Estigma e Diversidade Sexual Nos Discursos Dos (As) Profissionais Do SUS
Estigma e Diversidade Sexual Nos Discursos Dos (As) Profissionais Do SUS
Estigma e Diversidade Sexual Nos Discursos Dos (As) Profissionais Do SUS
Brasília – DF
2018
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
Brasília - DF
2018
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RITA DE CÁSSIA PASSOS GUIMARÃES
BANCA EXAMINADORA
Tatiana Lionço
Universidade de Brasília
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DEDICATÓRIA
As pessoas LGBT que cruzaram meu caminho no campo da pesquisa, por suas
resistências, forças e potencialidades e pelo aprendizado de vida sou grata!
E ás suas dores, sofrimentos e angústias por seus relatos de violência na saúde...
peço perdão...
Tenho esperança de recontar uma outra história, de ofertar uma outra forma de
cuidado mais humana e acolhedora que respeite e considere toda maneira de ser e amar.
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AGRADECIMENTOS
À Grande Mãe, por abrigar generosamente diversas formas e manifestações de vida, aos
Orixás e ao babalorixá João por me acolher e abençoar em muitos momentos. Axé.
Ao meu grande bem, meu companheiro, meu amor... que me tira de abismo, segura minha
mão nos momentos mais angustiantes... e as vezes acredita em mim mas que eu mesma...
que respeita minha liberdade, acompanha meu vôo e que não me deixa cair.
Ao meu filho Peu, à minha mãe iluminada, às minhas manas e ao meu mano, aos meus
enteados, às minhas amigas e amigos pelas presenças e incentivos sempre, e a Yoda e Léia,
meu gato e minha gata que acompanharam docemente minha escrita em muitos momentos.
À minha orientadora Valéria pelo riso e confiança constantes, pelo apoio na pesquisa de
campo e por me abrir muitas portas pelo caminho.
À minha co-orientadora Flavinha pela delicadeza e firmeza, pelo olhar atento, sábio e
preciso, por sua sensibilidade e paixão na percepção do outro.
À querida professora Fátima por sua força, coragem e palavras de incentivo e confiança,
exemplo de mulher na luta pela justiça social.
À professora Dais querida, por tantos momentos me despertar o ânimo, pelo carinho, por me
mostrar caminhos seguros no fazer qualitativo e por sua iluminada presença.
Aos colegas de campo de pesquisa, às meninas e aos meninos do NESP pelo carinho,
trabalhos construídos e por acreditar em políticas e ações que contemplem o bem de todas e
todas, sem nenhuma forma de exclusão.
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RESUMO
O objetivo principal da presente tese foi investigar a percepção de médicos(as) e
enfermeiros(as) sobre a atenção à saúde ofertada à população de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) na Atenção Básica. Buscou, sobretudo,
perceber nas subjetividades geradoras dos discursos, a influência do processo patologizante
da sexualidade na geração de possíveis preconceitos e estigmas, como causadores de
prejuízo à qualidade da atenção à saúde desta população. A 13ª Conferência Nacional de
Saúde (2007) garantiu o acesso aos serviços de saúde, nos três níveis de atenção do SUS
para população LGBT, considerando suas vulnerabilidades causadas por estigma e
preconceito. A Política Nacional de Saúde Integral de LGBT (2011) tem como marca o
reconhecimento de que a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero
incide no processo de sofrimento e adoecimento decorrente do preconceito e do estigma
social, e apresenta em uma de suas diretrizes a eliminação destes com foco ao combate das
homofobias, inclusive a institucional. Mesmo após 28 anos da exclusão da
homossexualidade do código internacional de doenças, a literatura tem apontado uma
tendência à compreensão da condição ainda relacionada a patologias e grupos de risco para
doenças sexualmente transmissíveis, configurando barreiras simbólicas ao acesso e
qualidade da atenção. Estes são alguns dos marcos que potencializam a necessidade de
compreender como a patologização e estigma poderão agir nas subjetividades de
profissionais da saúde produzindo obstáculos à atenção a saúde integral a esta população e
assim contribuir para a elaboração de novas estratégias para a educação permanente que
mobilizem efetivamente tais estruturas subjetivas. Foram analisados as falas de 22
enfermeiros(as) e 21 médicos(as) nas regiões do Centro Oeste e Nordeste do País, através
da Análise de Discurso. O resultado permitiu verificar que para os profissionais: a
condição LGBT causa doença e transtornos mentais, estando também associada a
comportamentos moralmente condenáveis; os princípios da equidade e igualdade são
percebidos como antagônicos e nenhum dos(as) entrevistados(as) referiu ter sido
profissionalmente formados para o atendimento da população LGBT. Tais resultados
corroboram com nossa hipótese, de que a racionalidade biomédica, ela mesma,
influenciada por uma Scientia Sexualis, tal como descrita por Foucault, contribui para um
processo estigmatizador de deterioração das identidades, na forma descrita por Goffman, e
se revela nos discursos dos profissionais e em suas práticas de cuidado.
PALAVRAS-CHAVE: Sexualidade; Políticas de Saúde; Estigma Social; Sexismo;
Atenção Básica à Saúde
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SUMMARY
The main objective of the present research is to investigate the perception of doctors and
nurses about the health care offered to the population of Lesbian, Gay, Bisexual,
Transvestite and Transsexual (LGBT) in Primary Care. It aims, above all, to perceive in
the subjectivities that generate the discourses, the influence of the pathologization process
of sexuality in the generation of possible prejudices and stigmas, as causers of prejudice to
the quality of health care of this population. The 13th National Health Conference (2007)
guaranteed access to health services at the three levels of attention of the Brasilian National
System of Health for the LGBT population, considering their vulnerabilities caused by
stigma and prejudice. The Politics National of Integral Health for LGBT population
(2011) is marked by the recognition that discrimination based on sexual orientation and
gender identity affects the process of suffering and illness due to prejudice and social
stigma, and presents in one of its guidelines the elimination of these with a focus on
combating homophobia, including institutional. Evenafter 28 years of exclusion of
homosexuality from the international code of diseases, the literature has pointed to a
tendency to understand the condition still related to to pathologies and risk groups for
sexually transmitted diseases, configuring symbolic barriers to access and quality of care.
These are some of the milestones that potentiate the need to understand how
pathologization and stigma can act in the subjectivities of health professionals, hindering
the health care integral to this population and thus contribute to the development of new
strategies for permanent education that effectively mobilize such subjective structures. The
speeches of 22 nurses and 21 doctors were analyzed in the regions of the Midwest and
Northeast of Brazil, through Discourse Analysis. The result showed that for the
professionals: the LGBT condition causes disease and mental disorders, being also
associated with morally condemnable behaviors; the principles of equity and equality are
perceived as antagonistic and none of the respondents said they have been professionally
trained to care for the LGBT population. These results corroborate our hypothesis that
biomedical rationality, itself, influenced by a Scientia Sexualis, as described by Foucault,
contributes to a stigmatizing process of identity deterioration, as described by Goffman,
and is revealed in the discourses of professionals and their care practices.
KEY-WORDS: Sexuality, Health Policy, Social Stigma, Sexism, Primary Health Care.
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SIGLAS
AB Atenção Básica
AD Análise de Discurso
AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
ACS Agente Comunitário de Saúde
ANTRA Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
APA Associação Americana de Psicologia
CID Código Internacional de Doenças
CNES Conselho Nacional de Estabelecimento de Saúde
CNS Conferência Nacional de Saúde
CTA Centro de Testagem e Aconselhamento
CEP Comitê de Ética de Pesquisa
DAGEP Departamento de Apoio à Gestão Participativa
DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mental
DATASUS Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde
DSS Determinante Sociais de Saúde
DST Doenças Sexualmente Transmissíveis
EPS Educação Permanente em Saúde
ESF Estratégia Saúde da Família
HIV Vírus da Imunodeficiência Humana
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDHM Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
IST Infecções Sexualmente Transmissíveis
LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
MS Ministério da Saúde
NESP Núcleo de Estudos em Saúde Pública
OMS Organização Mundial de Saúde
ONG Organização não Governamental
PACS Programa Nacional de Agentes Comunitário de Saúde
SEDH-PR Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República
SUS Sistema Único de Saúde
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TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UBS Unidade Básica de Saúde
UnB Universidade de Brasília
USF Unidade de Saúde da Família
UNB Universidade de Brasília
UNAIDS Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS
QUADRO
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SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO.....................................................................................................11
2. INTRODUÇÃO..........................................................................................................13
3. OBJETIVOS...............................................................................................................16
4. REFERENCIAL TEÓRICO E REVISÃO DE LITERATURA............................17
4.1 Dispositivos da Sexualidade, ScientiaSexualis e Heteronormatidade...................17
4.2 A Formação do Estigma Dirigido à Diversidade Sexual.......................................32
4.3 A Luta pela Despatologização das Identidades Sexuais Diversas e a Proposição da
"Cura Gay"........................................................................................................................40
4.4 Homofobia, a materialização do Estigma e seu impacto sobre a Saúde ...............48
4.5 A Trajetória do Movimento LGBT no Brasil até a implantação da Política Nacional
de Saúde Integral Da População LGBT............................................................................59
5. CONTEXTUALIZANDO O CAMPO......................................................................71
5.1 Estratégia de Saúde da Família e sua importância para as políticas de equidade..71
5.2 Campo: Organização da ABS e caracterização das populações nas cidades
envolvidas.........................................................................................................................75
6. MATERIAL E MÉTODO..........................................................................................83
6.1 Caminhos Metodológico.........................................................................................83
6.2 Participantes/Amostragem......................................................................................88
6.3 Entrevistas e Coleta de Dados................................................................................89
7. RESULTADOS E DISCUSSÃO................................................................................91
7.1. A condição LGBT causa doença...........................................................................92
7. 1.2 A condição LGBT causa transtornos mentais...............................................102
7.2 LGBT: ser um dissidente das normas permanece como comportamento moralmente
condenável..................................................................................................................... 105
7.3. A formação profissional para a atenção à população LGBT..............................108
7.3.1 Competências e capacitação para lidar com a população LGBT................ 108
7.2.2 Dificuldade em abordar a orientação sexual ............................................... 113
7.4 As UBS e os espaços de (des)atenção à Saúde LGBT........................................117
7.4.1 Contradições da UBS: nem igualdade, nem equidade. ............................... 117
7.3.2 Responsabilização da população LGBT pela baixa procura das UBS ....... 124
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................130
REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 136
10
1. APRESENTAÇÃO
"O que fez a espécie humana sobreviver não foi apenas a inteligência, mas a
nossa capacidade de produzir diversidade."
Mia Couto
11
fosse pelo ofício de “interpretar”, de “dar vida a um outro”, pacientes e personagens com
vivencias socioeconômicas, culturais e comportamentais bastante diferente das minhas.
O sentido de alteridade que permeava minhas ações tanto como enfermeira, quanto
como atriz era exatamente este de enxergar o outro na completude de sua dignidade,
considerando as dores, angústias, doenças e dramas. Por isso, sempre me impressionou o
fato de nos serviços de saúde, onde se deveria primar pela equidade da oferta, e onde se
pressume que o profissional esteja devidamente preparado para atender a todos e todas com
respeito e competência eram tão frequentes preconceitos, discriminações e estigmas com
populações vulneráveis de diversas naturezas e muito especialmente com a população
LGBT, além do pouco ou nenhum investimento na capacitação dos profissionais para atuar
em contextos de diversidade.
Assim sendo, ao decidir seguir minha formação profissional a partir de um
Doutorado em Saúde Coletiva, enquanto primeiro passo para o desenvolvimento futuro de
projetos em que elementos do teatro possam ser utilizados como ferramenta para
sensibilização e capacitação profissional no respeito à diversidade, o tema da atenção à
saúde da população LGBT, se tornou extremamente atrativo.
A presente pesquisa, braço de uma pesquisa maior intitulada “Análise do acesso e da
qualidade da Atenção Integral à Saúde da população LGBT no Sistema Único de Saúde”
conduzido pelo Núcleo de Estudos em Saúde Pública (NESP) da Universidade de Brasília
(UNB), com parceria de universidades públicas em todas as regiões do país, me permitirá
investigar elementos que se cruzam nas entrelinhas dos fazeres do profissional de saúde
forjando a constituição de suas subjetividades, com vistas a desenvolver futuramente
estratégias de educação permanente que ultrapassem a dimensão puramente normativa e
cognitiva do conhecimento de regras ou diretivas de políticas, contribuindo assim, para a
transformação dos aspectos que na formação das subjetividades são as responsáveis pelas
condutas discriminatórias, adotadas de forma conscientes ou não.
12
2. INTRODUÇÃO
13
Foucault em sua obra clássica História da Sexualidade 10 apresenta a sexualidade
como uma construção histórica e cultural, cujo saberes em torno dela são produzidos de
forma discursiva, de maneira a dar sentido ao exercício do poder. Neste sentido ele cria o
conceito de dispositivo de sexualidade, que compreende um conjunto de elementos
intencionalmente diversos e organizados discursivamente para envolver normas
administrativas, regras institucionais, pressupostos científicos, formulações filosófico
morais, onde um jogo de enunciados se autorregulam através daquilo que se pode ou não
se pode dizer, num movimento de afirmações e interdições. Neste sentido o dispositivo da
sexualidade opera seus mecanismos associando a homossexualidade a ideia de perversão, e
seus enunciados moldariam discursos médicos e jurídicos, estendendo-se o biopoder e suas
consequentes decisões biopolíticas à expressão da diversidade sexual dispersas nas
populações.
Para Spargo11 entre o final do século XIX e início do século XX, a expressão da
homossexualidade foi definitivamente patologizada pela medicina enquanto
comportamento desviante da natural heterossexualidade, uma forma de perversão sobre a
qual deveria incidir tratamentos. É interessante notar, que a homossexualidade esteve
presente no Código Internacional de Doenças (CID) até os anos 80 do século passado,
tendo sido constante no bojo da luta dos movimentos sociais da população LGBT em torno
do agravamento dos preconceitos durante a explosão da pandemia da AIDS. Desta forma,
ainda que a história, as ciências sociais e a antropologia tenham demonstrado que a
homossexualidade é uma expressão da sexualidade presente em todas as civilizações
através dos tempos, permanece na contemporaneidade, uma racionalidade que compreende
a heterossexualidade como natural, como norma moral e científica e, portanto, como
comportamento para o qual não se necessita de explicação, enquanto as demais formas de
expressão da sexualidade precisam ser justificadas, estudadas, classificadas e definidas.
O discurso jurídico e médico associam-se ao discurso religioso nesse processo de
desnaturalização da homossexualidade e juntos vem exercendo pressões através das
décadas sobre as informações circuladas e sobre a educação das pessoas. Prado Filho12
argumenta que as religiões, e em especial o cristianismo não se limitam a questões de
dogmas internos e cultos de fé, mas se constitui como proponente protagonista de valores e
modos de vida incidindo fortemente sobre a constituição das subjetividades e das relações
interpessoais.
14
No Brasil é patente essa influência que se dá tanto nessa dimensão intersubjetiva
descrita por Prado Filho12, como na dimensão propriamente política através, sobretudo, da
oposição de partidos e associações políticas de caráter religioso cristão e suas formas de
pressão sobre decisões legislativas e executivas relacionadas ao combate ao preconceito e a
discriminação. No atual cenário brasileiro, Lionço13 aponta as danosas consequências do
impacto do discurso religioso de viés fundamentalista na pauta política, além infringir os
princípios democráticos, provoca contundentes retrocessos de direitos humanos, sobretudo
em grupos marcados por vulnerabilidades históricas como as minorias sexuais, mulheres e
população negra.
Considerando-se a grande expressividade das religiões cristãs na sociedade
brasileira, pode-se estimar o grau de influência exercida por essa visão heteronormativa da
sexualidade no Brasil. A literatura especializada14,15,16 denuncia os sofrimentos vividos por
membros da população LGBT, dificuldade de acesso, redução da qualidade de
atendimento, e de argumentações contrárias à medicalização ou psiquiatrização dos
comportamentos e em defesa dos direitos desta população.
Tanto a literatura 17 , 18 quanto a própria Política Nacional de Saúde Integral da
População LGBT dão ênfase à necessidade de reformas curriculares e estabelecimento de
campanhas e programas de educação permanente para profissionais de saúde. Em função
da realidade de um preconceito encarnado na sociedade e sustentado em discursos
religiosos, científicos e em diversas manifestações na mídia de massa, a efetivação das
ações em curto e médio prazo depende do desenvolvimento de um programa educacional
para profissionais de saúde, o qual deve ser tratado como uma prioridade e ultrapassar a
mera realização de campanhas e inclusão de informações em material didático.
A elaboração de programas de educação permanente no curso de implantação da
Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT propondo estratégias mais
adequadas a uma reflexão aprofundada dos profissionais sobre o tema, com capacidade de
abalar a rigidez dos preconceitos desenvolvidos em toda uma história de vida, necessita de
um conhecimento sobre como se estrutura as práticas discursivas e as condutas
discriminatórias e como eles vão impactar as relações de assistência com a população
LGBT em todos os níveis de complexidade.
Deste problema emergiram as questões norteadoras da presente tese: 1. Qual a
percepção de médicos(as) e enfermeiros(as) que atuam na Atenção Básica sobre a relação
entre diversidade sexual e saúde? 2. De que modo a noção de patologização, e outros
15
estigmas associados à diversidade sexual, influenciam as práticas assistenciais? 3.
Médicos(as) e enfermeiros(as) da atenção básica sentem-se capacitados profissionalmente
para o cuidado com pacientes LGBT? A partir dessas questões foram estabelecidos os
objetivos da pesquisa que compõe a presente tese.
3. OBJETIVOS
Geral
Compreender a percepção de médicos(as) e enfermeiros(as) que atuam na Atenção
Básica sobre a atenção à saúde ofertada à população LGBT no Sistema Único de Saúde
(SUS) em quatro municípios das regiões do Centro Oeste e Nordeste do País.
Específicos
3.1 Analisar a percepção de médicos(as) e enfermeiros(as) da atenção básica sobre
diversidade sexual;
16
4. REFERENCIAL TEÓRICO E REVISÃO DE LITERATURA
18
panorama não apenas dos discursos da repressão e seu enfrentamento, mas também a
vontade por trás desses discursos e suas estratégias de disseminação. O que ele quer é
entender, por qual meio essa sociedade vem afirmando positivamente a negação da
sexualidade, expondo tão ostensivamente sua ocultação, dizendo tão frequentemente que a
silenciamos e tudo isso formulado com palavras que desvelam uma realidade cada vez
mais explícita, reforçando seus poderes e efeitos.
O ponto essencial para Foucault não é necessariamente se contrapor à hipótese
repressiva, mas antes compreender a sexualidade a partir da dinâmica de produção dos
discursos e suas estratégias, a relação dos mesmos com o poder e com o prazer, enfim o
sexo estruturado como discurso.
Daí o fato de que o ponto essencial (pelo menos, em primeira instância) não é tanto
saber o que dizer ao sexo, sim ou não, se formular-lhe interdições ou permissões,
afirmar sua importância, ou negar seus efeitos, se policiar ou não palavras
empregadas para designá-lo; mas levar em consideração o fato de se falar de sexo,
quem fala, os lugares e os pontos de vista de que se fala, as instituições que a
incitam a fazê-lo, que armazenam e difundem o que dele se diz, em suma, o “fato
discursivo” global, a “colocação do sexo em discurso. (ibdem, p. 16)
Destarte, a questão que importa aqui não é precisar se esses efeitos de poder e
essas produções discursivas levam a formulação da verdade sobre o sexo ou, ao
contrário, mentiras destinadas a escondê-lo, mas a vontade de saber que lhe
serve ao mesmo tempo de estrutura e apoio. (ibdem, p. 17 - grifo nosso).
É necessário deixar bem claro: não pretendo afirmar que o sexo não tenha sido
proibido, bloqueado, mascarado ou desconhecido desde a época clássica; nem
mesmo afirmo que a partir daí ele o tenha sido menos do antes. Não digo que a
interdição do sexo é uma ilusão; e sim que a ilusão está em fazer da interdição o
elemento fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história
do que foi dito do sexo a partir da idade moderna. (ibdem, p. 17)
19
que viria a ocorrer, sobretudo a partir do século XVII, é antes esse processo de “colocação
do sexo em discurso”. A sexualidade foi crescentemente incitada. As estratégias de poder
em lugar de operar uma seleção rigorosa sobre a sexualidade e submetê-la a uma forte
restrição, preferiu constituir uma ciência da sexualidade, por meio da qual e a despeito de
seus tantos erros, buscava descrever em detalhes as práticas variantes e as sexualidades
polimorfas, disseminando informações e classificando-as a partir delas.
Esta scientia sexualis foi a técnica de poder a partir da qual expressou-se com maior
vigor a “vontade de saber” na modernidade, o que teria deslocado a confissão religiosa de
seu lugar central. Assim, teria surgido uma “incitação ao discurso” que veio culminar mais
tarde em uma verdadeira “explosão discursiva”.
Dessa maneira, os processos restritivos, a determinação de quem pode falar, quando
e onde falar, faz parte do próprio jogo discursivo e não do silêncio estabelecido em torno
do sexo.
Ele discutirá ainda como esta paradoxal explosão discursiva ocorre em plena época
de expansão burguesa e seus valores conservadores de forte rigor e moral religioso.
Demonstrando também que é nesse período de tentativa de controle e domínio da
sociedade moderna sobre o sexo, que surgem, por exemplo, na literatura de um marquês de
Sade, os discursos mais profícuos, libidinosos e profundos em torno de práticas periféricas
da sexualidade.
20
Entretanto, Foucault afirmará também que o mais importante é analisar como o
exercício do poder fomentou a multiplicação dos discursos sobre o sexo, como as
instâncias de poder passaram a falar cada vez mais nele, e a desenvolver mecanismos
eficientes de escuta, de fazer os sujeitos descreverem, em detalhes, desejos, formas e
práticas sexuais: “ O que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado o
sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre,
valorizando-o como o segredo” (ibdem, p. 36).
Foucault identifica três grandes códigos de conduta que regiam as práticas sexuais
ao final do século XVIII: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil.
Independentemente das diferenças de natureza desses três códigos, o que importava aqui
era uma distinção objetiva do que era lícito e ilícito, sendo que as relações heterossexuais
matrimoniais tornaram-se o eixo central para o desenvolvimento dos critérios de distinção.
Surge então uma sobrecarga de regras mesmo para o cumprimento do “dever
matrimonial”, e desobedecê-las, seja no sentido de lesar essa aliança sagrada e
juridicamente reconhecida, até o sentido de “desvios da gentilidade” variava entre o
pecado e o crime, no sentido da condenação. Tanto a infidelidade, quanto o estupro, ou a
homossexualidade eram passíveis de pena condenatória, sendo que obviamente, os desvios,
considerados contra a natureza, como a sodomia, ou a “inversão de gênero”, tinham um
estatuto de gravidade ainda maior.
Desta forma, se havia direito a silêncio, segredo e discrição quanto à sexualidade,
ele era exclusivo do casal heterossexual adulto cristão.
21
Nesse processo, primeiro foi desenvolvido uma espécie de extensão da confissão.
Os chamados pecados da carne passam a ter maior importância para a penitência.
Busca-se com isso atingir um imperativo de conduta que não pretende apenas
conhecer as práticas contrárias a lei, mas converter o próprio desejo em discurso, fazer
circular no exterior aquilo sobre o sexo que está aprisionado nas mentes.
O Estado participa do processo, transformando o sexo, a partir do século XVIII em
“questão de polícia”, buscando fundamentar seus regulamentos no conhecimento sobre o
sexo. A intitulada “polícia do sexo” não tem aqui o sentido da repressão da desordem, mas
de organização do coletivo, por meio da regulação do sexo baseada na produção de
discursos públicos de utilidade social. O surgimento da categoria “população” integra-se
aqui. O Estado passa então a analisar a taxa de natalidade, contabilizar filhos legítimos e
ilegítimos, identificar momento de início e frequência das relações sexuais, estudar os
efeitos das proibições, as práticas secretas, incluindo aqui as “perversões” e os métodos
anticonceptivos. É o biopoder exercido por meio de uma biopolítica pensada para a
sexualidade humana.
O colégio e sua pedagogia constituirão outro espaço institucional que integra esse
dispositivo da sexualidade. Foucault dirá que ao analisarmos sua política pedagógica no
século XVIII, teríamos uma primeira impressão de que seria um espaço onde se praticaria
um certo mutismo em torno do sexo. Entretanto, ao se analisar mais profundamente sua
22
estrutura arquitetônica, sua organização e seus regulamentos para disciplinar condutas e
comportamentos, conclui-se pelo fato da sexualidade das crianças ser o elemento
estruturante principal.
Como exemplo o autor cita a organização das salas, dos dormitórios, dos horários
de recreio e de recolhimento, com a separação ou não, mesmo entre as crianças menores,
sendo principalmente por conta desta constatação de uma sexualidade existente e
socialmente inadequada. Assim, o sexo do colegial, passa a tornar-se um problema público,
sobre o qual médicos e professores dedicam-se a produzir discursos normalizadores,
incluindo propostas que Foucault nomeia de “ortopedia discursiva”, a qual seria um plano
pedagógico para que a criança e o jovem adquiram e reproduzam, eles mesmos um
discurso correto, verdadeiro e útil sobre o sexo.
23
Não obstante, para o propósito da presente tese, interessa ainda mais a participação
da medicina e sua Scientias Sexualis neste dispositivo de poder. Mesmo sobre o casal
considerado legítimo, segundo Foucault, a medicina tomou como objetivo a caracterização
das formas normais de busca de prazer, criou patologias orgânicas e mentais originadas na
falta ou incompletude das práticas, criou mecanismos de vigilância sobre “formas de
prazer anexos”, investigou os instintos, seu desenvolvimento, seus distúrbios. Mas foi
ainda mais rigorosa em suas pesquisas para explicar, nomear, classificar e determinar
práticas e desejos que circulassem fora dessa constituição do casal legítimo. Foi assim que
todas as sexualidades periféricas passaram a carregar o estigma da “loucura moral”, da
“neurose genital”, da “degenerescência” ou do “desequilíbrio psíquico”, todos esses,
termos encontrados por Foucault em documentos médicos-psiquiátricos do período.
A ciência da sexualidade, com seus mecanismos de poder instaurados sobre o corpo
e o sobre o sexo, surge como necessidade de classificar e de nominar qualquer
“anormalidade” ou desvio da sexualidade. Segundo Foucault, sua interdição e censura é
antes uma de suas consequências que um de seus objetivos. Mas é também sobre essa
ciência que passa a se apoiar a lei, as condenações, as terapêuticas. O que antes podia ser
no âmbito da religião ou do direito considerado pecado e má conduta, passa agora a ser um
dos critérios centrais de definição da identidade dos sujeitos, como caráter definidor de
uma patologização do gênero, um transtorno de confusão interna entre feminino e
masculino e torna-se, por isso, uma nova forma de especificar o individuo inteiro e não
simplesmente suas práticas de prazer.
Esse giro de perspectiva trazido pela ciência da sexualidade tem uma importância
fundamental também na geração dos estigmas ou do preconceito, que deixam de dirigir-se
às práticas de prazer para atingir agora as próprias identidades, os próprios indivíduos e
seus semelhantes, estejam eles ou não organizados em grupos.
Mas não só a homossexualidade, como qualquer sensação ou desejo diferente
daquele do heterossexual, monogâmico e destinado à reprodução, necessitavam de uma
24
nomeação, de uma classificação e de uma possível patologização, até mesmo os atos mais
solitários, como o onanismo (masturbação), como também, a prostituição e as relações
extraconjugais. Toda esta construção social e científica sobre as “sexualidades periféricas”
eram fomentadas por mecanismos de prazer que não se dissociava em nenhum momento
dos mecanismos de poder. O prazer da escuta de cada detalhe, da penitência, da
condenação, da busca de cura, se associa ao poder de normatizar os corpos, de organizar as
populações.
26
Ainda segundo Foucault, em nome do fundamento da “verdade” as normas
médicas, contaminadas pelo vigor moral da época e pela visão biológica reprodutora,
construíram uma normalidade científica sobre a sexualidade sustentada mais uma vez nos
discursos e confissões e na incessante e obstinada “vontade de saber” sobre o sexo inerente
do mundo ocidental.
27
A compreensão enunciada por Laurenti, no editorial de um dos mais importantes
periódicos de saúde coletiva do Brasil, de que a autoridade para determinar se o
comportamento homossexual é ou não doença é da psiquiatria, ajuda a demonstrar como a
produção discursiva da Scientia Sexualis atravessou os séculos e encontra-se
profundamente impregnada na racionalidade médica, e como consequência nas demais
ciências da saúde.
Foucault vai dizer que é essa forma de associação poder-prazer da sociedade
burguesa em torno da sexualidade, a qual alcançará seu auge no século XIX, mas persistirá
por todo o século XX, virá instaurar um caráter perverso assumido diretamente por
“discursos e instituições”. E essa perversão não se dá exatamente por ter tentado
estabelecer barreiras sólidas contra a sexualidade, o que, como consequência, teria
provocado patologias sobre o instinto sexual, mas antes pelo “tipo de poder que exerceu
sobre o corpo e o sexo, um poder que, justamente, não tem a forma da lei nem os efeitos da
interdição: ao contrário, que procede mediante a redução das sexualidades singulares.”
18
(p.46).
Esta sociedade disciplinar fundamentada no biopoder, ancorada pelas ciências
sexuais, se debruçará cada vez mais na genitalidade e no corpo para distinguir macho e
fêmea e legitimar o desejo heterossexual. Discussões recentes sobre as sexualidades
“desviantes” ratificam a permanência quase obrigatória do controle e do poder sobre os
corpos. Leite Junior25 através da sua tese "Nossos corpos também mudam: a invenção das
categorias "travesti" e "transexual" no discurso científico" retoma a questão do discurso
patologizante imposto pela ciência a partir de uma analise “arqueológica” da origem do
hermafrodita na antiguidade, onde a ambiguidade sexual era tomada como “sagrada”, até o
pseudo-hermafrodita da idade moderna, ou o hermafrodita psíquico, em que esta
ambiguidade é internalizada pela necessidade das ciências médicas de separar, categorizar
o sexo no padrão exclusivo feminino e masculino e patologizar corpos, sexos e desejos que
se desviassem desta norma.
O foco da pesquisa do autor é pensar como se desenvolveu as categorias “travesti”
e “transexuais” ao longo dos anos, sob a perspectiva positivista das ciências médicas, a
qual compreendia a transição entre sexo e gênero sempre como uma manifestação (psico)
patológica e situa a figura da travesti como transgressora desta sociedade disciplinar,
sempre questionando as intersecções entre homens e mulheres e suas legitimidades sociais
históricas. Compreendendo que as normas sociais têm a necessidade de organizar toda e
28
qualquer diferença de gênero, Leite Junior investiga como se construiu historicamente esse
tipo de “senso comum” da “natureza” ou “essência” do feminino e masculino.
É com a ascensão da mentalidade burguesa do século XIX e o surgimento do
racionalismo que "as diferenças pressupostas entre o que é feminino ou masculino passam
a ser buscadas insistentemente no corpo humano" (p. 73). Antes disto até o século XVIII
valores como espiritualidade, posição social, comportamento, aparência é que distinguia o
masculino e feminino, sendo a supremacia masculina notoriamente cultivada:
O autor cita Laquer na sua obra Inventando o Sexo26 o qual resgata a genealogia
entre feminino e masculino a partir do modelo clássico (Galeno, Aristóteles e Platão)
baseado no sexo único, que iria evoluir para o masculino, ou involuir para o feminino a
partir dos "humores" e não da anatomia. Para Salles 27 as mudanças com base no
racionalismo ocorridas após século XVIII, além de promover a separação absoluta entre os
sexos e determinar o sujeito autônomo, fortaleceu "a supremacia do sexo masculino sobre
o sistema nervoso feminino centrado no útero". O foco no sexo genitalizado redimensionou
o discurso cientifico e os limites do gênero, mantendo a subordinação feminina e a
legitimidade da heterossexualidade.
A “naturalização” da subordinação feminina, do heterosexismo, da divergência
absoluta homem/mulher e da abjeção das ambiguidades sexuais, persiste ao longo da
história e suas raízes são profundas, assim como o são a “desnaturalização” de toda forma
de diversidade sexual, consequências do biopoder, da violência simbólica, mas, sobretudo
das biociências e das ciências da psique humana.
Assim como Leite Junior coloca a figura da travesti como transgressora desta
ordem naturalizada, Bento28 diz que nenhuma experiência de gênero é tão forte no sentido
de desnaturalizar o que é ser homem e mulher do que as transexualidades, capaz de
mobilizar a construção cultural alicerçada neste binarismo:
29
Uma concepção de gênero que pensa que o masculino e o feminino são os
significados culturais que as sociedades atribuem à diferença sexual reafirma a
naturalização. Além de uma desnaturalização limitada, e aqui penso no livro O
Segundo Sexo (Beauvoir, 1970) uma concepção de gênero fundada na diferença
sexual como princípio estruturante das performances de gênero, não alcança o
debate sobre o caráter político da sexualidade. E aí nos restam duas alternativas
para analisar as experiências trans: ou as interpretamos como uma patologia, e o
passo seguinte será a sua universalização - porque, se é uma patologia, os
indicadores vão se repetir em todos os lugares do mundo; ou então relativizamos,
e aí compreendemos que existem muitas possibilidades de viver as
transexualidades, e como corolário imediato teremos os deslocamentos das
noções de masculinidade e feminilidade de qualquer referente biológico. (p. 480-
481)
O “sexo” é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição
estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o “alguém”
simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no
interior do domínio da inteligibilidade cultural (p. 154)
Ou seja, segundo este autor, foi a necessidade de criar uma base firme, sólida e
estruturante também para os desviantes sexuais, que obrigará a medicina a agir sobre eles,
não para compreender seus desejos e subjetividades e sim para adestrá-los conforme um
parâmetro universalizante.
Foucault defende ainda que as correlações de forças múltiplas constituídas e
atuantes nos diversos espaços de produção discursiva sustentam os efeitos oriundos das
divisões que se fazem no corpo social, as quais compõem por sua vez linhas de força que
definem redistribuições, alinhamentos, homogeneizações, convergências de afrontamentos,
etc. Um exemplo disso é a disputa em torno da forma de designar a população não alinhada
a formas hegemônicas de sexualidade. No jogo de disputas, o grupo já passou de GLS
(gays lésbicas e simpatizantes), para excluir essa palavra pouco definidora e incluir os
bissexuais e travestis através das siglas GLBT e depois LGBT, por uma reivindicação das
lésbicas para maior visibilidade, ou a incorporação mais recente dos transexuais, passando
a LGBTT, e ainda vivem-se tensões em torno de uma série de outras definições de
identidade que não se sentem representadas, como aqueles que se definem como
pansexuais, ou dos “homens que fazem sexo com homens” e “mulheres que fazem sexo
com mulheres”, mas refutam a designação de Gay ou Lésbica. Além disso, existe toda uma
31
tensão social nos espaços de debate em torno da aplicação correta dos artigos de maneira
adequada à auto identificação de gênero de cada grupo.
Ainda que essas definições possam ser consideradas importantes pelos movimentos
sociais e suas lutas, não é possível ignorar que elas são decorrentes desta mesma prática de
poder de nomear, classificar e definir através de práticas as diversas identidades e que elas
também se constituem como problemáticas para os processos educativos.
Assim sendo, a compreensão foucaultiana de que a partir da ciência da sexualidade
as práticas de obtenção de prazer sexual distintas daquelas implicadas com a procriação, a
exemplo da sodomia, deixaram de ser consideradas como pecados, ou má conduta, para
tornarem-se ponto central da definição de um indivíduo inteiro, como elemento
fundamental para determinar sua identidade, foi de certa forma assumida pelos próprios
movimentos. O preconceito não se dirige à prática propriamente, mas ao indivíduo por ela
definido.
Parece fundamental, portanto, compreender que os dois séculos e outras tantas
décadas de desenvolvimento de uma ciência da sexualidade, fundada na patologização das
práticas sexuais distintas das heterossexuais, nos dispositivos da sexualidade de Foucault,
tenham influenciado o surgimento do termo “heteronormatividade”, como nomeou
33
recentemente Michel Warner . Para ele heteronormatividade é o paradigma que
regulamenta a forma como as sociedades ocidentais se organizam em torno do sexo e do
gênero. Neste conceito, o “normal” é o comportamento heterossexual, e ao se atestar a
heterossexualidade como forma única de exercício do desejo, é estabelecida a pertinência e
materialidade ao “sexo” biológico na construção de uma naturalização do “gênero” e
“sexo”, objetivando-se eliminar qualquer vivência de sexualidade e gênero divergente
desta norma 34 . O termo heteronormativo soma-se a esta discussão, pois nos auxilia a
identificar situações nas quais orientações sexuais divergente da heterossexual são
ignoradas, negadas, patologizadas consideradas desviantes de normas e padrões
estabelecidos.
Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele
tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa
categoria em que pudesse ser - incluído, sendo, até, de uma espécie menos
desejável - num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou
fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o
a uma pessoa estragada e diminuída. (...) e constitui uma discrepância
específica entre a identidade social virtual e a identidade social real”.(ibdem,
p.6)
Portanto, Goffman, percebe que o estigma não pode ser compreendido através de
uma “linguagem do atributo”, mas de uma “linguagem relacional”, ou seja, é no encontro
entre o sujeito pretensamente normal e o estigmatizado, que o estigma cumpre sua função
social, uma vez que “um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de
outrem” (ibdem, p.6).
Assim podemos compreender como determinados julgamentos preconcebidos,
como de que os homossexuais têm um apetite sexual maior, ou dificuldades maiores para
manter fidelidade, sendo consequentemente mais promíscuos em seus relacionamentos,
associou-se, por exemplo, à racionalidade médica na construção da noção de “grupos de
risco” para doenças sexualmente transmissíveis. E é o que favorece a que um sujeito
específico, diante do médico ou outro profissional de saúde, imediatamente já seja visto a
partir das preconcepções que caracterizam seu grupo social e que reafirma no lado do
profissional de saúde sua própria normalidade e superioridade moral.
Goffman apresentará também duas possíveis condutas do sujeito estigmatizado:
34
Quando o sujeito assume seu atributo distintivo que o estigmatiza, ou esse atributo já é
conhecido, ou está óbvio ao olhar dos demais, nesse caso, Goffman fala de um sujeito
“desacreditado”, ou quando o atributo distintivo não é conhecido pelos demais, nem é
facilmente percebido, e então o sujeito é “desacreditável”.
Se pensarmos os relatos sobre sexismo e homofobia institucional no campo da
saúde, descritos na literatura, compreenderemos que diferentes situações podem envolver
as pessoas LGBT. Quando, ao procurar um serviço de saúde suas estéticas pessoais de
gesto, fala e figurino, seu estilo propriamente dito, denunciam uma suposta dissidência da
norma, as manifestações discriminatórias tendem a ocorrer logo no seu acolhimento. São
posicionados como sujeitos “desacreditados”. Outras pessoas cujo estilo pessoal não
evidencia a orientação sexual, ou o pertencimento de gênero, as atitudes discriminatórias
passam a integrar o repertório de cuidado a partir de sua enunciação, ou seja, o indivíduo, a
partir de sua “revelação/descoberta” desloca do lugar de desacreditável, para ser
posicionado como desacreditado.
Goffman dirá que as características da produção e consequências do estigma nas
sociedades ocidentais atravessam os tempos desde a antiguidade:
35
tenderá a agir como se o sujeito estigmatizado fosse invisível, inexistente, uma "não
pessoa".
No que se refere ao sujeito estigmatizado, Goffman analisa também outras formas
de reações. Indivíduos considerados dissidentes das normas que reivindicam o seu
reconhecimento e legitimidade. Nestes casos o estigma não imobiliza, não produz
silenciamento ou vergonha.
Podemos dizer que essa forma de reação caracterizaria o recente ativismo que uniu
academia, movimentos sociais, e parte da população LGBTT, em torno do que
convencionou-se chamar de Teoria Queer. Originalmente depreciativa, a palavra foi
ressignificada como marca de identidade tanto para suas ações políticas quanto para
produção intelectual.
Quando o sujeito marcado pelo estigma compartilha com os estigmatizadores as
mesmas crenças sobre sua identidade, ele incorpora em sua subjetividade os supostos
defeitos que imputam ao grupo a que pertence, assumindo que alguns de seus atributos são
impuros, imorais ou falsos. Uma das maiores consequencias desse processo de
subjetivação é expresso por atitudes de vergonha, pecado ou doença.
A demanda ou imposição para tratamento psiquiátrico ou psicológico se ancoram
no sofrimento advindo do estigma e ao mesmo tempo o reiteram deslocando para o
individuo a causa de seu próprio sofrimento.
Essa tensão sempre existente, seja qual for o tipo de reação de ambas as partes, em
torno do encontro entre os ditos normais e os estigmatizados, que Goffman nomeará
“contatos mistos” pode estar na base do que chamamos em saúde pública de “barreira
simbólica de acesso”.
36
tipo de “cooperação tácita para evitá-la”. Relatos de literatura revelam que a permanência
no “armário” guarda relação com a possibilidade de ser ou não aceito em determinado
espaço, como por exemplo, as igrejas e o futebol masculino. O segundo tipo de lugar é
representado pelos lugares públicos nos quais os estigmatizados são tratados como
exceção, “como se não estivessem desqualificadas para uma aceitação rotineira, quando na
verdade o estão” (ibdem, p.71). Há julgar pelos relatos de literatura sobre acesso aos
serviços de saúde da população LGBT, as unidades básicas de saúde estariam incluídas
neste segundo tipo de lugar. Finalmente, o terceiro tipo lugar, que ele nomeia “retirados”
que são aqueles em que os indivíduos não precisam esconder características e atributos, e
nem se preocupar com os esforços que algumas pessoas fazem para não percebê-los, em
geral esses espaços são produzidos e mantidos por pessoas que compartilham um mesmo
estigma, os guetos.
Isso nos leva a interrogar o lugar de cuidado para a população LGBT no SUS. O
enfrentamento da questão de oferta de atenção em saúde, unicamente baseada na
informação cognitiva sobre direitos e reafirmação de diretrizes de políticas, parece ser
capaz de manter as unidades apenas com as características do segundo tipo de lugar
descrito por Goffman, onde indivíduos anunciam o respeito e igualdade agora incorporados
pelo novo discurso do Estado, através de suas políticas, mas não a sente interiormente
como verdade, o que, facilmente, um e outro lado da relação percebem. Por outro lado, a
criação de serviços e espaços especializados para a população LGBTT, ainda que possa
constituir uma estratégia compensatória, corre o risco de criar dentro do SUS os lugares
“retirados”, que mesmo oferecendo maior conforto a esse grupo, reafirma e cristaliza a
distinção estigmatizada.
Parker36 vai além do conceito de estigma estabelecido por Goffman, sustentado de
“marca”, de “diferença de valor negativo” atribuído através das relações interpessoais, e
pensa o estigma “como uma espécie de processo social”, fundamentalmente ligado às
produções e reproduções das práticas de poder e controle de grupos sociais sobre outros. O
estigma seria, portanto mais que uma marca de distinção de inferioridade moral, e se
constitui como ferramenta própria ao exercício do poder e da dominação. Entretanto ele
37
reconhece que mesmo para Goffman, a expressão interpessoal da atribuição e
reconhecimento de um estigma, não prescinde de um processo social que o antecede.
Entretanto, o que surge em Parker que não aparece em Goffman é a ênfase no papel
crucial do estigma enquanto determinante da desigualdade social, onde alguns grupos são
desvalorizados e outros valorizados de forma inerentemente discriminatória, e associada à
variação dos contextos, de maneira que o estigma encontra-se sempre envolto em uma
espécie de flutuação social, absolutamente vinculado as características culturais e aos
sistemas de poder. Essa distinção operada pelo estigma define grupos e indivíduos que
passam a ser socialmente excluídos.
Parker trabalha ainda as relações conceituais entre estigma, preconceito e
discriminação. Ele vê muitas proximidades entre estigma e preconceito, chegando a propô-
lo como um só elemento e não dois, argumentando que o estigma estaria mais relacionado
a sua origem tradicional (doença mental, desfigurações faciais e outras deformidades e
deficiências físicas) enquanto o preconceito se dirigiria a condições mais "comuns" na
atualidade, dando o exemplo da própria homossexualidade e do HIV/AIDS. Ele enfatiza
que tanto o preconceito quanto o estigma envolvem categorização, rotulagem,
estereotipagem e exclusão social, no entanto o processo social que desencadeia um ou
outro advém de mecanismos os mais diversos.
Enquanto o estigma e o preconceito são as representações mentais das causas de
discriminação, a discriminação seria o ato propriamente de exclusão dos indivíduos e
grupos. Dessa forma preconceito e estigma seriam diretamente responsáveis pela
"violência estrutural", que Parker define como ações discriminatórias de desvalorização
social responsáveis por agravos e lesões evitáveis provocados em determinados grupos
sociais. Essa violência está bem representada por indicadores como mortalidade infantil,
expectativa de vida, acesso a cuidados de saúde, acesso a saneamento, entre outros.
Dessa forma a violência surge na própria estrutura e se apresenta nos diferentes
graus de poder sociopolítico, cultural e econômico dos grupos e na constituição de
diferentes oportunidades de realização da vida. A desigualdade social está, portanto, no
cerne da violência estrutural e cria oportunidades de vida desproporcionais por causa de
comportamentos, raça/etnia, doença e pobreza. Além disso, a reestruturação social em
tempos de globalização promove intensas mudanças nas relações sociais de produção
como na distribuição do capitalismo global, que contribuem diretamente para criar a
violência estrutural do mundo contemporâneo. Isso tudo implica compreender que a
38
discriminação em relação à saúde não é apenas resultado do preconceito e do estigma
exercido nas relações interpessoais em torno da assistência, mas é também e
principalmente, resultado das próprias estruturas sociais e econômicas desiguais
construídas com base no preconceito e no estigma.
Monteiro e cols. 37 refletindo sobre como a produção cientifica atual apreende a
temática do estigma e discriminação, conclui que, em certo nível, ela reflete a forma
dominante como a sociedade brasileira tem percebido e determinado suas ações
relacionadas com o tema, em outros diversos campos. Dessa forma a maioria dos trabalhos
sobre estigma não focam nos processos sociais geradores e reprodutores do estigma e
discriminação e sim em experiências e concepções individuais sobre o tema. O estigma é
procurado desta maneira em grupos sociais reconhecidamente vulneráveis (pessoas
vivendo com HIV/AIDS, mulheres, idosos, negros, gays, etc.) e assim busca-se
compreender as experiências individuais ou “as concepções dominantes em determinados
espaços e instituições acerca destes corpos”.
Ao discutir estigma, discriminação e sofrimento as autoras evidenciam o víeis
“biomédico" de “tratar” o sofrimento na dimensão individual e privada (família), tendo por
base a conceito “goffminiano” de estigma, como marca corporal, que pontua o sujeito, seu
corpo e sua experiência, negligenciando a análise dos processos sociais que dão sentido ao
sujeito e sua corporalidade.
Apesar do reparo crítico de Monteiro e cols., sobre a necessidade de pensar as
estruturas coletivas, sociais, culturais e políticas da constituição do estigma e preconceito
na produção científica, na dimensão clínica do cuidado, ressalta-se a relevância de pensar
os corpos individuais e as subjetividades marcadas por estigmas determinados pelo senso
social dominante e comum. É importante também destacar que muitos estudos sobre
equidade e humanização no atendimento a saúde, tem retomado a necessidade de olhar “o
sujeito”, suas necessidades e suas subjetividades, para além de protocolos e condutas
rígidas e mecânicas, tão criticadas no acolhimento da atenção básica.
Dessa forma, uma estratégia que pode se mostrar eficiente para o enfrentamento do
estigma nos serviços de saúde seria investir nas ações de educação e a formação
permanente dos profissionais. Isso é reafirmado quando estudamos o impacto do estigma
sobre a saúde desses grupos.
39
4.3 A Luta pela Despatologização das Identidades Sexuais Diversas e a Proposição da
"Cura Gay".
Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão
sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior
Guimarães Rosa
A resolução criou, entretanto, enorme polêmica no início, polêmica esta que veio
esmaecendo na década seguinte, para ser retomada de maneira mais agressiva a partir de
2015. Para Kahhale39 a motivação da polêmica em torno da resolução 001/99 decorre do
fato de vivermos numa sociedade normatizadora de identidade de gênero focada no
binarismo masculino e feminino e toda conformação ou manifestação que difere desta
concepção hegemônica tende a ser patologizada. A autora ainda afirma que "expressões
LGBT são possibilidades humanas e não quadros de comportamentos ou psíquicos
doentios" (p. 206).
A patologização da sexualidade se mostra em nossos dias de forma mais evidente
quando tratamos dos direitos das travestis e transexuais. Se por um lado associações
mundiais de psiquiatria e psicologia, já declararam a homossexualidade, fora do conceito
de transtornos psíquicos ou mentais e para a qual se desconhece a legitimidade de
propostas terapêuticas, o mesmo ainda não ocorre quanto ao travestismo e a
transexualidade. Lionço40 questiona, por exemplo, o fato do processo transexualizador no
SUS depender de que o paciente se submeta a dois anos de acompanhamento psiquiátrico,
para que se confirme a demanda. Ou seja, persiste neste caso uma noção de transtorno de
identidade de gênero, também chamada tecnicamente de "disforia de gênero".
As discussões sobre a despatologização da condição trans ganhou corpo em 2012
com a campanha de ativismo internacional "Stop Trans Pathologization", que tem entre
41
suas principais demandas a retirada da classificação dos processos de transição entre
gêneros como transtorno mental nos catálogos diagnósticos (DSM e CID)1, reivindicar o
livre acesso a hormônios e cirurgia e o combate à transfobia.41
Esta campanha é fruto de um longo debate entre militantes e cientistas, apesar de
uma parcela do movimento ponderar a perda de direitos que poderia resultar da
despatologização, uma vez que só a partir do seu entendimento enquanto problema de
saúde estaria assegurado o direito das pessoas ao processo transexualizador nos sistemas
públicos de saúde, a exemplo do SUS, no caso do Brasil. Segundo Bento 42 "a
patologização não garantiu direitos de fato, mas impôs um modelo para se pensar a
transexualidade como experiência catalogável, curável e passível de normalização (p.
574)".
Teixeira 43 , tomando como base os trabalhos de Berenice Bento, problematiza o
processo transexualizador implantado pelo Ministério da Saúde justamente por vincular a
cirurgia a rígidos protocolos e a necessidade do diagnostico médico das transexualidades,
não criando espaços para discussões, sobretudo das ciências sociais, quanto a construção
histórica dos "desvios sexuais" ancorada no biopoder, no binarismo macho e fêmea, na
heterossexualidade compulsória e na ausência de compreensão das complexidades
vivenciadas por pessoas trans, as quais apresentam em suas performances, experiências
que desestabilizam a noção homem e mulher, distantes do que entendemos por
“patológico” e mais próximas de subjetividades legitimas quanto ao sexo/gênero/desejo
podendo ou não recorrer ao processo cirúrgico.
1
A ultima revisão do Manual do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mentais
(DSM), de 2012, considerado a bíblia dos profissionais da psique, retirou o diagnóstico das transexualidades
do Transtorno de Identidades de Gênero (TIG),e inseriu Disforia de Gênero, não deixando de patologizar a
condição trans. A última atualização da Classificação Internacional de Doenças (CID 10) manteve o nome
"transsexualismo" o qual foi classificado de Transtornos da Identidade Sexual [F64] inserido no capitulo de
Transtornos mentais e comportamentais.
42
discussão sobre protocolo do processo transexualizador da forma que foi implantado, o
qual recai no ponto crucial da patologização.
44
entrará em vigor apenas em 1º de janeiro de 2022, no momento continua a validade da
categoria F64 dos "transtornos da identidade sexual" (CID 10) onde os médicos podem
enquadrar travestis e transexuais.
Apesar de toda essa trajetória de luta e alguns avanços conquistados, o projeto da
"Cura Gay" ressurge anacronicamente e vem ganhando força, movido pela onda
conservadora que atingiu o país nos últimos anos46, como consequência das transformações
políticas e enfraquecimento das instituições democráticas vividas após o golpe institucional
perpetrado pela união de diversos setores dos poderes executivos, legislativos e judiciários
e a grande mídia de massa. Esse novo contexto obviamente representa uma das maiores
ameaças aos direitos da população LGBT e tem sido comandada por uma bancada
fundamentalista cristã que compõe a atual Câmara dos Deputados. Contrário a corrente
mundial, visto ações da comunidade internacional em retirar as homossexualidades dos
compêndios científicos, o projeto da "Cura Gay" derrubado e indeferido nas suas primeiras
apresentações em 2011, retoma fôlego em 2017 por uma decisão do juiz do estado do Rio
de Janeiro.47
A proposta da "Cura Gay" obviamente sustenta-se na compreensão da
homossexualidade como desvio da normalidade, busca revogar resoluções que interditem
práticas terapêuticas focadas na reversão da condição, e defendem enquanto "respeito à
liberdade", uma espécie de direito a este tipo de terapia.
Teixeira48, analisando o problema, afirma que o CFP já expediu 147 resoluções
desde 2005 e que nenhuma foi tão popular quanto a 001/99, atribuindo sua popularidade à
própria temática de orientação sexual abordada, bem como às inúmeras reações de
oposição, tais como o pedido de anulação parcial movido pelo MPF do Estado do Rio de
Janeiro.
Em sua tese "Cura gay é meu caralho", esta autora busca compreender as práticas
discursivas de ordem jurídica, política e do próprio código de ética que rege a psicologia,
sobre a legitimação da Resolução CFP nº 1/99 em seus enunciados contrários e favoráveis,
e situa a resolução como ato de resistência:
45
Entre as ações movidas contra a resolução 01/99 do CFP doze anos após sua
publicação, encontra-se o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 234/1149, de autoria de um
deputado que é pastor auxiliar da Igreja Assembléia de Deus em Vila Nova, Goiás, o qual
pretende sustar a aplicação do dos art. 3º e o art. 4º da Resolução do CFP. Entre os
defensores da PDC 234/11 com maior visibilidade encontramos a psicóloga Marisa Lobo,
autodeclarada como evangélica e autointitulada "psicóloga cristã", a qual já recebeu
advertências punitivas pelo CFP por oferecer "terapias de reversão" e pelas inúmeras
publicações nas redes sociais nas quais considera homossexualidade como doença, até ter o
seu registro profissional cassado pelo Conselho, o que veio a ser suspenso pela Justiça
Federal, pela alegação de liberdade religiosa e na liberdade de expressão.
Em nome da "liberdade humana" a psicóloga tem se mobilizado numa luta pessoal
contra o CFP, apoiada sobre seus princípios cristãos, coloca o Evangelho acima do código
de Ética da profissão, acusa o movimento de gay de persegui-la e de ser vítima de
heterofobia, teofobia, e preconceito" (p. 114), acusando o Conselho de parceiros e
partidários "ideológicos" a favor dos homossexuais, a partir do que lança o slogan: "Não
podemos para acabar com a homofobia criar a Cristofobia" (p. 106). Afirma ainda que no
Brasil se instalou uma “ditadura de minorias". Junta-se à psicóloga, o deputado e pastor
Marcos Feliciano do PSC, a também psicóloga e missionária evangélica Rozangela Alves
Justino, que diz tratar o "sofrimento das pessoas que tem atração por outras do mesmo
sexo", além de vários outros(as) nomes e associações como Associação de Defesa da
Heterossexualidade50 ligados ao fundamentalismo cristão.
Esses grupos de abordagens psicoterapêuticas que buscam a reversão da condição
têm sido chamados de “Terapias do Armário". Segundo Sedgwick51 a designação se remete
a expressão "armário", oriunda da língua inglesa que descreve uma condição de
clandestinidade vivida por pessoas homossexuais, na maioria das vezes por receio de
descriminações, injúrias ou violências homofóbicas provocadas por uma declaração
pública.
Na ausência de bases científicas biológicas, históricas, sociológicas ou
antropológicas para sustentar as "terapias do armário", alguns autores foram investigar de
que fontes de conhecimentos essas propostas buscaram subsídios para fundamentar suas
ideias de naturalização da orientação sexual e identidade de gênero. Montoya52 identificou
facilmente o vínculo estabelecido entre as terapias restauradoras e as concepções
teológicas cristãs de existência humana e constituição dos gêneros, o que também é
46
explícito no discurso de seus defensores leigos. Ele sustenta que a busca por esse tipo de
terapia é feita em geral por indivíduos que enfrentam sérios obstáculos para a expressão
livre de sua sexualidade nos ambientes sociais, os quais desencadeiam baixa de autoestima.
Este indivíduo encontrará em "terapeutas do armário", um profissional que
interpretará seus conflitos, angústias e sofrimentos, como tendo origem em sua atração
homoerótica, a qual passa a ser o foco da terapia, e não nos estigmas, preconceitos e
descriminações produzidos por um ambiente hostil a ele. Tomando assim a
heterossexualidade como a normal e as demais identidades como patológicas, os
"terapeutas do armário" consideram que existe em todo homossexual uma
heterossexualidade inata que por problemas de desenvolvimento psíquico não foi
desenvolvida da forma correta e daí provoca sofrimento. Ou seja, a razão do sofrimento
não é a hostilidade moralmente mediada, mas a estrutura desejante do indivíduo que
encontra-se alterada. Para este autor, além da carência de fundamentação teórica válida, as
"terapias do armário" também não são capazes de produzir evidências empíricas capazes
de comprovar sua suposta efetividade.
Souza53 demonstra que é a partir do questionamento da validade ética e técnica de
uma terapia com bases teóricas inconsistentes, fundamentadas em dogmas moralizadores
religiosos, e sem demonstração empírica de efetividade, que a Associação Americana de
Psicologia (2010) bem como o CFP do Brasil, interditam essas práticas. E é exatamente a
revogação dessas recomendações de regulamentação das práticas assistenciais que a
bancada evangélica da câmara e outros setores conservadores e fundamentalistas buscam
por meio de várias formas de atuação social.
O PDC 234/11 foi indeferido e arquivado em 2013. A ação movida pelo MPF do
Rio de Janeiro em 2011 alegou dentre outros motivos, que a resolução 01/99 fere o "direito
fundamental a liberdade" e o "livre exercício profissional". A ação foi rejeitada em 2013,
pela Justiça Federal do RJ 54. Percebe-se, entretanto que o conteúdo moral que embasava
aquele projeto de lei vem ganhando cada dia mais adeptos nas redes sociais.
Não é difícil, entretanto, demonstrar que as ações movidas contra a resolução 01/99
foram pautadas em discursos pseudo democráticos e são desprovidas de evidências
científicas que a sustentem. As psicólogas em questão falam do respeito ao livre arbítrio do
individuo que sente sofrimento por sua orientação sexual homoafetiva, mas não
demonstram nenhum estudo de caso que tenha êxito na "reversão sexual". Pelo contrário, a
American Psychological Association (APA) vem demonstrando preocupação diante os
47
debates religiosos e políticos que têm "obscurecido os dados científicos sobre mudanças de
orientação sexual" 55 e afirma que estes posicionamentos vão contra a corrente do consenso
cientifico sobre as homossexualidades e os "tratamentos" para "cura" desencadeiam
processos de sofrimento e angustia:
Quando aplicamos a abordagem teórica que acabou de ser descrita, ao problema das
barreiras simbólicas de acesso da população LGBT aos serviços de saúde, ou à qualidade
da atenção que lhes é dispensada, não podemos esquecer que as instituições de saúde
encontram-se impregnadas pela racionalidade de uma ciência da sexualidade, fundada para
um lugar de dominação do diverso, que o faz falar, o estuda, classifica-o, busca moldá-lo a
padrões universalizantes.
Muito dos constrangimentos vividos pela população LGBT parece estar ligada ao
fato mesmo de saber-se assim, investigada, classificada, não por suas necessidades de
saúde, mas, antes por seus desejos sensuais, suas práticas de prazer e formas de amar, e por
48
perceber-se sempre sob alguma forma de julgamento ou avaliação, no plano moral ou
científico de forma atrelada à sua própria identidade como pessoa. Esta reflexão demonstra
a natureza problemática do atendimento, seja de recomendações oriundas de fóruns sociais
amplos, como o da 13ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), seja de diretrizes de ação
presentes em políticas públicas.
É fundamental ter em conta, que no cotidiano dos serviços as diretrizes como, por
exemplo, “a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos e o respeito ao direito à intimidade
e à individualidade” ou “estabelecimento de normas e protocolos de atendimento
específicos para lésbicas e travestis”, ou “a eliminação das homofobias e demais formas de
discriminação e violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no
âmbito do SUS...” ou a “promoção da cidadania e inclusão de LGBT por meio da
articulação com os diversos setores de desenvolvimento social como: educação, trabalho,
segurança e outros”, não são possíveis de serem cumpridas na dimensão puramente técnica
da estruturação do acolhimento, ou organização da oferta. Faz-se necessário compreender
como as subjetividades dos profissionais de saúde responsáveis pelo cuidado e assistência
a população LGBT são influenciadas pelos confrontos de posicionamentos ideológico-
morais dos discursos sobre sexualidade.
A literatura especializada1, 3, 14, 15, 16 está repleta de relato sobre os sofrimentos
vividos por membros da população LGBT, em diversos aspectos, como dificuldade de
acesso aos serviços de saúde e redução da qualidade de atendimento, vulnerabilidades
específicas e violação de direitos humanos.
Para melhor compreender os impactos do sofrimento vivenciado por esta
população, além da abordagem quanto à origem do preconceito e estigma da sexualidade
na nossa sociedade e das consequências prejudiciais da heteronormatividade, é necessário
discutir especificamente a homofobia, enquanto forma de concretização do estigma contra
pessoas e grupos que não se enquadram nas expressões heteronormatizadas da sexualidade,
e em seguida buscarei a partir de dados e informações colhidas na literatura apresentar os
impactos reais e simbólicos sobre a saúde deste seguimento populacional.
Na Política Nacional de Saúde Integral da população LGBT encontra-se uma
diretriz clara e especifica para o combate à homofobia como via para o cumprimento dos
princípios básicos do Sistema Único de Saúde de equidade e universalidade:
49
entende que a proteção do direito à livre orientação sexual e identidade de
gênero não é apenas uma questão de segurança pública, mas envolve também,
de maneira significativa, questões pertinentes à saúde mental e a atenção a
outras vulnerabilidades atinentes a esses segmentos. O combate à homofobia é
uma estratégia fundamental e estruturante para a garantia do acesso aos
serviços e da qualidade da atenção. (MS-DAGEP)56
50
justamente nos discursos homofóbicos da aérea de saúde, deixando claro a inexistência de
um discurso especifico de determinados sujeitos, estabelecendo a analise na estrutura
extralinguística da linguagem cotidiana entre o emissor e receptor, onde as expressões
homofóbicas reveladas nestes discursos dependem do contexto cultural, da linguagem e do
pensamento do individuo.
O estudo conclui que os discursos homofóbicos fazem parte de falas cotidianas de
qualquer temática, porém sem refletir na concepção destes discursos como
discriminatórios. Revela que o discurso homofóbico é reproduzido em toda área da saúde,
e em todos os serviços onde haja prática médica, sendo neste setor onde há maior impacto
da discriminação e preconceito gerados pela homofobia.
Outra pesquisa conclui que a homofobia é frequente ainda na formação profissional
de estudantes de enfermagem e que esta atitude negativa interfere no atendimento integral
a população LGBT, causando discriminação e preconceito60.
A homofobia intrafamiliar61,62 também é apontada como forte fator de sofrimento
em jovens gays e lésbicas, com diversas situações de violência e abandono familiar,
motivadas pela “legitimidade” da heteronormatividade, impactando na saúde destes jovens,
sobretudo quanto aos aspectos psicossociais afetados pelo rompimento do elo com a
família.
Estudo latino americano 63 demonstra a homofobia como uma experiência que
infringi a saúde mental do jovem homossexual, causando grave sofrimento psíquico que
são comumente associados à ideação suicida. Este sofrimento está fortemente relacionado
a vivências de isolamento, baixa autoestima, violência verbal e física e rejeição social,
revelando a homofobia como modo causal do processo de adoecer destes indivíduos.
Estes estudos demonstram que o conceito de homofobia utilizado tanto na literatura
como no movimento LGBT, ultrapassa o sentido semântico da palavra cuja origem grega
do prefixo “homo” remete a homossexualidade e “phobos” à fobia, medo, ou seja, um
medo quase patológico da homossexualidade. Este sentido é ampliado para hostilidade,
desprezo e intolerância aos homossexuais de forma geral, em seus aspectos cognitivos e
subjetivos, como define Borrillo56, e desencadeia condutas de preconceito e discriminação.
Assim a saúde da população LGBT compreendida como “completo bem-estar
físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade” segundo
OMS 64 , implica em condições de equilíbrio e compreensão dos determinantes sócio-
51
econômico-culturais, e no entendimento dos processos de sofrimento, angustias e
violências causados pelo preconceito e discriminação traduzidos pela homofobia.
Quanto à saúde das mulheres homossexuais um estudo realizado por Fachinni e
Barbosa 65 , reconhece na literatura a homofobia como dificuldade real do acesso aos
serviços de saúde, porém não a considera como barreira única na procura de cuidados
ginecológicos por mulheres que fazem sexo com mulheres. O resultado da pesquisa
sugeriu que o preconceito e receio estão mais associados à abordagem das práticas eróticas
pelos profissionais, sobretudo nas mulheres que nunca fizeram sexo com homens, as de
baixa renda e as que têm postura corporal “masculinizada”, concluindo que não apenas a
experiências negativas e representações são determinantes, há de se considerar a
construção de identidade associadas ao gênero e sexualidade também como obstáculo ao
acesso á saúde.
Estudos internacionais demonstram que a mulher lésbica só procura atendimento
66
médico em último caso e urgências e agravos mais complexos , e o despreparo dos
profissionais para lidar com as “especificidades” desse grupo populacional e às
dificuldades das mulheres em revelar a homo ou a bissexualidade aos profissionais de
saúde67,68.
Neste sentido outra pesquisa nacional concluiu que mulheres lésbicas e bissexuais
não contam com apoio por parte dos profissionais de saúde para dialogar sobre suas
orientações sexuais quando buscam assistência, e que este contexto impede atendimento
seguro, e produz exclusão e violência simbólica.69
Quanto à especificidade do cuidado de saúde com as mulheres lésbicas tanto a
literatura nacional, quanto a internacional apontam para uma menor frequência de
realização de Papanicolau nestas mulheres 70 , 71 , 72 , 73 , 74 . As DST e AIDS também são
negligenciadas na saúde da lésbica. Moraes e Esteves75 apontam que a maioria dos estudos
no Brasil está associada ao universo homossexual masculino, sendo incomum encontrar
algo a respeito de lésbicas e bissexuais.
Barbosa e Koyama, citadas por Cardoso72 evidenciam que algumas doenças são
agravadas, como câncer de colo de útero e de mama, pela baixa regularidade de procura
aos serviços de saúde, além de outros fatores associados que provocam o adoecimento,
como “o uso abusivo de drogas lícitas, tabaco, álcool e o grande sofrimento psíquico”.
O Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas71 resume estes achados científicos e cita
alguns dos principais motivos que conduzem à menor procura dos serviços de saúde:
52
A existência de discriminação, o despreparo dos profissionais para lidar
com as especificidades dessa população, as dificuldades dessas mulheres se
assumirem como homo ou bissexuais e, por fim, a negação do risco quanto
às doenças sexualmente transmissíveis. (p. 19)
É relatado que mulheres que fazem sexo com mulheres são “excluídas” dos
serviços de atenção/cuidado à saúde, corroborando com contexto discriminatório dos
serviços organizados em função de uma heteronormatividade.
Se as DST/AIDS são negligenciadas com relação à homossexualidade feminina,
estas são exacerbadas quanto à homossexualidade masculina, consequência da epidemia da
AIDS na década de 80 e ainda persistente na atualidade, sempre relacionada à peste gay,
mesmo após evidencias cientificas sobre a doença, demonstrem sua incidência em todas as
formas de orientação sexual.
São inúmeros os artigos e periódicos tantos nacionais quanto internacionais que
estudam a associação de HIV/AIDS com homossexualidade masculina, os quais têm
grande relevância para a Saúde Pública, no entanto, percebe-se frequentemente a
abordagem da saúde do homossexual masculino apenas associada a HIV, em detrimento
outras causas biopsicossociais de adoecimento desta população.
O perfil epidemiológico do HIV mudou significativamente nas últimas décadas.
Além dos avanços na notificação e tratamento, também a população exposta não é mais
classificada como “grupo de risco” e sim como população vulnerável e comportamentos de
risco, como por exemplo, uso de drogas injetáveis e sexo desprotegido, dentre outros. No
Brasil o último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde (2016) apresentou a
notificação dos casos de AIDS pelo SINAN de acordo com faixa etária, gênero e
orientação sexual (maiores de 13 anos do sexo masculino) nas seguintes porcentagens:
8,3% Bissexual; 37,9% Homossexual e 48,8 % Heterossexual.
A mudança do perfil epidemiológico da doença, não significa que a mesma esteja
controlada no Brasil e no mundo. Apesar de todos os avanços a UNAIDS76 ainda considera
a AIDS como epidemia, visto o crescimento vertiginoso do número de casos em todo
mundo, principalmente em países com desigualdades sociais profundas, como o Brasil e a
África. No Brasil o Boletim Epidemiológico HIV/AIDS de 2016 também demonstrou que
o numero de casos entre em homens que fazem sexo com homens (HSH) aumentou
significativamente nos últimos dez anos, passando de 35,3% em 2006 para 45,4% em
2015, entre os jovens de 15 a 19 anos os casos triplicaram (de 2,2 para 6,9 casos/100 mil
hab.) e dobraram entre os de 20 a 24 anos (de 16,2 para 33,1 casos/100 mil hab.) no mesmo
intervalo de tempo, ou seja, de 2006 a 2015.
53
Estes dados sugerem não a exclusão da vulnerabilidade para população
homossexual, e sim, justamente devido à epidemia da AIDS e sua associação quase que
exclusiva a uma doença gay na década de 80, uma maior mobilização e planejamento tanto
de políticas publicas como das ONG e da sociedade civil com campanhas de prevenção
direcionadas aos homossexuais. Também justifica o grande número de estudos relacionado
ao tema e o avanço de terapias e medidas diagnósticas para o HIV.
Estudo feito em Portugal avaliou o nível de testagem e prevenção em homossexuais
masculinos e heterossexuais, e conclui que os homossexuais têm comportamento mais
preventivo e maior número de testagem para HIV, em relação aos heterossexuais. Deduz
que este resultado pode estar relacionado maior conscientização quanto ao risco frente ao
HIV pelos homossexuais, e pela baixa percepção de vulnerabilidade pelos heterossexuais77.
Terto78 chama atenção que mesmo passado mais de três décadas do surgimento da
AIDS exclusivamente associada as homo e transexualidades, e dos avanços tecnológicos e
científicos que contribuíram para esta dissociação, permanece em nossos dias as
representações sociais que reconhece os homossexuais como vitima ou vilões da doença, e
a continuidade dos preconceitos e estigmas individuas, decorrentes da associação AIDS -
homossexualidade. O autor cita um exemplo muito oportuno da complexidade das relações
entre homossexualidade e os normativos de saúde no país, a exemplo da Portaria 158/16 do
MS Saúde e a da Resolução 34/14 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA), que restringe a doação de sangue por orientação sexual homoafetiva, por
considerá-los ainda "grupo de risco" e potenciais transmissores de IST e AIDS, ação que
não controla a epidemia, apenas fortalece os estigma e preconceitos.
Moscheta 79 identifica três momentos históricos da atenção à saúde com relação à
diversidade sexual. O primeiro seria o foco no individuo doente, nas "sexualidades
desviantes", decorrente da imposição das Scientias Sexualis. O segundo o foco seria no
coletivo, decorrente do surgimento da peste gay, do "grupo de risco" e a necessidade de
repostas para epidemia. E o terceiro, com os grupos sociais mais organizados e articulados
a políticas públicas, o foco será no combate ao preconceito e discriminação da sociedade
desigual, o maior desafio a saúde da atenção integral a população LGBT em nossos dias.
É consenso que no caso da epidemia do HIV/AIDS o estigma é reconhecido como
maior obstáculo para o avanço de políticas e ações sociais que visam a garantia dos
direitos, dignidade e cidadania a quem porta o vírus37, 80, 81 . Mann declara:
A epidemia nos ensinou algo que não poderíamos ter aprendido nos livros...
Levou-nos a compreender que a marginalização social, a discriminação e a
54
estigmatização... em outras palavras a falta de respeito aos direitos e à
dignidade... é em si mesma a causa raiz desta epidemia. (Jonathan Mann,
entrevista online) 82
55
do adoecimento/sofrimento desta população para prestar um atendimento integral e
humano.
Naum, citado por Cardoso72, indica que o preconceito da sociedade com as
homossexualidades pode ser absorvido pelo gay, gerando o que é denominado por ele
como “preconceito internalizado” que desencadeiam baixa autoestima, e
consequentemente, sentimentos de inferioridade, depressão, medo, vergonha, ansiedade,
isolamento social, aumentando o risco de disfunções sexuais, abuso de álcool e outras
drogas, além de distúrbios alimentares e ideação suicida. Processo que se aproxima
bastante de uma das reações do estigmatizado descritas por Goffman e já apresentadas
anteriormente nesta tese.
Para o segmento jovem da população homossexual a vulnerabilidade é ainda maior,
além da maior exposição e incidência do HIV, segundo dados do MS, há a violência
intrafamiliar como já citado, e certa invisibilidade em relação às campanhas preventivas.
Terto76 aponta que a culpa e vergonha destes jovens, baseadas nas representações que
associam frequentemente a homossexualidade a AIDS, impedem a procura de apoio e a
realização de testagem, por acreditarem que são potenciais portadores do vírus.
Um estudo canadense 85 alertou para o aumento do número de suicídio entre os
homens homossexuais e bissexuais, e aponta como causas os efeitos da marginalização e
violência para esta população. No Brasil os estudos neste sentido são raros, apesar de
dados da grande mídia e de dados extra-oficiais revelarem um alto índice de suicídio
principalmente nos jovens homossexuais.
Evidencia-se nos estudos a cerca das homossexualidades forte carga de preconceito
e discriminação agindo prejudicialmente sobre a saúde deste segmento populacional, e
nota-se que mesmo após 26 anos da exclusão da homossexualidade da CID, ainda
prevalece uma ideação que a vincula ao patológico, sobretudo na percepção dos
profissionais de saúde, persistindo a marca do biopoder dos discursos médicos científicos.
Quanto à saúde das travestis e transexuais fica ainda mais evidente o processo de
adoecimento/sofrimento associado aos estigmas e preconceito desencadeados pela
homofobia.
Mesmo após discussão e debates dos ativistas e acadêmicos com entidades
responsáveis, no sentido de excluir a denominação destas transexualidades como
Transtorno de Identidade de Gênero pelo DSM, a substituição recente por Disforia de
Gênero (DSM V), não contemplou os anseios dos ativistas e manteve ainda uma noção
56
patológica. Segundo Sampaio e Coelho 86 a permanência como disforia configura-se
enquanto via de manutenção do processo patologizador da transexualidade.
Lionço 87 contextualiza que a atual definição de transexualismo não considera as
complexidades e subjetividades da transexualidade, determinando como critério
diagnóstico o anseio para modificação da genitália relacionada exclusivamente pela
“experiência de gênero”, a qual é definida pelo binarismo característico
feminino/masculino, e da heterossexualidade como valor normativo.
Assim revela o caráter parcial do processo transexualizador no SUS atrelado
rigidamente aos normativos e diagnósticos médicos, sem prescindir do reconhecimento
desta conquista como grande avanço para esta população. Neste sentido a autora recorre às
reflexões de Butler: “se por um lado a psiquiatrização da transexualidade instrumentaliza o
acesso aos serviços de saúde, por outro engendra novos sofrimentos por meio do estigma
associado ao diagnóstico psiquiátrico”.
Neste mesmo estudo Lionço chama atenção de que apenas o processo
transexualizador não soluciona o problema do acesso precário na atenção básica e da
qualidade da atenção em todos os níveis do sistema para travestis e transexuais, sendo
necessária uma compreensão ampliada das identidades de gênero, subjetividades e
vulnerabilidades que envolvem este grupo populacional.
A compreensão do travestismo também é pouco assimilada tanto nos contextos da
saúde quanto nos sociais. No travestismo há uma necessidade de mudança nos caracteres
secundários sem necessariamente implicar na mudança da genitália. As travestis
desarticulam estes parâmetros sociais exclusivamente binários, visto que nascem com o
sexo biológico masculino, mas constroem aparência e corpo femininos, numa configuração
ambígua que desencadeia incompreensão e intolerância frente a uma sociedade
heteronormativa. Neste sentido são elas, as travestis, as maiores vítimas da homofobia
segundo relatório da SEDH/PR sobre violência homofóbica no Brasil, no ano de 2012, o
que traz consequências danosas, sobretudo para sua saúde mental.
Amorim 88 afirma que a discriminação com as travestis provoca um processo de
exclusão inevitável, o qual as tornam descrentes de serem sujeitos de direitos e assim
submetidas a complexas questões de vulnerabilidade social, como a aceitação de qualquer
ínfimo beneficio para sua sobrevivência. Revela também que este processo de exclusão
implica em sofrimento intenso provocando sérios problemas na saúde mental destes
indivíduos.
57
Nas especificidades de saúde deste segmento, França89 aponta que muitos estudos
com relação à saúde das travestis estão direcionados à prevenção de DST/AIDS, tanto em
abordagem quantitativa, enfatizando comportamento e práticas sexuais e uso do
preservativo, quanto qualitativas, destacando as vulnerabilidades e acrescenta que
pesquisas no acesso e atendimento de travestis em serviços de saúde são recentes.
Pelúcio90 diz que, para as travestis, manter-se bela é sinônimo de autocuidado, que
a associação entre saúde beleza e feminização é ideia recorrente para elas. Assim na busca
de reconstruir um corpo feminino, porém sem assumir uma identidade restrita ao gênero
feminino, elabora e sustenta uma androgenia.
E é neste processo de formação e transformação de um novo corpo desejado que
residem os maiores problemas de saúde para as travestis. A aplicação de silicone e
hormonioterapia sem acompanhamento profissional adequado causam danos irreversíveis à
saúde desta população. A conduta biomédica, conforme resolução do Conselho Federal de
Medicina vincula a aplicação dos procedimentos para alteração dos caracteres sexuais ao
diagnóstico de transexualismo, tanto em relação à transgenitalização quanto à
hormonioterapia. Para Lionço 91 este processo contribui para exclusão das travestis da
atenção à saúde, e assim elas ficam “relegadas à automedicação ou à ação das bombadeiras
- travestis que injetam silicone industrial para a modelagem dos corpos de outras travestis”.
Constata-se então que o poder biomédico é ainda mais evidente sobre transexuais e
travestis, através da imposição de interdições e restrições normativas para o acesso aos
procedimentos que corroboram sobre transformações corporais de seus caracteres sexuais,
produz processos regulatórios que dificultam o acesso desta população aos avanços
biotecnológicos e aos bens de serviços.
Nesse embate discursivo, onde de um lado começa a haver maior atenção ao
discurso dos direitos humanos, de uma diversidade saudável da sexualidade, de uma
compreensão da condição diversa dos sujeitos não como determinante negativo para a
situação de saúde, e de outro um discurso heteronormatizador e patologizante, quando não
claramente homofóbico, não podemos deixar de compreender que a balança pesa ainda
para o lado estigmatizante, devido a hegemonia que perdura em nossos dias de um sistema
de crenças discriminatório, uma educação masculinizante, uma reafirmação de diversas
práticas sociais calcadas nas desigualdades entre os gêneros, entre outras formas de
reforçar os dispositivos de sexualidade, sua heteronormatividade, sua heterossexualidade
compulsória e seu falocentrismo.
58
As mudanças verdadeiras de compreensão e postura em relação a diversidade da
sexualidade humana, depende, portanto, de maiores investimentos tanto intelectuais quanto
de mobilização e mesmo logístico-financeiros para uma educação social e em especial
daqueles responsáveis pelos cuidados de saúde da população:
Nesta seção traçaremos uma breve trajetória dos movimentos sociais inicialmente
homossexuais, com evolução posterior aos demais segmentos de lésbicas, bissexuais,
travesti e transexuais, focando, sobretudo na inter-relação histórica desta trajetória com a
construção de políticas públicas que viabilizaram direitos e exercício da cidadania.
O que se apresenta aqui é então, uma outra produção discursiva sobre a diversidade,
conduzida por esses movimentos, o que confrontaria a produção discursiva
heteronormativa tradicional, numa luta permanente por espaço e reconhecimento, de uma
forma tal que acabaria por influenciar o próprio discurso oficial do Estado na
fundamentação de sua biopolítica relacionada à diversidade sexual.
A apropriação médico-moral da sexualidade, a exclusividade binária macho/fêmea,
normal/patológico, os dispositivos da sexualidade, a heterossexualidade compulsória,
aspectos discutidos em profundidade no capítulo anterior, nos ajudam a compreender o
retardo na aquisição de direito e cidadania para esta população. Exemplo disto é que, como
citado anteriormente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a
homossexualidade da CID apenas na última década do século XX, em 17 de maio de 1990.
Quatro anos antes (1984) a Associação Brasileira de Psiquiatria, seguida pelo Conselho
Federal de Medicina em 1985, já haviam se posicionado contra a discriminação da
homossexualidade, e deixou de considerá-la como desvio sexual.
O ativismo político desses grupos começa a se desenhar no inicio do século XX nos
países europeus e na América do Norte. Na Europa, impulsionado pela Liga Mundial da
Reforma Sexual (1928) ocorreram campanhas contra a criminalização da
homossexualidade lideradas por um dos pioneiros na defesa dos direitos dos homossexuais,
59
o médico e sexólogo alemão Hirschfeld (1868-1935). Nos Estados Unidos o movimento
ganhou força na década de 60 e foi marcado pela contracultura hippie, numa crescente
busca de politização e liberdade sexual. 92
Diferente do contexto euramericano que inicialmente buscava a descriminalização
da homossexualidade, no Brasil o movimento começa com atores sociais na busca pela
garantia de direitos relacionados à livre orientação sexual e a promoção de direitos
humanos, visto que aqui a sodomia deixou de fazer parte do código penal desde 1830.
O movimento social brasileiro traz características peculiares e tornou-se força
decisiva na construção de políticas publicas para o segmento LGBT, apesar de começar
mais tardiamente em comparação aos movimentos euramericanos. Facchini93 através do
seu artigo “Movimento Homossexual no Brasil: recompondo um histórico”, oferece um
substrato pertinente e profundo sobre as características políticas e sociais que marcaram
este movimento no país.
Os movimentos homossexuais surgiram no Brasil no final dos anos 70. Importante
salientar que inicialmente o movimento era formado exclusivamente por homens
homossexuais, com adesão das lésbicas em momento posterior. Nos anos 90 as travestis e
depois transexuais passam a participar mais ativamente, e os bissexuais começam a buscar
reconhecimento do movimento apenas no inicio do ano 2000.94
Quanto as travestis, segundo entrevista recente de Jovanna Baby95, ex presidente da
Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) a invisibilidade é uma das
razões da ausência de um registro sistematizado sobre o histórico de luta por direitos desta
população e constitui uma lacuna com informações imprecisas e desencontradas. No
entanto ao longo da historia consolidou-se importantes conquistas e marcos, como a
própria formação da ANTRA e o Encontro Nacional de Travestis que trabalham com
AIDS/Violência, que já esta na sua 21ª edição.
A adesão tardia das lésbicas ao movimento não significa a falta de protagonismo
político das mulheres. Pelo contrário, o movimento feminista começa no Brasil em 1932
com a conquista do sufrágio universal, e é marcado em sua trajetória histórica por várias
lutas em prol da cidadania, como o movimento sindical, a luta por direitos sexuais e
reprodutivos e mais recentemente pela descriminalização do aborto e contra violência a
mulher.
E mesmo que o movimento feminista tenha inicialmente sido liderado por mulheres
heterossexuais, sem dúvida que abriu caminhos para as diversas manifestações de gênero
60
num sentido mais social e equânime, como diz Fraser: “A história padrão (do feminismo) é
uma narrativa de progresso, segundo a qual nós saímos de um movimento exclusivista,
dominado por mulheres brancas heterossexuais de classe média, para um movimento maior
e mais inclusivo que permitiu integrar as preocupações de lésbicas, mulheres negras e/ou
pobres e mulheres trabalhadoras." 96
Assim o movimento LGBT nasce da herança política do movimento feminista que
contribui para sua formação compactuando agendas e buscando fomentar na dimensão
pública um bem comum para ambos que é a “liberdade sexual” e a busca de direitos e
cidadania97.
Necessário pontuar aqui o período de transição democrática pelo qual o país estava
atravessando naquela época. Em meados dos anos 70 diversas manifestações
antiautoritárias contra o regime militar mobilizaram movimentos sociais. Marcados por
características da contracultura, com caráter revolucionário e contestatório, o movimento
homossexual, não só no Brasil como em toda América Latina, muitas vezes se aliou aos
partidos de esquerda na busca de transformações sociais e culturais. 98
Ainda não sabemos a história completa sobre a fundação dos primeiros grupos
politizados de homossexuais na América Latina, mas parece que a maioria dos
grupos que surgiram no início dos anos de 1970 e 1980, tiveram entre seus
fundadores e líderes, membros de partidos comunistas ou de seus grupos
dissidentes, ou ainda, provenientes de outras formações esquerdistas (ibdem p.
25)
61
caracterizados à época como “guetos” e “grupos não políticos”, já demonstravam a
diversidade de militância no qual o movimento foi construído73. (p. 85-88).
Outros grupos foram formados ao longo da “primeira onda” do movimento, porém
como cito no inicio do capítulo o foco deste breve histórico do movimento é a inter-relação
desta trajetória com a construção de políticas publicas que viabilizaram direitos e cidadania
para população LGBT, e fugiria do propósito aqui a descrição quase arqueológica que
Fachinni elabora através de sua pesquisa bibliográfica, documental e etnográfica sobre o
movimento homossexual no Brasil.
Na “primeira onda” do movimento o destaque foi o primeiro Encontro de
Homossexuais Militantes, ocorrido final de 1979, com a participação de diversos grupos do
Brasil, cuja principal resolução seria a demanda pela inclusão do respeito pela “orientação
sexual” na Constituição Federal e uma campanha para retirar a homossexualidade da lista
de doenças mentais no CID (p. 90-91).
A década de 80 foi marcada por uma redução significativa na quantidade de grupos
e muitos consideram que houve “declínio do movimento”. O advento da AIDS de certa
forma desmobilizou as lideranças do movimento quanto a questões de “liberdade sexual”,
por exemplo, e estas se voltaram para luta contra Síndrome, constituindo uma primeira
resposta da sociedade civil a epidemia. Expressões como “peste gay” eclodiram na época
reacendendo a relação de homossexualidade e doença, mesmo depois da comprovação
cientifica que o vírus poderia ser transmitido por qualquer pessoa, através do sangue,
esperma e outros fluidos corporais.
Mas não só a AIDS como outros fatores sócios políticos contribuíram para este
novo cenário do movimento, reconhecido como “segunda onda”. A época agora era de
redemocratização e abertura política, assim o ideal revolucionário e comunista que
influenciou a “primeira onda” do movimento necessitava ser recontextualizado.
Além deste contexto Fachinni, citando Green, levanta aspectos importantes que
podem ter contribuído para o “declínio do movimento”, dentre os quais destaca-se: a falsa
ideia de que em tempos democráticos os direitos civis dos homossexuais poderiam
expandir-se mais facilmente e a ilusão de liberdade causada pela expansão de um mercado
voltado e produzido para homossexuais que causava a sensação de que a organização
política não era necessária. (p. 97-98).
As reflexões tanto de Facchini como de outros autores, é que este novo contexto
social político de redemocratização contribuiu muito mais para transformações na estrutura
62
e organização do movimento, do que para seu declínio. E aqui dois atores sociais são
imprescindíveis para esta discussão, João Carlos Mascarenhas, advogado e fundador do
grupo Triângulo Rosa (SP), e Luiz Mott, antropólogo e fundador do Grupo Gay da Bahia
(GGB), ambos os grupos criados na década de 80.
Tanto Mascarenhas quanto Mott haviam participado da “primeira onda” do
movimento, mas não se vinculavam aos ideias da contracultura e revolucionário que
marcaram esta primeira fase de militância e buscavam estabelecer organizações mais
formais que comunitárias. Fachinni supõe que esta nova forma de atuação do movimento,
por razões do contexto sócio político e da eclosão da AIDS, contribui para mantê-lo vivo
apesar da pseudo perspectiva de declínio. O grupo SOMOS se dissolveu neste período,
além de outros grupos, e só a dissidência feminista do SOMOS, o GALF, perdurou até os
anos 90, o qual passou a ser nomeado de Rede de Informação – Um Outro Olhar, após ter
adotado o formato organizacional de ONG. (p. 93).
Mascarenhas e Mott evidenciam uma ação mais objetiva no sentido da garantia dos
direitos civis e contra a violência e a discriminação dirigidas aos homossexuais do que um
engajamento maior com projetos de transformação social. De todo modo, a necessidade de
desvinculação da imagem da homossexualidade de seus aspectos marginais passa a ser
uma característica bastante presente nessa segunda onda do movimento. O processo de
redemocratização na sociedade brasileira e a consequente redução das propostas mais
antiautoritárias e revolucionárias de militância podem estar relacionadas a essa tendência
de desvalorização dos aspectos marginais da homossexualidade e necessidade de
construção de uma nova imagem publica do movimento como todo.
O Triangulo Rosa lidera outra importante campanha em 1987 pela inclusão da
“opção sexual”, renomeada posteriormente por orientação sexual, na Constituição Federal.
A campanha não alcançou êxito junto a Constituição Federal, mas a partir do trabalho feito
por Mascarenhas, a discriminação por orientação sexual entrou em duas Constituições
Estaduais (Sergipe e Mato Grosso), e mais recentemente na do Pará, e em 27 leis orgânicas
municipais, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.
A logística organizacional dos grupos da “segunda onda” do movimento e suas
perspectivas mais pragmáticas contribuiu para estas conquistas. O GGB foi registrado
legalmente como sociedade civil sem fins lucrativos (ONG) em 1983 e em 1988 já
possuíam infraestrutura própria. O Triangulo Rosa também é oficializado em 1985 no
Registro Civil de Pessoa Jurídica.
63
Paradoxalmente a epidemia da AIDS ao mesmo tempo em que construiu o estigma
sobre a homossexualidade - “peste gay” -, trazendo sofrimento, preconceito, morte para
esta população e fortalecendo a ideia de homossexualismo relacionado à doença, fomentou
importantes debates sobre a sexualidade. Práticas sexuais reconhecidas pelo senso comum
relacionada apenas à homoafetividade, como sexo oral, sexo anal, além do uso de
camisinhas e das doenças venéreas, passaram a ser intensamente comentadas e debatidas.
Além disso, houve a mobilização e apoio de outros atores sociais na luta anti AIDS,
como associações científicas, parlamentares, organizações não governamentais,
instituições internacionais e programas estatais, justamente no momento em que a
associação de caráter negativo entre homossexualidade e AIDS era muito forte.
Para Facchini a associação da AIDS com a homossexualidade, além de fomentar
todo debate social que se deu nesse sentido e promover encaminhamentos de políticas
públicas de saúde com objetivo de promover ações de prevenção e cuidados que
envolvessem a participação da comunidade homossexual viabiliza também a construção
política de identidades homossexual no Brasil.
Neste sentido de busca de identidades, a discussão sobre práticas homossexuais
desloca o foco sobre quem é “ativo” ou “passivo”, ou quem se aproxima mais do
“feminino” ou “masculino” na relação, para focar no sexo biológico do parceiro,
ampliando as questões sobre a bissexualidade e promovendo maior visibilidade da
homossexualidade (p. 119). Este contexto também mobiliza as políticas públicas adotarem
a nomenclatura de comportamento de risco no lugar de grupo de risco, a fim de evitar
julgamentos preconceituosos de populações mais vulneráveis.
O Programa Nacional de Controle de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS
foi criado em 1988, exatamente no contexto da redemocratização do país e da “segunda
onda” do movimento LGBT. Para Monteiro e Vilella o processo de redemocratização do
país fortaleceu os movimentos sociais, como também a criação do SUS, o qual pontua um
novo parâmetro para o acesso da saúde, substituindo o caráter previdenciário e
assistencialista, para assumir a saúde como direito de todo cidadão e dever do Estado,
garantidos na Constituição Federal de 1988. 101
Villela afirma também que “o surgimento da AIDS no painel mundial inaugura um
modelo de articulação entre Estado e sociedade civil inédito até então no enfrentamento
das questões de saúde”, caracterizado pelo estabelecimento de parcerias e pelo
financiamento direto do governo para organizações não governamentais que já estavam
64
atuando na área e cuja associação com os meios atingidos facilitava as ações previstas.
Assim o movimento político e social convergem demandas de vários grupos e diversos
atores sociais, acadêmicos, intelectuais, ativistas sociais e grupos marginalizados se unem
para defender um objetivo comum, confluência rara na realidade brasileira.
Evidencia-se então que a epidemia da AIDS apesar de causar uma desarticulação
inicial no movimento influenciou no seu processo de reestruturação, sobretudo na estrutura
organizacional e política dos grupos, resultado do contexto de redemocratização do país, e
da parceria da sociedade civil organizada com o Estado.
O movimento na década de 90 consegue assim se estabelecer de forma mais
regularizada e articulada, desencadeando marcos importante neste sentido. A Associação
Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) foi criada em
1995, primeira instituição nacional e representativa do movimento no Brasil. Neste mesmo
ano foi apresentado o projeto de lei 1.151 que instituía a união civil entre pessoas do
mesmo sexo. Vale notar que foram necessários mais 16 anos de luta até ela viesse a ser
aprovada em 2011.
A primeira Parada Gay do Orgulho GLBT ocorreu em 1997 em SP, e tornou-se a
maior do mundo. O movimento ganha forças, se institucionaliza e amplia suas conexões
com o Estado passando a demandar seus direitos perante o judiciário e a exigir políticas
publicas.
Em 2004 é lançado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República, o programa Brasil sem Homofobia102 que propunha ações direcionadas a cinco
componentes estruturais da vida social: direito à segurança; direito à educação; direito à
saúde, direito ao trabalho e direito à cultura. Na 13a Conferência Nacional de Saúde em
2008, a orientação sexual e a identidade de gênero são incluídas na análise da
determinação social da saúde e viria a gerar recomendações que seriam dois anos depois,
em 2010, citadas no texto da Política Nacional de Saúde Integral da população LGBT 103
publicada pelo Ministério da Saúde. Configurando assim o sucesso das estratégias de luta
do Movimento LGBT, e a consolidação da importância de suas proposições na construção
de marcos políticos determinantes na construção de cidadania e dignidade para este
contingente segmento populacional.
No entanto os obstáculos para “fazer valer” na vida real e cotidiana todas estas
conquistas ainda se configuram como um enorme abismo entre construção das leis e sua
execução. Desta forma, ainda que a mobilização dos movimentos tenha sido capaz de
65
influenciar a produção discursiva do Estado, assumindo agora em suas políticas as
propostas de despatologização das práticas, efetivação de direitos iguais de acesso e
qualidade e o combate ao estigma, preconceito e discriminação, e ainda que esse novo
discurso possa ser assumido performaticamente por gestores e profissionais de saúde que
trabalham para o Estado, isto ainda está muito distante de ter efeito sobre atitudes,
comportamentos e condutas nas unidades de saúde quando da ocorrência dos "contatos
mistos" dos quais falava Goffman entre os pretensamente normais (representados pelos
profissionais de saúde) e os estigmatizados (representados pelos sujeitos incluídos nas
populações LGBT).
Por outro lado, o fundamentalismo religioso avança vertiginosamente no país,
numa violação sistemática a laicidade do Estado, com grupos influenciando o processo
legislativo e constituindo uma persuasiva bancada homofóbica, o que se torna um enorme
desafio para solidificação das conquistas dos movimentos sociais na defesa do
reconhecimento legal do segmento LGBT.
Este cenário deixa evidente que o Brasil passa atualmente por um momento
desafiador com relação aos direitos da população LGBT. Se por um lado, foram
conquistados direitos, como o reconhecimento legal da união homoafetiva, o uso do nome
social para travestis e transexuais, a garantia do processo transexualizador pelo SUS, a
recente decisão do STF da retificação do registro civil das pessoas trans sem necessidade
de cirurgia, por outro a sociedade, marcada por uma construção sócio histórica
conservadora, sexista e machista, ameaça a concretização destes direitos.
Nessa perspectiva, o desafio tem sido concretizar as demandas apresentadas pelo
movimento social por meio de implementação de políticas transversais pelos diversos
órgãos governamentais. Nesse sentido, a 1ª Conferência Nacional GLBT de 2008, foi um
marco histórico que resultou no Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos
Humanos de LGBT da SEDH/PR. Em consonância com tal conjuntura, o MS lança em
2011, a Política Nacional de Saúde Integral de LGBT.
Além destes marcos, a Política é ancorada também na resolução da 13ª Conferência
Nacional de Saúde (Brasil, 2008) onde "a orientação sexual e a identidade de gênero são
incluídas na análise da determinação social da saúde"5(p. 11). Sobre os determinantes
sociais de saúde (DSS) as diversas definições que incidem sobre o tema, abordam os
fatores causais do processo saúde-doença, para além da visão biologicista, considerando as
condições de vida e trabalho dos indivíduos e de grupos da população. A OMS104 cria a
66
Comissão sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CDSS) em 2005, reconhecendo a
crescente globalização e expansão do capitalismo como causadoras do aumento das
desigualdades sociais no mundo, e assim atribui visibilidade aos determinantes sociais na
situação de saúde de indivíduos, e sua importância no combate às iniquidades em saúde 105.
A Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais de Saúde (CNDSS) 106 instaurada
em 2006 pelo MS/FIOCRUZ, seguindo a decisão da OMS, reafirma os aspectos sociais,
econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a
ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população.
No entanto, apesar da importância e visibilidade proferida aos DSS no contexto
da saúde global, considerando o avanço neoliberal, e o consequente aumento da iniquidade
e das injustiças sociais, estudiosos do tema 107, 108, 109 criticam a fragmentação do social em
camadas, fatores de riscos, grupos de risco onde perde-se a dimensão do processo sócio
histórico e fortalece a posição positivista da epidemiologia e aponta a "redução do
problema da desigualdade social a um problema distributivo"105 (p. 1176). Costa110 segue
esta perspectiva e reforça que a CNDSS foi idealizada sob os ideias da Reforma Sanitária
Brasileira (RSB), e que prevista para atuar na produção acadêmica, na ação governamental
e na mobilização social, a sua crítica recai justamente no excessivo enfoque científico e
epidemiológico, em detrimento dos aspetos socioculturais.
A RSB é um movimento social e acadêmico ainda em construção no cenário
nacional, que aparece no inicio dos anos 70 na luta contra ditadura militar com tema saúde
e democracia e não se limitou as políticas de saúde, nem à própria reorganização do
sistema de saúde, pois além de mudanças administrativas e financeiras, exigia uma
reformulação mais profunda de dimensões ideológicas e institucionais visando o conceito
amplo de saúde, e se estabelecendo como projeto ético, político e civilizatório, inserindo a
saúde no modelo de desenvolvimento que de fato promova a melhoria das condições de
vida das pessoas.111
Tanto Costa como outros autores105 apontam o DSS como conceito estruturante
da RSB e ressaltam a importância de situá-los na matriz marxista na conjuntura da saúde
como bem coletivo, portanto, consequencia da acumulação social. A complexidade dos
processos sociais e econômicos que causam as desigualdade e iniquidades exige análise
crítica e concepções políticas intersetoriais não menos complexas que valorizem a vida
humana e grupos e classes sociais diversas em suas realidades.
67
Costa110 aponta que para suprir a necessidade e desejos de grupos sociais
diversos e coletividade, fortemente obstacularizada pela corrente hegemônica do modelo
capitalista de exploração das classes sociais é imprescindível uma tomada de consciência
destes grupos na exigência do direito, considerando os aspectos sociais e econômicos
relacionados à saúde, e coloca a participação social como elemento fundante desta
conquista que poderá ser significativo na compreensão ampliada dos DSS.
68
saúde, estabelecendo ações e responsabilidades específicas nas três esferas de governo e
contemplando toda a organização da atenção. Estabelece seus objetivos tomando como
referências reivindicações tradicionais dos movimentos sociais, dentre as quais destaca-se
a promoção da saúde integral de LGBT eliminando a discriminação e o preconceito
institucional bem como contribuindo, para redução das desigualdades.
Dentre os objetivos específicos da Política, destacam-se: instituir mecanismos de
gestão para atingir maior equidade no SUS, com especial atenção às demandas e
necessidades em saúde da população LGBT, incluídas as especificidades de raça, cor,
etnia, territorial e outras congêneres; ampliar o acesso da população LGBT aos serviços de
saúde do SUS, garantindo às pessoas o respeito e a prestação de serviços de saúde com
qualidade e resolução de suas demandas e necessidades; qualificar a rede de serviços do
SUS para a atenção e o cuidado integral à saúde da população LGBT; garantir acesso ao
processo transexualizador na rede do SUS, nos moldes regulamentados; promover
iniciativas voltadas à redução de riscos e oferecer atenção aos problemas decorrentes do
uso prolongado de hormônios femininos e masculinos para travestis e transexuais; reduzir
danos à saúde da população LGBT no que diz respeito ao uso excessivo de medicamentos,
drogas e fármacos, especialmente para travestis e transexuais; definir estratégias setoriais e
intersetoriais que visem reduzir a morbidade e a mortalidade de travestis; buscar no âmbito
da saúde suplementar a garantia da extensão da cobertura dos planos e seguros privados de
saúde ao cônjuge dependente para casais de lésbicas, gays e bissexuais; atuar na
eliminação do preconceito e da discriminação da população LGBT nos serviços de saúde;
garantir o uso do nome social de travestis e transexuais, de acordo com a Carta dos
Direitos dos Usuários da Saúde; fortalecer a participação de representações da população
LGBT nos Conselhos e Conferências de Saúde; incluir ações educativas nas rotinas dos
serviços de saúde voltadas à promoção da autoestima desta população.
Um dos valores maiores da Política Nacional de Saúde Integral da População
LGBT é combater toda forma de discriminação e preconceito. Quando a Política faz
referência ao “preconceito institucional”, esta deixa claro, a vulnerabilidade a que esta
população está exposta nos serviços de saúde, e o preconceito de profissionais sobre as
práticas sexuais e sociais de LGBT, ocasionando a desqualificação da atenção dispensada a
essa população, e ratificando que os processos discriminatórios alcançam portanto, o
próprio sistema de saúde.
O resultado de pesquisas recentes que avaliaram a percepção de gestores, usuários e
69
ativistas de movimentos sociais sobre a implantação dessas ações contra homofobia, e seus
impactos concretos na vida da população alvo, não são muito animadores. Demonstrou-se
que percepções de uso político do programa, sem efetivação das ações, ausência de
sensibilização na sociedade, apontam para a fragilidade do programa por este servir apenas
como diretrizes, não podendo representar a força de uma política pública propriamente
dita113.
Entende-se assim a crucial importância do reconhecimento da trajetória histórica do
movimento LGBT na construção de políticas públicas e na conquista de direitos e
cidadania, como também se reconhece diante do cenário sócio político do nosso país, que o
fundamentalismo religioso, a heteronormatividade e a homofobia, podem apresentar-se
como grandes desafios para consolidação plena da Política Nacional de Saúde Integral da
População LGBT e de outros aspectos jurídicos legais que garantam o bem estar físico
emocional e social desta população.
70
5. CONTEXTUALIZANDO O CAMPO
A pesquisa foi elaborada para ser realizada em unidades de Atenção Básica à Saúde
(ABS) onde já se encontrassem implantadas a Estratégia de Saúde da Família (ESF),
envolvendo cidades de duas diferentes regiões do país, no Centro-Oeste com a cidade de
Goiânia (GO), nas Regiões Administrativas do Distrito Federal (DF)2: Brasília, Ceilândia e
Taguatinga e na região Nordeste, no Estado da Bahia, Vitória da Conquista e a capital
Salvador.
Para uma melhor compreensão dos procedimentos de pesquisa que serão descritos
no capítulo de material e métodos, bem como dos significados dos resultados obtidos, faz-
se necessário contextualizar o campo de pesquisa, traçando uma breve caracterização da
estrutura, organização e processos de trabalho dos profissionais das Unidades de Saúde da
Família (USF) no SUS, do nível de desenvolvimento da ESF nas cidades envolvidas, como
também da realidade social das populações, da ocorrência sobre violência homofóbica
nestas populações, e a presença ou não de programas e ações instituídos pelos poderes
públicos e sociedade para combate a homofobia e promoção do respeito à diversidade de
orientação.
2
Regiões administrativas do DF na prática funcionam como típicas cidades, mas com a
particularidade de não possuir prefeitos nem vereadores e sim administradores regionais e secretários
indicados pelo Governador do Distrito Federal.
71
atenção a saúde, buscando ampliar a cobertura dos serviços, através da reorganização da
atenção básica (ABS), com foco na promoção da saúde e no território.114
A concepção de ABS adotada no país sofreu grandes influências das mobilizações
mundiais para reconhecimento da saúde como direito humano básico a exemplo das
Conferências de Alma-Ata (1978) e de Ottawa (1986), as quais enfatizavam a necessidade
da substituição do modelo assistencial biomédico privatista, pautado no abuso tecnológico
e diagnose, e dirigido a grupos socialmente mais favorecidos, para uma visão de saúde
ampliada onde ações de prevenção e promoção à saúde tivessem o mesmo peso que o
tratamento e reabilitação, e onde o abismo das desigualdades sociais pudesse ser
progressivamente reduzido por meio de uma atenção à saúde centrada na equidade com
foco nas populações vulneráveis e de baixa renda.
Inicialmente as ações implantadas pelo Estado na década de 90 visavam à
racionalização dos gastos públicos e se expressavam na focalização de grupos em
desvantagem social como forma mais assertiva para reestruturação dos modelos de atenção
à saúde. Giovanella e Mendonça (2008)115 também sustentam que a ABS no país na época
de sua implantação foi compreendida e formulada com parâmetros voltados à seletividade
e focalização, pautada nos princípios da equidade e melhoria da qualidade de vida dos
grupos excluídos, o que, por sua vez, já vinha sendo impulsionado pelos potenciais
resultados do Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (PNACS). Neste
sentido diversas ações foram elaboradas para fortalecer o novo Modelo de Atenção à
Saúde, a exemplo das Normas Operacionais Básicas/96, que estimulou a descentralização,
proporcionando maior poder econômico e de gestão aos municípios, com o fim de reduzir
a desigualdade no acesso e avançar além da seletividade.
A questão da seletividade para populações de baixa renda foi criticada por muitos
autores 116 , 117 , 118 pelo víeis da proposição verticalizada de organismos internacionais
baseada no modelo neoliberal e no assistencialismo, prevendo a incorporação de políticas
sociais e de saúde, principalmente em países em desenvolvimento, como paliativo na
resolução das desigualdades e extrema pobreza, uma vez que não mobiliza os nós caóticos
da disparidade social econômica. Outros estudiosos percebem a focalização como uma
discriminação positiva face ao cenário de grandes desigualdades socioeconômicas e
culturais que vivemos, fortemente marcado pelos determinantes sociais de exclusão como
etnia, raça e gênero, e reconhece a reestruturação do sistema de saúde como ação de
72
política necessária e urgente para o acesso saúde, programas e serviços sociais aos
segmentos mais vulneráveis e excluídos da sociedade119,120.
121
Souza acrescenta que ao privilegiar territórios onde existam maiores
vulnerabilidades socioeconômicas, a ESF se estabelece como estratégia de promoção de
equidade (vertical) em saúde, oferecendo maior oferta de serviços onde existem as maiores
necessidades, desta forma compreende que o principio da universalização não contradiz o
critério de seletividade ou focalização, deste de que seja um instrumento da política de
universalização e não um fim único como política social.
Giovanella e Mendonça argumentam ainda que a ABS foi tomando
progressivamente um caráter mais abrangente e articulado com os demais níveis de
complexidade de saúde, assumindo o papel de coordenadora de cuidados da população, na
medida em que a Saúde da Família passa de programa a estratégia. Isso significou uma
mudança de perspectiva de sistematização de ações dirigidas à compensação de
desvantagens, proteção de vulnerabilidades e vias de construção de equidade, para uma
estratégia de organização do próprio modelo de atenção dentro de um sistema de saúde
pública que pretende cumprir os princípios de universalidade e integralidade.
Em 2006 foi aprovada a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) tendo como
pilares o processo de descentralização e controle social da gestão e como fundamento as
diretrizes organizacionais e assistenciais do SUS, focando na reelaboração dos processos
de trabalho a partir da ESF. No mesmo ano o Pacto pela Saúde, tramitado pela Comissão
Intergestores Tripartite (CIT), determina três dimensões de ação: Pacto pela Vida, Pacto
em Defesa do SUS e Pacto de Gestão. A prioridade do Pacto pela Vida foi: “consolidar e
qualificar a estratégia Saúde da Família como modelo de Atenção Básica e centro
ordenador das redes de atenção à saúde no SUS” (Brasil, 2006)122.
A ESF é constituída pela formação de equipes multiprofissionais compostas, no
mínimo, por um médico generalista ou com especialização em Saúde da Família, um
enfermeiro generalista ou especialista em Saúde da Família, auxiliar ou técnico de
enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS). Os ACS são indivíduos pertencentes
às próprias comunidades, que recebem formação específica para exercer determinadas
funções de atenção à saúde nos territórios e atuarem como mediadores entre a comunidade
e os serviços. As equipes podem ter ainda a composição ampliada, podendo acrescentar
cirurgião e auxiliar ou técnico em saúde bucal. As equipes de cada unidade são distribuídas
por território de forma que fiquem responsáveis por, no máximo, 4.000 pessoas, e cada
73
ACS deve atender um grupo de famílias, perfazendo um máximo de750 pessoas,devendo
cobrir 100% da população cadastrada.123
O método de trabalho da ESF fortalece o planejamento da equipe de saúde na
medida em que focaliza o atendimento de uma dada população adstrita ao território
delimitado de abrangência, priorizando sistematicamente visitas domiciliares, promoção e
educação em saúde, atendimento ambulatorial, resolutividade das demandas básicas,
encaminhamentos e um acompanhamento mais próximo dos problemas de saúde
individuais e coletivos. Esta lógica promove um vínculo mais estreito da comunidade com
a equipe de saúde e tende a valorizar o indivíduo além de sua doença, no sentido de
integralidade e continuidade da atenção a partir das necessidades reais de saúde
apresentadas pelas pessoas124.O modelo de ação da ESF pressupõe assim estratégias que
facilitem a proximidade população/profissional, estabelecendo uma comunicação eficaz e
reconhecimento da realidade sócio-sanitária local, a fim de que sejam atingidos os
objetivos institucionais propostos125.
A nova PNAB publicada em 2011 reforça e amplia o modelo de atenção a saúde
conforme os princípios da ABS e a ESF como porta de entrada preferencial aos usuários,
promovendo uma estrutura mais acolhedora e uma coordenação de cuidados diversificada,
incluindo os Consultórios de Rua, as UBS fluviais e ESF para populações ribeirinhas,
como também expandiu os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) 126.Os NAFS
foram criados em 2008, com o intuito de fortalecer e consolidar a ESF na ABS por meio da
ampliação das ofertas, abrangência dos serviços e melhoria da resolutividade. São
formados por grupos de profissionais que não fazem parte da estrutura básica da ESF, tais
como pediatras, nutricionistas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e buscam
qualificar a atenção, pela construção conjunta de projetos terapêuticos e intervenções em
prevenção de agravos e promoção da saúde127.
Segundo Starfield128 a ABS é a base que determina o trabalho de todos os outros
níveis dos sistemas de saúde e promove a organização e racionalização da utilização dos
recursos, tanto básicos como especializados, direcionados para a promoção, manutenção e
melhoria da saúde. Considerada como porta de entrada do SUS e, sobretudo, quando tendo
a ESF estabelecida, a ABS torna-se arena privilegiada para implantação, avaliação e
monitoramento de toda e qualquer política pública de busca de equidade129.
Sousa121 afirma que apesar das inúmeras dificuldades no percurso do processo de
implementação do programa, dificuldades próprias do legado de um modelo de atenção
74
curativista, hospitalocêntrico e médico-assistencial-privatista, a ESF apresenta-se como um
programa inovador de grandes potencialidades para contribuir com a universalização do
acesso. Aponta ainda que diante as abismais desigualdades sociais no Brasil, com sistema
de proteção social ainda fragilizado, a ESF apresenta-se como ferramenta de construção de
capacidades comunitárias nas problematizações de saúde, fortalecimento da consciência
sanitária, sendo necessário para isto assumir sua função social e política na superação do
modelo médico hegemônico e na construção de projetos e programas que tenham a
capacidade de interferir positivamente nos determinantes sociais de saúde, e favorecer na
efetivação de uma política pública afinada com os princípios e diretrizes do SUS.
Assim sendo, estes espaços passam a constituir também um campo de pesquisa
fundamental para compreensão da perspectiva dos profissionais de saúde ao lidarem com
as vulnerabilidades socioculturais, as diversidades e os determinantes sociais, e, portanto,
um campo adequado para compreender a percepção dos médicos(as) e enfermeiros(as)
sobre a diversidade sexual e atenção à saúde ofertada a população LGBT, objetivo
norteador desta pesquisa.
76
vulnerabilidades a que estão expostas, como prostituição e uso de drogas, e não ao fato da
transfobia. Segundo o Transgender Europe131nos últimos oito anos o Brasil matou 868
travestis e transexuais, liderando a morte deste segmento no mundo, revelando a
invisibilidade e a rotina de exclusão e violência a que são submetidas.
Também o Transgender calcula o risco de uma pessoa trans ser assassinada é 14
vezes maior que um homem gay cis e as trans brasileiras têm 9 vezes mais chance de morte
violenta do que as trans norte-americanas. Em 2016 foram 144 travestis brasileiras
assassinadas, face às 21 trans americanas. A ANTRA contabilizou em 2017, 179
assassinatos de pessoas trans, sendo 169 travestis e mulheres transexuais e 10 homens
Trans.
Os dois relatórios também evidenciam que apesar de todos os marcos legais e
políticos instaurados no país, a partir do programa Brasil sem Homofobia (2004), ainda
não foi revertido cenário de crueldade causadas pela “LGBTfobia” no país, requerendo
medidas ainda mais eficazes e que transformem o cotidiano violento destas pessoas em
espaços de cidadania e respeito, tarefa árdua frente a uma sociedade historicamente
machista e heteronormativa, agravada pela atual conjuntura de retrocesso sociopolítico
instaurada no ultimo ano no país.
Na região Centro-Oeste foram selecionadas a capital do Estado de Goiás, Goiânia, e
capital do país Brasília, no Distrito Federal (DF) com mais duas regiões administrativas
Ceilândia e Taguatinga. Goiânia é a segunda maior cidade do Centro Oeste com
aproximadamente 1.448.639habitantes (IBGE/2016) encontra-se no 45º lugar entre as
cidades brasileiras, com IDHM de 0,799, considerado alto 132. A Organização da Atenção
Básica à Saúde (ABS) na cidade de Goiânia é feita por Distritos Sanitários, que
corresponde à alocação dos recursos de saúde de acordo com as características sociais e
epidemiológicas de determinada área geográfica, podendo compreender vários bairros de
um município, ou vários municípios de uma região133. Na época da coleta de dados (2014),
possuía 183 Equipes de Saúde de Família implantadas espalhadas em 62 Centro de Saúde
da Família (CSF)134 significando uma percentagem de cobertura da população da ordem de
47,85%135.
A ABS nesta cidade comporta ainda o Centro de Atenção Integrada à Saúde (Cais),
o Centro Integrado de Atenção Médico Sanitária (CIAMS) que oferecem serviços
ambulatoriais e de urgência e emergência 24 horas aos usuários do SUS, Centros de
77
Atenção Psicossocial (CAPS), NASF, além de diversos programas de saúde, conforme
informação do próprio site da Secretaria de Saúde local.
No que se refere a programas de combate à homofobia e promoção do respeito à
diversidade, quando da coleta de dados, o município contava com o Conselho Estadual de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais-LGBTT, o Dia Estadual do combate à
homofobia, instituído pela lei nº 16.659/2009, o Comitê Técnico de Saúde Integral de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais e a garantia do uso do Nome Social
para travestis transgêneros e transexuais em todas as instâncias publicas estaduais 136. Em
2013 foi instaurada a Assessoria Especial de Diversidade Sexual que objetiva apoiar e
acompanhar diagnósticos sobre a situação da população de lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais no município e elaborar projetos ou programas voltados a esses
grupos, dentre outras funções. No mesmo ano a Secretaria de Políticas para Mulheres e
Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria Estadual de Segurança Pública cria um Grupo
de Trabalho com a finalidade de elaborar o Plano de Ação para enfrentamento à violência
doméstica e homofóbica no Estado de Goiás. No âmbito acadêmico a Universidade Federal
de Goiás conta com o O Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e
Sexualidade, da Universidade Federal de Goiás, tem por objetivo produzir e divulgar
conhecimentos compromissados com a equidade de gênero e a garantia dos direitos
sexuais, como também o combate a LGBTfobia.
Apesar de todos estes avanços em termos de legislação, e possuir um forte
movimento social na defesa da população LGBT Goiânia ainda apresenta marcantes
características conservadoras e hierárquicas de sua sociedade. Braz et cols. 137 ao analisar
discursos da população LGBT em Goiânia, ressaltaram que um dos temas mais presentes
nas falas, foi falta de autonomia e de liberdade para demonstrações afetivas em públicos,
falta de espaços de lazer e convivência, relatos de preconceitos praticados por proprietários
ou clientes de estabelecimentos comerciais, shoppings, restaurantes, e ainda mais graves
para travestis e transexuais.Segundo o último Relatório de Violência Homofóbica da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – SDH/PR de 2013 o estado
de Goiás ocupa 15º lugar no país de homicídios por homofobia 138 . Dados recentes
139
levantados pelo Relatório de Assassinatos LGBT no Brasil/2016 coordenado pelo
Grupo Gay da Bahia (GGB) coloca o estado de Goiás em 9º lugar no país em assassinatos
homofóbicos com relação as demais UF brasileiras.
78
O Distrito Federal com população de 2.977.216 habitantes (IBGE/2016), é a
primeira da região mais populosa do Centro Oeste. Brasília que corresponde ao Plano
Piloto do DF tem 220,3 mil moradores (IBGE 2016), os demais habitantes do DF estão
espalhados entre as 18 Regiões Administrativas (cidades satélites). Duas dessas cidades
satélites estiveram envolvidas na pesquisa, Ceilândia e Taguatinga. Historicamente criadas
para abrigar trabalhadores que vieram para a construção de Brasília, elas não costumam
figurar nos mapas de desenvolvimento humano de forma isolada, apesar das evidentes
diferenças nas condições socioeconômicas das populações das cidades satélites, muito
inferiores as da população que habita o chamado plano piloto da cidade. Estudo do IBGE,
já demonstrou um índice de pobreza de 37,7%, superior ao de cidades como Rio de Janeiro
e São Paulo140. Dessa forma o IDHM de Brasília, quando calculado de forma agregada
com as das demais regiões administrativas, encobre a realidade destas cidades satélites. O
mapa do desenvolvimento coloca Brasília em 9º lugar entre todos os municípios do país,
com um IDHM de 0,824, considerado muito alto. Entretanto, sabe-se que em regiões
administrativas como Ceilândia e Taguatinga, esses índices são muito mais baixos.
A organização da Atenção Básica dá-se a nível central através da
coordenação Atenção Primária da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, pelas DIRAPS,
direção de Atenção Primária presentes em cada região administrativa e as distribuições das
UBS são ordenadas por Região de Saúde. A ABS também conta com o suporte dos
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) os Centros de Apoio Psicossociais (CAPS),
além de outros centros e programas que complementam a assistência integral aos usuários.
A Regional de Saúde de cada região consta com UBS mistas que associa o modelo de
Centro de Saúde e ESF, e outras UBS apenas com ESF.
O DF na época da coleta de dados da pesquisa contava com um total de 243
Equipes de Saúde da Família (DAB/2015) e com 158 UBS instaladas, sendo 103 apenas
com ESF e as demais 55 mistas, com cobertura da população geral de 31,65%. O Plano
Piloto de Brasília, que faz parte da Região Centro Sul e Centro Norte, conta com 11
Centros de Saúde e apenas 01 PSF. Ceilândia compõe a Região de Saúde Oeste, tem 12
UBS mistas e 4 contam com ESF. Já Taguatinga faz parte da Região de Saúde Sudoeste,
tem 8 UBS e 4 com ESF. 141
Na legislação do Distrito Federal consta a Lei nº 2.615/2000 142 que determina
sanções às práticas discriminadas em razão da orientação sexual das pessoas, a portaria que
autoriza o uso do Nome Social em todas as instâncias e também o dia de Combate a
79
Homofobia. Recentemente, em 23 de junho/2017, o governo local regulamentou a lei que
pune a homofobia, antiga reivindicação do movimento LGBT local, porém após três dias,
em 26 de junho/2017, o mesmo foi derrubado pela bancada fundamentalista cristã e seus
aliados da Câmara dos Deputados, que atualmente apresenta uma das maiores ameaças a
consolidação dos poucos direitos conquistados pela população LGBT 143. No que se refere
ao mapa da Homofobia, o Distrito Federal figura em 23º lugar no país segundo o relatório
do Governo (2013) e 13º lugar no recente relatório do GGB (2016), juntamente com Mato
Grosso, Sergipe e Acre129. Nesse ponto também as diferenças nos níveis educacionais e de
influência de fundamentalismos religiosos entre as populações do plano piloto e
populações de cidades satélites como Ceilândia e Taguatinga podem criar cenários bastante
distintos, no que se refere a conservadorismos morais e práticas de intolerância.
A região nordeste esteve representada na pesquisa pelas cidades de Vitória da
Conquista e a capital do Estado, Salvador. Salvador é a maior cidade do nordeste brasileiro,
com 2.938.092 habitantes, tem IDHM de 0,759, considerado alto e está no 383º lugar dos
municípios brasileiros 144 . Na organização da Atenção Básica a cidade conta com a
Diretoria de Atenção Básica, que possui diversos núcleos e coordenações de apoio a
exemplo da Coordenação de Avaliação e Monitoramento (COAM) e a Coordenação de
Apoio e Desenvolvimento da Atenção Básica (COAD), dentre outros, e também com
NASF e CAPS. As UBS com ESF e também são organizadas por Distritos Sanitários119.
Na época da coleta de dados contava com 230 Equipes de Saúde da Família Implantadas
com cobertura populacional estimada em 30,8% (DAB/2016) espalhadas nas 61 USF
distribuídas nos oito Distritos Sanitários145.
Apresenta instituído como ações para população LGBT o Plano Municipal de
Políticas Públicas de Cidadania e Direitos LGBT (PMLGBT) lançado em 2016 que tem
por objetivo garantir direitos e viabilizar a dignidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais e Transgêneros146, o Núcleo de Políticas Públicas de Cidadania e
Direitos LGBT147 e o Comitê Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Comitê LGBT).
Pelo Relatório do GGB há dez anos o nordeste é a região que lidera crimes de
homofobia no país e Salvador a cidade mais violenta. No Relatório oficial da SDH (2013)
a Bahia está em 4º lugar, atrás apenas de São Paulo (1), Pernambuco (2) e Minas Gerais (3)
e no ultimo relatório do GGB (2016) está em segundo lugar, atrás apenas de São Paulo 148.
Em recente entrevista (Maio/2017) o professor da Universidade Federal da Bahia, Leandro
80
Colling, criador e coordenador do grupo de pesquisa de Cultura e Sexualidade (CUS),
descreve a violência homofóbica na cidade como "alarmante" porém "previsível" devido a
ausência de políticas públicas eficazes:
Infelizmente, para quem pesquisa e é militante dessa causa, o aumento da violência não
surpreende. Aliás, diante do quadro que vivemos hoje, com a falta de políticas públicas
voltadas para combater o preconceito de ódio e de gênero, o que a gente teme é que essa
violência aumente cada vez mais. O quadro, infelizmente, não é de esperança para que
isso diminua.
Observa-se que mesmo com as políticas publicas para população LGBT existentes
na cidade, ainda persiste o preconceito e discriminação as diversidades sexuais,
enfatizando a distancia entre a implantação de uma política e a sua execução. Outros
fatores corroboram com esta premissa, como o uso destas diretrizes apenas para
campanhas políticas sem nenhuma sensibilização da sociedade, capacitação para
profissionais e consequente ausência de mudanças positivas no cotidiano da população,
como já foi discutido nesta tese.
Vitoria da Conquista, cidade de médio porte da região do Nordeste tem IDHM de
0,678 considerado médio e está no 2481º dos municípios brasileiros, dentre os 5565
existentes no país. É a terceira maior cidade da Bahia, atrás apenas de Salvador e Feira de
Santana e possui 350.284 habitantes (IBGE 2016). A Rede de Atenção Básica local possui
ESF instalada conforme o que preconiza o SUS na área urbana e rural. Conta também com o
apoio do NASF, do CAPS e outros centros de atenção a saúde relacionado a ABS. Na época da
coleta de dados contava com 42 Equipes de Saúde da Família instaladas com cobertura
populacional de 42,2% (DAB/2016) espalhadas em 30 USF da zona rural e urbana149.
A cidade detém diversos prêmios no âmbito das políticas sociais na área de assistência
social, educação básica e criança e adolescentes 150 e em 1999 recebe o Prêmio Saúde
Brasil, concedido pelo Ministério da Saúde como reconhecimento pelos resultados obtidos
com a implantação do Programa de Saúde da Família, especialmente no que se refere à
redução da mortalidade infantil151.
Na época da coleta de dados a cidade contava com a Assessoria de Políticas para
Diversidade Sexual e a Coordenação de Políticas de Promoção da Cidadania e Direitos de
LGBT (Coordenação LGBT) 152 responsável por propor e formular diretrizes no âmbito
municipal e promover ações no combate a homofobia e a livre orientação sexual e
identidade de gênero.A cidade é pioneira, do interior da Bahia, a garantir o Nome Social de
travestis e transexuais153 e também a única em regulamentar o Dia da Visibilidade Trans.
81
Por estes marcos, a cidade até 2016, era referência em políticas e ações para população
LGBT, além da abertura política da época, o protagonismo do jornalista e comunicador
social Danillo Bittencourt Santos, que foi coordenador e assessor das duas pastas de políticas
LGBT, contribuiu com excelência para tal reconhecimento.
Os dados sobre a violência homofóbica não são mensurados por municípios e sim por
regiões. Configurando a região do sudoeste baiano, está inserida na terceira região mais violenta
do país segundo o relatório da SDH e na segunda região conforme relatório GGB de 2016.
Dados da mídia154 informam que a cidade concentrou metade das mortes de homossexuais do
estado da Bahia no ano de 2014. Danillo Bittencourt declarou nesta matéria: "São crimes
bárbaros, em que a pessoa é morta não só com tiros, mas também é agredida com chutes,
murros e outros objetos, o que evidencia uma raiva maior para com a vítima porque ela
escolheu amar pessoas do mesmo sexo".
Considerando os dados de homofobia apresentados, fica claro que as políticas de
combate a homofobia e de promoção de direitos e cidadania da população LGBT
implantadas em cada cidade ainda não são suficientes para combater o preconceito e
discriminação contra esta população visto os dados de homofobia apresentados.
Esta apresentação sumária e descritiva do campo quanto à organização da UBS, dos
dados demográficos de cada região e da existência de programas e ações implementadas
contra homofobia contribui para a compreensão dos contextos sócios culturais dentro dos
quais os dados foram coletados, corroborando assim para situarmos no tempo e espaço
onde e quando os atores/profissionais estavam inseridos no momento que responderam a
entrevista.
No entanto pareceria metodologicamente inadequado buscar estabelecer relações
entre os achados nos discursos dos profissionais entrevistados e o contexto aqui
apresentado, visto que este aspecto não está entre os objetivos desta pesquisa, nem há um
estudo social de contexto em profundidade suficiente para sustentar essa vinculação.
82
6. MATERIAL E MÉTODOS
83
Isto é, cabe ao pesquisador usar um acurado instrumental teórico e
metodológico que o municie na aproximação e na construção da realidade,
ao mesmo tempo, que mantém a crítica não só sobre as condições de
compreensão do objeto como de seus próprios procedimentos. (p. 42)
Dentro da abordagem qualitativa como uma das diversas técnicas capazes de dar
conta da compreensão critica da realidade, encontra-se a Análise de Discurso (AD), que
para Minayo traz uma contribuição importante para análise do material qualitativo,
"sobretudo numa situação em que a hegemonia sempre coube ás análises positivista dos
conteúdos das falas"(p. 321). A AD possibilita a compreensão dos sentidos do texto,
analisando a semântica, mas indo além desta, procurando decifrar o conteúdo ideológico
que sustenta os discursos.
Michel Pêcheux156, estudioso e um dos fundadores do método, estabelece a relação
existente no discurso entre língua/sujeito/história ou língua/ideologia, ou seja, articula o
lingüístico com o social e o histórico. Minayo coloca como objetivo essencial desta analise
"realizar uma reflexão geral sobre as condições de produção e apreensão da significação
dos textos produzidos nos mais diversos campos" (p. 319), ou seja, onde e como estes
discursos foram gerados e qual a ideologia implícita e explicita nas entrelinhas dos
mesmos.
Compreendendo que os discursos dos agentes de saúde aqui analisados carregam
em sua linguagem formações ideológicas que lhe são correspondentes, é com o fundador
da Escola Francesa da Análise de Discurso, Michel Pêcheux, que encontramos o arcabouço
teórico necessário para orientar nossa análise. Pêcheux "teoriza como a linguagem é
materializada na ideologia e como esta se manifesta na linguagem (p. 10)" 157. A partir
desta premissa coloca sujeito e seu discurso constituídos pela conjuntura social e pelas
condições históricas que o cercam, indo além da regras formais que produzem a fala, indo
além da lingüística, considerada limitante para compreensão das condições complexas que
formulam o discurso.
Como teoria, a Análise do Discurso se associa a três domínios disciplinares: A
Lingüística, O Materialismo Histórico e a Psicanálise, estabelecendo que o contexto
histórico e econômico, as relações sociais e de produção, o estudo da linguagem e do
sujeito, se articulam na formação discursiva. A ideia central do pensamento do autor é que
um evento discursivo seja de natureza política, educacional, informativa, não pode se
desvincular de sua exterioridade, ou seja, o sujeito discursivo é influenciado por uma
84
ideologia e pela conjuntura sócio-histórica que o envolve ainda que o mesmo não tenha
consciência desta influencia no espaço tempo que desenvolve o discurso.
Assim o discurso não se revela desprovido do contexto em que foi produzido,
apenas na compreensão dos textos em si, pois o sentido do discurso não é obvio e
transparente. É necessário analisá-lo para além da superfície, pois é na sua estrutura
profunda de produção que os reais sentidos do texto são desvelados. Pêcheux é enfático
sobre a determinação de compreender o arcabouço produtivo nos quais os discursos foram
elaborados, percebendo a linguagem, a fala materializada, subordinada a estruturas
macrossocias e a sua construção lingüística, ressaltando que “todo dizer é ideologicamente
158
marcado" (p. 38). Os planos materiais e simbólicos contidos em todo discurso são
considerados e sempre relacionados com o contexto, ou seja, a linguagem é trabalhada
tanto no senso comum como em suas noções contextuais e históricas.
Toda esta noção implica na percepção dos processos e no entendimento do sujeito
político/social para o entendimento do discurso. A linguagem desta forma não é neutra e
está centralizada na construção da vida em sociedade, compreendendo assim o sujeito não
individual e sim assujeitado ao coletivo, assim os discursos são proferidos a partir de uma
circunstância dada 159 . Pêcheux 160 exemplifica os discursos do sujeito político, o qual é
porta voz de forças e poder relacionadas a determinada ideologia, e as intersecções
antagônicas que interferem nesta fala, não estando o sujeito falando por si só, e sim
representando um pensamento maior que o atravessa.
Caregnato e Mutti161 chamam a atenção que a AD é uma disciplina de interpretação
e não uma metodologia visto os princípios de diferentes áreas que a regem, compreendidos
como a lingüística, o materialismo histórico e da psicanálise, como já mencionamos aqui e
citam que Pêcheux reforça a AD “sob o prisma de uma leitura interpretativa”. Trabalhar a
interpretação das falas é substancial neste contexto da AD, visto que não é conteúdo e a
forma que pretenderemos analisar e sim os sentidos produzidos naquele discurso,
considerando as circunstâncias no qual o mesmo é produzido.
As autoras ratificam que "a interpretação sempre é passível de equívoco" e colocam
o analista como interprete "que faz uma leitura também discursiva influenciada pelo seu
afeto, sua posição, suas crenças, suas experiências e vivências; portanto, a interpretação
nunca será absoluta e única, pois também produzirá seu sentido (p. 682)". Pontuam
também que não é preciso analisar tudo que aparece na entrevista, visto que é uma analise
vertical e não horizontal, focando na importância de trabalhar os recortes discursivos
85
relacionados com o arcabouço teórico levantado pelo analista. Deste modo a teoria trazida
pela AD de Pêcheux assim como a forma de analisá-los se relevam pertinentes para
averiguar os discursos dos profissionais aqui elencados, considerando suas representações
sociais, suas ideologias, o tempo espaço onde estes discursos emergiram, assim como
permitirá uma avaliação dos discursos a luz dos objetivos e do referencial teórico
levantados nesta pesquisa.
Sobre os passos metodológicos para AD, Macedo e cols 162 discutem que nos
estudos atuais há uma variedade de instrumentos utilizados para realizar a AD gerada pelo
sujeito e que o processo de análise propriamente dito não difere muito de outras tantas
análises de natureza qualitativa, ou seja, leitura exaustiva, categorização, compreensão e
interpretação dos dados, considerando sempre o contexto nos quais os discursos são
produzidos:
86
Esta pesquisa faz parte de um dos braços de investigação de um projeto maior
intitulado “Análise do acesso e da qualidade da atenção integral à saúde da população
LGBT no Sistema Único de Saúde” conduzido pelo Núcleo de Estudos em Saúde Pública
(NESP) da Universidade de Brasília (UNB) em parceria com a FIOCRUZ/PE, as
Universidades Federais da Paraíba, Piauí, Uberlândia, Universidade Universidades
Estaduais de São Paulo, Maringá e do Rio de Janeiro.
A pesquisa multicêntrica incluiu as seguintes regiões do Brasil:
Região Norte: Pará (Belém e Santarém), Amapá (Macapá), Acre (Rio
Branco);
Região Nordeste: Bahia (Salvador e Vitória da Conquista),
Pernambuco (Recife), Paraíba (João Pessoa), Ceará (Fortaleza e Juazeiro
do Norte); Piauí (Terezina e Picos);
Região Centro Oeste: Mato Grosso do Sul (Campo Grande); Distrito
Federal (Brasília, Cinelândia, Taguatinga e Sobradinho), Goiás
(Goiânia);
Região Sudeste: Rio de Janeiro (Rio de Janeiro), São Paulo (São Paulo e
São José do Rio Preto), Minas Gerais (Belo Horizonte e Uberlândia),
Espírito Santo (Vitória),
Região Sul: Paraná (Curitiba e Maringá), Rio Grande do Sul (Porto
Alegre).
Para selecionar os municípios de cada região, foram utilizados os seguintes
critérios:
municípios que tenham a política LGBT implementada;
municípios acima de 50 mil habitantes;
equipe das Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF) completa com
cadastro atualizado no Sistema de Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde – SCNES;
equipe da UBSF que há pelo menos um ano conta com a mesma composição
de trabalhadores
Cada região possuía um coordenador de área vinculado a Universidade local. O
recorte da minha pesquisa nas duas cidades da região Centro Oeste se deu devido ao meu
vinculo como doutoranda em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília e pesquisadora
associada do NESP. E nas duas cidades do Nordeste pelo meu vinculo afetivo, visto que
87
sou natural da Bahia e assim, possuo conhecimento da estrutura sócio política da região, o
que me possibilitou ser coordenadora de área local.
O cálculo3 da amostra de UBS em cada cidade foi realizado utilizando os seguintes
pressupostos: tamanho da população, número total de UBS, cobertura populacional, a
probabilidade de indivíduos LGBT por região (na população geral é de 10%) e proporção
UBS com PSF por município. No campo desta pesquisa a quantidade de USF ficou assim
definida: Goiânia - 04 USF; Distrito Federal - 14 USF; Vitória da Conquista - 04 USF e
Salvador - 10 USF. A escolha das USF foi feita de forma aleatória através de sorteio,
contando que para serem incluídas deveriam contar com uma equipe mínima da ESF com
pelo menos um médico (a), enfermeiro (a) e agente comunitário de saúde. Já havia sido
definido no âmbito da Pesquisa Nacional a quantidade de 5 profissionais por USF a serem
entrevistados, sendo 01 médico(a), 01 enfermeiro (a) e 03 agentes comunitários de saúde.
6.2 Participantes/Amostragem
3
Cálculo realizado pela Dra. Ana Maria de Brito (PhD em epidemiologia, pesquisadora da Fiocruz de Pernambuco e professora da
Universidade de Pernambuco) para pesquisa multicêntrica de âmbito nacional: “Análise do acesso e da qualidade da Atenção Integral à
Saúde da população LGBT no Sistema Único de Saúde” sob a coordenação do Núcleo de Estudos de Saúde Pública/NESP/CEAM/UNB.
88
Atenção Integral à Saúde da população LGBT no SUS, e a pesquisadora se mostrou
disponível para esclarecer qualquer dúvida que ainda surgisse sobre o trabalho. Isso garantiu
bases éticas e técnicas necessárias à abordagem dos(as) participantes dentro de uma relação de
confiabilidade. Os profissionais pesquisados, totalizaram 43 relatos, sendo 21 dos(as) médicos
(as) e 22 dos(as) enfermeiros (as) conforme o quadro abaixo:
Quadro 1 –
Distribuição do número e tipo de profissional por cidade:
Profissionais ENFERMEIRO (A) MÉDICO (A)
Campo
Goiânia - GO 04 04
Brasília - DF 06 05
Vitória da Conquista - BA 04 04
Salvador - BA 08 08
TOTAL 22 21
TOTAL GERAL 43
89
Como a pesquisa nacional era uma demanda vinculada ao Ministério da Saúde e
tramitava pelas diretorias de atenção básica de cada região para autorização local, quando a
equipe de pesquisadores chegava nas UBSF para aplicar as entrevistas, sempre o
responsável pela Unidade já estava ciente da pesquisa e desta forma era reservado um
espaço físico (consultório, sala de reunião, copa, etc) e na agenda dos profissionais para
que a entrevista fosse realizada com o sigilo necessário e distante da intensa movimentação
corriqueira das UBS. Apesar destes tramites prévios, alguns profissionais entrevistados se
surpreendiam com o tema proposto, visto a ausência de ações propostas nas USF para esta
população e outros não tinham nenhum contato, ou mesmo desconheciam o que significava
a sigla LGBT.
A equipe de pesquisadoras nos campos desta pesquisa contava sempre comigo na
coordenação e na aplicação das entrevistas e mais uma ou duas profissionais graduadas em
Saúde Coletiva e devidamente treinadas, exceto na cidade de Goiânia, em que acompanhei
e realizei as entrevistas com um dos coordenadores da pesquisa nacional, o professor Edu
Cavadinha.
O encontro pessoal com os participantes geralmente ocorria com cordialidade e
respeito, favorecido pela informação prévia sobre a pesquisa, não havendo relato, nem
experiências de situações desagradáveis que pudessem interferir no processo de coleta.
Uma única profissional médica em uma das UBSF de Salvador desistiu de dar entrevista,
alegando sobrecarga de consultas e reuniões. Não temos elementos suficientes para inferir
se a recusa deu-se pela temática, o que poderia ser relevante.
As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas pela equipe responsável
do NESP. As 43 entrevistas aqui analisadas passaram por minha revisão tanto do áudio
quanto da transcrição. Os dados foram coletados entre novembro/2014 no Centro-Oeste e
entre maio e junho/2016 na Região Nordeste. O tempo entre uma coleta e outra deu-se
devido a alguns entraves burocráticos com relação a autorização da pesquisa na Região
Nordeste.
90
7. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Mas, a linguagem não traz a experiência pura, pois vem organizada pelo sujeito
por meio da reflexão e da interpretação num movimento em que o narrado e o
vivido por si estão entranhados na e pela cultura, precedendo à narrativa e ao
narrador. Minayo
91
7.1 A condição LGBT causa doença, contando duas subcategorias:
7.1.1A condição LGBT causa IST/AIDS;
7.1.2 A condição LGBT causa transtornos mentais;
7.3 A formação profissional para a atenção à população LGBT, também com duas
subcategorias:
7.3.1 Competências e capacitação para lidar com a população LGBT;
7.3.2 Dificuldades em abordar a orientação sexual dos usuários.
92
dividimos em duas subcategorias: a condição LGBT causa IST/AIDS e a condição LGBT
causa transtornos mentais.
93
E14 - ...O que a gente vê é... As vezes é mais por conta da parte
sexual, tem a preocupação com as doenças sexualmente
transmissíveis, então, as vezes, procuram nesse sentido...
E 7 -... é o que a gente consegue abranger mais esse grupo, mais que
uma hipertensão, com diabetes que é pouco frequentado por esse
grupo, só se tem alguém que a gente não sabe, mas assim, quando a
gente trata mais em questão sexual é que a gente consegue captar um
pouco mais dessas pessoas. A gente vê mais esta população nos
grupos ou em atividades específicas pra doenças sexualmente
transmissíveis
E 17 - talvez... não saiba bem como abordar essa população visto que
a maior procura é voltada pra parte de DST, teste rápido pra HIV e
demandas em cima de DST. Difícilmente procura aqui pra uma
avaliação de rotina, fazer uma consulta mesmo.
94
M9 - DST logo de cara, DST´s... Os agravos que mais acometem esta
população... É muito com relação à questão de saúde sexual e
reprodutiva... eu não vejo outras não...
M10 - Bom realmente, esse tipo de pessoa tem que ter uma orientação
realmente, clara, porque pela estatística eles têm mais índice de
doenças de transmissões sexuais...
95
M3 - Acho que não porque as doenças do público LGBT não é
específica do grupo LGBT são universais qualquer pessoa pode ter
doenças sexualmente transmissíveis, infectocontagiosa comum...
96
Ou seja, parece estar muito vinculada à racionalidade dos profissionais de saúde os
efeitos, já descritos nesta tese, relacionados ao inicio da epidemia de AIDS, quando os
programas e políticas voltadas para prevenção reforçavam o padrão heteronormativo e,
toda manifestação dos corpos fora desta estrutura, era patologizada. Pelúcio e Miskolci80,
por exemplo, falam em repatologização das sexualidades dissidentes, afirmando que a
epidemia reforçou tanto nas subjetividades dos profissionais de saúde quanto na própria
estrutura das instituições o dispositivo normalizador das sexualidades, de forma que as
homoafetividades passaram a apresentar a ameaça mais significativa em relação à
contaminação pelo HIV. Esse processo acabou por envolver todas as demais IST.
Meinez60 discute que a homofobia na saúde é fundamentada justamente por este
imaginário biomédico que compreende a homossexualidade como condição de risco e pela
associação frequente da saúde da população LGBT as IST/AIDS.
Esta persistente associação tem inúmeras causas, sobre as quais já dissertamos no
capitulo sobre a trajetória do movimento LGBT. Da "peste gay" na década de 80 e as
consequentes articulações políticas entre o organismo governamental e os movimentos
sociais, que resultaram em diversas ações eficientes e eficazes para lidar com a epidemia,
até as evidências científicas que a AIDS não eram exclusividade da população LGBT.
Entretanto, resiste na atualidade, a prática em saúde alicerçada no conceito de grupo de
risco e no potencial agente contaminador da população LGBT como revelaram os
discursos dos profissionais de saúde aqui analisados.
Terto166, desde 2002, já sinalizava preconceitos e estigmas sofridos pela associação
AIDS-homossexualidade, com abordagem da saúde do gay apenas relacionada à HIV, "em
detrimento outras causas biopsicossociais de adoecimento desta população."
Gays parecem significar todo o universo LGBT para a maioria dos profissionais
entrevistados. As mulheres lésbicas, transexuais e as travestis foram nomeadas algumas
vezes, no entanto, os homens trans são sujeitos (quase) ocultos para os profissionais
identificados. Nos poucos momentos em que as lésbicas são citadas, o profissional associa
a orientação sexual à agressividade, ou seja, um ícone do masculino.
97
Também para o entrevistado M8, a agressividade parece ter denunciado um lugar de
não pertencimento às mulheres, ou de desestabilizar a posição de mulher das lésbicas a partir
de um suposto atributo masculino. Considerando os dados epidemiológicos, a prática médica
deve ter, muito provavelmente, apresentado ao entrevistado, inúmeros casos de violência
doméstica perpetrada por homens contra as mulheres, entre casais heterossexuais. O que ele
informaria ao selecionar da memória os casos envolvendo as mulheres lésbicas e relacioná-los
à agressividade no relacionamento como se fosse algo específico entre os casais formados por
mulheres lésbicas?
Com relação às transexualidades e travestilidades é exarcebada a ausência nos
discursos dos profissionais, parece haver um “estranhamento” maior com relação a este
segmento da população, além do relevante despreparo, e consequentemente estigma e
preconceito de forma mais desvelada:
E 16 - Nunca uma travesti vai entrar na unidade sem gerar conversa,
uma conversinha, uma fofoquinha, um risinho, um olhar torto,
entendeu.
E16 -... a gente já teve vários casos aqui, que eu posso citar um, que é
emblemático, de mulher trans que veio né... e a gente tem aqui na
unidade várias pessoas, com várias diferenças religiosas... Ele, Ela se
apresentou com nome social, mas ela estava lógico com documento de
identidade com nome de nascença, com nome masculino e uma das
técnicas de enfermagem que inclusive não trabalha mais aqui, fazia
questão de chamar lá pelo nome de homem, entendeu?... Pra que as
pessoas ficam de “Tchchchu” conversando que é o que sempre
acontece, entendeu, fazendo chacota, fazendo piada...
Ainda que tenha aparecido enquanto categoria singular, esse achado é importante,
por demonstrar que encontra-se diluído entre o senso comum dessas categorias
profissionais, pontos de vista divergentes que reconhecem como o estigma e a
discriminação funcionam enquanto barreira simbólica de acesso a essas pacientes.
Reconhecer o estigma como barreira simbólica de acesso a essas pacientes não
significa reconhecer que o serviço opera também nesse sentido. Como identificou
Paulino167, a responsabilidade pela ausência é deslocada para o próprio usuário como se o
profissional e o serviço fossem apenas agente passivo nessa relação.
Além do aspecto da invisibilidade, nota-se a questão do estigma e preconceito mais
exacerbado quanto se trata desta população. As mulheres transexuais e as travestis são
invisíveis no serviço, mas são hipervisibilizadas a partir de uma única possibilidade: a
prostituição.
M5 - mas populacão trans eu acho que pensando assim né, no geral, quais são as
principais demandas é infecção sexualmente transmissível, reposição hormonal, é, eu
acho que essa questão de estarem todas profissionais do sexo... eu acho que a pessoa pode
escolher ser profissional do sexo mas assim é meio uma coisa fadada...
E 12 -porque ele(ACS) ta naquele meio ali né, ele mora lá na Unidade, ele vê falar, ele
sabe, olha ele é travesti ele se prostitui tal...
4
Além da escuta dos profissionais e gestores, a pesquisa multicêntrica também objetivou a
escuta da população LGBT através de Oficinas realizadas com cada segmento desta população, nas regiões
determinadas. A dissertação da autora Fébole analisou 8 oficinas realizadas na estação de Maringá - SC.
101
7. 1.2 A condição LGBT causa transtornos mentais
E2 -...a parte física eu acredito que tá saudável, agora pode ser que a
parte psicológica tenha que ser trabalhada algumas vezes, porque as
vezes são pessoas que sofrem vários tipos de discriminação, de
violência né, então essa parte a gente não trabalha com eles que é a
parte da saúde mental...
102
sujeitos, e assim, engajar-se em ações de alcance coletivo para enfrentar a homofobia e
considerar esses marcadores no momento de prestar assistência as pessoas LGBTs e a
percepção de que a orientação sexual e o gênero seriam condição necessária e suficiente
para a produção de sofrimento e adoecimento.
A participante E1 chega a dizer: "... mas a pessoa já tá tão sofrida, porque eu acho
que... eles já sofrem tanto no dia-a-dia,... né coitados?...". Como se não pudesse haver
equilíbrio, felicidade e prazer naquela forma de expressão da sexualidade. O discurso de
E1 é um exemplo claro da atitude de piedade que Goffman descreve como uma das formas
dos "normais" reagirem ao encontro com os estigmatizados, quando sob um véu de
acolhimento e piedade reforça as marcas estigmatizadoras de inferiorização.
O reconhecimento da mulher lésbica se faz através de uma linguagem recorrente no
campo da saúde mental que atrela ou delega à mulher o lugar de transtornada, a
desequilíbrios, ansiedades e instabilidade emocional, como marca do próprio gênero
feminino, em um claro processo de generalização machista:
103
Aqui os profissionais desvinculam os conflitos psicológicos desencadeados por
situações externas de vulnerabilidade, como preconceito e discriminação, e atribuem como
intrínsecos, são problemas de saúde mental atribuídos a população LGBT. A percepção de
ser uma patologia escapa mais uma vez nos discursos e se revela como “esses tipos de
doenças”.
Marques et al. 171 em um estudo crítico e abrangente sobre a saúde das lésbicas
fazem uma metanálise da literatura internacional e identificam que problemas de
transtornos mentais, de depressão, de ansiedade e abuso de substâncias químicas são mais
prevalentes nesta população do que na heterossexual, no entanto, destacam que apesar da
evidencia dos resultados obtidos pela metanálise há a necessidade "de clarificar as
componentes desta vulnerabilidade potencial e os mecanismos envolvidos, nomeadamente
com o contributo de estudos qualitativos." (p. 2042), e concluem:
104
O conflito clássico entre corpo e mente é recuperado como potencializador de
outros transtornos. A fabricação de um sujeito débil é um argumento que sustenta a tutela
das pessoas transexuais e o domínio médico.
A entrevistada E21 define as duas pacientes lésbicas, que "se enxergam como
homens", ou seja, sequer menciona o reconhecimento da existência de homens trans.
“Elas” seriam então o próprio transtorno. Pesquisadores apontam a entrada recente da
discussão sobre os homens trans no cenário brasileiro e seu impacto, silenciamento até
mesmo na política pública172, 173. No entanto, trata-se aqui da recusa de ouvir o que os
usuários estão dizendo. A deslegitimação apontada por Fébole (p. 104) pode ser
identificada na incerteza produzida na expressão “... enxergam como homem, falam né, se
reconhecem”. Ou seja, existe uma distância entre o que esses usuários dizem e o que é
considerado pelos profissionais de saúde.
O domínio psi para falar sobre a sexualidade e gênero se apresenta nos
fragmentos dos discursos dos profissionais. Nessa seara tem espaço para a existência de
gays, lésbicas, transexuais e travestis, afinal, historicamente atrelados pela aliança dos
desvios e da patologia.
No caso da transexualidades, a patologização não surge apenas pela
compreensão da condição como risco para doenças, mas como um transtorno em si mesmo.
Lionço40 argui que essa perspectiva está encarnada no próprio processo transexualizador no
SUS, na medida em que a realização de cirurgias e o acesso à reposição hormonal estão
condicionados à manutenção de um acompanhamento psiquiátrico de dois anos.
E10 - ...eles são muito descuidados, não usa preservativo, tem mais de
um parceiro né, e nem é porque são profissionais do sexo não...
105
E18 -... Por questão mesmo da falta de prevenção, acho que eles são
mais vulneráveis apesar de eles terem o acesso aos meios de evitar
como a camisinha né, os métodos de barreira. Não sei se por conta de
drogas ou alguma coisa assim que tire um pouco a questão do bom
senso na hora de ter a relação, eu acho que eles ainda são mais
acometidos por isso...
107
profissional de saúde, imediatamente já seja visto a partir das preconcepções que
caracterizam seu grupo social e que reafirma no lado no profissional de saúde sua própria
normalidade e superioridade moral.
Goffman35 afirma que a "linguagem relacional" é imprescindível para o
estabelecimento do estigma, ou seja, o estigma performa através da relação interpessoal
entre o sujeito pretensamente "normal" e aquele "estigmatizado". O julgamento moral que
o profissional faz sobre os usuários da população LGBT torna-se constituinte de sua a
“identidade social virtual”, ou seja, reitera a identidade deteriorada do sujeito
estigmatizado, consolidada pela representação negativa das homossexualidades e
transexualidades causadoras de doença quando não da própria condição de doença.
108
E 11 - porque quando a gente fala dessa questão, a gente sabe, nem
todo mundo tem a formação em saúde... tem a questão também
religiosa, tem o fator também da opinião que ele já vem formado
daquilo ali sobre a sexualidade, então tudo isso ai acho que acaba
interferindo...
109
então o fundamento de uma estratégia eficaz de capacitação para o enfrentamento do
preconceito e da discriminação no serviço de saúde?
Paradoxalmente os profissionais reivindicam e depositam a responsabilização no
Estado por uma capacitação que os habilite a cumprir as determinações de um cuidado
estabelecido numa Política Pública. Os profissionais parecem delegar ao Estado, a partir
do próprio sistema de saúde, a responsabilidade por formar e capacitar os profissionais
na atenção aos(as) usuários(as) da população LGBT.
E15 - Mas tem coisas especificas que deveria ter uma rede de apoio,
entendeu? A questão do nome social, é... a gente meio confuso as
vezes para onde levar essas pessoas para fazer a troca, para ter direito
a um nome social. Essa questão da rede de apoio que a gente fica meio
perdida, entendeu?
E18 -... Porque a gente não tem muito treinamento pra isso...mas
dentro das particularidades deles né eu não me acho muito bem
preparada para isso, acho que deveria ter uma atenção para os
profissionais com relação a isso.
E20 -... na verdade eu não tive um preparo para trabalhar com esse
público. Se chegar aqui com algum problema de saúde eu vou saber
resolver, agora com algumas coisas ligadas a essa questão, eu acredito
que precisaria de um treinamento, de uma capacitação pra lidar melhor
com as situações.
Diversos estudos já citados nesta tese3, 65, 66, 67, 68, 72, 183,184
corroboram com os
discursos apresentados quanto a falta de preparo e capacitação para o atendimento
adequado a estas pessoas. Esses fragmentos também se aproximam da categoria "Não
110
saber" desenvolvida por Paulino163 em que a culpabilização de não saber dos
profissionais é da própria estrutura do sistema, transferindo para outras instâncias a
responsabilidade pelo cuidado e saúde da população LGBT.
Lionço3 aponta que o desconhecimento dos profissionais da área de saúde sobre
a diversidade sexual pode levar a ausência de encaminhamentos que considerem
“especificação da realidade de vida e saúde” da população LGBT. Freitas183 e Paulino163
detectam em seus estudos o despreparo dos profissionais para responder os objetivos e
diretrizes Política Nacional de Saúde Integral da população LGBT e não identifica na
formação dos médicos pesquisados conteúdos que possam contribuir para o
atendimento a saúde integral da população LGBT.
A grade acadêmica que forma os profissionais de saúde e os capacitam
tecnicamente para esta função é comum a todos(as), no entanto as questões sobre as
sexualidades ainda seguem a força biomédica das Scientias Sexualis. Paulino aponta que as
Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos de graduação em Medicina abordam
de forma ampla a questão de gênero e sexualidade, no entanto negligenciam e silenciam
sobre a saúde da população LGBT. Outro estudo185 demonstra a abordagem interdisciplinar
das sexualidades na graduação de medicina, porém centrada nos aspectos patológicos e
biológicos, com pouca ênfase a construção sócio cultural da historia da sexualidade.
No âmbito das capacitações, o Ministério da Saúde conta com uma secretaria
especifica para formação e educação continuada de profissionais, a Secretaria de Gestão do
Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), no entanto na prática observamos a
fragilidade dos processos na aplicação destas ferramentas educacionais, já que gestores e
trabalhadores da área de saúde frequentemente constatam que apesar de investimentos
significativos e esforços em processos educacionais, não se pode observar impactos nos
serviços 186 . Esta realidade foi bem observada na presente pesquisa. Uma das questões
abordadas foi sobre o conhecimento dos profissionais sobre a Política de Saúde Integral
para população LGBT, e foi unanimidade nas falas dos(as) profissionais o
desconhecimento da política e ausência de capacitação sobre o tema, sendo que a coleta de
dados foi realizada entre 2014 e 2016, e a política implantada em 2011 em todos os
municípios pesquisados.
Mello e Maroja187enfatizam que o uso político da implantação de políticas, sem
ações efetivas e sem sensibilização da sociedade, não teria o alcance eficiente e
potencialmente transformador das diretrizes e objetivos contidos nas políticas.
111
Dentre as estratégias de operacionalização da PNSIPLGBT, encontra-se definido no
terceiro de seus quatro eixos: "Educação permanente e educação popular em saúde com
foco na população LGBT". Como forma de viabilizar formação o MS ofertou pela
UNA/SUS (Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde) em convenio com a UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) curso online sobre a política de Saúde da
população LGBT. Apesar da importância desse tipo de iniciativa, que por sua estrutura
de Ensino à Distância pode alcançar um número muito grande de profissionais, por um
custo baixo, existe um problema central que é o fato de que por seu caráter voluntário, o
curso alcança exatamente aqueles que já estão sensibilizados para importância dessa
formação. Isso não implica obviamente na proposição de torná-lo obrigatório, o que do
ponto de vista pedagógico seria desastroso, mas, que os resultados da presente tese estão
demonstrando é que dada a profundidade com a qual o processo estigmatizante se inscreve
nas subjetividades, mediadas por valores religiosos, ou racionalidades disciplinares, são
necessárias estratégias prévias de sensibilização para o problema, o que me parece só ser
possível a partir de processos presenciais que aproveitem as vivências dos próprios
profissionais e pacientes.
As dificuldades para transformações construtivas de práticas e condutas devem-se à
própria à reestruturação organizacional do SUS por implantar processos verticalizados e
“excessivamente normativos” que não consideram adequadamente grupos de profissionais
da ponta do sistema como protagonistas deste processo educacional. Assim os modelos
educacionais vigentes subestimam as subjetividades e vivências dos profissionais,
desconsiderando os saberes que podem ser gerados nos espaços de cuidado, enquanto
fundamentais para o processo de capacitação e educação nos serviços. Produzindo o que
eles chamam de “pedagogia da dependência". 174
Um dos caminhos para operar uma mudança significativa nas chamadas práticas
pedagógicas de dependência, como demonstra vários estudos 188 , 189 , 190 , é investir na
subjetivação da educação somadas a processo de conhecimento cognitivo, utilizando
estratégias pedagógicas capazes de promover mudanças nas subjetividades. O sentido desta
nova perspectiva em processos educacionais na saúde é justamente contribuir na
construção de subjetividades imersas na coletividade que atuam e que sejam capazes de
transformar a realidade.
O que faz com que este profissional aja nos seus espaços de cuidados de
determinada forma é sua subjetividade, adquirida com suas experiências, seus valores e sua
112
história de vida, como também a conexão intersubjetiva que estabelece com o usuário. No
entanto, apesar da subjetividade fazer parte de todo o processo educacional do individuo, é
de fácil percepção a inexistência de ferramentas pedagógicas institucionais para trabalhá-
las. Isso pode constituir um sério obstáculo ao cumprimento de diretrizes de políticas de
equidade na ponta do sistema, uma vez que os indivíduos podem assumir cognitivamente o
discurso dos direitos e do respeito à diversidade, mas não conseguem trabalhar os estigmas
e os preconceitos encarnados em suas subjetividades.
113
certo preconceito, um receio né às vezes de chegar e abordar, não sabe
como conversar, né?
Ao atribuir ao outro, supostamente sob sua coordenação, uma ação que não
encontra respaldo na Política Pública, o profissional parece não reconhecer que ele está
reiterando a ação. É o que faz o entrevistado E4 ao exemplificar a conduta do ACS:“eu
não vou pergunta se a pessoa é gay..." . Fato que ser repete no discurso do entrevistado
E18, o qual refere que o(a) ACS preenche a ficha do E-SUS equivocadamente, atribuindo a
todos(as) usuários(as) a orientação heterossexual e identidade de gênero conforme o sexo
biológico, "de acordo com o sexo da identidade", pois não tem "coragem" de abordar, mas
também não deixa em branco um item que é de participação voluntária.
Na ficha do E-SUS consta a pergunta: Deseja informar orientação
sexual/identidade de gênero?191, assim o usuário(a) pode responder sim ou não, e caso
negativo, não há necessidade de aprofundar no tema, conforme a sua vontade. A ação de
preencher o formulário com a orientação heterossexual para todos(as), sem ao menos
consultar o(a) usuário(a) reforça o despreparo profissional e reafirma a naturalidade e a
força explicativa da heteronormatividade na sociedade e nos espaços institucionais. Ao
mesmo tempo reproduz o estranhamento, a invisibilidade, o preconceito e até a violência
simbólica que estas pessoas LGBT sofrem no local onde deveriam ser acolhidas e
respeitadas.
Diferente dos enfermeiros(as), os profissionais médicos(as) apontaram a
dificuldade de abordar a sexualidade do individuo também por preconceito, tabu,
constrangimento, machismo da sociedade e medo de "ofender" o outro(a).
M6 - Acho que talvez fazer a pergunta diretamente em relação a
sexualidade é uma dificuldade... talvez eu tenha uma restrição a mais
de fazer essa pergunta diretamente aos homens porque a gente tem
uma comunidade que é bastante machista. Se você faz essa pergunta
pra um homem que não é homossexual é como se fosse uma ofensa.
114
M7 - Então, com certeza existe o temor do preconceito e quando a
gente aborda sexualidade, é um termo complexo pra população em
geral, e quando a gente suspeita que é algum homossexual ou lésbica,
a gente vê que tem um certo constrangimento acerca sobre a
sexualidade...
M11 -... até porque é uma coisa da sociedade brasileira né não se fala
desse tema nas escolas, nas igrejas menos ainda, mas na sociedade em
geral não se fala desse tema... ainda separa a humanidade em
masculino, feminino e mais nada só isso e parece que é pecado é tabu,
não se fala é segredo se o filho tem alguma tendência homossexual...
115
determinantes de saúde, onde a ficha do E-SUS5 possui um espaço de identificação caso
estas pessoas queiram declarar sua orientação sexual e identidade de gênero, e os
profissionais simplesmente se calam, silenciam, se constrangem, tem medo, receio de
abordar, prejudica todo o planejamento de saúde para essa população.
As conseqüências desse silêncio vão além dos problemas na relação profissional-
paciente, eles impactam a geração de dados sobre a saúde da população LGBT, na medida
em que a orientação marcada na ficha é a da aparência ou a do registro civil, impedindo
que se tenha uma estimativa mais precisa do tamanho da população LGBT que procura o
serviço e dos indicadores de situação de saúde e assim, em efeito cascata alcançam todas as
unidades e todos os territórios.
Mesmo que a classificação da sigla LGBT expresse a diversidade sexual, por
diversas determinações sócias históricas e pela organização do movimento na conquista de
direitos e cidadania, conforme discutido no capítulo 4.5 desta tese, o que parece impreciso
na compreensão dos agentes de saúde nesta amostra é o entendimento de orientação sexual,
identidade de gênero, e sexo. Ao se omitir, ter medo, receio e constrangimento de falar
sobre "sexualidade" do usuário, aqui lógico não a de qualquer usuário, mas este inserido na
população LGBT, o profissional pode estar negando a este sujeito a afirmação de sua
identidade, que inclui sim a sua sexualidade, mas também aspectos psicológicos e sociais
imprescindíveis no entendimento do humano, os quais nortearam e coordenaram os
cuidados integrais e equânimes a esta população.
Vimos com Foucault como estatuto de poder sobre os corpos e suas manifestações
sexuais foi instaurado nos diversos dispositivos que ditavam a verdade sobre o sujeito. O
controle das enunciações funcionava através da economia restritiva, dos locais onde era
permitido falar das sexualidades, a exemplo dos confessionários religiosos e das ciências
sexuais, ou proibido a exemplo das relações entre pais e filho e dos educadores. O controle
e a disciplina sobre o sexo, os lugares onde pode ser enunciado ou calado, parece se
perpetuar em nosso século. Para M11 "é uma coisa da sociedade brasileira né não se fala
desse tema nas escolas, nas igrejas menos ainda, mas na sociedade em geral não se fala
desse tema". O cenário de retrocesso que o nosso país vive, a exemplo da tentativa de
5
"Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica -registro das informações em saúde
de forma individualizada, permitindo o acompanhamento do histórico de atendimentos de cada usuário,
assim como da produção de cada profissional da Atenção Básica. Outro ponto importante é a integração dos
diversos sistemas de informação oficiais existentes na Atenção Básica, reduzindo a necessidade de registrar
informações similares em mais de um instrumento (fichas/sistemas), o que otimiza o trabalho dos
profissionais e o uso da informação para gestão e qualificação do cuidado em saúde."
116
implantar a "cura gay" e a rejeição no âmbito federal do Caderno Escola sem Homofobia,
conhecido como "kit gay", potencializa o silêncio e o tabu do tema na nossa sociedade.
E2 - Eu acredito que não, porque eles são pessoas normais igual a nós,
né… eu não acho que tem que fazer um grupo separado pra essas
pessoas, até porque se existe já restrição muitas vezes deles, né, de
procurar o serviço, né, por algum motivo, se fizer um grupo separado
fica uma coisa como se fosse discriminação.
117
que começar a mostrar que "oh gente, nós vamos fazer política pra
mostrar que eles são iguais" e parar de ter coisa assim direcionada pra
gay, direcionada para isso, então você está dizendo que eles são
diferentes e que a gente tem que trata-los como diferente.
E18 -... eu sei que é um paciente ou usuário como outro qualquer, não
tem nenhuma diferença no nosso olhar, na verdade se ele vier
procurar, qualquer um desses vier procurar eu vou atender como eu
atendo qualquer outro público....
M 8 - Porque aqui não são diferentes, são seres humanos iguais, com
as mesmas características. Não deve haver um centro de atenção
diferenciado para esse tipo de paciente, e o médico de família deve
saber medicá-lo porque a sua especialidade atende todas as pessoas
sem diferença. Eu acho que seria muito ruim se você decide separá-lo
e tratá-lo como outro tipo de pessoa, para mim não.
M21 - Porque são pacientes iguais e a gente tem que atender todos do
mesmo jeito
Os discursos deixam claro, que não se encontra bem compreendidos por esses
profissionais, como os princípios de Universalidade, Igualdade e Equidade se articulam no
SUS. A Universalidade é um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde
(SUS) e define que todos os cidadãos brasileiros, sem qualquer tipo de discriminação, têm
direito ao acesso igualitário às ações e serviços de saúde, conforme determinado no artigo
196 da Constituição de 1988 (Brasil, 2005).
A igualdade, portanto, articula-se com a Universalidade, em sua dimensão de saúde
enquanto direito humano fundamental, a partir da qual todos são iguais sem distinção de
raça, sexo, religião. A igualdade fundamenta, portanto, o acesso universal 6 . Segundo
6
Acesso aqui entendido na complexidade e multiplicidade do conceito, indo desde a compressão do
próprio termo acesso, enquanto utilização oportuna e adequada de serviços de saúde com o fim de chegar a
118
Matta192, é a universalidade que organiza e dá sentido aos demais princípios e diretrizes do
SUS com o propósito de garantir o direito à saúde de forma descentralizada e integral. O
princípio da igualdade aparece na lei orgânica da saúde 8.080/90 como “igualdade de
assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”. É possível notar
que alguns profissionais parecem compreender ações específicas para determinados
grupos, como um privilégio que fere a noção de igualdade. Isso fica bastante claro, por
exemplo, na fala de E1, quando diz que um espaço de atendimento para transgêneros se
constituiria uma discriminação que nega a igualdade.
É interessante notar que o termo equidade não aparece de forma explícita nem na
Constituição Federal nem na Lei Orgânica da Saúde 8080/90. Scorel (2009)193 afirma que
o princípio da equidade vai surgir no bojo das lutas pelos direitos das minorias, e, portanto,
só mais tarde seria incorporado pela reforma sanitária brasileira. Para ela o conceito de
equidade incorpora a noção de justiça à distribuição igualitária, na medida em que permite
associar igualdade e diferença nos espaços públicos. Trata-se, em última análise, de
reconhecer que os seres humanos são iguais em direitos, mas desiguais em condições
concretas de vida e necessidades.
Assim sendo, é preciso também distinguir as diferenças injustas, indesejáveis,
desnecessárias e evitáveis. No mesmo sentido Sposati (1999)194, também citado por Scorel,
dirá: “a noção de igualdade só se completa se compartida à noção de eqüidade. Não basta
um padrão universal se este não comportar o direito à diferença" (p 128). Lionço3 contribui
com esta perspectiva, e pontua a necessidade de ações focalizadas para grupos com
desigualdades históricas:
melhores resultados na própria saúde e acessibilidade, como os meios que fazem possível o contato com os
serviços de saúde. (Starfield, 2004)
119
Matta (2011)195 define equidade exatamente a partir de sua distinção da igualdade:
...o princípio da equidade não pressupõe a noção de igualdade, mas significa,
sim, tratar desigualmente o desigual, atentando para as necessidades coletivas e
individuais e procurando investir onde a iniquidade é maior. Isto implicaria
reconhecer a pluralidade e diversidade da condição humana em suas
necessidades e em suas potencialidades (p.249)
Travassos196 acrescenta que a equidade não pode ser avaliada apenas com relação
ao acesso, alocação de recursos e utilização de serviços, mas também considerando as
desigualdades das condições de vida, que colocariam as pessoas de maneira diferente a
fatores determinantes na produção de saúde e doenças.
Lionço e Costa197, discutindo a questão da democracia e participação social como
estratégia para equidade em saúde, levantam pontos críticos quanto a incorporação deste
último apenas como “conjunto de intenções” sem haver engajamento nem proposições
concretas do sentido de equidade na construção de políticas publicas.
O que deve orientar o sentido de equidade para as autoras é justamente a
participação social, a escuta dos segmentos sociais que foram alijados do acesso ao
cuidado integral e universal a saúde durante décadas. Citando Nogueira (2000) chamam a
atenção para os desvios de noção de equidade a partir da década de 90 onde as condições
de desigualdades sociais foram substituídas pela demanda de direitos iguais, passando
assim "de uma lógica discursiva que privilegiava a negatividade de uma condição, para
outra lógica que passa a enunciar a positividade dos direitos.”(p.50)
Esta lógica distorcida parece estar presente nas subjetividades dos profissionais
quando da persistência do discurso anunciando que, se todos são iguais no direito merecem
tratamentos iguais, excluindo desta noção positiva de direitos, justamente o que lhe é mais
caro, o reconhecimento das vulnerabilidades e desigualdades históricas que marcam
indivíduos no processo saúde/doença.
Para as autoras esta mudança de perspectiva teve como consequência certo
abandono das especificidades de determinados segmentos sociais a favor de uma visão
globalizada de direitos e na análise do Plano Pluri Anual/PPA 2004-2007 na promoção de
equidade dizem:
120
Neste sentido tanto o PPA quanto a Política Nacional de Saúde Integral da
população LGBT reconhecem a discriminação de determinados segmentos população
como aspecto crucial para ser combatido e considerado no atendimento integral e
equânime a saúde da população.
121
termos políticos, essa estruturação apóia e é apoiada pelo discurso dos
profissionais de saúde que essa diferença não existe. Com isso, a concepção de
igualdade permite que o serviço se sustente da forma como está, pois,
aparentemente, ele está distante de preconceitos e discriminações. (p. 42)
Por outro lado, algumas afirmações foram além desta confusão conceitual entre
igualdade, equidade e universalidade e vieram acompanhadas de outras noções que
reafirmam a marcas estigmatizadoras, tal como o depoimento de M3.
M3 - porque o serviço é pra todos né, é universal aqui não tem essa
questão de “ah porque é mendigo ou porque é alcoolista ou é usuário
de droga ou é... mora numa situação de alto risco ou é LGBT".
123
determinantes sociais de saúde e a compreensão do sujeito em sua integralidade não são
considerados.
E 7 - Tem usuário que não vem em consulta clínica talvez ele tenha
vergonha ainda né, de como a população aqui dentro vai reagir, os
outros usuários... então não é frequente a gente ver pessoas desse
grupo dentro da unidade no dia a dia, entendeu?!
E22 - Assim, eu acredito que seja uma população que não tem, não
compareça muito a unidade, por uma questão deles mesmo de não se
expor
M18 - Olha, eles não são muito afeitos a vir ao posto, pelo menos da
minha área. Mas é uma rejeição deles mesmos, e não sei bem por
que....
125
identidade real diante do profissional de saúde. De acordo com a autora esta forma de agir
será prejudicial tanto no combate a homofobia institucional, quanto na manutenção
equivocada das "sexualidades desviantes":
E 17 - … não sei, não sei bem... como que coloco isso, mas a questão
mesmo do preconceito… os meus eu nem posso dizer muita coisa,
mas existe preconceito por parte de muitos em relação a isso
M7 - Eu acho que sim, tem a ver com isso e acho que a população
homossexual tem receio de se expor, tem vergonha, tem medo de
sofrer por preconceito, vergonha digo, dessa… é triste né, preconceito
é muito doloroso
M17 - pacientes que muitas vezes tem vergonha, que não gostam...
por achar que vá haver algum tipo de preconceito né?
Aqui é interessante também retomar a definição dos três tipos de lugares sociais,
segundo Goffman35, destinados aos indivíduos que possuem um atributo diferencial
estigmatizado. Pela análise dos discursos colhidos, as UBS, podem parecer a alguns
usuários LGBT como lugares do primeiro tipo de Goffman, que são inacessíveis, onde há
proibições claras e, ao querer frequentá-lo, “o intruso busca um disfarce”, um tipo de
126
“cooperação tácita para evitá-la”. Esse disfarce surge nos discursos dos profissionais, "o
silêncio dos pacientes" em torno de sua condição, o fato de para alguns, eles não gostarem
de falar sobre suas condições ou as estratégias em fazer de conta que estão indo para uma
consulta de rotina, quando na verdade querem sorologias para IST.
Entretanto, quanto ao tipo de lugar social, o conjunto de discursos, sobretudo
considerando aqueles tipicamente patologizantes, ou os que assumem o preconceito
existente, como influenciando ou não o atendimento, confere às UBS, como já esperado,
uma natureza de espaço do segundo tipo, caracterizado por Goffman como lugares
públicos nos quais os estigmatizados são tratados cuidadosamente, onde parece haver uma
atmosfera de proteção, como se não houvesse uma desqualificação moral, que na verdade
existe com força e perenidade.
Todos eles integram a engrenagem que mantém afastada a população LGBT dos
serviços de saúde. Os constrangimentos da população LGBT operado pelos serviços de
saúde parece estar ligados ao desejo de não receber/atender que se apresenta numa
generalização de demandas, e no argumento do desconhecimento.
O profissional de saúde parece desconhecer essa instância de dominação que opera
e desloca para o outro a responsabilidade da ausência no serviço. Nesta inter-relação entre
o especialista e o sujeito vulnerável demandante é historicamente lógico perceber onde se
encontra o poder, certamente não do lado de quem procura ajuda para falar de suas
necessidades, mas do lado de quem escuta, interroga e supostamente ignora como nos diz
Foucault10.
Foi possível, entretanto, encontrar profissionais que parecem compreender a
necessidade de alguns serviços especializados, mas nos quais essa compreensão não se
estenda à necessidade de que a própria unidade de saúde venha a se tornar um lugar de
acolhimento livre de preconceitos.
E15 - Por exemplo, eu acho que deveria como se fosse, como a gente
tem o hospital da mulher, um ponto, porque a gente tem hoje a única
demanda assim que a gente vê são CTAs né, que é o centro de
testamento que você faz os testes, o único lugar que eu vejo ele sendo
acolhidos é aí...
128
busca moldá-lo a padrões universalizantes.
129
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
130
No entanto além das marcas identitárias "deterioradas" era necessário também a
compreensão das vulnerabilidades históricas acometidas a esta população. É assim que
com Parker compreendemos o papel fundamental do estigma também enquanto
determinante da desigualdade social, se constituindo como elemento de poder e
dominação, onde de forma essencialmente discriminatória, determinados grupos são
excluídos ou valorizados, envolvendo o processo de rotulagem e estereotipagem,
desencadeado por diversos mecanismos.
Esses referenciais foram centrais no presente trabalho no sentido de que
constituíram o pano de fundo da interpretação dos resultados da investigação discursiva
que se propunha a cumprir os objetivos propostos. No que se refere à percepção dos
profissionais de saúde sobre diversidade sexual, o que pudemos constatar foi que passadas
quatro décadas da análise de Foucault e de outros tantos estudos teóricos posteriores sobre
a ordem compulsória da heteronormatividade e seus impactos na saúde, a força da
Scientias Sexualis guiada pelo modelo biomédico ainda persiste nas subjetividades dos
profissionais a cerca de sua visão sobre a saúde da população LGBT.
Quanto ao impacto dessa percepção biomédica da diversidade sobre o
reconhecimento das demandas, ficou evidente que quando pessoas lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais procuram atenção nas unidades básicas de saúde são
vistas quase que exclusivamente pela perspectiva das patologias relacionadas à sua
sexualidade. A resposta a demanda do principal problema de saúde que acomete esta
população, foi massiva e categórica: IST/AIDS, sendo que alguns profissionais afirmaram
que só é possível compreender esta população através do enfoque nas doenças sexualmente
transmissíveis, mesmo que algum interdito também disciplinar ao discurso possa ter
operado para que não tenham surgido discursos afirmando que a própria diversidade sexual
seja uma doença.
Outra evidência do poder das Scientias Sexualis no subjetivo dos atores
entrevistados evidencia-se pela quase invariável definição desta população como "grupo de
risco", em grande parte pela associação da condição LGBT com outros comportamentos
moralmente condenáveis, tais como alcoolismo, dependências químicas e promiscuidade
sexual. No mesmo sentido, encontra-se a tendência à generalização da vinculação da
condição LGBT com transtornos mentais. Como já discutido, ainda que existam estudos
demonstrando que os sofrimentos decorrentes da discriminação contribuem para esse tipo
de transtornos na população LGBT, a transposição de dados de natureza coletiva para uma
131
relação intersubjetiva em torno do cuidado, constitui um processo de estereotipagem típico
da estigmatização.
Com Goffman e Parker, pudemos compreender também como o foco nas doenças
transmissíveis, nos transtornos mentais, nos comportamentos "condenáveis", recai
justamente nos atributos depreciativos desta população, como marcas de suas "identidades
sociais deterioradas", noções que inviabilizam o olhar sobre um ser humano integral com
suas características biopsicossociais, suas queixas, sua humanidade e suas subjetividades.
Ainda sobre a compreensão das demandas, alguns conteúdos categorizados
chamaram especialmente a atenção. Entre eles, destacamos as propostas de
desenvolvimento de locais próprios para atender a população LGBT, mas não de forma
relacionada a alguma necessidade específica, como é o caso dos ambulatórios de
transexualidade, e sim como forma de tirar da unidade básica o atendimento a essa
população. Na mesma linha encontra-se a eleição dos Centros de DST/AIDS como lugar
ideal para o cuidado a esses pacientes.
Outro efeito detectado sobre a compreensão das demandas foram as inferências
que demonstraram que muitos profissionais põem sobre os pacientes a responsabilidade
pela baixa procura às UBS, tomando as situações de ocultação da condição, medo e
vergonha como próprios à condição LGBT e não como conseqüência do sexismo
relacional e institucional. Dados que ratificam a existência do estigma, preconceito e
discriminação, sofridos por esta população nos lugares onde deveria ser preconizado o
atendimento acolhedor, equânime, integral e humanizado.
Merece também destaque na compreensão das demandas, o baixo registro da
orientação sexual nos prontuários de atendimento, e mesmo na condução das consultas,
relatados por alguns profissionais, que referiram grande dificuldade em abordar a
sexualidade do paciente. Isso nos leva a refletir com Foucault sobre o paradoxo do "fazer
falar" versus a interdição da fala. Ou seja, quando delimitado por um ambiente próprio à
Scientia Sexualis, os profissionais caracterizam morbidades, identificam transtornos,
relacionam comportamentos a riscos, entretanto, quando estabelecido propriamente uma
relação interpessoal, estabelece-se uma espécie de tabu que interdita que silencia e os
próprios profissionais reconhecem as origens religiosas e morais dessa interdição. A
dificuldade dos profissionais em abordar a orientação sexual dos usuários demonstrou que
o tabu de falar de sexualidade ainda em nossos tempos e outras formações subjetivas que
abrange preconceito e religiosidade, obstaculiza o entendimento do profissional quanto à
132
orientação sexual e identidade de gênero como conceitos incorporados na análise da
determinação social da saúde.
No entanto, encontramos vozes dissonantes nestes discursos, classificada aqui em
categoria singular, onde é reconhecido o quanto é limitante e prejudicial ao atendimento
integral a estas pessoas focar a atenção a sua saúde apenas nas IST/AIDS, reconhecendo
que as razões dos possíveis transtornos emocionais são de natureza multifatorial, que
envolve violência, preconceito, rejeição familiar, homofobia internalizada, e que a baixa
procura desta população aos postos de saúde é de responsabilidade da própria estrutura
organizacional dos espaços de saúde influenciado pelo biopoder, pela heteronormatividade
e pela homofobia institucionalizada. Isso nos dá esperanças de que seja possível encontrar
também nas unidades de saúde, profissionais que se encontram mais sensibilizados e
informados sobre a questão, o que pode vir a transformá-los em multiplicadores de
processos formadores.
Finalmente, em relação ao terceiro objetivo específico definido, buscávamos
compreender a percepção dos profissionais quanto à sua formação e preparo para o
atendimento à população LGBT, e consequentemente o efeito das diretrizes da
PNSIPLGBT nas práticas cotidianas de atenção. O resultado apresentado é bem
desanimador, revelando diversas "ausências" de capacitações, de formação acadêmica e de
entendimento das especificidades das demandas. O desconhecimento da política pela quase
totalidade dos profissionais entrevistados revela-se também como um diagnóstico da baixa
implementação na ponta do sistema das ações previstas na política, valendo ressaltar que a
coleta de dados foi realizada entre 2014 e 2016, ou seja, entre 3 e 5 anos após sua
publicação.
Apesar de uma visão maior sobre o Estado da Arte da implantação da política no
Brasil, só será possível com a conclusão do estudo multicêntrico maior ao qual a presente
tese está vinculada, foi possível notar que nas unidades dos municípios e regiões aqui
estudados não há qualquer ação específica, nem qualquer tipo de capacitação profissional.
A quase totalidade dos profissionais entrevistados desconhecia a política e jamais
receberam qualquer tipo de formação específica.
O presente estudo apresenta alguns limites que merecem menção. Primeiro, pelo
fato de que foi realizado em poucas cidades de apenas duas regiões do país, e será
necessário ampliá-lo a um número maior de cidades e regiões, para que se possa ter um
panorama mais claro sobre como os aspectos levantados neste estudo variam nos diversos
133
contextos e no SUS como um todo. Segundo, porque estando o estudo vinculado a uma
pesquisa multicêntrica direcionada a investigar o acesso e qualidade dos serviços de saúde
a população LGBT no SUS, o roteiro de entrevista semi-estruturada precisava responder
também outras demandas da pesquisa, o que não tornou possível operacionalizar o
aprofundamento de alguns aspectos.
Entretanto, acredito que os resultados aqui obtidos, demonstrando o quanto o
estigma persiste e opera “encarnados” nas subjetividades dos indivíduos conforme
contextos e vivencias socio-históricas diversas, além de responderem aos meus objetivos,
poderão contribuir no planejamento de estratégias de formação profissional. Dessa forma,
como perspectiva futura, será preciso, além de avançar no diagnóstico do problema do
acesso e da qualidade de atenção à saúde da população LGBT, investir urgentemente em
uma formação profissional que ultrapasse a dimensão puramente normativa e cognitiva do
conhecimento de direitos ou de diretrizes de políticas. A meu ver essas abordagens são
incapazes de produzir a transformação dos aspectos encarnados nas subjetividades os
quais são as responsáveis pelas condutas discriminatórias, conscientes ou não.
Retomo então ao principio dessa tese, quando em minha apresentação descrevi o
processo motivacional que levou ao recorte do meu objeto, reafirmando o sentido de
alteridade que permeava minhas ações tanto na enfermagem, como nas artes cênicas. Esse
olhar do outro, na completude de sua dignidade. E, assim deposito aqui minha crença na
arte em geral e mais especificamente no teatro como ferramentas revolucionárias de
sensibilização das pessoas no respeito à diversidade, considerando-os como instrumentos
pedagógicos na perspectiva da arte-educação e, portanto, como base para a formação
continuada de profissionais.
Sendo corpo e a voz ferramentas indispensáveis ao fazer teatral, é preciso que essas
estratégias tomem o corpo como terreno fértil, criativo, território de liberdade, mas o
reconheça como instrumento de controle sócio-politico imposto pelo biopoder, sendo
importante mobiliza-lo permitindo uma abertura impar para alteridade, para conhecer-se e
reconhercer-se no outro, no eu e na vida... e assim produzir processos formativos que
mobilizem estigmas, preconceitos e padrões normativos responsáveis pela incompreensão
da legitimidade de todas as formas de viver e amar no universo humano.
Ao tempo em que a presente tese estava sendo finalizado, o Brasil enfrentava uma
das maiores ameaças à sua jovem democracia e aos direitos conquistados com tanto suor,
sangue e lágrimas, através dos últimos 30 anos. A possibilidade de vitória de uma
134
candidatura com perfil claramente fascista, calcada no obscurantismo, na violência e na
incitação ao ódio contra o diferente, aponta uma perspectiva sombria, onde o próprio SUS
torna-se alvo de extermínio, e a homofobia poderá vir a ser legitimada, normativamente,
pelo próprio Estado.
Mas estou certa, de que após algum tempo, quando eu reler a conclusão desse
trabalho, tudo não terá passado de uma ameaça que serviu para nos alertar. Alertar esta
tribo humana, que sabe enxergar beleza na diversidade, que é capaz de amar na diferença, e
que põe seus esforços na promoção da igualdade de direitos e na equidade, o quanto é
imperioso que iniciemos uma nova experiência de formação profissional e de educação
popular. Assim será! Oxalá! Epa Babá!
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ANEXOS
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
Você está sendo convidado(a) a participar da pesquisa intitulada: Análise do
acesso e da qualidade da atenção Integral à saúde da população LGBT no SUS, a ser
realizada pelo Núcleo de Estudos em Saúde Pública/NESP/CEAM/UnB, em rede de
parceiros com a FIOCRUZ/PE, as Universidades Federais da Paraíba, Piauí, Uberlândia,
Universidade de São Paulo, Universidades Estaduais de Maringá e do Rio de Janeiro,
financiada pelo Departamento de Apoio à Gestão Participativa (DAGEP) da Secretaria de
Gestão estratégica e Participativa (SGEP) do Ministério da Saúde (MS).
O objetivo da pesquisa é analisar o acesso e a qualidade da atenção integral à
saúde da população LGBT no Sistema Único de Saúde (SUS).
Você receberá todos os esclarecimentos necessários antes e no decorrer deste
procedimento e lhe asseguramos que seu nome não aparecerá sendo mantido o mais
rigoroso sigilo através da omissão total de quaisquer informações que permitam identificá-
lo(a).
A sua participação será através de uma entrevista semiestruturada que será
gravada e posteriormente transcrita. O procedimento tem um tempo estimado para sua
realização previsto em 30 minutos.
Informamos que você pode se recusar a responder (ou participar de qualquer
procedimento) qualquer questão que lhe traga constrangimento, podendo desistir em
qualquer momento, sem nenhum prejuízo para você. Sua participação é voluntária, isto é,
não há pagamento por sua colaboração.
Os resultados da pesquisa serão divulgados no Ministério da Saúde (MS) e na
Universidade de Brasília (UnB) e demais instituições parceiras, podendo ser publicados
posteriormente. Os dados e materiais utilizados ficarão sobre a guarda da pesquisadora
responsável.
Se você tiver qualquer dúvida em relação a esta pesquisa, por favor entrar em
contato com o NESP/UnB em horário comercial, no período de 8:00 às 12:00 e de 14:00 às
18:00, ou ainda com a Profa. Dra. Maria Fátima de Sousa, na Universidade de Brasília – no
Núcleo de Estudos em Saúde Pública – NESP/UnB, pelo telefone (61) 3340-6863, no
horário das 8 às 12 e das 14 às 18h.
________________________________
_______________________________
Nome do participante / assinatura Nome pesquisador
/ assinatura
PERGUNTAS:
1A. Em sua opinião, qual o papel da USF na rede de atenção à saúde do seu município?
2A.A nossa pesquisa trabalha com dois conceitos: acesso e qualidade. Em sua opinião,
o que seria o acesso? E a qualidade?
3A. Você acredita que existam grupos populacionais da área de abrangência da USF que
você atua que tenham dificuldade para acesso a esse serviço de saúde?
3A.1. Se sim: Quais são esses grupos e quais dificuldades eles encontram?
3A.2. Se não: Por quê?
Bloco B: A Unidade de Saúde da Família e o atendimento à população LGBT
(acesso)
1B. Existe na área de abrangência da USF em que você atua, algum(a) paciente da
população LGBT?
2B. Como você soube que ele(a) era LGBT? [Interrogar sucintamente sobre histórias
da(s) experiência(as) com outros profissionais (da equipe ou não)].
3B. Em algum momento de sua atuação nessa USF, você atendeu a alguém da
população LGBT?
Se sim:
3B.1. Me conte como foram(oi) esse(s) atendimento(s).
3B.2. Você sentiu que estava preparado(a) para esse atendimento?
3B.3. Quais foram as facilidades encontradas por você ao conduzir esse atendimento?
3B.4. Quais foram as dificuldades encontradas por você ao conduzir esse atendimento?
3B.5. Após o atendimento deste (a) houve vinculação desse (a) paciente à USF? Se sim,
como você percebeu que esse vínculo foi estabelecido?
3B.6 Quais são as principais demandas de saúde da população LGBT em sua equipe?
Se não:
3B.7 Por que você acha que nenhum paciente da população LGBT procurou a USF?
3B.8 Você considera que esteja preparado para atender a pacientes dessa população?
Por quê?
4B. Quais facilidades você acredita que encontraria ao conduzir esse(s) atendimento(s)?
5B. Quais dificuldades você acredita que encontraria ao conduzir esse(s)
atendimento(s)?
6B. Em sua opinião, quais as condições de saúde da população de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais atualmente?
7B. Em sua opinião, quais doenças e/ou agravos mais acometem essa população
atualmente? Por quê?
8B. Como estão organizadas as ações e serviços de saúde dirigidos à população LGBT
na rede de atenção à saúde na cidade do Recife?
9B. Se o(a) entrevistado(a) considerar que não há as ações e serviços de saúde dirigidos
à população LGBT, interrogar como ele(a) acredita que esses serviços de saúde devem
ser dirigidos na USF e na rede de atenção à saúde do município.
10B. O que você acredita que deva ser de responsabilidade da USF no cuidado em
saúde a essa população?
11B. Como você percebe a relação dos(as) ACS de sua equipe com a população LGBT?
12B. Os Agentes Comunitários de Saúde trazem para a Unidade Básica demandas
vindas da população LGBT?
12B.1. Se sim, quais?
12B.2. Se não, por que você acredita que eles não trazem essas demandas?
13B. Em sua opinião, os(as) ACS estão preparados(as) para identificar/atender às
demandas dessa população? Por quê?
14B. Em sua opinião, os(as) demais membros da equipe estão preparados(as) para
atender às demandas dessa população? Por quê?
6D. Na sua opinião deve existir uma política específica de saúde integral para a
população LGBT?
7D. Em algum momento de sua formação você recebeu capacitação/informação sobre a
atenção em saúde para a população LGBT?
8D. Você participou de alguma capacitação sobre saúde da população LGBT pela
Secretaria Municipal de Saúde? Quando?
Bloco E: Outros
1E. Existe algo relacionado ao tema dessa pesquisa/entrevista que eu não tenha
perguntado e que você gostaria de falar a respeito?
E1 - tem o núcleo de DST/AIDS que trabalha isso de maneira geral. Igual estou te
falando, a gente não tem a secretaria específica para essa população, porque eu
também acho que não justifica, eu acho que são todos homens e mulheres
independente, assim então eu acho que a prioridade é DST e AIDS...
E2 - Agora os jovens, né, que são… nesse grupo ai que você tá falando, muitas vezes
eles procuram a vigilância epidemiológica por alguma questão sexual mesmo, com
algum tipo de doença que eles adquiriram, então é uma porta que é mais aberta é
essa pra eles.
E2 - ...a parte física eu acredito que tá saudável, agora pode ser que a parte
psicológica tenha que ser trabalhada algumas vezes, porque as vezes são pessoas
que sofrem vários tipos de discriminação, de violência né, então essa parte a gente
não trabalha com eles que é a parte da saúde mental deles.
E3 - ...como é que trataríamos isso, porque se uma pessoa chega ao ponto de querer
marcar uma prevenção, então ela realmente já está com o psicológico dela um
problema né então vai ser eu aqui dentro que darei conta então dessa referencia pra
essa população que não tem?
E5 - Na faculdade eu fiz há onze anos atrás não sei se hoje é assim, mas tinha uma
diferença no grupo quando eles falavam de... Doenças sexualmente transmissíveis
colocavam gays né... Como assim homossexuais como grupos de risco...
E7 - A gente tem assim... organizados não, a gente tem... chega alguém (LGBT) , a
gente vê as demandas, vê o que é CAPS, o que é CRASE, o que é CAAIDS né, que é
o antigo DST AIDS né, onde se concentra toda essa questão de sexualidade, de HIV,
de tratamento, tudo é pelo CAAIDS, e a gente manda pra lá...
E9 - Assim, não tem nada diferente do atendimento que a gente faz com a população
em geral né... uma busca na vigilância epidemiológica, alguma queixa de... que seja
relacionada a DST, você faz o aconselhamento normalmente...
E9 - Eu acho que deve ter alguma política né, voltada pra eles, da questão da
integralidade pra não tá focando também só na questão da DST, porque se, é... a
gente acaba associando, né?
E10 - Demandas de saúde, como eu atendo uma área bem especifica então assim o
que eu vejo muito neles é a questão da DST... Mas o que eu vejo muito é a questão
do DST, a questão da prevenção, eles são muito descuidados, não usa preservativo,
tem mais de um parceiro né, e nem é porque são profissionais do sexo não...
E10 - Eu faço pronto socorro, então talvez seja mais importante...é quem vai morrer
muito, tem muito homossexual. Por que se expõe mais a risco...
E11 - Eu acredito que seria a questão das doenças sexualmente transmissíveis seria
um ponto para tá reforçando também, talvez entraria a questão também de álcool e
drogas que eu acho que poderia também acredito que tá relacionado dentro desse
grupo ai...
E11 - geralmente é isso que a gente colocou a questão da saúde sexual e reprodutiva
no caso dessa população, que o básico é isso mesmo, né... mas o principal mesmo é
saúde sexual.
E 14 - Eles procuram não só da minha área... Em relação aos testes rápidos de HIV e
sífilis ou mesmo teste de sangue... O que a gente vê é... As vezes é mais por conta da
parte sexual, tem a preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis, então,
as vezes, procuram nesse sentido... quando há procura na livre demanda é mais nessa
preocupação é mais nessa preocupação de ter esse controle de uma doença
infectocontagiosa.
E14 - A gente vincula muito, como eu falei, com a questão de doenças sexualmente
transmissíveis ou infectocontagiosas que estão mais ligadas com a vigilância
epidemiológica...
E17 - eu acho que, pra eles eu acredito que eles estejam bem, porque não procuram a
unidade. Procuram aqui pra fazer o teste rápido, é a demanda que a gente tem pra
bater... As doenças ou agravos mais acometem a essa população atualmente... IST
E17 - talvez não saiba bem como abordar essa população visto que... a maior procura
é voltada pra parte de DST, teste rápido pra HIV e demandas em cima de IST. Difícil
mente procura aqui pra uma avaliação de rotina, fazer uma consulta mesmo.
E18 - Eu acho que as DST, as doenças sexualmente transmissíveis né... Por questão
mesmo da falta de prevenção, acho que eles são mais vulneráveis apesar de eles
terem o acesso os meios de evitar como a camisinha né, os métodos de barreira. Não
sei se por conta de drogas ou alguma coisa assim que tire um pouco a questão do
bom senso na hora de ter a relação, eu acho que eles ainda são mais acometidos por
isso...
E19 - olha, eu acho que as hepatites, ne? hepatite, também o HIV ne, pode ta
presente ne, que desde quando você não se protege.. inclusive sifilis tem aumentado,
ne, não sei nessa populacao, mas como sifilis tem aumentado de forma geral, pode
ser que também nessa população...então mais as questões das sorologias, ne, das
hepatites, ne, do HIV, da, é, da sifilis, HIV, das hepatites, eu acho que simda maneira
geral sao essas demandas... as ISTs...
E20 - Ah sim, da LGBT em si. São poucos os casos que chegam aqui, a maioria
deles vem mais justamente (...) essa questão, alguma doença sexualmente
transmissível, por exemplo, o último que veio aqui se eu não me engano veio com
uma ferida na boca, na minha avaliação eu achei que poderia ser herpes, passei...
entendeu? coisinhas pequenas assim. Nada muito grave. A saúde da população em
geral é ruim, mas a do público LGBT são pontuais... Principais agravos são as DST
M1 - A maioria das vezes eles solicitam muito sorologias. Vem para fazer exames de
rotina e perguntam se no meio disso tem como a gente solicitar sorologias de DST...
M2 - Assim diretamente não, a gente tem muita é... A preocupação com... Das
doenças sexualmente transmissíveis a gente faz acompanhamento...
M2 - Tudo, de precaução de uso de preservativo, não se expor né, não só pelas
doenças sexualmente transmissíveis também pelos riscos né, que eles correm eles ...
O uso de drogas o uso de bebida alcoólica as saídas noturnas né...
M2 - a gente preocupa com o uso de drogas e álcool, do tabaco né, então sempre essa
população tá envolvida também... então a gente tem a preocupação realmente na
doença da pessoa, mas não assim explicitamente nessa parte (LGBT)a gente só vai
ver isso mais eu acredito com os psicólogos né, você vai ver essa parte diferenciada,
mas o médico não, não é uma pessoa como um ser orgânico ...
M3 - porque o serviço é pra todos né, é universal aqui não tem essa questão de “ah
porque é mendigo ou porque é alcoolista ou é usuário de droga ou é... mora numa
situação de alto risco ou é LGBT”
M5 - da população, dos homens gays, é tem muito, tem muita infecção sexualmente
transmissível... o homem, homossexual, eu vejo ainda maisinfecção sexualmente
transmissível, tem a relação, a questão é biológica da região anal ser mais
vascularizada eu acho que tem a questão de que como muitas pessoas têm é
dificuldade pra procurar o serviço de saúde eu acho que por preconceito...eu acho
que as vezes ficam com várias infecções la e acabam uma levando a outro e levando
a outra e ai aquele grupo no final das contas todo mundo tem e ai no final das contas
todo mundo tem, é eu acho que tem essa questão, a gente ve homossexuais
com infecção sexualmente transmissível que chega aqui com quadro evolutivo mais
progressivo assim, por quê você esperou tanto pra vir aqui...
M5 - mas populacao trans eu acho que pensando assim né, no geral, quais são as
principais demandas é infecção sexualmente transmissível, reposição hormonal, é, é,
eu acho que essa questão de estarem todas profissionais do sexo...eu acho que a
pessoa pode escolher ser profissional do sexo mas assim é meio uma coisa fadada e
eu sinto que ela não não é ela em sua plenitudenao é ela que escolhe... os homens
gays é muita infeção sexualmente transmissíveltambém tem muita HIV aqui, a gente
tem muito HIV, muita sifilis, muita hepatite, muita coisa, então seria mais ou menos
isso
M7 - muitas vezes as pessoas atendem homossexual, foi sexta feira, ele chorou
muito, estava muito sofrido, sofria preconceito no ambiente do trabalho e ele sofria
por ser um cristão religioso, e tava vivendo um conflito em os princípios religiosos e
os princípios que ele adotou...
M7 - agora de modo geral pra principais demandas, tem a ver por exemplo com DST
e HIV, aqui na unidade, especifica, o que tô dizendo especifica...
M8 - mas tem que conhecer neles os fatores de risco para muitas doenças, entende?
Inclusive para o suicídio, que é um fator de risco. Nós devemos ver como um fator
de risco, não como uma doença e temos que fazer atividades especifica para eles. E
devemos fazer coisas para evitar que aconteça mais, a diversão sexual é livre,
democrática, então não temos que parar e estimular tão pouco...
M7 - agora de modo geral pra principais demandas, tem a ver, por exemplo, com
DST e HIV ,aqui na unidade, especifica, o que to dizendo especifica...
M9 - DST logo de cara, DST´s... Os agravos que mais acometem esta população... É
muito com relação à questão de saúde sexual e reprodutiva... eu vejo não outras, O
CEDAP eles recebem muito público da população LGBT...
M9 -Quando a gente tava lá falando de IST´s, sempre IST por que? porque sempre
vai acontecer já que a gente sabe que tem muita, muitas IST que estão relacionadas
às praticas né?
M10 - Bom realmente, esse tipo de pessoa tem que ter uma orientação realmente,
clara, porque pela estatística eles têm mais índice de doenças de transmissões
sexuais...
M11 -...era um homem, um gay homossexual masculino e daí ele precisava...só que
tinha esse tabu das doenças sexualmente transmissíveis e como eu ia atender ele aqui
então ele preferiu procurar a agente de saúde que ele já conhecia que tinha mais
liberdade praconversar e depois veio...e tinha dificuldade pra falar e em nenhum
momento durante a consulta ele disse sobre a orientação sexual nem nada, nem
detalhes sobre, precisava mesmo de acompanhamento psicológico.
M11 - ai eu fico imaginando e outras situações que ele tivesse algo, porque essa
pessoa ela é cem por cento saudável, sadia, bem esclarecida em outras razões né...a
sexualidade eu acho que ele ainda precisava de um pouquinho de apoio psicológico e
familiar também, mas eu imagino se digamos tivesse um cancro sifilítico, que é
alguma coisa mais notável teria sido mais difícil pra ele procurar ajuda.
M11 - mas a questão psicológica e a saúde mental ai sim a gente pode ver diferença
sim, a população LGBT por ser mais reprimida pelo conservadorismo tende um
pouco mais a depressão a tristeza a esse tipo de coisa né, e daí não tem estatísticas
que eu possa te falar tantos por cento um gráfico sobre isso...
M13 - é a parte que eu tenho dificuldade tudo é bombástico relacionado à sexo então
tudo relacionado à homossexualismo é mais bombástico, mas é os números da saúde
em geral no Brasil mostram esse o jovem homossexual a.... os múltiplos parceiros
levando a doenças venéreas, tem ainda tem. Houve no início da AIDS na década de
80 depois deu uma equilibrada e agora de novo as estatísticas estão falando, da nossa
vivência aqui confirma isso e as situações de ansiedade e depressão, claro eles ligam
emocionalmente estão sempre com mais conflitos né, os seus já naturais do conflito é
mente corpo né e depois ter que enfrentar a resistência social né, então isso está mais
nesse grupo...
M13 - o assunto da tuberculose que é mais dramático ainda tem, acontece isso.
geralmente associação de AIDS com tuberculose que é muito, potencialmente muito
grave, já tínhamos experiências disso aqui.
M14 - Seria as DST's... Quando você subentende que esse tipo de população poderia
vir a ter um comportamento de risco né, então seria HIV seria sífilis né, as doenças
que estaria relacionadas ao comportamento promiscuo... não diria a você de risco
mas o comportamento promiscuo que não seria a mesma coisa ne... Mas é o
comportamento de risco da pessoa que estaria abarcando o risco, você ta entendendo
o que quero dizer? ... tem o comportamento de risco, ter comportamento de risco é
ter vários parceiros sexuais, é não usar preservativo então o paciente vai ter aquelas
doenças ne vinculadas ao comportamento sexual de risco, ne que são as doenças
sexualmente transmissíveis...
M14 - Não no momento não, só aquela coisa que eu te falei que os pacientes
normalmente homossexuais quando chegam aqui na unidade eles na maioria eles
pedem muito exames sorológicos de HIV...
M14 - ...Uma coisa que eu tinha percebido em um comportamento era assim quando
eu via uma paciente assim... eu oferecia muito né, os exames... ai depois eu pensei ,
poxa será que essa associação certa ta fazendo isso? Será que to sendo queimada
referindo coisas daquele paciente? Então eu reduzi mais isso entendeu? De já chegar
e já..ó eu posso solicitar exame de sangue, sorologia eu já colocava assim né,
hemograma, sorologia ai eu vou ta solicitando pro senhor, ai eu falava eu já passava
assim né, era meio direcionada né, pro paciente, mas depois eu falei assim "não,
deixa o paciente né" se ele achar que quer fazer ele vai fazer, porque eu vou ter que
ficar me metendo né?! Ele sabe o que quer, nesse sentido ai. Ai reduzi mais isso, o
paciente chega, vê o que tem, escuta isso é um exame normal, o paciente traz a
demanda e eu oferece, ah tem que fazer sorologia exame de HIV ... e se outras coisas
também? Ai eu falei... eu estou me policiando mais nesse sentido.
M16 - Muitos transexuais e travestis muitas vezes vão trabalhar como profissional do
sexo e ai a exposição a doenças sexualmente transmissíveis a violência ela vai ser
ainda maior do que a violência do cotidiano da rua, por exemplo... eu vejo de forma
geral eu diria isso pra você assim as pessoas que estão mais vulneráveis a questões
de saúde mental do que a população em geral...
M16 - o que eu consigo enxergar a priori que poderia ser um problema de saúde mais
comum, seria o que eu te falei seria o sofrimento psíquico por preconceito,
discriminação né que a questão não é da opção não é da orientação, é da ocupação na
verdade né...então se a pessoa independente da orientação tem como ocupação o
trabalho do sexo ela vai esta exposta aos determinados riscos que pessoas de uma
forma geral
M16 - um adolescente que na verdade nunca veio aqui que é um paciente... mas avó
é acompanhada aqui com a gente sempre com atenção, sempre toma remédio sempre
muito triste etc e a situação que existe na verdade o filho dela é usuário de substancia
e não aceita que o neto é homossexual e esse pai não aceita e ai isso gera um conflito
familiar porque esse pai bate no adolescente agride verbalmente rola briga na família
e ai descompensa fica chateada e traz a demanda pra cá...
M17 - ...eles tem até uma condição de saúde boa, agora tem muitos casos de doenças
sexualmente transmissíveis, tem alguns casos também de prostituição que a gente
tem até uma paciente aqui que a gente acompanha, que já tem HIV, sífilis e
tuberculose...Demanda, é mais nessa questão que tem muitos casos de DST mesmo.
Boa parte com andamento por conta de DST's. Dessa população específica né... O de
violência também sexual também tem... porque é uma população que tem maior
risco de contrair DST's né? Tem uns casos de prostituição também, de violência
sexual, uso de drogas né...
E1 - E pra essas pessoas já é muito mais difícil procurar, porque muitos não falam
sobre a sua orientação. Escondem da família, escondem de várias pessoas e às vezes
chega aqui com alguma doença, às até mesmo sexualmente transmissível que é...Ás
vezes é até difícil ela(e) contar para você o que realmente aconteceu para você
procurar tratar o parceiro essas coisas, ou a parceira. Então assim, isso já para ele (a)
é difícil...
E2 -...eles mesmos tem essa dificuldade de se abrir e contar o que realmente está
acontecendo, o que aconteceu, então muitas vezes você tem que ir deduzindo e vai,
então é muito difícil...
E3 - Agora quanto a eles, do lado de lá, eu vejo um preconceito muito maior por
eles... com mais preconceito... mas eu vejo muito preconceito velado nelas, elas com
preconceito. Elas acham que todo mundo tem preconceito com elas...
Responsabilização da
população LGBT pela E3 - E é um pouco complicado porque elas são muito tímidas, apesar da gente tentar,
baixa procura as UBS/ eles são, alguns são muito difíceis acesso, elas não querem fazer um planejamento
Inferiorização dos familiar, elas não querem fazer um preventivo, né ? Eu achei por mais que eu
estigmatizados tentasse e tal, convidasse, abordar, elas ainda se sentem tímidas...
E4 - eu fiz em duas que a mulheres de quarenta e tantos anos que me falaram que
nunca foram ao ginecologista, que nunca fizeram um preventivo, é como se elas se
recusassem a tocar neste assunto, a lidar com isso, com esse problema de toda
mulher...que na mulher heterossexual ela não tem problema de falar...
E4 - eu acho que sim, eu acho (as condições de saúde) que é fragilizada... desses
obstáculos ou que elas mesmos se impõe ou que talvez encontraram...
E18 - Porque assim, é uma população também que é um pouco mais retraída, vamos
dizer assim. Se eles não querem compartilhar essa história com ninguém... :...por
isso que muitos também são mais retraídos e não conversam, preferem não conversar
com a gente diretamente...
M1 - mas eu acho que o atrativo para esse grupo da população, não tem, então acho
que eles ficam um pouco mais recuados em chegar, né.
M2 - e ai a gente tenta orientar, educar e no momento que a gente fala sério né ...a
gente tem que ter muito tempo pra conversar porque eu noto são pessoas mais
fechadas né... por medo né, de ser discriminada eu imagino que por isso
M3 - não tenho muitos pacientes LGBT não, não sei se é porque o paciente às vezes
fica envergonhado de procurar o serviço de saúde...
M4 - eu vejo aqui, por exemplo, na unidade nova, quando tem, principalmente o gay,
com relação ao pessoal que fica aguardando, às vezes fica um pouco constrangido
M7 - Eu acho que sim, tem a ver com isso e acho que a população homossexual tem
receio de se expor, tem vergonha, tem medo de sofrer por preconceito, vergonha
digo, dessa… é triste né, preconceito é muito doloroso
M11 - ele teve vergonha e vir no começo porque ele precisava essa pessoa né, que
era um homem, um gay homossexual masculino e daí ele precisava só que tinha esse
tabu das doenças sexualmente transmissíveis
M12 - Não. Porque se eu for olhar todos os agentes comunitários daqui eu acredito
que muitos ainda tem bastante preconceito, de não saber lidar , e não só o
preconceito, mas não saber como se portar. Por exemplo: às vezes tem até o respeito
pelo paciente, mas não consegue entender o que é um transexual, o que é um travesti,
o que é o gay, o que é a lésbica, o que é bissexual. Não conseguem fazer essa
diferença, não consegue ter esse entendimento. Mas respeita. Entendeu? Por
exemplo, se eu fosse falar das minhas agentes comunitárias seria esse. Elas
conseguem ter o respeito que o paciente merece, respeitando a diferença, mas sem
entender exatamente aquele paciente.
M12 - Eu acho que ainda existe preconceito, muito, nos atendimentos. Falta
entendimento dessas questões. A gente às vezes não sabe o que explorar em relação
à sexualidade. Por exemplo, eu mesmo não sei quando que eu vou me atentar à
questão da sexualidade do paciente, ou se é necessário que eu realmente durante a
consulta questione sobre a sexualidade dele. Entendeu?!
M15 - eles têm atendimento, os que chegam aqui têm um atendimento, mas assim
dificilmente eles abordam questões de sexualidade... na verdade, as pessoas já
chegam com a carapaça, com medo do preconceito e sempre direciona pra uma
queixa específica... , assim pro homem já é difícil procurar o serviço médico,
homossexual masculino pior ainda
M17 - pacientes que muitas vezes tem vergonha, que não gostam... por achar que vá
haver algum tipo de preconceito né?... , que eles sabem que existe preconceito né,
inclusive da população, e deles mesmos né, de terem vergonha de se assumir muitas
vezes.
M18 - E eles têm essa orientação de não ter muita facilidade de vir... Eu não sei se
é... Mas é uma rejeição deles mesmos, e não sei bem o que...
M18 - É... o que eu noto às vezes, que esse tipo de população quando se sente é...
estigmatizada reage com agressividade, entendeu? Então, talvez isso... não sei se
todos tem preparo para nesse momento da agressividade saber se controlar, né, e agir
de uma maneira amadurecida. Tem pessoas que também reagem àquela
agressividade, isso também afasta aquele paciente do posto.
E16 - Claro, a gente precisa reparar o que a gente tem feito cruel ao longo de todos
esses anos... Massacrando essa população, marginalizando ela dos guetos... E não lhe
dando espaço, porque essas pessoas elas podem, eu faço até a piada do estigma do
travesti, travesti só serve para ser prostituta ou cabeleireira né?... ser profissional do
sexo, mas se você for pensar por outro lado, o que a pessoa me disse né, é tão
fechado o preconceito é tão grande, que o único meio de trabalho, o único meio de
fazer alguma coisa é nesse domínio né... Único meio de sociabilidade, único lugar
que você é aceita, o lugar onde você tem um valor, por mais que esse valor seja
quantificado por dinheiro né, essa questão bem relação corpo e tudo, mas é o lugar
onde é valorizada... Né...é até paradoxal você pensar que a rua é acolhedora...Por
mais violento, é pra elas o lugar mais seguro.
Vulnerabilidade,
exclusão e violência a
população LGBT
assumidas pelo
profissional de saúde E21 - Esta desassistida (pop LGBT) pela saúde falta de estratégias para chegar nessa
população, que eu falei tem estratégia para a população de rua, estratégia para as
profissionais de sexo, eu acho que investimos pouco em estratégias pra esta
população... a gente acolhe muito bem, a gente dá acesso e qualidade, mas está
carente de estratégias pra trazer mais essa população...
E21 - Pelo pouco que já atendi aqui...a gente não tem muitos pacientes né, é uma
população que tem dificuldade de acessar unidade, mas o pouco que a gente
conseguiu né chegar, alcançar, atender, percebe a fala de alguns a dificuldade de
acesso ao serviço por preconceito...
E16 – Uma mulher trans, ela sempre vai ser...vai sofrer os olhares, né, um homem
trans sempre vai sofrer os olhares né... É tão difícil falar isso sabia, porque falar isso
é cair no estigma das doenças sexualmente transmissíveis... Ela chegou na recepção,
né, identidade de gênero feminino, cabelão, corpão, aquela coisa... as unidade de
saúde o mais chato de tudo isso é que caí no estigma é que Andressa estava vindo
fazer um tratamento pra sífilis...
E 11 - que tenha mais condições teoricamente mais favoráveis ou que as vezes mais
procura o serviço, seria os gays, os homossexuais e as lésbicas, eu acho que teria
uma condição pouco menos satisfatória de saúde da população de travestis, que eu
acho que tem uma dificuldade maior de tá acesso ao serviço, procurar atendimento,
por conta do estigma, por conta de vários outros fatores, eu acho que nesse ponto aí
as vezes acaba dificultando um pouquinho e a população isso acaba refletindo na
saúde deles
E21 - foi atendido pela médica que verbalizou essa vontade de fazer preventivo e que
teve dificuldade em algumas unidades pelo preconceito (risadinha) foi maltratado
algumas vezes
E7 - que na verdade estamos abarrotados com outras demandas que não é desculpa,
mas a gente está abarrotado com hipertensos, diabetes, gestantes, criança, cartão de
vacina, coisa, que a gente acaba se esquecendo um pouquinho desses grupos que
também deveriam ser prioritários...
E20 - porque ele tinha sido recentemente espancado, no local de trabalho dele e ele
estava com algumas lesões no corpo, ele veio atrás de uma pomada para passar,
pra cicatrizar, mas assim, perguntei a ele o que foi, o que tinha sido aquilo, ele me
disse que tinha sido assaltado, só que ai depois eu fiquei sabendo pelo agente
comunitário que na verdade ele tinha sido vítima de um preconceito mesmo. Um
monte de rapaz pegou ele, por conta da orientação dele, tinha espancado ele.
E16 -... a gente já teve vários casos aqui, que eu posso citar um, que é emblemático,
de mulher trans que veio né... e a gente tem aqui na unidade várias pessoas com
várias, diferenças religiosas... Ele, Ela se apresentou com nome social, mas ela
estava lógico com documento de identidade com nome de nascença, com nome
masculino e uma das técnicas de enfermagem que inclusive não trabalha mais aqui,
fazia questão de chamar lá pelo nome de homem, entendeu?... Pra que as pessoas
ficam de “Tchchchu” conversando que é o que sempre acontece, entendeu, fazendo
chacota, fazendo piada...
M5 - populacao trans é, mulher trans ne, que ai homens trans, eu não tenho muitas
informações, mas e acho também que é pouco agravo, mas assim, mulher trans ai
tem a questão do hormônio que vai fazendo de qualquer jeito bota solucione de
qualquer jeito, um processo super doloroso é como infecção sexualmente
transmissível também eu acho que tem a questão da invisibilidade da população trans
de não conseguir outros tipos de emprego e ai todo mundo é profissional do sexo
e ai voce nao vai no serviço de saúde e você é profissional do sexo e você vai
pegando mais infeccões
M5 - os profissionais a gente assim continua é com essa heteronormativa que assim,
de que todo mundo é hetero e pensando de forma biomédica varias vezes apenas, é
não pensa, não aprende a fazer a pergunta do jeito certo, quando a pessoa responde
você não sabe o que fazer com aquilo ali e acho que com os ACS tem, isso também,
acho que tem mais preconceito também ne...
M7 - Os homens em geral são mais fechados nas questões sexuais e não respondem
com tanta facilidade assim e talvez eu tenha uma restrição a mais de fazer essa
pergunta diretamente aos homens porque a gente tem uma comunidade que é
bastante machista. Se você faz essa pergunta pra um homem que não é homossexual
é como se fosse uma ofensa.
M12 - Então quando ela chega aqui, geralmente ela fala muito alto. Todo mundo
brinca com ela. A gente dá os limites que tem que ser estabelecia pra todo mundo.
Não é porque ela é travesti que ela vai poder fazer o que ela quiser aqui. A gente vai
tratar bem. Vai ser empático com ela., que é o que acontece aqui. Todo mundo
brinca. Todo mundo se diverte com ela, mas ao mesmo tempo limitando o
comportamento dela dentro da unidade
M11 -... até porque é uma coisa da sociedade brasileira né não se fala desse tema nas
escolas, nas igrejas menos ainda, mas na sociedade em geral não se fala desse tema,
desses temas e como eu falei no começo o estado de Goiás é um estado mais voltado
pro meio rural, mesmo aqui a capital, quem tem oportunidade de vir aqui no fim de
semana o povo vai tudo embora pra zona rural, pro campo, o centro da cidade fica
vazio e, então é uma sociedade mais tradicional mais conservadora é uma população
mais difícil ainda de entender esse tipo de coisa, ainda separa a humanidade em
masculino, feminino e mais nada só isso e parece que é pecado é tabu, não se fala é
segredo se o filho tem alguma tendência homossexual ou alguma conduta que o pai
reprova ainda eu não digo 100%, mas tô dizendo coisa que acontece é... É coisa
ainda rejeitada pela família, as pessoas sentem vergonha, acredito que no Brasil
inteiro, mas nesse meio que é mais tendência que é mais pro meio rural eu acho que
é mais forte ainda, o conservadorismo a religião e tudo.
M15 – existem...só que eles são invisíveis, exceto pelos transexuais que eles se
portam e você consegue identificá-los e eles se identificam enquanto trans, os gays,
as lésbicas não...
E3 - Então, a nossa médica é cubana. Eles tem uma cultura bem assim diferente da
Despreparo dos nossa, é, então ela eu acredito que se tiver que atender, ela atende, mas ela não tem
profissionais uma abertura, um conhecimento muito amplo sobre o assunto, né? E o agente... e o
meu técnico, eu acredito que assim... ele é meio tímido, eu acho que ele não teria
muito… ele não teria essa facilidade no atendimento.
E4 - Não, sem duvidas que não. Porque naverdade a gente tenta facilitar o acesso ao
máximo, mas eu acho que muitas vezes a questão da sexualidadeas pessoas se
sentem tímidas, tanto da pessoa abordar, mesmo que a gente saiba, por exemplo, tem
duas mulheres que mora por aqui, ninguém quer invadir a privacidade...mas assim,
eu acho que a gente não quer muito invadir e a gente sente que está invadindo e por
medo de invadir, “olha eu sei que você vem aqui um dia que a gente faz um dia pra
homossexuais” a gente não se sente a vontade pra falar com medo da invasão, mas
também porque hoje em dia tudo é processo, então a gente se coloca mais na posição
que se vier eu atendo, eu não tenho ido atrás, e eu acho que é de uma opinião geral,
sabe?
E 4 - ... os próprios agentes falam: “eu não vou pergunta se a pessoa é gay ou
não”.Falam, da mesma maneira que eu não vou perguntar se na casa usa
drogas,mesmo que eu sei que usa, eu não vou perguntar se usa álcool, se é
alcoólatra, porque eu, as vezes eu sei que o homem usa, é alcoólatra mas eu não vou
perguntar, então eles se sentem assim, e não só na questão da homossexualidade,
mas nessas outras também, tem temas que são muito delicados.
E 4 ... por medo mesmo, eu sei lá como a pessoa vai agir, e tal, eu não sei se a
família sabe... então muitas vezes nesse formulário que a gente já usa, foi uma das
questões que colocaram ... “Neusa eu não vou perguntar isso na casa de ninguém”
E 5 -Só que é uma população delicada, delicada, a gente temdificuldade sim para
abordar, por causa disso tudo que eu falei , muitos sabem mas a família não aceita,
ou não sabe, né? Então para a gente não é muito fácil não, é complicado,até a
abordagem mesmo, muitas vezes a gente até nota, a gente percebe, mas ainda um
tema tão assim, complicado, que a gente mesmo tem receio,se eu abordar a pessoa
vai se ofender, vai ficar chateado ou ela vai gostar? Como é que ela vai se sentir? Se
eu disser que estou percebendo, né? Que eu to notando, ou que eu sei por que alguém
já falou, seja uma mulher que vive com outra mulher, ou um homem que vive com
outro homem, a gente tem muito receio, ainda é um tema muito delicado para a
gente.
E7 - Dificuldades, eu particularmente não tenho assim, de
lidar com uma pessoa que esta inserida nesse grupo, e facilidades porque assim
a gente sempre tem recebido atualizações né, a lista de abordagem sindrômica,
como tratar da questão com o psicólogo, nós já teve muitas reuniões com os
psicólogos do "CAAV" né, geralmente nossas atividades são mais
voltados para Doenças Sexualmente Transmissíveis, é o que a gente consegue
abranger mais esse grupo, mas que uma Hipertensão, com Diabetes que é pouco
frequentado por esse grupo, só se tem alguém que a gente não sabe, mas assim,
quando a gente trata mais da questão sexual é que a gente consegue captar um pouco
mais dessas pessoas. Então a gente já tem um preparo, o município vem capacitando
né, as abordagens, as discussões, então assim, ao longo do tempo vão quebrando esse
bloqueio, e também depende muito do usuário, tem usuário que não vem em consulta
clinica talvez ele tenha vergonha ainda né, de como a população aqui
dentro vai reagir, os outros usuários... então não é frequente a gente ver
pessoas desse grupo dentro da unidade no dia a dia, entendeu?! A gente vê mais
nos grupos ou em atividades especificas pra Doenças Sexualmente Transmissíveis.
E 7 - Eu não posso dizer que é 100% preparada, acho que é a cabeça de cada um é
diferente né... alguns tem muita mais facilidade, é livre de preconceito, outros já têm
a questão da religião... de repente a gente muda como é a pessoa né... que tem que
separar as coisas, então assim, a gente faz de tudo pra que todo mundo acolha a todos
independente de suas escolhas, mas nem sempre a gente consegue, tem alguns
profissionais que ainda não se adaptaram, que ainda são muito preconceituosos...
porém a gente tem dentro da unidade população desse grupo, profissionais que
também fazem parte da população LGBT, então assim, a gente nunca teve problema
com isso assim, algo assim visível, alguma situação que aconteceu... nunca houve, de
recusa de atendimento, ou de constrangimento, graças a Deus até o tempo que eu to
aqui nunca teve nada.
E 11 - Olha assim, às vezes eu confesso para você que por exemplo, nesse primeiro
momento eu acho que quando a gente começa atender nesse caso da criança mesmo,
a gente fica meio assim, no primeiro momento é um impacto, né, mas assim, a gente
sempre tenta colocar da forma normal e comum, no nosso dia-a-dia mesmo, ne então
sempre levar nessa questão do atendimento normal...
E 11 -Eu acho que é isso que a gente está colocando, porque quando a gente fala
dessa questão, a gente sabe, nem todo mundo tem a formação em saúde aqueles que
têmas vezes acaba tem a questão também religiosa, tem o fator também da opinião
que ele já vem formado daquilo ali sobre a sexualidade, então tudo isso ai acho que
acaba interferindo, ah ainda mais que também nem todo mundo é profissional de
saúde então passou por essa formação, então eu acho que também ser levado a uma
formação nesse sentido para atender essa população.
E12 - É mais difícil, mas têm alguns casos específicos, eu me lembro, por exemplo,
de duas pacientes que elas vêm e geralmente elas vem com as parceiras delas
entendeu, e fazem né, e fazem anualmente elas fazem, uma começou ano passado e
outra já tem um tempo maior, então ela chega com a parceira dela e faz prevenção,
mas não tem um contingente muito amplo disso entendeu, e mesmo porque às vezes
vêm individualmente e eu não vou perguntar se ela é ou se não lésbica ou se não é
né, é geral...
E 13 Assim a gente faz muito... a gerência que coordena esse serviço ela tem essa
preocupação de fazer os cursos com a gente e deixar a gente um pouco a par desse
tratamento diferenciado, assim diferenciado não... quando você dá um tratamento
diferenciado você pode discriminar também esses pacientes, então assim preparar a
equipe para tratar bem esses pacientes, eu percebo que hoje não é qualquer
profissional que consegue desenvolver um trabalho nessa área, porque também tem
essa questão dos valores pessoais, questões intrínsecas do profissional, talvez ele não
consiga manter isso, eu acho assim que a gente poderia enquanto profissional que
trabalha em ações públicas, a gente poderia ter mais cursos...ter mais preparação
mesmo pra poder sustentar, e como a gente tem a questão da Estratégia de Saúde da
Família, que esse paciente chega fisicamente na estratégia, acaba que a gente tem
que ter um serviço muita bem estruturado pra gente poder capacitar os
profissionais... eu percebo é o seguinte a gente tem profissionais novos que estão
chegando, mas a maioria dos nossos profissionais eles já são arraigados de outro
contexto de trabalho que ele não consegue às vezes ter essa abertura para tratar o
paciente da forma como hoje preconiza, então assim a minha preocupação é mais
nesse sentido, deveria ter mais capacitações para preparar ou o serviço, o nosso
serviço, capacitar as equipes ou então capacitar logo todos os profissionais que estão
envolvidos... os profissionais ainda não estão bem treinados e capacitados para isso
E14 - É que eu acho que seja uma coisa meio delicada de se tocar, talvez numa
entrevista ou abordagem do próprio agente nas visitas. Como colocar isso sem a
pessoa se sentir ofendida para aí a gente ver o que eles esperariam do serviço.
Entrevista, sugestão no atendimento...
De repente a gente acha que não é legal discriminar ou tratar diferente, mas a gente
não sabe qual a opinião deles.
E15 - Mas tem coisas especificas que deveria ter uma rede de apoio, entendeu? A
questão do nome social, é... a gente meio confuso as vezes para onde levar essas
pessoas para fazer a troca, para ter direito a um nome social.
essa questão da rede de apoio que a gente fica meio perdida, entendeu?
Porque eu não sei ate que ponto também a unidade, nem os profissionais têm ciência
de tudo que eles precisariam, entendeu, não sei se tem esse entendimento de tudo que
eles precisariam.
M2 - LGBT...então essa população ela é vista como todos enviados, então não é pra
fazer nenhuma discriminação é pra gente olhar somente a parte de saúde do
indivíduo o que ele ta precisando em termos de saúde... Porque é o modo da gente
atender as pessoas é assim, a gente não faz discriminação nem dessa população, nem
pra negro, nem pra deficiente nós tratamos todos como ser humano que precisa ser
bem atendido.
M3 - Não, nem todos profissionais são sensíveis a esta questão... Ah, porque vai da
vivência, vai da forma... Da sua criação ...Os conceitos que cada um tem né, então eu
acho que isso ai é muito pessoal assim às vezes tem pessoas que tem um pouco mais
de... Até preconceito e tem gente que já tem mais liberdade e tal eu nunca, graças a
Deus eu nunca tive preconceito já tive colegas e tal e... E não tenho problema
nenhum, mas, é eu acho que dá pra ver... não tem diferença sabe? É, é em termos de
tratamento de nada, acho que é tranquilo assim, não vejo nada diferente assim... Não
é que você concorde com a prática né, mas você tem tolerância né, você tem que
tolerar e mesmo que você não seja a favor, mas você não pode jamais discriminar,
ter preconceito porque quem somos nós né, não cabe a um pra julgar o outro...
M6 - ... pessoalmente eu não acho que faculdade forma, especialmente pra esse tipo
de público, mas eu acho que (...)Acho que talvez fazer a pergunta diretamente em
relação a sexualidade é uma dificuldade, porque, por exemplo, quando a gente vai
fazer o rastreamento de antecedentes ginecológicos obstétricos (...) é, esse aí eu sinto
mais facilidade quando é diretamente a uma mulher. Eu pessoalmente, enquanto
médica. Então eu falo: Qual foi a primeira relação sexual? Quantos parceiros já teve?
Qual é o parceiro? Parceiro homem ou mulher? Qual é o tipo de rastreamento que
você faz, preventivos? Algum método contraceptivo? Não usa? Enfim, essas
perguntas são mais simples. Eu tenha uma impressão que as mulheres são mais
abertas e que eu também sou mais aberta pra fazer essas perguntas pras mulheres. Os
homens em geral são mais fechados nas questões sexuais e não respondem com tanta
facilidade assim e talvez eu tenha uma restrição a mais de fazer essa pergunta
diretamente aos homens porque a gente tem uma comunidade que é bastante
machista. Se você faz essa pergunta pra um homem que não é homossexual é como
se fosse uma ofensa. Eu suponho que os profissionais de saúde não estejam
preparados... por causa da nossa cultura, mas não tenho nada especificamente pra
falar sobre isso.
(Sobre ACS) Eu não acho, não só especificamente em relação a essa população, os
agentes comunitários de saúde têm uma dificuldade de acolher as demandas desses
pacientes e como se portar e como se perguntar, como, como se comunicar
adequadamente, questões que tornam os valores fundamentais deles assim, eu vejo
muito... Então suponho os valores que esses já demonstraram e por essa dificuldade
de comunicação em outras questões de saúde que levam, que não exista um elemento
de preparação.
M11 -Na demanda de forma geral eu acho que sim, na patologia que ele vem
digamos que procura por não sei, por dizer alguma coisa por uma pneumonia ele é
bem atendido na da pneumonia, tem o atendimento adequado, mas buscando apoio
psicológico ou a questão dos transgêneros também que optam por tratamento
hormonal tem um pouco mais de dificuldade, primeiro porque nós da atenção básica
pelo menos eu né, não tive uma capacitação nessa área, então não sei bem lidar com
isso não sei, não tenho bem o conhecimento suficiente pra começar a lidar com essa
questão da transsexualidade, então falta um pouco de capacitação nessa área
também, então na atenção básica essa parte fica a desejar... Na minha opinião né
pelo o que eu tenho visto até agora é um pouco... ... a instabilidade que nós temos do
pouco preparo do pessoal de saúde, da equipe de saúde pra lidar especificamente
com questões psicológicas relacionada a população LGBT, tem essa necessidade
ainda, mas tem disponibilidade por parte também... da equipe de saúde né...
M 12 -Eu acho que ainda existe preconceito, muito, nos atendimentos. Falta
entendimento dessas questões. A gente às vezes não sabe o que explorar em relação
à sexualidade. Por exemplo, eu mesmo não sei quando que eu vou me atentar à
questão da sexualidade do paciente, ou se é necessário que eu realmente durante a
consulta questione sobre a sexualidade dele. Entendeu?!
M 12 - Nem o preparo suficiente pra lidar, mas essa questão do preparo mesmo.
Quando você tem essa questãodo ambulatório especifico você pode juntar
especialidades que de certa forma dar vazão as demandas que podem surgir pra essa
população... Mas por exemplo, eu acredito que essa travesti que a gente atende ela
faz uso cavalares de hormônios. Então assim, eu tenho que encaminhar ela pra algum
lugar.
M 16 -...tem determinados problemas de saúde que são mais comuns então talvez eu
deveria estar mais atento, eu não sei te dizer entende? Eu tenho algumas ideias que
são aquelas que eu te disse, mas de repente num processo de estudo de treinamento
então eu posso descobrir que determinada coisa eu posso estar mais atento, pra mim
é uma coisa a priori que é muito básica que eu devo tá mais atento ao conforto
daquela pessoa a pessoa se sentir mais confortável... tem umas dificuldades que estão
ligadas a isso então também talvez seja o processo de preconceito...também por
exemplo a abordagem de perguntar diretamente de qual a orientação... eu não sei a
orientação não sei qual a orientação que os serviços e movimento dão em relação a
isso tipo "ah o ideal que você pergunte é ideal que você pergunte" não sei se eu
pergunto, se é por constrangimento se é por não saber se é a melhor forma, então eu
acho que essa dificuldade que decorre por falta de debate no treinamento sobre isso
entendeu? Eu vou meio que tentando perceber