


procedimento/procedimentos – nomeadamente procedimentos
administrativos complexos que permitem a intervenção de diversas
entidades competentes sobre determinada matéria ou procedimentos que
correm paralelamente.
2) Princípio da Cooperação
a. Previsto na Lei n.º 4/2004 do Regime da Organização Direta do Estado;
b. Suscetível de aplicação em, praticamente, todos os domínios de
intervenção dos entes públicos (tem uma especial mais-valia no que
respeita às autarquias locais;
c. Estão em causa duas ou mais entidades que exercem os seus poderes em
conjunto, ou de forma concertada, tendo em vista realizar um objetivo
comum, como por exemplo:
i. Organização e gestão em conjunto de um determinado serviço
local;
ii. Realização de um empreendimento comum.
d. Pode ocorrer desde logo entre os órgãos e serviços dos diferentes
ministérios – neste âmbito temos a figura da:
i. Partilha de Atividades Comuns - Tal partilha processar-se-á sem
prejuízo das competências próprias ou delegadas dos respetivos
dirigentes máximos, podendo o seu funcionamento ser enquadrado
por protocolos que estabeleçam as regras necessárias à atuação de
cada uma das partes e que tal modelo de funcionamento abrangerá
especialmente atividades de natureza administrativa e logística,
designadamente a negociação e aquisição de bens e serviços, os
sistemas de informação e comunicação, a gestão de edifícios, os
serviços de segurança e limpeza, a gestão da frota automóvel e o
processamento de vencimentos e contabilidade.
e. Podem estabelecer-se mecanismos de cooperação entre:
i. O Estado e as Autarquias Locais;
ii. Autarquias da mesma categoria;
iii. Autarquias de diferente categoria.
O modelo de cooperação revela-se mais respeitador e promotor da autonomia uma vez
que assenta exclusivamente num encontro de vontades autonomamente formadas: ao
nível das autarquias locais, concretiza-se através da constituição de associações seja de
fins gerais ou específicos.
As formas jurídicas de cooperação podem traduzir-se em 3 modelos:
§ Criação e participação em entidades instrumentais;
o Associações de municípios.
o Empresas ou fundações de cooperação.
§ Celebração de protocolos ou acordos de cooperação;
§ Aprovação de instrumentos normativos.
o Planos intermunicipais de ordenamento do território.

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Problema do Associativismo Municipal


§ Os procedimentos são extremamente longos;
§ Muitas vezes não se consegue obter o consentimento de todos os municípios;
§ É um mecanismo bastante insuficiente – há a necessidade de existência de um
outro nível de administração entre o Município e o Estado.
3) Princípio da Colaboração
a. Consagrado no CPA – no artigo 19.º, a par dos demais Princípios Gerais
do Direito Administrativo que constam da Parte I do Código – (O Princípio
da Cooperação Leal com a União Europeia);
b. Sempre que o Direito da União Europeia impuser à Administração Pública
portuguesa a obrigação de “prestar informações, apresentar propostas ou
de, por alguma outra forma, colaborar com a Administração Pública de
outros Estados-membros, essa obrigação deve ser cumprida no prazo para
tal estabelecido”;
c. Temos um ente principal que está a atuar e um outro ente/órgão que vai
colaborar/auxiliar: por exemplo, a prestação de apoio técnico, financeiro
ou administrativo na realização de determinadas tarefas – artigo 66.º do
CPA.

2.7 Princípio da Imparcialidade


Este princípio, previsto no artigo 9.º do CPA, diz não só respeito à atividade
administrativa, como também à organização administrativa.
Esta exigência de prévia observância de um procedimento e de uma organização justos e
imparciais coloca-se especialmente quando a gestão de assuntos públicos é atribuída a
entidades ou estruturas cujos órgãos sejam formados no todo, ou em parte, por
representantes dos interesses diretamente envolvidos nesses mesmos assuntos, como
acontece, paradigmaticamente, com as associações públicas.

O caso das Associações Públicas


Tem especial relevo nos casos em que a gestão de negócios públicos é atribuída a
entidades orgânicas, cujos titulares sejam representantes envolvidos nesses assuntos. Ou
seja, representantes dos titulares de interesses diretamente envolvidos nesses assuntos.
Nestes casos, corre-se o risco da atuação administrativa se desviar relativamente à
orientação definida pelos órgãos investidos do poder decisório máximo -> traduzindo-se
este poder numa privatização do serviço público em benefício de uma categoria limitada
de cidadãos: afeta não apenas os interesses privativos dessas categorias, mas também
interesses gerais.

Assim, o princípio da imparcialidade terá um valor reforçado – no atual artigo 9.º do CPA
este princípio surge-nos como imperativo a toda a organização administrativa. As
garantias da imparcialidade vêm previstas no artigo 69.º e seguintes do CPA (remissão
para as aulas práticas).

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Na opinião do Professor Pacheco de Amorim, o princípio da imparcialidade exige que o


júri que compõe a admissão de novos membros na Ordem dos Advogados não tenha
membros da própria Ordem.

Capítulo II – Os Elementos da Organização Administrativa

1. Pessoas Coletivas Públicas, Órgãos e Serviços Públicos

Pessoas Coletivas Públicas

A Administração é, por definição, constituída por pessoas coletivas, que são figuras
abstratas, mas detentoras de poderes, direitos e deveres. As pessoas coletivas cujo
conjunto se designa por Administração Pública são as pessoas coletivas de direito
público, ou seja, o:

§ Estado (Estado-Administração);
§ Regiões Autónomas;
§ Autarquias Locais;
§ Institutos Públicos;
§ Fundações Públicas;
§ Empresas públicas institucionais;
§ Associações Públicas.

Características:
Ø São dotadas de personalidade jurídica própria e podem ser sujeitas de relações
jurídicas (atuam por si próprias no tráfico jurídico, no uso da sua capacidade
jurídica);
Ø São entidades abstratas, construções ou ficções jurídicas muito sofisticadas;
Ø São instituídas em concreto por um ato jurídico (diploma legal ou
administrativo);
Ø A sua razão de ser prende-se no facto de facilitar o tráfico jurídico que envolva
atuações humanas ou conjuntas.

Distinguem-se das demais pessoas coletivas na medida em que:


Ø A Lei confia-lhes a prossecução direta/imediata do interesse público, que
desempenham, em regra, através de:
o Atos de autoridade: atos que resultam do exercício de poderes que a
mesma lei lhes atribui, designadamente:
§ Regulamentos;
§ Atos Administrativos;
§ Contratos Administrativos.
Ø São criadas por ato de autoridade;

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Ø Atuam, em regra, sob a égide do Direito Administrativo, no uso da sua capacidade


jurídica especial, que é constituída pelo conjunto de poderes funcionais que
integram as suas competências;
Ø Por vezes atuam ao abrigo do Direito privado, pois, antes de serem pessoas
coletivas públicas, são pessoas tout court, dispondo da mesma capacidade de gozo
e exercício de direitos que é apanágio das demais.
Natureza privada das pessoas coletivas de utilidade pública e demais pessoas coletivas de
interesse público
Não são pessoas coletivas de direito público as:
§ Fundações ou associações públicas;
§ Pessoas coletivas de utilidade pública (DL n.º 460/77);
§ Demais pessoas coletivas de interesse público - aqui compreende-se as de
utilidade pública administrativa, em cujo âmbito ocupam um lugar de destaque
as:
o Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS).
Trata-se de associações e fundações que, não obstante terem uma natureza substancial e
formalmente privadas, prosseguem fins paralelos a fins públicos, o que lhes confere a
condição de entidades auxiliares dos poderes públicos.
No que respeita às IPSS, tal condição é expressamente prevista na nossa Constituição, no
artigo 63.º/5 e pela Lei, nela se fundando os contratos de financiamento previstos e
regulados na Lei das Bases da Economia Social.
Não se nos depara aqui sequer um fenómeno de delegação de uma parcela da função
administrativa em entidades privadas porque não está confiada a tais particulares a
prossecução de fins públicos (mas sim paralelos a estes). Sendo a sua atividade por
definição relevante para o interesse público, não traduz ou implica sequer o seu
financiamento público, mesmo maioritário, por si só, uma delegação no particular por ele
beneficiado de uma parcela da função administrativa.

Natureza jurídico-organizativa e natureza profunda das pessoas coletivas


Quando falamos em pessoas coletivas públicas ou de direito público, por contraposição
às demais pessoas coletivas, referimo-nos à natureza jurídico-organizativa de umas e
outras. Com efeito, a natureza jurídico-organizativa pública de um ente convoca, por
regra, uma aplicação em bloco à sua organização, funcionamento e atividade de todo o
direito estatutário da Administração Pública – o Direito Administrativo – tornando
residual a aplicação do direito privado.
Contudo, em virtude do agravamento do fenómeno da chamada Fuga para o Direito
Privado, foi-se formando um segundo universo administrativo, paralelo ao da
Administração tradicional, o das chamadas:
§ Entidades Administrativas Privadas ou em forma privada – apesar de já não
integrarem, em rigor, a Administração Pública (por terem forma jurídico-

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Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

organizativa privada), não deixam de ser, na sua natureza profunda, entidades


públicas, mais precisamente desdobramentos, extensões das pessoas coletivas
públicas que as constituíram – apresentam-se como meros instrumentos dos entes
públicos que lhes deram origem.
Este universo em questão não é só composto por entidades 100% públicas como também
inclui:
o Entidades mistas (com participação privada);
o Sociedades de capitais maioritariamente públicos;
o Associações ou Corporações com uma maioria de associados ou cooperantes
públicos;
o Entidades cujos órgãos de direção, gerência ou administração sejam, por
determinação legal ou estatutária, maioritariamente preenchidos por
representantes designados pelos: acionistas; sócios; cooperantes ou associados
públicos – os quais exerçam por isso sobre elas uma influência dominante.
Salvo a exceção das Fundações Públicas de Direito Privado, a natureza pública ou
administrativa profunda de um ente, decorrente da influência dominante que sobre este
exerça, não determina a respetiva natureza jurídico-organizativa, que continua a ser
privada.
Critérios de distinção entre as pessoas coletivas de direito público das de direito privado
Em regra, as pessoas coletivas públicas são como tal qualificadas pelas leis que as criam,
no entanto, o problema da distinção surge quando a lei não procede a qualquer prévia
formal qualificação da pessoa coletiva em questão, então só com base nos critérios, que
abaixo serão enunciados, é possível saber-se se estamos perante uma pessoa coletiva
pública ou privada.
A determinação da natureza pública ou privada de uma pessoa coletiva apresenta a maior
importância, pois é a partir desta prévia qualificação que se determina o regime aplicável
à sua organização, funcionamento e à sua atividade.
Os três critérios que serão enunciados (da iniciativa, do fim e da capacidade jurídica) não
são só por si suficientes, sendo necessária, caso a caso, uma conjugação pelo menos de
dois destes três critérios.
a) Critérios da Iniciativa
i. Será de Direito Público a pessoa coletiva que for criada por lei ou ato
administrativo. Mas este critério não é definitivo, pois:
a. Há pessoas coletivas privadas (ou pelo menos reconhecidas) por lei que
são indiscutivelmente privadas.
i. É o caso de certas fundações:
1. Fundação Gulbenkian;
2. Fundação Minerva
ii. Maioria das sociedades comerciais que sucederam às antigas
empresas públicas nacionalizadas após o 25 de abril, no âmbito da
respetiva privatização.
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b. Há categorias de pessoas coletivas qualificadas ex lege como pessoas


coletivas públicas, mas que nos termos da lei, são constituídas por ato
negocial, tal sucede com as:
i. Comunidades Intermunicipais (artigo 80.º/2 do Regime Jurídico
das Autarquias Locais);
ii. Associações Públicas de Freguesias e de Municípios de fins
específicos (artigo 108.º/2 do Regime Jurídico das Autarquias
Locais).
b) Critério do Fim (o mais falível)
ii. Será de Direito Público a pessoa coletiva que for criada para prosseguir direta ou
imediatamente um fim público que a lei lhe confie de modo expresso.
a. Mas muitas pessoas coletivas de direito privado são também criadas para
prosseguir interesses coletivos ou de interesse geral paralelos a fins ou
interesses públicos, não deixando por essa razão de ter natureza privada.
É o caso das:
i. Entidades sem Fins lucrativos (associações e fundações) – a
Administração Pública pode conceder-lhes determinados
privilégios (fiscais e outros) quando as reconhece ou acredita como
tais – isso não as converte em entidades públicas, elas limitam-se
a ser entidades que, satisfazendo necessidades de interesse geral de
que a Administração Pública está incumbida por lei, apenas
colaboram com esta no desempenho das respetivas tarefas.
ii. Entidades com Fins lucrativos (sociedades de interesse
coletivo) – empresas societárias que exploram serviços de
interesse económico geral ou fins de interesse geral, mas que nem
por isso perdem a sua substantiva natureza privada.
c) Critério da Capacidade Jurídica
iii. Será de Direito Público a pessoa coletiva que se dispuser, por força de lei, de
poderes públicos de autoridade para prosseguir as finalidades que a mesma lei lhe
confia (as pessoas coletivas públicas são em regra titulares de poderes públicos
em contraste com as pessoas coletivas de direito privado). Mas este critério
também não é só por si suficiente, pois:
a. Há pessoas coletivas cuja natureza pública não é de questionar (são
qualificadas na lei) que podem, todavia, não ter poderes públicos, estando
antes sujeitas, em primeira linha, ao direito privado - isto é, pode o
legislador entender ser esse o regime mais adequado a um bom e eficaz
desempenho das respetivas tarefas, como é o caso das:
i. Empresas Públicas Institucionais;
ii. Fundações Públicas de Direito Privado.
b. Há pessoas coletivas de indiscutível natureza privada a quem, todavia,
podem ser delegados (por lei, ato ou contrato administrativo) verdadeiros
poderes públicos, sem por isso perderem a sua natureza privada, é o caso
das:
i. Empresas concessionárias de serviços públicos;

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1. Serviço de Transportes Públicos;


2. Serviço Público de Água e Saneamento.
ii. Concessionárias da exploração de bens do domínio público;
1. Exploração de fontes de águas mineromedicinais.
iii. Pessoas coletivas de utilidade pública desportiva;
1. Federação Portuguesa de Futebol.
iv. Certas associações empresariais com estatuto de câmaras de
comércio e indústria.
Estas entidades estão assim investidas em funções públicas. Presidem normalmente a este
fenómeno de “exercício privado de funções públicas” por razões de: eficácia, eficiência
e economicidade – parte-se da premissa de que um privado superiormente apetrechado
nos planos técnico e financeiro desempenhará melhor e a menor custo tarefas para as
quais se estará globalmente mais vocacionado do que a Administração.
Uma vez reconhecidas e acreditadas para o desempenho dessas funções, tais entidades
passam naturalmente a sujeitar-se a intensas medidas de fiscalização, supervisão e
orientação (aquando do exercício de poderes delegados).

Órgãos e serviços administrativos


Na definição de Marcello Caetano, órgãos são “os elementos da pessoa coletiva que
consistem em centros institucionalizados de poderes funcionais a exercer pelos indivíduos
ou pelo colégio de indivíduos que neles estiverem providos com o objetivo de exprimir a
vontade juridicamente imputável a essa pessoa coletiva”.
Já segundo Freitas do Amaral, os serviços públicos são “as organizações humanas criadas
no seio de cada pessoa coletiva pública com o fim de desempenhar as atribuições desta,
sob a direção dos respetivos órgãos”.
a) Órgãos Administrativos
i. As Pessoas coletivas são entidades abstratas, apenas existem no mundo jurídico,
são uma ficção jurídica – são os seus órgãos, servidos por sua vez por titulares
físicos ou individuais, os centros de imputação dos direitos, deveres e poderes que
lhe são abstratamente atribuídos pela lei ou com base na lei, pois tendo as pessoas
coletivas capacidade de gozo de direitos, não têm capacidade de exercícios desses
direitos que é inerente às pessoas físicas;
ii. É, pois, através dos órgãos que se forma a vontade da pessoa coletiva, interagindo
com os demais sujeitos de direito;
iii. O órgão não é a pessoa física. Como pessoa coletiva, o órgão configura-se também
como uma entidade institucional, só que preenchida/servida pelas pessoas físicas
dos titulares – só estas últimas são capazes de exteriorizar uma vontade psíquica
e de atuar em conformidade no mundo real;
iv. Os órgãos são meios indispensáveis para as pessoas coletivas públicas atingirem
os seus fins e cumprirem as tarefas de que foram encarregues. Os órgãos têm a
função de tomar decisões e manifestar uma vontade que será imputável à pessoa
coletiva ou ao sujeito a que pertence;

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v. A conceção aqui adotada de órgão é a Funcional – isto implica que sempre que se
constate a existência de uma manifestação de uma vontade/decisão provinda de
uma pessoa coletiva pública lesiva de um direito de um particular, basta a certeza
da proveniência daquela vontade da Administração para que esta incorra em
responsabilidade pelos danos causados, mesmo que não se saiba qual o órgão
responsável;
vi. As pessoas coletivas têm sempre mais do que um órgão (no mínimo têm dois –
um diretivo ou executivo; e um deliberativo ou de fiscalização).
vii. A existência de dois ou mais órgãos em cada ente público satisfaz a necessidade
de o legislador repartir por eles as várias competências cujo exercício é
indispensável à prossecução das atribuições da pessoa coletiva – a competência
de cada órgão é o conjunto dos poderes funcionais que a Lei lhe atribui;
viii. As leis orgânicas que estabelecem o elenco dos órgãos administrativos do ente,
que como tal são explicitamente qualificados, mas muitas vezes é necessária uma
verificação substantiva, no sentido de se averiguar se os órgãos administrativos
dispõem de verdadeiras competências próprias
a. Se tiver – é um verdadeiro órgão administrativo.
b) Serviços Administrativos
i. São compostos por funcionários ou agentes com vínculo de emprego público;
ii. Asseguram a atividade da Administração no dia-a-dia através da:
a. Atuação material de exercício;
b. Atuação material de direta execução da lei.
iii. Têm como função preparar e executar as decisões e deliberações dos órgãos;
iv. Atuam sempre sob a direção dos ditos órgãos administrativos:
a. Sob a direção dos membros do governo e dos dirigentes superiores e
intermédios - no caso da Administração Direta do Estado, das Regiões
Autónomas e das Autarquias Locais;
b. Sob a direção sobretudo dos órgãos colegiais executivos e respetivos
presidentes (e também dos órgãos deliberativos no caso dos entes
públicos com substrato corporativo) – no caso das autoridades
administrativas independentes e dos entes públicos menores.
v. Os Funcionários e agentes que integram os serviços administrativos:
a. Não praticam atos administrativos;
b. Não emanam regulamentos;
c. Não celebram contratos administrativos.
vi. No que respeita à prática dos atos jurídico-públicos limitam-se:
a. Aos atos instrumentais, mais precisamente à emissão de atos declarativos
(designadamente certificativos);
vii. No âmbito da atividade profissional
a. Dentro do procedimento declarativo – emissão de atos preparatórios
(sobretudo instrutórios);
b. Dentro do procedimento executivo – emissão de atos executivos.

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Em suma, quem compõe a Administração Pública?


§ Titulares dos órgãos, mas também e sobretudo outros titulares de cargos públicos
que não possam ser considerados verdadeiros órgãos;
§ Funcionários com uma relação de emprego público, que tenha origem num:
o Ato administrativo de nomeação;
o Contrato administrativo laboral;
o Contrato de trabalho em funções públicas.
Principais classificações dos órgãos
a) Órgão primários, secundários e vicários
Primários – Figura ou instância da Administração que dispõe, a título primário, de
competências próprias, como previsto na lei.

Secundários – Uma determinada figura pode não dispor, a título primário, de


competências próprias, contudo, se a lei previr a possibilidade de lhe poderem ser
delegadas verdadeiras competências externas – passa o funcionário ou titular do cargo em
questão a estar habilitado a praticar verdadeiros atos administrativos (e já não apenas atos
instrumentais) – exemplo: aos vereadores são atribuídos pelouros.
Vicários – A lei pode prever que uma determinada figura substitua um órgão
administrativo em caso de ausência ou impedimento do seu titular – apenas pode exercer
as competências que a lei lhe confia quando é chamado a substituir o órgão primário a
quem normalmente cabe exercê-las.
Há um caso especial que deve ser mencionado – os Secretários de Estado – a lei não lhes
atribui competências, exige-se sempre um ato de delegação de poderes, mas não é uma
verdadeira delegação pois o Secretário não é um órgão secundário – há uma decisão do
ministro na repartição dessas competências, distribuição de competências entre o ministro
e os Secretários de Estado. São à mesma um órgão primário.
b) Órgãos ativos, consultivos e de controlo
Correspondem a três tipos possíveis de atividade administrativa:
§ Administração ativa – os órgãos ativos tomam ou executam decisões que se
projetam para fora da Administração, incidindo sobre a esfera jurídica de terceiros
no âmbito das relações jurídico-administrativas intersubjetivas, ou jurídico-
administrativas tout court;
§ Administração consultiva – os órgãos consultivos informam e esclarecem os
órgãos ativos antes destes tomarem ou executarem decisões, introduzem juízos,
avaliações e opiniões destinadas à instrução do processo decisório;
Os órgãos consultivos do Estado são objeto de regulação própria na Lei da Organização
da Administração Direta do Estado – lei n.º 4/2004.
Os órgãos consultivos dos Institutos Públicos são objeto de regulação própria na Lei-
Quadro dos Institutos Públicos – lei n.º 3/2004.

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Tenha-se presente que por vezes a lei confere ao parecer um caráter vinculativo,
transformando o suposto parecer numa verdadeira decisão (pré-decisão); e o ato do órgão
a quem, aparentemente, cabe na matéria em causa a decisão principal ou final do
procedimento, num simples ato de execução do primeiro.

§ Administração de controlo – os órgãos de controlo fiscalizam os restantes órgãos.


Cabe-lhe controlar a legalidade e por vezes o mérito, oportunidade ou a
conveniência dos atos praticados pela administração ativa. O controlo pode ser:
o Preventivo
§ A priori (antes da decisão ser tomada) – autorização constitutiva
da legitimação da capacidade de agir = autorização
interadministrativa;
• Incide sobre um mero projeto de decisão – só
posteriormente à emissão poderá ser validamente tomada a
decisão pelo órgão com função ativa.
§ A posteriori (depois da decisão ser tomada) – aprovação.
• Só tem lugar depois da decisão ser tomada, é uma condição
de eficácia.
o Sucessivo – regulado nos artigos 165.º a 174.º do CPA, extingue os efeitos
do ato revogado ora com:
§ Eficácia ex nunc e com fundamento no seu demérito – revogação;
§ Eficácia ex tunc e com fundamento na sua invalidade – anulação.
Nota – um mesmo órgão pode funcionar ora como um órgão ativo, ora como consultivo,
ora como de controlo, aliás praticamente toda a Administração de Pública é uma
Administração de controlo – um superior hierárquico tem sempre um poder/função de
controlo sobre os subalternos.
c) Órgãos singulares e colegiais
Singulares – composto por apenas um titular, cujas atos são decisões;
Colegiais – composto por dois ou mais titulares, cujos atos são deliberações.
d) Órgãos centrais e locais

Centrais – exercem a sua competência sobre todo o território nacional: a partir da capital
ou, excecionalmente, de outra localidade onde possam estar sedeados

Locais – exercem uma competência limitada a uma circunscrição ou parcela territorial


(exemplo: direções regionais dos ministérios).

e) Órgãos permanentes e não permanentes


Permanentes – um órgão por regra é permanente, sendo que a permanência faz parte da
natureza do órgão.
Todavia, as: comissões, júris e outras instâncias decisórias não permanentes da
Administração são figuras próximas dos órgãos administrativos propriamente ditos –

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razão pela qual se aplicam às respetivas organização e funcionamento os princípios e as


regras que regem os ditos órgãos.

f) Órgãos colegiais simples e complexos


Simples – têm uma estrutura unitária, os respetivos titulares só podem atuar
coletivamente.
Complexos – apresentam uma estrutura diferenciada, podendo os seus titulares exercer
competências próprias em nome individual, como é o caso dos ministros.
Quanto ao regime dos órgãos colegiais este vem previsto nos artigos 21.º a 35.º do
CPA.

2. Atribuições, Competências e Legitimação


Tanto as atribuições como as competências são, num sentido muito amplo, poderes
administrativos, constituindo atributos dos respetivos sujeitos ou titulares.
Atribuições das pessoas coletivas – são as tarefas e fins que estas têm obrigatoriamente
de desempenhar e prosseguir – uma vez que lhe são conferidas pelo legislador. Dizem
respeito à pessoa coletiva e não aos seus órgãos – os órgãos, em regra, apenas dispõem
de competências.
Competências das pessoas coletivas – conjunto de poderes funcionais, poderes-deveres,
que o órgão tem de exercer tendo em vista a prossecução das atribuições das pessoas
coletivas em que se insere. Exemplos desses poderes/deveres:
§ Poder autoritário;
§ Poder regulamentar;
§ Poder tributário;
§ Poder de expropriar;
§ Poder de aplicar contraordenações ou sanções disciplinares públicas;
§ Poder de conceder a exploração de um serviço público.
Dupla Limitação dos órgãos – encontram-se limitados pelas respetivas competências e
pelas atribuições das pessoas coletivas a que pertencem.
Legitimação – conjunto de condições ou requisitos, também relativas ao sujeito público
(titular da competência), que se têm de verificar ou preencher para que o órgão
administrativo possa exercer validamente a sua competência. Sendo eles:
§ Prévia autorização interadministrativa de um órgão supraordenado quando
legalmente exigida = autorizações constitutivas de legitimação para a capacidade
de agir;
§ Antecipada investidura do respetivo titular do órgão;
§ Inexistência de impedimentos ou de contextos organizatórios e procedimentais
que não assegurem previamente a isenção do órgão na respetiva atuação;

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§ No que respeita aos órgãos colegiais: o respetivo quórum mais a maioria


legalmente exigida.

Princípio da legalidade da competência (e das atribuições)


Este princípio vem previsto nos artigos 36.º do CPA e 290.º/1 do CRP e apresenta três
corolários:
1) A competência não se presume – tem de estar expressamente previsto na lei;
2) A competência é imodificável;
3) A competência é irrenunciável e inalienável – nenhum órgão administrativo
pode praticar atos que se traduzam numa renúncia das suas competências ou na
alienação das mesmas a favor de outros órgãos – por isso é que cada delegação de
poderes carece de uma prévia habilitação legal.

Violação das Competências, ou Falta de Atribuições e Falta de Legitimação


Incompetência Simples
Se um órgão exercer a competência de um outro órgão, o seu ato enfermará então o vício
de incompetência – a regra é a da mera anulabilidade.
Exceção – são nulos os atos estranhos aos ministérios (artigo 161.º/2/alínea b).
Violação ou falta de atribuições
Mais grave é o vício que afeta um ato que extravase as atribuições da pessoa coletiva
onde o órgão seu autor se insira – quando um órgão de uma pessoa coletiva emana um
ato da competência de um órgão de outra pessoa coletiva (ou de outro ministério) – ou,
mais genericamente, quando pratica um ato fora das atribuições da pessoa coletiva a que
pertence (ou ministério). Já não estamos perante uma violação de competências, mas
antes face a uma violação de atribuições, geradora de nulidade do ato praticado.
Exceção (interpretação restritiva da alínea b) do número 2 do artigo 161.º - No caso dos
entes instrumentais do Estado que integram a sua Administração indireta, qualquer ato
praticado por um órgão cimeiro do ente matriz que viola as competências do ente
instrumental estará viciado de mera incompetência relativa, e não absoluta. Por exemplo,
um ato de um ministro relativamente a uma matéria da competência de um instituto
público por si tutelado – as atribuições ou fins de um e outro são, no fundo, as mesmas,
pelo que deve ser desconsiderada a personalidade jurídica própria do instituto público,
estando em causa um vício de mera violação de competência, gerador de anulabilidade.
Falta de Legitimação
o Falta de autorização – anulabilidade
o Falta de investidura – anulabilidade
o Houver impedimentos – anulabilidade (artigo 69.º do CPA)
o Falta de quórum e de maioria legalmente exigida de votos – nulidade (artigo
161.º/2/alínea h)

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Tipologia das Competências


Âmbito geral
a) Competência explícita e implícita (modo de atribuição)
Em regra, a competência do órgão é explícita – ela está expressamente consagrada na lei
e assim o exige o princípio da legalidade da competência, constituindo esse específico
imperativo um dos seus corolários.
Mas, em casos excecionais, a competência pode estar implícita na lei, nomeadamente
quando for legítimo deduzi-la de determinações legais (designadamente de competências
expressas) ou mesmo de princípios gerais de direito público.
b) Competência livre e condicionada (termos do respetivo exercício)
A competência é livre quando não está sujeita a qualquer restrição. A competência é
condicionada sempre que, ao invés, estiver sujeita a limitações impostas por lei.
c) Competência dispositiva, revogatória e anulatória (substância e efeitos da lei)
É uma competência dispositiva sempre que se traduza no poder de um órgão emanar ‘em
primeira mão’ um ato sobre uma determinada matéria no âmbito da chamada
administração ativa.
A competência revogatória ou anulatória insere-se na competência de controlo:
o Revogatória – quando consista no poder de revogar ou confirmar determinado ato
com fundamento no respetivo (de)mérito;
o Anulatória - quando consista no poder de anular ou confirmar determinado ato
com fundamento na respetiva (in)validade.
d) Competência própria e delegada (titularidade dos poderes de exercício)
A competência é própria quando estão em causa poderes do próprio órgão, e delegada
quando o poder exercido pertence de raiz a outro órgão, e não ao que praticou o ato.
e) Competência singular e conjunta (número de órgãos a que a competência pertence)
A competência é singular sempre que o competente é um único órgão, que a exerce
sozinho e é conjunta se tiver dois ou mais órgãos competentes, os quais a exercem
conjuntamente e ao mesmo tempo, através de um único ato (nestes casos, se a
competência for exercida por um só órgão, o ato é anulável por vício de incompetência
conjunta).
f) Competência acumulada e simultânea
É acumulada quando uma única e mesma pessoa individual (titular físico) acumula em
simultâneo a titularidade de diferentes órgãos, sendo por isso e do mesmo passo titular
das competências desses órgãos – exige-se apenas ao seu autor a menção dos cargos que
ocupa ao mesmo tempo.

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Diz-se que é simultânea quando os mesmos poderes são conferidos por lei a dois ou mais
órgãos, podendo ser alternativamente exercidos por um ou por outro – exige-se apenas
que um deles a exercite para que o ato seja válido.
Âmbito específico
a) Competência própria
Quando a lei a atribui a um órgão subalterno, que por isso a pode exercer “em primeira
mão” – é sempre uma competência comum, na medida em que é partilhada com os seus
superiores hierárquicos (a competência do superior hierárquico abrange, em regra, a do
inferior – princípio organizativo).
b) Competência exclusiva
Quando a decisão do subalterno está sujeita apenas ao poder de controlo do superior
hierárquico, que só pode anular o ato na sequência de recurso hierárquico interposto por
um particular interessado e já não: revogá-lo, modificá-lo ou substituí-lo (artigo 197.º/1
do CPA), na medida em que não goza da mesma competência dispositiva.
O caráter exclusivo da competência tem de resultar inequivocamente dos termos em que
a lei a consagra.
c) Competência independente
É independente em duas situações possíveis:
§ Quando o órgão seu titular situa-se no vértice da hierarquia da pessoa coletiva;
§ Nos casos em que a Lei afasta expressamente o próprio poder de controlo do
superior hierárquico, com total subtração do órgão à hierarquia, mesmo à chamada
‘hierarquia imprópria’.
o Só pode, por isso, o ato que traduza o exercício dessa competência ser
impugnado judicialmente.
o Fala-se em competência excludente.

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Título II – Os Setores da Administração Pública; Tipologia e Regime


das Pessoas Coletivas Públicas
Capítulo I - Os setores da Administração Pública; Tipologia e regime das
pessoas coletivas públicas
1. Noções Gerais
Pessoas coletivas públicas
A mais importante linha divisória que se pode traçar é a entre as pessoas coletivas públicas
de população e territórios e fins múltiplos; das pessoas coletivas públicas funcionais ou
de fins específicos.
São entes públicos territoriais: o Estado, as Regiões Autónomas e as Autarquias Locais –
compete-lhes satisfazer os interesses públicos das populações que habitam nos respetivos
territórios. Estes entes são, por conseguinte, os entes públicos primários com estatuto
constitucional e de existência obrigatória que mimetizam os principais elementos
constitutivos do Estado: humano, territorial e político.
São entes públicos funcionais os/as:
§ Institutos públicos;
§ Entidades públicas institucionais;
§ Fundações públicas de direito privado;
§ Associações públicas.

2. Administração Estadual Direta


O Estado-Administração
Este engloba:
§ Os órgãos e serviços que integram a chamada Administração Direta;
§ Autoridades Administrativas Independentes não personalizadas.
Quanto aos órgãos do Estado-Administração – o Governo é o seu órgão colegial diretivo,
é a “cabeça da Administração Pública” na medida em que sobre quase toda a
administração ele exerce poderes administrativos de diverso tipo, quanto mais não seja
de mera tutela de legalidade, como acontece relativamente às Autarquias Locais. Ao
Governo cabe “dirigir toda a Administração Direta do Estado”, como enuncia o artigo
198.º/alínea g).
O Governo
É um órgão que exerce a título principal não apenas a função administrativa, como a
política e legislativa (artigos 197.º a 199.º da CRP). Cabe-lhe, através do exercício
articulado destas funções, a condução da política geral do país, de acordo com o programa
por si elaborado e sujeito à aprovação da Assembleia da República, no qual deve constar
as principais orientações políticas e medidas a adotar ou a propor nos diversos domínios
da atividade governamental (artigos 182.º, 188.º e 193.º da CRP).

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Conselho de Ministros
O Governo funciona quer colegialmente, quer através de cada um dos seus membros –
relativamente ao funcionamento colegial, este processa-se através do Conselho de
Ministros, onde têm assento o:
§ Primeiro-Ministro;
§ Vice-Primeiro Ministro;
§ Ministros.
Podem, ainda, participar nas reuniões os Secretários e Subsecretários de Estado, em
substituição do ministro que coadjuvem ou se para tanto forem também convocados
(artigos 184.º e 185.º da CRP).
É um órgão colegial imperfeito, na medida em que as deliberações são tomadas por
consenso, e não por votações, prevalecendo sempre a vontade do Primeiro-Ministro sobre
os demais membros do governo com assento no Conselho – o que decorre da
responsabilidade última por toda a atividade governativa do Primeiro-Ministro perante a
Assembleia da República e o Presidente da República (artigo 191.º).
As competências do Conselho de Ministros vêm previstas no artigo 200.º da CRP.
Os Ministérios
Cada ministério é composto por:
§ Duas ou mais direções-gerais
o Cada uma integrada por duas ou mais direções de serviço;
§ Decompõem-se em divisões.
§ Uma secretaria-geral;
§ Um serviço de inspeção (decomposto em divisões);
§ Nos ministérios com estruturas desconcentradas no território temos também as
direções regionais.
Seguindo aqui a classificação de Freitas do Amaral, as chamadas pastas ministeriais
reconduzem-se a cinco categorias, e são elas as relativas às funções:
v Soberania (Negócios Estrangeiros, Defesa Nacional, Justiça e Administração
Interna);
v Política interna (Presidência e Assuntos Parlamentares, e pastas eventuais que
podemos designar de coadjuvação do Primeiro-Ministro, a que correspondem as
missões normalmente atribuídas ao Vice-Primeiro Ministro e aos chamados
Ministros Adjuntos);
v Económicas e financeiras (Agricultura e Pescas, Comércio, Indústria e Serviços,
Planeamento e Fomento Económico e Finanças);
v Sociais (Saúde, Habitação, Educação e Cultura, Juventude e Desporto, População,
Emprego e Segurança Social);
v Técnicas (Obras Publicas, Urbanismo, Ordenamento do Território e Ambiente,
Transportes e Comunicações, Ciência, Tecnologia e Ensino Superior).
Podem os membros do Governo neles delegar o exercício de importantes poderes,
cabendo aos dirigentes nos demais casos (em que não disponham de competências

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próprias ou delegadas), propor ao membro do Governo a que reportam a prática dos atos
de gestão do serviço ou órgão e em geral as medidas que considerem mais aconselháveis
para se atingirem os objetivos e metas consagrados na lei e no Programa do Governo.

3. A Administração Estadual Indireta


Entes públicos funcionais
Um ente público funcional dedica a sua atividade à prossecução de fins específicos e são
entes auxiliares ou instrumentais do ente que os cria (em regra – o Estado). São pessoas
coletivas criadas apenas para a satisfação de interesses públicos delimitados, através do
processo de devolução de poderes.
Estes podem ser:
§ Institutos públicos;
§ Associações públicas.
Serão os Institutos Públicos, ou os entes públicos funcionais de tipo institucional ou
fundacional, que serão abordados de seguida assim como as Empresas Públicas
institucionais/empresariais e as Fundações Públicas de Direito Privado (figuras que se
autonomizaram dos Institutos Públicos sem deixarem de pertencer à Administração
Indireta).
As grandes classificações das pessoas coletivas no direito privado e no direito
administrativo
É corrente na teoria geral das pessoas coletivas a classificação dicotómica destas de
acordo com o seu substrato, podendo ser de:
§ Substrato Pessoal, as quais associam fundamentalmente pessoas singulares ou
coletivas:
o Associações;
o Sociedades;
o Cooperativas.
§ Substrato Fundacional ou Patrimonial - assentam num acervo de bens e numa
organização dotada de recursos materiais e humanos, mas em que o elemento
humano não é preponderante. Como sucede com as fundações privadas, a
atividade do ente dirige-se à satisfação, direta ou indireta, de necessidade alheias
aos seus dirigentes e funcionários, fins esses que lhes foram fixados de antemão
pelo ente público seu criador.
Dentro das pessoas coletivas com substrato pessoal subdividem-se elas, em razão da
especificidade desse substrato em:
§ Pessoas Coletivas territoriais:
o Estado;
o Regiões Autónomas;
o Autarquias Locais.
§ Pessoas coletivas associativas ou corporativas:

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o Associações públicas de entidades privadas.


Entre a figura dos institutos públicos e das associações públicas podemos falar em
entidades híbridas, como é caso das Universidades Públicas e Institutos Politécnicos
Públicos – estes têm uma dimensão pessoal e corporativa (a comunidade académica
também participa no “governo” destas instituições, elegem representantes seus para os
Conselhos. São entidades atípicas).

Institutos Públicos (regime comum – LQIP, Lei nº 3/2004)


Teorizado por Marcello Caetano, são pessoas coletivas de direito público sem substrato
corporativo, criadas por lei para a prossecução de fins específicos do Estado ou de uma
Região Autónoma. São caracterizados por terem:
§ Órgãos próprios;
§ Autonomia patrimonial;
§ Autonomia administrativa;
§ Autonomia financeira;
§ E por integrarem a Administração Indireta do Estado ou Região Autónoma que o
haja criado.
Classificação tradicional de Marcello Caetano de Institutos Públicos:
o Serviços Personalizados (pessoa coletiva pública dotada de recursos humanos e
patrimoniais);
o Estabelecimentos Públicos (institutos públicos que se dedicavam à prestação de
bens e serviços de caráter social);
o Fundações Públicas de Direito Público;
o Empresas Públicas Institucionais/Empresariais (institutos públicos, mas com
natureza empresarial – sujeitam-se ao direito privado na sua atividade).
No entanto, como supra se mencionou, houve uma autonomização face à figura dos
Institutos Públicos das Empresas Públicas Institucionais.
O conceito de instituto público que agora trabalhamos é o conceito estrito, ou legal-
positivo que se retira da LQIP. Nos termos deste diploma, subsistem hoje como
subespécies apenas os Serviços Públicos Personalizados e os Fundos Públicos, os quais,
segundo o artigo 3.º/2 da Lei-Quadro, se poderão organizar “em um ou mais
estabelecimentos, como tal se designando as universalidades compostas por pessoal,
bens, direitos e obrigações e posições contratuais do instituto afetos em determinado local
à produção de bens ou à prestação de serviços no quadro das atribuições do instituto”.
Nota - Reconduzem-se a este conceito estrito de instituto público as fundações públicas
municipais – as Fundações Públicas de Direito Público instituídas pelas Assembleias
Municipais, nos termos do artigo 50.º/3 da Lei-Quadro, sendo elas também pessoas
coletivas públicas. Ou seja, hoje já não só temos Institutos Públicos Estatais e Regionais
de Criação Legal apenas, mas também Institutos Públicos Municipais, na subespécie de
fundações públicas, e criados por ato administrativo (previsto na Lei-Quadro desde 2012).

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Regime dos Institutos Públicos


No que toca à sua organização, funcionamento e atividade, estão sujeitos ao Direito
Administrativo, como especifica o artigo 6.º da LQIP.
Para além do mais, estão também submetidos ao regime orçamental e financeiro dos
serviços e fundos autónomos do Estado (artigo 35.º/1 da Lei-Quadro), com as
especificidades constantes do Capítulo III (artigo 35.º a 39.º da Lei-Quadro).
Têm, por natureza, capacidade para praticar atos administrativos.
Segundo o artigo 7.º/1 da LQIP – “cada instituto está adstrito a um departamento
ministerial sujeitos à superintendência (artigo 42.º) e tutela (41.º) do respetivo ministro.
São órgãos dos institutos públicos, pelo menos, um conselho diretivo com três membros
e um fiscal único.
Os membros do conselho diretivo têm um mandato de 5 anos renovável (artigo 20.º/1),
são nomeados pelo ministro da tutela mediante procedimento concursal (artigo 19.º/4) e
podem ser por ele destituídos (individualmente) antes do termo do mandato, ou ser todo
o órgão dissolvido por despacho do mesmo ministro.
A destituição ou dissolução podem ser fundadas em justa causa (artigo 20.º/3/alínea g) e
número 9/alínea a) a f), seja na:
o Necessidade de reorganizar o instituto;
o Imprimir nova orientação à respetiva gestão.
Sendo que, caso já tenham cumprido pelo menos 12 meses de mandato – terão direito ao
recebimento de uma indemnização correspondente ao vencimento base dos meses em
falta até ao termo do mandato, com o limite máximo de 12 meses (artigo 20.º/5).

As Fundações Públicas de Direito Privado


Toda a fundação (pública ou privada) consiste num complexo patrimonial afeto por uma
determinada pessoa/conjunto de pessoas (singulares ou coletivas), à realização de
determinados fins de interesse geral prosseguidos através da criação de uma determinada
organização destinada à administração daquele património e com vista à prossecução de
tais fins.
Tem o regime previsto na Lei-Quadro das Fundações – Lei n.º 24/2012. Lei esta que
introduziu algumas alterações ao Código Civil, estabelecendo um conjunto de regras para
a: criação; funcionamento; monitorização; reporte; avaliação do desempenho e extinção
das fundações.
Nos termos do artigo 3.º/1 da LQF, uma fundação é uma “pessoa coletiva, sem fim
lucrativo, dotada de património suficiente e irrevogavelmente afetado à prossecução de
um fim de interesse social”. Para o efeito consideram-se “fins de interesse social aqueles
que se traduzem no benefício de uma ou mais categorias de pessoas distintas do fundador,
seus parentes e afins, ou de pessoas ou entidades a ele ligadas por relações de amizade ou
de negócios” – previsto no número 2 do artigo 3º.

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Na LFQ é feita a distinção entre duas grandes modalidades de fundações:


§ Fundações Públicas
o De Direito Público (alínea b do número 1 do artigo 4.º da LQF)
o De Direito Privado (alínea c do número 1 do artigo 4.º da LQF)
§ Fundações Privadas
Estas últimas revestem a natureza de fundações privadas – “as fundações criadas por uma
ou mais pessoas de direito privado, em conjunto ou não com pessoas coletivas públicas,
desde que estas, isolada ou conjuntamente, não detenham sobre a fundação uma
influência dominante (artigo 4.º/1/alínea a); São pessoas coletivas privadas sem fins
lucrativos, dotadas de bens e do suporte económico necessários à prossecução de fins de
interesse social (artigo 14.º/1 da LQF).
Para uma adequada qualificação e enquadramento jurídico de qualquer fundação, é
necessário atender à:
§ Natureza jurídica da entidade ou entidades instituidoras;
§ Qualificação jurídica constante dos próprios estatutos da fundação;
§ Objeto da fundação;
§ Origem dos bens que integram o património inicial da fundação;
§ Modo de designação e de destituição dos órgãos de administração e de
fiscalização da fundação.
Regime Jurídico das Fundações Públicas de Direito Privado
Estas estão sujeitas na sua atividade, em primeira linha, ao direito privado. No entanto,
sendo elas também, por expressa qualificação legal, pessoas coletivas públicas (artigo
49.º/1 da LQF) o que implica ser o Direito Administrativo a reger a sua organização e
funcionamento (aplica-se a Parte II do CPA, relativa aos órgãos administrativos).
Para além disso, nos termos do artigo 48.º da LQF, estas estão sujeitas na sua atividade:
o Aos princípios constitucionais de Direito Administrativo;
o Aos princípios gerais da atividade administrativa;
o Às regras de contratação pública:
o E em matéria de recrutamento de pessoal:
o Princípio da publicidade;
o Princípio da concorrência;
o Princípio da não discriminação.
Aplicar-se-á o CPA tão só à atividade destas que envolva (artigo 52.º/2/alínea a):
§ O exercício de poderes de autoridade;
§ A gestão da Função Pública;
§ A gestão do Domínio Público;
§ A aplicação de outros regimes jurídico-administrativos.
Aplicam-se por inteiro a ambas as espécies de Fundações Públicas os (artigo 52.º/2 da
LQF):

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§ Regimes da administração financeira e patrimonial do Estado;


§ Regimes da realização de despesas públicas e da contratação pública;
§ Regimes das incompatibilidades de cargos públicos, da responsabilidade civil do
Estado;
§ Regime de jurisdição e controlo financeiro do Tribunal de Contas e da Inspeção-
geral de Finanças.
A LQD interdita pessoas coletivas públicas de criar novas fundações públicas de direito
privado para além das que já existem através de atos negociais, tendo como objetivo ser
um movimento de refluxo/retrocesso relativamente à fuga para o direito privado.
A LQD também prevê a possibilidade de as autarquias locais criarem fundações
municipais de Direito Público por ato administrativo, através de deliberação na
Assembleia Municipal.

Entidades Públicas Empresariais


São pessoas coletivas públicas (com natureza jurídico-organizativa pública) à partida
sujeitas nos seus aspetos organizativos ao Direito Administrativo (e só subsidiariamente
ao Código Civil e ao Código das Sociedades Comerciais), mas cuja atividade a lei
submete por regra ao direito privado.
Estas entidades são reguladas:
o Ao nível estadual – artigos 56.º a 61.º do Regime Jurídico do Setor Público
Empresarial e Bases Gerais das Empresas Públicas (RJSPE);
o Ao nível regional – artigos 32.º a 43.º do Decreto-Lei Regional n.º 7/2008/A –
Açores; e Decreto-Lei Regional n.º 13/2010/M – Madeira.
Todos estes diplomas qualificam as tais entidades como Pessoas Coletivas de Direito
Público com natureza empresarial criadas para a prossecução dos seus fins (do Estado e
Das Regiões Autónomas).
Não obstante a expressa exclusão pelo artigo 3.º/3 da LQIP das entidades públicas
empresariais do seu âmbito, estas não deixam de integrar a Administração Pública (em
sentido organizativo) e de qualificar os respetivos órgãos (nomeadamente de direção e
fiscalização) como órgãos administrativos.
As entidades públicas empresariais são:
§ Pessoas coletivas públicas criadas por DL;
§ De tipo fundacional ou institucional;
§ Sujeitas a um regime de dissolução e liquidação especial a aprovar também, caso
a caso, por DL.
Este formato é atualmente vocacionado para:
§ O exercício simultâneo da atividades económico-empresariais de intervenção
direta nos mercados;
§ Funções reguladoras desses mercados;
§ Prestação de bens e serviços de caráter social (mais raro).
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Exemplos de EPEs:
o Hospitais EPE;
o Entidade nacional para o Mercado dos Combustíveis EPE;
o Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal EPE;
o Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública EPE.
Regime Jurídico (RJSPE)
Ø São dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial (artigo 59.º/1);
Ø Têm um capital estatuário indiviso que só pode ser de titularidade estadual (artigo
60.º/1);
Ø Apenas dispõem de órgãos de administração e fiscalização;
Ø A sua extinção é levada a cabo por decreto-lei (artigo 35.º);
Ø Com o objetivo de aproximar o respetivo regime organizativo ao das empresas
públicas societárias, o DL 133/2013 designa os poderes do Governo de orientação
e controlo por Função Acionista (artigo 37.º) – “exercício de poderes e deveres
inerentes à detenção das participações representativas do capital social ou
estatutário”.
o São poderes de natureza pública que sobre estas exercem ad extra, ou seja,
verdadeiros poderes de tutela e superintendência.
Ø No respeitante ao controlo financeiro – estão sujeitas à jurisdição e ao controlo do
Tribunal de Contas e da Inspeção-Geral de Finanças (artigo 26.º).

Figuras convertidas da Administração Indireta


a) Associações Públicas
i. São formadas por entidades privadas;
ii. Mas prosseguem fins do Estado, transferidos para estas através de um processo de
devolução de poderes;
iii. Concentram-se em fins específicos;
iv. Princípio da Participação do Interessados – chama-se os interessados a participar
em tarefas públicas estaduais.
a. Ordens profissionais – por exemplo, os advogados estão interessados na
disciplina/interesses morais ou públicos da profissão.
Problemas/riscos
o Não são só os profissionais agregados em ordens profissionais que devem ser
chamados a participar na gestão, mas também os utentes/funcionários e estes não
estão representados – só chamam uma parte dos interessados, que na opinião do
professor até seriam os principais interessados;
o Poderes sejam mal exercidos ou deficientemente exercidos do ponto de vista do
interesse público porque as motivações corporativas falam mais alto (em caso de
negligencia médica, os colegas de profissão defenderem aquele que errou).

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b) Concessionários de serviços públicos e demais entidades privadas com poderes


públicos
É uma categoria de entidades privadas que colaboram estreitamente com a Administração
Pública, numa situação de sujeição que as faz emparceirar com os entes públicos que
integram a Administração Indireta do Estado, a quem hajam sido transferidos poderes
públicos afetos ao exercício da função administrativa nelas também concessionada. É o
Direito Administrativo aplicável a estas entidades sempre que exerçam tais poderes.
Exemplos:
§ Empresas concessionárias de serviços públicos, obras públicas, exploração de
bens do domínio público (quando nelas sejam delegados também poderes públicos
de autoridade e sempre que exerçam esses poderes);
§ Notários privados;
§ Federações desportivas de utilidade pública desportiva;
§ Solicitadores de execução.
Não perdem a sua natureza privada, atuam em concorrência, mas estão investidos numa
função pública e é por isso que são considerados Administração Indireta funcional do
Estado, porque são atividades substancialmente privadas.
Ou seja, estão fora da Administração Pública em sentido organizativo, mas estão na
Administração Pública em sentido funcional.
c) Entidades Privadas com Influência Pública dominante
Numa linha de maior afastamento da Administração Pública em sentido orgânico temos
estas entidades que, apesar de já não integrarem em rigor a Administração Pública, por
terem forma jurídico-organizativa privada, não deixam de ser, na sua natureza profunda,
entidades públicas, mais precisamente longas manus, extensões ou desdobramentos das
pessoas coletivas públicas que as constituíram (o Estado, uma Região Autónoma ou uma
Autarquia Local).
Ø São entidades jurídico-organizativas privadas.
Ø São meros instrumentos dos entes públicos que lhes deram origem.
Ø A criação da entidade com aquele específico objeto, com atividade regida pelo
direito privado, apenas serve indiretamente a satisfação de um determinado
interesse público a cargo do seu criador, circunscrevendo-se a atividade
desenvolvida por si ao quadro das atribuições do ente público matriz.
o Mas este (ente público criador) não descarrega em tal entidade nenhuma
parcela da função administrativa que por lei lhe esteja confiada.
Exemplo: é o caso da decisão de constituição ou aquisição pelo Estado de uma empresa
dedicada ao fabrico e venda de armamento e equipamento militares. É uma empresa que
se encontra à mesma em concorrência com as demais, apenas detém de um interesse
estratégico – a defesa nacional. Mas essa produção de armamento não faz parte das
atribuições das tarefas estaduais.

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3. Administração Estadual Independente (artigo 2.º/4/alínea c) do CPA)


Estas constituem uma categoria de organismos públicos objeto de expressa consagração
constitucional a partir da revisão constitucional de 1997 (artigo 267.º/3 da CRP), revisão
essa que marcou a mudança do modelo de Estado para a uma função de Regulador (deixou
de ser considerado prioritário a função do Estado como garante de bens e serviços).
Podendo ou não ter personalidade jurídica própria e distinta do Estado-Administração,
constitui o seu traço distintivo o não estarem dependentes do Governo (como acontece
com os demais órgãos e entes públicos menores que integram também a Administração,
que de algum modo sempre se sujeitam aos poderes do órgão supremo do poder executivo
(seja aos seus poderes de direção, de superintendência ou de tutela).
Distinção entre duas grandes subcategorias de entidades administrativas independentes
a) Autoridades Administrativas Independentes
i. São criadas para assegurar uma tutela prévia ou preventiva de direitos
fundamentais (ainda em sede administrativa, através de uma atividade
administrativa essencialmente consultiva e de controlo) – requer uma
independência próxima da dos tribunais;
ii. Na sua maioria, não têm personalidade jurídica própria;
iii. Na sua maioria, situam-se orgânica e financeiramente na órbita da Assembleia da
República.
É o caso:
v Provedor de Justiça;
v CNE – Comissão Nacional de Eleições;
v CNPD – Comissão Nacional para a Proteção de Dados;
v CADA – Comissão de Acesso a Documentos Administrativos;
v CRESAP – Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública;
v Conselho Superior de Finanças Públicas;
v Conselho Nacional de Educação;
v Conselho Nacional de Consumo.
b) Entidades Reguladoras Independentes
i. São pessoas coletivas públicas com forma de instituto público;
ii. Têm a missão de regular a conduta dos operadores económicos que desenvolvam
atividades de interesse económico geral;
iii. O regime comum está plasmado na Lei n.º 67/2013 (Lei-Quadro das Entidades
Reguladoras).
A separação orgânica das autoridades reguladoras relativamente ao Governo deve-se a
razões:
§ Sobretudo de eficiência em sede de regulação económica;
§ Exigência de um elevado perfil técnico-científico dos membros dos órgãos
diretivos dessas autoridades;
§ Independência face ao poder executivo governamental.

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Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Tudo isto com o objetivo principal de evitar a repetição do erro cometido nas antigas
empresas públicas encarregadas da exploração de serviços públicos essenciais, de os
preços sociais por elas praticados acabarem por ser fixados, sob intensa pressão do
governo, e por razões eleitoralistas, num patamar muito inferior àquele que seria
suficiente para tornar o bem ou serviço produzido acessível.
Exemplos destas entidades:
v ASF - Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões;
v CMVM - Comissão do Mercado de Valores Mobiliários;
v Autoridade de Concorrência;
v ERSE - Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos;
v ANACOM - Autoridade Nacional de Comunicações;
v Autoridade Nacional de Aviação Civil;
v Autoridade da Mobilidade e dos Transportes;
v ERSAR - Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos;
v ERS - Entidade Reguladora da Saúde;
v CAAJ - Comissão de Acompanhamento dos Auxiliares de Justiça (regula
profissionais liberais);
v Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior – tal como a ERS, é
uma entidade reguladora de uma atividade de interesse geral, e já não
propriamente de interesse económico geral;
v Entidade Reguladora da Comunicação Social (artigo 49.º da CRP);
v Banco de Portugal (artigo 102.º da CRP).
Não obstante a ERS e o Banco de Portugal terem expressa previsão na Lei Fundamental,
é inquestionável o exercerem elas, como as demais entidades reguladoras independentes,
típicas funções administrativas regulatórias, razão pela qual não podem deixar de ser
consideradas integradas na Administração Pública.
Entidades como o: INFARMED (autoridade nacional de medicamentos e produtos de
saúde) e o IMPIC (instituto dos mercados públicos, do imobiliário e da construção) não
se inserem na Administração Independente, pois falta-lhes o requisito da independência
face ao Governo.

Problema constitucional das Entidades Administrativas Independentes


A legitimação democrática das entidades administrativas independentes só é assegurada
pela lei, que fixa obrigatoriamente:
§ A sua organização;
§ As suas atribuições e competências.
Exigências que são consideradas insuficientes às exigências do Estado Democrático de
Direito.

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