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Artigo para Mestrado

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Desempenho, gestão, visibilidade e

tecnologias como vetores estratégicos


de regulação e controle de condutas na
contemporaneidade
Performance, management,
visibility and technologies as strategic
vectors of regulation and control of
conduct in contemporaneity

Sylvio Gadelha*

RESUMO
O artigo em tela trata, grosso modo, de questões que articulam a biopolítica
à educação no contexto das sociedades de controle. Para fins de delimita-
ção dessa ampla e complexa temática, restringe seu intuito à tentativa de
identificar, descrever, articular e problematizar quatro vetores considerados
estratégicos ao agenciamento entre biopolítica e educação, sobretudo, ao
governo e à regulação das condutas na contemporaneidade. Para tanto, parte
da premissa de que, desde o advento de uma governamentalidade neoliberal,
tanto de caráter ordoliberal quanto de matiz estadunidense, colocou-se em
marcha, particularmente nas sociedades ocidentais, um amplo e intensivo
processo de empresariamento da sociedade. Este, dentre outras coisas, teve
por efeito reorganizar e redefinir o que tradicionalmente se tem entendido
por educação desde a Modernidade. Tais transformações remetem a um
novo agenciamento, educativo-empresarial, que opera a partir da articulação
simultânea entre o desempenho (performance), a gestão (management), a
visibilidade e as novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs).
De outra parte, em termos teórico-metodológicos, as argumentações são de-
senvolvidas e concatenadas em estreito diálogo com formulações de autores

DOI: 10.1590/0104-4060.54712
*
  Universidade Federal do Ceará. Faculdade de Educação. Fortaleza, Ceará, Brasil. Rua
Waldery Uchôa, 01. Benfica. CEP 60020-060. E-mail: sylviogadelha@uol.com.br; facedufc@ufc.br

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GADELHA, S. Desempenho, gestão, visibilidade e tecnologias como vetores estratégicos...

como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Richard Sennett, Alain Ehremberg,


Vicent de Gaulejac, Christian Laval e Paula Sibilia, dentre outros.
Palavras-chave: Biopolítica. Governamentalidade neoliberal. Educação.
Controle. Gestão.

ABSTRACT
This article deals with questions that articulate biopolitics to education
in the context of societies of control. In order to delimit this broad and
complex thematic, it restricts its intent to identifying, describing, articulating
and problematizing four vectors considered strategic to the assemblage
between biopolitics and education, above all, to the government and to
the regulation of conduct in Contemporaneity. To this end, it starts from
the premise that, since the advent of a neoliberal governmentality, both in
its ordoliberal character and in its American nuance, a broad and intensive
process of entrepreneurship of society was set in motion. Among other
things, this process had the effect of reorganizing and redefining the
meaning of education since Modernity. Such transformations refer to a
new educational-entrepreneurial sort of mediation that operates through
a simultaneous articulation between performance, management, visibility
and new information and communication technologies (ICTs). On the other
hand, in theoretical-methodological terms, the arguments are developed
and linked in close dialogue with formulations of authors such as Michel
Foucault, Gilles Deleuze, Richard Sennett, Alain Ehremberg, Vincent de
Gaulejac, Christian Laval and Paula Sibilia, among others.
Keywords: Biopolitics. Neoliberal governmentality. Education. Control.
Management.

Introdução

Uma das maiores contribuições de Michel Foucault ao pensamento con-


temporâneo talvez seja justamente a de nos ter fornecido ferramentas conceituais
e problematizações histórico-filosóficas capazes de nos fazer compreender os
processos de subjetivação sob outro prisma analítico, que não aquele consagrado
nas e pelas ciências humanas. Este, a despeito de se apresentar com distintas e
sutis diferenças, todas animadas de uma forma ou de outra pelo humanismo dos
séculos XIX-XX e pelos ideais iluministas, terminou por “prometer o homem ao
homem” e por conceber o sujeito sob a forma de um universal abstrato, como

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centro e fundamento transcendente do conhecimento e da ação. Trata-se, nesse


caso, contudo, de um sujeito cuja substância, identidade, “Eu” e verdade (de
si) vieram a assumir uma “textura”, ou “tonalidade” eminentemente “psi”; isto
é, um sujeito concebido, sobretudo, mediante processos de “psicologização”,
“psicopedagogização” e/ou “psicopatologização”, com o concurso providencial
do agenciamento entre os saberes e práticas do campo “médico-psi”, de um lado,
e, de outro, os saberes e práticas das ciências humanas.
Seria uma tarefa vã tentar dimensionar toda uma literatura artística, in-
telectual, filosófica, sociológica, educacional e psicológica, tanto progressista
quanto vocacionada à crítica, produzida a partir das problematizações e da
formidável caixa de ferramentas que nos foram legadas por Michel Foucault.
No que respeita às possíveis conexões entre subjetivação e educação em nosso
presente histórico, no entanto, creio que o curso Nascimento da biopolítica
(2008b), em particular, nos abre novas e sugestivas direções e possibilidades
de análise e problematização. É justamente disso, de certo modo, que se ocupa
o presente artigo. Ele busca ilustrar tal intento, como dissemos logo ao início,
posicionando e implicando tanto a educação quanto os processos de subjetiva-
ção contemporâneos em um amplo e intenso processo de empresariamento da
sociedade. No intuito de mostrar o quanto e como essa relação tem se mostrado
capital, tentaremos descrevê-la e caracterizá-la identificando o modo como
quatro vetores, dentre outros possíveis – o desempenho (performance), a gestão,
o imperativo de visibilidade-transparência e as novas tecnologias digitais da
informação e da comunicação –, se constituem como estratégicos à regulação
e ao controle das condutas na contemporaneidade.

Capitalismo de produção, governamentalidade liberal, economia


política e biopolítica

Charles R. Morris, em seu livro Os magnatas (2010), nos brinda com


uma narrativa vertiginosa e um rico retrato de como se inventou e se desen-
volveu a pujante economia dos EUA. Abrangendo um período que se estende
aproximadamente da década de 1860 até meados do século XX, sua abordagem
tem início quando da Guerra de Secessão e da morte do presidente Abraham
Lincoln, pondo em destaque quatro personagens ímpares, verdadeiros empire
builders (criadores de impérios) implicados umbilicalmente a essa história,
os quais amealharam grandes fortunas: Jay Gould, Andrew Carnegie, John D.
Rockfeller e John Pierpont Morgan. Seguindo seus passos, temos a oportunidade

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de acompanhar, dentre outros processos, em primeiro lugar, o desenvolvimento


das indústrias naval, do aço, das armas e do Petróleo; em segundo, o desen-
volvimento de grandes companhias ferroviárias e de um imponente complexo
ferroviário que terminou por cobrir praticamente toda a superfície do país1; em
terceiro, a constituição do campo dos agronegócios; em quarto, a organização e
o desenvolvimento das bolsas de valores e da especulação financeira, para não
falar da contravenção e da corrupção.
Caso Morris tivesse ampliado o escopo de sua análise, detendo-se mais
demoradamente em casos como os das companhias Westinghouse e General
Eletric, que passaram a dominar o segmento de bens duráveis e foram precursoras
na criação de uma estrutura organizacional departamentalizada, ou em nomes
como Henry Ford, gigante da indústria automobilística, e Sam Walton, um dos
fundadores da Wal-Mart, que veio a se tornar a maior rede varejista do mundo,
para ficar só nesses dois exemplos dentre inúmeros outros possíveis, teríamos
reunidos mais alguns dos principais elementos necessários à compreensão do
que foi o capitalismo clássico, de produção. Além disso, teríamos também o
entendimento de como veio a se constituir uma sociedade de massa, de consumo,
e de como, gradativamente, a empresa, ou a corporação comercial e/ou finan-
ceira capitalista veio a conquistar um lugar privilegiado na vida sociocultural e
político-econômica não só dos EUA, mas também de todos os países capitalistas
ocidentais influenciados por esse país.
Optamos, aqui, por não tomar o capitalismo em termos estritos – como
forma particular, ou espécie de subsistema, historicamente específico, de ação
ou produção econômica, que faria parte de um sistema social e político mais
amplo, determinando-o em última instância. Em vez disso, seguindo um sentido
alternativo ao termo, sugerido por Rusconi (2010, p. 141), preferimos concebê-lo
como algo que envolve a sociedade como um todo, a despeito do capitalismo
apresentar-se “como formação social, historicamente qualificada, de forma
determinante, pelo seu modo de produção”. Nesse sentido, como assinala o
autor, o capitalismo designa uma “relação social geral”.2 Mason (2017, p. 15)

1  Rigorosamente falando, o início do desenvolvimento de uma rede ferroviária nos EUA


remonta à década de 1820, quando, segundo Risk e Tereso (2011, p. 35), as estradas de ferro cons-
tituíam os maiores empreendimentos empresariais privados, para os quais “os investimentos eram
direcionados, o que propiciou o aparecimento de uma classe de investidores. A implantação dessas
estradas produziu o fenômeno de interiorização do país, provocando a rápida urbanização nos Estados
Unidos e gerando novas necessidades de habitação, alimentação, vestuário, luz e aquecimento, com
a consequente expansão de empresas voltadas para o consumo direto”.
2  Assim entendido, ainda segundo Rusconi (2010, p. 141), suas principais características
são as seguintes: “a) propriedade privada dos meios de produção, para cuja ativação é necessária a
presença do trabalho assalariado formalmente livre; b) sistema de mercado, baseado na iniciativa
e na empresa privada, não necessariamente pessoal; c) processos de racionalização dos meios e

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parece seguir uma orientação similar a essa, ao defender que o capitalismo é


mais do que uma estrutura econômica, constituindo na verdade “um sistema
integral – social, econômico, demográfico, cultural e ideológico – necessário
para fazer uma sociedade desenvolvida funcionar por meio dos mercados e da
propriedade privada”.
Antes de prosseguirmos em sua abordagem, três observações se fazem
necessárias. Em primeiro lugar, se em nossas considerações o capitalismo
estadunidense recebe certo destaque, isso se dá tanto pela magnitude de seu
desenvolvimento, que alavancou os EUA à condição de potência mundial,
sobretudo, após o desfecho da II Grande Guerra, quanto pelo fato de nele po-
dermos localizar elementos implicados não só à governamentalidade liberal,
mas também à governamentalidade neoliberal, tal como problematizadas por
Michel Foucault, esta última apresentando-se como dominante aproximada-
mente nos últimos 40 anos. Em segundo lugar, malgrado a importância de
análises político-econômicas que tanto devem a Marx e a Braudel, a exemplo
das desenvolvidas por Immanuel Wallerstein e por Giovanni Arrighi, optamos
por conduzir nossa argumentação aludindo, embora de forma breve e sumária, a
algumas formulações de Max Weber e de Werner Sombart, em virtude, por um
lado, da também inegável importância das mesmas e, por outro, por encontrarmos
ressonâncias de ambos nas análises empreendidas por Foucault em Nascimento
da biopolítica, análises estas relativas tanto ao ordoliberalismo alemão quanto
ao anarcocapitalismo norte-americano3. Em terceiro lugar, por fim, em virtude
de não pretendermos aqui nem uma caracterização profunda nem extensa do
capitalismo clássico, de produção, mas tão somente dar uma descrição muito
concisa e sumária dele, ao abordá-lo, pelo menos em parte. De início, limitamo-
-nos a seguir de perto algumas observações e comentários muito pertinentes de
autoria de Rusconi (2010).
Iniciando propriamente nossa argumentação, no que respeita às contri-
buições analíticas fornecidas por Sombart e Weber, visto que concebemos o
capitalismo em termos amplos; ou seja, como um fenômeno que não pode ser

métodos diretos e indiretos para a valorização do capital e a exploração das oportunidades de


mercado para efeito de lucro”. Poder-se-ia acrescentar a essas, uma quarta característica, qual seja,
a de que a racionalização daí advinda vai além dos âmbitos técnico-produtivo e administrativo-
-científico, estendendo-se à vida social como um todo, fazendo-se presente, portanto, tanto ao nível
das condutas pessoais, quanto das grupais e coletivas.
3  Poder-se-ia acrescentar aos nomes de Weber e Sombart, o de Joseph Schumpeter (questão
da inovação e da destruição criativa), mas isso extrapolaria nossas modestas ambições. Em todo
caso, no que tange às principais formulações desses dois primeiros autores e suas possíveis resso-
nâncias nas análises empreendidas por Foucault em Nascimento da biopolítica (2008b), vale a pena
conferir Os executivos das transnacionais e o novo espírito do capitalismo, do sociólogo Osvaldo
López-Ruiz (2007), inclusive, o prefácio a este ótimo livro, escrito por Laymert Garcia dos Santos.

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reduzido apenas a uma esfera ou dimensão puramente econômica. Para bem


compreendê-lo há que se ter em conta mais do que apenas a relação capital-traba-
lho (tão bem teorizada por Marx e por toda uma literatura filosófica, sociológica
e histórica de cunho marxista), ou seja, há que dedicar especial atenção, além
disso, a configurações esquemáticas de comportamentos individuais e coletivos,
passíveis de serem deduzidas do, ou articuladas ao irresistível processo histórico
de racionalização de todas as esferas ou domínios das sociedades ocidentais,
particularmente das mais desenvolvidas. Foi Sombart quem cunhou a expressão
“espírito do capitalismo”, com ela aludindo, frisa Rusconi (2010, p. 143), à “soma
de atitudes psicológicas e culturais que estão na origem do capitalismo moderno
– a Gulsinnung, a orientação ético-intelectual identificada no individualismo,
no princípio aquisitivo e, portanto, no racionalismo econômico”.
Weber, por sua vez, em A ética protestante e o espírito do capitalismo,
tomando por base a ética calvinista e levando em conta particularmente a ideia
de beruf (profissão como vocação), argumenta que esta se mostra decisiva na
propagação de uma conduta a um só tempo ascética e racional, a qual, por sua
vez, veio a se constituir como uma espécie de pressuposto ao espírito do ca-
pitalismo moderno. Rusconi (2010, p. 143) resume o essencial dessa conduta
nos seguintes termos:

A ascese intramundana atua com energia contra qualquer forma de prazer,


luxo, esbanjamento ou exibição dos consumos e poupança de dinheiro e
de bens, disponíveis para uma acumulação e um reinvestimento de tipo
capitalista. Uma riqueza considerada como prêmio para uma prudente
administração dos bens recebidos de Deus é a mentalidade que, a longo
prazo, dinamizará os mecanismos da economia capitalista.

Uma vez que a motivação religiosa que animava essa disciplina ascético-
-racional protestante foi relativamente esvaziada, sendo substituída, assimilada
e/ou encampada por outro tipo de disciplina, que visava à produção de corpos
dóceis (em termos políticos) e úteis (em termos produtivos), tal como magis-
tralmente demonstrado por Foucault em obras como Vigiar e punir e A vontade
de saber, resta-nos buscar compreender o capitalismo, ainda tomando Weber
como intercessor privilegiado, como perfazendo, mais do que tudo, uma singular
lógica, uma forma de racionalidade sui generis, decerto econômica, mas também
simultaneamente social, burocrática, administrativa e jurídica. Nessa perspectiva,
a essência do capitalismo, sem que se deixe de lado uma agonística do social,
deve ser buscada, conforme assevera Rusconi (2010, p. 144),

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[...] na exploração racional das regras de troca em geral – de cujas regras


a troca de força-trabalho contra salário é só um aspecto. Para Weber, a
coerção inerente à venda da força-trabalho é um aspecto da “vontade de
trabalho” que dá lugar à lógica da troca.
O mercado é a transposição econômica da incessante luta entre os homens.
A economia racional é orientada pelos preços monetários, que por sua vez
se formam no mercado pela luta entre os interesses. “Sem uma avaliação
em preços monetários - isto é, sem aquela luta -, não é possível nenhum
cálculo”. A lógica do cálculo formal capitalista é, portanto, ligada - através
do livre mercado - à lógica da luta entre os interesses.

Como a questão da racionalidade e o mecanismo da troca sobressaem


nas considerações feitas acima, aproveitemos o ensejo para articulá-los tanto
ao liberalismo quanto à arte de governar que lhe corresponde e à biopolítica,
tal como desenvolvidos por Foucault em cursos como Segurança, território,
população (2008a) e Nascimento da biopolítica (2008b)4.
Em Segurança, território, população (2008a), Foucault introduz a noção
de governo em suas análises arqueogenealógicas, com ela ampliando e com-
plementando sua leitura crítica das estrategizações e da agonística (relações de
saber-poder, mecanismos de assujeitamento e de dominação) que atravessam as
sociedades disciplinares de uma ponta a outra. Grosso modo, pode-se afirmar que
o exercício do governo deve ser concebido como envolvendo uma articulação
entre, de um lado, um regime de veridicção, e, de outro, um regime de jurisdi-
ção. Tendo isso em conta, antes dos séculos XVI e XVII, do que se tratava? Os
problemas referentes ao exercício do governo remetiam à necessidade de se saber
se as práticas governamentais eram exercidas de acordo com certas leis, que
tanto poderiam ser morais como naturais ou divinas. Depois, nos séculos XVI e
XVII, com o advento do que Foucault designou de razão de Estado, os problemas
relativos ao exercício do governo passaram a girar em torno do seguinte ponto:
será que o governo é exercido bastante bem, com bastante intensidade, ou com
bastante profundidade e de forma atenta a detalhes, de tal modo que se eleve
o Estado ao seu máximo de força (majoração das forças estatais)? Em terceiro
lugar, por fim, a partir do ocaso do século XVIII, a questão do governo se colocou
sob outros termos: doravante, tratava-se de saber se se conseguiria governar bem
no limite de um “demais” e de um pouco “demais”, isto é, entre um máximo e

4  Rigorosamente falando, há que se ter em conta que a biopolítica, como se verá mais adiante,
não é propriamente desenvolvida por Foucault no curso de 1979-1980. Felizmente, todavia, ele nos
disponibiliza, nessa e em outras obras, importantes elementos para que a pensemos e a atualizemos,
cartografando seus novos funcionamentos em nossa contemporaneidade.

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um mínimo que a natureza das coisas fixava para aquele que exercia o governo,
ou seja, para o poder soberano. Em outras palavras, tratava-se de saber se era
possível exercer o governo atentando-se para, ou levando-se em conta, o que
seriam necessidades intrínsecas às próprias ações ou práticas governamentais.
É deste terceiro e último regime de verdade, cujo instrumento intelectual ou
forma de cálculo era a economia política clássica, tal como articulada ao princípio
de autolimitação do governo e ao exercício de biopoderes, que, em princípio,
pensamos que Foucault trataria no curso Nascimento da biopolítica. Ocorre,
contudo, que no fim das contas Foucault terminou, na verdade, se ocupando do
exame e da problematização da governamentalidade neoliberal, tanto em sua
versão alemã (ordoliberalismo) quanto em sua versão estadunidense (Escola
de Chicago), sugerindo que a compreensão do liberalismo e do neoliberalismo
constituía um pré-requisito crucial para uma boa compreensão do que vem a
ser a biopolítica. De todo modo, retomemos essa governamentalidade moderna,
característica do liberalismo clássico, bem como seu instrumento intelectual, a
forma de cálculo por ela privilegiada para perscrutar o exercício do governo, a
economia política. Quanto à primeira, afirma Foucault (2008a, p. 17-18):

Digamos que entramos aqui, como vocês veem, numa era que é a da razão
governamental crítica. Essa razão governamental crítica ou essa crítica
interna da razão governamental, vocês veem que ela não vai mais girar
em torno da questão do direito, que ele não vai mais girar em torno da
questão da usurpação e da legitimidade do soberano. Não vai ter mais
essa espécie de aparência penal que o direito público ainda tinha nos
séculos XVI e XVII, quando dizia: se o soberano desconsidera essa lei,
deve ser punido com uma sanção de ilegitimidade. Toda a questão da
razão governamental crítica vai girar em torno de como não governar
demais. Não é ao abuso da soberania que se vai objetar, é ao excesso de
governo. E é comparativamente ao excesso de governo, ou em todo caso
à delimitação do que seria excessivo para um governo, que se vai medir
a racionalidade da prática governamental.

A Economia política clássica, como dissemos acima, constituía o instru-


mento intelectual ou a forma de cálculo da razão governamental moderna e libe-
ral, cuja lógica e ação primavam por uma autolimitação de fato, geral e intrínseca
às próprias práticas de governo, além de serem passíveis de constituírem-se
como objetos de transações indefinidas entre os que governavam e os que eram
governados. Em sentido restrito, o termo economia política designava a análise
especificamente focada na produção e circulação de riquezas, mas num sentido

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mais amplo e mais prático, remetia a um método de governo capaz de assegurar


a prosperidade de uma nação. É justamente essa acepção do termo a utilizada
por Jean-Jacques Rousseau no verbete que redigiu para a Enciclopédia, em
que, por exemplo, a economia política comparece referindo-se a uma espécie
de reflexão geral sobre a organização, a distribuição e a limitação dos poderes
numa sociedade. Para Foucault (2008b), entretanto, o que se destaca como mais
importante na compreensão da economia política é o fato dela ter possibilitado
ou assegurado a autolimitação da razão governamental.
Por outro lado, como assinala Foucault (1990, p. 290), não se deve perder
de vista que o nascimento da economia política, entendida como forma de cál-
culo, como instrumento intelectual, mas também como perfazendo um conjunto
de novas técnicas de intervenção governamental, é inseparável da constituição
da população como um novo campo das ações de governo:

A economia política pôde se constituir a partir do momento em que, entre


os diversos elementos da riqueza, apareceu um novo objeto, a população.
Apreendendo a rede de relações contínuas e múltiplas entre a população,
o território, a riqueza etc., se constituirá uma ciência, que se chamará
economia política, e ao mesmo tempo uma intervenção característica do
governo: intervenção no campo da economia e da população. Em suma, a
passagem de uma arte de governo para uma ciência política, de um regime
dominado pela estrutura da soberania para um regime dominado pelas
técnicas de governo, ocorre no século XVIII em torno da população e,
por conseguinte, em torno do nascimento da economia política.

Essa observação é relevante pelo fato de a biopolítica e a governamentali-


dade liberal, no transcurso da modernidade e em estreita sintonia ao capitalismo
de produção, fazerem um uso estratégico da educação, sobretudo por intermédio
do amplo processo de escolarização da infância e da adolescência, com vistas ao
controle das condutas dos indivíduos e à regulamentação e controle dos modos
de vida das populações pobres e operárias.

O mecanismo da troca, o homo oeconomicus liberal e a formação de


uma cultura empresarial

A economia, no sistema capitalista clássico de produção, é animada por re-


lações de troca, ou transações comerciais entre agentes econômicos, vendedores

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e compradores de bens e/ou serviços. Por outro lado, no mercado, essas trocas ou
transações são moduladas pelo jogo de forças que não só envolve como deter-
mina a relação entre a oferta e a demanda; os preços, por seu turno, constituem
o nexo entre a primeira e a segunda. Eles são os indícios que nos sinalizam se a
oferta, ou a demanda de um determinado produto e/ou serviço está aumentando,
ou diminuindo. Além disso, os preços raramente estão em equilíbrio – condição
que os qualificaria como “justos”, haja vista serem suscetíveis aos efeitos da
sazonalidade e de “ruído”. Para o que nos importa, devemos ter em mente os
atributos que caracterizam esses agentes econômicos, ou melhor, esse homo
oeconomicus do liberalismo clássico e do capitalismo industrial. Sua principal
característica, tal como se depreende de A riqueza das nações, publicado em
1766 por Adam Smith (1723-1790), é a de que ele age em interesse próprio,
isto é, na direção de uma maximização dos seus lucros e de seu bem-estar (“su-
jeito de interesse”), de forma racional, ponderada, acrescentando-se a isso que
sua conduta, desde que agraciada com a liberdade, terminaria por reverter-se
positivamente em prol da felicidade (aumento do bem-estar) da coletividade5.
De outra parte, em decorrência das inovações e transformações introdu-
zidas pela segunda Revolução Industrial, além das organizações propriamente
fabris, organizações financeiras e de crédito passam a compor o cenário capita-
lista, dando-lhe uma nova dimensão, eminentemente financeira. Isto, segundo
Risk e Tereso (2011), dá lugar a três fenômenos: a) acumulações de capital
provenientes de trustes e fusões de empresas; b) separação entre a propriedade
particular e a direção das empresas; c) aparecimento das holding companies
(empresas controladoras) para coordenar e integrar negócios. Em paralelo,
dá-se um movimento de transmutação na estrutura e no funcionamento das
organizações capitalistas, as quais, até então, ainda operavam sob a influência

5  Neste momento, talvez seja oportuno abrir um pequeno parêntesis acerca da relação entre
governo, entendido como condução da conduta de alguém, e liberdade, atributo de que gozaria o
indivíduo liberal. Para tanto, permitam-me citar um breve trecho de autoria de Viviane Klaus (2011,
p. 66), pesquisadora que problematiza a relação entre gestão e educação, a partir das formulações
de Michel Foucault. Diz ela: “A doutrina liberal precisa de liberdade para poder agir: liberdade de
expressão, liberdade de discussão, liberdade de mercado etc. A elaboração e a intervenção do poder
público estão diretamente relacionadas com o princípio da utilidade, que indica no que o Governo
pode mexer e no que o Governo não deve mexer. O Governo estará preocupado continuamente
com o jogo entre interesses coletivos e interesses individuais, entre liberdade e segurança, ou seja,
ao mesmo tempo em que a liberdade é produzida – pois o liberalismo é definido no livre jogo dos
interesses individuais –, é preciso estabelecer limites e controles às liberdades. [...] No liberalismo,
a liberdade é entendida muito mais como espontaneidade do que como liberdade jurídica reconhe-
cida como tal para os indivíduos [...], de forma que é preciso deixar as pessoas agirem, falarem,
participarem. [...], liberdade aqui tem relação direta com o sujeito de interesse, com o homem
empresário de si mesmo.”

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de modelos herdados dos séculos anteriores, oriundos de organizações militares


e eclesiásticas. Esse movimento de transmutação já antecipava a importância
e a centralidade que as empresas e/ou corporações passariam a ter nos EUA e
nas demais nações desenvolvidas do mundo ocidental.
Tal movimento foi possibilitado, em termos amplos, como bem o mostrou
a obra de Weber, por um processo de racionalização generalizada da sociedade,
e, em termos específicos, pelo advento da abordagem clássica da administração.
De certa forma, esta tanto pensou criticamente quanto buscou responder, com
o concurso dos conhecimentos e técnicas das ciências modernas, a dilemas
relacionados a algo que já havia sido sugerido anteriormente por Adam Smith,
a saber, a ideia de que a riqueza das nações provém da divisão do trabalho e da
especialização de tarefas. Essa necessidade de racionalização da produção, bem
como da estrutura, do funcionamento e da administração das organizações capi-
talistas é bem abordada por Risk e Tereso (2011, p. 37-38) nos seguintes termos:

Pelo inchaço das estruturas organizacionais, criadas para atender a expan-


são de seus mercados, os custos das várias unidades passaram a pesar na
lucratividade das empresas, fazendo minguar os dividendos dos acionistas.
Tornou-se necessário pensar a estrutura funcional para ser capaz de coor-
denar a fabricação, a engenharia, as vendas e as finanças de maneira que
se reduzissem os riscos de flutuação do mercado. Acreditava-se que os
lucros só seriam maximizados com base na organização e racionalização
da estrutura funcional das empresas.
No período compreendido entre 1880 e 1890, as indústrias objetivaram
o planejamento racional de custos. Procuraram, também, controlar as
matérias-primas pelos seus departamentos de compras, adquirindo em-
presas fornecedoras, controlando a distribuição para a venda dos seus
produtos sem intermediação e operando diretamente com os varejistas ou
consumidores finais. Entretanto, embora persistisse a preocupação com a
eficiência na produção, nas compras, vendas e distribuição, os meios de
que dispunham naquele tempo foram insuficientes para diminuir o custo
das operações. Os lucros minguaram e as empresas viram-se obrigadas a
procurar novos mercados para suprir o nível de saturação vigente. Buscou-
-se substituir o modelo da estrutura funcional, que já não mais satisfazia,
pela criação da empresa integrada e multidepartamental.

Constituída no início do século XX, uma das faces da abordagem clássica


da administração remete, principalmente, ao nome de Frederick Winslow Taylor
(1856-1913), nos EUA, seu fundador, ao passo que a outra, na França, ao nome

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de seu principal teórico, Henry Fayol (1814-1925). A face tayloriana punha em


evidência o que seria uma administração científica das organizações, preocu-
pada sumamente com o aumento da eficiência operacional das organizações,
inclusive, no âmbito das atividades realizadas pelos trabalhadores operários.
A face fayoliana, por sua vez, dizia respeito a correntes preocupadas tanto
com a estrutura (anatomistas) quanto com o funcionamento (fisiologistas) das
organizações, também preocupada que estava com o aumento da eficiência da
empresa; salientando, para tanto, diversamente, a necessidade de promover não
só uma divisão da empresa em departamentos diferenciados (de produção, de
vendas, de engenharia, financeiro, por exemplo), mas também a necessidade
de promover entre eles inter-relações estruturais.
Nesse contexto de redefinição, reestruturação e reorganização das empresas
industriais e comerciais capitalistas, sobretudo, a partir da teoria clássica da ad-
ministração, outros traços definidores vêm a ser acrescidos ao conceito do homo
oeconomicus liberal-capitalista. Com efeito, conforme atestam Risk e Tereso
(2011, p. 54-55), passa a subjazer a esse conceito a ideia de que o ser humano

[...] é movido exclusivamente por recompensas salariais, econômicas


e materiais, isto é, trabalha apenas para suprir suas necessidades de
sobrevivência. Dois elementos são para ele fundamentais: o medo da
fome e a necessidade do dinheiro para sobreviver. Dessa maneira, as
recompensas salariais e os prêmios por produtividade estimulam o
trabalhador a superar seus esforços físicos visando obter o máximo de
remuneração possível.

Risk e Tereso acrescentam, ainda, que essa visão, além de “reducionista”,


agregava elementos que negativavam essa figura do homo oeconomicus, con-
cebendo os operários ou trabalhadores, por exemplo, como indivíduos cogni-
tivamente limitados, mesquinhos, preguiçosos, além de, amiúde, responsáveis
não só pela vadiagem como também pelo desperdício de recursos nas empresas,
razão pela qual, asseveram os autores (RISK; TERESO, 2011, p. 56), deveriam
ser controlados “por meio do trabalho racionalizado e do tempo padrão”.
Se articularmos, ao taylorismo e ao fayolismo, a tríade composta pelo
fordismo, o desenvolvimentismo e o keynesianismo, teremos reunidos os
componentes cruciais ao que considero ser uma primeira fase de um complexo
processo de empresariamento da sociedade, fase esta que se estende desde o
início do século XX até aproximadamente a passagem dos anos 1960 aos anos
1970. Para finalizar a primeira parte do presente trabalho, gostaríamos de tecer

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alguns breves comentários sobre essa primeira fase desse processo de empre-
sariamento, destacando a ideia de que uma série de valores, princípios, normas,
procedimentos, tecnologias, mecanismos, normas e condutas, cuja proveniência
remete ao mundo corporativo-empresarial capitalista, não só migrou para além
desses limites organizacionais, espraiando-se para outras esferas da sociedade
e por entre a vida cotidiana dos indivíduos e das populações nas grandes me-
trópoles e cidades dos países desenvolvidos, mas chegou mesmo a redefinir e a
transformar as relações que mantinham com o tempo e o espaço, bem como a
relação com o consumo, os modos e estilos de vida, redesenhando inteiramente,
portanto, essas sociedades. Nessa perspectiva, em diálogo com David Harvey,
Klaus (2011) sustenta a ideia de que a administração científica, seja como en-
contrada no bojo do sistema produtivo, seja aplicada às esferas outras da vida
social, como, por exemplo, no campo das relações de sociabilidade, terminou por
converter-se como marco da racionalidade corporativa burocrática, ensejando,
assim, não só um sistema de produção em massa de bens e serviços, mas o que
seria uma ampla e intensiva constituição de modos e/ou estilos de vida massifi-
cados, padronizados, homogeneizados, em suma, engendrando uma espécie de
homem unidimensional, na expressão do filósofo frankfurtiano Herbert Marcuse.

O novo espírito do capitalismo, a governamentalidade neoliberal e


uma nova forma de empresariamento da sociedade

Nos EUA, nas décadas de 1930 e 1940, emergiu uma nova classe média,
a qual foi estudada pelo grande sociólogo Charles Wright Mills (1969), que
terminou por designar aqueles a ela pertencentes como os White Collars (“os
de colarinhos brancos”). Costa e Mota (2016, p. 824-825) assim a descrevem:

Composta eminentemente por uma massa de funcionários, ou trabalha-


dores de escritório que compunham os quadros das grandes corporações
privadas, comerciais e/ou industriais, tal classe possuía como duas de
suas principais características, de um lado, o acesso ao consumo e o gozo
obtido através deste, e, de outro a tendência em se identificar ao “espírito”
daquelas, isto é, ao estilo de vida, aos valores e princípios defendidos
por essas grandes empresas, e delas emanados. Em decorrência, essa
nova classe passou a cultivar, como desejável e como algo que poderia
lhe conferir status e segurança, o ideal de integrar-se profissionalmente
às mesmas, mantendo com elas uma relação duradoura, expressa, por

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exemplo, pelo sonho de nelas realizar toda uma carreira ascendente,


garantidora, em princípio, de estabilidade financeira, conforto material,
sucesso, prestígio, reconhecimento etc.

Após a II Grande Guerra Mundial, por sua vez, desenvolveu-se uma ver-
dadeira indústria cultural, uma massificação do consumo e de estilos de vida,
bem como a constituição de uma cultura juvenil, como questão e/ou problema
psicossocial e educacional. Isso implicava também mudanças na mentalidade
e nos costumes, ainda mais com a entrada em cena do Rock and Roll e de uma
indústria cinematográfica que consagrava nas telas os jovens “rebeldes sem cau-
sa” e seus ícones, como Natalie Wood, James Dean, Sal Mineo, Marlon Brando
e Paul Newman, dentre outros. Já a década seguinte, a de 1950, foi marcada,
sobretudo, por agitações relacionadas às lutas empreendidas pelos movimentos
das minorias negras contra o racismo, o preconceito, bem como no sentido de
conquista de igualdade e afirmação de direitos civis. Em ritmo crescente, so-
bretudo a partir da Guerra do Vietnã, com o concurso de fenômenos como o da
contracultura, o das rebeliões estudantis e o da revolução sexual, a ordem social
constituída ao longo da primeira metade do século XX, o establishment, o status
quo, em boa medida associados ao consumismo exacerbado, à burocratização e
à uniformização das formas de vida (tornando-as programadas e estereotipadas)
e ao imperativo de um ajustamento e/ou submissão às regras e aos costumes
estabelecidos pela tradição, foram duramente questionados e contestados, dando
ensejo ao que Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009) designaram de “crítica
estética” ao capitalismo.
Com efeito, as diversas convulsões político-econômicas, socioculturais
e todo esse clima insurrecional característicos dos anos 1960 terminaram por
demandar, segundo esses autores, que o capitalismo construísse para si e para a
sociedade em geral uma nova legitimação à sua existência. Legitimação esta que,
se por um lado empenhou-se em absorver estrategicamente elementos e reivindi-
cações constituintes da referida crítica estética dirigida ao sistema (valorização
da singularidade, da criatividade, da diferença, da aventura, do alternativo, da
invenção, da experimentação, da improvisação e da participação horizontal e
democrática na tomada de decisões); por outro lado, rechaçou ou mostrou-se
cinicamente indiferente a outra crítica que também lhe foi endereçada no mes-
mo período, uma “crítica social”. Diferentemente da primeira, esta deslocava
seu foco e seus questionamentos para as desigualdades político-econômicas e
sociais, para a produção da miséria e para a exploração e opressão das classes
pobres e operárias pelas classes ricas e/ou privilegiadas.

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Parece evidente que, a partir de meados dos anos 1970, sem que se possa
esquecer da revolução operada no campo da informática e da crise na antiga
União Soviética (URSS), com o advento tanto da globalização quanto do neo-
liberalismo, sobretudo mediante as gestões de Margareth Thatcher, à frente da
Inglaterra, e de Ronald Reagan, à frente dos EUA, temos não só o funciona-
mento, de fato, de um novo tipo de capitalismo, mas também a construção de
um novo espírito ou representação social deste. Embora o que Foucault designe
por governamentalidade neoliberal tenha suas primeiras formulações e debates
localizados temporalmente imediatamente antes da II Grande Guerra Mundial
(no Colóquio Walter Lippmann, realizado em 1938, que contou com a presen-
ça dos ordoliberais da Escola Austríaca, ou Escola de Viena) e imediatamente
após a mesma guerra (na Criação da Sociedade Mont-Pèlerin, em 1947), no
presente trabalho preferimos situar o que seria uma segunda fase do processo de
empresariamento da sociedade, a que aludimos anteriormente, como se dando,
principalmente a partir de meados da década de 1970, impulsionada, sobretudo,
pelos efeitos das análises, formulações e políticas econômicas realizadas e/ou
inspiradas pelos economistas da Escola de Chicago (Friedrich Hayek, Milton
Friedman, Theodore Schultz, Gary Becker, George Stigler, Robert Lucas Jr.,
dentre outros).
Essa nova fase do empresariamento da sociedade não se reduz apenas à
privatização, ao enxugamento e à diminuição do Estado e à despadronização
do mundo do trabalho (desregulamentação, terceirização, flexibilização, le-
asing, precarização etc.), como vem destacando toda uma literatura crítica e
progressista, que busca compreender, inspirada no marxismo, o que se passa
na transição entre as sociedades modernas e as sociedades contemporâneas. Se
nossa problematização pretende focar-se, em termos amplos, no modo como
os indivíduos passam a ser formados, educados, subjetivados e governados
em meio ao e pelo neoliberalismo – essa “nova razão do mundo”, como dizem
Laval e Dardot (2016) –, convém apontar e tornar inteligíveis ao menos alguns
dos fatores estratégicos aí implicados. Com base nos fatores originalmente
apontados por Costa e Mota (2016), atualizando-os e estabelecendo algumas
precisões, destacamos os seguintes:
a) a disseminação da “forma-empresa” (sua lógica, seu modus operan-
di, valores, princípios, normas, padrões de conduta e procedimentos
comuns) por todo o tecido social; mais do que isso, tal movimento
interfere diretamente na produção de subjetividades na contempora-
neidade, haja vista que não só os indivíduos são produzidos mediante
sua conversão à forma de uma microempresa, tornando-se empresários
de si mesmos, empreendedores, mas também as famílias passam a

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ser redefinidas em seu sentido e funcionamento, a partir de valores,


princípios e condutas oriundas do ethos corporativo-empresarial;
b) a disseminação da concorrência como o mais importante princípio
formalizador das relações de trabalho e de sociabilidade (o que induz
à competitividade e dá ensejo a que a desconfiança e certa agonística
se instalem nas relações profissionais e de sociabilidade, gerando
insegurança, comprometendo a saúde física e psíquica, bem como a
sinergia, e a colaboração mútua, além de induzir os indivíduos a toma-
rem seus pares como adversários e/ou obstáculos a serem contornados,
superados senão batidos);
c) a generalização de práticas de ranking (“ranqueamento”), tanto no
consumo de bens e serviços quanto nas mais diversas esferas da vida
cotidiana, mas, sobretudo, em situações de avaliação de desempenho
escolar e/ou profissional, concursos e/ou processos de seleção e tria-
gem, em que o objetivo de todos é o mesmo, ou seja, obter a melhor
posição ou colocação possível e, assim, um lugar ao sol (crescimento
e aperfeiçoamento de capital humano, inclusão, melhores salários e
cargos, conforto material, estabilidade e segurança, acesso a bens e
serviços, reconhecimento etc.);
d) a invenção da teoria do capital humano (capital intelectual), mediante a
qual custos/despesas relacionados à educação e à formação, em sentido
amplo, são convertidos em investimentos, bem como determinadas
capacidades, habilidades e destrezas valorizadas pelo mercado, por
conta de sua relativa raridade, apresentam-se imperativamente como
devendo ser produzidas, acumuladas e aperfeiçoadas pelos indivíduos,
principalmente através da educação, de modo que, posteriormente,
esses possam participar com melhores chances na acirrada competição
por empregos e oportunidades e, caso bem sucedidos, possam trocá-las
por uma boa remuneração (salários, fluxos de renda);
e) a disseminação de uma cultura do empreendedorismo e, correlativa-
mente, de pedagogias empreendedoras, enaltecidos como a panaceia
para todos os males que assolam a civilização, que atribuem especial
centralidade ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de competências,
que são instituídas com base nos princípios de eficácia, eficiência,
inovação e flexibilidade, e cuja metodologia e instrumentos, se não
deixam de todo de estarem ainda ancorados no campo das práticas e
saberes “médico-psi”, já não se restringem ou se limitam, contudo,
a ele, doravante anexando, adaptando e privilegiando cada vez mais
valores, princípios, tecnologias, práticas e procedimentos oriundos do

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mundo corporativo e do mercado, ou seja, toda uma nova expertise


característica do campo do management;
f) a disseminação de uma cultura da “prestação de contas”, contabilística,
“de aferição”, na qual procedimentos, tais como os de verificação, exa-
me e avaliação tornam-se recorrentes, generalizados e, em princípio,
cujos resultados devem tornar-se transparentes, estendendo-se desde as
condutas e os desempenhos escolares e profissionais dos indivíduos, até
os desempenhos de empresas privadas e de políticas governamentais,
em todos os níveis (municipal, estadual e federal), em suma, trata-se
do que os políticos e homens de negócios estadunidenses, bem como
os profissionais do management designam por accountability;
g) a desterritorialização do par educação-formação, que sai dos muros
da escola para se reterritorializar em qualquer outra organização so-
cial, doravante convertida à forma-empresa, senão efetivamente nas
corporações comerciais e financeiras, a exemplo das universidades
corporativas;
h) o processo, através do qual as empresas e corporações privadas
pretendem transmutar seu estatuto social, deixando de serem apenas
organizações sociais e acalentando o objetivo pretencioso de virem a se
converter em verdadeiras instituições sociais, assumindo, portanto, um
significativo poder normatizador e normalizador (a título de ilustração,
é mediante esse processo que as grandes empresas, ou corporações,
passam a ter um misto de alma e de identidade, ou um “gás”, como
disse Deleuze (1992), encarnando estilos de vida, valores, princípios,
enfim, formas de ser e de estar no mundo, com os quais as pessoas
tendem, ou melhor, são induzidas a se identificar);
i) o processo de esvaziamento, esquecimento, ou desinvestimento da po-
lítica, que tende a sair imperceptível ou discretamente de cena, dando
lugar, por um lado, à espetacularização midiática e à gestão empresarial,
e, por outro lado, à banalização da violência, da intolerância, da exclusão,
das desigualdades e da miséria, assim como à passionalidade, superfi-
cialidade e estupidificação da vida social e dos laços de sociabilidade;
j) por fim, uma nova lógica estratégica de governo, controle e modulação
das condutas dos indivíduos e das formas de vida das populações pobres
e operárias, que não se restringe apenas à precarização das condições
de vida e à disseminação do medo e da insegurança, mas que se mostra
também capaz de exercer tais funções operando com a otimização e
gestão das diferenças e das multiplicidades (não mais a toupeira de
Marx, mas a serpente de que fala Deleuze (1992), a propósito desse
novo capitalismo, transnacional, financeiro e conexionista).

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É em meio a uma ambiência, uma atmosfera ou um contexto atravessados


por esses fatores que pretendemos discutir, daqui por diante a relação entre gover-
namentalidade neoliberal, educação e subjetivação, explorando quatro variáveis
em jogo nessa relação, todas elas estreitamente relacionadas aos dez pontos acima
elencados: o imperativo do desempenho (performance), a centralidade assumida
pela gestão (management), o imperativo da visibilidade-transparência e o papel
desempenhado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs).

Educação, Governamentalidade Neoliberal e Subjetivação: novos


vetores de regulação, modulação e controle das condutas:

Em nosso presente histórico, os processos pelos quais nos tornamos o


que somos tornaram-se múltiplos, diversificados e muito mais complexos e
entrelaçados do que aqueles típicos das sociedades disciplinares modernas,
preponderantes até aproximadamente o final da década de 1960. Nossas iden-
tidades, nossos “Eus”, ou nossos selfs, enfim, nossas formas de ser e estar no
mundo, nossas maneiras de nos situarmos em relação a nós mesmos, à alteridade
e à vertiginosa realidade contemporânea que tanto se transmuta espacialmente
(com as novas territorializações, desterritorializações e reterritorializações, para
falar com Gilles Deleuze e Félix Guattari) quanto temporalmente, na duração,
tal como no caso da dromologia, tematizada por Paul Virilio em Velocidade e
política (1996); pois bem, nossas subjetividades já não são produzidas e gover-
nadas como dantes. Correlativamente, o mesmo sucede com a educação, que já
não se mostra capaz, como dantes, de sustentar com convicção, e sem melindres,
os ideais característicos das Luzes e sua missão a um só tempo crítica, civili-
zadora e emancipadora dos homens. Com efeito, as críticas mais inteligentes
e substanciais que lhe são dirigidas de certo tempo para cá a acusam de ter-se
deixado reduzir a algo de caráter meramente instrumental e, nessa condição, de
ter-se convertido numa espécie de grande dispositivo psicopedagógico e técnico-
-científico de adestramento e sujeição dos corpos-subjetividades infantojuvenis,
munindo o sistema de produção capitalista das forças vitais necessárias ao seu
bom funcionamento e garantindo a docilidade política dos indivíduos e coleti-
vidades, de modo a facilitar a adaptação passiva destes aos novos mecanismos
de governo e regulação das condutas, induzindo-os, inclusive, a reivindicarem
mais vigilância e controle sobre suas vidas.
Uma das expressões mais surpreendentes desse adestramento contem-
porâneo dos corpos-subjetividades, de que a educação faz parte, diz respeito

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ao culto ao desempenho; ou seja, a centralidade e a importância atribuídos à


performance dos indivíduos e grupos, particularmente nas esferas educacional
e profissional. Permitam-nos transcrever um trecho de autoria de Coelho Júnior
(2015, p. 271-272), que, não obstante longo, tem o mérito de nos fornecer um
sucinto apanhado histórico de como a questão do desempenho foi tratada desde
o início do século passado até os nossos dias. Além disso, assinala como ela veio
a se revestir de uma crescente e estratégica importância para administradores
e gestores:

Na década de 1910, especialmente com a aplicação de princípios da escola


científica de administração, houve um aumento do interesse na padroniza-
ção dos processos de trabalho com vistas à maximização dos resultados.
Os recursos eram mais bem alocados, e os trabalhadores capacitados em
torno de suas deficiências no trabalho. Antes da Segunda Guerra Mundial,
poucas organizações, de fato, utilizaram, efetivamente, sistemas formais
de avaliação de desempenho. Poucas empresas estatais, além das forças
armadas, utilizavam com maior sistematicidade tal prática. Os resultados
da avaliação ou serviam para comunicar aos gestores afirmações referen-
tes ao status do trabalho executado por seus subordinados, ou serviria
de apoio à tomada de decisão a partir do levantamento de informações
relativas ao trabalho.
O uso de medidas de aferição do desempenho nas organizações objeti-
vava fornecer insumos consistentes ao redesenho de práticas e políticas
organizacionais. Essa é a justificativa para que, desde os primórdios, o
foco no gerenciamento de desempenho consistisse principalmente na
etapa de avaliação.
Mais recentemente, a partir da segunda fase da Revolução Industrial
(meados de 1945), a avaliação de desempenho passou a ser concebida
como tática às ações de capacitação. Descrições de cargo fundamentavam
as políticas de recrutamento, seleção e eram a base para a formulação de
indicadores de desempenho.
A partir de 1990, com a gênese e consolidação dos programas de gestão
por competências nas organizações, a gestão do desempenho emergiu
como tática e passou a figurar como elemento-chave no planejamento
de trabalho. A aquisição de competências seria facilitada por ações de
gestão focadas na maximização da performance. Assim, mais do que
simplesmente avaliar, interessava se desenvolver outras etapas de gestão
em todos os níveis (individual, grupal e contextual) com foco no plane-
jamento, monitoramento, avaliação e revisão. Essa é a perspectiva atual.

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Coelho Júnior (2015), compreensivelmente, circunscreve seus comentários


sobre a noção de desempenho ao campo em que opera a Psicologia do Trabalho
e das Organizações (PT&O), bem como a campos afins, como os da gestão e
dos negócios, o que explica o motivo pelo qual não trata do impressionante
transbordamento das preocupações com a questão do desempenho, nesse novo
milênio, para além dos domínios corporativo-empresariais e do mercado. De
fato, a bem da verdade, não se constata tão somente esse transbordamento, mas,
mais do que isso, uma verdadeira e desmedida obsessão tanto com a maximi-
zação quanto com a avaliação do desempenho, e isso de forma generalizada.
No caso das crianças, o destaque recai particularmente sobre as notas escolares
tiradas (mais do que propriamente sobre o efetivo processo de aprendizagem
experimentado). No caso dos jovens, várias esferas de sua vida entram em jogo:
performance escolar, esportiva, sexual e interpessoal-virtual (em se tratando da
popularidade ou da visibilidade de que desfruta), quantas vezes é acessado e ava-
liado positivamente por outros, de quantos acessos é capaz, com que velocidade
e frequência, em que circunstâncias etc.). No caso dos adultos, várias também
são as esferas que passam a ser simultaneamente consideradas, embora amiúde
gravitem entre a da vida familiar, a das relações de sociabilidade e, sobretudo, a
do âmbito da vida profissional. Antes de prosseguirmos, entretanto, detenhamo-
-nos rapidamente no que consiste a definição (ou definições) de desempenho,
para o que recorremos novamente a Coelho Júnior (2015, p. 273):

Desempenho remete ao empreendimento de esforços por parte do indi-


víduo que são voltados à execução de certos tipos de comportamentos
previamente planejados e esperados. Refere-se à execução ou modo de
executar um trabalho, atividade ou empreendimento, algo que exige
competência prévia e/ou eficiência na execução.
Desempenho vincula-se ao empenho em alguma atividade ou trabalho, que
se relaciona à apresentação de resultados específicos ou algum rendimento
manifestado em torno de algo esperado. O produto de uma ação (ato ou
efeito de realizar algo) ou manifestação de algum comportamento resulta
em desempenho. Refere-se à consecução de tarefas, responsabilidades e
deveres que são atribuídos ao indivíduo e que este manifesta explicita-
mente. Diz respeito, também, às competências aplicadas ao contexto do
cargo, à execução de uma obrigação ou tarefa, ou à maneira como atua
ou age em termos de efetividade (eficácia e eficiência) e rendimento em
relação a algo. Remete ao empreendimento intencional em ações orien-
tadas pelo seu resultado esperado, que tem um propósito consciente ou
motivação prévia.

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Note-se que o desempenho põe em cena, em primeiro lugar, um esforço, um


empenho investido numa ação, ou num produto/efeito dessa ação; em segundo,
uma conduta, uma ação, um comportamento, propriamente dito; em terceiro,
metas ou fins demandados, desejados e/ou esperados; em quarto, competências,
habilidades e/ou destrezas que serão mobilizadas tendo em vista a consecução
das metas ou resultados esperados; em quinto, meios, instrumentos ou técnicas,
os quais, assim como as supracitadas competências, deverão servir ao mesmo
tempo como suportes e como móveis que viabilizem e garantam a consecução
do objetivo ou produto/efeito almejado; em sexto, por fim, o desempenho de-
manda um exame, uma avaliação, que tanto deve atestar o grau de seu sucesso
ou fracasso do empreendimento, como deve servir de fator retroalimentador e
otimizador do circuito no qual o sujeito se encontra inserido.
Não obstante sua pertinência, essa perspectivação da centralidade de
que se reveste o culto ao desempenho em nossa contemporaneidade deixa na
sombra outras dimensões tão ou mais importantes desse fenômeno, as quais
são evidenciadas, desde um outro olhar, por exemplo, pelo sociólogo Alain
Ehremberg, no livro O culto da performance (publicado originalmente em 1995,
na França, e em 2010, no Brasil). Para o autor, o culto à performance constitui
um fenômeno que extrapola consideravelmente os estritos limites do mundo
corporativo-empresarial e que se mostra indissociável de outras tendências e/ou
fatores que expressam, das mais variadas formas, a segunda fase do empresa-
riamento generalizado da sociedade a que nos referimos anteriormente. Assim,
por exemplo, o culto da performance se encarrega de subsumir dos processos
de aprendizado e de trabalho seus aspectos graves, rotineiros, monótonos, pre-
visíveis e assépticos para investi-los de novas potências e associá-los a outras
experiências, valores e sensações.
Nesses termos o aprendizado e o trabalho têm de encerrar uma dimensão
lúdica, como se fossem semelhantes a um misto de jogo, desafio e aventura, a
algo, em suma, que não só pode como deve ser experimentado com intensidade
e passionalidade, além de requerer certa disposição a correr riscos. Para Ehrem-
berg, num movimento que se mostra de mão dupla, tanto os executivos tratam
de fazer com que seus afazeres sejam atravessados por atividades esportivas e
aventureiras, quanto os esportistas e aventureiros passam a conduzir cada vez
mais seus hobbies e projetos (viagens, aventuras, expedições e/ou treinamentos
em modalidades esportivas), evitando relativamente a pura, gratuita e despre-
tensiosa fruição de suas ocupações. Contudo, em vez disso, apelam a toda uma
grade de valores, a um conjunto de técnicas, procedimentos e padrões de con-
duta característicos daqueles profissionais que, em princípio, são reconhecidos
como gestores competentes de suas próprias vidas, vencedores que sabem fazer
bons negócios, lucrando com os mesmos. Se antes, como dizia Richard Sennett

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(2006), a identificação do indivíduo com a cultura da empresa em que trabalhava


já permitia, bem ou mal, a construção de uma identidade e de uma narrativa que
dava sentido à existência, a partir do advento do neoliberalismo e da governa-
mentalidade neoliberal estadunidense. Por sua vez, a empresa já não é apenas
uma referência, dentre outras, para uma referenciação identitária, mas torna-se
o lugar por excelência de realização pessoal. Ora, se essa referência absoluta
se desterritorializa da fábrica ou do escritório financeiro e comercial, para se
reterritorializar em todos os pontos da sociedade, inclusive, nas organizações
educacionais, em praticamente tudo detectaremos a presença do management, da
publicidade, do marketing e do branding, nos sugerindo agressivamente maneiras
de ser, ver, estar e viver no mundo. De todo modo, o novo homo oeconomicus
do anarcocapitalismo norte-americano, dos neoliberais da Escola de Chicago,
encarna algo de heroico, de uma atitude heroica, nos termos de Baudelaire.
Para Ehremberg (2010, p. 13), o empreendedor incensado pelo neoliberalismo
é o herói pós-moderno, um herói solitário, despolitizado e que carrega em seus
ombros um difícil fardo:

Mas é na figura do empreendedor e no desenvolvimento, ao mesmo tempo


recente e rápido dos modos de ação empreendedores, que o heroísmo en-
contra sua forma dominante. O empreendedor foi erigido como modelo da
vida heroica porque ele resume um estilo de vida que põe no comando a
tomada de riscos numa sociedade que faz da concorrência interindividual
uma justa competição. Quando a salvação coletiva, que é a transformação
política da sociedade, está em crise, a verborreia de challenges, desafios,
performances, de dinamismo e outras atitudes conquistadoras constitui
um conjunto de disciplinas de salvação pessoal. Quando não temos mais
nada senão a nós mesmos para nos servir de referência; quando somos a
questão e a resposta; o mito prometeico do homem sozinho no barco de
seu destino e confrontado com a tarefa de ter de se construir; encontrar
para si próprio, e por si mesmo, um lugar e uma identidade sociais torna-se
um lugar comum. Numa relação com o futuro caracterizada pela incerteza,
que vê recuar, em nome da mudança permanente, a crença no progresso
linear que simbolizava o Estado-providência, a ação de empreender é
eleita como o instrumento de um heroísmo generalizado. É por isso que
o sucesso empreendedor é considerado como a via real de sucesso.

Uma segunda variável crucial que envolve a governamentalidade neolibe-


ral e suas relações com a educação e os processos de subjetivação, diz respeito
a um segundo tipo de culto, o da gestão, ao qual nos reportaremos de forma

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brevíssima; uma vez que, de uma maneira ou de outra, parte significativa deste
trabalho tem se reportado, direta, ou indiretamente, a ele. O fundamental a reter
desse culto à gestão é o fato dela ter se transformado numa verdadeira visão
de mundo e num efetivo dispositivo de normatividade social, fazendo com
que questões e/ou problemas de natureza política, psicossocial e/ou cultural se
convertam em questões eminentemente empresariais. Ou seja, questões cujo
enfrentamento e o bom encaminhamento demandam a utilização de todo um
conjunto de princípios e valores, de um lado, e de todo um arsenal de técnicas,
mecanismos e procedimentos, de outro. Esses, uma vez agenciados entre si e
disseminados ao extremo, terminam por compor um meio, uma ambiência,
ou atmosfera social com a qual os indivíduos e coletividades devem se fami-
liarizar, se adaptar, e na qual devem se inserir como sendo seu espaço social
vital. Para regular e modular as condutas e as subjetividades dos indivíduos, a
governamentalidade neoliberal atua indiretamente, através da manipulação de
algumas variáveis ambientais, fazendo desses indivíduos seres responsivos e
previsíveis. Nesse contexto, a educação se vê, em primeiro lugar, reduzida a uma
gestão tecnicista de competências e desempenhos, com vistas a uma triagem
dos indivíduos que deverão ter suas vidas qualificadas, tornando-se passíveis de
inclusão no sistema, cujas vidas serão desqualificadas, engrossando as fileiras
dos excluídos sociais. Em segundo lugar, ela se vê alijada da possibilidade de
operar com uma tábua de valores que não seja aquela emanada do mercado;
por isso, precisamente, não tem como problematizar uma série de significações
vitais, como, por exemplo, os sentidos de sucesso e o fracasso, felicidade e
infelicidade, justiça e injustiça etc.
Uma terceira variável implicada às relações entre governamentalidade
neoliberal, educação e subjetivação alude a uma espécie de imperativo de visibi-
lidade/transparência. Por um lado, há como que um chamado a que os indivíduos
se exponham, ganhem visibilidade, exibam-se, tornem-se transparentes, inclusi-
ve, como bem mostrou Paula Sibilia (2008), à custa do escancaramento de sua
intimidade. Essa exortação à exibição tem lá sua conexão com alguns valores
e práticas que fazem parte do campo do management, em particular a ideia de
que não basta ao indivíduo realizar bem o seu trabalho ou dar conta, de forma
correta e pontual, de suas responsabilidades para ser reconhecido, valorizado
e, com isso, promovido. Há que se ir mais adiante, atentando-se ao fato de que,
para aumentar a probabilidade de vir a obter uma almejada aprovação e de vir
a ser premiado por seu desempenho, ele deve espetacularizá-lo, de modo a dar
ampla repercussão (visibilidade e dizibilidade) à sua performance, encontrando
maneiras diversas de se fazer notar, seja, principalmente, por seus superiores,
seja pelos que estão em posições hierárquicas semelhantes a sua, seja, enfim,
pelos que se encontram abaixo dele na hierarquia organizacional.

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É nessa direção que devemos apreender os apelos sedutores em torno do


marketing pessoal e de sua principal ferramenta, o networking. Este consiste
basicamente em saber constituir uma rede estratégica de contatos, que, a despeito
de servir meio de partilha de informações, conhecimentos e experiências, deve
seu apelo muito mais à possibilidade de – se bem gerida e cultivada – aumentar
a probabilidade de alavancar a carreira profissional do indivíduo empreendedor,
abrindo as portas para boas oportunidades, promoções, alianças, ocupação de
cargos estratégicos e assim por diante. De resto, o imperativo de investir na
imagem e no desempenho também constitui um imperativo para as grandes
empresas e corporações, as quais acionam, para tanto, serviços de comunicação
e de marketing institucional que devem trabalhar no sentido de elevar o con-
ceito da organização junto à sociedade e de construir uma interface amigável
entre ambas (empresa politicamente correta, sustentável, com sensibilidade,
compromisso social etc.).
Por outro lado, o imperativo de visibilidade/transparência também se co-
necta ao policiamento, à vigilância e ao controle das condutas dos indivíduos e
das ações das organizações, sejam elas estatais, sejam privadas. Nesse sentido,
a questão da visibilidade não só remete àquela cultura de prestação de contas
a que nos referimos há pouco (accountability), como também levanta questões
políticas nada desprezíveis, a exemplo de algumas assinaladas por Daniel In-
nerarity (2017). Antes de conferi-las, todavia, detenhamo-nos no que quer dizer
o termo accountability. Segundo Freitas, Siqueira e De Paulo (2008, p. 20), o
conceito anglo-saxão de accountability refere-se à

[...] obrigação dos gestores públicos e técnicos responsáveis pela formu-


lação e implementação de políticas públicas ampliarem a visibilidade
das ações desempenhadas, em seus múltiplos aspectos, disponibilizando
informação qualificada sobre procedimentos adotados, custos, benefícios
e resultados para o conjunto dos atores sociais envolvidos.

Cordeiro (2013), por sua vez, num discurso típico de literatura de auto-
ajuda empresarial, distingue três modalidades de accountability, das quais a
primeira, dita governamental, é justamente a que acabamos de definir acima;
a segunda, a contábil, refere-se à prestação de contas em assuntos atinentes à
contabilidade (tesouraria, tributação, balanço patrimonial, dentre outros). A
terceira modalidade de accountability, por seu turno, designada por Cordeiro
como pessoal, caracteriza-se por ser uma atitude ética, de caráter ativo, que um
indivíduo não só pode como deve manter para com os outros. Por outro lado,

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essa postura é equiparada, por Cordeiro (2013, p. 6), a uma habilidade capaz
de levar o indivíduo a “crescer acima e além das circunstâncias, fazendo tudo
o que está ao seu alcance para atingir os melhores resultados, principalmente
no que se refere às responsabilidades do dia a dia, tanto no ambiente familiar
quanto no profissional”. É nítido como esse imperativo ético se encontra agen-
ciado às novas tecnologias de gestão do “Eu”, à maximização da performance
e ao aumento da visibilidade.
Voltemos agora àquelas questões políticas levantadas por Innerarity (2017).
Elas dizem respeito tanto à necessidade de que os indivíduos sejam relativamente
vigiados (por mecanismos que os submetam a certa visibilidade), quanto aos
perigos de vivermos em sociedades em que a transparência seja alçada à condição
de um valor absoluto. Assim, pondera Innerarity (2017, p. 215):

Durante os últimos anos, o conceito de transparência teve uma carreira


meteórica nas sociedades democráticas. A observação do poder se apre-
senta como o grande instrumento de controle cidadão e de regeneração
democrática. Ora, como qualquer outro princípio político, a transparência
tem de ser promovida e equilibrada com outros instrumentos. Convém
que o entusiasmo por ela não esconda as dificuldades inerentes ao seu
verdadeiro exercício, bem como seus inconvenientes e possíveis efeitos
secundários, como o jogo de ocultações que pode promover.
Além de observar, os cidadãos devem dispor de outras capacidades
igualmente essenciais para a democracia. Se atendermos a todas as va-
riáveis que intervêm na sociedade democrática, podermos afirmar que a
transparência é um valor que deve ser promovido na medida certa. Tão
necessária quanto limitada, a democracia requer transparência, mas não
a suporta em excesso nem pode instituí-la como princípio único. As de-
mocracias oculares se articulam em torno da observação do combate que
suas elites travam, e na observação desse espetáculo radica tanto a força
do seu controle quanto as limitações da transparência.

Por fim, a última variável crucial que perpassa a relação entre governo,
subjetivação e educação é constituída pelas novas tecnologias da informação e
da comunicação (TICs). As TICs ganharam especial impulso a partir de meados
dos anos 1970, quando foram desenvolvidas interfaces cada vez mais amigáveis
entre computadores e usuários, e quando se assistiu a um avanço vertiginoso em
relação à capacidade de armazenamento e processamento de informações. Não
bastasse isso, seu alcance assumiu uma dimensão planetária com o advento da
internet, redefinindo nossas relações com o tempo, o espaço e nossas relações de

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sociabilidade. Gradativamente, tudo passou a girar em torno de uma lógica das


redes, da complexidade e das convergências tecnológicas. Entretanto, para Paula
Sibilia (2008), a escola, essa instituição disciplinar de encerramento, tal como a
concebia Michel Foucault em diversas ocasiões, parece ter ficado teimosamente
aprisionada, do final do século XVIII até os nossos dias – nos quais impera uma
“lógica das redes” –, a uma lógica de encerramento, isto é, a uma “lógica das
paredes”. Em decorrência, a educação escolarizada se viu lançada numa crise
de grande envergadura, haja vista manter para com a contemporaneidade uma
relação, senão de estranheza, de franco desencaixe.

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Texto recebido em 21 de agosto de 2017.


Texto aprovado em 09 de setembro de 2017.

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