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IRIS DANIELE MARCOLINO DA SILVA

A POESIA E O HABITAR POÉTICO COMO POSSIBILIDADE


DE FORMAÇÃO HUMANA: ENTRE O FILÓSOFO MARTIN
HEIDEGGER E O POETA FRIEDRICH HÖLDERLIN

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação, da Universidade Federal
de Santa Catarina, para fins da obtenção do Grau
de Mestra em Educação.
Orientadora: Profa. Dra. Rosana Silva de Moura

Florianópolis/SC
2017
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do
Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Silva, Iris Daniele Marcolino da


A Poesia e o habitar poético como possibilidade
de formação humana: entre o filósofo Martin
Heidegger e o poeta Friedrich Hölderlin / Iris
Daniele Marcolino da Silva ; orientadora, Rosana
Silva de Moura, 2017.
125 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal


de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação,
Programa de Pós-Graduação em Educação,
Florianópolis, 2017.

Inclui referências.

1. Educação. 2. Heidegger. 3. Poesia. 4.


Formação. 5. Hölderlin. I. Moura, Rosana Silva de.
II. Universidade Federal de Santa Catarina.
Programa de Pós-Graduação em Educação. III. Título.
IRIS DANIELE MARCOLINO DA SILVA

A POESIA E O HABITAR POÉTICO COMO POSSIBILIDADE


DE FORMAÇÃO HUMANA: entre o filósofo Martin Heidegger e o
poeta Friedrich Hölderlin

Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do Título de Mestra


em Educação e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação

Florianópolis, de 31 de Novembro de 2017.

_____________________________
Prof. Dr. Elison Antonio Paim
Coordenador do Curso

Banca Examinadora

____________________________
Orientadora: Prof.ª Dra. Rosana Silva de Moura
Universidade Federal de Santa Catarina

____________________________
Prof. Dr. Jason de Lima Silva
Universidade Federal de Santa Catarina/MEN

____________________________
Profa. Dra. Lúcia Schneider Hardt
Universidade Federal de Santa Catarina/EED

____________________________
Prof. Dra. Luciana Dias
Universidade de Ouro Preto/Departamento de Artes

____________________________
Prof. Neiva Affonso Oliveira
Universidade Federal de Pelotas/UFPel/RS

____________________________
Prof.ª Dra. Maria Veronica Pascucci
Universidade Federal do Maranhão/DEART
A Irene, minha mãe.
(in memorian)

E a Miguel, meu pai


(in memorian)
AGRADECIMENTOS

Eu dedico esta pesquisa à minha mãe Irene Marcolino (in


memorian) que com muita dedicação e amor esteve presente na
preparação desse sonho que tornou-se realidade. E que logo tão cedo,
partiu para outras jornadas, me deixando pronta para a vida. Sem dúvidas
as minhas palavras estão povoadas pela sua poesia e música. A sua alegria
esteve comigo no desenvolvimento deste trabalho que em alguns
momentos mostrava-se tão solitário. Ao meu pai Miguel Fortunato (in
memorian), eu sou grata pela presença do seu olhar que sempre esteve em
mim e hoje carrego como um talismã. Ao Universo eu sou grata por todos
os presentes e lutas as quais eu sei falar das dores e delícias; eu sou grata!
Agradeço a minha orientadora Rosana Silva de Moura por ter aceitado o
desafio do mergulho nas águas profundas da existência poética e
filosófica à qual esta pesquisa se propõe. Tenho em mim a inspiração de
ser um dia uma docente universitária com tal competência e dedicação
naquilo que a formação se propõe. À banca examinadora, toda a minha
gratidão e respeito pelo caminho percorrido desde a qualificação a quais
contribuições foram tão valiosas e indispensáveis. À Louise, deixo aqui
todo o meu profundo amor, também frutos de uma reciprocidade, que por
inúmeros momentos manifestou-se em cuidado e escuta. Eu sei que o
amor não morre. Agradeço especialmente à Professora Lucia Hardt pelo
intenso incentivo em pensar uma outra formação possível para a
educação, nos proporcionando momentos de grandes debates e instiga.
Em especial a minha família: Nusa, Miguel, Flavio e Ailton, que cada
um(a) do seu modo estão presentes em minhas conquistas no viver. À
Roberto Martins, meu mestre, faço uma saudação de alma e agradeço toda
generosidade e casa em forma de amizade e trocas intensas de vidas.
Seguirei sendo sua discípula! Vilmar Martins e Elizane Andrade, que
adoçam a minha caminhada me sinalizando quais são os lugares de
repouso e do vinho em Florianópolis. Ao Bruno Pedroso Lima Silva,
agradeço o seu olhar minucioso no trabalho de revisão. Não poderia
finalizar este trabalho sem expressar meu carinhoso olhar sobre Yone
Amorin, minha parceira, mãe, amiga, irmã, entre tantas outras coisas,
você me inspira pela caminhada vida à fora. E estaremos sempre juntas
estejamos onde estivermos! Estamos conectadas.
“Hoje, assim todos os dias, tenho de atravessar uma ponte; a sua
frágil armação de inseguros instantes permite ver a água, funda, quieta, à
espera. Mãos pacientes puseram na minha bagagem talismãs para
ajudarem em tão difícil passagem.” (José Luis García Martín)
RESUMO

O intuito desta pesquisa de mestrado é o de apresentar uma relação entre


filosofia e poesia para pensar a formação humana no campo da filosofia
da educação. Valendo-se do grandioso solo em que esta relação se dá,
Martin Heidegger e Friedrich Hölderlin dialogaram na presente
dissertação entre a quadratura “céu e terra, mortais e imortais” sobre os
vestígios dos deuses foragidos e a noite do mundo. Em termos
metodológicos, operamos a formação humana desde uma pesquisa
qualitativa de fontes primárias, tendo em vista alguns escritos dos
referidos pensadores. O poeta e o filósofo contribuem com a história de
suas vidas para esta pesquisa. A poesia e a filosofia é tecedora de outras
possibilidades enquanto existência. Esta comunicação só é possível
através da linguagem. O que se constrói via poesia, segundo Hölderlin, é
advindo da escuta e do céu, do levantar os olhos. A filosofia de Heidegger
repousa sobre a condição de ser-no-mundo (Mit-Sein) factível e temporal
que lançado enquanto humano vive a experimentar a angustia,
possibilidade/impossibilidade e mundo. Nossa perspectiva se propõe a
sondar a existência em busca de uma ampliação da formação humana que
precisaria retomar o sentido autoformativo de seu habitar poético. Por
fim, poderíamos dizer, segundo nossa incursão de pesquisa, que esta
relação repousa a salvo, por via do viés heideggeriano- hölderliano do
construir e habitar, pois é “cheio de méritos mas poeticamente que o
homem habita esta terra”. A pesquisa interage com os textos de Martin
Heidegger: "Construir, Habitar, Pensar"; "Para quê Poetas?" e
"...Poeticamente o homem habita...".

Palavras-chave: Heidegger; Habitar; Formação; Poesia; Hölderlin.


ABSTRACT

The purpose of this research is to go deep in the field of human formation


aspects about poetry and philosophy through a poet and a philosopher.
Drawing on the great soil in which this relationship takes place, Martin
Heidegger and Friedrich Hölderlin have dialogued in the present
dissertation between the quadrature "heaven and earth, mortal and
immortal", on the vestiges of the fugitive gods and the night of the world.
In methodological terms, we think the human formation from a qualitative
research with primary sources, analizing some works of the mentioned
thinkers. The poet and the philosopher contribute with the history of their
lives to this research. Poetry and philosophy are weavers of other
possibilities as existence. This communication is only possible through
language. What is constructed through poetry, according to Hölderlin,
comes from listening and from heaven, from looking up. Heidegger's
philosophy rests on the condition of being-in-the-world (Mit-Sein) factual
and temporal that is launched as human to experience the anguish and the
possibility or impossibility in the world. Our perspective proposes to
gauge the existence in search of an amplification of the human formation
that would need to resume the autoformative sense of its poetic dwelling.
Finally, we might say, according to our research foray, that this
relationship rests safely, through Heidegger and Hölderlin's view of
building and inhabiting. After all, "full of merits but poetically that man
inhabits this land." The research interacts with the texts of Martin
Heidegger: "To construct, To inhabit, To think"; "Poets for what?" and
"... Poetically man dwells ...".

Keywords: Heidegger; Dwell; Formation; Poetry;Hölderlin


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................... 15

CAPÍTULO 1 - SOBRE A PRESENÇA DA POESIA DE


FRIEDRICH HÖLDERLIN NA FILOSOFIA DE MARTIN
HEIDEGGER ...................................................................................... 21
1.1 HÖLDERLIN, O POETA .................................................................. 21
1.2 HEIDEGGER, O FILÓSOFO ............................................................. 25
1.3 HEIDEGGER-HÖLDERLIN OU, DE COMO A POESIA CONDUZ CERTA
FILOSOFIA .......................................................................................... 27

CAPÍTULO 2 - A POESIA DE HÖLDERLIN COMO EXTENSÃO


DO PENSAMENTO – A CONSTRUÇÃO DO HABITAR
POÉTICO ............................................................................................ 41
2.1. O QUE É ISTO, A POESIA? ............................................................. 41
2.2. “...POETICAMENTE O HOMEM HABITA...” A LINGUAGEM –
CONSTRUÇÃO E CRISE SOBRE O HABITAR .......................................... 53
2.3. HABITAR E FORMAÇÃO HUMANA ................................................ 58
2.4. A RELAÇÃO MARTIN HEIDEGGER E FRIEDRICH HÖLDERLIN...... 80

CAPÍTULO 3 - A EXPERIÊNCIA DA POESIA COMO


CONSTRUÇÃO DO HABITAR POÉTICO PODE SER
EXPERIÊNCIA FORMATIVA? ....................................................... 97
3.1. COMO A POESIA DE HÖLDERLIN CONSTRÓI O HABITAR POÉTICO –
CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO ................................................. 97
3.2. A AUTOFORMAÇÃO COMO MEDIDA DO POÉTICO PARA O HABITAR
........................................................................................................ 104

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................... 117

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................ 121


14
15

INTRODUÇÃO

“Para o alto forcejava meu espírito, mas o


Amor trouxe-o logo para baixo; mais ainda
Encurvou-o o sofrimento; assim, eis que o arco
Da vida me trouxe ao ponto de partida.”
(HÖLDERLIN, 1991, p. 73)

O objetivo desta dissertação de mestrado é o de apresentar a


relação entre a poesia e a filosofia como possibilidade de atualização e
redimensionamento da formação educacional, a partir do diálogo entre o
pensamento de Martin Heidegger e a poesia de Friedrich Hölderlin.
Estrutura-se a começar de uma perspectiva de filosofia da linguagem, a
qual toma a linguagem enquanto lugar da primazia existencial, conforme
nos inspira Heidegger em suas obras “Para quê poetas”; “Construir,
habitar, pensar”; e “...Poeticamente o homem habita...” Tomamos do
texto “A caminho da linguagem”, de 19571, suas palavras para,
inicialmente informar ao leitor a importância desse ponto para Heidegger.

A linguagem é: linguagem. A linguagem fala.


Caindo no abismo dessa frase, não nos
precipitamos todavia num nada. Caímos para o
alto. Essa altura entreabre uma profundidade.
Altura e profundidade dimensionam um lugar onde
gostaríamos de nos sentir em casa a fim de
encontrar uma morada a essência do homem.
Pensar desde a linguagem significa: alcançar de tal
modo a fala da linguagem que essa fala aconteça
como o que concede e garante uma morada para a
essência, para o modo de ser dos mortais.
(HEIDEGGER, 2011, p. 10).

A partir destas obras produz-se ressonância para análise de uma


estética da existência tomada enquanto habitar poético (HEIDEGGER,
2011). O Dasein2, redimensionado por Heidegger, inclina a filosofia

1
Não iremos nos ocupar nesta dissertação de apresentar e discutir os distintos
períodos filosóficos de Martin Heidegger. Cumpre dizer que estamos cientes do
que passou a se chamar primeira e segunda fase (NUNES, 2016), sendo aquela
representada por “Ser e Tempo” e esta especialmente pelos escritos nos quais o
filósofo trata de questões como a técnica e a obra de arte.
2
Sobre o que é o Dasein para Heidegger, segundo Cerbone: “O Dasein é o lugar
para começar a responder a questão sobre o ser porque ele, diferente dos outros
16

contemporânea para um movimento que se ergue a partir de uma nova


compreensão do que é a filosofia ou o novo pensar. O pôr em curso o
filosofar em seu formato poético é o ser em sua ampla possibilidade
construtiva, que invoca a mística do ser-no-mundo3. Ou como Heidegger
refere em sua obra “Introdução à Filosofia”: “A filosofia deve tornar-se
livre em nós, ela deve tornar-se a necessidade interna de nossa essência
mais própria, de modo a conferir a essa essência a sua dignidade mais
peculiar.” (HEIDEGGER, 2009, p. 5). A possibilidade da analítica da pre-
sença ou analítica existencial4 do “habitar poético” implica nova
construção de perspectivas a partir do ser envolvido pelo mistério, pela

tipos de entidades, sempre tem uma compreensão do ser: entes humanos são entes
para quem as entidades são manifestas em seu modo de ser. Isso não significa que
nós já temos uma concepção desenvolvida sobre o que é ser (se tivéssemos,
haveria pouco para Heidegger e Ser e tempo realizarem), mas, em vez disso,
nossa compreensão é em grande medida implícita e pressuposta, o que Heidegger
chama de “pré-ontológico”. Uma vez que o Dasein tem uma compreensão do ser,
ainda que implícita e não temática, Heidegger argumenta que a ontologia
fundamental deve começar com a tarefa de interpretar ou articular essa
compreensão pré-ontológica do ser. Fazer isso fornecerá uma primeira passagem
para responder a questão do ser em geral, uma vez que compreender o Dasein, ou
seja, o que é ser o tipo de ente que somos, pressupõe compreender o que
compreendemos, ou seja, o ser.” (CERBONE, 2013, p. 72)
3
O ser-aí para Heidegger através da perspectiva construtiva diz sobre a formação
de mundo como um acontecimento fundamental de sua essência como vigência
do mundo. No parágrafo §74, da obra “Os Conceitos fundamentais da Metafísica
– Mundo-Finitude-Solidão”, Heidegger problematiza a compreensão do homem
enquanto “formador de mundo” (HEIDEGGER, 2011, p. 448). E por isso,
desperto para um “despertar de uma tonalidade afetiva fundamental” (Ibid., p.
449) e, por conseguinte, é “Isto que dissemos serem os momentos fundamentais
deste acontecimento, o manter-se ao encontro da obrigatoriedade, a integração e
o desentranhamento do ser do ente.” (Idem). O homem é formador de mundo
porque necessita estar desperto de sua tonalidade afetiva na busca de sua
expressão mais livre para um “construir e habitar”.
4
Em “Introdução ao pensamento de Martin Heidegger”, Stein explicita a
“analítica existencial” como sendo o modo de operar a questão do ser em
Heidegger (Ser e Tempo, § 9). “A bipolaridade velamento-desvelamento é o
movimento que atravessa o caminho: fenomenologia: o desvelar-se do que se
vela, aquele que se busca no caminho: o ser que vela e desvela no tempo, e a
dimensão da verdade em que o ser manifesta.” (STEIN, 2011, p. 59).
Retomaremos este ponto no capítulo 2 desta dissertação.
17

facticidade e temporalidade, porque viver é jogo entre possibilidade e


impossibilidade, angústia, criação e cura no mundo5.
Vimos acentuando, já nestas primeiras páginas da dissertação, a
complexidade da trama do pensamento heideggeriano. Neste ponto da
trama, nos parece adequado uma explicitação do conceito “mundo” que
Heidegger se dedica a apresentar especialmente em dois momentos do
conjunto de sua obra: em “Ser e Tempo”6, de 1927 e “Os conceitos
fundamentais da metafísica: Mundo-finitude-solidão”, preleções
apresentadas entre 1929 e 1930. Percebemos que “mundo” é onde se
ancora a pre-sença. Sem mundo não haveria ser-aí. Logo, mundo tem a
ver, de modo íntimo, com temporalidade. Mundo é, nas palavras de
Heidegger, “uma determinação existencial da pre-sença (...) “Mundo é
um caráter da própria pre-sença.” (ST, §14). No §74 de “Conceitos
Fundamentais”, Heidegger se dedica à pergunta “O que é mundo?” para
mostrar como o homem se constitui enquanto formador de mundo, ou
ainda, de como, a intimidade entre ente (homem) e mundo está dada
enquanto um acontecimento fundamental.
A intenção desta pesquisa é a de produzir, ao modo heideggeriano,
uma perspectiva de Filosofia da Educação que tenha intimidade com o
“habitar poético”, procurando possíveis efeitos na formação humana. Em
razão de compreender-se, aqui, que a vida humana é como uma obra
aberta em constante elaboração, trata-se da própria formação humana,

5
A compreensão de mundo aqui, é inspirada a partir de Heidegger, sob o olhar
de José Carlos Marçal no seu texto “Geviert: o sagrado em Heidegger e a
serenidade em Mestre Eckhart”. Segundo este comentador, “O mundo é
entendido como clareira das sendas das orientações essenciais. A abertura que o
mundo representa permite que o ente saia de sua ocultação e a terra indica o
elemento que deve salvaguardá-lo. Heidegger utiliza um tom poético para
descrever os elementos da quadratura. A terra “é o sustento de todo gesto de
dedicação. A terra dá frutos ao florescer. A terra concentra-se vasta nas pedras e
nas águas, irrompe concentrada na flora e na fauna”. O céu é “o percurso em
abóbadas do sol, o curso em transformação da lua, o brilho peregrino das estrelas,
as estações do ano e suas viradas, luz e crepúsculo do dia”. Os deuses são “os
mensageiros que acenam à divindade. Do domínio sagrado desses manifesta-se o
Deus em sua atualidade ou se retrai em sua dissimulação”. E os mortais “são os
homens. Chamam-se mortais porque podem morrer. Morrer diz: ser capaz da
morte como morte”. É essa simplicidade que Heidegger determina como
quadratura: “Em habitando, os mortais são na quadratura”, daí o lugar
privilegiado do verbo habitar acima mencionado.” (MARÇAL, 2011, p. 160 e
161. Destaque nosso.).
6
Doravante “ST”.
18

igualmente, enquanto uma obra aberta, confeccionando seus sentidos


desde a relação da arte com a fenomenologia hermenêutica heideggeriana.
O impulso motivador que inspira esta pesquisa é de caráter
desafiador para uma era tão imediatista e instantânea. A presença da
poesia na formação humana é uma forma de fazer deslocamento e
revolução com a palavra. Nesse sentido, nosso intento é o de uma
experiência formativa que altere o curso imediato da formação para deixar
vir outro lado do ser enquanto possibilidade de ser no mundo.
O encontro aqui é com o tempo meditativo de Heidegger e com a
forma misteriosa de fazer poesia de Hölderlin. Entendemos que o
desvendamento de novos olhares sobre a Filosofia da Educação é uma
necessidade urgente para os que pensam a elaboração de uma educação
mais aberta e acolhedora, a qual não busque a evolução como destruição
do mundo, mas que seja a própria cura do mundo. Por isso, o debruçar-se
sobre a necessidade de um redimensionamento no ensino e na
aprendizagem pode ser realizado pela estrutura brincante e lúdica da
poesia pensada e natural do ser. Sem dúvida, o novo, com sua
característica revolucionária, provoca o salto para uma outra margem,
menos imediata e mais mediada no habitar poético.
Esta dissertação, cuja metodologia é de cunho qualitativo,
realizando-se a partir da interpretação de textos filosóficos e poéticos,
pretende investigar a possibilidade formativa a partir da existência do
pensar filosófico e do poetar como possibilidade para a formação do
habitar poético. Por certo, trata-se de uma interpenetração entre ambos,
fazendo surgir um outro inusitado. A pesquisa colige textos de Heidegger
e de Hölderlin e, na semântica originária do termo mesmo, reúne alguns
dos seus escritos no intuito de fazer pensar a formação humana enquanto
habitar poético e, desde sempre, um caminho autoformativo. No esforço
hermenêutico de traduzir as perspectivas destes pensadores-
poetas/poetas-pensadores o material coligido impulsiona a experiência
daquilo que Adauto Novaes designa como “Artepensamento”:

A natureza da Arte do Pensamento põe em risco


qualquer comparação. Se o trabalho de pensamento
e o trabalho da obra de arte parecem tão distantes,
se a obra de arte tem realidade própria e se
distingue facilmente das outras atividades
humanas, um e outro têm, entretanto, um destino
comum: o desejo da experiência desmensurada do
obscuro e do ausente. Pensar é passar do conhecido
ao desconhecido- ir além dos signos; escrever um
poema ou pintar um quadro é buscar o outro lado
19

de uma presença: um e outro tentam, pela


experiência, “levantar a ponta de um véu, mostrar
aos homens um lado ignorado ou antes esquecido
do mundo que habitam.” (NOVAES apud Diderot,
1994, p. 9).

Nesse sentido, o que Novaes está nos sugerindo é o caráter para


além do explicitado na linguagem. A linguagem enquanto
ARTEEPENSAMENTO é um diálogo constelativo. Ou seja, é aquilo que
enquanto possibilidade interage com as partículas diversas do mundo do
pensamento e das artes no céu diverso das linguagens. A constelação,
linguagem, pensada por Novaes reúne o mistério e a realidade enquanto
manifestação da estranheza em processo de ir além do que está posto.
Então, essa linguagem é um céu habitado por diversas estrelas que
brilham proporcionalmente naquilo que necessitam sem deixar de serem
elas mesmas, pela forma e existências das outras estrelas. A arte e o
pensamento estão integrados pelos processos distintos e alinhados pelo
interesse em descobrir e re-velar o oculto manifestado pelo mundo das
artes ou da filosofia.
O referencial teórico-poético principal está indicado de antemão
no título que denomina e estrutura esta pesquisa. Os referenciais
secundários se dão pelo enfrentamento e cotejamento metodológico
circundado pela hermenêutica fenomenológica de Heidegger para com
todos os citados aqui. Os capítulos desta dissertação estão em
comunicação, mediante o poder constelativo das temáticas e suas
relações.
O primeiro capítulo, “Sobre a presença da poesia de Friedrich
Hölderlin na Filosofia de Martin Heidegger”, é uma introdução a Martin
Heidegger e Friedrich Hölderlin a partir de suas vidas e obras, sendo
demarcado pela relação dialogada entre filosofia e poesia de ambos.
O segundo capítulo, “A poesia de Hölderlin como extensão do
pensamento - embates sobre o habitar”, é um registro das variadas
presenças poéticas de Friedrich Hölderlin na estrutura do pensamento de
Martin Heidegger. Monta-se um arcabouço estrutural para o “habitar
poético”, observado a partir da análise do texto “Para quê Poetas?”, de
Heidegger.
O terceiro capítulo, “A experiência da poesia de Hölderlin como
construção do habitar poético pode ser experiência formativa?
Contribuições para a educação”, é uma defesa poética daquilo que
compreendido como formativo habita entre a poesia de Hölderlin e a
filosofia de Heidegger. Tendo em vista que neste capítulo há a presença
20

de comentadores que já trabalham em suas pesquisas a relação entre


Heidegger e a Educação, este capítulo representa o encontro das
possibilidades formativas com base em uma existência estética-
transformadora.
A intenção da pesquisa não é a de apresentar um caminho ao modo
de uma preleção para a formação humana; ao contrário: a intenção é dizer
da singularidade do caminho formativo, dizendo-o desde o percurso desta
pesquisa. Logo, mostrando uma possibilidade, um acontecimento. Com
isso, podemos apenas falar da experiência mesma de pesquisa em curso e
convidar o leitor a atrever-se a constituir o seu próprio habitar poético, se
assim lhe apetecer. Estamos fincados no horizonte autoformativo e, no
limite, apenas sinalizamos a possibilidade de invenção própria. Observa-
se um cenário existencial advindo do habitar poético, condicionado pelo
devir construtivo e desconstrutivo, que vela e desvela os campos das
possibilidades artísticas em vida. Heidegger mesmo nos orienta nesta
direção de ser-aí enquanto formador de mundo, que se dá pelo cuidado e
responsabilidade consigo mesmo. Todo o caminho possível, aqui
sugerido, então, só poderia ser dito de um lugar e modo singular de ser.
Por fim, o pensar e poetar, na educação, é um encontro de
possíveis. O que para a filosofia é condicionante, para a poesia é
relacional. Por isso, o confronto e a coalizão de ideias estão neste universo
como obra aberta e sempre inacabada, porque o ser humano é um processo
constante e intenso que pode criar e recriar olhares sobre o mesmo
horizonte, a saber, o da vida. Esta pulsão que compreende a constelação
do conhecimento, como encaminha Adauto Novaes no texto
“Constelações”, amplia e dinamiza as possibilidades formativas na
híbrida condição de ente formador de mundo. Resta, então, a força
criadora dela, da vida, seus mitos e poesia.
21

CAPÍTULO 1 - SOBRE A PRESENÇA DA POESIA DE


FRIEDRICH HÖLDERLIN NA FILOSOFIA DE MARTIN
HEIDEGGER

“Tudo é íntimo.
Isso separa.
Assim resgata o poeta.
Temerário! De rosto em rosto quererias ver a alma.
Vens abaixo em chamas.”
(HÖLDERLIN, 1991, p. 201)

Tal como referimos na introdução, este capítulo investiga de que


modo a poesia de Friedrich Hölderlin se faz presente nas obras
“...Poeticamente o homem habita...”, “Construir, habitar, pensar” e “Para
quê poetas”, de Martin Heidegger. Em nossa perspectiva – e sob a
inspiração de Benedito Nunes –, esta é uma “transa” possível para
pensarmos a formação humana que desejamos. Antes de adentrarmos
nesta perspectiva, convêm algumas palavras biográficas sobre nossos
pensadores, a fim de situar o leitor nestes horizontes tão distanciados
historicamente um do outro, mas familiares no modo de pensar a
existência, desde uma experiência formativa e desde a linguagem da
poesia; enquanto um ser-aí poético. Assim, de modo delimitado, para
extrairmos tal modo de ser, tratamos de examinar se há, a partir destas
obras de Martin Heidegger inspiradas em Friedrich Hölderlin, um
discurso poético-filosófico que possa refletir sobre esta comunicação
“Heidegger e Hölderlin” em busca de um habitar construído a partir do
poético e filosófico pensando o redimensionamento da formação humana.

1.1 HÖLDERLIN, O POETA

Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770-1843), nascido em 20


de março de 1770, em Lauffen, Württemberg, e falecido em 7 de junho
de 1843, em Tübingen, Reino de Württemberg, é considerado um dos
poetas mais importantes da literatura alemã. Em 1788, ingressou no
célebre seminário de Tübingen, onde estudou Filosofia e Teologia com
Hegel e Schelling. Na ambiência inspirada do seminário e sob a influência
de Kant, Rousseau, Schiller, dos ideais da Revolução Francesa e das
discussões criadoras ocorridas, sobretudo, com Hegel e Schelling,
22

Hölderlin escreve uma série de hinos poéticos e começa a “imaginar” o


seu romance “Hipérion”. (PAES, 1991, p. 13).
Em uma digressão etimológica, Hölderlin, em alemão, nome
medieval do “diabo”, significa também “pequeno sabugueiro”, que, na
tradição de várias regiões da Alemanha, é tido como árvore da vida ou
árvore em que mora o espírito do destino. Tais alusões onomásticas
dirigem-se ao poeta que celebrou como poucos a festa da vida; que tem
no “Canto de destino de Hipéríon” um dos seus poemas mais conhecidos;
e que trouxe para a poesia alemã ecos da Grécia órfica,7 cujos mistérios
se voltam para o além-vida no Hades, o mundo ínfero ou infernal das
sombras. (PAES, 1991, p.13).
Sob este ângulo, os diversos sentidos estão no gênio de Hölderlin
desde o seu nome de nascença. O céu e a terra; o humano e o divino; Baco
e Dionísio; o paraíso e Hades; são projeções de uma poesia8 que teve
como força maior o contato com os deuses foragidos seguida de uma
disposição humana que buscava a intimidade com a natureza. Segundo
Paes, certa “sensação de estar oculto, de estar secretamente abraçado ao
vale, ao rio, à colina, e, de par com tal sensação, a nostalgia de perder-se
na distância vaga”. (PAES, 1991, p.14).
Na obra “Poemas”, de Friedrich Hölderlin, o tradutor da obra na
edição brasileira também apresenta na introdução:

Como todo poeta fundamental, Hölderlin mostra à


posteridade dois rostos jânicos. Um é o rosto do
homem do seu tempo e do seu país, o
contemporâneo dos pré-românticos alemães do
Sturm und Drang que com eles contrapôs o

7
A compreensão aqui de órfica está relacionada aos mistérios dos cânticos dos
poemas, sobretudo na época da Grécia antiga, onde a vida e a morte estão em
sintonia com a arte. O poema dizia a palavra que habitava entre a vida e a morte.
Evocamos a lira do poeta Hölderlin em sua inspiração com a Grécia com um
fragmento do seu poema “Hipérion” “Desde a mais tenra juventude tenho
preferido viver sobretudo na costa da Jônia, da Ática e das belas ilhas do
arquipélago. Aos meus sonhos mais caros pertence o de peregrinar em algum
momento até o túmulo sagrado da humanidade jovial. A Grécia foi o meu
primeiro amor, e não sei se devo dizer que será o único.” (HÖLDERLIN, 2012,
p. 24).
8
“A poesia recebe desse modo sua mais alta dignidade, volta a ser no fim o que
era no princípio – mestra da humanidade, pois não haverá filosofia, não haverá
mais história, só a poesia sobreviverá a todas demais artes e ciências” (PAES,
1991, p.22).
23

entusiasmo do gênio criador às regras morigeradas


do bom gosto, a espontaneidade do estado natural
de Rousseau às afetações da sociedade
aristocrático-burguesa, os direitos do sentimento
ao despotismo da razão, do mesmo passo em que
fazia da Natureza um absoluto, a suprema potência
criadora e destruidora cujas instâncias seriam,
todas elas, outras tantas manifestações do Divino.”
(PAES, 1991, p.11).

A radicalidade da sua poesia aparece não só na própria poesia e


prosa poética, mas também nos vários ensaios teóricos e fragmentos
filosóficos de maneira que, hoje, Hölderlin pode ser igualmente
considerado uma das fontes mais inspiradoras da Filosofia
Contemporânea.
Sobre a necessidade dos mortais, Paes conclui:

E finalmente, corolário natural de uma visão


eminentemente estética da atividade do espírito, a
necessidade de uma religião sensível, de uma nova
mitologia da razão: Não apenas a multidão, mas
também o filósofo sente tal necessidade.
Monoteísmo da Razão e do coração, politeísmo da
imaginação e da arte, disso é que necessitamos.
(PAES, 1991, p. 21).

Seu legado poético deixou pistas misteriosas sobre as facetas como


Poeta. A sua obra é notada com profundidade e respeito entre filósofos e
poetas, entre eles Schiller, Neuffer, Octavio Paz, Dilthey, entre outros...
Em vida, suas obras, em sua totalidade, não obtiveram registro como
mereciam, em razão de negociações entre editoras, mas ficou marcada por
tamanha genialidade a sua criação “Hipérion ou o Eremita na Grécia”.
(SCHUBACK, 2012, p. 8).
Para José Paulo Paes, em relação ao que ele traduz da poesia de
Hölderlin, o poeta é este que preserva o poder divino e a liberdade humana
daquilo que ele chama de “caos”, pois, “Ponto de interseção entre o poder
divino e a liberdade humana, o poeta como guardião da palavra que nos
preserva do caos original” (PAES, 1991, p. 13).
Friedrich Hölderlin foi lido por grandes filósofos, entre eles Martin
Heidegger, que se encantou profundamente pela sua genialidade
experimentada por meio da palavra. Para além do seu encantamento,
também produziu textos poéticos de Hölderlin, relacionando-os com a
24

Filosofia9 e Fenomenologia. Na obra de Heidegger, “Hinos de Hölderlin”,


observa-se o respeito e a admiração de um Filósofo para com um Poeta.
Nas palavras introdutórias de Heidegger sobre Hölderlin, “Ainda teremos
de nos manter calados sobre ele por muito tempo...” (HEIDEGGER,
2014, p. 9), ou “Mais uma vez: será que o percebemos? A poesia de
Hölderlin nos é um destino. Ela espera que os mortais lhe correspondam.
O que é a poesia de Hölderlin? Sua palavra é: o Sagrado.” (HEIDEGGER,
2013, p. 11).
É por meio do mistério e por ele mesmo, aqui, evidenciado por
Heidegger, que esta pesquisa desdobra-se sobre a imensidão do
significado da poesia de Friedrich Hölderlin e como esta envereda-se nos
caminhos do pensamento de Heidegger.
O poeta10 é porta-voz da palavra que atravessa os tempos, a história
e por que não dizer também a ciência? Este, guardião da chave do céu e
da terra, tem a história da filosofia como livro sagrado que redescobre o
tempo presente como o primor dos deuses da Grécia Antiga. Hölderlin
exercitava a pulsação poética através das linhas livres da imaginação. O
gênio é a personificação daquilo que sobrevoa entre o humano e o
sagrado. Esse gênio faz a atenção dos homens se voltar para o belo e o
bom; incita-os a buscar, para além de encarnações contingentes na arte ou
na vida, a beleza, ideal e absoluta, do mundo das essências. O mesmo
Sócrates, discípulo de Diotima no “Banquete”, irá dizer, no “Fedro”, que
do “delírio que as musas provocam” nasce a verdadeira poesia, pois “a

9
Hölderlin, estudando a estética de Schiller e Kant, envia uma carta ao amigo
Neuffer explicando seu interesse pela filosofia e seu amor pela poesia: “Existe
de fato um hospital para onde os poetas desditosos da minha espécie podem
fugir sem desdouro - a filosofia. Mas não posso abandonar o meu primeiro
amor, as esperanças da minha juventude, e prefiro soçobrar sem mérito a me
afastar da doce pátria das Musas, da qual só o acaso me desviou.” (PAES, 1991,
p. 21).
10
A prova cabal de que em Hölderlin o filosófico estava a reboque do poético,
vamo-la encontrar na sua obra ulterior ao “Projeto” de 1795, a partir do chamado
ciclo de Diotima, isso tanto nos poemas propriamente ditos quanto no romance
“Hipéríon”, que também pertence ao ciclo: é nele que aparece pela primeira vez
o nome de Diotima. Esse nome Hölderlin o foi buscar em Platão, cujo influxo se
patenteia tão ostensivamente no “Projeto”. Diotima é a enigmática estrangeira de
Mantinéia que ensinou ao Sócrates do “Banquete” ser Eros ou o amor não um
deus mas um gênio, isto é, um ser a meio caminho entre o divino e o mortal, um
mensageiro do mundo dos deuses no mundo dos homens, “liame que une o Todo
a si mesmo”. (PAES, 1991, p. 22).
25

obra poética inteligente se ofusca perante aquela que vem do delírio”.


(PLATÃO apud PAES, 1991, p. 22).

1.2 HEIDEGGER, O FILÓSOFO

O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) inicialmente


desejou ser padre e chegou mesmo a estudar em um seminário. Depois,
estudou na Universidade de Freiburg com o professor Edmund Husserl, o
fundador da Fenomenologia, e tornou-se professor ali mesmo, em 1928.
É seguramente um dos pensadores fundamentais do século XX. Sua obra
magna, “Ser e Tempo”, de 1927, revê a trajetória da metafísica11,
pergunta pelo sentido do ser e do esquecimento que se fez dele na tradição
ocidental. Faleceu em Freiburg em 1976.

Martin Heidegger, mesmo em meio a tantas


controvérsias que cercam sua vida e sua obra, pode
ser considerado um dos filósofos marcantes do
século XX, posto ter refletido precursoramente
sobre as mais diversas questões que afligiriam à
época atual: as mudanças que o século XX
assistiria no Ocidente e que moldariam a face deste
começo de milênio. Foram suas considerações
sobre o mundo e a existencialidade do homem,
cuidado e morte, além de sua crítica aos rumos da
ciência e da tecnologia, da arte e da técnica – aos
rumos do ocidente em geral – juntamente com,
sobretudo, a nova compreensão de tempo e história
que inaugura, que possibilitaram uma crítica
fundamental à filosofia tradicional metafísica, a
qual seria inspiradora de toda uma geração seguinte
de filósofos – quer fossem partidários de suas
ideias ou mesmo seus críticos ferrenhos. (DIAS,
2015, p. 119).

Um Filósofo inspirado nas artes, sobretudo na linguagem das


poesias de Friedrich Hölderlin. “Heidegger é o pensador que, enquanto
pensamento, dispõe o aberto à escuta da própria palavra, do que se guarda
e dignifica no dizer a palavra. Ao escutá-lo, chega ao pensamento a
questão da poesia.” (LIMA E SILVA, 2004, p. 01). A partir do salto

11
Ver, especialmente, o §6 de ST.
26

proporcionado pela simbólica relação poesia-filosofia, Octavio Paz12


bravamente contextualiza, evidenciando a misteriosa possibilidade da
travessia. Segundo o poeta mexicano, inspirado na filosofia de Heidegger,
“Graças à poesia, a linguagem reconquista seu estado original. Em
primeiro lugar, seus valores plásticos e sonoros, geralmente desdenhados
pelo pensamento; depois, os afetivos; e, por fim, os significativos.” (PAZ,
2014 p. 55). Em suma, “O salto-mortal”, a experiência da “outra
margem”, imagem doada por Octavio Paz para nos arremessar a outra
forma de pensamento e condição, implica uma mudança de natureza: é
um morrer e um nascer. Um ir e voltar; por caminhos distintos. Pois,

O poema- boca que fala e orelha que ouve – será a


revelação daquilo que a exclamação indica sem
nomear. Digo revelação e não explicação. Se o
desenvolvimento for uma explicação, a realidade
não será revelada, mas elucidada, e a linguagem
sofrerá uma mutilação: teremos deixado de ver e
ouvir para só entender. (PAZ, 2014, p. 55).

Mas a “outra margem” está em nós. Sem nos mover, quieta, em


repouso; somos arrastados, impulsionados por um grande vento que nos
expulsa para fora de nós; ou para frente de nós. Ele nos joga para fora e,
ao mesmo tempo, nos empurra para dentro de nós. A metáfora do sopro
aparece repetidas vezes nos textos religiosos de todas as culturas: o
homem é desarraigado como uma árvore e arremessado para lá, para a
outra margem, ao encontro de si. E aqui se apresenta outra característica
extraordinária: a vontade intervém pouco ou então participa de forma
paradoxal. (PAZ, 2014 p. 129).
Entre as margens existem as passagens, pontes, caminhos de
pedras, que desempenham “a ligação” ou “diálogo” de extremos. O
filósofo está para a travessia destas margens, ou seja, para a “outra
margem”: aquela da poesia, do sensível, das artes visuais ou de outras que
envolvam as palavras.

12
Octavio Paz (1914-1998) também professor e ensaísta mexicano e nome da
vanguarda da poesia moderna.
27

1.3 HEIDEGGER-HÖLDERLIN OU, DE COMO A POESIA


CONDUZ CERTA FILOSOFIA

A NEUFFER em Março de 1794


Ainda me recordo da doce primavera
Ainda bate alegre o meu coração de criança,
Ainda o orvalho do amor as vistas me oblitera,
Ainda em mim vive a dor e prazer da esperança.

Ainda, doce alívio, meu olhar se inebria


Com o céu de anil e com o verde da devesa.
Dá-me sua taça embriagadora de alegria
A divina, jovem, amorável Natureza.

Esta vida, podes crer, vale bem seus pesares


Enquanto iluminar-nos, pobres, o sol de Deus
E a imagem de um tempo melhor na alma
guardares
E os olhos de um amigo chorarem com os teus.
(HÖLDERLIN, 1991, p. 57).

Nesse ponto do texto dissertativo, nos detemos a pensar e imaginar


os efeitos da poesia de Hölderlin em Heidegger, no horizonte filosófico
deste. No caminho filosófico de Martin Heidegger há sinais luminosos da
presença poética de Friedrich Hölderlin13. Queremos compreender o
impacto da poesia de Hölderlin sobre a Filosofia de Heidegger, sobretudo
naquilo relacionado ao Heidegger tardio. A partir desta disposição,
visualiza-se a conexão do trabalho realizado pelo pensamento ligado ao

13
É necessário registrar aqui nesta nota um mapeamento feito por Claudia
Drucker sobre a relação Heidegger e Hölderlin. Então, “Heidegger dedicou as
seguintes preleções ao poeta Hölderlin: Os hinos de Hölderlin: “Germânia” e “O
Reno” (1934/35, GA 39), O hino de Hölderlin: “Andenken” (1941/42, GA 52) e
O Hino de Hölderlin: “Der Ister” (1942, GA 53). Heidegger dedicou a Hölderlin
um número de ensaios, alguns deles recolhidos na coletânea Explicações da
poesia de Hölderlin (1971, GA 4). Na coletânea Holzwege (1950, GA 5) temos o
ensaio “Para quê poetas?”. Na coletânea Ensaios e Conferências temos “...o
homem habita poeticamente” (1954, GA 7). Postumamente foi publicado um
volume (75) das Obras Completas todo dedicado ao poeta: Zu Hölderlin –
Griechenlandreisen. Não se incluem que em que Hölderlin não diretamente
citado, que não obstante dependem da interpretação heideggeriana do poeta são:
a coletânea A caminho da linguagem (1959), os ensaios “A coisa” e “Construir,
habitar, pensar” em Ensaios e Conferências.” (DRUCKER, 2015, p. 186).
28

sensitivo, experimental, mundano e divino. Aquilo que entre poesia e


filosofia, em habitar distintamente um ao outro, sobrevive em preservar
suas diferenças. Vale frisar aqui, que,

É sabido como o contato com a obra desse grande


poeta alemão já havia marcado Heidegger desde
antes da redação de Ser e Tempo, e que
progressivamente ganharia espaço na obra do
filósofo, através dos vários cursos no final da
década de 30, baseados na interpretação de poemas
hölderlinianos, e daí para frente, marcando uma
crescente importância da questão da linguagem
como campo próprio de desenvolvimento da
questão do ser. (FRANCESCHINI, 2012, p. 22).

Nos textos “...Poeticamente o homem habita...”; “Para quê poetas”


e “Construir, habitar, pensar”, elaborados a partir de um conjunto de
conferências entre 1936 e 1954, é possível identificar a fala explícita de
Heidegger relacionando-se diretamente com a poesia de Hölderlin e sua
profundidade e complexidade, naquilo que pode ser compreendido a
partir do trabalho do pensamento como linguagem. Perguntamo-nos: O
que há de tão precioso na escrita de Friedrich Hölderlin que Martin
Heidegger teve a necessidade de produzir escritos na tentativa de traduzir
e interpretar os versos sagrados do poeta em tempo indigente?
É preciso que o poeta cante a indigência do “tempo da noite do
mundo” (HEIDEGGER, 2014, p. 309). O poeta neste mundo constrói um
habitar. Este cântico é a comunicação original entre sua origem enquanto
parte da divindade esquecida pelo ser-do-ente14 decorrente do desamparo
e indigência vividos pelos mortais sobre a terra, na vivência sem de-mora,
neste mundo. Deste modo,

O ser larga o ente, lançando-o ao risco. Este largar


e lançar é o verdadeiro arriscar. O ser do ente é esta
relação do largar e lançar para com o ente. Cada
ente que existe é o arriscado. O ser é, por

14
Para compreendermos aqui, o que é o ente em Martin Heidegger na sua obra
“Ser e Tempo” é necessário expor a tarefa de uma análise sobre a presença a
partir do parágrafo §9 de Ser e Tempo. “O ente que temos a tarefa de analisar
somos nós mesmos. O ser deste ente é sempre e cada vez meu. Em seu ser, isto é,
sendo, este ente se relaciona com o seu ser. Como um ente deste ser, a presença
se entre a responsabilidade de assumir seu próprio ser. Ser é o que neste ente está
sempre em jogo.” (HEIDEGGER, 2013, p. 85).
29

excelência, o próprio risco. Ele põe-nos em risco, a


nós, os homens. Ele põe em riscos os seres vivos.
(HEIDEGGER, 2014, p. 320).

O ser-do-ente é orientado pela angústia, e sua experiência de falta.


Pela sua experiência com a indigência e com o abismo do mundo ele des-
vela sua história naquilo que o mundo constrói entre céu e terra. No texto
“Para quê poetas”, produzido por Heidegger em meados dos anos 1930,
o filósofo analisa a condição em que os mortais vivem sobre a terra e
como os poetas cantam “a noite do mundo”. Pois, “O tempo da noite do
mundo é o tempo indigente, porque se tornará cada vez mais indigente.
Ele tornou-se tão indigente que já nem é capaz de notar que a falta de
Deus é uma falta” (HEIDEGGER, 2014, p. 309). A falta é cantada pelo
poeta e com isto ele se aproxima do sagrado através das palavras. É
necessário compreender-se que, aqui, o pensar é livre e disposto à poesia.

Livre é o pensar quando se dispõe ao chamado.


Dispor, neste caso, não significa dispor de coisas
presentes no mundo, de modo a convertê-las em
meios para determinados fins. Antes, quer dizer
dispor o aberto à escuta do pensamento, do que se
dignifica como o mais originário ao pensamento, e
por isso também, como o mais inquietante e velado,
o mais distante na sua proximidade. Heráclito
aconselhava que não falássemos à toa das coisas
sagradas. O pensar dispõe o aberto à escuta quando
guarda a palavra ao sagrado. (LIMA E SILVA,
2004, p. 01).

A partir desta inspiração, os poetas têm em sua escuta a espera e o


cuidado com o mundo. Que medida desta indigência parece arrastar a
formação humana? Qual seria o esforço em filosofia da educação para
fazer contrapartida a esta indigência do mundo? Seria a interlocução da
filosofia com a poesia uma possibilidade formativa?
O poeta é poeta, a partir daquilo que produz, escreve e cria. A
palavra é matéria meditativa, é preciso que o pensar esteja em repouso;
que a fala aquiete-se; que a escuta se internalize, para, assim, de-morar-
se na linguagem. “Que na verdade a poesia seja também tarefa para um
pensamento, eis o que ainda temos de aprender neste instante do mundo.
Tomemos o poema como um ensaio de meditação poética”
(HEIDEGGER, 2014, p. 318). Ou ainda, “Se o poeta canta é porque ele
30

pode recebê-lo e devolvê-lo aos homens como doação. Ai se faz a escuta


originária e o casamento entre céu e terra.” (LIMA E SILVA, 2004, p. 3).
O pensador é pensador através daquilo que ele experimenta e,
elaborando pela razão, adquire conceitos e formatos específicos. Martin
Heidegger, ao ler Hölderlin, executa a tentativa de contato com os deuses
foragidos. E a partir do que experimenta pela via da poesia, filosofa que
poderia ser a linguagem através do pensamento, uma tentativa de
compreender o que diz a poesia de Hölderlin em seu significado maior.

O aberto deixa entrar. Mas deixar entrar não


significa: permitir a entrada e o acesso ao
encerrado, como se algo encoberto se devesse
desencobrir para assim surgir como não estando
encoberto. Deixar entrar significa: recolher e
integrar na totalidade obscura dos feixes da
conexão pura. (HEIDEGGER, 2014, p. 237).

Tanto o poeta quanto o pensador estão envolvidos pelas sensações


que os sentidos causam-lhes. O poeta res-guarda a si, como sendo a sua
própria expressão do que produz como uma autocriação e autocultivo.
“Ao percorrer seu caminho e seu destino, a palavra nomeia deuses e coisas
e mede a distância entre o céu e a terra. Nesse nomear e medir, o homem
faz sua morada enquanto se demora na terra.” (LIMA E SILVA, 2004, p.
2).
Um construir-se para habitar-se naquilo que se demora sobre a
terra. “Habitar é estar na proximidade do ser. Se a linguagem fala e é a
casa do ser, não seria inadequado pensarmos a fala como o acontecer que
permite a morada: nela o homem se fixa contra o seu resguardo e
proteção.” (LIMA E SILVA, 2004, p. 02). A partir da fuga dos deuses e
do abandono do homem na terra, a poesia está para o pensamento como
disposta a ser decifrada, pois ela, sendo o que é, jamais o pensar poderá
traduzir em sua grandeza, daquilo que mesmo posto está oculto; a poesia
continua como aquilo que vem dos deuses, que apresenta-se como um
lampejo de uma chama na noite. “Que na verdade a poesia seja também
tarefa para um pensamento, eis o que ainda temos de apreender nesse
instante do mundo” (HEIDEGGER, 2014, p. 318). Tomamos essa
afirmação de Heidegger para justificar nossa entrada em seu pensamento
através das interpretações dos poemas de Hölderlin.
Em uma filosofia como a sua, que muitas vezes, por sua dinâmica
particular, se move em uma espécie de círculo, no qual o destino é a
31

origem e cada ponto remete a todos os outros15, parece haver uma


dificuldade quanto ao começo desse caminho. Se o que buscamos aqui é
o sentido originário desse outro pensar que se dá por meio do poético,
devemos adentrar esse círculo e fazer por nós mesmos esse percurso,
repetir essa experiência do pensamento, pois esse fundar se encontra no
próprio poetizar, que se dá pela palavra e na palavra. (FRANCESCHINI,
2012, p. 22).
O poeta habita a palavra16. A linguagem é sua morada. Desta
maneira, o chamado à construção do habitar poético dá-se pela via da
angústia, desamparo e abandono, frente à fuga dos deuses. Ao vazio de
um mundo sem deus. A elaboração advém do poético, pois é ele aberto
ao chamado. “A falta de Deus anuncia porém algo muito pior. Não só se
foram os deuses e Deus, como também se apagou na história do mundo o
fulgor da divindade.” (HEIDEGGER, 2014, p. 309). Sendo assim,

A poesia diz na sua essência: habitar. Heidegger


lembra um verso de Hölderlin “...poeticamente o
homem habita esta terra...” habitar não significa
aqui habitar em algum lugar ou por algum tempo.
Habitar é estar na proximidade do ser. Se a
linguagem fala e é a casa do ser, não seria
inadequado pensarmos a fala como o acontecer que
permite a morada: nela o homem se fixa e encontra
o seu resguardo e proteção. “o homem fala apenas
somente à medida que co-responde à linguagem, à
medida que escuta e pertence ao apelo da
linguagem”. (LIMA E SILVA, 2004, p. 2).

Para Heidegger, em “Construir, habitar, pensar”, o


desenvolvimento do conceito construir17 relaciona-se com a volta ao

15
Podemos perceber aqui a ascendência de Dilthey sobre Heidegger, quando
Dilthey assevera: “Em cada ponto, a compreensão abre um mundo” (DILTHEY,
2010, p. 184).
16
“O habitar do homem está ao mesmo tempo na errância e na escuta da palavra
em sua travessia, cujo retornar à fala e permanecer na fala, dá morada ao
homem.” (LIMA E SILVA, 2004, p. 2).
17
O que diz então construir? A palavra do antigo alto-alemão usada para dizer
construir, “buan”, significa habitar. Diz: permanecer, mora. O significado próprio
do verbo bauen (construir), a saber, habitar, perdeu-se. Um vestígio encontra-se
resguardado ainda na palavra “nachbar” vizinho. O nachbar (vizinho) é o
“Nachgeburt”, o “nachgbauer”, aquele que habitar proximidade. Os verbos buri,
büren, beuren, beuron significam todos eles o habitar, as estâncias e
32

apelo da linguagem, naquilo que é a sua essência, tal como asseveramos


ainda na introdução desta dissertação. Ao que parece, o significado da
construção deste habitar para o filósofo está no fato da linguagem da
poesia hölderliniana descansar sobre a construção de uma experiência que
habita poeticamente. “No azul sereno floresce a torre da igreja com o teto
de metal. Para ouvir com inteireza as palavras “poeticamente o homem
habita”, é preciso devolvê-las cuidadosamente para o poema. Cabe-nos
pensar essas palavras” (HEIDEGGER, 2009, p. 165).
Aqui, para aprofundarmos o mergulho nas palavras cheias de ar de
Hölderlin, vale a transcrição do poema “In Lieblicher - Azul Sereno”,
traduzido por Marcia Sá Cavalcante Schuback, como segue:

No azul sereno floresce a torre da igreja


Como o teto de metal. Que
Circula cantos de andorinha, que
Circunda o azul mais tocante. O sol
Ergue-se lá bem no alto, colore o metal,
Ao vento, porém, silenciosa, altaneira,
Soa a flâmula. Se alguém
Desde aquelas escadas entre sinos,
Só pode ser um vida de silencio, pois
Destacando-se a fisionomia, é
A imagem do homem que surge.
As janelas de onde tocam os sinos são
Como portais para a beleza. Sim, pois
Os portais são ainda segundo a natureza,
Semelhantes a árvores da floresta. Pureza,
No entanto, é também beleza.
Nesse meio, surge do diverso um espírito honesto.
Tanto mais simples as imagens, mais
Divinas, a ponto de muitas vezes
Realmente se temer descrevê-las. Os celestiais,
porém,
Que são sempre bondade, tudo ao mesmo tempo,
como reinos,
Possuem essa virtude e alegria. Isso o homem
Deve imitar.

circunstâncias do habitar. Sem dúvida a antiga palavra buan não diz apenas que
construir é propriamente habitar, mas também nos acena como devemos pensar o
habitar que ai se nomeia. Quando se fala em habitar, representa-se
costumeiramente um comportamento que o homem cumpre e realiza em meio a
vários outros modos de comportamento. Trabalhamos aqui e habitamos ali. Não
habitamos simplesmente. (HEIDEGGER, 2001, p. 126).
33

Deve o homem, no esforço mais sincero que é a


vida,
Levantar os olhos e dizer: assim
Quero ser também? Sim. Enquanto perdura junto
ao coração
A amizade, Pura, o homem pode medir-se
Sem infelicidade com o divino. É deus
desconhecido?
Ele aparece como céu? Acredito mais
Que seja assim. É a medida dos homens.
Cheio de méritos, mas poeticamente
O homem habita esta terra. Mais puro, porém,
Do que a sombra da noite com as estrelas,
Se assim posso dizer, é
O homem, esse que se chama imagem do divino.
Existe sobre a terra uma medida? Não há
Nenhum. É que os mundos do criador jamais
Inibem o curso do trovão. Uma flor é também bela
por
Florescer ao sol. O olhar encontra, muitas vezes,
No ser da vida coisas ainda mais belas para
nomear
Do que as flores. Bem sei disso! Pois
Agradaria a deus sangrar fisionomia e coração e
de todo já não ser?
A alma, porém, creio eu, deve
Permanecer pura, do contrário enriquece o poder
Com asas de águia, cantos de glória
E a voz de tantos pássaros. É
A vida do ser, a fisionomia.
Riacho, tão belo, parece que tocas tanto
Fluindo assim tão claro, como
O olhar do divino, no teu curso.
Conheço-te tão bem, mas as lagrimas escorrem
Do olhar. Vejo uma vida alegre
Nas fisionomias que a meu redor florescem da
criação por
Não comparar em vão o pombo solitário
No pátio da igreja. O riso, porém,
Parece-me afligir o homem.
Pois tenho de fato um coração.
Queria ser um cometa? Acredito que sim.
Cometas
Têm a velocidade dos pássaros, florescem ao fogo
34

E na pureza são como crianças. A natureza


humana
Não saberia encontrar nada maior para desejar.
A alegria virtuosa também merece ser louvada
Pelo espirito honesto que sopra
Entre os três pilares do jardim.
Um virgem bela deve adornar a pele
Com flores de Mirta, simplesmente por
Ser segundo a essência e o sentimento dessas
flores.
Mirta, porém, se encontra na Grécia.
Quando alguém olha o espelho, um homem, e
Vê ali como que refletida a sua imagem,
igualando-se
Ao homem, a imagem do homem tem olhos, ao
contrário
Da luz da lua. Édipo-rei tem
Um olho a mais, talvez. Os sofrimentos desse
Homem aparecem indescritíveis,
Indizíveis, inexprimíveis. E é por isso
Que o teatro encena algo assim. Mas comigo
O que acontece, lembro-me agora de ti?
Como riachos o fim de algo me arrasta
Rumo ao que se prolonga com Ásia. Naturalmente
Esse sofrimento é do de Édipo. Naturalmente é
por isso.
Será que Hércules também sofreu?
Certamente. Não sofreram também os dióscuros
Em seu convívio fraterno? Pois
Lutar com deus, como Hércules, isso é sofrer. E
Dividir a imortalidade invejando essa vida,
Isso também é sofre.
Mas sofrer é também quando um homem
Está coberto de manchas de verão,
Está coberto de muitas manchas! O
Sol, belo, faz assim:
Tudo eleva numa criação. Encaminha os joviais
com o estímulo
De seus raios como se fossem rosas.
Os sofrimentos que Édipo suportou aparecem
como
O lamento de um pobre a quem falta algo.
Filho de Laio, estranha pobreza da Grécia!
Vida é morte, e morte é também uma vida.
(HEIDEGGER, 2001, p.254-259)
35

Neste sentido o filósofo pensou as palavras do poeta. E Martin


Heidegger não só pensou como exerceu sobre a poesia de Hölderlin
tamanho carinho que de tão cuidadoso escutava as suas palavras como a
um mensageiro. “As construções cegas, sem imagem, da produção técnica
impedem o acesso ao aberto da conexão pura. As coisas outrora crescidas
desvanecem depressa. Elas deixam de poder mostrar a sua própria
identidade através da objectivação.” (HEIDEGGER, 2014, p. 334).
Com efeito, quando trata-se da poesia18 em Hölderlin, no texto
“Para quê poetas?”, o filósofo exibe a dimensão que há na compressão
sobre o abismo que existe no poema “Pão e Vinho”19 de Hölderlin. Este
poema foi inscrito em 1801, considerado um dos poemas supremos do
poeta. Este que no seu título já traz a presença do “pão” como necessidade
diária do humano para a sua alimentação. “Os poetas são os mortais que,
cantando com serenidade o Deus do Vinho, sentem os vestígios dos
deuses foragidos, permanecendo sobre estes vestígios e assim apontando
aos seus irmãos mortais o caminho da viragem.” (HEIDEGGER, 2014, p.
301). Pois,

Ser poeta em tempo indigente significa: cantar,


tendo em atenção o vestígio dos deuses foragidos.
É por isso que, no tempo da noite do mundo, o
poeta diz o sagrado. É por isso que a noite do
mundo é, no idioma de Hölderlin, a noite divina. À
essência do poeta que, em tal tempo do mundo, é
verdadeiramente poeta, pertence o facto de, para

18
Benedito Nunes, em seu texto: “Poesia e Filosofia: uma transa”, afirma “A
filosofia não deixa de ser filosofia tornando-se poética, nem a poesia deixa de ser
poesia tornando-se filosófica. Uma polariza a outra sem assimilação
transformadora.” Parece impossível pensar que exista uma determinação
hierárquica que designe qual das duas artes seria mais profunda. Até porque não
pode ser medível, nem desqualificada este tipo de argumentação. Também nas
obras: “O dorso do tigre” e a “Passagem para o poético”, Benedito Nunes
empreende, de forma ampla, o acontecimento filosófico da poesia na filosofia e
vice-versa. Nunes compreende uma composição cíclica, uniforme, que une
existencialmente a poesia com a filosofia. (NUNES, 2009, p. 40).
19
“Nele se alternam pólos opostos mas, complementares, o dia e a noite, a
lucidez, e a embriaguez, a terra e o céu, o sofrimento e a alegria, numa série
antinômica cuja conciliação se faz à luz do sentimento do divino como uma
dimensão latente da consciência. Há nesse empenho de conciliação, algo de
órfico, na medida em que o orfismo representou, na realidade grega, a
harmonização entre o apolíneo e o dionisíaco.” (PAES, 1991, p. 43).
36

ele, de antemão e a partir da indigência do mundo,


o poetar e a vocação poética se tornarem questões
poéticas. Por isso, os “poetas em tempos
indigentes” têm que poetar a própria essência da
poesia. Onde isto acontece, deve supor-se um
poetar que se conforma com o destino da era do
mundo. Nós temos de aprender a escutar a fala
destes poetas, desde que não nos iludamos em
relação ao tempo que encobre o ser, ao albergá-lo,
de modo que calculamos o tempo partindo do ente
e dissecando-o. (HEIDEGGER, 2014, p. 312).

O “vinho” é benção dionisíaca que traz o celeste para a terra, e


aproxima o humano dos rastros dos deuses foragidos. “A noite do mundo
estende a sua escuridão. Esta era do mundo caracteriza-se pela ausência
de Deus, pela “falta de Deus”.” (HEIDEGGER, 2014, p. 309) Para
Giacoia Jr., “A palavra de Heidegger diz: serenidade para com as coisas,
cuidado preocupado com o mundo, deixar ser, abertura para o segredo -
ethos de meditação sobre os destinamentos do Ser, nascidos de um
pensamento que é, em si mesmo, ação” (GIACOIA JR, 2013, p. 104).
O assombro da angústia em seu eco de indigência fez com que
Heidegger refletisse sobre a partir do ser-do-ente, buscando também sua
habitação na linguagem; e com isso encontrasse em Hölderlin a expressão
do sagrado. Heidegger afirma,

Pensando, o poeta entra na localidade, que se


define a partir daquela clareira do ser, que se tem
vindo a estabelecer como o domínio da metafísica
ocidental em vias de se consumar. A poesia
pensante de Hölderlin ajudou a cunhar este
domínio do pensamento poético. O seu poetar vive
nesta localidade tão familiarmente como nenhum
outro poetar do seu tempo. A localidade que
chegou Hölderlin é um estar-revelado do ser que
pertence ele mesmo ao destino do ser e que, a partir
deste, está votado ao poeta. (HEIDEGGER, 2014,
p. 314).

Heidegger pensou a poesia de Hölderlin. Como o próprio filósofo


afirma “(...) a poesia pensante de Hölderlin ajudou a cunhar este domínio
do pensamento poético”; tanto o cantar do poeta traduz os vestígios
sagrados dos deuses, como esta mesma linguagem é a morada do ser para
habitar este mundo poeticamente. “Mas haveria, e há, esta necessidade
37

única, de experimentar pensar sobriamente aquilo que, dito na sua poesia,


permanece como não dito.” (HEIDEGGER, 2014, p. 314). Já que “A
linguagem é o pronunciamento da fala. Como um ente intramundano, essa
totalidade de palavras em que e como tal a fala possui seu próprio ser
“mundano” pode ser encontrada à maneira de algo à mão.”
(HEIDEGGER, 2010, p. 224), ao que parece, então, a filosofia de
Heidegger é conduzida por um poetar20. O diálogo entre o poético e
filosófico, marca também a pre-sença daquilo que Heidegger irá chamar
de esquecimento do ser para os mortais. Martin Heidegger continua a
afirmar,

Se caminharmos por esta via, ela conduzirá o


pensamento a um diálogo com o poetar, diálogo
esse que pertence à história do ser.
Inevitavelmente, este diálogo é visto pela crítica
histórico-literária como uma violentação não
científica daquilo que ela toma por factos. A
filosofia, por seu turno, considera o diálogo uma
aberração da perplexidade que conduz à exaltação.
Mas o destino prossegue a sua via sem se deixar
perturbar por tudo isto. (HEIDEGGER, 2014,
p.314).

Ela, a palavra21, propulsionadora de vitalidade na vida para o ser


humano. É como uma extensão da linguagem, sua fala compreende sua
existência. “O homem fala apenas e somente à medida que co-responde à
linguagem, à medida que escuta e pertence ao apelo da linguagem.”
(HEIDEGGER, 2001, p. 167). Ele se descobre na vigência da elocução
que compõe no campo dos sentidos a sua presença no mundo enquanto
ser intramundano. Compreende-se que,

20
Outro poeta presente em “Para quê poetas?” é R. M. Rilke. Inclusive a
observação que o filósofo tece em defesa do poeta enquanto re-velador dos
vestígios dos deuses, e aquele a quem a palavra que tudo diz, ainda permanece
oculta. A poesia autêntica de Rilke resume-se, numa paciente antologia, aos dois
pequenos volumes das Elegias de Duíno e dos Sonetos a Orfeu. O longo caminho
até esta poesia é ele próprio, uma interrogação poética. Sobre este caminho, Rilke
experiência mais claramente a indigência do tempo. O tempo permanece
indigente, não apenas porque Deus está morto, mas também porque os mortais já
não conhecem nem dominam a sua própria mortalidade. (HEIDEGGER, 2014, p.
315).
21
“A linguagem é o pronunciamento da fala”. (HEIDEGGER, 2010, p.224).
38

Entretanto, até mesmo o vestígio do sagrado se


tornou desconhecido. Fica por saber se nós ainda
experienciamos o sagrado enquanto vestígio que
nos conduz à divindade do divino ou se apenas
deparamos com um vestígio do sagrado. Não fica
claro o que poderia ser o vestígio para o vestígio.
Fica a questão de saber como um tal vestígio se nos
poderia revelar. (HEIDEGGER, 2014, p. 316).

Ainda em relação à poesia de Hölderlin, Heidegger acrescenta:


Poesia é deixar-habitar, em sentido próprio. Mas como encontramos
habitação? O que o sentido do habitar heideggeriano poderia dizer ainda
à filosofia da educação pre-ocupada na formação humana? “Mediante um
construir, é que se pode deixar-habitar, poesia é um construir.”
(HEIDEGGER, 2001, p. 167). Nesse aspecto, esta filosofia é habitada
pela poesia, ao passo que também pode ser construída pela mesma. Pois
construir, antes de tudo, é habitar. Logo, a partir disso o sentido da
aparição de Hölderlin, nas palavras de Heidegger, dá-se pela visualização
daquilo que pode ser construído e habitado poeticamente na linguagem.
Pois,

Poeticamente o homem habita...A rigor, podemos


assumir que os poetas habitem poeticamente. Mas
como entender que “o homem”, ou seja, que cada
homem habite sempre poeticamente? Não será o
habitar incompatível com o poético? Nosso habitar
está sufocado pela crise habitacional. E mesmo que
fosse diferente, o que hoje se entende por habitar
está açulado pelo trabalho, revolvido pela caça de
vantagens e sucesso, enfeitiçado pelo lazer e
descanso organizados. O espaço e o pouco tempo
que, no modo atual de habitar, ainda resta para o
poético acontece, no melhor do casos, quando nos
ocupamos das letras, do belo espiritual, veiculado
em publicações ou por outros meios
comunicacionais. A poesia ou bem é negada como
coisa do passado, como suspiro nostálgico, como
vôo ao irreal e fuga para o idílico, ou então é
considerada como uma parte da literatura.
(HEIDEGGER, 2001, p.165).

Para que seja possível a construção de um habitar, segundo


Heidegger, inspirado no Poeta, é necessário que aquilo que,
39

comunicando-se com o sagrado, esteja encoberto e velado, mas está ao


aberto como sendo vestígios dos deuses foragidos. Ou seja, permanece
ainda como abertura, para cantar a “noite do mundo”. Ao que nota-se no
texto Para quê poetas? Seria a falta enquanto indigência humana,
desalento no mundo abandonado pelos deuses, molas propulsoras do
trabalho do filósofo frente ao intraduzível da linguagem da poesia
hölderliniana? Para isso a poesia de Hölderlin em si, mostra-se como um
portal aberto ao mundo do sagrado. E tornando-se assim, fonte de acesso
ao que entreabre-se aos mortais pelos vestígios dos deuses foragidos.
A poesia seria então, neste caso, um retorno à escuta fundamental
do ser-aí (Dasein). O de-morar no aberto de si, tomar como presente um
retornar à sua história ancestral. Então, “Heidegger é o pensador que,
enquanto pensamento, dispõe o aberto à escuta da própria palavra, do que
se guarda e dignifica no dizer da palavra. Ao escutá-lo, chega ao
pensamento a questão da poesia. Seria a poesia uma escuta e um dizer
originários?” (LIMA E SILVA, 2004, p. 1).
Heidegger utiliza da poesia de Hölderlin naquilo que encontrou
dentro dos seus silêncios. A escuta do divino naquilo que, entre o céu e a
terra, está encoberto é re-velado pelo poeta em tempo indigente. Deste
modo, a filosofia de Martin Heidegger é impactada por uma escuta
fundamental inerente das palavras da poesia hölderliniana. Uma pausa no
tempo meditativo da de-mora. A poesia é a fala do silêncio, embora ela
mesma seja a preparação para uma escuta. Na poesia existem tantas vozes
juntas e um abismo fundamental. O pensamento pode ser através das
variações de vozes: o silêncio, a meditação, a morte, a falta e a angústia...
40
41

CAPÍTULO 2 - A POESIA DE HÖLDERLIN COMO EXTENSÃO


DO PENSAMENTO – A CONSTRUÇÃO DO HABITAR POÉTICO

“Em dias mais jovens, de manhã eu ria,


De tarde chorava; agora mais velho,
Começo o meu dia em dúvidas, porém
Sagrado e sereno me é o seu final.”
(HÖLDERLIN, 1991, p. 67)

Neste capítulo deseja-se apresentar, dentro do campo da


possibilidade da palavra enquanto aquilo que é dialogado com o
pensamento, a proposta da construção do habitar poético para o ser-no-
mundo um lugar de de-mora, reflexão e cura. Como um marco ou um
registro das variadas presenças da poesia de Friedrich Hölderlin na
estrutura do pensamento de Martin Heidegger. Monta-se um arcabouço
estrutural para o “habitar poético”, observado a partir da análise do texto
“Para quê poetas?” de Heidegger. Neste texto, o poeta é aquele que canta
a “noite do mundo” e resguarda no seu habitar os vestígios dos deuses
foragidos fazendo da sua poesia uma preparação para escuta cuidadosa,
aquela que respeita o silêncio internalizado pelo locutor.

2.1. O QUE É ISTO, A POESIA?

A palavra dos poetas evoca os cânticos dos deuses. Toca o caminho


vertiginoso do sagrado entre o céu e a terra. A poesia22 é um elo entre o
humano23 e sua habitação sagrada. Para Martin Heidegger “É a poesia que

22
Para o poeta mexicano Octavio Paz, a dimensão da poesia enviesada pela
existência do poeta é o que ele produz na sua existência em curso. “Quando um
poeta encontra sua palavra, logo a reconhece: já estava nele. E ele já estava nela.
A palavra do poeta se confunde com o seu próprio ser. Ele é a sua palavra” (PAZ,
2014, p. 53)
23
“Quem se mede pelo desconhecido são os mortais. Os mortais são os homens,
enquanto se demoram na terra e “habitam o mundo, como mundo”. Nesta demora,
o homem levanta olhos para o céu e, ao levantar os olhos, toma a medida: a
medida do que desconhece. No ordinário das palavras, a poesia revela o
extraordinário suspenso na terra e abrigado no céu. Mesmo que os homens de
hoje inventem os mais fantásticos foguetes e robôs de exploração espacial, jamais
seus braços darão conta de cobrir o horizonte onde se guarda o ser, já que tudo
aquilo que é torna-se amplidão no levantar de olhos entre o céu e a terra.” (LIMA
E SILVA, 2004, p. 4)
42

traz o homem para a terra, para ela, e assim o traz para um habitar”
(HEIDEGGER, 2001, p. 169).
Uma anunciação dos deuses naquilo que o humano, sente em sua
mundaneidade. “O habitar poético sobrevoa fantasticamente o real. O
poeta faz face a esse temor e diz, com propriedade, que o habitar poético
é o habitar “esta terra” (HEIDEGGER, 2001, p. 169). O ser como o aí,
lançado, tem a necessidade de habitar. Por sua vez, o ser-o-aí habita a
linguagem. Portanto o ser lançado no mundo é, por sua vez, portador de
poesia e a sua de-mora nesta terra é a expressão do cuidado de si e do
mundo. Pois,

Quanto mais poético um poeta, mais livre, ou seja,


mais aberto e preparado para acolher o inesperado
é o seu dizer: com maior pureza ele entrega o que
diz ao parecer daquele que o escuta com dedicação,
e maior a distância que separa o seu dizer da
simples proposição, está sobre a qual tanto se
debate, seja no tocante à sua adequação ou à sua
inadequação. (HEIDEGGER, 2001, p. 168).

Esta poesia é a sua própria escuta no mundo. É escutar-se no


mundo. O seu voltar-se é como um retorno a si, em sua voz fundamental,
o retorno à linguagem. O homem cuida do crescimento das coisas da terra
e colhe o que ali cresce. Cuidar e colher (colere, cultura) é um modo de
construir. Ao se debruçar sobre os poemas de Hölderlin, Heidegger
recomenda, na obra “Hinos de Hölderlin”,

Se nos debruçamos sobre Hölderlin numa lição,


continua a ser inevitável falarmos deste poeta e da
sua poesia. Simplesmente, <falarmos sobre>
poesia só pode ser nefasto, visto que, em caso de
necessidade, um poema já diz por si só o que tem
de dizer. Dissecá-lo, afinal, só perturba, o <prazer
estético>. (HEIDEGGER, 2004, p.12)

Estar na presença de Hölderlin sempre é um risco. Os poemas de


Hölderlin são uma anunciação daquele tempo que o homem haveria
esquecido. O habitar entre Hölderlin e Heidegger é uma aventura poética-
filosófica sempre a ser experimentada como uma re-velação do ser-aí
como feitura de si mesmo no mundo.
“O homem constrói não apenas o que se desdobra a partir de si
mesmo num crescimento. Ele também constrói no sentido de edificare,
43

edificando o que não pode surgir e manter-se mediante um crescimento.”


(HEIDEGGER, 2001, p.168) O retorno àquilo que sempre esteve frente
ao ser, como diz Lima e Silva, sobre a guarda do ser, “A autêntica poesia
dá guarda ao ser. Sua palavra não é mero designar de coisas, nem um
nome para significar algo, ou ainda, uma proposição que distingue o
verdadeiro do falso.” (LIMA E SILVA, 2004, p. 09).
A linguagem convoca o ser para habitar este mundo poeticamente.
De fato, para este acontecimento apropriativo24 é necessário que haja vista
para o céu. Para Heidegger o acontecimento apropriativo é a convocação
do ser lançado enquanto facticidade. Todavia, o apelo acena, e o ente
compreende esse aceno e vai apropriar-se dele de forma prática, em
atuação. Neste caso, o exercício proporcionado pela linguagem é que o
ser pratique cada vez mais o poético enquanto busca pelo brilho do sol,
tocando assim o vagalume dos vestígios sagrados dos deuses. Isso vai se
dar como acontecimento, que é o Ereignis, acontecimento fático, evento
histórico, que tem o poder de findar uma época e iniciar outra, levantando
os olhos, “levantar dos olhos para o céu”25. Pois assim, “Nessa demora, o
homem levanta os olhos para o céu e, ao levantar os olhos, toma a medida:
a medida do que desconhece. No ordinário das palavras, a poesia revela
o extraordinário suspenso na terra e abrigado no céu.” (LIMA E SILVA,
2004, p. 4).
O ditar poético é o desdobramento perfeito daquilo que ainda não
foi tocado pela racionalidade.

24
Sobre o acontecimento apropriativo em Martin Heidegger é “a
sobreapropriação do homem na essência, que tem de preservar, perder, inquirir e
fundar a verdade do seer (o adensamento histórico do homem). Assim como o
homem é apropriado em meio ao acontecimento pela verdade, ele pode
respectivamente se conter e se contém. A conservação da guarda e proteção do
acontecimento apropriativo. A cautela da vigília e a atenção dos guardiões
provêm da nobreza e da pobreza do homem da história do seer. Obediência como
consequência, que se segue à transversão - à despedida em meio ao acaso. A
cautela atenciosa da experiência do acontecimento apropriativo que é a dor da
exportação resolutora do acaso da diferença e da despedida do início.”
(HEIDEGGER, 2013, p. 190).
25
Nesta expressão “Levantar os olhos” em Heidegger é possível observar a
“medida” em que o homem habita esta terra. Ele está abaixo do céu, ou seja, os
mortais necessitam e evocam o retorno dos deuses enquanto aqueles que habitam
sobre a quadratura. “Mas justo nesse esforço e por esse esforço concede-se ao
homem levantar os olhos para os celestiais. Não obstante esse levantar os olhos
percorra toda direção acima do céu, permanece no abaixo da terra.”
(HEIDEGGER, 2001, p. 172)
44

O ditar poético é anterior a toda e qualquer


produção de coisas no mundo, porque nele se
revela o autêntico habitar dos mortais, que falam à
medida que respondem ao chamado da linguagem
e se mantêm à escuta do ser, nomeando e fazendo
coisas. O falar e o ouvir dizem o modo originário
de habitar dos homens. Na origem, o essencial se
demora na palavra dos mortais e guarda o mistério
entre as coisas e o mundo, entre o céu e a terra. O
mistério se faz na escutam que espera o inesperado
da palavra. O que vem primeiramente à palavra, de
tal modo que evoca deuses e aproxima os mortais
entre si, é o canto. O canto se deixa cantar. (LIMA
E SILVA, 2004, p. 11)

A poesia sempre será velamento e desvelamento, naquilo


compreendido como mistério, apenas aberto como aparecimento. Habitar
um corpo poeticamente é, sobretudo, estar disposto à escuta. Ao desvelar
aquilo que edificado pela razão preocupa-se em buscar compreensão e
respostas, necessita escuta e aprimoramento para se de-morar no mundo.
Inspirado pela beleza das coisas do mundo, ou também ancorado
na tragédia da existência, este mesmo ser vibra aquilo que seu lado
misterioso abraça, seja racionalmente ou poeticamente, o ser-o-aí está
para o habitar, este segue rumo ao chamamento da linguagem. Mesmo
que no descompasso daquilo advindo da arte, o infinito-imortal apresenta-
se em forma de palavra, porque “Ao nomear, a palavra da autêntica poesia
evoca mortais e imortais. Ao medir, aproxima a distância entre o céu e a
terra. Mortais e imortais, céu e terra” (LIMA E SILVA, 2004, p. 07).
A medida da poesia está entre o céu e a terra. No levantar dos olhos
para o céu. Dentro da perspectiva filosófica, a poesia é observada a partir
da análise. O próprio conceito de poesia é escasso, em relação à sua
magnitude de sentidos e elucubrações. O filósofo tenta decifrar este
fenômeno, com faculdades racionais. Mas segundo Hölderlin, a própria
poesia é uma expressão da manifestação do sagrado, a canção para os
deuses. O poeta é o guardião das palavras sagradas dos imortais e porta
voz das ojerizas mortais e profanas da passagem por este mundo. O poeta,
no seu poema “Na unsre grossen dichter” que em português, na tradução
de José Paulo Paes, ficou “Aos nossos grandes poetas”, ilustra de modo
vigoroso como o próprio poeta elabora seu cantar a aquilo que cantam os
deuses.
45

As margens do Ganges ouviram o triunfo


Do deus da alegria, o jovem Baco, quando
A tudo conquistando veio desde o Indo
Com o vinho sagrado despertar os povos.

Despertai, poetas, despertai os que ainda


Estão dormindo, dai-nos leis, dai-nos vida.
Triunfai, heróis, vós que como Baco sois
Os únicos com direito de conquista.
(HÖLDERLIN, 1991, p. 95).

Do modo com que a poesia é proferida, ou cantada, é o poeta quem


escuta as vozes dos deuses. A sua linguagem é fundada para sobrevoar
entre o céu e a terra. O cântico de Hölderlin é um chamamento para
aqueles que ainda não ouviram, no sentido de escuta do mundo. Escutar
o eco da “noite do mundo”. Mas é o poeta que, com intimidade, canta o
tempo, a vida e a natureza. A poesia é uma ofensa ao tempo do
instantâneo. Uma ofensa ao tempo das coisas. A poesia canta sobre o
tempo da quadratura, “O que diz genuinamente é o poema.”
(HEIDEGGER, 2011, p. 12).
O poeta ouve além do tempo. É valiosa a pausa meditativa que há
na palavra poética, visto que Heidegger observou a partir de suas análises
a pre-sença de outro tempo nas poesias de Hölderlin. Um outro tempo,
que pudesse estar relacionado à meditação, de forma que, ao passo que a
linguagem da poesia soa nos ouvidos dos seres, o que é captado pelos
sentidos fica como algo que já passou, ou está aparecendo como algo
vertiginoso. O tempo da poesia é um outro tempo fora do tempo do
“agora”, pois é o tempo da linguagem, segundo Heidegger.

No dito, a fala se resguarda. No dito, a fala recolhe


e reúne tanto os modos em que ela perdura como o
que pela fala perdura- seu perdurar, sem vigorar,
sua essência. Contudo, na maior parte das vezes e
com frequência, o dito nos vem ao encontro como
uma fala que passou. (HEIDEGGER, 2011, p. 12).

Martin Heidegger leu nas poesias de Hölderlin (e Rilke, tal como


referimos em nota anterior) a linguagem do mundo do tempo indigente.
Viver em um mundo no tempo de indigência pressupõe a busca e o desejo
de algo que cante o tempo da “noite do mundo”, por isso Heidegger
afirma “Longo é o tempo indigente da noite do mundo. Terá que demorar
muito até esta chegar ao seu meio próprio.” (HEIDEGGER, 2014, p. 311).
46

Porém, Hölderlin é o poeta que canta a indigência fundamental do


homem. Heidegger, sobretudo, “escutou” os vestígios dos deuses
foragidos através da poesia. A noite do mundo seria para Heidegger a
materialização da falta de deus, da solidão, um tipo de indigência
fundamental.
Na obra heideggeriana “A Caminho da linguagem” o filósofo
busca escutar a fala da linguagem. De modo que a busca dá-se pela
atenção a esta como “escuta”. O poema é uma fala que vem de outra
ordem do mundo, uma fala que só adentra os ouvidos daqueles que na
escuta se de-moram no tempo da linguagem. A dimensão da construção
do habitar poético está na escuta da linguagem. O apelo da linguagem
para Heidegger dá-se através do chamamento ou do apelo da própria
linguagem para o ser. E esta poesia, por sua vez, encontra-se na
construção desta habitação entre o céu e a terra. Entre a fala e a escuta,
pois assim sendo, “É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e
assim, o traz para um habitar”. (HEIDEGGER, 2001, p. 169).
No decorrer desta construção em Martin Heidegger influenciada
por Hölderlin, é possível observar que a poesia se de-mora sobre a terra,
de modo que estapaira entre a terra e o céu, a partir da fala e escuta do
mundo. Esta de-mora é o que antecede e acompanha quem mora. É o ir
em direção à linguagem.

A palavra da poesia é o canto das experiências, e


antes ainda, o canto à experiência fundamental de
ser e estar-se no mundo. O canto aproxima os
mortais sob a mesma amplidão do céu, enquanto se
demoram na terra. Esta aproximação do canto
nomeia o ente pela primeira vez, ao deixá-lo vir a
ser ente enquanto ente. (LIMA E SILVA, 2004, p.
9)

A poesia é de forma fundamental aquilo que, chamado de


linguagem, origina a fala e a escuta do mundo e re-vela o ente.
Desnudando outra forma de história do ser, aqui, pensa-se como
possibilidade a filosofia como via de encontro para a poesia e vice-versa.
Desta maneira,

A própria linguagem é poiesis26 em sentido


essencial. Mas porque a linguagem é aquele

26
O sentido heideggeriano de poiesis aqui, é compreendido como aquilo
inaugural que advém da linguagem. A poiesis é a fala inaugurante do
47

acontecimento no qual, a cada vez, o sendo como


sendo se abre pela primeira vez para o ser humano,
por isso é a poesia, a poiesis em sentido mais
restrito, a mais originária poiesis, ou seja, porque é
a poesia primordial, mas a poesia apropria-se na
linguagem, porque esta conserva a essência
originária da poiesis. (HEIDEGGER, 2010, p. 189)

A construção sinalizada poeticamente por Heidegger vem dizer


que dentre todas as construções realizadas pelo ser, existe uma que diz e
que dita o ser poeticamente. Possuir esta escuta fundamental é aproximar-
se da guarda que vela e re-vela o ser. Dentro das perspectivas
apresentadas até agora nesta pesquisa, fala-se de um filósofo implicado
no mistério da poesia ao passo que há também, um poeta que pensou um
habitar “poeticamente”. Drucker pontua o atravessamento da arte de
Hölderlin nas obras de Heidegger “Parece-me inquestionável que, se ele
escreveu uma filosofia da arte, ela se encontra nas suas interpretações de
Hölderlin, que compõem a maioria dos textos dedicados às artes”
(DRUCKER, 2015, p. 186).
Nas palavras de Heidegger, “O meu pensamento está ligado
inevitavelmente à poesia de Hölderlin. Não considero Hölderlin um poeta
qualquer, cuja obra foi tematizada, como muitas outras, pelos
historiadores da literatura. Hölderlin é, para mim, o poeta que indica o
futuro, que aguarda o deus” (HEIDEGGER apud DRUCKER, 2015, p.
187). Através de toda a compreensão exposta até agora, é sabido que,
além de ter desenvolvido uma filosofia, Martin Heidegger fundou uma
Filosofia da “arte” inspirada na hermenêutica ontológica que ao passo que
se desdobrava através do fenômeno poético, fez surgir nas suas
entrelinhas as sombras e claridades da poesia de Hölderlin no seu
pensamento nos escritos para a filosofia.
Hölderlin seria para Heidegger um poeta que traria anúncios de
uma presença nunca encontrada pelo filósofo em nenhuma outra
literatura. Os cânticos de Hölderlin anunciavam o futuro na quadratura
dos deuses nas suas poesias que cantavam a infância; o amor; a natureza;

desvelamento do sendo. “A respectiva linguagem é o acontecimento daquele


narrar inaugural no qual historicamente surge para um povo seu Mundo e a Terra
se guarda como a fechada. O narrar inaugurante que projeta é aquele que, na
preparação do narrável inaugurante, traz ao mesmo tempo ao Mundo o não-
narrável inaugurante enquanto tal. Em tal narrar inaugural se cunham,
previamente, para um povo histórico as noções de sua essência, isto é, de seu
pertencimento à historia do mundo.” (HEIDEGGER, 2010, p. 189)
48

o tempo; o Éter; a vida e a morte. Na poesia “Na den Aether” traduzida


para o português “Ao ÉTER”:

Ninguém, entre os homens e os deus, foi-me tão


fiel
E bom como o foste, Pai Éter; antes já que minha
mãe
Me tomasse nos braços para aleitar-me em seu
seio,
Tu me enlaçaste com meiguice e me verteste no
peito
Infante a poção do céu e no ouvido o sacro sopro
teu.

Não é só de alimento terrestre que vivem os seres


Mas és tu que os nutres a todos com teu néctar,
Pai!
De tua fonte sempiterna corre e flui por todos
Os condutos da vida teu ar vivificante.
Por isso os seres te amam e forcejam para o alto,
Buscando-te o tempo todo em ditoso crescimento.

Celeste! Não te procura a planta com seus olhos,


E o arbusto rasteiro não te estende os braços
tímidos?
Para encontrar-te é que a semente reclusa rompe a
casca;
Por ti vivificada, e para banhar-se em tuas vagas,
É que o bosque sacode de si, roupa excessiva, a
neve.
Os peixes também sobre à tona e saltam anelantes
Amiúde ganham asas quando a ânsia impetuosa,
O secreto amor por ti, os impele para cima.

O soberbo corcel desdenha o chão; aço em arco,


busca
Com o pescoço as alturas, mal toca a areia com os
cascos.
Como a brincar, o pé de gamo roça o talo da relva
E transpõe, zéfiro, o riacho a espumejar
impetuoso,
Saltando-o uma e outra vez, visível a custo entre
os arbustos.
Mas os favoritos do Éter, os pássaros ditosos,
Vivem e brincam no sempiterno pórtico do Pai!
49

Há lugar para todos. De nenhum a senda está


marcada.
Pequenos e grandes se movem livres pela casa.
Alegra-me tê-los sobre a cabeça, e o coração,
Num prodigioso anseio, voa até eles; pátria
amável,
O Éter me chama lá do alto, e aos cimos dos
Alpes
Eu quisera subir para gritar à águia apressada
Que, como outrora o menino eleito aos braços de
Zeus,
Me levasse do cativeiro ao pórtico celeste.

Néscios, vagamos de um para outro lado; com a


vide
Errante que, sem esteio, cresce no rumo do céu,
Alastramos pelas zonas da Terra, Oh meu Pai
Éter!
Anseios morar no teu jardim conosco vão.
Às ondas do mar nós nos lançamos, em planícies
mais livres
Fartamo-nos, e brinca a infinda vaga com a nossa
quilha
E se alegra o coração com o poder do deus do
mar.
Mas isso não basta, oceano mais fundo nos seduz,
Onde a vaga se move mais ligeira – Oh! Quem
pudesse
Às costas de ouro impedir o nosso barco errante!

Mas enquanto anseio por essas lonjuras


esfumadas,
Onde tua vaga azul envolve as praias ignotas,
Múrmuro, do alto das árvores floridas do pomar,
Vens tu mesmo, Pai Éter, aplacar-me o coração,
E, propenso como outrora, vivo entre as flores da
Terra.
(HÖLDERLIN, 1991, p. 64-65).

Fazer a escuta desta poesia é um exercício para a alma. Um


trabalho de escuta que busca um tempo outro, a convite da poesia. Um
trabalho direcionado a testar o nível das sensibilidades. Esta poesia de
Hölderlin ressoa o que não parece estar no presente. Este poema é um
salto rumo ao mistério. Um salto ao que sobrevive entre o céu e a terra e
50

pertence à escuta. É como um diálogo com o mistério que paira no mundo


do sagrado “A poesia tem um papel originário, porque fala do ser-aí como
constituidor de mundo.” (DRUCKER, 2015, p. 192)
Decifrar um poema é desnudá-lo do sentido próprio dele mesmo.
A poesia é possuidora daquilo que constitui o ser-aí de sentidos. O poema
precisa ser sentido, como se tocasse a pele do ser-aí, ao passo que toca os
sentidos no seu tão vasto dicionário. A mensagem de Hölderlin é um
prelúdio dos deuses próximos entre o céu e terra. Embora neste poema
note-se o traço cristão de Hölderlin, ademais o chamamento pelo sentido
do ser e pelo cuidado. Neste parágrafo,

Néscios, vagamos de um para outro lado; com a


vide
Errante que, sem esteio, cresce no rumo do céu,
Alastramos pelas zonas da Terra, Oh meu Pai
Éter!
Anseios morar no teu jardim conosco vão.
Às ondas do mar nós nos lançamos, em planícies
mais livres
Fartamo-nos, e brinca a infinda vaga com a nossa
quilha
E se alegra o coração com o poder do deus do
mar.
Mas isso não basta, oceano mais fundo nos seduz,
Onde a vaga se move mais ligeira – Oh! Quem
pudesse
Às costas de ouro impedir o nosso barco errante!
(HÖLDERLIN, 1991, p. 64-65).

Heidegger esteve à frente de Hölderlin por um século de diferença.


Mas como tal poesia esteve tão presente sendo um cântico do passado?
Foi no passado que Heidegger buscou Hölderlin, com seus cânticos
presentes e para o futuro. Como um retorno no além tempo, uma travessia
rumo ao encontro com os vestígios dos deuses foragidos. Nisto, também,
a poesia vela e re-vela um tempo sobre o outro, que se inicia e finda em
devir. É como um ver além do mundo, no tempo meditativo e que repousa
a consciência do sagrado. Como uma abertura para a transcendência do
ser-aí,

Há uma relação entre o que se chama “abertura” em


Ser e Tempo, “transcendência” em “O que é
metafísica?” e o que se chama “exposição” Agora.
Estes termos se igualam, na medida em que devem
51

ser tomados ontologicamente e não apenas


onticamente. Em virtude deles é que o ser-aí adora
esta ou aquela interpretação do ente em sua
totalidade. Foi preciso dizê-lo para dar sentido ao
que Heidegger chama “fundação do ser pela
poesia”. Nas preleções “Os Hinos de Hölderlin”,
“Germânia” e “O Reno” afirma-se: “A poesia
funda o ser (seyn). A poesia é a língua originária de
um povo. Nessa língua acontece a exposição ao
ente que desse modo se franqueia. O homem é
histórico como consumação dessa exposição.”.
Dois anos mais tarde, em “Hölderlin e a essência
da poesia”, Heidegger repete: “a poesia,
considerada do ponto de vista da sua essência, é
nada mais, nada menos, que a “fundação do ser
pela palavra””. (DRUCKER, 2015, p. 193).

O ser funda-se pela palavra. A partir do ponto de vista que o ser-aí


está “aberto”, “exposto” ou “suspenso no nada” é a palavra do poeta que
canta o fundamento sem fundo do abismo do mundo. Hölderlin
representaria o trans-passar de uma era a outra, a partir daquilo que ele
mostrou dele mesmo como obra poética reflexiva para a filosofia de
Heidegger. Cláudia Drucker explicita “É hora de perguntar novamente o
que faz de Hölderlin um poeta-pensador, mais que um pensador-poeta, e
como, a partir dessa condição, devemos entender o seu papel de
anunciador do deus vindouro.” (DRUCKER, 2015, p. 187)
Ao que concerne ao sensível, pode-se interpelar-se que é a partir
do reconhecimento do estranho que nota-se, a partir do sensível, o ser-aí.
A fala poética transpassa o ser-do-ente.

O homem irrompe no seio do ente, ele quebra a sua


uniformidade. O homem, na sua autocompreensão
poética, é o reflexo do estranho, porque não forma
uma unidade com ele. Sendo um ente estranho a
todos os entes, encontra o seu caminho de forma
“não-natural” mediante a linguagem e história: eis
o discurso originário e fundador do poema de
Sófocles. (DRUCKER, 2015, p. 193).

A poesia é uma abertura para o ser-aí constituído pelo estranho. A


poesia é o intermédio para que o poeta escute a mensagem de onde estão
os deuses.
52

Do ponto de vista do ser-aí “aberto”, “exposto” ou


“suspenso no nada”, tudo o que é fenomenicamente
sólido e permanente recebeu a sua permanência de
algo diferente de si mesmo. O sentido
heideggeriano de fundamento é tal que inverte o
habitual, pois ele, do ponto de vista do fundado,
sempre carece da solidez exigida de um
fundamento. Assim, a fundação poética do ser
significa, em primeiro lugar, a inversão da atitude
cotidiana e a subsequente mudança de sentido da
fundação. Algo tão frágil quanto a palavra pode ser
inaugural e decisivo, no sentido em que enuncia o
que move o ser-aí a criar algo permanente (história,
cultura). (DRUCKER, 2015, p. 194)

A poesia é considerada como aquilo que, aproximando o humano


para a construção do seu habitar, proporciona uma habitação poética no
mundo do tempo indigente. É a possibilidade, naquilo que, aberto, traz à
voz o sagrado e o cuidado de si e do mundo pois o ser é um ser-para-o-
mundo e ser-para-a-morte.
Sempre e a cada vez que a poesia é pronunciada, algo é inaugurado
na instância da linguagem. Trazer a vivência da poesia para o diálogo
formativo é voltar àquilo que está constantemente disposto à fala, a de-
morar-se na escuta do ser. Educando-se para a escuta, a fala estará
guardada para o cuidado e o ser res-guardado pela palavra. “Pensar e
poetar são duas modalidades de dispor o pensamento a serviço da
linguagem, duas maneiras de habitar po(i)eticamente a linguagem”
(GIACOIA JR, 2013, p. 46). Heidegger traz como traço em sua filosofia
a pausa poética para uma escuta atenta, que com delicadeza convide o ser
a tempo de habitar poeticamente este mundo. Porque,

A poesia de um poeta está sempre impronunciada.


Nenhum poema isolado e nem mesmo o conjunto
de seus poemas diz tudo. Cada poema fala, no
entanto, a partir da totalidade dessa única poesia,
dizendo-a sempre a cada vez. Do lugar da poesia
emerge a onda que a cada vez movimenta o dizer
como uma saga poética. Longe de abandonar o
lugar da poesia, a onda emerge permite que toda a
movimentação do dizer seja reconduzida para a
origem sempre mais velada. (HEIDEGGER, 2011,
p. 28).
53

A letra da poesia vem para a escrita como um lampejo interestelar


entre o silêncio e o grito. A pausa e o comando. Há na poesia o não-dito
e logo o inatingível pela razão. O mistério. A poesia não pode ser
traduzida porque ela vem de uma escuta desse mistério. Aquilo que é
pronunciado na poesia é resguardado entre céu e terra, deuses e mortais.

2.2. “...POETICAMENTE O HOMEM HABITA...” A LINGUAGEM –


CONSTRUÇÃO E CRISE SOBRE O HABITAR

Ao que concerne ao segundo Heidegger27 (NUNES, 2016), ou ao


Heidegger tardio, o pensador da Floresta Negra, foi aquele que buscou o
cântico dos poetas, o acesso à linguagem, aos deuses foragidos, através
do debruçar-se sobre as questões do mar profundo do ser enquanto
“linguagem”. Benedito Nunes, na sua obra “Heidegger”, situa os
processos que foram importantes para compreender as grandes facetas
heideggerianas. Então,

Antes que se iniciasse, em 1978, a publicação das


Obras Completas (Gesamtausgabe) de Heidegger,
era costume dividir o pensamento do filósofo em
duas etapas: a primeira de 1927 – data da
publicação de Ser e tempo – a 1946, data da carta
Sobre o Humanismo, endereçada a Jean Beaufret -
, e a segunda de 1946 a 1976, ano da morte do
filósofo. Preenchida a primeira Ontologia
fundamental delineada em Ser e tempo e
especificada nos ensaios e conferências publicados
até 1935, que desse período eram os únicos escritos
conhecidos, a segunda consubstanciava, em
trabalhos das décadas de 1950 e 1960
principalmente, distinta posição, que o próprio
autor reputou naquela carta ser uma reviravolta
filosófica. A maioria dos intérpretes, diante do
vazio bibliográfico que parecia existir entre 1927 e
1946, passou a atribuir uma inclassificável
concepção sobre o ser, entre mística e poética.
(NUNES, 2016, p. 17).

27
Benedito Nunes explica a transição entre o primeiro Heidegger e o segundo,
evidenciando seus passos e as obras que representaram tais saltos. (NUNES,
2016, p. 17)
54

Para os rumos desta pesquisa, os termos ‘mística’ e ‘poética’,


habitados nesta dimensão em Heidegger, consolidam e proporcionam um
desmembramento daquilo que pode ser compreendido a partir da relação
Heidegger e Hölderlin em “...poeticamente o homem habita...”. A
Ontologia fundamental de Heidegger faz uma distinção entre os homens
dos entes pela via da compreensão do ser que constitui a sua conduta, a
partir da facticidade. Ou seja, aquilo que atravessa o ser enquanto mortal
na terra. Continuando com Nunes,

A Ontologia fundamental distingue o homem dos


outros entes pela compreensão do ser que constitui
a sua conduta, a partir da situação fáctica em que
se encontra. Situação fáctica designa a iniludível
carga afetiva pela qual, nunca indiferente, sempre
sentindo deste ou daquele modo, o homem,
independentemente de qualquer pressuposto
extrínseco na maneira de concebê-lo- dotado de
natureza racional ou criado à imagem e semelhança
de Deus-, existe imerso no meio do ente. Sob esse
aspecto constitutivo da conduta humana, o imergir,
que nos põe em relação com entes de outra espécie-
tais como coisas manejáveis (úteis), à nossa
disposição, e coisas-à-vista, diante de nós,
intermediadas pelas anteriores, e sob as quais se
molda o conceito de ser natural-, tem a sua
contraparte no projetar, que nos permite
transcender os entes na direção do mundo.
(NUNES, 2016, p. 17)

É no campo da sua Ontologia que Heidegger cultiva a mística da


poesia enquanto forma de estar no mundo. O lugar onde a linguagem
mostra-se para os mortais como aquela que faz um apelo para o retorno
ao hino de Hölderlin “poeticamente o homem habita esta terra”. Os poetas
cantam o silêncio da noite do mundo, aquilo que, dito no silêncio, a
linguagem faz mostrar-se como inaugural a partir do abandono dos
deuses. Então,

A poesia efetua esse retorno sempre renovado. E o


poeta é aquele que perfura os mananciais, tomando
os vocábulos como como palavras dizentes. Seu
caminho não vai além das palavras; ele caminha
entre elas, de uma a outra, escutando-as e fazendo-
as falar. O retorno se opera no intervalo do silencio,
55

que vai de palavra a palavra, quando o poeta


nomeia no discurso dizente. É a nomeação que leva
uma coisa a ser coisa. Palavras e coisas nascem
juntas. Para retomarmos a trilha de Hölderlin e a
essência da poesia, é nomeando que a poesia funda,
“pela palavra e na palavra”, o que permanece.
(NUNES, 2012, p. 254)

Por isso, Hölderlin o poeta da noite do mundo, buscava a luz dos


vestígios dos deuses foragidos. Para trazer para a palavra o retorno
daquilo que permanece enquanto sagrado advindo dos deuses para o
mundo dos mortais. Assim,

Nenhuma coisa existe onde a palavra falta, diz um


verso de Stefan George comentado por Heidegger.
Onde a palavra falta, não há desvelamento. Mas o
poeta, que renuncia ao ente estabilizado, também
não se engolfa no mistério. Só o dizer manifesta o
que se desvela, o que chega a ser na unidade
coligente da nominação. (NUNES, 2012, p. 254)

O ser que retorna ao chamado da linguagem habita poeticamente


entre céu, terra, mortais e imortais. A palavra é em si mesma enquanto
linguagem, desvelamento e velamento, daquilo que é para o homem
enquanto mistério, acesso ao sagrado. Os mortais habitam esta terra sob
os olhares dos deuses foragidos. Por isso, é na linguagem que
poeticamente o homem habita. Através do recolhimento e sujeitado ao
risco o ser-no-mundo é lançado para fora, como aquilo que lançado para
a terra, encontra-se desafiado a desvelar-se.

Na função mediadora do poeta, apenas se revela o


espaço de abertura onde o homem se encontra. O
que de excepcional tem a lida não-preocupante
daquele é manter-se no círculo semi-iluminado da
clareira, ceder, no torvelinho da queda cotidiana, à
decadência da linguagem, ainda que ocupado pelo
tráfego da gente. Inconsequente, o oficio do poeta,
ociosa lida, “sob a forma discreta do jogo”
suspende a segurança família, e, sem domínio
sobre coisa alguma, é exercido na fimbria do
incontornável- fora do ordinário e também da
ordem, no abandono do Dasein em sua ex-posição
ao ente, atento a existência “como lugar do ser”,
onde sucede “o próprio acontecer do estranho. Ao
56

fundar aquilo que permanece, a poesia revela a


essência humana- a concreta finitude do homem
como ser-no-mundo. Nela o homem “recolhe-se no
fundo de seu Dasein. Nesse recolhimento, que o
sujeita ao risco do estranho, e que descerra o
âmbito do desvelamento, tal como a maré vazante
descerra a praia, a palavra poética dimensiona o
mundo e o próprio homem. (NUNES, 2012, p. 255)

Agora, Giacoia Jr, refere-se a questão da linguagem como morada


do ser enquanto âmbito onde este mesmo habita. Ou seja, onde o homem
poetiza com suas palavras o estranho e o mistério: “Com Heidegger, a
linguagem filosófica é explorada nos limites extremos de suas
possibilidades e de seus recursos expressivos. Para ele, a linguagem é
tanto a “morada do Ser” quanto o âmbito em que o homem habita o
mundo.” (GIACOIA JR, 2013, p. 44)
Para Heidegger “o ser não constitui uma consciência separada do
mundo: o ser-aí é “estourar”, “eclodir” no mundo. Nesse sentido, a
existência do Dasein é, necessariamente, estar-no-mundo”. (MENDES,
2009, p. 196)
O Dasein, aqui, compreendido como um conceito importante para
sustentar toda estrutura dissertativa rumo ao habitar poético é
compreendido por Giacoia Jr como,

Como Dasein, o homem é essa abertura (o homem


é, essencialmente, também esse aí), uma ex-tase:
um estar fora de si, junto ao Ser. Se a antologia
geral concede privilégio teórico à essência em
relação à existência, Heidegger, ao contrário, pensa
o Dasein como ente cuja ex-sistência é
ontologicamente fundamental, ou seja, é
constitutiva da essência: uma existência
contigente, temporal, mundana, finita, cujo sentido
é ser-para-a-morte. (GIACOIA JR, 2013, p.63)

O ser-aí é aquele que, disposto ao aberto, produz construções para


habitar com segurança e paz esta terra. Este que desvela com luz as trevas
da vivência no tempo da “noite no mundo” Então, “Produzir é,
etimologicamente, producere: conduzir diante de, trazer à frente – como
téchne (técnica), em sua significação originária, está ligada à poiésis
(produzir, criar), pois é também uma modalidade de desocultar, trazer à
luz, revelar.” (GIACOIA JR, 2013, p. 73)
57

Aquilo que como desocultamento aparece diante dos mortais vem


dos vestígios dos deuses foragidos. O dia que raiou; a noite que chega e
não tarda. As estrelas no céu anunciam a imensidão do universo em todo
céu. Mesmo o que é visto pelo olhar humano, vê sobre parcialidades,
aquilo que na imensidão habita entre os deuses. O poeta que canta o
desvelamento, canta também o mistério existente, enquanto aquilo que
habita o labirinto do homem e das coisas. O sentido do cantar do poeta é
tocar os vestígios dos deuses. Heidegger citando o aforismo 9 (III, 246 s.)
do poema de Hölderlin “A maior parte das vezes, os poetas surgiram no
início ou no fim de uma era do mundo. É cantando que os povos saem do
céu da sua infância para a vida activa, para o país da cultura.”
(HEIDEGGER, 2004, p. 28-29).
Este filósofo confrontou um sistema de conhecimento já
solidificado até aquele momento no século XX, naquele começo de
milênio onde o pensamento Ocidental ouviu o chamamento para a via
filosofia heideggeriana que pulsava o retorno a “pergunta pelo sentido do
ser”. De toda forma, “Portanto, levar a linguagem aos seus limites últimos
constitui exigência de um pensamento em busca de articulação, uma
experiência radical de recuperação pensante das autênticas e originárias
precondições do logos filosófico.” (GIACOIA JR, 2013, p. 44) Como
esclarece Mendes, sobre a proposta da filosofia de Heidegger,

Historicamente, diz Martin Heidegger, discípulo


do fenomenólogo Edmund Husserl, que a
metafísica se extraviou. Ela não atingiu a questão
fundamental da filosofia: a questão do sentido do
ser. Mas, a problemática é que, de Platão (427-347
a.C) e Aristóteles (384-322 a.C) até Georg W
Friedrich Hegel (1770-1831), a filosofia
preocupou-se unicamente com os entes, isto é, com
as coisas existentes; esqueceu-se do ser que foi
entendido como permanência, congelado em sua
realidade, confundido com os entes. Com isto,
conclui Heidegger que não é mais possível fazer
filosofia ao modo tradicional, a não ser apenas,
para repetir o que os outros já disseram. E propõe:
depois de des-construir toda a metafisica, pensar e
dizer o impensado desse modo tradicional.
(MENDES, 2009, p. 195)

Então, é sabido até aqui que Martin Heidegger vislumbrou,


enquanto campo de possibilidade, pensar uma construção que
58

proporcionasse um habitar poético neste mundo. As tramas e dramas que


circundam está habitação são da ordem de sua ontologia. Este habitar e
sua condução ao ser construído, são afetados pelo tempo fatídico e
implacável. Os temas da ontologia heideggeriana proporcionam para a
filosofia tradicional um respiro, algo como um vir a ser poético para o ser-
o-aí. Habitar poeticamente a linguagem é atender ao apelo da construção
do caminho para o sentido do ser-no-mundo. Tal construção entre
Heidegger e Hölderlin dinamizam outros olhares para a construção de um
habitar para a formação humana. Pois, em tempos de devastação do tempo
do ser, é preciso “levantar os olhos” para guardar-se perante os deuses e
seus mistérios.

2.3. HABITAR E FORMAÇÃO HUMANA

Para dizer da tessitura sobre o habitar, é necessário considerar a


crise habitacional a qual Heidegger se refere em grande parte quando
direciona-se ao esquecimento do ser, este que segundo o filósofo foi
responsável pelo devir histórico da Europa e pelas calamidades que se
abateram sobre o mundo contemporâneo, de modo especial no que diz
respeito ao habitar. Então, a partir disso, o que seria para Heidegger o
habitar? E, em deslocamento, como estamos pensando a relação do
habitar e a formação humana?
Na Conferência intitulada “Construir, habitar, pensar”, proferida
por Heidegger no ano de 1951, diz o filósofo, preocupado com a questão
do sentido do ser, mas agora, a partir da linguagem (casa do ser), que
parece só ser possível habitar o que se constrói. Este, o construir, tem
aquele, o habitar, como fim. (MENDES, 2009)
O habitar humano a partir deste olhar que constrói habitações foi
conduzido meramente para a construção civil. Indução voltada ao
desenvolvimento do concreto para as cidades. Uma revolução da técnica
moderna para que humanos possam habitar fora de si mesmos, costura
reversa para aquilo que Heidegger chamaria de “habitar”. Nem tudo
aquilo que se constrói, habita-se. Então,

Parece que só é possível habitar o que se constrói.


Este, o construir, tem aquele, o habitar, como meta.
Mas nem todas as construções são habitações. Um
ponte, um hangar, um estádio, uma usina elétrica
são construções e não habitações; a estação
ferroviária, a auto-estrada, a represa, o mercado são
59

construções sem limitar-se a uma habitação. Na


usina elétrica, o engenheiro está em casa, mesmo
não sendo ali a sua habitação. Estas construções
oferecem ao homem um abrigo. Nelas, o homem de
certo modo habita e não habita, se por habitar
entende-se simplesmente possuir uma residência.
Considerando-se a atual crise habitacional, possuir
uma habitação é, sem dúvida, tranquilizador e
satisfatório; prédios habitacionais oferecem
residência. As habitações são hoje bem divididas,
fáceis de se administrar, economicamente
acessíveis, bem arejadas, iluminadas e ensolaradas.
Mas será que as habitações trazem nelas mesmas a
garantia de que aí acontece um habitar?
(HEIDEGGER, 2001, p. 125-126)

Para se compreender a extensão daquela construção para o


“habitar-se”, vale ilustrar que Heidegger estava vivendo em uma época
de muito revés, com as divisões da Alemanha com o muro que dividia
Berlim, entre outros desdobramentos entre a França, a Inglaterra, e os
Estados Unidos contra a União Soviética; a Guerra Fria entre socialistas
e comunistas.
O “esquecimento do ser” estava latente no desenvolvimento
desenfreado e na fabricação de armamentos. A concepção de construir
para habitar enquanto “abrigo” é aquilo que pode ser considerado “estar
a salvo do perigo” ou “estar abrigado do perigo”, que por via da escrita
de Heidegger nesta Conferência pulsa latentemente em direção à crítica
para um mundo que é um perigo. Abrigar-se do mundo. Para Mendes, a
partir do habitar de Heidegger, é,

Habitar, a partir da escuta do dizer da linguagem,


afirma: permanecer pacificado na liberdade de um
pertencimento, resguardar cada coisa em sua
essência. Na compreensão de Heidegger, o traço
fundamental do habitar é esse resguardo, perpassa
o habitar em toda a sua amplitude. Mostra-se, tão
logo se propôs a pensar, que ser homem consiste
em habitar, isto no sentido de um de-mora-se dos
mortais sobre essa terra. E, “sobre essa terra já
pertencendo à comunidade dos homens”. Terra e
céu, os divinos e os mortais - uma quadratura -
pertencente um ao outro numa unidade originária.
(MENDES, 2009, p. 197)
60

Isto que tenta-se fazer com a linguagem como sendo, é a própria


construção da morada, através da palavra. O “homem formador de
mundo”, tal como Heidegger assevera é construtor e habitante de
linguagem (HEIDEGGER, 2011, §42). O dizer daquilo que, tecido pelo
cuidado, tenta-se habitar nesta habitação com segurança, não só no
sentido de abrigo, mas de morada. Tecer como possibilidade o repouso
numa escuta fundamental é, a partir do que é falado, uma preparação,
sobretudo para a escuta originária. Então, “Habitar e construir encontram-
se, assim, numa relação de meios e fins.” (HEIDEGGER, 2001, p. 126)
Ali, por sua vez também, reside o escutar, que advém do retorno daquilo
que é falado, já que existe o movimento intenso entre o que é re-velado e
des-velado. Ou seja, a pausa para a preparação desta escuta é necessário
para o construir. Para Heidegger,

Construir já é em si mesmo habitar. Quem nos diz


isso? Quem nos oferece de fato uma medida para
dimensionarmos o vigor essencial do que seja
habitar e construir? O acesso à essência de uma
coisa nos advém da linguagem. Isso só acontece,
porém, quando prestamos atenção ao vigor próprio
da linguagem. Enquanto essa atenção não se dá,
desenfreiam-se palavras, escritos, programas,
numa avalanche sem fim. O homem se comporta
como se ele fosse criador e senhor da linguagem,
ao passo que ela permanece sendo a senhora do
homem. Talvez seja o modo de o homem lidar com
esse assenhoramento que impele o seu ser para a
via da estranheza. É salutar o cuidado com o dizer.
Mas esse cuidado é em vão se a linguagem
continuar apenas a nos servir como um meio de
expressão. Dentre todos os apelos que nos falam e
que nós homens podemos a partir de nós mesmos
contribuir para se deixar dizer, a linguagem é o
mais elevado e sempre o primeiro. (HEIDEGGER,
2001, p. 126)

Então, o que seria para Heidegger “construir”, a partir de um


habitar através da linguagem? Ele vai demonstrar a partir de um retorno
à linguagem, que,

A palavra do antigo alto-alemão usada para dizer


construir, “buan”, significa habitar. Diz:
permanecer, morar. O significado próprio do verbo
61

bauen (construir), a saber, habitar, perdeu-se. Um


vestígio encontra-se resguardado ainda na palavra
“Nachbar”, vizinho. O Nachbar (vizinho) é o
“Nachgebur”, o “Nachgebauer”, aquele que habita
a aproximidade. O verbos buri, Büren, beuren,
beuron significam todos eles o habitar, as estâncias
e circunstâncias do habitar. Sem dúvida, a antiga
palavra buan não diz apenas que construir é
propriamente habitar, mas também nos acena como
devemos pensar o habitar que aí se nomeia.
Quando se fala em habitar, representa-se
costumeiramente um comportamento que o homem
cumpre e realiza em meio a vários outros modos de
comportamento. Trabalhamos aqui e habitamos ali.
Não habitamos simplesmente. (HEIDEGGER,
2001, p. 126-127)

Construir e habitar28 não se dão de forma prática. A antiga palavra


buan não limita-se ao dizer (sobre) em sentido de habitar, por sua vez
engendra ainda mais significados agregadores. Esta antiga palavra media
a voz de um tempo atravessado pela era das construções que manifestam-
se massivamente, quando não engolidas, como cita Heidegger. As
variações sobre o habitar ditam os vários sentidos do ser. De modo que,

Parece que esse acontecimento refere-se a uma


transformação semântica ocorrida no mero âmbito
das palavras. Na verdade, porém, aí se abriga algo
muito decisivo: o fato de não mais se fazer a
experiência de que habitar constitui o ser do
homem, e de que não mais se pensa, em sentido
pleno, que habitar é o traço fundamental do ser-
homem. (HEIDEGGER, 2001, p.128)

28
Para registrar as demais variações do demonstrativo para além da palavra bauen
em sua forma originária. Martin Heidegger continua: “Construir significa
originariamente habitar. Quando a palavra bauen, construir ainda fala de maneira
originária diz, ao mesmo tempo, que amplitude alcança o vigor essencial do
habitar. Bauen, buan, bhu, beo é na verdade, a mesma palavra alemã “bin”, eu
sou nas conjugações ich bin, du bist, eu sou, tu és, nas formas imperativas bis,
sei, sê, sede. O que diz então: Eu sou? A antiga palavra bauen (construir) a que
pertence “bin”, “sou” reponde: “ich bin”, “du bist” (eu sou, tu és) significa: eu
habito, tu habitas. A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos
homens sobre essa terra é o Buan, o habitar.” (HEIDEGGER, 2001, p. 127)
62

Compreender que a palavra bauen diz mais sobre a existência da


forma como este homem habita esta terra, e mais além, como também,
diz de como ele habita este mundo. Habitar enquanto: cuidado; proteção;
morada. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à medida
que habita. O homem esquece-se o quanto é habitação e morada de si
mesmo. Habitação no sentido, de fugir do perigo. Resguardar-se. A
medida que habita o homem é homem, também aquele, que constrói sua
morada como ser que se de-mora nesta terra. Heidegger continua,

A palavra bauen (construir) porém, significa ao


mesmo tempo: proteger e cultivar, a saber, cultivar
o campo, cultivar a vinha. Construir significa
cuidar do crescimento que, por si mesmo, dá tempo
aos seus frutos. No sentido de proteger e cultura,
construir não é o mesmo que produzir. A
construção de navios, a construção de um templo,
produzem, ao contrário, de certo modo a sua obra.
Em oposição ao cultivo, construir diz edificar.
Ambos os modos de construir – construir como
cultivar, em latim, colere, cultura, e construir como
edificar construções, aedificare – estão contidos no
sentido próprio de bauen, isto é, no habitar. No
sentido de habitar, ou seja, no sentido de ser e estar
sobre a terra, construir permanece, para a
experiência cotidiana do homem, aquilo que desde
sempre é, como a linguagem diz de forma tão bela,
“habitual” (HEIDEGGER, 2001, p.127-128)

A construção do habitar é o acontecimento daquilo que o homem


chamará de morada. Ao trabalhar, cuidar da terra, plantando; aguando
aquilo que deve crescer com seu próprio tempo; este ser constrói sua
morada de forma de-morada29 sobre a terra que cuida. O respeito aos
deuses, céu e terra é algo notado, nas palavras de serenidade de Martin
Heidegger quando refere-se ao habitar.

29
Para Heidegger a compreensão das palavras “wuon” e “wunian” em relação ao
vigor dessas: “Mas em que consiste o vigor essencial do habitar? Escutemos mais
uma vez o dizer da linguagem: a mesma maneira que a antiga palavra bauen, o
antigo saxão “wuon”, o “gótico” “wunian” significam permanecer, “de-morar-
se”. O gótico “wunian” diz, porém, com clareza ainda maior, como se dá a
experiência desse permanecer. Wunian diz: ser e estar apaziguado, ser e
permanecer em paz.” (HEIDEGGER, 2001, p. 129)
63

Isso esclarece porque acontece um construir por


detrás dos múltiplos modos de habitar, por detrás
das atividades de cultivo e edificação. Essas
atividades acabam apropriando-se com
exclusividade do termo bauen (construir) e com
isso da própria coisa nele designada. O sentido
próprio de construir, a saber, o habitar, cai no
esquecimento. (HEIDEGGER, 2001, p. 128)

Na compreensão de Heidegger, o traço fundamental do habitar é


esse resguardo, que perpassa o habitar em toda a sua amplitude, sendo o
habitar igualmente cuidar do que se habita, ou ainda, habitar como cuidar,
dar atenção e escuta. Mostra-se, tão logo se propôs a pensar, que ser
homem consiste em habitar, isto no sentido de um de-morar-se dos
mortais sobre essa terra. E, “sobre a terra” já diz “sob o céu”, o que supõe
conjuntamente “permanecer diante dos deuses”, e isto “em pertencendo à
comunidade dos homens”. (MENDES, 2009, p. 197)
O habitar esta terra em de-mora é a permanência no resguardo da
paz, da morada que, construída com o cuidado, respeita a terra, e o tempo
das coisas é esperado, sem pressa. “Habitar, ser trazido à paz de um
abrigo, diz: permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento
resguarda cada coisa em sua essência.” (HEIDEGGER, 2001, p. 129). A
forma como o ser habita este mundo diz daquilo que suas mãos
constroem.
Voltando à relação de Martin Heidegger e Friedrich Hölderlin, é
na forma resguardada de Hölderlin enquanto morar na linguagem que
Heidegger contempla um cenário possível para habitar poeticamente. “Os
quatro: a terra e céu, os divinos e os mortais, pertencem um ao outro numa
unidade originária.” (HEIDEGGER, 2001, p. 129)
A quadratura30 citada na obra “Ensaios e Conferências” já citada
acima, na conferência “Construir, habitar, pensar”, é onde Heidegger

30
Sobre a quadratura ou quadridade, este termo, embora esteja citado acima nas
Conferências de Heidegger na década de 50, em 1936 já era desenhado pelo
filósofo em sua obra “A origem da obra de arte”, que delineava a compreensão
sobre o enfrentamento dos mundos entre humanos e imortais, céu e terra. Uma
tentativa de visualizar o humano enquanto circundado por um fluxo que não
haveria como livrar-se.
64

deixa rastros de uma escrita delicada, pausada, com diretrizes daquilo que
advindo da poesia, é habitado por ela, em paz e serenidade.31
O filósofo canta a natureza em conexão com o homem, de tal
forma, que, acentua estas palavras: “A terra é o sustento de todo gesto de
dedicação. A terra dá frutos ao florescer. A terra concentra-se vasta nas
pedras e nas águas, irrompe concentrada na flora e na fauna. Dizendo
terra, já pensamos os outros três. Mas isso ainda não significa que se tenha
pensado a simplicidade dos quatro.” (HEIDEGGER, 2001, p. 129)
A poesia notada na escrita de Heidegger pode ser observada na sua
sutileza com o trato com as palavras. Martin Heidegger cantou o tempo a
tempo de experimentar o habitar poético. Nas palavras do filósofo, há
uma sincronicidade pertencente à quadratura, que representa a harmonia
em simplicidade e naturalidade. Pois,

O céu é o percurso em abóbadas do sol, o curso em


transformações da lua, o brilho peregrino das
estrelas, as estações dos anos e suas viradas, luz e
crepúsculo do dia, escuridão e claridade da noite, a
suavidade e o rigor dos climas, rasgo de nuvens
profundidade azul do éter. Dizendo céu, já
pensamos os outros três. Mas isso ainda não
significa que se tenha pensado a simplicidade dos
quatro. Os deuses são os mensageiros que acenam
a divindade. Do domínio sagrado desses manifesta-
se o Deus em sua atualidade ou se retrai em sua
dissimulação. Se dermos nome aos deuses, já
concluímos os outros três, mas não consideramos a
simplicidade dos quatro. (HEIDEGGER, 2001, p.
129)

Para Heidegger, a relação daquilo que é pensado, para ser


construído e depois habitado, é intrínseca. O filósofo traz a reflexão
acerca de como deve ser projetado aquilo sobre o qual se deseja construir.
O ser é direcionado pela linguagem para este desdobramento. Pensar a
construção de um habitar é pensar o impacto daquilo para o mundo em
que se vive. Os mortais vivem sob os olhares dos deuses. “Os mortais
habitam à medida que aguardam os deuses como deuses.” (HEIDEGGER,
2001, p. 130)

31
Não adentramos nesta questão nesta pesquisa, porém, cumpre dizer que, já no
percurso demonstrado, Heidegger deixar mostrar pinceladas de sua atração com
o Oriente e com a Filosofia Budista, especialmente com o “Tao”.
65

Nesta condução de Heidegger, o ser faz guarda do mundo em que


vive. Vigilante dos processos naturais, não destrói aleatoriamente,
segundo os seus desejos. Ou seja, vive integrando-se e sendo a própria
quadratura no mundo. Deste modo,

Esperando, oferecem-lhes o inesperado. Aguardam


o aceno de sua chegada sem deixar de reconhecer
os sinais de suas errâncias. Não fazem de si
mesmos deuses e não cultuam ídolos. No
infortúnio, aguardam a fortuna então retraída. Os
mortais habitam à medida que conduzem seus
próprio vigor, sendo capazes da morte como morte,
fazendo uso dessa capacidade com vistas a uma boa
morte. Conduzir os mortais ao vigor essencial da
morte não significa, de modo algum, ter por meta a
morte, entendida como o nada vazio; também não
significa ofuscar o habitar através de um olhar
rígido e cegamente obcecado pelo fim.
(HEIDEGGER, 2001, p. 130)

Martin Heidegger guia a sua filosofia por caminhos que mostram


certo desejo de viver em alinhamento e harmonia com o mundo, como
pode ser observado na relação com a quadratura, já referida. Ele também
convida a quem está escutando-o repensar a sua forma de
estar/permanecer neste mundo. O filósofo manuseia com maestria o dom
da contemplação do mundo, que não estar distante do aprender a de-
morar neste mundo e logo, a partir-se “bem” deste mundo com uma boa
morte. Ou seja, é um processo que, em harmonia com a vida em seu devir,
vai sendo adquirido mérito para a passagem. Como se pode pensar, então,
a forma que, observada por Heidegger e Hölderlin, o mortal deve habitar
esta terra? O próprio Heidegger responde.

Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os


deuses, conduzindo os mortais, é assim que
acontece propriamente um habitar. Acontece
enquanto um resguardo de quatro faces da
quadratura. Resguardar diz: abrigar a quadratura
em seu vigor de essência. O que se toma para
abrigar deve ser velado. Onde, porém o habitar
guarda a sua essência quando resguarda a
quadratura? Como os mortais trazem à plenitude o
habitar no sentido desse resguardar? Os mortais
jamais o conseguiriam se habitar fosse tão-só uma
66

de-mora sobre a terra, sob o céu, diante dos deuses,


como os mortais. Habitar é bem mais um demorar-
se junto às coisas. Enquanto resguardo, o habitar
preserva a quadratura naquilo junto a que os
mortais se demoram: nas coisas. (HEIDEGGER,
2001, p. 130-131)

Como a orientação heideggeriana é de-morar-se junto das coisas,


Heidegger encaminha que habitar se dá “Quando os mortais protegem e
cuidam das coisas em seu crescimento. Quando edificam de maneira
própria coisas que não crescem. Cultivar e edificar significam em sentido
estrito, construir. Habitar é construir desde que se preserve nas coisas a
quadratura.” (HEIDEGGER, 2001, p. 131).
O que vem a ser a quadratura (Geviert) em Heidegger? A
quadratura para Martin Heidegger é a integralidade de terra, céu, deuses
e mortais. Uma articulação em unidade. Naquilo que pode ser
compreendido como forma de habitar esta terra. Heidegger, no texto
“Construir, habitar, pensar” compreende que,

Chamamos de quadratura essa simplicidade. Em


habitando, os mortais são na quadratura. O traço
fundamental do habitar é, porém, resguardar. Os
mortais habitam resguardando a quadratura em sua
essência. De maneira correspondente, o resguardo
inerente ao habitar tem quatro faces.
(HEIDEGGER, 2001, p. 130).

Acolher o céu e terra para Heidegger é como o “levantar dos olhos


para o céu” de Hölderlin, os primeiros versos 24 e 26 de “Raiz de todo
mal”. Hölderlin ressalta, “Deve um homem, no esforço mais sincero que
é a vida/Levantar os olhos e dizer: assim quero ser também? Sim.”
(HEIDEGGER, 2001, p. 171).
Vale destacar uma parte ainda maior deste poema de Hölderlin, o
qual Heidegger evidencia muito para dizer a relação “habitar” e
“quadratura” Então, dos versos 24 até o 38 lê-se:

Deve um homem, no esforço mais sincero que é a


vida,
Levantar os olhos e dizer: assim
Quero ser também? Sim. Enquanto perdurar junto
ao coração
A amizade pura, o homem pode medir-se
67

Sem infelicidade com o divino. É deus


desconhecido?
Ele aparece como o céu? Acredito mais
Que seja assim. É a medida dos homens.
Cheio de méritos, mas poeticamente
O homem habita esta terra. Mais puro, porém,
Do que a sombra da noite com as estrelas,
Se assim posso dizer, é
O homem, esse que se chama imagem do divino.
Existe sobre a terra uma medida? Não há
nenhuma.”
(HEIDEGGER, 2001, p. 171).

Visto que desta maneira Heidegger nos orienta um repouso, uma


de-mora sob a quadratura, compreende-se que é uma serenidade que
habita entre a relação da quadratura. Ao passo que o habitar é um
construir. Ou seja, O “habitar poeticamente esta terra” é em si, uma
aliança entre o céu e a terra, mortais e imortais. Pois, como já foi visto,
construir é habitar para Heidegger. Logo, “O habitar do homem repousa
no fato da dimensão, a que pertencem tanto o céu como a terra, levantar
a medida levantando os olhos.” (HEIDEGGER, 2001, p. 172).
Em comunicação com o discorrido acima, o texto “Geviert: o
sagrado em Heidegger e a serenidade em Mestre Eckhart”, de José Carlos
Marçal (2011) se faz necessário para “desentranhar” a essência do habitar
poético neste contexto de quadratura.

Esse de-morar-se aloja a quadratura numa pertença


originária: terra e céu, deuses e mortais se
articulam numa unidade. O sentido que Heidegger
extrai dos elementos da quadratura são de caráter
poético e mítico e isso mesmo a partir de seu
retorno aos pensadores gregos matinais e na visita
demorada ao poeta Hölderlin. O solo poético em
que o habitar é erigido surge quando Heidegger
lança mão do poema “No azul sereno...” de
Hölderlin e centra-se no verso “... poeticamente o
homem habita”. A linguagem – e aqui mais
especificamente a linguagem poética – permite o
acesso à essência do habitar. Enquanto medida
privilegiada, a poesia, para Heidegger, é a “[...]
capacidade fundamental do modo humano de
habitar”. A poesia, construindo a essência do
habitar, desentranha, a partir de seu dizer, o traço
fundamental dessa mesma essência. O homem
68

habita sobre a terra e sob o céu e isso perante os


deuses e enquanto pertencentes à comunidade dos
homens, os mortais. Assim, o que significam os
elementos da quadratura no pensamento de
Heidegger? O que nos diz terra, céu, deuses e
mortais? (MARÇAL, 2011, p. 158-159)

À medida que o texto vai sendo finalizado, é notada ainda mais a


preocupação de Heidegger com a condição em que está o mundo em que
vive. “Os mortais habitam à medida que acolhem o céu como céu.
Habitam quando permitem ao sol e à lua a sua peregrinação, às estrelas a
sua via, às estações dos anos as suas bênçãos e seu rigor, sem fazer da
noite dia e nem do dia uma agitação açulada.” (HEIDEGGER, 2001, p.
130)
Martin Heidegger faz o uso de uma ponte para ilustrar a sua
reflexão a despeito da seguinte pergunta: “Em que medida construir
pertence ao habitar?”. A ponte só é ponte quando ela proporciona o
atravessamento (travessia) de uma margem a outra. Assim sendo,

A ponte pende “com leveza e força” sobre o rio. A


ponte não apenas liga margens previamente
existentes. É somente na travessia da ponte que as
margens surgem como margens. A ponte as deixa
repousar de maneira própria uma frente à outra.
Pela ponte, um lado se separa do outro. As margens
também não se estendem ao longo do rio como
traçados indiferentes da terra firme. Com as
margens, a ponte traz para o rio as dimensões do
terreno retraídas em cada margem. A ponte coloca
uma vizinhança reciproca a margem e o terreno. A
ponte reúne integrando a terra como paisagem em
torno do rio. A ponte conduz desse modo o rio
pelos campos. (HEIDEGGER, 2001, p. 132)

O exemplo da ponte utilizado por Heidegger esclarece a integração


entre uma construção e o todo integrado a ela. Mesmo a ponte sendo uma
construção, oriunda de necessidades humanas, a ponte reúne em torno de
si mesma vários sentidos de existências. “A seu modo, a ponte reúne
integrando a terra e o céu, os divinos e os mortais junto a si”.
(HEIDEGGER, 2001, p. 133) Então, “produzir tais coisas é construir. Sua
essência consiste em corresponder à espécie dessas coisas. As coisas são
lugares que propiciam espaços. Construir é edificar lugares. Por isso,
construir é um fundar e articular espaços.” (HEIDEGGER, 2001, p. 137).
69

A importância desta preocupação acerca da habitação é tão atual


como complexa. É necessário debater-se sobre o desenvolvimento urbano
da cidade, as construções civis, a formação de cidadãos conectados com
o respeito e a preservação da natureza; para que haja uma melhor vivência
e permanência nesta terra. A ponte é uma coisa que, mesmo como coisa,
conseguiu estar integrada ao todo. A integração entre céu, terra, deuses e
mortais é o que faz possível a de-mora sobre esta terra, conforme
observado pela quadratura, segundo Heidegger. “O divino está sempre
vigorando, quer considerado com propriedade e pensado com visível
gratidão na figura de um santo padroeiro, quer desconsiderado ou mesmo
renegado.” (HEIDEGGER, 2001, p. 132).
Pensar a construção advém do edificar e produzir32 sem abrir mão
da de-mora junto das coisas é “levantar os olhos para cima” e esperar
respeitosamente o tempo da vida em curso. Edificando o mundo e
ouvindo os rastros dos deuses foragidos; como conduz as palavras do
poeta.
O pensar em Heidegger está conectado com um todo construído e
habitado pelo homem. Edificando o resguardo sobre a quadratura.
“Habitar é, porém, o traço essencial do ser de acordo com o qual os
mortais são. Quem sabe se nessa tentativa de concentrar o pensamento no
que significa habitar e construir torne-se mais claro que ao habitar
pertence um construir e que dele recebe a sua essência.” (HEIDEGGER,
2001, p. 140).
Ao perguntar pelo construir-habitar, o próprio pensar é re-
conduzido para o resgate da essência das coisas em seu sentido essencial.
Ou melhor, retorna a busca pela essência das coisas. “Já é um enorme

32
Este conceito não é central nesta dissertação, mas para frisar a sua presença em
ressonância da temática abordada, vale ressaltar que “Produzir, em grego, é tíkto.
À raiz tec desse verbo é comum à palavra tékhne. Tékhne não significa, para os
gregos, nem arte, nem artesanato, mas um deixar-aparecer algo como isso ou
aquilo, dessa ou daquela maneira, no âmbito do que já está em vigor. Os gregos
pensam a tékhne, o produzir, a partir do deixar-aparecer, A tékhne a ser pensada
desse modo, de há muito, se resguarda no tectônico do arquitetônico. Ela se
resguarda, ainda mais recentemente e de forma decisiva, no técnico da técnica
dos motores pesados. A essência do produzir que constrói não se deixa, porém,
pensar nem a partir da arquitetura, nem da engenharia e nem tampouco a partir
da mera combinação de uma e de outra. O produzir que constrói também não se
deixaria determinar de forma adequada se quiséssemos pensá-lo no sentido
originariamente grego de tékhne, ou seja, somente como um deixar-aparecer que
traz o produzido como uma coisa vigente para o meio de coisas já em vigor.”
(HEIDEGGER, 2001, p. 139).
70

ganho se habitar e construir tornarem-se dignos de se questionar e, assim,


permanecem dignos de se pensar” (HEIDEGGER, 2001, p. 140).
Para Heidegger, o habitar é o traço essencial do ser, de acordo com
aquilo que os mortais são. O pensar está naquilo que constrói e habita o
homem. “Construir e pensar são, cada um a seu modo, indispensáveis para
o habitar.” (HEIDEGGER, 2001, p. 140). Aquilo que é mostrado, como
aberto, aparente, é considerado para o pensamento por via da
fenomenologia heideggeriana uma ontologia.

Ontologia fundamental nomeia a principal


característica de Ser e Tempo: é uma a tentativa de
desconstrução da metafísica e de elaboração da
analítica da finitude, tendo como ponto de partida
uma fenomenologia hermenêutica das estruturas
fundamentais do ser-o-aí (GIACOIA JR, 2013, p.
51).

A ontologia heideggeriana é compreendida por Giacoia Jr. como,

Ontologia é a disciplina filosófica que estuda o ser


dos entes. A palavra “ente” traduz o termo grego
onta, que designa entidades, aquilo que é ou que
existe. Ontologia, portanto, é ciência ou estudo
metódico (logia) daquilo que é - o ente -, visando
determinar sua essência ou seu ser. A busca pelo
sentido da pergunta constitui já uma modalidade de
questionamento ontológico, pois o que se tornou
problemático não é outra coisa senão o sentido do
Ser. (GIACOIA JR, 2013, p. 53)

Toda a trajetória feita por Heidegger, em suma é por “um novo


pensar”. Heidegger foi o filósofo que buscara a essência. “O Ser sempre
foi pensado apenas em relação aos entes, (...) nunca sendo levadas em
conta as diversas modalidades em que os entes se dão e se mostram, nunca
sendo considerados a instância ou o limiar originário desse dar-se e
mostrar-se” (GIACOIA JR, 2013, p. 59) Heidegger é o caçador de
essências. Aquele que, não satisfeito com a superfície do que aparece,
busca o que constitui aquilo que é uma coisa. “O caminho de pensamento
aqui ensaiado deve testemunhar, por outro lado, que o pensar, assim como
o construir, pertence ao habitar, se bem que de modo diverso.”
(HEIDEGGER, 2001, p. 140). Ainda sobre o “Construir, habitar, pensar”,
de forma integradora e expandida está compreensão se dá.
71

Ambos são, no entanto, insuficientes para o habitar


se cada um se mantiver isolado, cuidando do que é
seu ao invés de escutar um ao outro. Essa escuta só
acontece se ambos, construir e pensar, pertencem
ao habitar, permanecem em seus limites e sabem
que tanto um como o outro provem da obra de uma
longa experiência e de um exercício incessante.
(HEIDEGGER, 2001, p.140)

O “novo pensar”, que Heidegger muitas vezes ensaia em sua obra,


está integrado com um exercício de de-mora. Necessitamos re-aprender
a pensar, como Giacoia Jr diz: “Nesse sentido, pensar é corresponder pela
palavra à verdade do Ser. Mas a subtração da linguagem em relação à sua
essência, a fuga da correspondência ao chamamento do Ser em seu
desvelar-se pelo discurso humano é o sinal de que, a despeito de toda
ciência e filosofia, ainda não aprendemos a pensar” (GIACOIA JR, 2013,
p. 48-49)
Aquilo que em “Introdução à Filosofia” já traria como a
compreensão de uma filosofia prática, no sentido do homem em si mesmo
ser envolvido pela filosofia. “Ser homem já significa filosofar”
(HEIDEGGER, 2009, p. 2) O homem enquanto pertencente à linguagem,
habita e constrói em sua existência o seu “habitar” através do seu próprio
pertencimento a filosofia. Pois,

A questão é que não estamos de forma alguma


“fora” da filosofia; e isso não porque, por exemplo,
talvez tenhamos uma certa bagagem de
conhecimentos sobre filosofia. Mesmo que não
saibamos expressamente nada sobre filosofia, já
estamos na filosofia porque a filosofia está em nós
e nos pertence; e em verdade, no sentido de que já
sempre filosofamos. (HEIDEGGER, 2009, p. 3)

Assim, Heidegger convoca o retorno à linguagem. Esta que é a


senhora do ser. “Buscamos concentrar o pensamento na essência do
habitar.” (HEIDEGGER, 2001, p. 140). O material filosófico construído
por Martin Heidegger é uma prova do atravessamento do Ser e o tempo;
um retorno ao que diz a linguagem, enquanto aquela que habita o homem;
observar a crise habitacional, não especificamente a construção de
habitações ou a ausência delas, mas “o aprender a habitar”. “A crise
propriamente dita de habitação é, além disso, mais antiga do que as
guerras mundiais e as destruições, mais antiga também do que o
72

crescimento populacional da terra e a situação do trabalhador industrial.”


(HEIDEGGER, 2001, p. 140).
Neste re-aprender a habitar é que habita a verdadeira essência do
habitar como aquele que guarda e resguarda o ser. O problema sobre o
qual Heidegger nos acena atenção não é somente a questão sobre como
construir e habitar, mas também como habitamos esta terra sobre a
quadratura. Pois,

O problema, em cada caso, mostra-se ser bem


oposto daquele que esses construtos filosóficos
imaginam ser. No primeiro caso, Heidegger busca
mostrar que originalmente que já estamos no
mundo e que são ocorrências muito particulares no
interior desse mundo que podem desengajar-nos
dele. Esse mundo é também um mundo que
habitamos com outros desde o começo.
(GREAVES, 2012, p. 63)

A filosofia de Heidegger não descansa somente em torno de


objetos de sua ontologia, mas preocupa-se sobretudo com a forma em que
o homem habita; passa por esta existência; como relacionam-se uns com
os outros; como habitam todos o mesmo mundo; ou como os homens
destroem a terra e por sua vez esquecem os deuses. Escutar as palavras de
Heidegger é um exercício para adentrar numa escuta meditativa em
conexão com existência em curso, o aqui e agora. Continua Heidegger,
finalizando sua conferência:

A crise propriamente dita do habitar consiste em


que os mortais precisam sempre de novo buscar a
essência do habitar, consiste em que os mortais
devem primeiro aprender a habitar. E se o
desenraizamento do homem fosse precisamente o
fato de o homem não pensar de modo algum a crise
habitacional propriamente dia como a crise? Tão
logo, porém, o homem pensa o desenraizamento,
este deixa de ser uma miséria. Rigorosamente
pensado e bem resguardado, o desenraizamento é o
único apelo que convoca os mortais para um
habitar. (HEIDEGGER, 2001, p. 141)

Esta crise habitacional, para Heidegger, provoca e convoca a


pensar o desenraizamento. Não aquilo, que estar relacionado ao mistério
propriamente dito, mas o chamado à busca pela essência do habitar. O
73

retorno do homem a si mesmo. “O modo como habitamos o mundo é


primeiramente como um ambiente, de tal maneira que a análise da
mundaneidade começa com uma análise da ambientalidade.”
(GREAVES, 2012, p. 51).
Sabe-se que esta experiência é vivenciada por cada um em si
mesmo, executando sua construção como ainda, aquela que habitará um
mundo, pois o homem é como ser-no-mundo. Como compreender o
mundo ainda é a pre-ocupação de Heidegger, sobretudo algo que faz o
chamamento aos mortais “A dificuldade não é aquela de conectar o
mundo com algo extramundano, mas sim a de como, em primeiro lugar,
compreender o mundo.” (GREAVES, 2012, p. 50)
Heidegger termina sua conferência dizendo: “De que modo,
porém, os mortais poderiam corresponder a esse apelo senão tentando, na
parte que lhes cabe, conduzir o habitar a partir de si mesmo até a plenitude
de sua essência? Isso eles fazem plenamente construindo a partir do
habitar e pensando em direção ao habitar.” (HEIDEGGER, 2009, p. 141).
Ou seja, Heidegger, enquanto o filósofo da serenidade da
meditação e da escuta como preparação para a fala poética, construiu a
possibilidade filosófica sobre o habitar a partir do repouso sobre a
linguagem; senhora do ser, a quem o homem sempre irá pertencer. “Com
isso, a analítica existencial do ser-o-aí atinge um de seus resultados mais
importantes: a sua descrição fenomenológica como Sorge (cura e
preocupação).” (GIACOIA JR, 2013, p. 79)
Como contraponto a preocupação heideggeriana avança para
questões que enfatizam um outra experiência neste mundo. Uma
existência pautada num ensaio de construção para habitar com serenidade
e consciência este mundo. Dimensionarmos aquilo que Heidegger
ilumina enquanto cura e preocupação é reconhecer que o humano
diferente do animal, este que nada faz para poluir o mundo ou destruir seu
habitar; pelo contrário o homem criar e destrói tudo o que deseja na
velocidade do seu pensamento. Continuando com Giacoia Jr:

Ex-sistência é ser-no-mundo temporalmente como


cura e preocupação. Esse cuidado, por sua vez,
desdobra-se em besorgen (cuidado com alguma
coisa, com providenciar alguma coisa) o Fürsorgen
(a cura como tomar cuidado de algo, ou de alguém;
e como preocupação, ocupa-se de algo ou alguém,
tratar dele e com ele). (GIACOIA JR, 2013, p. 79)
74

A filosofia de Heidegger dança sobre um solo de possibilidade que


observa a necessidade de um habitar com serenidade (Gelassenheit) esta
terra. “Heidegger confia na potência silenciosa da meditação” (GIACOIA
JR, 2013, p. 103) A Preocupação com a cura e o viver é uma pauta
importante para Heidegger que foi também, o filósofo que construiu como
possibilidade a ponte para a expressão budista chinesa Tao. “Ser-no-
mundo é existir como cura (...). Como ex-sistência, o ser-o-aí é no mundo
como cura, preocupação e cuidado com o mundo, que é também uma
dimensão essencial dele. (GIACOIA JR, 2013, p. 79-80)”. Para Stangl,

Heidegger foi ao limite, sua filosofia está sobre a


linha divisória entre Ocidente e Oriente, talvez sua
mensagem possa contribuir para reunir esse todo,
fragmentado e desunido, que é a humanidade de
hoje. Uma possível analogia para a palavra chinesa
Tao é com a idéia de Caminho, assim como Logos,
Tao é intraduzível, sendo por isso chamada de
palavra-guia. (STANGL, 2009, p. 1)

A linguagem buscada por Heidegger certamente é aquela que


pudesse acolher o ser em uma época de indigência. Que por sua vez,
acolhesse a sua angústia e medo. “O estado de humor fundamental com o
qual Heidegger tenta nos afirmar em Ser e Tempo é a angústia. Ele
observa que medo e angústia muito raramente têm sido distinguidos, e
isso ocorre por que eles são fenômenos claramente afins.” (GREAVES,
2012, p. 82). No mundo, lugar, onde o humano não encontrava mais
sentido no ser. Foi neste que foi desvelado o caminho feito por Heidegger
desde o início dos seus escritos com a volta/retorno à pergunta pelo
sentido do ser neste mundo.
Compreender a existência humana enquanto ser lançado, o-aí é
lidar com a facticidade, que embora esteja para este ser enquanto aquilo
que aparece, surge, sem previsão ou controle. O ser-no-mundo relaciona-
se com as coisas e com o mundo que habita. Em uma existência
perpassada pela indigência, logo a angústia e as ansiedades são fazedoras
de moradas no ser-aí, Porque,

A fonte da minha ansiedade não possui nenhuma


localização particular, não posso vê-la vindo sobre
mim aqui ou ali. Fico ansioso por nada e minha
ansiedade vem de nenhum lugar. Esse “nada” e
“nenhum lugar” permitem que se tornem aparentes
não coisas e circunstâncias particulares, mas sim o
75

mundo total no qual coisas e circunstâncias


aparecem. Aquilo diante do qual fico angustiado é
efetivamente meu mundo total: “Aquilo em face do
que se tem angústia é ser-no-mundo enquanto tal”.
(GREAVES, 2012, p.82).

A feitura do habitar, em si, já constitui um lugar de pertencimento,


de acolhimento e segurança. O mundo é um complexo integrado de
múltiplos acontecimentos. O Dasein é a representação do ser-aí enquanto
ser-no-mundo e ser-com-os-outros. “Um tipo originário de cuidado de si,
de préstimo e cura das possibilidades sempre abertas que constituem
nossa existência. Existir significa (...) ser-com-os-outros.” (GIACOIA
JR, 2013, p. 74)
A pre-ocupação aqui também observada a partir desta análise é
que, ao passo que o ser é cura, ela necessita ser pura para o mundo. Este
é aquele que vive como o destruidor de mundo, ou destruidor de si
mesmo. Logo, como os outros habitarão um mundo em trevas? O Dasein
é o desdobramento do ser-o-aí em processo permanente de devir.
Para Tom Greaves, em sua obra “Heidegger”, os desdobramentos
acerca do Dasein heideggeriano são um tanto profundos. Greaves
desenvolve os diversos sentidos desta palavra para problematizar o
diálogo entre ser e mundo; ele costura a forma fatídica de como os fatos
da vida manifestam-se tempestivamente,

Nunca nos apresentamos como uma tela de


possibilidades completamente em branco; sempre
nos encontramos jogados em circunstâncias que
não são inteiramente feita por nós. Contudo, por
outro lado, a facticidade das novas vidas nunca é
algo que simplesmente apresenta nela mesma como
as coisas são, nunca é o tipo de “fato bruto” que
pertence a coisas que podemos simplesmente
observar como sendo o caso. (GREAVES, 2012, p.
40)

Lidar poeticamente com a linguagem é buscar nela o seu abrigo,


mesmo esta sendo o próprio risco. Ou a clareira, lugar onde se estar
guardado do mundo e aberto à experiência do Dasein voltando-se aos
desdobramentos do mistério, porque deste movimento o ser-aí é re-velar-
ação e velar. “A compreensão heideggeriana tem um lado cognitivo:
entender, aprender o sentido de, inteirar-se de, tomar consciência.”
(GIACOIA JR, 2013, p.77).
76

Heidegger demonstrou que a linguagem é uma morada, que por sua


vez, construída através da história do ser, pode habitar-se poeticamente.
Mas é justamente à sombra do perigo que urge retomar as palavras dos
poetas e pensadores, da arte e da filosofia. Neste caso específico, a poesia
de Hölderlin: “Lá onde há perigo, cresce também aquilo que salva (...)”
(GIACOIA JR, 2013, p. 104).
Continuando com Giacoia Jr, sobre a capacitação da linguagem
“Nessa fórmula, compreender evoca, sobre tudo, um poder, um dom ou
uma capacitação.” (GIACOIA JR, 2013, p. 77) A linguagem (Rede) é
decifrada para ele como

Fala, discurso, palavra, linguagem (Rede):


entender de ser, poder ser, compreender em sentido
ontológico é encontrar-se em uma disposição
básica de abertura compreensiva, prévia e tácita, de
preocupação com o ser. Nesse sentido,
compreendemos o que significa ser, sabemos mais
ou menos o que queremos dizer quando
empregamos a palavra “ser”. (GIACOIA JR, 2013,
p. 77).

Para Giacoia Jr, a condição do ser-o-aí primordialmente, enquanto


Ser habita a linguagem.

Na condição de ser-o-aí, o homem habita a morada


do Ser, a linguagem. Ao falar, ele traz à luz,
manifesta o que os entes são em suas respectivas
essências; assim, ele exibe, desvela os entes em seu
ser. Todavia, essa dimensão do habitar humano no
cotidiano de sua existência natural é marcada pela
dimensão pública do falar, pelo linguajar
característico do existir coletivo, genérico,
impessoal. (GIACOIA JR, 2013, p. 78)

O ser-no-mundo é relacional. Vulnerável. Necessita habitação,


enquanto aquele que constrói o próprio habitar, como aquilo que o
resguarda entre o céu a terra. Ao passo que o tornar-se é a autenticidade
do Ser, segundo Giacoia Jr. “Existir no mundo da autenticidade é um
tornar-se, porque o ser-o-aí, desde sempre, advém na linha temporal de
um passado histórico que o precede, como membro de uma família e
sociedade, em um ponto do espaço prévio e toda deliberação ou escolha.”
(GIACOIA JR, 2013, p. 79).
77

Mesmo a poesia sendo aquilo que através da razão é traduzida via


conceitos de sensações, a linguagem poética é dita repetidamente
tentando dizer o mistério. O não dito contido na palavra dita, naquilo que
não é pela linguagem traduzida. Porque

Linguagem (logos), em sua determinação


(bestimmung), é desvelamento. Metaforicamente,
ela pode figurar como a clareira em que se mostra
a essência dos entes, que se tornam fenômenos para
o ser-o-aí, seu curador. A linguagem é, portanto, a
“morada do Ser”, e o homem é o ente que habita
po(i)eticamente essa casa. (GIACOIA JR, 2013, p.
96)

Por isso, a ideia de habitar, a partir de Hölderlin é construída e


estruturada pela via do sagrado, e assim permitida sobre o olhar da
quadratura. Em relação a isto, Luciana Dias, traz a questão daquilo que
como mistério e velamento mostra-se como atravessamento para o ser-
no-mundo nesta vida a “existência”. Então,

A própria questão do ser é um exemplo claro disto.


Falar sobre a questão do ser em Heidegger, porém,
não é uma tarefa fácil. Não apenas pela dificuldade
intrínseca a seu pensamento, mas porque esta
expressão acabou caindo de tal forma naquele tipo
de jargão tantas vezes repetido de forma vazia que,
embora tomada à exaustão por comentadores,
livros e manuais, ainda assim soa, na maior parte
das vezes, muito mais enigmática do que
esclarecedora. A questão do ser é por Heidegger
apresentada sobretudo como “mistério”. Como nos
diz Karl Löwith, Heidegger “não sustenta saber o
que o ser é. Ao contrário, ele sustenta que não se
pode saber” (LÖWITH, 1995, p. 46). Não que o ser
seja algo como “um conhecimento secreto
esotérico para iniciados”, mas antes porque há uma
dimensão de velamento constitutiva à existência
humana. (DIAS, 2015, p. 120)

O que pertence ao humano em sua forma de tradução da linguagem


da poesia, aquela cantada pelos deuses foragidos, secreta e profunda,
serve para dar habitação ao humano. Porque,
78

A pergunta que Heidegger põe não é sobre o “ser”


em nenhum dos termos de uma metafísica ou
ontologia tradicional. Requestionar a pergunta
acerca do ser significou, para Heidegger, recolocar
todo o âmbito no qual esta fora posta, já para além
dos limites da tradição e do modo como a
metafísica entende a ontologia. Isto é: será para
além da ontologia da substância e da entificação do
ser que Heidegger pretenderá re-abordar a questão
do ser. Ou seja, Ser, em Heidegger, não se referirá
a nenhum tipo de categoria ou “essência
transcendente” do real. Como observa Rorty, “a
linha entre ser e linguagem é tênue em Heidegger”
(RORTY, 1991, p. 38), a pergunta acerca do ser
seria, de certa forma, a própria indagação acerca
dos sentidos do “verbo” ser, não como simples
“categoria gramatical”, mas referindo-se à
instância matriz de possibilidades de significação e
significabilidade, àquilo que nos possibilita pensar
cada ente singular – o que nos possibilita “predicá-
los”, isto é, pensá-los. (DIAS, 2015, p. 120)

A partir de todo o exposto, costura-se por via daquilo que Hölderlin


cantou em sua poesia “Poeticamente o homem habita” e Heidegger
meditou sobre este cântico, trazendo para via do habitar poético as suas
indagações sobre a existência em curso que desenvolvem os seus ensaios
e conferências como: “Construir, habitar, pensar” e “...Poeticamente o
homem habita...”, para pensar uma construção poética que pudesse ser
habitada poeticamente no mundo ou mesmo “Para quê poetas?”. Mesmo
tal filosofia conduzindo para o des-velamento daquilo que ao pertencer ao
Ser estava perdido em um mundo de devastações e ruínas

Entender como poesia, pensamento e história se


atrelam – e como, em sua relação, conduzem à
pergunta pela técnica característica da última fase
de seu pensamento – é talvez a maior dificuldade
da fase tardia do pensamento de Heidegger. Ao
mesmo tempo, responder como – e se – pode o
niilismo oriundo da visão técnica do mundo ser
superado, é a pergunta que permanece. (DIAS,
2015, p. 124).

A complexidade do construir e habitar dá-se primeiramente por via


de um contra-movimento feito pelo ser, quando este deseja pertencer à
79

linguagem. Construindo, habitando e pensando conjuntamente. Ou seja,


para que isto ocorra, o tempo do habitar deve ser um tempo pautado no
resguardo da quadratura. “Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando
os deuses, conduzindo os mortais, é assim que acontece. Habitar é bem
mais um demorar-se junto às coisas. Enquanto resguardo, o habitar
preserva a quadratura naquilo junto a que os mortais se demoram: nas
coisas.” (HEIDEGGER, 2001, p. 130-131).
É com termos como: serenidade, meditação, paz, segurança, cura
do mundo e pre-ocupação, expressões iniciadas nos escritos de
Heidegger, que ele expressa os frutos da pre-ocupação original com a
forma de viver do ser-no-mundo e preservação do mundo. Luciana Dias
cita o cenário, aquele talvez, o qual Heidegger poderia se interpelar,

São faces de um mesmo acontecimento, cenário do


fim da metafísica, sob a racionalidade da técnica e
da vontade de poder, que respondem pela essência
do Niilismo. Desse acontecimento são signos a
devastação da terra, o exílio ou o apatridismo do
indivíduo, a massificação, o totalitarismo e a “fuga
dos deuses” como um tom de abandono inerente ao
mundo de hoje. Seu reflexo se daria, na estética, na
redução da experiência da arte a uma experiência
da distração e, da poesia, a um ramo da literatura,
com o obliteramento de toda dimensão poética da
existência. O mundo assim se abre como uma
“armação” (Gestell), como um esqueleto ou
dispositivo que por mais que seja composto de
inúmeras peças, mostra-se esvaziado de
significado. Hoje se tem o supremo momento do
esquecimento de toda diferença ontológica, no
qual, após a ontificação absoluta e o esquecimento
de todo mistério subjacente à possibilidade mesma
de compreensão, tem-se uma ciência que é
funcional, reduzida à produção de técnicas que,
longe de buscarem a compreensão da realidade em
totalidade, constituem-se como ferramentas de
“controle” e domínio dos entes, num progresso
técnico que retroalimenta a si mesmo. (DIAS,
2015, p. 124).

Poder-se-ia dizer que este filósofo visava uma determinada


filosofia que projetasse o Ser para a dimensão do cuidado-de-si e do
mundo, já que o mundo estava imerso no esquecimento. Martin Heidegger
80

viu o quanto a humanidade estava falida, naquilo que diz respeito ao trato
cuidadoso com si mesmo e com aquilo que estava sendo construído no
mundo. Assim, para Heidegger o Ser é fazedor de mundo.

Para Heidegger, na linguagem de-mora o ser. O


Sendo só pode se re-velar através da linguagem, se
o pensamos ele “é”, pois o pensar aproxima o ser
da Clareira (onde sua pre-sença contrapõe-se ao
ente). A imagem de uma floresta assemelha-se à
existência humana, vários são os caminhos
possíveis para se chegar à Clareira. (STANGL,
2009, p. 03).

Um mundo que já não preservava a escuta e a fala cuidadosa. Que


estava em guerra por princípios um tanto frágeis, dizimando centenas e
milhares de famílias. Com certeza, o cenário deste tempo vivido por
Heidegger impulsionou o re-pensar sobre as coisas e suas essências. A
pergunta pelo sentido do ser é um retorno, aquilo que foi esquecido, pois
para Heidegger o Esquecimento do Ser, neste tempo de indigência, estava
latente nas relações do homem e mundo. Uma viagem ao Oriente, para
Heidegger, é uma possibilidade de re-encontro com aquilo que é
fundamental para ele; o “Ser e o Tempo” e o “Tempo e o Ser”.
“Poeticamente o homem habita a linguagem”, pois ele é concebido
dentro deste seio sagrado e profano. Livre e enclausurador, manifestado
através da existência em curso. Através do pulsar e refrear em que o
mundo manifestado como mundo, abre-se ao homem.

A linguagem é a morada do ser. Na habitação da


linguagem mora o homem. Os pensadores e os
poetas são os guardiões dessa morada. Sua vigília
consiste em levar a cabo a manifestação do ser, na
medida em que, por seu dizer, a levam à linguagem
e nela a custodiam. (HEIDEGGER, 2008, p. 326).

2.4. A RELAÇÃO MARTIN HEIDEGGER E FRIEDRICH


HÖLDERLIN

A relação Martin Heidegger e Friedrich Hölderlin é sinuosa,


serena, angustiante, plena, diversa. Esta relação na qual esta dissertação
debruça-se advém do atravessamento; colisão; contraposição; choque do
poético com o filosófico ou do filosófico e do poético.
81

A filosofia de Heidegger é sombreada pela poesia de Friedrich


Hölderlin, e com muita beleza e cuidado, isto acontece. Werle comenta,

Certamente podemos afirmar que o encontro com a


poesia de Hölderlin foi decisivo para Heidegger na
determinação dos rumos do seu pensamento. Esse
encontro deu-se pela primeira vez, de modo
explícito, em 1934, com a interpretação dos hinos
de Hölderlin intitulados “Germânia” e “O Reno”.
Tratava-se naquele instante, de encontrar um solo
mais fecundo para a principal questão de seu
pensamento: a que se refere ao do ser, lançada em
1927 no tratado Ser e Tempo. Depois do texto do
início dos 30, com A essência da Verdade, Sobre a
essência do fundamento e A doutrina da verdade
de Platão, torna-se claro ao filósofo que a questão
do ser já poderia mais ser desenvolvida de acordo
com um pensamento conceitual, que se ativesse
apenas ao enunciado lógico. Assim, ele se viu na
necessidade de dar um passo mais adiante, na
direção de um encontro com a poesia, de modo que
pudesse efetivamente transitar pelas regiões
tortuosas e inusitadas do ser. Começa aí um diálogo
que acompanhará Heidegger até o fim da sua vida...
(WERLE, 2005, p.12)

A correspondência que dá asas ao encontro entre um poeta e um


filósofo surge de algo direcionado à transcendência do tempo da poesia
de Hölderlin para um século depois, onde se encontrava Heidegger.

Pode-se dizer, sem hesitação, que o filósofo do ser,


desde sua juventude, sempre teve uma convivência
intensa com a obra do poeta sábio e se manteve
muito próximo dela, independentemente de apenas
nos anos 30 começar a interpretá-la. Os textos
sobre o poeta, sob essa perspectiva, guardam em si
algo que transcende os limites das interpretações e
remete a certos modos de pensar presentes em
Heidegger que surgiram justamente a partir do
contato com Hölderlin. Isso, no entanto, não deve
levar à ideia de que ele simplesmente foi
“influenciado” pelo poeta ou de que o “adaptou” ao
seu pensamento. (WERLE, 2005, p. 15)
82

Uma poesia que anunciava ao tempo de Heidegger o tempo “da


noite no mundo”; “o tempo indigente”, a “ausência dos deuses foragidos”.
Os cânticos de Hölderlin foram um tocante para o pensamento deste
filósofo. A falta transpassada advinda da ausência do Sagrado. Segundo
Luciana Dias,

Contrapondo a compreensão clássica de


transcendência à concepção heideggeriana,
podemos perceber que Heidegger ([s.d.], p.33)
propõe, de certo modo, uma “transcendência
imanente” de abertura do ente ao mundo fático, ou
seja, a realidade em que as coisas acontecem em
imersão com o Dasein. Essa ultrapassagem
corresponde ao ente que entra em contato com o
mundo, pela via da abertura de si, ultrapassando a
si próprio e aos impedimentos que lhe são
impostos, encontrando-se com o sentido de ser-no-
mundo (Sein-in-die-Welt), do estar-aí-humano
(Dasein), como nos reforça Paiva: “Transcendência
é um ir além, que não se situa no espaço, mas no
tempo (...). É a passagem do fato ao significado, do
ente ao Ser” (DIAS, 2014, p. 244).

No soar das palavras que Heidegger escreve sobre Hölderlin é


notado o intocável mistério do impenetrável tentando ser traduzido e
interpretado pela linguagem. Pela via da necessidade daquilo que, como
velado, vem à luz como o aberto. “Sobre o fundamento do ente,
nomeadamente sobre o ser enquanto risco por excelência, o poema não
diz nada diretamente.” (HEIDEGGER, 2014, p. 321).
Heidegger encontra sentidos nos poemas de Hölderlin como dentro
de caminhos de floresta. Uma escuta originária e fundamental para chegar
ao alcance dos sentidos, que mostram-se como vestígios dos deuses
foragidos.
Heidegger reconhece os poetas como guardiões-mensageiros dos
deuses. A poesia de Hölderlin é propriamente a cura, como manifestação
daquilo advindo do Sagrado. No invisível do espaço interior. Ao passo
que Heidegger era impactado pela silenciosa e barulhenta poesia de
Hölderlin, ele era enfeitiçado pelo dizer poético, ou pela palavra poética
deste poeta. “A rigor, podemos assumir que poetas habitem poeticamente.
Mas como entender que “o homem”, ou seja, que cada homem habite
sempre poeticamente?” (HEIDEGGER, 2001, p. 165). Heidegger pegou
para si a tarefa de desvendar os poemas de Friedrich Hölderlin, como obra
83

mediada pelo exercício fenomenológico do poema como aquilo que


aparece ao aberto no mundo dos mortais e dos deuses. Pois,

O exame da relação do filósofo com o poeta, a


partir de um ponto de vista de pensamento, parece
ser um procedimento adequado justamente por
causa da natureza da operação praticada pelo
primeiro em relação ao segundo. Pois a obra do
poeta não é só vista por Heidegger a partir de uma
questão de pensamento, mas principalmente como
constituindo uma questão de pensamento. O que
temos, então, mais uma vez, no pensamento de
Heidegger, é uma reflexão de cunho
fenomenológico que se move totalmente fora de
qualquer ciência, mesmo da ciência da literatura, se
é que é possível falar em ciência neste caso. No
tocante a esta última, podemos observar que
questões vitais para ela, tais como as que se referem
à forma ou ao estilo, questões “históricas” ou de
“tradição literária”, não adquirem espaço na
interpretação de Heidegger, embora não deixem de
ser por vezes mencionadas. O sentido dessa
exclusão é de cunho fenomenológico, porquanto o
que importa é o tratamento direto, sem nenhuma
intermediação, do dizer da palavra poética que
emana do próprio poema. Somente assim se torna
possível o diálogo, essa que é a forma segundo a
qual Heidegger entende sua relação com Hölderlin.
E desse modo, o pensador também poderá estar em
contato direto com o poeta, bem como este com
aquele, e algo de autêntico poderá vir à luz, ou até
mesmo se ocultar, mas sempre de modo
verdadeiro. (WERLE, 2005, p. 14)

O diálogo entre Heidegger e Hölderlin trouxe para o filósofo uma


expansão em sua forma de de-morar-se sobre a terra. Nos textos em que
Heidegger se refere a Hölderlin, o solo é regado pelo sensível. No texto
“...Poeticamente o homem habita...”, Heidegger chama a atenção:

São palavras extraídas de um poema tardio de


Hölderlin, legado de forma peculiar. O poema
começa assim: “No azul sereno floresce a torre da
igreja com o teto de metal...”. Para ouvir com
inteireza as palavras “...poeticamente o homem
84

habita...”, é preciso devolvê-las cuidadosamente


para o seu poema. Cabe-nos pensar essas palavras.
(HEIDEGGER, 2001, p. 165).

Então, para quê poetas em tempo indigente? A colaboração


dialógica: filosofia e poesia propõem uma reestruturação da Formação
Humana que empreenda o filosofar em sua forma prática com o existir e
o poetar em desenvolver o sensível e o aprofundamento do conhecimento
sobre a existência em curso.

Os poetas são os mortais que, cantando com


seriedade o Deus do Vinho, sentem os vestígios dos
deuses foragidos, permanecendo sobre estes
vestígios e assim apontando aos seus irmãos
mortais o caminho da viragem. O éter, no entanto,
onde somente os deuses são deuses, é a sua
divindade ainda se essência (west) é o sagrado.
(HEIDEGGER, 2014, p. 312).

O material do poeta como sua própria manifestação daquilo que


faz de si mesmo, é, enquanto linguagem, morada e cura do mundo.
Heidegger diz que as poesias de Hölderlin passarão. É um material que
enfrenta o tempo; o devir, sendo como o próprio risco “um agora sem
duração”. Pois,

Assim como jamais será possível ultrapassar o


precursor, tampouco o precursor é efêmero. Por
isso, a sua poesia permanecerá para sempre como
algo já-essenciado. O que na chegada se essência,
regressa, reunindo-se, ao destino. Aquilo que, desta
forma, jamais cairá na sucessão do passar, supera à
partida toda a transitoriedade. Aquilo que se limita
a ser transitório é já mesmo antes de ter
desaparecido, o sem-destino. O já-essenciado, pelo
contrário, é dócil ao destino. Na pretensa
eternidade esconde-se apenas um transitório
armazenado, armazenado no vazio de um agora
sem duração. (HEIDEGGER, 2014, p.367).

Martin Heidegger, filósofo da experiência, com o desenvolvimento


de uma filosofia prática entre o poético, estético e fenomenológico,
disponibiliza, a partir de seu texto "Para quê poetas?”, uma reflexão sobre
a dimensão existencial apreendida aos seres humanos e seu percurso na
85

vida labiríntica - caminhos de Floresta - em risco, em que o poético e o


filosófico se encontram ancorados em uma única necessidade: o cuidado
de si e com o mundo.

O poema pensa o ser do ente, a natureza, como


sendo o risco. Todo o ente é arriscado, está na
balança. A balança é o modo como o ser, em cada
caso, pensa o ente, quer dizer, mantém-no no
movimento de pensar. Todo o arriscado encontra-
se em perigo. Consoante a natureza da sua relação
com a balança, também a essência do Anjo
necessita de se esclarecer, admitindo que ele é o
ente de um grau mais elevado dentro de todo esse
âmbito. (HEIDEGGER, 2014, p. 359)

A força que Heidegger observa sobre os poemas de Hölderlin,


mostra-se como algo que aparece como mensagem de outro mundo; como
vestígios dos deuses foragidos. O aberto da poesia é aquilo que advindo
do cânticos dos deuses nunca esteve totalmente encoberto, abre-se como
uma conexão pura. Pois, mostrava-se perante os vestígios dos deuses
foragidos. Desta maneira,

Hölderlin é o precursor dos poetas em tempo


indigente. Por isso, também nenhum dos poetas
desta era o poderá ultrapassar. O precursor, porém,
não parte para um porvir, mas, antes pelo contrário,
chega dele, de tal forma que, apenas no advir da sua
palavra, o porvir se essência em presente [anwest].
Quanto mais pura for a chegada, mais essencial se
torna o ficar. Quanto mais encobertamente a saga
anunciadora [Vorsage] poupar o porvir, mais puro
será o advir. Por isso seria errado pensar que o
tempo de Hölderlin apenas chegará quando, um
dia, “Todo o mundo” entender o seu poema. Ele
jamais chegará de um modo tão amorfo. Pois, é a
própria indigência que fornece à era do mundo as
forças com as quais, sem saber o que está a fazer,
impede que a poesia de Hölderlin se torne
oportuna. (HEIDEGGER, 2014, p. 367).

A Filosofia, segundo Heidegger, não deve entrar em águas poéticas


com seus conceitos. Assim, confundirá a sua essencialidade com o
conhecimento filosófico. Sendo assim, valioso é este esclarecimento de
86

Heidegger em defesa da pureza poética em sua originalidade e


permanência,

Mais difícil e suspeito é, porém, outra coisa: que


agora, a Filosofia se lance sobre uma obra poética.
Afinal, o escudo e a arma da Filosofia é – ou ao
menos devia ser – a fria audácia do conceito.
Agora, substitui-se ao perigo da dissecação o da
destruição pelo pensamento, tanto mais que parece
que o pensamento, em breve, será totalmente
abolido. Existe um perigo de decompormos a obra
poética em conceitos, de vasculharmos um poema
apenas em busca de opiniões filosóficas do poeta e
de teoremas, de, a partir daí, construirmos o
sistema filosófico de Hölderlin e de, a partir dele.
<explicarmos> a poesia, de acordo com o que
costuma ser designado por explicação. Queremos
poupar-nos a tal modo de proceder, não por
pensarmos que a Filosofia tenha de ser mantida
afastada da poesia de Hölderlin, mas porque aquele
processo amplamente utilizado nada tem a ver com
Filosofia. Mas se há algum poeta que reclame a
conquista intelectual da sua poesia, é este o caso de
Hölderlin, e não é, de modo algum, por ele, como
poeta, ter sido <também filósofo>, e até um que
podemos colocar sem quaisquer problemas ao lado
de Schelling e Hegel. Pelo contrário, Hölderlin é
um dos nossos maiores pensadores, isto é, o nosso
pensador com mais futuro, por ser o nosso maior
poeta. A dedicação poética à sua poesia só é
possível como confronto pensante como a
Revelação do Ser que nela foi alcançada. Apesar
disso, a aparência e, também, o perigo da
dissecação desta poesia e da destruição pelo
pensamento acompanhará constantemente o nosso
trabalho, tanto mais quanto menos soubermos
ainda do poetizar, do pensar e do dizer, quanto
menos experimentarmos como e por que estes três
poderes pertencem intimamente ao nosso ser-aí
original e histórico. O nosso proceder, em geral,
subordina-se, portanto, totalmente, à lei singular de
Hölderlin. (HEIDEGGER, 2004, p. 13).
87

Vimos que a poesia de Hölderlin teve momentos de ascendência


dentro da filosofia de Heidegger. É como se, visualizando águas
profundas, um material subisse para a superfície. A preocupação de
Heidegger em preservar a autenticidade do espirito poético é notada
também na citação acima. Isso denota tanto uma delicadeza com a
filosofia e a poesia quanto uma responsabilidade enquanto filósofo que
entende a profundidade de ambas. “O tempo do mundo é uma criança
jogando gamão; o domínio pertence a um jogo infantil.” (HEIDEGGER,
2014, p. 321). Isto mostra que há neste mesmo filósofo uma morada
poética-filosófica, entre-abraçadas. A de-mora sobre a sua própria história
no mundo.
Assim, a construção da perspectiva da morada poética, explícita no
texto de Heidegger “Para quê poetas?”, a partir do seu enredo misterioso,
denuncia a possibilidade de uma mística na relação: ser e existência. A
construção, a partir do sensível, na Filosofia da Educação, com a
ferramenta poética-filosófica, compreende necessidades íntimas dos seres
humanos e também suas complexidades sendo aquelas que perpassam o
medo e angústia. Valendo-se do ser-o-aí enquanto risco, é assim que estas
necessidades sobrevoam o cenário heideggeriano:

Será que nós, hodiernos, encontraremos sobre esta


via, um poeta hodierno? Será que encontraremos
aquele poeta que hoje em dia, frequente e
apressadamente, se vê arrastado para a
proximidade do pensamento que está escondido
por debaixo de muita filosofia mal pensada?
Coloquemos, porém, estas questões com o rigor
que lhes é adequado. (HEIDEGGER, 2014, p.314)

De forma que se faz absolutamente necessário meditar a respeito


da relação entre o poético e o filosófico, para conduzir um construir que
resguarde o ser-no-mundo, em risco. “É longo o tempo porque mesmo o
horror, tomado como um fundamento da viragem, não é capaz de nada,
enquanto não se der uma viragem com os mortais.” (HEIDEGGER, 2014,
p. 311).
Vivendo em tempo indigente, os mortais necessitam realizar a
viragem ou até saltar para a outra margem, como cita Octavio Paz. “Esta
viragem” e “este salto” podem estar relacionados à poesia existencial ou
ao habitar poético, sendo como aquilo que, advindo da quadratura
possuem morada no ser, por via da linguagem. Pois para Heidegger, no
seu texto, há um canto pela necessidade da existência de poetas na “noite
do mundo”, já que os deuses partiram em fuga. O filósofo compreende,
88

A essência do poeta que, em tal tempo do mundo,


é verdadeiramente poeta, pertence ao facto de, para
ele, de antemão e a partir da indigência do mundo,
o poetar e a vocação poética se tornarem questões
poéticas. Por isso, os “poetas em tempo indigente”
têm que poetar a própria essência da poesia. Onde
isto acontecer, deve supor-se um poetar que se
conforma com o destino da era do mundo. Nós
temos de aprender a escutar a fala destes poetas,
desde que não nos iludamos em relação ao tempo
que encobre o ser, ao albergá-lo, de modo que
calculamos o tempo partindo do ente e dissecando-
o. (HEIDEGGER, 2014, p. 313).

Heidegger se pergunta de modo atento sobre como os poetas


habitam esta terra, de forma que ele considera o fazer do poeta como
poiesis onde o poeta produz o seu olhar na vida em curso. Por esta via,
nota-se que não só o material produzido por Hölderlin chamava a atenção
de Martin Heidegger, mas a forma como Hölderlin habitava esta terra, ora
cantando os deuses hora cantando os mortais. Heidegger esclarece sobre
Hölderlin “Quando Hölderlin fala do habitar, ele vislumbra o traço
fundamental da presença humana. Ele vê o “poético” a partir da relação
com esse habitar, compreendido nesse modo vigoroso e essencial.”
(HEIDEGGER, 2001, p. 167) Heidegger dialoga com Hölderlin
visualizando a estrutura proporcionada pela poesia deste poeta, para
pensar a construção do habitar no seu mundo presente.

Se, de antemão, a poesia apenas possui existência


na forma do literário, como habitar humano pode
fundar-se no poético? As palavras – o homem
habita poeticamente – foram pronunciadas por um
poeta e, de fato, por um poeta em particular que,
como se costuma dizer, não deu conta da sua
própria vida. A arte do poeta consiste em
desconsiderar o real. Em lugar de agir, os poetas
sonham. (HEIDEGGER, 2001, p.166)

Isto constitui o poeta, os olhos que veem os “vestígios dos deuses


foragidos”. Os poetas são capazes de capturar as sombras do sagrado. De
acordo com a experiência de Hölderlin, é Dionísio, o deus do vinho, que
traz estes vestígios aos homens sem-deus envoltos pela escuridão da sua
noite do mundo, porque o deus das videiras guarda nestas e nos frutos
89

destas, simultaneamente, a co-pertença originária da terra e do céu como


o terreiro festivo onde se celebra a união entre os homens e os deuses. A
poesia de Hölderlin representa o próprio deixar habitar. Ou seja, o ser
como aquilo aberto ao encontro com a quadratura dá morada àquilo que
existe em céu e terra. Vale repetir isto, porque para Heidegger é
fundamental que saiba-se que “Poesia é deixar-habitar, em sentido
próprio. Mas como encontramos habitação? Mediante um construir.
Entendida como deixar-habitar, poesia é um construir.” (HEIDEGGER,
2001, p. 167).
Aquilo que é dito poeticamente é deixado habitar. O poeta é um
experimentador da vida enquanto aquele risco-aberto a sua própria obra
enquanto mensagem dos deuses. Sendo assim, citando a poesia de
Hölderlin: “Uma coisa é certa: seja ao meio-dia ou caminhe-se já para a
meia-noite, uma medida sempre se mantém, a todos comum, embora a
cada um seja concedida uma própria, para lá vai e de lá vem cada um
como pode.” (HEIDEGGER, 2014, p. 313).
Heidegger habitou poeticamente, e com certeza deixou-se habitar
pela poesia de Hölderlin. De modo que no seu sepultamento, aos 86 anos,
em 1976, foi solicitado que no momento do evento sepulcral fossem
“pronunciadas” palavras extraídas dos hinos de Hölderlin. (WERLE,
2005, p. 15)
Na obra “Meditação”, Heidegger desenvolve algumas meditações
acerca da sua própria filosofia ou como esta, que, como filósofo, nomeia
“Em uma interpretação livre e pensante” é como uma rebeldia “livre-
pensante-poética”.

A verdade (clareira) do ser é o


Ser da errância-
O erro (tanto quanto a riqueza) só é
Permitido neste lugar. Como porém, a inversão?
A clareira é o ab-ismo como necessidade
(indigência) da
Fundação. (HEIDEGGER, 2010, p 15)

As meditações de Heidegger são pinceladas serenas de palavras


poetizadas. São escutas cuidadosas que o filósofo almejou como mérito
para si em repouso sobre seu ser.

Por mais que o poeta possa querer ultrapassar a si


mesmo, ele jamais se abandona. É bem possível
que se caia nas alturas ou nas profundezas. Essa
última queda, só a elasticidade do espirito pode
90

evitar, ao passo que a primeira só se deixa impedir


pela gravidade própria de uma sóbria lucidez.
(HÖLDERLIN, 1994, p. 24)

As palavras de Hölderlin estiveram com Heidegger até o seu


sepultamento. Esta é uma grande demonstração de dedicação e
apaixonamento pela forma vívida de habitar poeticamente. Outra
meditação “2. O outro pensar”:

Toma o último fervor da bênção


Só do obscuro forno do ser,
Que ele acenda a contraposição:
Divindade - humanidade em um acontecer.
Joga a indigência da clareira ousada
Entre mundo e terra como canto
De todas as coisas erigir calada
Alegre gratidão por direito e mando.
Abriga na palavra o silencioso anúncio
De um salto para além do grande e pequeno ter,
E perde as descobertas – o vazio
De repentina aparência no caminho para o seer.
(HEIDEGGER, 2010, p. 12)

Não só a relação de Heidegger e Hölderlin é foco aqui neste


subcapítulo, mas seus desdobramentos, de como tal presença permanece
poeticamente nas palavras de Heidegger; já que a palavra, como ela é,
desvenda aquilo que necessita aparecer ao aberto, e vela, aqui também, o
que não está disposto ao aparecimento, estando como o estranho. Estas
meditações de Heidegger talvez podem ser vistas como um ensaio de uma
filosofia poetizada ou pensante, como esta aqui, “3.O salto”,

Toma, joga e abriga


E o salto seja
Desde a mais ampla lembrança
Até uma infundada região:
Porta para diante de ti
O uno quem?
Quem é o homem?
Dize sem cessar
O uno o quê?
O que é o seer?
Nunca despreza
O uno como?
Como é seu laço?
91

Homem, verdade, seer


Replicam desde a ascensão
Sua essência para a recusa
Na qual eles se emprestam.
(HEIDEGGER, 2010, p. 12)

A poesia é uma porta de acesso do “cuidado de si”, desnuda os


sentidos velados e coloca à tona vividamente o “desvelamento”, a
possibilidade do conhecimento de forma suave e branda, a partir de um
recolhimento meditativo ou de forma abrupta, porque também a
existência na medida fatídica é “angústia”33. “Ser-no-mundo é existir
como cura: seja ao modo do providenciar utilitário, no trato com objetos
e utensílios, seja a moda pré-ocupação como encargo, que se pré-ocupa e
toma sob seus préstimos.” (GIACOIA JR, 2013, p. 79).
Outra meditação de Heidegger desvela A palavra:

Nada, lugar algum nunca


Ante cada algo, ante todo então e ali
Se eleva a palavra
Desde o abismo, que emprestou
Aquilo que a todo fundamento
Malogrou
Uma vez que só a aliança
Com o dito
Toda coisa em coisa arma
E os perseguidos
Sentido confusamente dispersa.
(HEIDEGGER, 2010, p. 14)

Embora longa, contínua e arriscada, a filosofia de Heidegger


também é um trabalho de escuta, e estando na fala é uma preparação para
o recolhimento. Levar a cabo esta tarefa de perceber tanto a fala pelo
silêncio de Heidegger e Hölderlin ou o atravessamento das duas, é uma
de-mora na escuta da palavra falada da filosofia heideggeriana do habitar
e das poesias de Hölderlin.

33
“(Angst) é a mais fundamental dessas disposições basais do afeto, na medida
em que concerne não aos entes intramundanos, mas o ser-o-aí no mundo. Não se
trata de temor ou ansiedade pela perda de um objeto presente ou virtual, pela
cessação de um estado de coisas, mas um ânimo que abrange todas as
possibilidades de ser do ser-o-aí em sua raiz: tensão entre ser-si-próprio e perder-
se, desgarrar-se, a possibilidade sempre presente de falta de si.” (GIACOIA JR,
2013, p.75)
92

Na obra “Hölderlin – Reflexões”, traduzida por Françoise Dastur,


ele cita Hölderlin. “As palavras nascem como flores”, disse o poeta em
um verso. Ainda, mais abaixo ele reafirma, “O princípio da poesia de
Hölderlin é a escuta.” (DASTUR, 1994, p. 13) Então, desde acima, a
partir da mostra das meditações de Heidegger, é interessante meditar
sobre a escuta das escritas de Heidegger nesta abertura da sua obra, que
parece tão poética, dizendo deste modo a sua filosofia como aquela
pensada a partir da poesia da vida. Nesta “6b. O ser-aí”,

Que ser-aí seja dizer o seer


A partir dele a indigência
Exportar
Para a amplitude de um vislumbre todo oferta.
Que ser-aí seja o ser para aquele
Em desperta escuta
Recolher,
Que calma por obra escolheu.
Que ser-aí seja decantar o seer,
De distante canto
Trazê-lo de volta à casa,
O que há muito como poder sua essência voltou.
(HEIDEGGER, 2010, p. 14)

Heidegger também canta a libertação da sua filosofia através da


sua escrita. Hölderlin acompanha Heidegger por entre a vida. Esta relação
dá-se pela via do risco, o experimento e a ousadia de Heidegger que o
lançou para as águas das poesias de Hölderlin. Certamente pelo que a
Filosofia não conseguia dizer por este caminho. Nesta outra meditação
chamada “Não conhecemos Metas”, Heidegger nos instiga a pensar a
partir destas palavras:

Não conhecemos metas


E somos apenas um curso.
Não precisamos de muitos,
Aos quais há tempos já devorou
O ofã dos produtos do fazer-
Que alguém a princípio traga
O coração para a voz
Do silêncio do seer,
Que o elemento selvagem espanca
No cofre fundacional
É nossa coragem.
(HEIDEGGER, 2010, p. 14)
93

Sobre esta libertação, aqui, pode ser compreendido, como o


próprio Heidegger vai finalizando,

Início de uma aptidão para a grandeza,


Senhora, divina, do desvelamento, que nunca
revogues minha
Insistência em ti por meio de uma selvagem e dura
(tosca) inversão.
(HEIDEGGER, 2010, p. 15)

As palavras silenciosas de Heidegger são proporcionadoras de


escuta, e lançam-se para a escuta fundamental, a meditação, como uma
iniciação; algo que se ascende, “levantando os olhos para o alto”;
escutando os cânticos dos poetas; como uma permanência na serenidade
da escuta. Uma inicialidade ascendida, aquilo que aproxima e dá distancia
ao deus34. Contudo,

Da clareza do seer ascende a inicialidade de algo


único no ente que, alheio a comparações, já
perdurou mais do que toda “eternidade” computa
sempre a posteriori como um permanecer vazio e
indagada, em função de nos circunscrevermos a
ela, como um consolo infundado. A inicialidade de
algo único é a grandeza protegida a partir do seer –
seu início é a liberdade. Sua essência, porém, é o
domínio como sacrifício da doação da mais elevada
indigência a partir do festejo da guarda da
transposição sem violência para a região da
proximidade e da distância de deus.
(HEIDEGGER, 2010, p. 16)

O atravessamento visceral do processo enquanto existência


acontece entre o outro e o ser-o-aí, como sendo o outro que o habita, como
algo que em relação impele cuidado e preocupação, pois já que assim é,

34
E como deus estava sendo anunciado pelo poeta, ou já houvera sido anunciado
as existências dos deuses foragidos, Heidegger complementa a sua espera: “O
verdadeiro só acontece apropriativamente na verdade de que pertencemos à sua
essenciação, de que conhecemos o perigo da inversão como o perigo enraizado
na verdade e não nos imiscuímos nem tememos seu poder desencadeado,
insistindo no risco do seer, obedientes ao serviço único do deus que ainda não
apareceu, mas já foi anunciado.” (HEIDEGGER, 2010, p. 18).
94

O nosso tempo, em que a humanidade desolou a


terra a ponto de não mais saber celebrar pão, vinho
e uma caminhada. O nosso tempo, em que os
“lábios emudeceram”, os “corações desertificaram-
se”, o “amor tornou-se fome” e o divino idolatria
do si mesmo. (HÖLDERLIN, 1994, p. 14).

Neste sentido, para Giacoia Jr,

Essa relação não se limita à que estabelecemos com


os outros, mas está também ontologicamente
vinculada à relação que criamos conosco, a um tipo
originário de cuidado de si, de préstimo e cura das
possibilidades sempre abertas que constituem
nossa existência. Existir significa, em sentido
radical, cuidar de poder ser no mundo, que é
também (e não menos essencialmente) ser-com-os-
outros. (GIACOIA JR, 2013, p.73).

Nesse ponto há um diálogo entre dois distintos que se cruzam,


intertocam-se e olham-se; de uma forma ou de outra isso compõe uma
cena poética; traz junto ao coração, como cita Hölderlin; assim, dentro do
campo da possibilidade poderia ser para Martin Heidegger como aquele
que escuta o lado misterioso do seu amor-amizade, as palavras do poeta
“Como o amor, por sua vez, gosta de descobrir pela ternura desde que o
ânimo e os sentidos não se tenham intimidado e turvado em consequência
da dureza do destino.” (HÖLDERLIN, 1994, p. 24).
Dentre está hibridez é possível o encontro com o erro, como a
filosofia e poesia intercruzam-se por via do risco. Como na obra de
Heidegger “Arte y poesia”, Samuel Ramos o cita: “Tendría, pues, la
poesia dos caras, uma intrascendente y outra transcendente. ¿Em qué
sentido es la poesia transcendente? Es que “poetizar es dar nombre
original a los dioses” (HEIDEGGER, 1985, p. 31). Dar nome original aos
deuses é por sua natureza transcendência. Talvez seja um erro, como bem
cita Ernildo Stein em “Pensar e Errar - Um ajuste com Heidegger”; pode-
se interpretar-se como erro a possibilidade dentro daquilo que aberto ao
mundo opera em sua cura, pela via do cuidado, isto é um risco, pois o
homem estar ao contrário no mundo entificado. Heidegger pontua,

Essa clareira do seer é ao mesmo tempo o seer da


errância- o lugar da origem da inversão, na qual
facilmente caímos por terra, precipitando-nos,
neste caso, apenas naquilo que é e em seu
95

predomínio exclusivo – poderoso e impotente na


mudança das coisas e das circunstancias, essa
inversão nos apresenta, então, o cálculo das causas
(pulsões e inclinações, prazeres e diversões) de
cada coisa e a tudo ela converte no que apenas está
presente e é por qualquer um logo facilmente
possuído, habitado e usado. (HEIDEGGER, 2010,
p. 16)

A poesia, para Heidegger, acalentava os ouvidos cheios do


transbordamento do mundo. Samuel Ramos escreveu no prólogo do texto
de Heidegger “Arte y poesia” que a pre-sença dos poetas no mundo é
como “médium” na terra. Aquele que está entre o céu e a terra. Um ser
que habita a partir de um tipo de vivência que sobrevive por um cordão
entre os deuses e os mortais. A poesia de Hölderlin veio como uma
anunciação dos deuses foragidos que mandam notícias para os mortais,
através do poeta e seus cânticos. Pois,

Los dioses también hablan, sólo que lo hacen


mediante signos, y toca a los poetas sorprender e
interpretar estos signos para luego transmitirlos a
su pueblo. El poeta es, pues, um “médium” que está
entre los dioses y los hombres, y la esencia de la
poesia es la convergencia de la ley de los signos e
los dioses y la voz del pueblo. (RAMOS, 1985, p.
31).

Para Hölderlin, a vida em si mesma já o fazia poeta. Nota-se que a


vida para o poeta é sua própria formação de si. Pois ele vive traduzindo
os signos daquilo que vem do céu. O caminho já está dado, o ser lançado
no mundo é convidado a habitá-lo. No entanto, sua construção é o decifrar
do destino na aventura do viver em “risco”. Hölderlin complementa,

Pois, o único erro do homem acontece quando seu


instinto de formação se perde e toma uma direção
indigna e inteiramente falsa, quando não sabe qual
o seu lugar próprio, ou ainda quando, ao encontrar
esse lugar, fica a meio caminho, paralisado nos
meios que deveriam conduzi-lo à sua meta.
(HÖLDERLIN, 1994, p. 22).

A relação entre o pensamento de Martin Heidegger e Friedrich


Hölderlin é costurada por várias linhas entre reflexões, meditações, escuta
96

e escrita, entre um poeta e um filósofo e, ademais, entre suas


possibilidades e impossibilidades. Porque pensamento e poesia são linhas
que se encontram e distanciam-se. Como ao contemplar uma obra de arte,
não se pode aproximar-se ao ponto de nada ver, senão é engolido por ela.
A obra necessita distanciamento, para vê-la plena e majestosa como é.
Através da possibilidade tão oportuna de transitar entre a palavra que dita
o conceito, mas dita também o belo. Para Werle a relação entre a poesia
e a filosofia é sintetizada a partir deste contexto,

Em Heidegger não há mais essa perspectiva


subjetivista de um pensamento que “dispõe” da
poesia. O pensamento não pode mais arrogar sua
força enquanto uma subjetividade absoluta, pois
precisa encontrar-se a si, em sua simplicidade, e
deixar as certezas previas de lado. Com Hölderlin
estabelece-se, para o filósofo, que a poesia e a
filosofia estão num mesmo patamar, e é preciso
haver um convívio mutuo, em que o que deve
imperar é a serenidade [Gelassenheit], e não a ideia
de concretizar um determinado programa de
pensamento. Mais do que afirmar o “fundamento”
pela poesia, importa deixa-lo se afundar pelos
(Holzwege), num diálogo poético-pensante de
escuta mútua em busca da essência do ser.
(WERLE, 2005, p. 205 e 206)
97

CAPÍTULO 3 - A EXPERIÊNCIA DA POESIA COMO


CONSTRUÇÃO DO HABITAR POÉTICO PODE SER
EXPERIÊNCIA FORMATIVA?

Enquanto perdurar junto ao coração


A amizade, Pura, o homem pode medir-se
Sem infelicidade com o divino...
(HÖLDERLIN in HEIDEGGER, 2001, p. 180 )

Neste terceiro capítulo, será destacada a feitura da construção do


habitar poético. Ou seja, trata-se de uma defesa poética daquilo que
compreendido como formativo habita entre a poesia de Hölderlin e a
filosofia de Heidegger. Tendo em vista que neste capítulo há presença de
comentadores que já trabalham em suas pesquisas a relação Heidegger e
Educação, este capítulo representa o encontro das possibilidades
formativas com base em uma existência estética e autotransformadora em
diálogo com a construção e habitação do habitar poético.

3.1. COMO A POESIA DE HÖLDERLIN CONSTRÓI O HABITAR


POÉTICO – CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO

Conforme vínhamos destacando, o objetivo desta dissertação é o


de demonstrar como possibilidade uma ideia de formação humana que
vise o redimensionamento da formação educacional, a partir de uma
construção de um habitar poético por via da relação entre o pensamento
de Martin Heidegger e os poemas de Friedrich Hölderlin, haja vista que
todo o arcabouço desenvolvido nos outros capítulos operam na
construção dessa estrutura “habitativa” entre os conceitos principais e três
textos estruturais, que são: “...Poeticamente o homem habita...”;
“Construir, Habitar, Pensar” e “Para quê poetas?”, que já pincelam as
inter-relações de Heidegger com Hölderlin e onde suas falas são
necessárias para tal construção mostrando-se presentes em todo o corpo
desta dissertação.
O foco sobre a formação humana é no desdobramento formativo
do poeta na figura de Hölderlin, que como formador-de-si pode autenticar
a este o caminho da autoformação para a construção do habitar, estrutura
a qual pensa-se um habitar este mundo com de-mora.
O poeta vive do risco, daquilo que é lançado ao mundo. Logo, o
poeta deixa habitar. “Dizem que é a poesia que permite ao habitar ser um
98

habitar. Poesia é deixar-habitar, em sentido próprio.” (HEIDEGGER,


2001, p. 167)
O tempo do poeta é sentido pela contemplação viva do viver;
assim, é como ver um gato observar uma janela à sua frente. Não se sabe
a dimensão do que vê, mas aquilo que vê está contido em sua meditação,
contemplando o todo através da janela. É lento. Mas profundamente ele
observa. Ramos compreende, citando no Prólogo de “Arte y poesia” que
“Poetizar, ségun la expresión de Hölderlin, es “la más inocente de todas
las ocupaciones es como um sueño, pero sin ninguma realidade, un juego
de palavras sin lo serio de la acción””. (HEIDEGGER, 1985, p.30).
O poeta sonha através da janela. Ou ao sonhar, põe no seu papel
toda a vida do seu sonho. “Em lugar de agir os poetas sonham”
(HEIDEGGER, 2001, p. 166). Estudar Heidegger é alterar o ritmo dos
relógios e desfrutar dos encontros e dos sonhos. Este filósofo foi
impactado pelo alcance filosófico que há na palavra da poesia de
Hölderlin.
Adentrar o horizonte filosófico de Heidegger, a partir de sua
relação com Hölderlin, transmuta a própria ideia de formação humana na
filosofia da educação, pois

Sob este influxo, pensar e interpretar se fundem


como existência [...] Dito de outro modo: a
filosofia não é feita apenas de conceito; ela também
é feita da matéria humana dos poetas – mundo,
risco, queda e desamparo. Não estaria aí nosso
verdadeiro espelho na educação, ampliando a
perfectibilidade sonhada? Não seriam, então, os
poetas filósofos aqueles que denunciariam o
“tempo indigente” a partir do qual somos
chamados a por em curso o filosofar?”. (MOURA,
2015, p. 5).

Para isto, pensar nessa ponte que sobrevive entre o sonho e a ação,
é que cantam juntos na mesma canção o poeta e o filósofo; para sonhar é
necessário tempo. O tempo do mundo que comungam “filósofos e
poetas”. Aquele tempo de que Heidegger fala, do que é preciso deixar a
terra dar o seu fruto; e respeitando esse tempo, o poeta levanta seus olhos
para o alto esperando e cantando sua conexão com os deuses. A ação para
o poeta é mediada pelo tempo meditativo, este tão importante na filosofia
de Heidegger.
Quando o sonho e a ação se encontram eles constroem. O sonho é
a poesia em verso pela existência. “La poesia es instauración por la
99

palavra y en la palavra.” (HEIDEGGER, 1985, p. 137) A ação é a pratica


dos processos filosóficos em ação. É sob este prisma que Heidegger nos
traz à interpretação o poema de Hölderlin: “Cheios de méritos, mas
poeticamente, O homem habita esta terra” (HEIDEGGER, 2001, p. 168).
Heidegger, pre-ocupado, pensa o homem enquanto aquele que ara
a terra para que ela floresça e dê seu alimento. Pois, vale de novo ressaltar,

O homem cuida do crescimento das coisas da terra


e colhe o ali cresce. Cuidar e colher (colere,
cultura) é um modo de construir. O homem
constrói não apenas o que se desdobra a partir de si
mesmo num crescimento. Ele também constrói no
sentido de aedificare, edificando o que não pode
surgir e manter-se mediante um crescimento.
(HEIDEGGER, 2001, p. 168)

A construção necessita edificação, e nesta edificação o homem de-


mora e cultiva no sentido de cuidado. O habitar poético é uma ação
integrada com o todo que está entre céu e terra. Este antes logo de ser
construído é habitado. Os mortais na terra já habitam a quadratura. A
poesia para Hölderlin é a linha que liga os homens à terra. Habitar esta
terra é um mérito, segundo Hölderlin. Heidegger, compreende que,

Quando Hölderlin ousa dizer, no entanto, que o


habitar dos mortais é poético, essas palavras,
levemente pronunciadas, dão a impressão de que o
habitar “poético”, é precisamente o que arranca os
homens da terra. Pois, o “poético” parece
pertencer, quanto ao seu valor poético, ao reino das
fantasias. O habitar poético sobrevoa
fantasticamente o real. O poeta faz face a esse
temor e diz, com propriedade, que o habitar poético
é o habitar “esta terra”. (HEIDEGGER, 2001, p.
169).

Habitar esta terra é uma construção em curso, diária, do Dasein


heideggeriano. Uma experimentação da vida em curso em pleno devir e
vir–a-ser. É a vida que se apresenta tortuosa e linda frente aos homens e
sobre eles os mistérios. Segundo Merynilza Oliveira,

O Dasein é o que temos de mais próximo, já que


existimos enquanto tal e, ao mesmo tempo, de mais
estranho em relação ao conhecimento de nossa
100

essência, que, antes de mais nada, é existência, que


é contingente, temporal, fática, finita; ele existe no
tempo, a temporalidade (Zeitlichkeit), é um
componente imprescindível para a sua
compreensão e “se a temporalidade constitui um
predicado ontológico originário de sua essência,
então ser-o-aí deve ser mostrado pela análise
fenomenológica como sendo finito e mortal”.
(OLIVEIRA, 2014, p. 23).

No texto “Heidegger e a Educação”, Edgar Lyra traz uma


concepção de Dasein muito importante para tecer aquilo que pode ser
compreendido como uma aproximação de Heidegger e a formação
humana aqui, nesta pesquisa, então:

O Dasein não se define, por conseguinte, como um


ente simplesmente presente no mundo livre do
problema do seu sentido, da sua tradução.
Tampouco se assemelha a uma consciência capaz
de abranger e concatenar os entes na totalidade do
seu ser. O mundo que o Dasein compreende como
totalidade significativa ou contextual é,
simultaneamente, algo que o transcende, que o
precede, que tanto possibilita quanto limita seu
existir. O Dasein está, em suma, sempre “entre dois
mundos”, seguindo a terminologia de Ser e Tempo,
um ôntico e outro ontológico, um fático, outro
existencial, um no qual se vê já sempre lançado, ou
que se define em seus projetos. (LYRA, 2008, p.
35)

Pensar a partir do lugar no qual esta pesquisa situa-se, o lugar da


filosofia da educação, nos remete igualmente ao debate de uma
perspectiva de formação humana. Nesta pesquisa, de modo mais
específico, queremos pensá-la mediante a filosofia de Heidegger
transpassada pela poesia de Hölderlin para visualizarmos uma construção
da morada poética.
Uma construção que, edificada constantemente, seja habitada com
serenidade, e pre-ocupação entre ser e mundo. Ou seja, pensa-se uma
ideia de escola que, dialogada com esta proposta de formação, possa
propiciar o encaminhamento ou direcionamento de construções de
moradas poéticas enquanto práticas educacionais. Aquelas que irão
101

proporcionar o resguardo da existência dos alunos sobre a quadratura -


Céu e terra, mortais e imortais -.
Talvez, um dos modos de pensarmos a relação do habitar e a
formação humana desde o horizonte da filosofia da educação esteja
vinculado à proposta filosófico-poética de Martin Heidegger. Ou seja, um
educar para edificar a existência neste mundo. Vale pensar que os
conceitos aqui citados devolvem para nós o chamado à linguagem. Um
chamamento à escuta para que, com de-mora, compreenda-se a partir da
estrutura heideggeriana como construir e habitar para ser-no-mundo a
cura, pre-ocupando-se com esta terra. Lyra chama a atenção,

Importa frisar, é dentro desse núcleo de


preocupações que surge a consideração mais
pontual sobre o ensino. Heidegger fala de “ensinar
a aprender”, aprender, no fim, a habitar a
vizinhança do que nos faz pensar. Definitivamente
não pertence a tal mestria a posse de um saber certo
de si, característico do “saber-tudo” ou do “docente
famoso”. Mestre de verdade será quem tenha se
exposto aos ventos do pensamento e aí aprendido o
respeito, a escuta, a espera e o instante. Será
sobretudo, segundo Heidegger, alguém “muito
menos seguro do seu assunto do que aqueles que
estão aprendendo do deles”: donde a
impossibilidade de recortar qualquer método
heideggeriano de ensino. (LYRA, 2008, p. 53)

É na construção do tempo meditativo35, a partir da escuta ao


sensível36. Isso não significa aqui a meditação inerte, que é convergente

35
“Heidegger confia na potência silenciosa da meditação. Embora não tenha a
mesma eficácia instrumental do pensar calculatório, a meditação preocupada não
deixa de ser determinante, nem se esgota em reverência ao fato; a palavra
serenidade não é sinônimo de resignação. Com ela, o filósofo pensa um agir
amadurecido, liberado da instância compulsiva do ativismo, do falatório vazio e
pomposo vigente na esfera pública contemporânea.” (GIACOIA JR, 2013, p.102-
103).
36
A apresentação do conceito redução eidética, trabalhado por Giacoia Jr, que
significa pertencente à essência; a formas ou imagens com características, pode
ser compreendida como uma dimensão poética da percepção: “A redução eidética
parte da simples percepção sensível e, por meio de sua descrição metódica,
desvenda também suas estruturas formais ou ideais, que não são de natureza
psicológica ou subjetiva, mas lógicas e universais. Tais estruturas são essências
102

com o modo em que as coisas devem permanecer e sendo como elas são.
Ao contrário, é neste tempo que o necessário agir e pensar conecta-se com
a escuta, atento ao outro; ao meio em que se vive; e ao instante presente,
responsável pelo futuro.
O tempo meditativo traz a responsabilidade para o presente,
visando o futuro. O mesmo que evoca a história do ser. Mas é com a
experiência da consciência livre que integralmente se vive com o tempo
da noite do mundo aberto aos processos necessários para o agir, porque
“O homem, no entanto, só consegue habitar após ter construído num outro
modo e quando constrói e continua a construir na compenetração de um
sentido.” (HEIDEGGER, 2001, p. 169)
Para a Filosofia da Educação, é importante pensar sobre a
compreensão das necessidades existenciais do ser-aí enquanto aluno em
formação. No tempo do urgente37 é que evocam-se os deuses foragidos
para uma época carente de humanidade. “Mas é justamente à sombra do
perigo que urge retomar as palavras dos poetas e pensadores, da arte e da
filosofia” (GIACOIA JR, 2013, p. 104). Heidegger é um porta-voz dos
poemas de Hölderlin na era da noite do mundo. Embora Hölderlin não
estivesse mais neste mundo, Heidegger estava escutando suas palavras,
que fizeram morada no seu pensamento como vestígios dos deuses
foragidos até os últimos dias de sua vida.
É sendo conduzido por este respeito pela fala do poeta que
Heidegger continua espantado com a dimensão das palavras de Hölderlin;
“Pensando o que Hölderlin ditou poeticamente sobre o habitar poético do
homem; pressentimos, na própria diferença do modo de pensar, um
caminho que conduz ao mesmo que o poeta ditou poeticamente.”
(HEIDEGGER, 2001, p. 171) No poema de Hölderlin, nos versos 24 até
o 38 é encontrada a beleza da amizade e do esforço pelo qual Heidegger
é contagiado. Então,

Deve um homem, no esforço mais sincero que é a


vida,
Levantar os olhos e dizer: assim

ideias, porém diferentes das ideias platônicas, cuja existência real é admitida em
um mundo inteligível. As essências de Husserl são formas de a consciência visar
e exibir seus objetos.” (GIACOIA JR, 2013, p. 37).
37
Quando o imediato e urgente tornar o córrego da vida perigoso, clamemos os
poetas, neste caso, Hölderlin: “Lá onde há perigo, cresce também aquilo que
salva” (Wo aber Gefahr ist, wächst das Rettende auch) (GIACOIA JR, 2013, p.
104).
103

Quero ser também? Sim. Enquanto perdurar junto


ao coração
A amizade, pura, o homem pode medir-se
Sem infelicidade com o divino. É deus
desconhecido?
Ele aparece como o céu? Acredito mais que seja
assim.
É a medida dos homens.
Cheio de méritos, mas poeticamente
O homem habita esta terra. Mais puro, também,
Do que a sombra da noite com as estrelas,
Se assim posso dizer, é
O homem, esse que se chama imagem do divino.
Existe sobre a terra um medida? Não há
Nenhuma. (HEIDEGGER, 2001, p. 171)

Heidegger vê o acesso ao que é a experiência da construção do


habitar e vai surgindo como um aceno de carinho de um grande amigo,
neste caso, da relação Heidegger e Hölderlin. Compreende-se que

Somente no âmbito do esforço é que o homem se


esforça por “mérito”. Somente assim ele consegue
tantos méritos. Mas justo nesse esforço e por esse
esforço concede-se ao homem levantar os olhos
para os celestiais. Não obstante esse levantar os
olhos percorra toda direção acima rumo ao céu,
permanece no abaixo da terra. (HEIDEGGER,
2001, p. 172).

É a partir do “levantar dos olhos” para o céu que o homem ganha


méritos sob a terra. O homem sendo o que é necessita da escuta originária
de onde veio. O anúncio entre céu e terra, traz uma dimensão muito maior
do que significa pensar uma Formação Humana que vá para além da
poesia, pois a poesia é um dos fundamentos que visam à construção do
Habitar. Pensar sobre isto confronta as formações que focam na relação
mercadológica produzindo o homem para ele mesmo enquanto corpo
maquinificado, sem interação com os outros; sem interação com o
ambiente, focando em si mesmo, e depois ser direcionado ao mundo
profissional. Uma vida não refletida e o sucesso profissional não
sustentará a presença da falta e a angustia.
A reflexão que fica é que por mais que esta educação seja
direcionada para uma preparação para o mercado de trabalho, esta
preparação não é suficiente para a extensão da existência enquanto
104

facticidade, temporalidade e angústia. É preciso ser entendido que desde


sempre o “o homem mede-se...com o divino”. Os mortais sempre se
mediram entre céu e terra. Assim, sendo, os homens criaram a tecnologia
para chegar mais próximo do céu e para além dele, do espaço e da Via
Láctea.
Levantar os olhos é conceber a pre-sença dos deuses foragidos. A
relação de medida, buscando sua justeza sobre a terra. No céu existem as
belezas das estrelas e seus interestelares; a lua e seu poder sobre as marés,
ventos e temperaturas. O sol, com a sua grandeza que traz vida e cor para
os dias, nas vegetações e nas cidades. A chuva, que de tão necessária
precisa vir com medida para o encontro com os homens, pois sua força é
brutal e pode ser desastrosa para as cidades.
O Levantar os olhos traz a medida entre a existência dos mortais e
dos imortais. Entre vida e morte. Entre céu e terra. A poesia para o habitar
está em conceber a vida entre céu e terra “levantando os olhos” porque
“É possível que a poesia seja uma medida extraordinária” (HEIDEGGER,
2001, p. 173) Portanto,

O levantamento de medida próprio à dimensão é o


elemento em que o habitar humano tem seu
sustento, é onde adquire sustentação e duração. O
levantamento de medida constitui o poético do
habitar. Ditar poeticamente é medir. Mas o que
significa medir? Se a poesia deve ser pensada como
um medir, ela não pode ser relacionada a uma
representação irrefletida do que seja medir, do que
seja uma medida. (HEIDEGGER, 2001, p. 173)

3.2. A AUTOFORMAÇÃO COMO MEDIDA DO POÉTICO PARA O


HABITAR

A medida está entre o poético e o filosófico; entre o céu e a terra;


ou entre os mortais e os imortais. É levantando os olhos que os homens
reconhecem como está o tempo do mundo, frio ou quente; se vai chover
ou se é dia ou noite. A formação a partir da “Construção do Habitar
Poético” é em si a experiência daquilo que o poeta canta sobre o mundo
e nesta habitação escreve sua história entre sonhos e realidades.
A educação hegemônica tem sua preocupação no desempenho dos
seus alunos nos vestibulares e nos concursos que prestam tentando
alguma vaga nos setores profissionais. Ou seja, preocupam-se com a
forma técnica de como estes seres vão estar aptos a exercerem tarefas
105

práticas ou executarem alguma máquina. A educação infantil, talvez,


prepare mais os pequenos seres a compreenderem a linguagem e assim
esta forma seja uma ponte para experimentar a vida, sabendo relacionar-
se através da linguagem escrita e numérica, algumas vezes lúdica.
De forma interessante, a formação infantil traz a ludicidade mais
amplamente trabalhada, para assim tentar demonstrar de forma
diversificada e divertida os números e letras. Algo acontece ao irem
avançando nas séries: o lúdico e o “divertido” vão sendo esquecidos.
Embora seja notória a dimensão da demanda de responsabilidade que é
aumentada, é algo que poucas pessoas notam tal diferença. Talvez a fase
adulta na escola fosse a fase que necessitasse de mais delicadeza, escuta,
cor, brincadeiras.
A existência nessa experiência vai acontecendo normalmente, pois
seu fluxo não para. No entanto “o esquecimento do ser” pode ser
observado neste sentido. O adulto pouco escuta; pouco deseja ouvir o
outro, pouco repousa sobre si e nas coisas, pouco reflete sobre as coisas,
pouco agradece; enfim, pouco levanta os olhos.
É revelador que, quando pequenas, as crianças são incentivadas
pelos pais a olharem para o céu e ver as estrelas, os planetas, os pássaros;
e por aí se poderia ficar laudas e laudas analisando o que é bruscamente
tirado da vida adulta na escola e na vida.
Assim, vão crescendo por entre a vida pessoas que pouco se
conectam consigo, com os outros e com o mundo. E ao invés de
crescermos em humanidade, esta humanidade segue descendo em uma
escala brusca de subtração. Os seres humanos são formados para cada vez
mais sentirem menos, logo, pensar menos. Uma sociedade com mais
drogas para anestesiar a dor da existência.
No entanto, o mistério prevalece sobre os mortais.
Os mortais são formatados em uma era digitalmente programada
para a conexão infinita com as redes de amizades digitais. Ou seja, o ser
vai se encaminhando para a distância fundamental, embora seja fácil de
acreditar que ainda permanecemos na “era da noite do mundo” e que os
mortais experimentam de várias formas a sua indigência.
Todas estas faltas citadas frutificam ainda mais o solo para o
desabrochar do “Habitar Poético”. Por isso, é preciso que os poetas e
pensadores cantem “a noite do mundo” como aquela que precisa ser
superada. É necessário que nas escolas os alunos sejam preparados para
uma existência como Dasein.
Pois, como diria Hölderlin “A terra passa e o céu permanece”
(apud HEIDEGGER, 2001, p. 175) Então, a existência é isto que,
composto pelo estranho e misterioso, necessita cuidado e de-mora nesta
106

terra. Necessita estar na presença de Hölderlin, enquanto poeta da


anunciação dos deuses no mundo. A poesia advinda dele não paralisa ou
faz com que o ser relaxe sobre o mundo. Pelo contrário: a sua poesia é um
chamamento para si mesmo, enquanto presente no risco. Heidegger
elucida que “A poesia não é nenhum jogo, a relação com ela não é o
descanso jocoso que faz com que uma pessoa se esqueça de si própria,
mas o despertar e a concentração da essência mais íntima do indivíduo,
pela qual ela recua ao fundo do seu ser-aí.” (HEIDEGGER, 2004, p. 16).
Todo o percurso engendra que o caminho trilhado pelo poeta pode
ser inspiração para ajustes pedagógicos e seus desdobramentos
metodológicos com o tempo; a angústia, a finitude, a solidão e o habitar
como um olhar sobre o abismo que é a dimensão da prática pedagógica e
sua relação entre o aprender e o ensinar.
Sustentar a possibilidade de diálogo que está localizada na
interdisciplinaridade, conceito que estamos debatendo, voltada para uma
educação que construa para habitar poeticamente, com poesia e
ludicidade, que, em comunicação com a filosofia, promova mais
sensibilidade e criatividade durante o ensino-aprendizagem, bem como
que valorize o indivíduo em sua possibilidade múltipla de criar a si e
interpretar o mundo e os seus saberes na jornada individual do construir.

Assim, a tradição pode ser ou não o lugar de


conformismo, o que no erro interpretativo levaria à
conotação do tradicional e de onde urge arrancar
novo sentido, como também o lugar de onde
brotam outros sentidos do humano. Considerando
este ponto de vista, a interdisciplinaridade passa a
ser um modo aceitável de operar a filosofia da
educação como uma tentativa de tradução e
atualização desta tradição tanto para a pesquisa
quanto no ensino em filosofia da educação.
(HARDT; DOZOL; MOURA, 2014, p. 158)

Para isso, é necessário pensar o habitar como aquilo que desbrava


as fronteiras formativas evidenciando a serenidade e o encontro com si
mesmo no método educativo, sendo considerado como processo
formativo. Mas não se pode negar a bravura ininterrupta que existe nesta
importância valorativa da educação poética, porque

De ahí que ortogue a la educación un lugar


privilegiado en la vida del ser humano, a tal punto
que considera que la libertad, la familia, la patria,
107

el sustento diario, entre otras cosas, le pueden ser


arrebatados, pero no la educación, dado que ésta
puede llevarse consigo porque su espacio natural es
el ser de la persona. (RESTREPO; ZULUAGA,
2015, p. 321)

E para compreendermos um pouco mais a interpretação da


versatilidade do conceito de formação:

Logo, importa no momento pensarmos a situação


hermenêutica do intérprete enquanto lugar de onde
se fala e que traz a historicidade de cada um como
algo que nos impregna de modo ontológico,
universal, porquanto não há humano que não se
constitua enquanto ser no mundo, sendo esta sua
condição. Isto vale tanto para o intérprete dos
textos clássicos quanto para todas as outras formas
de interpretação da cultura as quais nos dispomos
realizar no trânsito pelo mundo. Estamos, desde já,
no mundo e é a partir desse estar-com o mundo que
realizamos experiências de pensamento. Isto
significa que, no instante de um interpretar, somos
orientados por nossa historicidade. Ela nos
constitui como nosso modo de ser que se projeta
em alguma medida na abertura do texto, do passado
ou do fragmento de cultura e se põe diante de nós,
o que nos leva a pensar a linguagem enquanto
circular e aberto entre nós e o mundo. (HARDT;
DOZOL; MOURA, 2014, p.156)

O ato de desocultar-se sempre é um ato de remendar-se em


processo de devir, o qual ocorre entre o ser da realidade e o ser onírico. O
poeta alimenta seus pensamentos elevando-os ao aberto. Igualmente, é
extraviar-se e ocultar-se. Nesse sentido,

Uma medida estranha para o modo de


representação comum e, em particular, para a
representação estritamente cientifica. Uma medida
que, de qualquer maneira, não constitui um padrão
ou bastão facilmente manipulável. É, no entanto,
uma medida mais simples de se manejar, ao menos
quando nossas mãos não querem manipular, mas
apenas se deixar guiar por gestos que
correspondem à medida que aqui se deve tomar.
108

Isso acontece num tomar que nunca extrai de si a


medida que a toma num levar em conta integrador,
esse que permanece uma escuta.” (HEIDEGGER,
2001, p. 174)

A educação por vezes tem se apresentado aos alunos como aquilo


que oculta. A observação aqui é no movimento que poderia ser proposto
a partir da ideia do “habitar” para esta educação. Uma educação pre-
ocupada com o desocultar-se para o humano. Mas, uma educação que
traz consigo a compreensão - prévia - de uma medida de ocultamento que
o próprio desocultar mantém. Ao que parece temos uma educação que
nunca tem tempo, que está sempre fora de seu tempo. Sempre está
atrasada, logo não escuta. Não se de-mora. Será que não estão todos
sofrendo com essa falta desmedida de tempo? Outra pergunta pertinente
seria: de que é feita a habitação desta educação hegemônica? Heidegger
evoca o poder integrador da escuta. Aquilo que entre tantas diferenças
está apto à escutar. Andrade, no texto “Heidegger Educador” nos ajuda a
compreender que,

Não é diferente com a educação. Se educar


significa algo mais do que incultar erudição na
cabeça de quem não têm, se formar representa algo
mais do que a transmissão de conhecimentos úteis,
então estamos diante de uma tarefa cujo sentido é
eminentemente filosófico. Isso significa dizer que
não devemos apenas pensar qual o caráter
educacional da filosofia mas, ao mesmo tempo,
qual é o caráter filosófico da educação. Educar,
bem como filosofar, deve trazer o homem para
perto de si mesmo, precisa facultar a apropriação
de uma relação com o mundo que só acontecerá a
partir do momento em que ela for feita de modo
“íntimo e pessoal”. (ANDRADE, 2008, p. 66).

A escola, para conceber estes desdobramentos heideggerianos


como parte de sua estrutura, pensaria como um todo o seu habitar poético.
A escola enquanto um deixar-habitar. Vale para as diversas pluralidades
existentes nas falas de cada aluno que compartilha o mesmo espaço
formativo. A própria vida de cada aluno é em si uma abertura para a
construção do habitar, enquanto aquela que habita a linguagem. Ou seja,
aquela que acolhe as diferenças, preservando e edificando a sua morada.
Enquanto as disciplinas disputam entre si, minutos de atenção dos
alunos em sala de aula, a vida lá fora para ambos é desocultada-ocultada.
109

A necessidade de colocar o aluno frente a si mesmo, traz o desafio e o


enfrentamento de re-colocá-lo como autor e construtor de mundo, e assim,
como formador de mundo. Por isso, tecer a possibilidade dessa
experiência é um convite à preservação do mundo enquanto cura, e
desvelamento-velamento de si mesmo por entre a existência em intenso
inacabamento. Por isso, segundo Andrade,

Educar não pode ser pura transmissão de


conhecimento pois nela permanece o comodismo
dos homens. Educar, no alto sentido da palavra, é
chamar o homem para que ele assuma com o ser
uma relação própria, ou seja, que assuma para si tal
relação como algo que lhe concerne, e não apenas
como algo dado e já sabido. Por isso, quando
Heidegger fala que o professor ensina não mais do
que o convite a aprender, ele está, ao mesmo
tempo, falando do cerne da filosofia, já que o
homem deve ser tomado pela questão do ser de
modo pessoal, singular. (ANDRADE, 2008, p. 71).

O despertamento é cercado e composto por implicações sensitivas


a partir do que é mostrado pelos Fenômenos (o que se
mostra/manifestação/é mostrado) e pelo Ser dos entes.
Como Dasein, o ser humano é abertura. É uma estrutura de significações
que contém em si velamento e abrir-se, desvelamento. Habitação instável
que poetiza e filosofa com o entorno. O abrir-se e ocultar-se é um
movimento da fruição da existência, porque tudo está dado e oculto ao
mesmo tempo. Assim, citando Giacoia Jr, enquanto pensamento
heideggeriano,

O pensar não se separa originariamente do agir –


ele age enquanto se exerce como pensar. (...) O
Pensar é um agir em sentido especialmente
elevado, não estando separado da ação por nenhum
abismo a ser recoberto ou transposto pelas formas
diversas de aplicação ou emprego. (GIACOIA JR,
2013, p.11)

Desse modo, pensar a ideia de formação humana, que aprofunde o


conhecimento de si mesmo em sua sensibilidade, é possibilitar uma
melhor compreensão e efetuação da escuta e do cuidado de si, poetizando
a própria Formação. “Se há um sentido educativo da filosofia, ele não
deve ser diferente do sentido filosófico da educação: despertar o homem
110

do comodismo impessoal em que ele não fica à altura do “milagre


irrepetível” que sempre é.” (ANDRADE, 2008, p. 71).
O acontecimento da poesia como possibilidade formativa no
âmbito da relação entre Heidegger e Hölderlin é a eclosão daquele que
pode ser concebido como “Habitação e Construção” de si mesmo, no
compasso entre filosófico e poético. Pois, como finaliza Heidegger o seu
texto “...Poeticamente o homem habita...”,

Por que, no entanto, essa medida tão estranha para


nós, homens de hoje, deve fazer apelo para o
homem e ser participada através da tomada de
medida inerente à poesia? Somente porque essa
medida mede com inteireza a essência do homem.
Pois, o homem habita medindo o “sobre esta terra”
e “sob o céu.” Esse “sobre” e esse “sob” se
pertencem mutuamente. Esse seu imbricamento é
uma medição que o homem está sempre a
percorrer, sobretudo porque o homem é como o que
pertence à terra. Um fragmento de Hölderlin diz,
“Sempre, meu caro, a terra passa e o céu
permanece.” (HEIDEGGER, 2001, p. 175).

O poeta como obra de si mesmo é aquele que ao levantar os olhos


concebe ao mundo a sua escuta fundamental. Ao que sobrevoa o céu e
terra, a de-mora nesta escuta é o tempo meditativo para logo agir e colher-
plantar para a sobrevivência neste tempo “da noite do mundo”. Para
Heidegger,

Para o poeta, vislumbrar essa medida, medi-la


como medida e tomá-la como medida, tudo isso
tem um nome: ditar poeticamente. A poesia é essa
tomada de medida e, na verdade, em favor do
habitar humano. Imediatamente após as palavras:
“É uma medida do homem”, seguem no poema os
versos: “Cheio de méritos, mas poeticamente o
homem habita esta terra” (HEIDEGGER, 2001, p.
175).

A fruição poética é aquela que está atenta ao repouso da escuta.


Que mesmo em repouso nunca está inerte sobre este mundo. “Assim, deve
manter-se, se estivermos dispostos a de-morarmo-nos no âmbito essencial
da dicção poética” (HEIDEGGER, 2001, p. 175).
111

O poeta enfrenta o risco para habitar poeticamente. A formação do


poeta é composta de estranhamentos. Todo o pulsar de vida e desejo é um
vir-a-ser sempre em devir para esculpir tal mortal que sendo o que é, vive
entre a medida do céu e da terra.
Então,

A medida, que o poeta toma, tem como destino o


estranho em que o invisível resguarda a sua
essência, na fisionomia familiar do céu. É por isso
que a medida tem o modo essencial do céu. O céu
não é, contudo, mera luz. O brilho de seu alto é,
nele mesmo, a obscuridade dessa sua vastidão tudo
abrangente. O azul do azul sereno do céu é a cor do
profundo. O brilho do céu é a aurora e o crepúsculo
do acaso, que recolhe tudo que se pode dizer. Esse
céu é a medida. Por isso, o poeta faz a pergunta:
“Existe sobre a terra uma medida?” E deve
responder que: “não há nenhuma” Por quê? Porque
aquilo que nomeamos ao dizer “esta terra” só se
sustenta enquanto o homem habita a terra e no,
habitar deixa a terra ser terra. (HEIDEGGER,
2001, p. 178).

Heidegger no fim do seu texto “...Poeticamente o homem habita...”


deixa por ser visto que, nas suas palavras através dos versos 26 a 29 do
poema de Hölderlin,

Enquanto perdurar junto ao coração


A amizade, Pura, o homem pode medir-se
Sem infelicidade com o divino
(HÖLDERLIN apud HEIDEGGER, 2001, p. 180).

Não é elementar que nos poemas de Hölderlin exista a conexão


entre céu e terra, e sobre esta desabrocha a atenção ao coração; a escuta
ou ao que está conectado com a essencia. No sentido estrito “a amizade”.
Naquela intenção de estar atento aquilo que está “junto ao coração”. Pois,
“junto ao coração” significa o que advém nessa essência do homem de ser
aquele que habita, o que advém como apelo na medida junto ao coração
de tal maneira que o coração se volte para essa medida.” (HEIDEGGER,
2001, p. 180).
O apelo da linguagem compreendida para a formação humana,
aqui, pode ser escutado como aquilo que apresenta-se aos mortais como
um clamor para o retorno à humanidade. Para um tempo de tanto
112

distanciamento e “esquecimento do ser”, a amizade é um cântico do poeta


à escuta do que está “junto ao coração”. Porque,

Se esse medir-se acontece com propriedade, o


homem dita poeticamente a partir da essência do
poético. Se o poético acontece com propriedade, o
homem habita esta terra humanamente, “a vida do
homem” que, como diz Hölderlin em seu último
poema, é uma “vida habitante”. (HEIDEGGER,
2001, p. 180).

O Poema de Hölderlin “Mirante” conclui o texto de Heidegger. E


assim, para escutar essas palavras sobre o “Mirante”, que re-vela-se como
aquilo que estando no alto, em determinada distância, dá visibilidade ao
que melhor necessita visão.

Quando dos homens a vida habitante avança ao


longe,
Onde o tempo das vinhas brilha ao longe,
E onde há também campos vazios de verão,
A Floresta aparece com sua imagem obscura.
Que a natureza faça brilhar a imagem dos tempos,
Que ela permaneça enquanto estes passam tão
rápido,
Tudo é obra da plenitude, o alto do céu brilha assim
Para o homem como árvores coroadas de frutos.
(HÖLDERLIN, apud HEIDEGGER, 2001, p.
181).

A partir das palavras da poesia38 de Hölderlin e do pensamento de


Heidegger, para ser compreendido a partir da noção de educação, só é
possível se esta for pensada como uma formação filosófica. A presença
desta na concepção da autoformação de si é indispensável. Portanto,
Marco Aurelio Werle traz uma breve introdução daquilo que de certa
forma já vem sendo mencionado no corpo de todo o texto.

38
Na obra “Hinos de Hölderlin” de Martin Heidegger, o filósofo chama a
atenção para a necessidade do tudo a ser compreendido em relação aos sentidos
das palavras de Hölderlin, porque “O poema encontra-se à nossa frente,
impresso, uma estrutura verbal imediatamente legível, dizível, e audível. Como
uma tal estrutura linguística, tem <sentido>. (HEIDEGGER, 2004, p. 23).
113

Heidegger não escreveu propriamente nenhum


texto sobre educação. E se quisermos relacioná-lo
a esse tema, é necessário tomar a noção de
educação em uma perspectiva mais ampla, ou seja,
aproximá-la de seu sentido filosófico, que se
conservou, na época moderna, de modo
privilegiado, no termo alemão Bildung (formação).
A importância desse termo para a tradição
humanista foi acentuada por Hans Georg Gadamer,
ao citar W. von Humboldt, em Verdade e Método.
A Bildung se refere a uma educação total, interior
e exterior, inclusive sensível do ser humano, que
leva em conta o desenvolvimento imanente de
todas as suas possibilidades e potencialidades, ao
contrário da formatio, que se volta mais para o
desdobramento de faculdades ou de talentos e se
orienta por preceitos oriundos do exterior. Desse
modo, a Bildung se impõe como um dever ou uma
máxima individual, que o homem escolhe por si e
para si, “er bildet sich selbst”, não sendo, portanto,
o educado de “fora para dentro” por um mero
cultivo de habilidades. O meio e o fim desaparecem
nesse processo, pois o alvo não consiste apenas em
adquirir algo, como se aquilo que se aprendesse
pudesse ser em seguida novamente abandonado.
(WERLE, 2008, p. 18-19)

Vale retomar que como Giacoia Jr ressalta o “produzir é,


etimologicamente, producere: conduzir diante de, trazer à frente – como
téchne (técnica), em sua significação originária, está ligada à poiésis
(produzir, criar) pois é também uma modalidade de desocultar, trazer à
luz, revelar.” (GIACOIA JR, 2013, p. 73). A capacidade formativa inicia-
se consigo mesmo, desvelando sua imagem pelo mundo e para si, o poeta
põe no papel aquilo que, relacionado com o mundo, ele escreve ou pinta
em cores e imagens. O chamamento da linguagem é a autonomia39 como

39
As percepções dos poetas estão conectadas com sua memória e sua vontade de
si, pois manifesta-se constantemente em seu desejo de criar e recriar; do
descobrir-se para além e de si e do mundo. A poesia é uma revelação, um
desvelar-se. Um desejo de sempre e que nunca muda, porque é perene, insiste e
constrói. Sempre está na busca do Eterno Belo Verdadeiro. O artista busca a
perenidade da vida na beleza do que produz, escavando sua própria pele em busca
de revelações. “A obra de arte dá a ver, a ouvir, a sentir, a pensar, a dizer. Nela e
114

possibilidade do des-velar do si mesmo e re-velar a sua vida como


cuidado-de-si.
Nestas indagações, é pertinente voltar-se para a questão sobre o
sentido do educar. “Por que perguntar sobre o sentido de educar? Ora,
essa indagação só é possível porque de alguma maneira o sentido de
educar pode nos escapar, se perder, se esvaziar. E esse sentido só pode
nos escapar, se esconder, se encobrir porque ele não é algo pronto e muito
menos definitivo.” (SODELLI, 2008, p. 204).
A educação em sua estrutura deveria ser uma educação baseada no
filosófico. Uma escola pensante, capaz de redimensionar a vida para
dentro dos planos pedagógicos. Ou seja, mesmo a vida sendo isso que
escapa aos planos, seria relevante trazer o acontecimento da construção
do habitar para próximo do ensino e aprendizagem.
O ser humano é um ser para o cuidado. A construção do habitar
também é uma construção de sentidos sobre si e o mundo. Sodelli
sintetiza que,

Como já discutimos, ao dar-se conta de ser, de


poder-ser, o Homem percebe que tem que dar conta
de seu ser, ou seja, tem que dar conta de sua
existência e, sobretudo, isto está sob sua
responsabilidade. Assim, o Homem tem que
“cuidar de ser”. Os homens tomam para seu
cuidado tudo o que pertence à existência: o mundo,
as coisas do mundo, os outros homens, si mesmo.
Heidegger define como “cuidado” o habitar o
mundo e construí-lo, preserva a vida biológica e
atender suas necessidades, tratar de si mesmo e dos
outros. É o “cuidado” que torna significativas a
vida e a existência humana. Ser-no-mundo,
portanto, é cuidar. (SODELLI, 2008, p. 210).

O ser, em seu Habitar Poético, fomenta a construção-e-


desconstrução de si todos os dias, como uma obra de arte, enquanto
inacabado e provisório, já que é visitado permanentemente pela
facticidade e o desvelamento e velamento em si compõem o roteiro
existencial produtor de arte e devir. Para Werle, a Filosofia de Heidegger
é ligada ao ato de questionar e de interrogar, o que a faz formativa e
educativa,

por ela, a realidade se revela como se jamais a tivéssemos visto, ouvido, dito,
sentido ou pensado.” (CHAUI, 1996, p.316).
115

O pensador da Floresta Negra sempre se moveu no


limiar do fim da filosofia, o que implicou, ao
mesmo tempo, a constatação da facticidade de um
novo início, de uma nova era em que finalmente se
daria [sich ereignen] o pensamento original, como
atividade destituída de pressupostos conceituais
previamente definidos. Dessa forma, a marca da
filosofia de Heidegger está essencialmente ligada
ao ato de questionar e de interrogar, sendo,
portanto, nesse sentido, profundamente educativa
ou formadora. Antes de afirmar o mundo, o ente, a
verdade, etc., cabe à filosofia interrogar-se a si
mesma e instalar-se no ser ou, quem sabe no nada.
(WERLE, 2008, p.18)

Neste sentido, a filosofia a partir do poetar é advinda da linguagem


(Rede)40, é uma possibilidade de abertura para penetrar no ser, pois abarca
a compreensão no sentido ontológico. “Por isso, a linguagem é a
articulação que coliga e manifesta, é o âmbito de desvelamento ou
verdade do Ser. É assim que se pode entender o que Heidegger pensa
quando afirma que a linguagem é a clareira, ou morada, do Ser.”
(GIACOIA JR ,2013, p.77).
O Ser que habita a poesia também é habitado por ela. Ele desvela
e desoculta; abre, traz para a luz o seu desconhecido. Possui dispositivos
sensíveis e a plena dimensão experimental da potência do conhecer-se
como abertura do si mesmo. Otimizar o olhar sobre a formação é também
atentar-se para a importância semântica e epistemológica do sentido do
Habitar Poético.
O cuidado de si é inerente ao estado relacional, porque já é uma
proposta de formação (ser-com-os-outros); não se vive fora do seu tempo,
assim como não se vive fora das relações. Ser-no-mundo, no mundo
compartilhado (Mit-Sein) é antes de tudo lançar-se para fora. Para
Heidegger, compreende-se que viver é: Temporalidade; Angústia;
Possibilidade/Impossibilidade e Mundo. Desse modo,

40
A expressão em alemão “Rede” é compreendida por Heidegger, segundo
Giacoia Jr, como: “Entender de ser, poder ser, compreender, em sentido
ontológico, é encontrar-se em uma disposição básica de abertura compreensiva,
prévia e tácita, de preocupação com o ser. Neste sentido, compreendemos o que
significa ser, sabemos mais ou menos o que queremos dizer quando empregamos
a palavra “ser””. (GIACOIA JR, 2013, p.77).
116

Cabe à Fenomenologia a tarefa de descrever a


mundanidade como elemento constitutivo do ser-
lançado no mundo. O poder-se é indefinido, mas
não infinito. Temporal, ele implica finitude e
possibilidade da impossibilidade, de não ser. Por
isso, o ser-o-aí é pré-ocupação, cuidado com os
entes intramundanos, cura do mundo. Não há ser-
o-aí sem mundo, nem mundo sem ser-o-aí.
(GIACOIA JR, 2013, p.74)

A forma encontrada por Heidegger para repensar a filosofia do seu


tempo foi aquela da elaboração de uma analítica do ser em um “tempo
indigente”, no qual o esquecimento do ser evidencia o problema da
ausência, ou de carência, de um habitar poético. Para Heidegger, viver no
mundo indigente é compreender-se a partir de um mundo do fundamento
sem fundo. O fundamento do abismo sem fim. A indigência é um estado
permanente de atravessamento e angústia. Essa indigência tem
ligação/direção com a sensação abismática da impermanência. Porque,

O fundo é o solo de um enraizar e de um erguer-se


suspensa no abismo. Supondo que se encontra
ainda reservada a viragem para este tempo
indigente, ela apenas poderá surgir se o mundo
virar radicalmente, ou seja, dito de uma forma mais
precisa, se ele virar a partir do abismo.”
(HEIDEGGER, 2014, p. 310)

Por esta implicação, os seres necessitam sentir-se no mundo


avesso. E tornar-se do avesso é um compreender do ser-o-aí no mundo.
Virar-se de ponta cabeça. Olhar de outra forma para o que se apresenta à
frente; contudo, este erguer-se, conceito que Heidegger desenvolve, está
possivelmente direcionado ao campo poético do ser que propicia um
mergulho no mar do desvelamento poético deste ser que está para a vida
e para a morte. Entre o abismo de si e do mundo simultaneamente lançado
na existência, “Dasein”. “Em acepção existencial-ontológica, o Dasein é
ente a cuja essência pertence o ser; que existe (é) enquanto aí – no aberto
–, em abertura para o Ser”. (GIACOIA JR, 2013, p. 63).
117

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O intuito desta pesquisa foi o de aprofundar, no campo da Filosofia


da educação a formação humana, a partir de aspectos sobre a poesia e
filosofia através de um poeta e um filósofo. Valendo-se do grandioso solo
em que esta relação se dá, Martin Heidegger e Friedrich Hölderlin
dialogaram nesta dissertação entre a quadratura “céu e terra, mortais e
imortais” sobre os vestígios dos deuses foragidos e a noite do mundo.
Poderíamos dizer que esta relação repousa a salvo, por via do viés
heideggeriano-hölderliniano do construir e habitar, pois é “cheio de
méritos mas poeticamente que o homem habita esta terra”.
Diante da solidão e desemparo dos dias contemporâneos, evocar
um poeta e um filósofo para redimensionar as lentes por onde se veem
alternativas de formação é fortalecer a criação de uma ideia de casa
interior que abrigue e guarde o ser, protegendo-o e o formando enquanto
ser-no-mundo. Logo, esta ideia confronta-se com projetos formativos que
incentivam o distanciamento da essência do ser. Ou seja, propostas que
trazem em sua estrutura um convite para o “esquecimento do ser”,
promovendo o velamento do ser enquanto omissão ao desvelamento do
viver. O chamamento para a descoberta de si é cura do mundo, é um
convite para a existência enquanto aquilo que não está posto e precisa ser
penetrado ou descoberto, já que construímos para habitar. Ou mesmo,
enquanto ser-no-mundo preservado pelo cuidado.
Para uma ideia possível de formação humana, considerou-se nesta
pesquisa as dimensões pensadas, a partir da construção do habitar poético
de Martin Heidegger, impactadas pelas inspiradoras poesias de Friedrich
Hölderlin.
O problema desta pesquisa girou em torno da questão: É possível
a poesia e o habitar poético serem propulsores de formação humana a
exemplo da relação entre os poemas de Friedrich Hölderlin e o
pensamento de Martin Heidegger?
A hipótese levantada aqui é a de que no campo da hermenêutica
filosófica, as poesias de Hölderlin e o habitar poético de Heidegger são
propulsores de formação humana e pode possibilitar o
redimensionamento dos métodos formativos. Pois, como foi
demonstrado, o pensamento de Heidegger é conduzido pelas palavras de
Hölderlin; todavia, há momentos em que isto torna-se mais claro,
enfaticamente nos textos: “...Poeticamente o homem habita...”; “Para quê
poetas?” e “Construir, habitar, pensar”.
118

A partir do que foi apresentado entre Martin Heidegger e Friedrich


Hölderlin, um filósofo-poeta e o outro poeta-filósofo, há uma
sincronicidade, um encontro de possíveis que se dá pela presença e o
respeito às diferenças, filosofia enquanto seus atributos filosóficos e a
poesia com sua liberdade entre o céu e terra, mortais e imortais. Esta
relação em si é uma experiência de cunho formativo, pois propõe um
processo constelativo entre um saber e outro ou uma ponte que une duas
margens, e sua aventura formativa acontece talvez na travessia.
O que foi dissertado pretendeu dar voz a uma possibilidade
formativa, demonstrando que a construção do habitar poético, pelas lentes
da educação, é concebida já como possível pela interação
“Artepensamento”, obra que Adauto Novaes organiza e abre com seu
texto “Constelações”. O pensamento e a arte, integrados, cada um sendo
o que é, mas entrelaçados, constroem o cenário para o diálogo possível
entre “filosofia e poesia”. Novaes compreende que,

A natureza da Arte e Pensamento põe em risco


qualquer comparação. Se o trabalho de pensamento
e o trabalho da obra de arte parecem tão distantes,
se a obra de arte tem realidade própria e se
distingue facilmente das outras atividades
humanas, um e outro têm, entretanto, um destino
comum: o desejo da experiência desmesurada do
obscuro e do ausente. (NOVAES, 1994, p. 09)

Foi apresentada, portanto, a relação entre a poesia e a filosofia


como uma possibilidade de atualização e redimensionamento enquanto
formação, a partir do diálogo entre o pensamento de Martin Heidegger e
a poesia de Friedrich Hölderlin. Foi visto que sob a perspectiva da
filosofia da linguagem, lugar de morada do ser, clareira é a condução na
qual o ser encontra-se com a poesia, aquela que inaugura e re-vela a
palavra e o silêncio. Vimos que a partir da visualização e feitura do habitar
poético o ser de-mora sobre esta terra enquanto mortais da noite do
mundo. Cantando os deuses foragidos a partir do apelo-grito-silêncio da
sua indigência,
As obras “Para quê poetas”, “Construir, habitar, pensar” e
“...Poeticamente o homem habita...”, são textos que a partir de toda
explanação iluminam uma ressonância da marca poética de Hölderlin nas
palavras da filosofia de Heidegger. Estas obras abrigam os sentidos do
poeta nesta terra; o amparo da palavra poética como guarda do ser; e o
desvelamento e velamento nesta vida para o ser dos entes enquanto ser-
no-mundo.
119

Foi tecida uma trama que inclina o pensamento para o levantar dos
olhos sobre a de-mora dos mortais nesta terra. Sob o abismo da
emergência, na qual toda contemporaneidade se nomeia com licença
poética, pois é imediato o tempo do agora. E como o próprio Heidegger
menciona “...Na pretensa eternidade esconde-se apenas um transitório
armazenado, armazenado no vazio de uma agora sem duração”
(HEIDEGGER, 2014, p.367).
Neste escrito, o convite é pela experiência de outro tempo. Embora
esteja no tempo meditativo do agora-devir, aquele da outra margem de
Octavio Paz, a travessia para o outro lado. É um agora sem duração. Um
tempo outro. Aquele canto do poeta pela volta dos deuses foragidos, como
diria Hölderlin.
A feitura desta dissertação em si mesma já é uma experiência
formativa da construção e morada em um habitar poético. Os mortais
necessitam ver os vestígios dos deuses foragidos através da sua conexão
com os ecos do mundo, enquanto céu e terra, mortais e deuses. O ser é
resguardado sob a quadratura. Ou seja, estar na presença da quadratura é
cantar Dionísio enquanto o deus da festa e da vida, e repousar à sombra
do lugar da origem do ser, em celebração a natureza, pelo devir
construtivo e desconstrutivo, que vela e desvela os campos das
possibilidades artísticas em vida. Heidegger mesmo nos orienta nesta
direção de ser-aí enquanto formador de mundo que se dá pelo cuidado e
responsabilidade consigo mesmo. Todo o caminho possível, aqui
sugerido, então, só poderia ser dito de um lugar e modo singular de ser.
Trilhar por entre a proposta autoformativa é percorrer tal qual os
caminhos de florestas de Heidegger. Caminhando por entre floresta
fechada há seu labirinto, angústia, mistério. Mas há a beleza de cada
planta, céu, animais e deuses. O poeta sobrevive a si mesmo, fazendo do
seu próprio corpo residência de grandes acontecimentos mundanos. O
texto fala a sua alma na escuta originária. Por isso, a poesia é, sobretudo,
escuta. A fala antecede a escuta. Sendo assim, a poesia é fonte de
antagonismos que se enfrentam, mas habitam a mesma morada.
Por fim, pensar todo este exposto enquanto encontro possível entre
filosofia, poesia e educação é empreender uma possível dinamização
necessária que convoque o ser-no-mundo enquanto cura. Trazer o
chamado da linguagem é estar presente com pre-ocupação e cuidado. A
de-mora para construir e habitar poeticamente este mundo é o desejo que
construir para si mesmo uma casa da cura. Com a intransferível missão
de finalizar o inacabado e fluxo continuo deste texto, seguimos pontuando
a importância do tempo meditativo de Heidegger que evoca o “levantar
120

os olhos para o céu” os vestígios estão com os deuses e o mortais


conseguem senti-los. O canto a Dionísio e a Baco prevalecerá.
Resta, então, a força criadora dela, da vida, seus mitos e poesia.
121

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