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Table of Contents

Copyrigth
Agradecimentos
Abertura
Prefácio
Introdução
1 - De Wittenberg a Paris: um panorama da modernidade
2 - O que Genebra tem a ver com Amsterdã?
3 - O que Amsterdã tem a ver com Atenas?
4 - O que Babel tem a ver com Jerusalém?
5 - O que Amsterdã tem a ver com o Brasil?
6 - Repensando a teologia latino-americana
Considerações finais
Notas
Copyright © 2019, de Josu é Klumb Reichow

Todos os direitos em l í ngua portuguesa reservados por

Editora  Monergismo
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato
Bras í lia, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1 ª edi çã o, 2019

Revis ã o: Felipe Sabino de Ara ú jo Neto e William Campos da Cruz

Capa: B á rbara Lima Vasconcelos

Diagrama çã o: Marcos Jundurian

Proibida a reprodu çã o por quaisquer meios, salvo em breves cita çõ es, com indica çã

o da fonte.

Dados Internacionais de Cataloga çã o na Publica çã o (CIP)


(C â mara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Reichow, Josu é Klumb
Reformai a vossa mente: a filosofia crist ã de Herman Dooyeweerd / Josu é Klumb
Reichow – Bras í lia, DF: Editora Monergismo, 2019.

xxx Mb
ISBN 978-85-69980-75-9
1. Filosofia 2. Teologia 3. Cristianismo I. Josu é Klumb Reichow II. T í tulo
CDD: 230
Agradecimentos

Esse livro é fruto de alguns anos de reflex ã o e intera çã o com a obra de


Herman Dooyeweerd e com seus desdobramentos e aplica çõ es. Nessa
caminhada, preciso registrar minha gratid ã o a algumas pessoas, sem as
quais esta obra n ã o existiria.

Agrade ç o à minha esposa, Lili, pelo suporte e carinho constantes, al é


m de sua leitura e revis ã o do texto. Teu amor enche a minha vida de
significado e me d á esperan ç a para o labor intelectual.

Sou grato aos meus pais, Marly e Enilton, pelo encorajamento, ora çã o e
suporte durante a escrita dessa obra e ao longo da minha vida. Agrade ç
o aos meus sogros, Roberto e Gislaine, e à minha cunhada Roberta, por
serem á vidos pensadores e por sempre terem-me apoiado durante a
elabora çã o desse livro. Muito obrigado!

Agrade ç o aos amigos Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim por


terem-me apresentado à filosofia reformacional e por serem
interlocutores presentes nessa obra. Aos meus colegas do L ’ Abri da
Inglaterra, por terem-me cedido tempo e espa ç o para o
desenvolvimento desse livro. Sou grato ao meu amigo Rodomar
Ramlow, por ter sido o primeiro a encorajar-me a fazer um mestrado em
teologia, cuja disserta çã o é a base desse livro que o leitor tem em m ã
os. Nesse mesmo sentido, agrade ç o ao Professor Rudolf von Sinner,
das Faculdades EST, pela orienta çã o e leitura cr í tica dessa obra.
Obrigado pelas conversas e discuss õ es frut í feras.
Agrade ç o à Association for Reformatioal Philosophy , por financiar
minha participa çã o nas confer ê ncias de filosofia reformacional, tanto
em 2011 na Holanda quanto em 2016 na B é lgica. Sem d ú vida, as
conversas e intera çõ es desses encontros geraram muitos frutos. Sou
extremamente grato à Editora Monergismo por ter aberto espa ç o e dado
a oportunidade da publica çã o desse livro.

E, acima de tudo, sou grato a Deus, criador e redentor de todas as coisas,


que nos concede, por sua gra ç a, a d á diva da reflex ã o. A ele toda a gl
ó ria.
Do alto dos muros clama,
à entrada das portas e nas cidades profere as suas palavras:
At é quando, ó n é scios, amareis a necedade?
E v ó s, escarnecedores, desejareis o esc á rnio?
E v ó s, loucos, aborrecereis o conhecimento?
Atentai para a minha repreens ã o;
eis que derramarei copiosamente para v ó s
outros o meu esp í rito
e vos farei saber as minhas palavras.
Prov é rbios 1.21-23
Pref á cio

O pensamento filos ó fico de Herman Dooyeweerd certamente se


encontra entre os maiores feitos intelectuais da Igreja crist ã ocidental no
s é culo XX. A capacidade de articular uma cr í tica rigorosa ao dogma
da autonomia do pensamento te ó rico — originado como uma esp é cie
de autocr í tica ap ó s tentativas frustradas de alicer ç ar o pensamento
em bases filos ó ficas neutras — concedeu a Dooyeweerd um horizonte
renovado de possibilidades te ó ricas para articula çã o e
desenvolvimento de um pensamento distintamente crist ã o. A essa
tarefa ele se dedicou incansavelmente em sua vida como pesquisador,
jurista, fil ó sofo e coarticulador de um movimento intelectual crist ã o
peculiar na Holanda, denominado internacionalmente filosofia da ideia
cosmon ô mica ou reformacional.

Herman Dooyeweerd viveu de forma í ntegra e frut í fera o lema da


Reforma Protestante segundo o qual a vida do crente deve ser vivida por
inteiro coram Deo , ou diante de Deus. Remontando à s palavras de seu
grande modelo vocacional e intelectual, Abraham Kuyper, Dooyeweerd
encarnou na esfera do pensamento o princ í pio de que “ onde quer que o
homem esteja, seja o que for que fa ç a, ou no que aplique a sua m ã o,
na agricultura, no com é rcio, na ind ú stria, ou sua mente, no mundo da
arte e da ci ê ncia, ele est á , seja onde for, constantemente diante da face
de Deus, est á empregado no servi ç o de Deus, deve obedecer
estritamente a seu Deus e, acima de tudo, deve ter como alvo a gl ó ria
de Deus ” .

Essa n í tida consci ê ncia de pensar e produzir teorias diante da face e


para a gl ó ria de Deus conduziu Dooyeweerd, por sua vez, a terrenos
ainda inexplorados na tradi çã o intelectual ocidental, possibilitando que
dire çõ es espirituais espec í ficas incorporadas na Igreja de Cristo e nas
Escrituras, as quais operam pelo pr ó prio Esp í rito no cora çã o do
crente, encontrassem clara e ampla express ã o na estrutura çã o do pr ó
prio pensamento te ó rico. Esse, por sua vez, n ã o veio a se tornar em
Dooyeweerd um sistema de controle e previs ã o racional do ser em sua
m á xima amplitude, inclu í do o pr ó prio Deus, o que claramente havia
caracterizado o pensamento crist ã o ocidental com tend ê ncias sint é
ticas racionalistas ( e.g. , escolasticismo). Em Dooyeweerd, temos uma
filosofia crist ã que reconhece os limites da raz ã o, bem como sua for ç
a e potencial, ecoando de forma plena as palavras de Blaise Pascal,
proferidas ainda no s é culo XVII, as quais afirmam que a “ú ltima
tentativa da raz ã o é reconhecer que h á uma infinidade de coisas que a
ultrapassam. Revelar-se- á fraca se n ã o chegar a conhecer isso. É
preciso saber duvidar onde é preciso, afirmar onde é preciso, e submeter-
se onde é preciso. Quem n ã o faz assim n ã o entende a for ç a da raz ã o
”.

Nesse sentido de afirmar os limites e a for ç a da raz ã o, a filosofia de


Dooyeweerd trilhou um caminho peculiar no qual evita os extremos
prejudiciais, por um lado, do racionalismo crist ã o e sua pretens ã o de
perscrutar o ser de Deus e seus des í gnios e, por outro, do voluntarismo
crist ã o e sua pretens ã o de reduzir a estrutura da ordem criada ao
simples capricho inst á vel de uma divindade concebida como poder
puro. O pensamento de Dooyeweerd, portanto, reconhece a liberdade de
Deus em todos os seus atos ao mesmo tempo que aplica com confian ç a
o pensamento à s realidades criadas e mantidas pela fidelidade pactual
de Deus com sua cria çã o. O desenvolvimento desse insight central
produz uma rica e rigorosa perspectiva da estrutura da ordem criada na
qual o homem figura como centro religioso irredut í vel, reflexo que é do
pr ó prio Deus.
No entanto, mesmo reconhecendo seus evidentes m é ritos, o
pensamento de Dooyeweerd ainda n ã o rendeu os frutos esperados e
potenciais, seja para a reflex ã o te ó rica e a discuss ã o filos ó fica, seja
para a aplica çã o e uso da pr ó pria comunidade crist ã ocidental. Pois
quem discordaria do fato de que enfrentamos um per í odo de multiplica
çã o em influ ê ncia de todos os tipos de reducionismos te ó ricos e
ideologias pelo Ocidente, grande parte dos quais ainda se baseia no
discurso da neutralidade racional e a suposta autonomia cient í fica? Por
outro lado, parece claro que a simples ruptura com os dogmas modernos
e a articula çã o de uma proposta abertamente enviesada sobre a
estrutura da realidade e o telos a ser alcan ç ado pela comunidade
humana n ã o s ã o suficientes, pois, via de regra, falta-lhes rigor
intelectual e crit é rios de julgamento sobre a plausibilidade de seus ju í
zos. Ou seja, n ã o é suficiente abandonar o dogma da autonomia da raz
ã o e construir, em seu lugar, uma base intelectual relativista e niilista,
negando assim a estrutura comum de realidade e a pr ó pria
racionalidade que compartilhamos como humanos criados à imagem de
Deus habitando a ordem criada. Nesse sentido, Dooyeweerd continua n ã
o somente relevante, mas profundamente necess á rio para o presente
contexto de ressurgimento ideol ó gico e aus ê ncia de crit é rios seguros
para navegarmos as conturbadas á guas culturais do mundo ocidental
contempor â neo.

Quando pensamos no contexto brasileiro espec í fico, reconhecemos que


a filosofia de Herman Dooyeweerd pode auxiliar grandemente a
comunidade crist ã no enfrentamento de v á rios desafios a uma express
ã o mais fiel do senhorio de Cristo sobre todas as coisas. Por um lado,
temos em nossas quadras uma tend ê ncia fundamentalista que se mostra
cada dia mais incapaz de articular os princ í pios da Palavra de Deus
para contextos complexos, diferenciados e din â micos, como a pol í tica
partid á ria e estatal, o contexto de produ çã o cient í fica e te ó rica, o
enfrentamento de injusti ç as e contextos extremos de pobreza e priva çã
o, a reflex ã o sobre os limites e potenciais usos da tecnologia, as din â
micas da economia e dos mercados, entre outros. A incapacidade de
oferecer um testemunho minimamente informado nessas á reas tem
relegado crescentemente a Igreja crist ã brasileira, sobretudo em sua
express ã o evangelical, a uma posi çã o de mero refor ç o das pr á ticas e
propostas j á reconhecidas em sua insufici ê ncia na hist ó ria nacional,
como o corporativismo autocentrado, o coronelismo na manipula çã o
das massas e um moralismo reducionista quase sempre
contraproducente. Por outro lado, encontramos em nosso contexto tend ê
ncias claramente liberais de adapta çã o do Evangelho à s teorias e
configura çõ es culturais de momento, seja na express ã o individualista
e consumista do “ evangelho da prosperidade ” , seja na express ã o
coletivista e engajada do “ evangelho da justi ç a social ” . Diante de tal
cen á rio, uma proposta de pensamento consciente da complexidade do
pensamento e das din â micas sociais e, ao mesmo tempo, fiel aos princ í
pios b í blicos e à tradi çã o crist ã e sua ortodoxia, tem muito a oferecer
à igreja crist ã institucional e a sua mir í ade de membros dispersos
organicamente nos mais variados campos vocacionais na cultura
nacional.

A partir dessa constata çã o de relev â ncia para o cen á rio crist ã o


nacional, creio que este livro que o leitor tem em m ã os soma-se
estrategicamente à crescente disponibiliza çã o de material de qualidade
para o aux í lio da Igreja de Cristo no mundo contempor â neo. O autor
Josu é Reichow, a quem conhe ç o pessoalmente e testifico de seu amor
por Deus e por seu Reino, consegue, por meio de sua obra, empreender
tr ê s tarefas importantes para a frutifica çã o do pensamento de
Dooyeweerd em solo brasileiro. Em primeiro lugar, apresenta ao leitor
as caracter í sticas peculiares do solo original onde nasceu e floresceu o
pensamento de Dooyeweerd, a Europa continental moderna. Esse pano
de fundo é imprescind í vel na elucida çã o do car á ter peculiar do
pensamento de Dooyeweerd, principalmente em seu di á logo com as
principais correntes filos ó ficas e formas socioculturais da modernidade
ocidental. Em um segundo momento, Josu é apresenta os contornos b á
sicos do pr ó prio pensamento de Dooyeweerd, como sua antropologia
filos ó fica integral, sua proposta ontol ó gica multiaspectual e sua
capacidade de leitura das tend ê ncias reducionistas e dial é ticas
presentes na hist ó ria do pensamento ocidental. Em um terceiro
momento, Josu é se desloca do solo europeu ao sul-americano,
apresentando as peculiaridades do contexto em que se quer introduzir as
ideias de Dooyeweerd para que gerem o devido fruto. Essa ponte entre
os dois horizontes contextuais europeu e sul-americano, para al é m da
apresenta çã o do pr ó prio pensamento dooyeweerdiano, torna a obra
ainda mais relevante para aqueles que est ã o tendo um primeiro contato
com essa corrente filos ó fica espec í fica e aqueles que desejam aplicar
algo de seus insights na pr á tica das realidades que enfrentamos em di
á logo cr í tico com as correntes de pensamento influentes em nosso
contexto espec í fico.

Espero que esta obra contribua para que o rico legado do pensamento
dooyeweerdiano, ou reformacional, seja entendido em seus contornos b
á sicos e relev â ncia para o contexto brasileiro, auxiliando a igreja
nacional a apresentar um testemunho fiel, informado e maduro, do
senhorio de Cristo sobre todas as coisas.

— Rodolfo Amorim Carlos de Souza


Obreiro co-fundador do L ’ Abril Brasi
Introdu çã o

Sempre que preparo uma apresenta çã o da filosofia de Herman


Dooyeweerd, enfatizo que expor as categorias de pensamento do fil ó
sofo holand ê s compara-se à tentativa de descrever um iceberg , em
reconhecimento de sua vasta e profunda produ çã o acad ê mica. Hoje,
dez anos depois do primeiro contato com sua obra, continuo afirmando a
mesma coisa. Estudar os insights da perspectiva filos ó fica crist ã de
Dooyeweerd é recompensador, mas exige dedica çã o, disciplina e muito
trabalho.

Apesar de Dooyeweerd ter-se consagrado como fil ó sofo, com ra í zes


acad ê micas no direito, o projeto dooyeweerdiano de pensamento n ã o
se restringe à filosofia. Em 2011 na Holanda e em 2016 na B é lgica, tive
a oportunidade de participar de confer ê ncias organizadas pela Associa
çã o de Filosofia Reformacional, institui çã o que re ú ne acad ê micos
interessados na perspectiva filos ó fica desenvolvida em Amsterd ã .
Surpreendeu-me, al é m da quantidade de pessoas e da qualidade das
discuss õ es, a variedade de á reas do conhecimento representadas.
Desde á reas mais afins à filosofia, como as ci ê ncias sociais e a
teologia, at é á reas mais t é cnicas como as engenharias, passando por
tecnologia e comunica çã o.

Portanto, este livro introdut ó rio ao pensamento de Herman


Dooyeweerd n ã o é uma obra endere ç ada unicamente a fil ó sofos, mas
a todos que trabalham no campo das humanidades ou das ci ê ncias e
estejam interessados em formas de integrar produ çã o acad ê mica e
reflex ã o sobre diferentes fen ô menos tendo como refer ê ncia uma
perspectiva integralmente crist ã . O fundamento sobre o qual esta obra
se erige é a afirma çã o do senhorio completo de Cristo sobre todas as á
reas da realidade criada. Nada h á na cria çã o que n ã o esteja sendo
reconciliado pela morte e ressurrei çã o de Jesus Cristo, sejam tronos ou
soberanias, principados ou potestades, epistemologias ou ontologias.

Essa obra é tamb é m uma apresenta çã o da filosofia reformacional ao p


ú blico brasileiro em geral. Apesar de Dooyeweerd ainda ser
relativamente desconhecido na academia brasileira, seu pensamento tem
recebido aten çã o crescente à medida que suas obras s ã o traduzidas
para o portugu ê s. Isso tem gerado um aumento no n ú mero de artigos,
palestras e cursos elaborados para explicar sua filosofia, como o recente
curso oferecido pela Associa çã o Brasileira de Crist ã os na Ci ê ncia.

Herman Dooyeweerd nasceu em 1894 em Amsterd ã , num momento


que muitos consideram o apogeu da modernidade, que logo seria
abalado pelo advento da Primeira (1914-1918) e da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945). Desde muito cedo, professou a f é crist ã , tendo
na fam í lia, especialmente no pai, a profunda influ ê ncia de Abraham
Kuyper e do neocalvinismo. Em 1912 iniciou os estudos de direito na
universidade fundada por Kuyper em 1880.

Dooyeweerd foi professor de filosofia, hist ó ria e direito durante 40


anos na Universidade Livre de Amsterd ã , da qual foi reitor por duas
vezes. Em 1948, tornou-se membro da Academia Real Holandesa de Ci
ê ncias, sendo considerado um dos autores mais influentes da Holanda.
O fil ó sofo de Amsterd ã faleceu em 1977, mesmo ano do falecimento
de Hans Rookmaaker, historiador da arte dooyeweerdiano, que fora o
fundador do departamento de hist ó ria da arte da mesma universidade.
A influ ê ncia contempor â nea do pensamento de Dooyeweerd
transcende o territ ó rio holand ê s, alcan ç ando o restante da Europa, os
EUA e a Á frica do Sul, al é m de contar com pesquisadores espalhados
pelo mundo.
No que concerne ao contexto brasileiro, parece-me que as categorias de
reflex ã o desenvolvidas pela tradi çã o filos ó fica reformacional t ê m o
potencial de impactar de forma salutar v á rias esferas da sociedade
brasileira, na dire çã o de uma reforma do pensamento que se reflita em
pelo menos tr ê s campos distintos: na produ çã o acad ê mica brasileira,
seja ela filos ó fica ou cient í fica; na igreja local, especialmente no
desenvolvimento de uma teologia p ú blica; e na produ çã o cultural, de
modo mais amplo.

Na universidade brasileira, de modo geral, ainda est á presente o dogma


da autonomia religiosa da raz ã o , para usar o termo de Dooyeweerd.
Segundo o fil ó sofo de Amsterd ã , essa perspectiva é uma das
principais caracter í sticas da modernidade, a qual propaga a ideia de que
cren ç as religiosas dizem respeito estritamente a uma esfera privada da
vida e que a produ çã o intelectual nada tem a ver com essas cren ç as.
Por esse e por outros motivos, a universidade brasileira tem um clima
antirreligioso e, arrisco dizer, particularmente anticrist ã o. Assim, a
apresenta çã o da filosofia reformacional neste livro pode contribuir com
um forte referencial anal í tico para p ô r em xeque essa perspectiva.

No que diz respeito à igreja crist ã no Brasil — e aqui penso


especificamente na evang é lica-protestante — , h á ainda um forte
dualismo em a çã o, que acaba por operar na mesma l ó gica
fragmentadora da modernidade. Muitos crist ã os enxergam a produ çã o
de conhecimento como algo sem import â ncia, mundano e at é
pecaminoso e, assim, se eximem de toda atividade que n ã o envolva,
necessariamente, a estrutura eclesi á stica. Por outro lado, muitos crist ã
os na universidade, desejosos de testemunhar sua f é , n ã o raro acabam
internalizando perspectivas te ó ricas que destoam da f é crist ã por n ã o
terem um referencial crist ã o cr í tico que lhes permita ler teorias e
conceitos à luz de sua f é .
H á alguns anos, participei de uma palestra e debate com crist ã os
universit á rios a respeito dos desafios do testemunho crist ã o na
universidade. Surpreendi-me com a perspectiva apresentada: a
universidade é reduzida, exclusivamente, a um campo de miss ã o, no
qual almas devem ser resgatadas para a igreja. A universidade n ã o
parecia ter legitimidade em si. Numa conversa a respeito da integra çã o
de categorias crist ã s com diferentes vis õ es de mundo, indaguei ao
grupo ali presente: como lidar com um jovem crist ã o que ouve aos
domingos que Jesus Cristo é o Senhor, mas durante a semana l ê
Nietzsche na faculdade de filosofia? A resposta de um dos jovens foi
paradigm á tica: “ Nietzsche é do diabo ” . Quest ã o encerrada. Se voc ê
é crist ã o, n ã o l ê . Ora, a perspectiva dooyeweerdiana se coloca em
oposi çã o a esse dualismo, oferecendo pontes para uma perspectiva
integral da vida.
De modo semelhante, a perspectiva trazida por Herman Dooyeweerd
pode lan ç ar luz no debate sobre os modos de intera çã o entre a f é crist
ã e a cultura. Parece-me que esse ponto é especialmente importante para
crist ã os engajados no campo da arte. Como entender a pouqu í ssima
import â ncia dada pela igreja brasileira à produ çã o art í stica e aos
artistas? Como ler as artes para compreender o nosso tempo? A
perspectiva reformacional fornece o referencial filos ó fico e teol ó gico
para a afirma çã o de uma f é crist ã absolutamente engajada na cultura,
na medida em que a reconhece como um locus da gl ó ria de Deus e,
portanto, leg í tima em si mesma.

Portanto, a fim de apresentar o pensamento de Dooyeweerd e poss í veis


aplica çõ es, especialmente no contexto brasileiro, este livro est á divido
em seis cap í tulos. No cap í tulo inicial, intitulado De Wittenberg a
Paris : um panorama da modernidade , apresento um quadro geral do
que se compreende por modernidade, visto que Dooyeweerd interage
primordialmente com a filosofia desse per í odo. Valho-me de autores
provenientes de v á rios campos do saber para formar uma esp é cie de
background contra o qual o pensamento do autor holand ê s ser á
apresentado.

No segundo cap í tulo, denominado O que Genebra tem a ver com


Amsterd ã ? , procuro expor o contexto intelectual em que Dooyeweerd
cresceu e desenvolveu seu pensamento. Come ç o o cap í tulo
apresentando o neocalvinismo holand ê s, sobretudo na figura de
Abraham Kuyper, e seus desdobramentos como movimento, cuja influ ê
ncia vai muito al é m da pr ó pria Holanda. Em seguida, apresento os
elementos da filosofia dooyeweerdiana, bem como sua cr í tica ao
pensamento moderno e seu di á logo cr í tico com o fil ó sofo alem ã o
Immanuel Kant.

O terceiro cap í tulo, O que Amsterd ã tem a ver com Atenas? , é uma
exposi çã o mais detalhada dos elementos centrais da filosofia
reformacional. Nele, discorro sobre a rela çã o entre filosofia e
cristianismo, acentuando o projeto de Dooyeweerd de uma filosofia crist
ã . Na sequ ê ncia, abordo os conceitos de cosmonomia, esferas de
soberania e ontologia modal. Finalizo o cap í tulo discutindo a
antropologia dooyeweerdiana e sua compreens ã o da rela çã o entre
filosofia e teologia.

No cap í tulo seguinte, O que Babel tem a ver com Jerusal é m? ,


abordo as formas de compreens ã o da hist ó ria, apresentando
inicialmente exemplos de reducionismos provenientes da biologia, da
sociologia e da tecnologia. Em seguida, introduzo o conceito
dooyeweerdiano de motivo-base e discuto seu modo de interpretar a
hist ó ria e o desenvolvimento da cultura ocidental a partir de quatro
motivos-base: mat é ria e forma ; cria çã o, queda e reden çã o ;
natureza e gra ç a ; e natureza e liberdade .

O quinto cap í tulo, denominado O que Amsterd ã tem a ver com o


Brasil? , discute o relacionamento entre cristianismo e cultura no
contexto brasileiro, valendo-se de modelos distintos de rela çã o, como
cristianismo contra a cultura e cristianismo da cultura , refletindo
sobre exemplos concretos e desdobramentos desses modelos em nosso
contexto, para em seguida apresentar os insights da tradi çã o
reformacional sobre o tema, expressos no modelo de cristianismo como
transformador da cultura .

No sexto e ú ltimo cap í tulo dessa obra, (Re)pensando a teologia


latino-americana , busco estabelecer um di á logo entre tr ê s tradi çõ es
de reflex ã o teol ó gico-pol í ticas: a tradi çã o reformacional de
Dooyeweerd, a teologia da miss ã o integral e a teologia da liberta çã o,
lendo as duas ú ltimas à luz da primeira. Come ç o o cap í tulo com um
esbo ç o dessas duas perspectivas desenvolvidas na Am é rica Latina,
para, em seguida, abordar pontos de converg ê ncia e de diverg ê ncia
com a tradi çã o reformacional, na tentativa de estabelecer um poss í vel
di á logo.

Minha esperan ç a é que esta obra contribua para a forma çã o de uma


comunidade intelectual que construa uma perspectiva de pensamento
robusta, alicer ç ada nos fundamentos da f é crist ã e que sirva de
instrumento para o florescimento humano em todos os aspectos da vida e
da realidade criada.
1

De Wittenberg a Paris: um panorama da


modernidade

Quem j á passou algum tempo nas se çõ es de sociologia e filosofia das


livrarias brasileiras n ã o considerar á desconhecido o conceito de p ó s-
modernidade . Talvez muitos n ã o estejam familiarizados com a longa
discuss ã o dentro da teoria social a respeito dos conceitos mais
apropriados para dar conta da era contempor â nea, mas é prov á vel que
j á tenham ouvido falar de Zygmunt Bauman e de suas obras O mal
estar da p ó s-modernidade e Modernidade l í quida .

Assim, o prefixo p ó s tem se tornado um lugar comum nas reflex õ es


que envolvem teoria social, filosofia e, por que n ã o, at é mesmo
teologia. Viver í amos, dessa maneira, na era do p ó s : p ó s -tradi çã
o, p ó s -industrial, p ó s -crist ã , p ó s -bin á ria, p ó s -colonial, p
ó s -humana, etc. Entretanto, para que se empregue este prefixo, é necess
á rio dizer algo sobre o termo mais famoso a que é apenso: modernidade.
Parece-me que este é um ponto nevr á lgico para qualquer crist ã o que
queira empregar na reflex ã o em ci ê ncias humanas uma perspectiva
coerente com sua f é .

Quando deparei com os usos do conceito de p ó s-modernidade, vi-me


obrigado a refletir sobre o significado de modernidade. Todavia, quem
se lan ç a num empreendimento desses percebe que a constru çã o da
ideia de modernidade é insepar á vel da defini çã o de seu per í odo
anterior, a saber, a chamada Idade M é dia . No fundo, temos um
problema bem maior diante de n ó s: a hist ó ria. Percebi, ent ã o, que a
hist ó ria n ã o interpreta a si mesma e que o conhecimento hist ó rico n ã
o diz respeito, exclusivamente, ao conhecimento de fatos do passado.

Toda interpreta çã o hist ó rica implica uma vis ã o particular do presente


e do futuro, e n ã o somente do passado. Carece de um ponto de refer ê
ncia que lhe forne ç a sentido e coer ê ncia. Podem-se usar aqui os
termos vis ã o de mundo ou cosmovis ã o para falar dessa refer ê
ncia ou conjunto de refer ê ncias que guiar á o processo interpretativo.
Em outras palavras, a toda narrativa hist ó rica subjaz uma metanarrativa
sobre o mundo.

Dessa forma, assim como diferentes teorias tentam dar conta do


presente, mobilizando uma s é rie de elementos, como ideias, imagens,
mitos e narrativas, o passado tamb é m é um “ campo de batalha ” te ó
rico. Como voc ê acha que Napole ã o interpretaria sua campanha se
tivesse vencido a batalha de Waterloo? Pense num exemplo contempor â
neo, como o processo de impeachment da ex-presidente Dilma
Roussef. Processo leg í timo e democr á tico ou golpe parlamentar? O
fato bruto do impeachment n ã o muda, mas nossa interpreta çã o dele
ter á seu sentido informado por nossa vis ã o de mundo.

Espero que meu ponto j á esteja claro. Contudo, ei-lo de outra forma:
nossa vis ã o da hist ó ria n ã o é neutra. Esse é um ponto central da cr í
tica de Herman Dooyeweerd à modernidade: sua pretensa neutralidade.
Sendo assim, qualquer interpreta çã o da modernidade ser á informada
por uma narrativa maior ou, se preferirmos, uma cosmovis ã o , seja ela
qual for.

C. S. Lewis, em sua palestra inaugural como professor da c á tedra de


Literatura Medieval e Renascentista na Universidade de Cambridge,
declarou:
Todas as linhas de demarca çã o entre o que chamamos de per í odos
deveriam estar sujeitas a constante revis ã o. Eu gostaria que as pud é ssemos
eliminar por completo! Como disse um grande historiador de Cambridge: “
Diferentemente de datas, per í odos n ã o s ã o fatos. S ã o concep çõ es
retrospectivas que formamos em rela çã o a eventos passados, ú teis para
focar em discuss õ es, mas normalmente direcionando o pensamento hist ó
rico a caminhos distorcidos. [...] Infelizmente, no entanto, como historiadores
n ã o podemos abrir m ã o dos per í odos [...], n ã o podemos dar conta da
grande massa de particulares sem orden á -los em algum tipo de estrutur a. 1

Portanto, é preciso desconfiar de categoriza çõ es de per í odos como se


definidos pelas hard sciences , sem, entretanto, descart á -los
completamente, como se n ã o tivessem qualquer validade anal í tica.

Feitas essas observa çõ es, talvez caiba perguntar: por que iniciar uma
obra introdut ó ria ao pensamento de Dooyeweerd discorrendo sobre
modernidade? Em primeiro lugar, a filosofia dooyeweerdiana, e a tradi
çã o subsequente, esteve em constante di á logo cr í tico com a
modernidade e com o pensamento iluminista nela desenvolvido. Aos que
planejam apropriar-se da constru çã o filos ó fica erigida pela Escola de
Amsterd ã , é fundamental compreender a modernidade e suas interpreta
çõ es na teoria social, bem como a desconstru çã o e cr í tica
empreendidas pelo fil ó sofo holand ê s aos construtos modernos.

Em segundo lugar, parece-me que a modernidade representa um desafio


expl í cito ao cristianismo, atribuindo-lhe um car á ter no m í nimo
secund á rio em rela çã o à s quest õ es que dizem respeito à vida p ú
blica e ao empreendimento cient í fico e filos ó fico. Dessa maneira,
falar em filosofia crist ã , como Dooyeweerd o faz, exige
necessariamente di á logo e desafio ao paradigma moderno de filosofia.

Em terceiro lugar, um motivo por que decidi incluir uma reflex ã o sobre
a modernidade no cap í tulo inicial est á ligado à possibilidade de a
filosofia reformacional de Dooyeweerd municiar aqueles que trabalham
no campo das humanidades com categorias te ó ricas robustas de
pensamento, que consigam, desde uma perspectiva crist ã , lan ç ar luz
sobre o famoso bin ô mio modernidade/p ó s-modernidade.

Uma chave para ler a modernidade

Tendo em vista que essa é uma obra introdut ó ria ao pensamento


dooyeweerdiano, a op çã o tomada nesse cap í tulo inicial foi a de n ã o
apresentar a discuss ã o em torno da modernidade estritamente com a
gram á tica e o aparato conceitual de Dooyeweerd. Ainda que seja inevit
á vel que em um ou outro aspecto sua terminologia j á comece a
aparecer, a reflex ã o que se segue ser á um panorama permeado por
diferentes autores, de diferentes campos do conhecimento, numa
tentativa de pintar um quadro geral em que o autor holand ê s figurar á
posteriormente. Adianto, todavia, que o conceito-chave da filosofia
reformacional que lida com o tema da modernidade é motivo-base ,
especificamente o motivo-base natureza/liberdade , o qual ser á
abordado mais adiante.

A modernidade

Falar em modernidade é falar de uma vis ã o de mundo, ou uma


cosmovis ã o, 2 que emergiu na Europa e, com o passar do tempo, foi
ganhando uma forma cada vez mais definida e um escopo cada vez
maior. Em um primeiro momento, pode-se defini-la como: “ [...] uma
designa çã o abrangente de todas as mudan ç as — intelectuais, sociais e
pol í ticas — que criaram o mundo moderno ” . 3

Cinco eventos hist ó ricos foram paradigm á ticos nesse sentido, pois
ilustram essas mudan ç as: a Reforma, o Renascimento, o Iluminismo, a
Revolu çã o Francesa e a Revolu çã o Industrial. Nesse sentido, a era
moderna pode ser entendida como um processo de transforma çã o
radical dos padr õ es anteriores de ordem e das rela çõ es sociais: a
modernidade implantou novos padr õ es de ideais, filosofia, pensamento
pol í tico, economia, est é tica e religi ã o.

Ademais, quando se fala de modernidade, é lugar comum nas


humanidades falar da crescente separa çã o entre religi ã o e outras
esferas da vida. Como afirma o te ó logo luterano Wilhelm Wachholz: “
Na pr é -modernidade, a religi ã o perpassava toda a vida das sociedades.
N ã o se conhecia a moderna separa çã o entre religi ã o e mundo secular
” . 4 O fil ó sofo cat ó lico Charles Taylor cunhou o termo immanent
frame [arcabou ç o imanente] para referir-se a uma das consequ ê ncias
do processo de seculariza çã o do Ocidente, no que ele aponta como um
fechamento a categorias que transcendam o mundo natural.

Nesse sentido, alude-se à Reforma Protestante , deflagrada por Lutero


em 1517, como um evento importante (proto) moderno, dando abertura a
um processo de individualiza çã o e apelo à liberdade pessoal. A reforma
teol ó gica logo alcan ç aria vastos territ ó rios na Europa e muitos
adepto s. 5 O protestantismo se caracteriza por um forte apelo à
individualidade e à responsabilidade pessoal — como apontado por Max
Weber em sua É tica protestante e o esp í rito do capitalism o. 6

Em outra passagem, comentando a Reforma, Wacholz afirma que:


[...] a Reforma inaugurou o cristianismo como princ í pio de ades ã o a uma
comunidade crist ã . Na modernidade, à medida que Igreja e Estado se
afastam, o que se consumou na Revolu çã o Francesa de 1789, a religi ã o
deixa de ser fundamento da sociedade. Estado e mercado tornam-se esses
fundamentos. As sociedades passam a ser organizadas a partir do Estado e do
mercado. A sociedade agora é formada por pessoas “ ateias ” , mas h á em
seu meio pessoas crist ã s. A religi ã o passa a ser uma op çã o. 7

Quando percebemos que esse entendimento da modernidade como “


privatiza çã o ” da religi ã o é bastante comum entre aqueles que
estudam o tema, observamos tamb é m que tal afirma çã o, a partir de
uma leitura dooyeweerdiana, problematizaria o conceito de religi ã o,
uma vez que a religi ã o em Dooyeweerd n ã o pode ser entendida como
mera op çã o, mas como uma dimens ã o enraizada na antropologia
humana, inata. Ele conceitua a religi ã o como: “ [...] o impulso inato da
personalidade humana a dirigir-se à verdadeira ou a uma pretensa
Origem absoluta de toda a diversidade temporal de significado, que se
encontra focada concentricamente em si mesma ” . 8 Logo, a quest ã o
n ã o é entre ser ou n ã o ser religioso, mas que dire çã o dar ao aspecto
religioso.

De todo modo, é preciso reafirmar que a modernidade transforma v á


rios aspectos da vida humana. Restringi-la a um aspecto seria reduzir seu
potencial anal í tico e explicativo.

A defini çã o de modernidade dada pelo soci ó logo brit â nico Anthony


Giddens é que ela “ [...] refere-se a estilo, costume de vida ou organiza
çã o social que emergiram na Europa a partir do s é culo XVII e que
ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influ ê ncia ”
. 9 Dessa forma, a princ í pio identifica-se a modernidade à mudan ç
a , o que parece ser um dos raros consensos na teoria social.

Como sugere o t í tulo do livro de Marshal Berman, Tudo o que é s ó


lido se desmancha no ar ; portanto, pode-se dizer que “ [a modernidade]
nos despeja a todos num turbilh ã o de permanente desintegra çã o e
mudan ç a, de luta e contradi çã o, de ambiguidade e ang ú stia ” . 10
Em outras palavras, toda a antiga ordem vigente, fosse religiosa, pol í
tica, social, econ ô mica, cultural ou est é tica, foi substitu í da por uma
nova ordem e por novas formas de conceber a realidade.

Mas, afinal, qual seria a natureza dessas mudan ç as e transforma çõ es?


Na tentativa de responder a essa pergunta e apresentar um panorama da
modernidade, ser ã o analisadas duas dimens õ es das mudan ç as que
surgiram com ela: a) a dimens ã o epistemol ó gica; b) o ideal de
progresso: nos seus aspectos pol í tico e econ ô mico. Em seguida,
apresentaremos uma breve reflex ã o sobre o surgimento do conceito de
p ó s-modernidade .

A dimens ã o epistemol ó gica

Racionaliza çã o

Se h á uma imagem da modernidade, essa é a de um mundo racional,


matematizado, mensurado e observado meticulosamente pelos olhos da
raz ã o. A racionalidade, supostamente em segundo plano no
cristianismo medieval — que tinha na revela çã o divina sua principal
fonte de saber e verdade — , emergiu como fonte fidedigna de
conhecimento, como par â metro e base epistemol ó gica para um mundo
desencantad o 11 que tira os olhos do c é u e os p õ e na terra.

Entretanto, é necess á rio ter o cuidado de observar que a epistemologia


emergente com a modernidade est á mais pr ó xima de uma forma de
racionalismo do que propriamente do “ surgimento ” da racionalidade.
Afirmar que a raz ã o nasce no per í odo moderno é negar tanto a patr í
stica e a escol á stica medieval quanto os gregos antigos. Tome-se
como exemplo a obra pol í tica de Mars í lio de P á dua, contempor â
neo de Tom á s de Aquino, que, ao expor seu m é todo na obra O
defensor da paz , elabora suas ideias a partir de um ideal claro de
racionalidade, quando afirma: “ [...] dividirei esta obra em tr ê s partes.
Servindo-me de m é todos corretos elaborados pela raz ã o e apoiados
em proposi çõ es bem estabelecidas e evidentes por si mesmas ” . 12

De igual modo, talvez o mais famoso dos autores escol á sticos , o j á


mencionado Tom á s de Aquino, que realizou uma grande s í ntese entre
a teologia crist ã e o pensamento de Arist ó teles, chegando a
desenvolver a ideia de uma raz ã o natural — que seria livre para
conhecer e desvelar a estrutura da cria çã o 13 — , atribuiu um
importante papel à racionalidade em sua constru çã o teol ó gica.

Dessa forma, podemos afirmar que a ideia de racionalidade n ã o é uma


novidade moderna. O que, todavia, pode ser considerada uma inova çã o
moderna é circunscri çã o de todas as formas de conhecimento à raz ã o,
desconsiderando tanto a tradi çã o quanto a ideia de revela çã o,
presentes no interior do cristianismo.

Para o soci ó logo franc ê s Alain Touraine, “ [a modernidade] é a difus ã


o dos produtos da atividade racional, cient í fica e tecnol ó gica ” , 14 e
esta é conduzida pelo homem racional. Nesse sentido, a primeira afirma
çã o que ele faz é que n ã o se pode falar de sociedade moderna se a
revela çã o divina persiste. A modernidade, portanto, ter-se-ia
caracterizado pelo deslocamento de um centro religioso da explica çã o
do real, que é permeado pela f é , para um centro racional, estritamente
humano, erigido sob os pilares da ci ê ncia.

Na g ê nese dessa virada epistemol ó gica, destacam-se dois fil ó sofos


de grande influ ê ncia, cujo pensamento moldou os caminhos de
desenvolvimento da modernidade: o franc ê s Ren é Descartes (1596-
1650) e o alem ã o Immanuel Kant (1724-1804).

No Discurso do m é todo, de Ren é Descartes, a filosofia moderna


teve seu marco inicial. O t í tulo completo é de grande valor ilustrativo,
Discurso do m é todo para bem conduzir a raz ã o e procurar a verdade
nas ci ê ncias ; ou seja, come ç a a emerg ê ncia da ideia de que o
pensamento racional é a ú nica fonte segura de conhecimento do mundo.
Com seu famoso Cogito ergo sum , “ Penso, logo existo ” , ele instaura
a d ú vida met ó dica como forma de conhecer. Segundo Leslie
Newbigin:
Descartes viveu num tempo de ceticismo. Ele inaugurou a revolu çã o
intelectual do s é culo dezessete que lan ç ou as bases do que hoje pensamos
como a era cient í fica “ moderna ” . [Ele] estava convencido de que ao
seguir o m é todo que adotou [...] seria poss í vel ter mais do que aquilo que
chamaria de mera cren ç a , mas, ao contr á rio, teria certezas, um
conhecimento precis o. 15

Nas palavras de Fritjof Capra:


[Descartes] duvida de tudo o que pode submeter à d ú vida — todo o
conhecimento tradicional, as impress õ es de seus sentidos e at é o fato de ter
um corpo — , e chega a uma coisa de que n ã o pode duvidar, a exist ê ncia
de si mesmo como pensador. [...] Da í deduziu Descartes que a ess ê ncia da
natureza humana reside no pensamento [... ]. 16

A ci ê ncia, nesse sentido, n ã o considerava nenhum processo de


conhecimento que n ã o se baseasse em rigoroso processo racional. De
igual forma, sua “ introdu çã o ” radical na modernidade é entendida
como uma revolu çã o, pois toda a forma de conhecer precisava ser
alterada, dando lugar a essa nova epistemologia, que encontrou eco em
importantes paradigmas da ci ê ncia , 17 tais como os modelos
mecanicista de Isaac Newton, considerado o fundador da ci ê ncia
moderna; organicista, de Herbert Spencer; evolucionista, de Charles
Darwin; e positivista, de Augusto Comte, que viria a ter uma forte influ
ê ncia na forma çã o acad ê mica brasileira.

Outra figura central para pensar esse processo de autonomiza çã o da raz


ã o foi, sem d ú vida, o fil ó sofo alem ã o Immanuel Kant. Sua obra é
vasta e complexa. Seu pensamento é conhecido como filosofia cr í tica.
Uma de suas principais obras foi publicada em 1781 sob o t í tulo Cr í
tica da raz ã o pura , que cont é m uma extensa resposta à filosofia
empirista inglesa, representada por John Locke e David Hume.
Defendendo um conhecimento a priori e a raz ã o como ponto de
partida para o conhecimento, em detrimento da experi ê ncia, diz Kant:
A experi ê ncia n ã o é , em absoluto, o ú nico campo ao qual nossa
compreens ã o pode ser confinada. A experi ê ncia nos diz o que é , mas n ã
o que deva ser necessariamente o que é e n ã o o contr á rio. Ela nunca nos d
á , portanto, quaisquer verdades realmente gerais; e nossa raz ã o , que est á
particularmente ansiosa por essa classe de conhecimento , é provocada por
ela, e n ã o satisfeita. As verdades gerais, que ao mesmo tempo trazem o car
á ter de uma necessidade anterior, devem ser independentes da experi ê ncia
— claras e certas por si mesma s. 18

O lugar da religi ã o na filosofia kantiana tamb é m é discutido em A


religi ã o nos limites simples da raz ã o , em que a ê nfase est á na
centralidade da dimens ã o racional como par â metro interpretativo de
qualquer realidade. É importante observar, no entanto, que a concep çã o
de racionalidade do fil ó sofo alem ã o é extremamente elaborada e
complexa demais para ser expressa de modo sucinto. De qualquer modo,
pode-se dizer que a religi ã o tem papel secund á rio, no projeto kantiano
de uma moralidade universal. Como afirma Durant sobre essa
perspectiva, “ [...] igrejas e dogmas s ó t ê m valor na medida em que
auxiliam o desenvolvimento moral da ra ç a ” . 19

Sendo assim, a pr ó pria teologia como disciplina sofre o impacto dessa


marginaliza çã o da dimens ã o fiduci á ria, sendo tomada como uma ci ê
ncia — por vezes atacada por n ã o ter car á ter cient í fico — que n ã o
teria a mesma autoridade — na esfera p ú blica — que outras disciplinas
do conhecimento, como a filosofia e a sociologia. Na concep çã o cl á
ssica de modernidade, portanto, n ã o h á espa ç o para uma teologia p ú
blica.
Constituiu-se dessa maneira uma das principais transforma çõ es
originadas com a modernidade: a racionaliza çã o — na medida em que
a raz ã o é legitimada, seja numa concep çã o objetiva ou
instrumentalizada — como arauto da verdade. Como diz Touraine sobre
a concep çã o cl á ssica de modernidade:
[ela] é antes de tudo a constru çã o de uma imagem racionalista do mundo
que integra o homem na natureza, o microcosmo e o macrocosmo, e que
rejeita todas as formas de dualismo do corpo e da alma, do mundo humano
da transcend ê nci a. 20

Na medida em que se entende como ser racional, o pr ó prio homem


passa a enxergar o mundo como algo racional. O mundo moderno é l ó
gico. Ele pode ser conhecido, pesquisado, estudado e explorado pela raz
ã o instrumentalizada pela ci ê ncia, pois, se h á l ó gica, h á
necessariamente padr õ es invariantes, que os modernos chamam de
leis . Ora, se existiam leis f í sicas que governavam o universo, por que n
ã o haveria leis que governavam a natureza, as rela çõ es sociais e at é o
pr ó prio ser humano?

Foi a partir desse princ í pio que a ci ê ncia passou a consolidar-se na


modernidade como a forma de conhecer essas leis — a ordem e a l ó
gica — e, para tal empreendimento, o uso da raz ã o passou a ser condi
çã o fundamental. Pois, como sugerem os antrop ó logos Eriksen e
Nielsen:
Se a matem á tica, a linguagem da raz ã o, podia revelar verdades naturais
fundamentais como as leis de Newton, n ã o se seguia que a natureza era ela
pr ó pria racional e que todo empreendimento dirigido pela raz ã o estaria
destinado ao sucesso ? 21

Essa mudan ç a radical na epistemologia moderna é uma das causas do


turbilh ã o da vida na modernidade do qual nos fala Marshall Berman,
pois ocorreram “ [...] grandes descobertas nas ci ê ncias f í sicas [...],
mudan ç a da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele
” . 22 Como dito anteriormente, a forma como o ser humano passa a
olhar o mundo, no sentido de uma cosmovis ã o, de uma vis ã o de
mundo, é alterada e completamente distinta das formas pr é -modernas.
Giddens, portanto, diz que “ [...] a modernidade altera radicalmente a
natureza da vida social cotidiana e afeta os aspectos mais pessoais de
nossa experi ê ncia ” . 23

Subjetiva çã o

Apesar do que foi dito at é aqui, a modernidade n ã o pode ser


circunscrita exclusivamente ao processo de racionaliza çã o. Proceder
dessa maneira seria incorrer no erro de identificar a modernidade com
sua ideologia, com a ideia pretensiosa de que as “ luzes ” da Fran ç a
vieram iluminar a “ escurid ã o ” , 24 e que a queda da Bastilha e o
ideal dos revoltosos fora o ú nico ideal verdadeiramente moderno
ocorrido na hist ó ria.

Assim, mesmo na pr ó pria tradi çã o francesa das ci ê ncias sociais,


denominada de sociologia da experi ê ncia , h á autores como Alain
Touraine e Fran ç ois Dube t 25 que discordam da interpreta çã o da
modernidade como estritamente identificada com o processo de
racionaliza çã o. Para eles, h á outra dimens ã o que n ã o pode, de
maneira alguma, ser exclu í da da interpreta çã o da modernidade: a
subjetiva çã o . Segundo a defini çã o de Touraine:
[a modernidade é a] separa çã o crescente do mundo objetivo , criada pela
raz ã o em concord â ncia com as leis da natureza, e do mundo da
subjetividade , que é antes de mais nada o do individualismo ou, mais
precisamente, o de um apelo à liberdade pessoa l. 26

Essa concep çã o enfatiza o desenvolvimento da ideia de sujeito , o


qual n ã o poderia ser reduzido, exclusivamente, a sua dimens ã o
racional, mas que é um agente aut ô nomo diante da sociedade. Essa
tradi çã o ressalta, portanto, a dimens ã o do indiv í duo, na cl á ssica
dualidade sociol ó gica ag ê ncia/estrutura . Essa ê nfase no sujeito
livre e aut ô nomo é o que Dooyeweerd denomina ideal de
personalidade , que nasce na renascen ç a e que desde o princ í pio
esteve em conflito com a ideia de natureza .
O ideal de progresso

Na dimens ã o pol í tica: Revolu çã o Francesa

Outra importante caracter í stica que se destaca com a modernidade é a


ideia de progresso . Na realidade, pode-se dizer que a modernidade traz
consigo uma mudan ç a da concep çã o de tempo e hist ó ria.

Como exp õ e Kumar, a tend ê ncia do per í odo pr é -moderno era


entender a hist ó ria como c í clic a: 27 n ã o h á nada de novo debaixo
do c é u . 28 A tese central do autor é que a modernidade secularizou a
concep çã o crist ã de tempo, pois o cristianismo renova a ideia de tempo
e hist ó ria, atribui-lhes significado: “ [o cristianismo] derrubou a concep
çã o naturalista do mundo antigo, [onde] havia mudan ç a, mas n ã o
novidade ” . 29 A imagem de uma marcha do homem moderno atrav é
s da hist ó ria ganha for ç a, e a modernidade constitui um “ [...]
momento central da nossa hist ó ria, em que n ó s nos pensamos
inteiramente em termos hist ó ricos ” . 30

Nesse ponto, o evento ocorrido na Fran ç a no s é culo XVIII é um


marco da modernidade, e at é mesmo em termos do conceito de revolu
çã o, pois:
A Revolu çã o Francesa de 1789 foi a primeira revolu çã o moderna. Ela
transformou o conceito de revolu çã o. Revolu çã o n ã o significava mais o
giro de uma roda ou um ciclo que sempre fazia algo retornar a seu ponto de
partida. Nesse momento passou a significar a cria çã o de alguma coisa
inteiramente nova, algo nunca visto antes no mundo [... ]. 31

Uma das principais consequ ê ncias da Revolu çã o Francesa é que ela


introduziu na hist ó ria e no pensamento moderno a ideia de ator hist ó
rico, e ator aqui no sentido de algu é m que de fato age sobre a hist ó ria.
O homem moderno passa a ver-se como algu é m que incide sobre o
tempo, transformando-o. Logo, as possibilidades est ã o abertas e a cren
ç a na ideia de que o homem pode progredir aumenta cada vez mais.
Ao tratar da Revolu çã o Francesa, Marshal Berman diz:
Com ela e suas reverbera çõ es, ganha vida, de maneira abrupta e dram á
tica, um grande e moderno p ú blico. Esse p ú blico partilha o sentimento de
viver em uma era revolucion á ria, uma era que desencadeia explosivas
convuls õ es em todos os n í veis da vida pessoal, social e pol í tica . 32

Revolu çõ es pol í ticas, transforma çõ es econ ô micas, desenvolvimento


da ci ê ncia, descobertas al é m-mar, pensamento filos ó fico com novas
ideias: o ser humano est á no centro da hist ó ria e a liberdade é um valor
que come ç a a florescer. Esse é o cen á rio moderno, cuja expectativa no
progresso da humanidade é crescente, no qual os profetas d ã o lugar aos
cientistas e a reden çã o pela f é d á lugar à evolu çã o pela ci ê ncia.

A modernidade passou ent ã o a ser identificada como ponto de refer ê


ncia da evolu çã o hist ó rica e, por isso, nas ci ê ncias humanas, tem-se
que o surgimento do conceito de sociedade est á diretamente ligado ao
de modernidade, pois todo o progresso era dimensionado no eixo que vai
da tradi çã o à modernidade . 33

O soci ó logo franc ê s Fran ç ois Dubet assevera que as sociedades eram
hierarquizadas de acordo com seu grau de modernidade, seja na
racionaliza çã o do mundo em Weber, no desenvolvimento das for ç as
produtivas em Marx ou na divis ã o do trabalho em D ü rkheim . 34
Evidencia-se esse processo tamb é m no surgimento da antropologia,
com seus esquemas evolucionistas e etapistas — tamb é m chamado de
m é todo comparativo — que classificavam as sociedades de selvagens a
civilizadas.

Consolida-se assim uma caracter í stica da modernidade, que é a fixa çã


o do olhar muito mais no futuro que no passado. Em certo sentido, a
autoridade do passado é abolida sobre o presente — fim da tradi çã o .
Ela traz uma atmosfera de novos acontecimentos, novas possibilidades:
o progresso. Ocorre um processo de coloniza çã o do futuro , 35
quando os acontecimentos do porvir s ã o mais relevantes para o
entendimento do presente e das coisas vividas do que propriamente os
acontecimentos do passado.

Na dimens ã o econ ô mica: a Revolu çã o Industrial

Parece ent ã o que falar em modernidade n ã o é falar de um ú nico


aspecto ou de uma caracter í stica definidora, pois a modernidade diz
respeito a uma s é rie de transforma çõ es em todas as esferas e ordens
da vida social.

Todavia, como bem apontou Kumar: “ Ser á que é realmente poss í vel
pensar no mundo moderno sem considerar que ele é industrial ? 36 ”
Se fosse necess á rio pensar em outra imagem do mundo moderno,
imaginar-se-ia uma f á brica mecanizada, com uma m á quina a vapor
funcionando constantemente.

É com a Revolu çã o Industrial do s é culo XVIII na Gr ã -Bretanha que


a modernidade recebe sua dimens ã o materia l. 37 Como definir essa
revolu çã o? Para o historiador marxista Eric Hobsbawm, “ [a Revolu çã
o Industrial é a] multiplica çã o r á pida, constante, e at é o presente
ilimitada, de homens, mercadorias e servi ç os ” . 38 Ela traz consigo
um novo modelo econ ô mico e um novo modo de organizar a produ çã
o, que é o capitalismo, definido por Giddens, lembrando Marx, como: “
[...] um sistema de produ çã o de mercadorias, centrado na rela çã o entre
a propriedade privada do capital e o trabalho assalariado sem posse de
propriedade, esta rela çã o formando o eixo principal de um sistema de
classes ” . 39

Esse processo de industrializa çã o advindo com a Revolu çã o Industrial


estaria ligado ao desenvolvimento da tecnologia e aos avan ç os da ci ê
ncia que impulsionavam a modernidade. De igual modo, o ideal de
progresso era part í cipe do desenvolvimento desse novo sistema econ ô
mico e da cren ç a de que se alcan ç aria maior desenvolvimento nessas
novas bases produtivas. Sobre essa no çã o, Polanyi observa que:
[...] animada por uma f é emocional na espontaneidade, a atitude de senso
comum em rela çã o à mudan ç a foi substitu í da por uma pronta aceita çã o
m í stica das consequ ê ncias sociais do progresso econ ô mico, quaisquer
que elas fossem . 40

Al é m de ter dado sua dimens ã o material à modernidade, o processo de


industrializa çã o tamb é m se destaca pelo fato de ter feito do Ocidente
uma civiliza çã o mundial. É ineg á vel que o sistema de produ çã o
nascido com a Revolu çã o Industrial se tornou um sistema econ ô mico
mundial que tem por caracter í stica revolucionar constantemente os
meios de produ çã o. Por esse motivo, pode-se enxergar um mundo pr é -
industrial e outro emergido depois da ind ú stria.

Nesse sentido, Kumar lembra que:


Se os ex é rcitos de Napole ã o levaram as ideias da Revolu çã o Francesa a
toda a Europa, as marinhas de guerra brit â nica e francesa levaram a
mensagem da Revolu çã o Industrial a todo o mundo. A mensagem era
simples: em nossos tempos, tempos modernos, s ó h á uma maneira de
sobreviver: industrializar-se [...]. Modernizar era industrializa r. 41
Seja o sistema capitalista louvado e apreciado, como o foi pelos liberais
do s é culo XIX, ou mesmo pelos neoliberais do s é culo XX, seja ele
criticado, como o foi duramente por te ó ricos como Marx no s é culo
XIX, chegando a ser chamado de “ Moinho Sat â nico ” por Karl
Polanyi, ele é , inegavelmente, o sistema que se desenvolveu com a
modernidade. Assim sendo, ganhou um escopo mundial, tornando a
economia moderna uma economia completamente globalizada, imposs í
vel de ser pensada fora de um quadro global.
Outra face (est é tica) da modernidade?

É importante observar que a modernidade, enquanto projeto


racionalizante , recebeu in ú meras cr í ticas para al é m do campo da
filosofia e da teoria social. Uma das mais conhecidas formas de contesta
çã o da modernidade foi o Romantismo alem ã o do final do s é culo
XVII I. 42 Al é m dele, destaca-se tamb é m o movimento cultural
chamado modernismo , que se deu principalmente na literatura e nas
artes. Para Kumar, o modernismo provocou uma separa çã o entre as
dimens õ es sociais e pol í ticas da modernidade e seu conceito est é tico.
“ De um lado, a ci ê ncia, a raz ã o, o progresso, o industrialismo; do
outro, a refuta çã o e rejei çã o dos mesmos, em favor do sentimento, da
intui çã o e do uso da imagina çã o . 43 ”

Entre os autores que estudam a modernidade para al é m do campo cient


í fico e filos ó fico, um dos escritores mais citados é o franc ê s Charles
Baudelair e, 44 em raz ã o de sua obra O pintor da vida moderna,
escrita em 1863. Nela, Baudelaire exp õ e os questionamentos e ang ú
stias presentes na vida do homem moderno. A ambiguidade aparece da
seguinte maneira: ao mesmo tempo que ele critica a modernidade, a
condi çã o de ser indiv í duo moderno — capaz de criticar a pr ó pria
ordem social — ela é exaltada, como se o ato de contestar constitu í sse
um ato autenticamente moderno.

Na obra de Baudelaire s ã o encontrados elementos subversivos à


modernidade cl á ssica. Dessa forma: “ [a] raz ã o era combatida pela
imagina çã o, o artif í cio pelo natural, a objetividade pela subjetividade,
o c á lculo pela espontaneidade, o mundano pelo vision á rio, a vis ã o
mundial da ci ê ncia pelo apelo ao fant á stico e ao sobrenatural ” . 45
H á no modernismo um apelo à liberdade humana, entendida como
absolutamente livre. Nesse sentido, a pr ó pria raz ã o é combatida, pois
tolheria a possibilidade de escolha do homem.
É preciso lembrar ainda que o contexto europeu, principalmente do s é
culo XIX, era um contexto de transforma çõ es radicais, n ã o s ó pol í
ticas e econ ô micas, mas tamb é m estruturais — com o crescimento das
cidades devido ao processo de industrializa çã o. As pessoas passaram a
viver em grandes cidades, com crescente complexidade da vida social. H
á , portanto, nesse processo, uma necessidade de o ser humano
(re)pensar sua pr ó pria condi çã o. Diante disso, artistas e escritores
passaram a captar esse novo ambiente e a expressar suas impress õ es.

Outro importante escritor que se destaca por fazer uma forte cr í tica à
modernidade é o russo Fi ó dor Dostoi é vski (1821-1881),
principalmente no livro Notas do subsolo, publicado em 1864 . Nele,
atrav é s de seu personagem central, o autor vocifera contra o ideal de
progresso conduzido pela ci ê ncia e contra a redu çã o do homem a uma
m á quina, a mera engrenagem de um sistema. Numa c é lebre passagem,
o escritor diz que “ [...] os homens continuam a ser homens, e n ã o
teclas de piano [...] ” . 46 Ainda sobre isso, diz:
Mesmo que se constate que ele é de fato uma tecla de piano, mesmo que isso lhe
seja demonstrado pelas ci ê ncias naturais e pela matem á tica, nem assim ele criar
á ju í zo e propositalmente far á alguma coisa oposta, unicamente por ingratid ã o;
de fato, para impor sua vontad e. 47

Mais adiante na mesma obra, exclama:


Se os senhores disserem que tudo isso tamb é m pode ser calculado pela
tabela — o caos, a treva, a maldi çã o, de modo que a mera possibilidade de
c á lculo pr é vio pare tudo e a raz ã o triunfe — , ent ã o nesse caso o
homem ficar á propositalmente louco, para ficar privado da raz ã o e
defender sua opini ã o! Eu creio nisso, respondo por isso, porque toda quest ã
o humana resume-se, na realidade, em o homem provar constantemente para
si mesmo que ele é um homem, e n ã o uma tecla ! 48

H á nesses excertos, como j á dito, um forte apelo à vontade e à


liberdade humana. Essa outra face da modernidade, que pareceu ser
esmagada pelo processo de racionaliza çã o, vem à tona como forma de
cr í tica e libera çã o dos modelos totalizantes, da pura raz ã o
instrumental, da modernidade transformada em uma gaiola de ferro ,
na qual o ser humano de fato é s ó uma pe ç a dentro de um sistema.
Todavia, a pergunta que sempre rondou esse outro polo da modernidade
foi: onde enraizar essa liberdade?

Um cen á rio de crise: superamos a modernidade?

A discuss ã o em torno das teorias p ó s-modernas é ampla e atinge um


grande n ú mero de á reas do conhecimento: da f í sica, passando pelas
artes, e chegando à filosofia. Muitos autores t ê m sido elencados como p
ó s-modernos: Martin Heidegger, Michael Foucault, Jacques Derrida,
Jean-Fran ç ois Lyotard, Daniel Bell, entre outros. A fim de fazer uma
breve discuss ã o e apresenta çã o de uma das cr í ticas centrais de uma
poss í vel supera çã o da modernidade, apresenta-se aqui, de maneira
geral, o pensamento do franc ê s Jean-Fran ç ois Lyotard.

A obra que deu notoriedade a Lyotard foi publicada em 1979 com o t í


tulo de La condition postmoderne . Em sua primeira edi çã o em
portugu ê s, em 1986, essa obra recebeu o t í tulo de O p ó s-moderno .
A principal proposi çã o de Lyotard é que o status do conhecimento
est á mudando. Como ele mesmo afirma logo no primeiro cap í tulo de
seu livro: “ Nossa hip ó tese de trabalho é a de que o saber muda de
estatuto ao mesmo tempo que as sociedades entram na idade dita p ó s-
industrial e as culturas na idade dita p ó s-moderna ” . 49

Para ele, as no çõ es de verdade e progresso presentes na modernidade


precisavam ser abandonadas. A ci ê ncia, nascida na era moderna, n ã o
deveria ter status de verdadeira, pois sua legitima çã o estava nela
mesma, dentro do jogo de linguagem que ela mesma difundiu. Sendo
assim, a ci ê ncia se constituiria como uma “ metanarrativa ” , como um
discurso de legitima çã o de si mesma.
Essas “ metanarrativas ” seriam, na verdade, “ [...] grandes esquemas
hist ó rico-filos ó ficos de progresso e perfectibilidade criados pela era
moderna ” . 50 Logo, uma ideia de progresso que se fundamentasse
nelas seria inconceb í vel, pois agora existe um mundo incr é dulo a
essas metanarrativas, devido à crescente expans ã o da no çã o de
relatividade na ci ê ncia, na qual h á uma rejei çã o do fundamento ú
ltimo de verdade, por ela trazido.
Embora as narrativas, que s ã o prescritivas e pr á ticas, sejam diferenciadas
por Lyotard de “ ci ê ncia ” , que se interessa pela verdade e por alega çõ es
de verdade, n ã o pode haver a menor d ú vida de que grande parte do
interesse das metanarrativas da modernidade dependia de sua associa çã o à
ci ê ncia e ao m é todo cient í fico [...] É de fato a crise da ci ê ncia que pode
explicar em parte a atra çã o exercida pela teoria p ó s-moderna hoj e. 51

Para esta perspectiva, a modernidade acabou. A no çã o de sentido e de


progresso é criticada e abandonada. Para Lyotard, a hist ó ria n ã o é
teleol ó gica, n ã o tem uma finalidade espec í fica. Para os te ó ricos da
p ó s-modernidade, n ã o se est á indo a lugar algum e tamb é m n ã o faz
diferen ç a de onde se veio. Para eles, n ã o existe um fundamento ú
ltimo na explica çã o da realidade, tudo o que se tem s ã o discursos
disputando, em um campo de poder, qual deles prevalece. Nesse sentido,
ci ê ncia, filosofia, artes, religi ã o, enfim, tudo é discurso; s ã o
tentativas de dar fundamento à ordem social.
Todas as grandes narrativas da modernidade s ã o desconsideradas,
independentemente do campo em que se situam: socialismo, capitalismo,
cristianismo, romantismo, liberalismo, keynesianismo [...], marxismo, e
principalmente todas as categorias e referenciais do Iluminismo, tais como:
dial é tica, hermen ê utica, emancipa çã o, sujeito, raz ã o, desenvolvimento,
progresso, verdade, totalidade, hist ó ria, igualdade, liberdade, consci ê ncia
[... ]. 52
Por isso, a ideia de raz ã o presente na modernidade perderia sua
legitimidade como fonte segura da verdade. Pois “ [...] n ã o existem
garantias de que a raz ã o produza consequ ê ncias libertadoras ” , 53
vide a desesperan ç a gerada pelas duas grandes guerras mundiais. Desta
forma, por deslegitimar os paradigmas da modernidade, a teoria p ó s-
moderna se coloca como um modelo explicativo da realidade dos dias
atuais.

Todavia, como j á afirmado, nem todos os autores concordam com o


termo p ó s-modernidade, haja vista acreditarem em um processo de
continuidade entre a modernidade e o tempo contempor â neo, em
detrimento de uma perspectiva de ruptura. Tal é o caso do soci ó logo
brit â nico Anthony Giddens, que lan ç a luz sobre a interpreta çã o da
modernidade a partir da exposi çã o da sua radicaliza çã o.

Na explica çã o giddensiana, as “ [...] sociedades modernas chegaram a


um ponto em que s ã o obrigadas a refletir sobre si mesmas e que, ao
mesmo tempo, desenvolveram a capacidade de refletir
retrospectivamente sobre si mesmas ” . 54 Ou seja, com o aumento da
quantidade e da velocidade das informa çõ es, as institui çõ es sociais e
os pr ó prios indiv í duos s ã o coagidos a viver em constante mudan ç a
e transforma çã o. Novos conhecimentos a todo momento s ã o trazidos à
tona, e os antigos s ã o solapados pelos novos, gerando necessidade de
reorganiza çã o constante por parte dos modernos.

Na alta modernidade, a reflexividade teria instaurado a d ú vida


radical como atitude padr ã o diante da vida — numa esp é cie de
relativismo. Tal processo resultaria em uma inseguran ç a ontol ó gica ou
mesmo num mal-estar generalizado, causado pela incapacidade de
encontrar pontos fixos, portos seguros de conhecimento ontol ó gico. Ao
contr á rio da atualidade, a modernidade cl á ssica, atrav é s da ci ê ncia,
fornecia esses portos seguros de conhecimento.
Dentro do projeto iluminista, no ide á rio de progresso da modernidade
cl á ssica, de fato acreditava-se que, com o desenvolvimento da ci ê ncia,
as d ú vidas diminuiriam gradativamente, pois o cosmos seria revelado, a
natureza seria esquadrinhada e o pr ó prio homem seria compreendido
pelos olhos da raz ã o. Entretanto “ [...] a reflexividade da modernidade
solapa [at é ] a certeza de conhecimento, mesmo nos dom í nios centrais
da ci ê ncia natural ” . 55 O que acontece, ent ã o, é o processo inverso,
o car á ter hipot é tico do conhecimento cient í fico alcan ç a todas as
esferas da vida humana, tornando o conhecimento pass í vel de revis ã o
e com car á ter provis ó rio.
Pois quando as reivindica çõ es da raz ã o substitu í ram as da tradi çã o, elas
pareciam oferecer uma sensa çã o de certeza maior do que a que era
propiciada pelo dogma anterior, [todavia] a reflexividade da modernidade de
fato subverte a raz ã o, pelo menos onde a raz ã o é entendida como ganho de
conhecimento certo . 56

Nesse novo contexto, marcado por um grande dinamismo, o processo de


forma çã o da identidade é completamente novo, pois em condi çõ es pr
é -modernas a forma çã o da identidade individual era um processo sem
tantos conflitos, visto que o ambiente social era mais constante e a refer
ê ncia da tradi çã o estava sempre presente. A reflexividade arranca a
identidade de um ponto fixo e a lan ç a no mar agitado de um
conhecimento que é constantemente renovado, e que se movimenta em
uma sociedade p ó s-tradicional, com diversidade de cen á rios sociais.

H á de se apontar, todavia, que a discuss ã o terminol ó gica em torno da


melhor forma de descrever os tempos contempor â neos é bem variada e
expressa diferentes ê nfases te ó ricas. Se Lyotard prefere o termo p ó s-
modernidade , pelas raz õ es j á descritas anteriormente, autores como
Giddens usam os termos a lta modernidade ou modernidade tardia ,
para apontar os aspectos de continuidade e de radicaliza çã o em
contraste com o per í odo anterior. Zygmunt Bauman, soci ó logo polon
ê s, passou a usar o termo modernidade l í quida e o autor franc ê s
Gilles Lipovetsky prefere usar hipermodernidade .

Tal variedade na terminologia parece revelar um processo muito din â


mico e que de modo algum é estanque. N ã o se pode falar, portanto, de
uma supera çã o completa da mentalidade moderna. Peter Leithart
expressa essa ideia de forma muita clara quando acentua que:
[A] p ó s-modernidade é um emaranhado de desenvolvimentos cultural, filos
ó fico e social, que surge de intensifica çõ es, invers õ es e
desmascaramentos da modernidade, a qual desafia, duvida e rejeita a trindade
moderna de controle, libera çã o e progresso . 57

Poderia Dooyeweerd ser enquadrado, ent ã o, como um autor p ó s-


moderno? Uma resposta exaustiva e mais profunda a essa quest ã o n ã o
est á no horizonte deste livro, uma vez que demandaria um trabalho
espec í fico. Todavia é preciso abordar a quest ã o, haja vista sua
profunda relev â ncia em nosso contexto. Por sua fundamenta çã o, a cr í
tica cosmon ô mica de Herman Dooyeweerd difere das cr í ticas p ó s-
modernas à modernidade.

A partir do pensamento dooyeweerdiano, ainda estar í amos vivendo as


consequ ê ncias da modernidade, em refer ê ncia ao motivo-base
humanista advindo com esta — natureza/liberdade . A modernidade cl
á ssica teria enfatizado o polo da natureza com o desenvolvimento das ci
ê ncias. Nesse contexto floresceram formas reducionistas de ver o
mundo, como o mecanicismo na f í sica, com Newton; o organicismo
e o evolucionismo na biologia, com Spencer e Darwin; e o
Positivismo, nas ci ê ncias sociais, com Augusto Comte. Todos esses
ismos foram frutos do racionalismo e acabaram por mecanizar,
objetificar, materializar e naturalizar a exist ê ncia e a vida humanas.

Enquanto isso, o per í odo da modernidade tardia ou p ó s-moderno teria


ido para o outro extremo dessa rela çã o dualista, o motivo da liberdade
. O que Dooyeweerd categorizou como o ideal de personalidade foi
expresso no Romantismo . Nesse polo, o pensamento p ó s-moderno
estaria evidenciado, com forte ê nfase no indiv í duo, na subjetividade e
na exist ê ncia. Logo, a p ó s-modernidade n ã o seria de forma alguma
uma supera çã o do pensamento moderno, mas uma express ã o, ainda
que em outro polo, dele mesmo.

Sendo assim, Dooyeweerd n ã o se alinha com os cr í ticos da raz ã o


moderna, por ela tolher a liberdade humana. O autor holand ê s sempre
suspeitou da raz ã o tornada aut ô noma, pelo cora çã o que busca a
origem na realidade criada. Para ele, o descentramento da raz ã o no
pensamento moderno expressa menos uma grande ruptura, e mais a cont
í nua busca do ser humano por um novo í dolo, dentro de uma ant í tese
indissol ú vel, resultante de um motivo-base ap ó stata.

Portanto, fica claro que a modernidade n ã o é monol í tica em suas


manifesta çõ es. Cabe, ent ã o, a pergunta: em que sentido a proposta
filos ó fica de Herman Dooyeweerd é inovadora? Por qual vi é s é feita a
sua cr í tica à modernidade? A exposi çã o do contexto intelectual de
Dooyeweerd no di á logo com a modernidade, bem como o esbo ç o
inicial de suas ideias, ser á realizada no cap í tulo a seguir.
2

O que Genebra tem a ver com Amsterd ã ? O


neocalvinismo holand ê s e o pensamento de
Herman Dooyeweerd

Se quisermos ter uma vis ã o mais ampla do pensamento de Herman


Doyeweerd, precisamos contextualiz á -lo no quadro do neocalvinismo ,
58
um movimento de reforma da sociedade holandesa, com in í cio em
meados do s é culo XIX, que abrangeu v á rias esferas daquela
sociedade: da teologia à pol í tica, da filosofia à educa çã o. De forma
bastante ampla, podemos afirmar que esse movimento, cujas vigas se
erguiam dos fundamentos protestantes reformados, desenvolveu uma
atualiza çã o dos princ í pios do calvinismo do s é culo XVI, aplicando-
os ao contexto da Holanda do s é culo XIX.

Como discutido no cap í tulo anterior, as transforma çõ es em v á rios


campos da vida originadas com a modernidade atingiram em cheio tamb
é m a sociedade holandesa. É justamente nesse cen á rio que o
neocalvinismo vai se desenvolver.

Os valores humanistas da Revolu çã o Francesa, cujo princ í pio de


laicidade carregava forte teor antirreligioso, se espalhavam pela
Europa, for ç ando a retirada de valores religiosos da esfera p ú blica
com vistas a uma privatiza çã o da f é , sob a b ê n çã o do iluminismo ,
quando n ã o em um embate aberto contra a f é crist ã , especificamente.
Aliado ao ide á rio pol í tico liberal, o s é culo XIX pode ser pensado
como o s é culo do á pice da cren ç a no progresso humano por interm é
dio da raz ã o. Tal racionalidade precisava ser expressa, entretanto, pelo
m é todo cient í fico moderno, cuja validade epistemol ó gica passou a
substituir todas as demais formas de conhecer. N ã o à toa, é nesse
contexto que surgem, por exemplo, as ci ê ncias sociais, como a
sociologia e a antropologia. Inicialmente, ambas mostram s é rias
reservas e at é certa animosidade contra a filosofia, na medida em que
esta n ã o teria valor cient í fico. Express ã o disso é a defesa que
Augusto Comt e 59 faz de um estado cient í fico (positivo) mais
elevado, em contraposi çã o aos est á gios anteriores menos
desenvolvidos, como o religioso e o filos ó fico . Outro exemplo é o
ideal de Marx de um socialismo cient í fico , em oposi çã o a um
socialismo idealista . Esse s é culo ainda viu Feuerbach, Darwin,
Durkheim, Engels, Boas, entre outros.

Nesse sentido, uma das marcas caracter í sticas do s é culo XIX foi o
ideal moderno de ci ê ncia, expresso na separa çã o entre f é e raz ã o e
na tentativa de diminuir a influ ê ncia do cristianismo em á reas da vida
p ú blica na Europa, como na cultura e na pol í tica.

A quest ã o com a qual os neocalvinistas se debatiam naquele momento


era a seguinte: “ Pode o cristianismo, ap ó s a Revolu çã o Francesa, ser
reavivado de modo a ter um efeito salutar na dire çã o da cultura
ocidental ? 60 ” Havia uma batalha contra as for ç as modernas do
iluminismo liberalizante. Segundo Kaslbeeck, “ [...] as for ç as do
catolicismo romano e do protestantismo evang é lico foram muito fracas
para resistir efetivamente ao controle do humanismo liberal nos
setores decisivos da cultura holandesa ” . 61

O neocalvinismo surge, entre outros motivos, para responder a esses


desafios gerados pela modernidade. Esse movimento teve na figura de
Abraham Kuyper (1837-1920) seu principal expoente. Entretanto, nomes
como o de Guillaume Groen Van Prinsterer (1801-1876), Herman
Bavinck (1854-1921) — esse, reconhecidamente, o seu te ó logo sistem
á tico — e Dirk Vollenhoven (1892-1978) — cunhado de Dooyeweerd
— tamb é m est ã o relacionados aos prim ó rdios do movimento . 62

Comentando a import â ncia de Dooyeweerd para o desenvolvimento


posterior das ideias da tradi çã o neocalvinista, o fil ó sofo brasileiro
Ricardo Quadros Gouv ê a afirma que:
[...] sem Dooyeweerd n ã o existiria filosofia reformacional, e a fragmenta çã
o dos outros pensadores citados seria inevit á vel. Dooyeweerd desenvolveu
uma filosofia que serviu historicamente de polo unificador do pensamento
filos ó fico de pessoas engajadas com a tradi çã o reformada ou calvinist a.
63

Ainda assim, Abraham Kuyper foi seu representante mais conhecido.


Kuyper foi jornalista, pol í tico, pastor, fundador de um partido pol í tico
( partido antirrevolucion á rio ), primeiro ministro da Holanda (1901-
1905) e tamb é m fundador da renomada Vrije Universiteit Amsterd ã
(Universidade Livre de Amsterd ã ). 64 Uma de suas obras mais
conhecidas s ã o suas Stone Lectures , publicadas no Brasil sob o t í
tulo Calvinismo . Essa obra é a reuni ã o de cinco palestras proferidas
por Kuyper em Princeton, nos EUA, em 1898. Na palestra de abertura,
ele assevera:
N ã o h á d ú vida, ent ã o, de que o cristianismo est á exposto a grandes e s
é rios perigos. Dois sistemas de vida est ã o em combate mortal. O
modernismo est á comprometido em construir um mundo pr ó prio a partir de
elementos do homem natural e a construir o pr ó prio homem a partir de
elementos da natureza . 65

A quest ã o que se impunha e que precisava de uma resposta, de acordo


com os neocalvinistas, era como tornar p ú blica a influ ê ncia crist ã . “
O objetivo de Kuyper foi descrito como uma ‘ recristianiza çã o ’ da
cultura holandesa [...] ” . 66 Para Jonathan Chaplin, “ [...] o
neocalvinismo kuyperiano pode ser classificado como uma forma
modernizante e progressiva de um pluralismo democr á tico, inspirado
por uma perspectiva religiosa tradicional [...] ” . 67

Em certo sentido, o neocalvinismo configurou-se como uma resposta


crist ã aos valores seculares dominantes naquele contexto, sem,
entretanto, operar uma deslegitima çã o das estruturas culturais, pol í
ticas e econ ô micas — como se fossem problem á ticas em si — , mas
afirmando-as como estruturas criacionais e defendendo sua reforma
constante, a partir de valores crist ã os. Como exemplo pr á tico dessa
resposta, Kuyper fundou, em 1879, o partido antirrevolucion á rio ( Anti-
Revolutionaire Partij , ARP). Como mote central estava a reforma das
estruturas sociais em contraposi çã o à ideia de uma revolu çã o radical.
Comentando sobre Kuyper e sua influ ê ncia na pol í tica, Chaplin
afirma:
Kuyper foi um dos primeiros defensores do sufr á gio adulto universal
(masculino). O partido foi formado em uma ruptura com o movimento
conservador aristocr á tico com o qual os “ anti-revolucion á rios ” estiveram
aliados inicialmente. N ã o foi apenas o primeiro partido democrata-crist ã o
a estabelecer-se na Europa, mas o primeiro partido pol í tico de massas.
Assim como o calvinismo original inspirara movimentos democratizantes no
s é culo XVII, o neocalvinismo holand ê s tamb é m o fez sob a lideran ç a
de Kuyper no s é culo XIX . 68

O principal tema abordado pelo neocalvinismo era a unidade de cria çã o


e reden çã o, natureza e gra ç a. De igual forma, havia uma afirma çã o
do cristianismo como um sistema total de vida, com especial ê nfase na
lei criacional e nas esferas de soberania, o que acabaria por influenciar
no nome da tradi çã o filos ó fica de Dooyeweerd — Filosofia cosmon ô
mica — conhecida em alguns c í rculos tamb é m como Escola de
Amsterd ã ou Filosofia reformacional.
Outro elemento enfatizado por esse movimento era o postulado do
reformador franc ê s Jo ã o Calvino sobre o sentido teol ó gico da
queda . Seguindo o te ó logo de Genebra, Kuyper defendia a doutrina da
queda total do ser humano, sendo um forte opositor da ideia de uma raz
ã o natural tomista, cuja ê nfase estava na possibilidade de um
conhecimento humano de Deus a partir de estruturas racionais n ã o
afetadas pelo pecado — uma teologia natural . Para Kuyper, todas as á
reas da vida foram afetadas pelo pecado, incluindo a capacidade
racional, da í a necessidade de reforma do pensamento.

Nessa dire çã o, uma filosofia que tivesse como ponto de partida a raz ã
o aut ô noma per se desconsideraria um aspecto central da
antropologia humana: a presen ç a do pecado. Por isso, com este estrato
teol ó gico, o projeto de uma filosofia crist ã teria seu espa ç o,
diferenciando-se, entretanto, do escolasticismo .

Sobre a base do neocalvinismo e da proposta de filosofia cosmon ô mica


de Dooyeweerd, essa tradi çã o de pensamento continuou a desenvolver-
se e encontra eco nos dias atuais em diferentes autores, institui çõ es e
associa çõ es acad ê micas. Alguns autores t ê m se destacado em
diferentes á reas do conhecimento, propondo avan ç os nas teses
originais de Dooyeweerd. Alguns deles s ã o: James Olthuis, no campo
da teologia filos ó fica, trabalhando temas como p ó s-modernidade,
hermen ê utica e psicoterapia; Calvin Seerveld, na filosofia est é tica e
produ çã o art í stica; Robert Knudsen (1924-2000), professor de
Teologia em Westminster, com foco em apolog é tica crist ã , com um
prof í cuo trabalho sobre o pensamento teol ó gico moderno,
especialmente das obras de Bultmann, Jaspers e Tillich; Jonathan
Chaplin, professor de Ci ê ncia Pol í tica da Universidade de Cambridge,
com importantes trabalhos de interface entre pensamento crist ã o,
sociedade civil, Estado e democracia; e Alvin Plantinga, na filosofia anal
í tica e filosofia da linguagem e epistemologi a. 69
Alguns centros de estudo e pesquisa s ã o importantes para a organiza çã
o e contato daqueles que trabalham dentro do arcabou ç o da tradi çã o
kuyperiana-dooyeweerdiana. Destacam-se nesse sentido o The Abraham
Kuyper Center for Science and Religion [Centro Abraham Kuyper de Ci
ê ncia e Religi ã o] localizado na Universidade Livre de Amsterd ã , na
Holanda ; 70 o The Abraham Kuyper Center for Public Theology
[Centro Abraham Kuyper de Teologia P ú blica] com sede no Princeton
Theological Seminary, nos EUA ; 71 e a Association for
Reformational Philosophy [Associa çã o de Filosofia Reformacional] ,
72
tamb é m com sede em Amsterd ã . Essa associa çã o foi formada por
Dooyeweerd e Vollenhoven em 1935, sob a denomina çã o de Associa
çã o de Filosofia Calvin í stica . 73 Atualmente, a Associa çã o tem
mais de 500 membros espalhados pelo mundo, mantendo a revista acad
ê mica Philosophia Reformata e promovendo eventos e publica çõ es
em torno da tradi çã o neocalvinista.

É importante observar que o uso do termo filosofia reformacional


pretende especificar a tradi çã o de Amsterd ã , cuja base est á no
movimento teol ó gico holand ê s. At é 1955, a Associa çã o de Filosofia
Reformacional chamava-se Associa çã o de Filosofia Calvin í stica.
Entretanto, diante da percep çã o do escopo ecum ê nico e abrangente da
filosofia propostas pelos autores, adotou-se o termo reformacional ,
com varia çõ es de uso, como o termo filosofia reformada , na medida
em que é uma filosofa que se fundamenta sobre os valores da Reforma
Protestante.

A reforma do pensamento te ó rico

Sob a influ ê ncia do movimento neocalvinista holand ê s, Dooyeweerd


acreditava que o pr ó prio pensamento te ó rico precisava ser reformado
e criticado a partir do motivo-base — ou motivo central — crist ã o:
cria çã o-queda-reden çã o , cuja fundamenta çã o mais detalhada se
encontrava tanto na teologia sistem á tica de Herman Bavinck quanto
nas Institutas de Jo ã o Calvino.

Para o fil ó sofo holand ê s, seguindo o reformador de Genebra, um


insight filos ó fico sobre a estrutura da realidade s ó seria poss í vel a
partir do conhecimento de quem é a pessoa humana, e tal conhecimento
s ó é poss í vel a partir do conhecimento de Deus . 74 Analisando essa
influ ê ncia, em articula çã o com o projeto filos ó fico do autor de Ra í
zes da cultura ocidental , Chaplin afirma:
[...] eu havia apontado o objetivo inicial de Dooyeweerd de elaborar
filosoficamente os pressupostos fundamentais do calvinismo. Seus escritos
iniciais apontam explicitamente para o desenvolvimento de uma filosofia “
calvinista ” . Mais tarde, ele abandona essa denomina çã o de seu projeto e
passa a falar de uma “ filosofia crist ã” . O “ motivo-base b í blico ” a que
ele aderiu, defendia ele, era ecum ê nico em seu car á ter e n ã o poderia
ser visto como propriedade de nenhum movimento confessional em
particular . 75

O que parece estar em jogo no labor filos ó fico dooyeweerdiano é


justamente esta afirma çã o da natureza religiosa do homem, que atuaria
sempre como um pressuposto em qualquer empreendimento intelectual,
seja ele filos ó fico ou cient í fico. Tal pressuposto n ã o pode tornar-se
objeto de nenhuma á rea do conhecimento, uma vez que é a partir dele
— cuja natureza é supratemporal — que a realidade ser á interpretada no
horizonte tempora l. 76

Para Ricardo Quadros Gouv ê a: “ [a] introdu çã o da religi ã o n ã o é ,


portanto, uma op çã o do fil ó sofo, mas uma escolha baseada em fatos,
uma escolha necess á ria e inevit á vel, que acontece no pensamento de
todos, crist ã os ou n ã o crist ã os, crentes ou incr é dulos ” . 77

Dessa maneira, “ [...] quando tentamos pensar teoricamente, nossa vis ã


o-de-totalidade estar á presente como um ‘ dicion á rio t á cito de
pressuposi çõ es ’” . 78 Esse dado da experi ê ncia é sempre pr é -te ó
rico , 79 n ã o sendo pass í vel de objetifica çã o, o que difere
profundamente de uma concep çã o grega de filosofia, que v ê na raz ã o
um ponto de abertura mais amplo da realidade em si do que a experi ê
ncia ordin á ria — ou de senso comum.

Sobre o projeto de uma filosofia crist ã em Dooyeweerd, Kalsbeek


afirma:
[...] a premissa mais importante dessa filosofia se encontra em seu
pressuposto de que a realidade é criada por um Deus cuja vontade é a lei
soberana e redentora para a realidade. [E ainda], Dooyeweerd n ã o
argumentou apenas que uma filosofia crist ã é religiosamente fundada; ele
alega que todos os esfor ç os filos ó ficos e cient í ficos s ã o
determinados por motivos religiosos subjacentes . 80

A Filosofia da ideia de lei , 81 t í tulo original da principal obra de


Dooyeweerd, foi traduzida ao ingl ê s, sob a supervis ã o do pr ó prio
autor, como A New Critique of Theoretical Thought , 82 em alus ã o à
s obras fundamentais do pensamento filos ó fico moderno: as obras cr í
ticas de Immanuel Kant, especialmente a Cr í tica da raz ã o pura .
Esse é um indicativo da proposta dooyeweerdiana: (re)pensar os
fundamentos epistemol ó gicos da filosofia a partir da cr í tica da
autonomia da raz ã o como fundamento transcendental v á lido para o
empreendimento filos ó fico segundo proposto por Kant.

Em sua an á lise, Dooyeweerd repensa a estrutura do pr ó prio


conhecimento, asseverando que o pensamento te ó rico constitui uma
rela çã o antit é tica que n ã o corresponde à realidade. Em uma de suas
palestras, afirma:
[a] dist â ncia entre o aspecto l ó gico do nosso pensamento e o aspecto n ã o
l ó gico do nosso campo de estudo [...] produz uma rela çã o antit é tica, na
qual o aspecto l ó gico do pensamento é oposto ao aspecto n ã o l ó gico da
realidade investigada [...]. Dessa ant í tese te ó rica surge o problema cient í
fico . 83

Dessa forma, a filosofia n ã o poderia optar por um dos termos dessa rela
çã o antit é tica como ponto de partida na investiga çã o da estrutura da
realidade. Para o autor holand ê s, seria imposs í vel estabelecer — como
ponto de partida, à maneira de Kant — uma rela çã o dial é tica de oposi
çã o entre a raz ã o (aspecto l ó gico) e a realidade ou experi ê ncia
comum por um motivo fundamental: essa oposi çã o (ant í tese) é uma
abstra çã o puramente te ó rica . 84 De acordo com Dooyeweerd, a ú
nica ant í tese presente na realidade é a ant í tese religiosa . Sendo
assim, ele dirige suas cr í ticas à ideia de uma dial é tica que dissolva
qualquer ideia ou valor absoluto, o que constitui uma cr í tica a um dos
principais elementos da filosofia ocidental, cuja heran ç a é grega.

A ideia de uma dial é tica de tipo tese-ant í tese-s í ntese s ó faria


sentido, no horizonte do tempo, na medida em que para Dooyeweerd
tudo na ordem do tempo é relativo . 85 Entretanto, como cabe à filosofia
— e a qualquer outro empreendimento te ó rico — buscar seu
pressuposto na ordem supratemporal, n ã o faria sentido identificar na
rela çã o dial é tica, que é relativa, um elemento absoluto. Pois “ [...] a
filosofia é te ó rica, e na sua constitui çã o ela permanece ligada à
relatividade de todo pensamento humano. Como tal, a pr ó pria filosofia
necessita de um ponto de partida absoluto ” . 86 Proceder de outra
forma seria uma absolutiza çã o de um aspecto finito ou um
reducionismo . 87

Esse é um ponto nevr á lgico do sistema filos ó fico dooyeweerdiano: o


absoluto s ó existe no religioso. Tal absoluto é uma ant í tese indissol ú
vel, que n ã o pode ser sintetizado com nenhuma outra forma de
pensamento. A ú nica divis ã o introduzida na realidade foi a divis ã o
advinda com o pecado (original). No pecado, o ser humano est á
alienado de Deus, de si e da cria çã o.
Para Dooyeweerd, um absoluto tamb é m é chamado de um motivo-
base religioso , que controla e regulamenta os demais desenvolvimentos
te ó rico, social, pol í tico e cultural de um grupo humano. Segundo ele,
no caso do Ocidente, s ã o quatro motivos-base religiosos que t ê m
predominado ao longo da hist ó ria: o dualismo grego forma/mat é ria ,
o motivo b í blico cria çã o-queda-reden çã o , o escol á stico
natureza/gra ç a e o humanista natureza/liberdade .

Um dos principais objetivos da filosofia cosmon ô mica, portanto, “ [era]


desenvolver uma filosofia sistem á tica que fosse internamente integrada
com a religi ã o b í blica e que servisse, portanto, como quadro geral
para o trabalho acad ê mico crist ã o nas ci ê ncias especiais ” . 88

Uma filosofia cr í tica

A filosofia desenvolvida por Dooyeweerd pode ser chamada, a exemplo


da de Kant, uma filosofia cr í tica , na medida em que busca
compreender os pontos de partida do conhecimento, submetendo-os a
um exame rigoroso. Al é m disso, sua filosofia tamb é m pode ser
denominada transcendental , por buscar um ponto de concentra çã o
ou ponto arquimediano supratemporal, capaz de analisar a atitude te ó
rica do pensamento.

No in í cio de uma de suas palestras transcritas, Introduction to a


Transcendental Criticism of Philosophic Thought [Introdu çã o à cr í
tica transcendental do pensamento filos ó fico], o autor holand ê s
questiona a tese kantiana da identifica çã o da raz ã o como ponto de
partida do pensamento te ó rico, como elemento aut ô nomo e
independente. O pensamento cient í fico teria ra í zes mais profundas.
Comentando a filosofia kantiana, Dooyeweerd diz que:
Ele n ã o examinou a possibilidade de uma teoria cr í tica do conhecimento
humano como teoria cient í fica pura. Ele convida seus leitores, na introdu çã
o de sua celebrada obra Cr í tica da raz ã o pura , a n ã o aceitar outro
ponto de partida al é m da raz ã o pura. Consequentemente, a atitude te ó rica
do pensamento n ã o tem [...] nada de problem á tico . 89

Na principal obra de Dooyeweerd — The New Critique of Theoretical


Thought — h á uma cr í tica à transcend ê ncia concedida ao
pensamento te ó rico na vis ã o kantiana, sugerindo que o aspecto l ó
gico da experi ê ncia n ã o pode ser elevado ao status de ponto
arquimediano do conhecimento te ó rico, como o faz Kant. Para
Dooyeweerd, o ponto arquimediano encontra-se no conceito b í blico de
cora çã o , o qual se configura como o aspecto transcendental do ser
humano, que n ã o poderia ser reduzido a um dos aspectos da realidade.
O cora çã o pode ser entendido tamb é m como o ego humano , que é
definido como “ [...] o assento central da imago Dei ” . 90

Para ele, o cora çã o est á necessariamente orientado a uma ou outra


dire çã o: para o Criador ou para a cria çã o, para Deus ou para os í
dolos. Nesse sentido, Guilherme de Carvalho observa que:
Quando o ego rejeita a rela çã o com o Deus pessoal e transcendental, a
verdadeira origem, é obrigado a buscar outra fonte de sentido, absolutizando
aspectos particulares de sua experi ê ncia e dando diferentes dire çõ es —
sempre imanentes — a seu impulso religioso estrutura l. 91

Na verdade, essa orienta çã o do cora çã o est á conectada a uma


necessidade humana de buscar sua origem ( arch é , em grego), ou
uma realidade n ã o dependente ( non-dependent reality ) , 92 termo
usado pelo fil ó sofo Roy Clouser. Decorre dessa constata çã o que, antes
mesmo da atitude te ó rica do pensamento, h á uma pressuposi çã o de
origem, uma atribui çã o a algo ou algu é m como uma realidade n ã o
dependente, pela qual e na qual o significado ú ltimo se realiza. Desse
princ í pio adv é m sua cr í tica à suposta neutralidade religiosa do
pensamento, pois n ã o haveria filosofia com ponto de partida neutro.
A partir da filosofia dooyeweerdiana, Roy Clouser afirma que:
[a] cren ç a religiosa sempre funciona como uma pressuposi çã o
reguladora para qualquer teoria abstrata, e... isso é inevit á vel n ã o
somente em raz ã o da presen ç a hist ó rico-social de tais cren ç as em nossa
cultura, mas porque isso se d á a partir do pr ó prio processo de produ çã o te
ó rica . 93

Ou seja, a cren ç a religiosa n ã o pode ser isolada do processo de


constru çã o te ó rica. Ela funcionaria, de acordo com esta perspectiva,
como uma pressuposi çã o regulat ó ria de qualquer empreendimento te
ó rico. Desse ponto de vista, a separa çã o moderna entre f é e raz ã o, e a
autonomia da segunda, n ã o faria sentido algum. Para Carvalho,
[Dooyeweerd] retoma a quest ã o grega, cartesiana e kantiana sobre a
natureza do cogito . Quem é o eu que pensa? [...] o exame cr í tico do eu
que pensa revela que ele n ã o tem um conte ú do essencial em si mesmo
[...], ele o busca fora de si, em uma fonte que seja capaz de dar conta da
diversidade de sua experi ê ncia . 94

Para o fil ó sofo holand ê s, a modernidade constr ó i um pensamento


antit é tico , que divide a realidade em dois polos, a experi ê ncia ing ê
nua ( n ä ive experience ) e o aspecto l ó gico ou te ó rico , sendo
o segundo o mais valorizado como fonte confi á vel do saber. No
entanto, Dooyeweerd sustenta que a nossa experi ê ncia ing ê nua n ã
o pode ser considerada uma teoria da realidade, pois,
[...] a rela çã o antit é tica é o produto de uma an á lise, de uma abstra çã o
[sendo assim, ele continua], uma atitude verdadeiramente cr í tica do
pensamento n ã o nos permite escolher o ponto de partida em um dos termos
opostos da rela çã o antit é tica . 95
A partir da filosofia reformacional de Dooyeweerd, o “ conhece-te a ti
mesmo ” socr á tico, assim como em Agostinho, é por natureza religioso,
pois o conhecimento de Deus e de si caminham juntos. A condi çã o de
qualquer empreendimento filos ó fico é o conhecimento das pressuposi
çõ es religiosas presentes no cora çã o.

Alguns apontamentos

H á de se apontar, portanto, que ao mesmo tempo que a modernidade é


constru í da sobre as bases da religi ã o e em di á logo — ainda que por
vezes de oposi çã o — com ela, tamb é m operou uma tentativa de
separa çã o das dimens õ es religiosa e racional do ser humano, galgando
um projeto de autonomia humana sobre as bases de uma racionalidade
que seria mais bem descrita como racionalismo .

Percebe-se, de igual modo, a ambiguidade e complexidade do per í odo


moderno, uma vez que o projeto racionalista n ã o é o ú nico vi é s de
interpreta çã o desse momento hist ó rico. Todavia, como apontou
Dooyeweerd, essa vis ã o de racionalidade — religiosamente neutra —
ainda encontra solo para seu desenvolvimento em v á rios campos em
nossos dias.

Nesse sentido, o estudo e a reflex ã o sobre a cr í tica desenvolvida por


Herman Dooyeweerd s ã o um poderoso instrumento anal í tico cujo
conte ú do é a cr í tica a uma postura dogm á tica, advinda com a
modernidade, de privatiza çã o da f é e a busca por uma autonomia
religiosa da raz ã o. Sua cr í tica nos permite ampliar o horizonte te ó
rico para entender a realidade complexa que habitamos.

Al é m disso, a compreens ã o e o aprofundamento da cr í tica


desenvolvida pelo fil ó sofo holand ê s encontram eco nos dias atuais no
que diz respeito aos grandes temas pensados e vividos no Ocidente: a
rela çã o e os pontos de contato entre f é e raz ã o, o lugar da religi ã o
nas sociedades contempor â neas, o debate entre religi ã o e ci ê ncia e,
consequentemente, o papel da teologia no di á logo com outras á reas do
conhecimento, etc.

Sendo assim, depois de refletir sobre as caracter í sticas gerais da


modernidade, bem como de uma sucinta apresenta çã o do contexto
intelectual e da perspectiva cr í tica do autor holand ê s, cabe-nos agora
atentar ao programa filos ó fico de Herman Dooyeweerd e de sua
filosofia cosmon ô mica. Quais s ã o os elementos que a constituem? De
que modo ele funde filosofia e cristianismo? Quais s ã o os conceitos
mobilizados para a constru çã o de seu sistema filos ó fico? Explorar tais
quest õ es é o objetivo principal do pr ó ximo cap í tulo.
3

O que Amsterd ã tem a ver com Atenas? O


projeto de uma filosofia reformacional

Filosofia e cristianismo

Num primeiro momento, a men çã o do termo filosofia crist ã remete-


nos ao per í odo medieval e, talvez, mais precisamente à escol á stica
medieval. A pergunta “ o que tem a ver Atenas com Jerusal é m? ” 96
sempre foi um problema para o cristianismo. Afinal, qual é a rela çã o
entre o sistema de cren ç as do cristianismo e a natureza pr ó pria da
filosofia? É poss í vel uma filosofia crist ã ? O que isso significa?

Os principais debates sobre a rela çã o entre filosofia e f é crist ã


encontram-se sob o vi é s da rela çã o entre filosofia e teologia , 97
o que em Dooyeweerd n ã o pode ser tomado como a mesma coisa, na
medida em que a teologia — enquanto ci ê ncia especial — n ã o
possuiria, para ele, um acesso privilegiado à verdade. Nesse sentido, o
pensador cosmon ô mico n ã o tem a inten çã o de subordinar a filosofia
à teologia, como se a teologia fosse a verdadeira filosofia.

Essa tens ã o parece estar presente desde os prim ó rdios do


desenvolvimento do cristianismo. Temos uma indica çã o desse encontro
— ou choque — de cosmovis õ es a partir da pr ó pria vida de Jesus,
uma vez que o Imp é rio que dominava a regi ã o da Palestina era o
romano, sob forte influ ê ncia cultural hel ê nica. Al é m disso, a
narrativa b í blica descreve o ap ó stolo dos gentios, o fariseu convertido
ao cristianismo , 98 Paulo de Tarso — um dos maiores propagadores do
cristianismo no primeiro s é culo fora do contexto judeu — como algu é
m que teve encontros significativos com fil ó sofos gregos . 99

Essa rela çã o entre cristianismo e filosofia fica mais expl í cita ap ó s o


avan ç o e institucionaliza çã o do cristianismo nos primeiros s é culos.
Nesse contexto, o bispo de Hipona, Agostinho (354-430 d.C.), operou
uma releitura do neoplatonismo a partir do cristianismo, fazendo uma s í
ntese entre os dois sistemas, o que alguns chamam de um processo de
platoniza çã o do cristianismo ou uma cristianiza çã o de Plat ã o. Outro
crist ã o not á vel que, na Alta Idade M é dia, promoveu o di á logo — e
a s í ntese — entre f é crist ã e o pensamento filos ó fico de Arist ó teles
foi Tom á s de Aquino (1225-1274 d.C.).

Ademais, mesmo c ô nscio da riqueza da tradi çã o dos padres fil ó sofos


— de Tertuliano a Greg ó rio de Nissa — n ã o me deterei na an á lise
deste per í odo por quest õ es de objetivo e escopo desta obra. É
importante observar, todavia, que cristianismo e filosofia t ê m uma
longa tradi çã o de di á logo, à s vezes mais conciliador, à s vezes
oposicionista. De um modo ou de outro, excluir esse per í odo no estudo
da filosofia seria no m í nimo uma falta grav í ssima. Dessa forma, este
cap í tulo abordar á a resposta de Dooyeweerd à pergunta de Tertuliano.
Nele, ser ã o expostos os principais elementos presentes no sistema filos
ó fico cosmon ô mico, bem como a linguagem conceitual presente na
obra do fil ó sofo holand ê s.

O cap í tulo estrutura-se da seguinte forma: come ç a com a explica çã o


do significado de cosmonomia, abordando o conceito de esferas de
soberania — heran ç a de Abraham Kuyper — que Dooyeweerd vai
transformar numa ontologia modal . Logo em seguida, reflete-se a
respeito da antropologia dooyeweerdiana e, por fim, apresenta-se a
perspectiva do autor no que concerne à rela çã o entre filosofia e
teologia.
A estrutura da realidade: cosmonomia

Partindo da ideia de que o papel da filosofia é compreender e discernir a


estrutura da realidade — a rela çã o entre o todo e suas partes, ou seja,
suas diferentes dimens õ es — Dooyeweerd defende uma
desessencializa çã o do cosmo como ponto de partida inicial para a
compreens ã o da realidade, uma vez que nenhuma dimens ã o dele pode
tornar-se o fundamento do conhecimento. É importante ressaltar que sua
compreens ã o é de que o processo de conhecimento se d á na ordem do
tempo, uma vez que “ [...] n ã o podemos filosofar sobre aquilo que
transcende essa temporalidade [...] ” , 100 pois o que é supratemporal é
absoluto, logo, antiteticamente indissol ú vel.

Uma proposta cosmon ô mica aponta para uma ordem c ó smica, cujo
sentido — ordem e/ou lei — é d á diva. Em outras palavras, o
fundamento do cosmo est á fora dele, no criador. Por esse motivo, o
fil ó sofo holand ê s afirma que o Deus criador é a arch é ou a
origem da pr ó pria busca humana pelo sentido do todo . 101 “ Uma vis
ã o da totalidade n ã o é poss í vel à parte de nossa vis ã o de origem ou
da ἀρχή [...] ” . 102 Por isso, o impulso natural do ser humano seria o de
orientar o cora çã o — entendido em Dooyeweerd como o centro
religioso humano, a partir da concep çã o hebraica de cora çã o — a um
absoluto, na medida em que esta é a lei do cosmos, da í o conceito de
cosmonomia.
Isso seria nada menos que uma admiss ã o irrestrita do te í smo crist ã o
como ideia de origem e ordem c ó smica; n ã o do te í smo no sentido aristot
é lico-tomista, propriamente, mas no sentido calvinista: [...] Deus soberano,
princ í pio da ordem c ó smica, al é m de toda lei — mas sustentador de
todas as leis, transcendente e distinto de todas as criaturas, e de todas as
esferas da nossa experi ê ncia tempora l. 103
Em certo sentido, s ó uma vis ã o de mundo que identifique o
fundamento do mundo fora do mundo é pass í vel de ser chamada de
secular , na medida em que n ã o deifica nenhum aspecto da realidade.
Tal interpreta çã o se aproxima da proposta do te ó logo alem ã o
Friedrich Gogarten, no que concerne à sua tese sobre a seculariza çã o. A
tese de Gogarten é de que somente a f é crist ã seculariza/dessacraliza o
mundo, em fun çã o da responsabilidade diante da cria çã o — que, ali á
s, é externa ao homem, em seu fundamento. Nada h á na cria çã o que
seja elevado a uma condi çã o supernatural — em Dooyeweerd,
supratemporal. Subvertendo a l ó gica do pensamento cl á ssico,
Gogarten afirma que quem deifica o mundo é justamente o secularismo
, que seria uma esp é cie de seculariza çã o incompleta . 104

Uma teoria a partir das esferas de soberania

O solo sobre o qual Dooyeweerd iria, posteriormente, desenvolver sua


filosofia sistem á tica ou, mais precisamente, sua ontologia dos modos
da experi ê ncia ou ontologia modal , foi a ideia de esferas de
soberania desenvolvida por Abraham Kuyper. Como j á referido aqui,
o esfor ç o dos neocalvinistas foi o de manter a influ ê ncia e a relev â
ncia do cristianismo em termos p ú blicos. Para tanto, a no çã o de
soberania — legitima çã o do poder — precisava ser reformada. Para
Kuyper e seus seguidores, a soberania n ã o poderia encontrar
fundamento no contrato social — fosse ele hobbesiano, lockiano ou
rousseauniano.

Um modelo contratualista de legitima çã o da soberania era, de


acordo com Kuyper, a express ã o suprema, em termos pol í ticos, da
autonomia humana em rela çã o a Deus, que fora desenvolvida no per í
odo moderno . 105 Essa express ã o teria suas ra í zes em um motivo
religioso. Essa autonomia foi expressa em Hobbes, por exemplo, quando
este defende que o Estado moderno recebe sua soberania do pacto
realizado pelos indiv í duos, que, em troca de seguran ç a, entregam sua
liberdade ao Leviat ã 106
(Estado), que passa a ter direito sobre outras
esferas da vida.

A partir da compreens ã o kuyperiana, no entanto, n ã o s ã o os direitos


individuais nem o Estado moderno — como ente essencializado — que
fundam e legitimam o poder. De uma perspectiva crist ã , defendiam
eles, s ó h á um soberano: o pr ó prio Deus. Uma primeira afirma çã o
que se faz, portanto, em rela çã o ao Estado é a seguinte: o Estado n ã o
pode ser Deus.

Da mesma forma, contrapondo-se a um ideal de liberdade fundado na


aus ê ncia de normas e com ê nfase na liberdade humana, Guilherme de
Carvalho trata da miss ã o do crist ã o e da igreja no mundo:
H á quem pense seria bom [...] adotar uma [...] vers ã o libert á ria da
divindade, como se expandindo o campo da iniciativa humana os crist ã os
viessem a se tornar menos passivos [...]. Se nos tornarmos mais missionais,
mais ativos e mais respons á veis apenas porque temos um senso elevado da
nossa autonomia humana, de nossos poderes de interven çã o, de nossa
capacidade de romper as domina çõ es hist ó ricas, pergunto: de quem ser á a
gl ó ria ? 107

Sendo assim, n ã o haveria uma contradi çã o, a partir da tradi çã o


kuyperiana-dooyeweerdiana, entre a soberania e o poder de Deus e a
liberdade humana, o que equivale a dizer que a lei n ã o contradiz a gra ç
a, mas antes est ã o em harmonia, visto ser a lei a condi çã o da liberdade
humana, e n ã o uma barreira a ela.

A partir dessa premissa, Kuyper esbo ç a a ideia de que diferentes


esferas da vida t ê m uma soberania pr ó pria, sustentadas pela lei
criacional e diferenciadas historicamente . Nessa dire çã o, o Estado
teria a sua soberania — restrita, todavia, a sua á rea de atua çã o, no
caso, à promo çã o da justi ç a. Entretanto, a fam í lia, a economia, a
igreja (ou outras confiss õ es religiosas), a educa çã o, as artes, etc.,
teriam, todas elas, uma fundamenta çã o pr ó pria, cuja origem, é
importante reafirmar, n ã o est á no pacto social. Elas seriam, antes,
esferas relativamente aut ô nomas em rela çã o à s outras. Com isso, os
neocalvinistas queriam, entre outras coisas, limitar a interfer ê ncia
estatal nos diferentes aspectos da vida. Como o pr ó prio Kuyper afirma:
Neste car á ter independente est á necessariamente envolvida uma autoridade
superior especial, a que intencionalmente chamamos de soberania nas
esferas sociais individuais, a fim de que possa estar clara e decididamente
expresso que estes diferentes desenvolvimentos da vida social nada t ê m
acima deles exceto Deus , e que o Estado n ã o pode intrometer-se aqui e
nada tem a ordenar em seu campo . 108

Enquanto este projeto neocalvinista, esbo ç ado por Abraham Kuyper


dizia respeito a uma elabora çã o teol ó gica, com implica çõ es sociol ó
gicas e pol í ticas, no que concerne à interface entre igreja, Estado e
institui çõ es sociais, o esfor ç o de Herman Dooyeweerd foi o de
desenvolver, a partir deste esquema inicial — das esferas de soberania
— , uma teoria mais abrangente, com um car á ter ontol ó gico, cuja
articula çã o servisse de base para desenvolvimentos posteriores em
diferentes campos de conhecimento. Foi sob essa influ ê ncia que ele
desenvolveu sua ontologia modal .

Ontologia modal

Na passagem de uma abordagem sociol ó gica para uma ontologia filos ó


fica, Dooyeweerd usa os conceitos de aspecto modal ou modalidades
da experi ê ncia , 109 para referir-se aos diferentes modos — o como —
pelos quais o ser humano experiencia a realidade. Para o fil ó sofo de
Amsterd ã , a experi ê ncia humana cotidiana, pr é -te ó rica, n ã o se
apresenta dividida, antes, é integral e inquebrant á vel. Entretanto, a
partir da atitude te ó rica do pensamento, é poss í vel discernir os
diferentes aspectos que comp õ em essa experi ê ncia.
A ilustra çã o que ele usa para explicar esse sistema parte da premissa de
que a realidade é significado , haja vista ser uma doa çã o do Criador.
Tal significado é como a luz do sol refratada em um prisma, adquirindo
diferentes cores e nuances, mas advindos da mesma fonte. “ A ordem
temporal de nosso mundo experiencial é como um prisma, que refrata ou
dispersa a luz do sol em uma rica diversidade de cores. Nenhuma dessas
cores, entretanto, é a pr ó pria luz. ” 110

O ser humano vivencia esse significado de diferentes modos , sem


diferenci á -los qualitativamente antes da abstra çã o te ó rica. “ Para
cada aspecto, leis ou normas particulares s ã o encontradas. ” 111
Essa analogia explica como a soberania de Cristo se expressa no mundo.
Deus tem uma ú nica vontade, perfeita e coerente. Por é m, quando sua
vontade “ atravessa ” o prisma do tempo, ela se expressa em diferentes
leis. Cada lei, na cria çã o de Deus, pode ser comparada a uma das cores
do espectro de luz . 112

Para Dooyeweerd, todavia, esses aspectos n ã o encontram sua


fundamenta çã o uns nos outros — n ã o s ã o meros epifen ô menos
— e n ã o podem ser reduzidos uns aos outros, constituindo-se o que ele
denominou de irredutibilidade dos aspectos . 113 O que, sem d ú vida,
é um paralelo com a ideia de Kuyper da soberania das esferas , agora
potencializado numa explica çã o filos ó fica. Esses aspectos seriam a
express ã o da pr ó pria ordem do tempo, que encontra sentido na coer ê
ncia destes aspectos.

É importante que se observe, todavia, que esses aspectos da realidade


n ã o equivalem a eventos concretos da realidade:
Estes aspectos n ã o se referem, como tais, a um concreto que , isto é , a
coisas ou eventos concretos, mas apenas a um como , i. e., o modo
particular e fundamental, ou a maneira pela qual os experimentamos.
Portanto, falamos dos aspectos modais de uma experi ê ncia para sublinhar
que eles s ã o apenas modos fundamentais desta . 114
Enquanto aspecto discern í vel pelo processo de abstra çã o te ó rica do
pensamento, esses aspectos s ã o completamente male á veis. Uma vez
que se prove a sua redu çã o a outro aspecto, eles perdem o car á ter pr ó
prio de irredutibilidade . 115

As 15 esferas (aspectos modais) sugeridas por Dooyeweerd, que comp õ


em sua ontologia modal, s ã o: p í stica; é tica; jur í dica; est é tica; econ
ô mica; social; simb ó lica (ou lingu í stica); hist ó rica; anal í tica (ou l ó
gica); sensitiva (ou sensorial); bi ó tica; f í sica; cinem á tica; espacial; e
aritm é tica (ou num é rica).

Nenhum desses modos da experi ê ncia poderia ser reduzido a algum


outro. Por exemplo, uma teoria que buscasse explicar o sentido do
aspecto p í stico (relativo à f é ) em fun çã o do aspecto hist ó rico
estaria operando um reducionismo. Tal reducionismo s ó poderia ser
identificado na medida em que se identificasse a vis ã o-de-totalidade —
vis ã o que é religiosa — dessa teoria, cujo pressuposto, nesse caso, para
Dooyeweerd, estaria fundado na absolutiza çã o de um aspecto da
realidade.

Essa ordem das esferas n ã o é aleat ó ria. De acordo com Carvalho,


As esferas posteriores seriam “ fundadas ” nas anteriores, sem serem
meramente fen ô menos derivados ( epifen ô menos ) em rela çã o a elas. E
cada esfera “ espelharia ” em si mesma a totalidade do sentido c ó smico,
espelhamento este que pode ser descrito por analogias antecipat ó rias e
retrocipat ó rias, nas quais um sentido semelhante ao n ú cleo de sentido de
cada uma das esferas modais é identificado no interior da esfera modal em
considera çã o. Um exemplo: na express ã o “ economia de pensamento ” ,
temos uma analogia antecipat ó ria da esfera econ ô mica no interior da
esfera l ó gica . 116
Esses aspectos modais representam, portanto, sua concep çã o de
realidade e do modo pelo qual o ser humano a experiencia. Entretanto,
todos esses aspectos modais em sua coer ê ncia n ã o podem definir
quem é o ser humano. Todos apontam para um ponto central: o ego ou
cora çã o , que transcenderiam, de acordo com Dooyeweerd, a ordem
temporal, apontando para o seu doador. É importante ressaltar que,
enquanto teoria, esses aspectos s ã o categoriza çõ es e n ã o estruturas
imut á veis da realidade.

Quem é o eu? Caracter í sticas da antropologia dooyeweerdiana

Nas bases da ci ê ncia moderna est á fincado um paradigma fundamental


na estrutura do conhecimento cient í fico: a rela çã o entre um sujeito
— cognoscente — e um objeto — cognosc í vel. Uma das perguntas
que Dooyeweerd pretende responder, a partir de sua filosofia da ideia de
lei, é sobre quem é este sujeito. Afinal, quem é a pessoa humana em sua
ess ê ncia? Haveria tal ess ê ncia? O que caracteriza o humano em sua
centralidade? Quem é o eu que pensa, o sujeito cognoscente?

A filosofia moderna, desde Descartes, tem-se debru ç ado sobre essa


quest ã o — a natureza do cogito . Afinal, o que define a pessoa
humana: um ser moral, racional, pol í tico? Al é m disso, no cotejo com
as ci ê ncias surgidas com a modernidade, como a biologia e
posteriormente a antropologia cultural, novas quest õ es sobre a natureza
humana s ã o levantadas.

A partir das ci ê ncias biol ó gicas e de novas descobertas, como a


estrutura gen é tica humana, surgem diante de n ó s algumas quest õ es:
n ã o seria o homem mero produto de for ç as impessoais, cuja defini çã
o poderia reduzir-se à s estruturas f í sico-qu í micas que mant ê m a
estrutura biol ó gica viva, em uma luta pela sobreviv ê ncia? Valendo-se
da analogia marxista de estrutura e superestrutura, alguns bi ó logos t ê
m afirmado que determinadas dimens õ es da vida humana, como a
moralidade e a pr ó pria f é seriam superestruturas — derivadas,
portanto — da estrutura biol ó gica, cuja base seria o ego í smo, na
medida em que a sobreviv ê ncia seria o objetivo m á ximo da vida
humana . 117

Por outro lado, o antrop ó logo americano Clifford Geertz, no ensaio “ O


impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem ” , 118
defende que, antes de falarmos em natureza humana, precisar í amos
definir o homem como um animal que opera no n í vel simb ó lico e que
busca suas refer ê ncias em um sistema de s í mbolos que é a cultura.
Diante da diversidade cultural, de acordo com Geertz, seria temer á rio
pensar em um ser humano universal sem antes pensar nas
particularidades de sua forma çã o cultural. Se, por um lado, a
antropologia cultural “ protege ” o humano contra uma redu çã o ao
aspecto bi ó tico, por outro, n ã o corre o risco, ela pr ó pria, de reduzi-lo
à cultura?

A perspectiva antropol ó gica dooyeweerdiana come ç a com a afirma çã


o de que o ego humano, o centro da vida, cuja correspond ê ncia b í
blica seria a ideia de cora çã o , n ã o pode ser definido por nenhum
dos aspectos modais da realidade. Tal assertiva é feita a partir da ideia
de que os modos da experi ê ncia pertencem ao tempo. Identificar,
portanto, o ser humano com algumas dessas modalidades, seria reduzi-lo
ao que ele n ã o é — no sentido de que ele n ã o é (s ó ) isso. Dessa
maneira, perspectivas que reduzam a antropologia humana ao aspecto bi
ó tico ou à cultura, seriam classificados por Dooyeweerd como um
reducionismo: um biologismo e um culturalismo .

Essa defini çã o aparece quando ele assevera: “ A unidade central do eu


n ã o ser á encontrada na diversidade modal da ordem temporal. Um eu
f í sico-qu í mico n ã o existe, nem um eu l ó gico, nem um eu hist ó
rico, nem um eu moral ” . 119 De igual modo, a rela çã o eu-tu n ã o
pode ser a fonte provedora de sentido para a experi ê ncia humana, pois
tamb é m est á dentro da ordem do tempo. A solu çã o, de acordo com o
fil ó sofo holand ê s, é pensar o ego humano a partir de sua rela çã o
religiosa com sua origem — arch é . 120 O eu , portanto, encontra
sentido em Deus, o doador da imagem .

Comentando a natureza do empreendimento filos ó fico, a partir dessa


perspectiva cosmon ô mica, Gouv ê a observa que:
A filosofia é , portanto, uma atividade pessoal, subjetiva e existencial que é ,
por isso mesmo, insepar á vel do pr ó prio fil ó sofo, assim como a produ çã
o cient í fica n ã o pode nem deve ser separada do cientista, nem a teologia
ou exegese do te ó logo, nem a arte do artista. H á uma liga çã o indissol ú
vel entre criador e cria çã o, e isso é verdade de Deus bem como das cria çõ
es humana s 121

A partir disso, como j á visto at é aqui, o homem dooyeweerdiano é


religioso por natureza. Vale ressaltar, entretanto, que essa ideia, vinda de
Calvino, de um impulso religioso inato est á mais pr ó xima de um
sensus divinitas do que da ideia tomista de um sensus De i. 122 O
cora çã o — centro religioso — n ã o est á , como em Tom á s de
Aquino, naturalmente orientado para o Deus verdadeiro. Antes, sob a
influ ê ncia da queda, esse impulso pode ser canalizado em qualquer dire
çã o.
Para Gouv ê a,
[...] o que Dooyeweerd queria provar, e cria ter provado, é que o dogmatismo
racionalista da filosofia moderna que reivindica para a raz ã o humana
autonomia e supremacia n ã o é uma convic çã o religiosamente neutra, mas
depende de uma compreens ã o religiosa suprate ó rica, consequ ê ncia de
um posicionamento existencial religioso do eu cogitante ele mesmo, ainda
que esta atitude rejeite esta classifica çã o e ainda que esta atitude leve o eu
cogitante a negar a sua pr ó pria exist ê nci a. 123
Nesse sentido, poder í amos fazer uma aproxima çã o entre o conceito de
religi ã o em Dooyeweerd e aquele do te ó logo alem ã o Paul Tillich.
O conceito de orienta çã o do cora çã o a uma origem religiosa absoluta
se aproxima da ideia de incondicionado ou ultimate concern ,
apresentado em Tillich . 124 Por mais que haja profundas diferen ç as
entre eles no que concerne ao conte ú do dessa preocupa çã o ú ltima e
ao que/quem seja esta origem, a ideia é similar: todo ser humano é
religioso e de alguma forma atribui valor absoluto a alguma coisa ou a
algu é m. Seguindo a tradi çã o dooyeweerdiana, Roy Clouser afirma
que “ uma cren ç a religiosa [ é uma cren ç a] em algo tido como divino
per se , n ã o importando como esse ser á posteriormente descrito, aonde
‘ divino per se` significa a realidade incondicionalmente n ã o
dependente ” . 125

Diante dessas afirma çõ es, fica claro que o esfor ç o de Dooyeweerd,


em sua antropologia, é afirmar a multiplicidade da composi çã o da
experi ê ncia e exist ê ncia humana. Nessa dire çã o, o seu projeto se
aproxima muito da cr í tica feita pelos existencialistas ao racionalismo
da modernidade. Para Dooyeweerd, o ego humano “ [...] permanece um
verdadeiro mist é rio ” . 126 Tentar, portanto, capturar completamente o
ego seria no m í nimo temer á rio, na medida em que:
O mist é rio do eu humano é que ele é , de fato, nada em si mesmo ; quer dizer,
ele é nada enquanto tentamos conceb ê -lo à parte de suas tr ê s rela çõ es centrais
que, sozinhas, lhe d ã o sentido. [...] Em primeiro lugar, nosso ego humano
relaciona-se com toda a nossa exist ê ncia temporal [...]. Em segundo lugar, ele se
encontra, de fato, numa rela çã o comunal essencial com o ego de seus
semelhantes. Em terceiro lugar, ele aponta para al é m de si mesmo em dire çã o à
rela çã o central com sua Origem divina, a cuja imagem o homem foi criado . 127

Portanto, a compreens ã o de quem é o ser humano passa por um


conhecimento da rela çã o que o ser humano estabelece com sua origem
divina. Dooyeweerd aponta para um autoconhecimento que s ó é poss í
vel atrav é s do verdadeiro Deus, cuja revela çã o encontra-se em Jesus
Cristo. Al é m disso, visto que a realidade se apresenta como modos
distintos ao ser humano, “ [...] uma s í ntese intermodal s ó pode ser
efetuada por algo que n ã o se origina no pensamento te ó rico [...], pois
é no eu que a s í ntese da experi ê ncia ordin á ria pr é -te ó rica se
verifica [...] ” . 128

Para o fil ó sofo holand ê s, h á um profundo equ í voco nas concep çõ es


antropol ó gicas dualistas e sint é ticas. As concep çõ es que dividem o
ser humano entre uma dimens ã o material e uma imaterial — alma —
sendo ligadas por uma subst â ncia, tendem, de acordo com
Dooyeweerd, a postular que a principal caracter í stica humana —
funcionando como a linha lim í trofe entre a natureza e a é tica, entre o
humano e o animal — é a fun çã o racional, cuja ess ê ncia resistiria,
inclusive, à morte.
Essa vis ã o do homem foi, de fato, tomada da filosofia grega, que buscava o
centro de nossa exist ê ncia humana na raz ã o, isto é , no intelecto. Mas em
toda essa imagem do homem n ã o havia espa ç o para o centro real, isto é , o
centro religioso de nossa exist ê ncia, que nas Escrituras é chamado de cora
çã o , a raiz espiritual de todas as manifesta çõ es temporais de nossa vida .
129

O modo de fugir das concep çõ es antropol ó gicas sint é tico-dualistas,


as quais funcionam como pressupostos de diferentes campos do saber,
seria a ado çã o e viv ê ncia do motivo-base, que é absolutamente antit é
tico, o princ í pio crist ã o da cria çã o, queda e reden çã o. Para o fil ó
sofo reformado, tal motivo apregoa a inquebrant á vel unidade do ser
humano, a partir de seu centro religioso, direcionado a uma ideia de
origem.

Diante dessa afirma çã o, n ã o seria plaus í vel pensar que a teologia


crist ã é a ci ê ncia que pode conduzir o ser humano nesse processo? N ã
o se estaria diante — por mais que se diga o contr á rio — de um projeto
neoescolasticista? A rela çã o entre filosofia, teologia e conhecimento de
Deus e de si ser á discutida na pr ó xima se çã o.

O lugar da teologia na filosofia cosmon ô mica

Uma vez que se afirme que o conhecimento de si e da realidade


dependem do conhecimento de Deus, n ã o de forma natural — no
sentido tomista — , mas em conson â ncia com a palavra-revela çã o
do pr ó prio Deus, a impress ã o que se tem é de que, necessariamente, a
filosofia estar á subordinada à teologia. Essa rela çã o e a diferencia çã o
dos termos é um ponto importante na compreens ã o da proposta filos ó
fica dooyeweerdiana.

Em primeiro lugar, é necess á rio distinguir teologia e religi ã o. Ainda


que para a maior parte dos te ó logos esteja clara a diferen ç a, dado que
a teologia é sempre entendida como ato segundo , n ã o sendo ela
mesma a religi ã o, mas a reflex ã o articulada sobre os aspectos da religi
ã o, parece ainda haver muita confus ã o entre aqueles n ã o
familiarizados com a teologia, na medida em que n ã o fazem tal distin
çã o.

Em Dooyeweerd, uma vez que a religi ã o é definida em termos da


orienta çã o do cora çã o para um absoluto, é poss í vel afirmar que a
religi ã o é um pressuposto que age na constru çã o do pensamento te ó
rico, o que n ã o é o mesmo que afirmar que a teologia é um pressuposto.
Para ele, no pr ó prio empreendimento teol ó gico — pensamento te ó
rico — h á um pressuposto religioso. Tal pressuposto n ã o pode ser
objeto de an á lise, nem mesmo da teologia . 130 Qual seria, portanto, o
objeto pr ó prio da teologia?

Para Dooyeweerd, o motivo religioso b í blico, revelado nas escrituras,


cria çã o-queda-reden çã o , n ã o pode ser o objeto te ó rico da teologia.
Para ele, “ [...] sua aceita çã o ou rejei çã o é uma quest ã o de vida ou
morte para n ó s, e n ã o uma quest ã o de reflex ã o te ó rica ” . 131
Portanto, assim como Deus e o ego humano, a revela çã o b í blica n ã o
é o objeto pr ó prio da teologia. “ A raz ã o é que as ci ê ncias especiais n
ã o refletem sobre seus pr ó prios pontos de vista . 132 . ” Em outra
passagem, Dooyeweerd reflete sobre isso:
Pode a teologia dogm á tica crist ã , como tal, fornecer-nos essa vis ã o filos
ó fica total? Se a resposta for sim, ela n ã o pode ser uma ci ê ncia especial,
mas dever á — em linha com a concep çã o agostiniana — ser considerada
id ê ntica a uma filosofia crist ã . Mas essa solu çã o do antigo problema da
rela çã o entre teologia e filosofia é inaceit á vel, seja do ponto de vista filos
ó fico, seja do ponto de vista teol ó gico . 133

Sendo assim, enquanto ci ê ncia especial , o objeto cient í fico da


teologia pertence a um aspecto modal presente no horizonte temporal da
experi ê ncia humana. Seu objeto est á limitado ao tempo, n ã o podendo
ser supratemporal. Dessa forma, “ [...] este aspecto modal de experi ê
ncia que delimita o ponto de vista teol ó gico espec í fico n ã o pode ser
outro sen ã o o aspecto da f é ” . 134 Em Dooyeweerd, portanto, a
palavra de Deus n ã o pode ser confundida com o objeto da teologia,
uma vez que “ [...] essa mesma confus ã o [...] deu origem à falsa
identifica çã o da teologia dogm á tica com a doutrina das Sagradas
Escrituras e à falsa concep çã o da teologia como mediador necess á rio
entre a Palavra de Deus e os crentes ” . 135

De acordo com Ricardo Quadros Gouv ê a:


Os te ó logos muitas vezes n ã o est ã o interessados em filosofia, e à s vezes
n ã o se apercebem das no çõ es filos ó ficas que est ã o presentes em suas
formula çõ es teol ó gicas. Uma das coisas que mais choca os te ó logos no
pensamento reformacional é o desalojamento da teologia como rainha das ci
ê ncias e seu reposicionamento como uma ci ê ncia entre as outras, sendo que
a filosofia ocupa o seu lugar de direito, por defini çã o, como a scientia
scientiarum, ci ê ncias das ci ê ncia s. 136
Ademais, para Dooyeweerd, o motivo b í blico da cria çã o em Deus, da
queda no pecado e da reden çã o por meio de Jesus Cristo s ã o endere ç
ados ao cora çã o humano, possuindo um car á ter integral inquebrant á
vel, cuja dissolu çã o n ã o pode ser operada analiticamente. Como um
absoluto, o religioso constitui uma ant í tese indissol ú vel. Entretanto,
na concep çã o do fil ó sofo holand ê s, a palavra-revela çã o
supratemporal manifesta-se na ordem do tempo. S ã o justamente essas
express õ es nos aspectos modais que se tornam o objeto das ci ê ncias
especiais, no caso da teologia, o aspecto modal da f é (p í stico).

A f é , em Dooyeweerd, faz parte da estrutura da cria çã o, constituindo


um dos modos da experi ê ncia. A partir disso, seria infundado afirmar
que algumas pessoas t ê m f é e outras n ã o. O que acontece, por causa
do pecado, é que ela pode tomar uma dire çã o ap ó stata. Explicando o
lugar do aspecto p í stico em sua cosmonomia, Dooyeweerd ressalta que:
[...] o aspecto da f é ocupa um lugar inteiramente excepcional nessa ordem
[ontol ó gica modal]; é o aspecto delimitador que, mesmo no n ú cleo de seu
sentido modal, refere-se para al é m da ordem temporal, em dire çã o ao
centro religioso de nossa exist ê ncia e à origem divina de tudo o que foi
criad o. 137

Com essa defini çã o de f é , Dooyeweerd rejeita tanto a posi çã o do te ó


logo su íç o Karl Barth (1886-1968), da f é como um ato criativo
totalmente novo de Deus, bem como a vis ã o escol á stica “ [...] da f é
como um dom sobrenatural de Deus ao intelecto humano ” . 138 Na
concep çã o dooyeweerdiana, tanto a posi çã o escol á stica como a
barthiana est ã o permeadas do dualismo natureza/gra ç a, o que faz com
que os escol á sticos sintetizem filosofia e teologia e que os barthianos
estabele ç am uma rela çã o antit é tica — de oposi çã o — entre essas
duas disciplinas. Comentando a vis ã o de Karl Barth, Dooyeweerd
assevera: “ [...] essa vis ã o dualista revela os efeitos posteriores do
nominalismo ockhamista que influenciou especialmente a vis ã o
luterana da impossibilidade de uma filosofia crist ã ” . 139

Os artigos da f é seriam, para Dooyeweerd, o objeto pr ó prio da ci ê


ncia teol ó gica. Ele exemplifica essa defini çã o apresentando os
seguintes temas: “ [...] a signific â ncia da imago Dei antes e depois da
queda, a rela çã o entre cria çã o e pecado e entre gra ç a comum e
particular, a uni ã o das duas naturezas de Cristo ” . 140 Ora, esse é um
ponto bem controverso da explica çã o dooyeweerdiana. Guilherme de
Carvalho observa que “ [...] se a opera çã o da Palavra-revela çã o se d á
pela media çã o do discurso humano, é preciso admitir que a explica çã o
cient í fica dos artigos de f é é sem d ú vida capaz de esclarecer o seu
sentido e eliminar distor çõ es de compreens ã o ” . 141 Por isso, parece
que postular uma completa separa çã o entre a revela çã o atrav é s da
palavra e a explica çã o teol ó gica n ã o seria plaus í vel.

Filosofia e teologia, ainda que ambas sejam influenciadas pelo mesmo


pressuposto religioso — pr é -te ó rico — , t ê m campos de estudos
distintos. Por isso, em Dooyeweerd, falar de uma filosofia crist ã n ã o é
falar de uma teologia crist ã , mas de uma filosofia que esteja sob a
orienta çã o do motivo base crist ã o. Nesse sentido, o objeto da filosofia
difere do objeto da teologia — enquanto a primeira busca entender a
estrutura da realidade, em sua coer ê ncia entre os diferentes modos da
experi ê ncia, a segunda reflete sobre um desses campos modais, que é o
da f é .

Tendo explorado os principais elementos que constituem o programa


filos ó fico reformacional de Herman Dooyeweerd, cabe-nos agora
investigar outro elemento central de seu pensamento, o conceito de
motivo-base religioso , o qual, segundo o autor holand ê s, constitui o
fundamento que explica o desenrolar do processo hist ó rico e de forma
çã o da cultura. Eis o objetivo do pr ó ximo cap í tulo.
4

O que Babel tem a ver com Jerusal é m? A for ç a


motriz da hist ó ria e os motivos-base da
cultura ocidental

O tema do desenvolvimento hist ó rico e cultural da civiliza çã o


ocidental permeia a reflex ã o de Herman Dooyeweerd. Sua preocupa çã
o diz respeito ao substrato sobre o qual as ideias e pr á ticas culturais
ganharam forma na hist ó ria do Ocidente, principalmente do per í odo
que vai do surgimento da filosofia, na civiliza çã o grega, at é meados do
s é culo XX, per í odo de sua produ çã o filos ó fica.

A pergunta o que move a hist ó ria ou qual é a sua for ç a motriz n


ã o é nova. Para muitos, a resposta pode ser t ã o direta como: a natureza,
Deus, a vontade humana livre, o acaso, etc. Para Dooyeweerd,
subjacente à maneira como é dada a resposta a essa pergunta, h á uma no
çã o de arch é ou uma ideia de origem . Parece-me tamb é m que,
juntamente com essa ideia de origem , h á tanto uma no çã o de telos ,
uma ideia de dire çã o orientada para o futuro, como uma no çã o de
aret é , uma imagem de como o presente deve ser vivido, a fim de obter-
se coer ê ncia entre passado ( arch é ) e futuro ( telos ) . 142

Antes de explorar a resposta dooyeweerdiana quanto à for ç a motriz da


hist ó ria, gostaria de apresentar tr ê s exemplos de respostas dadas a essa
pergunta, os quais representam narrativas poderosas de como pensar o
desenvolvimento cultural e o processo hist ó rico, as quais poderiam ser
categorizadas como reducionismos . S ã o elas: biologismo ,
economicismo e data í smo .

Biologismo

Em primeiro lugar, é importante afirmar que a denomina çã o


biologismo n ã o se refere a qualquer explica çã o biol ó gica, como se
ela, per se , fosse problem á tica. Entretanto, como j á referido nessa
obra, quando um campo do conhecimento tenta reduzir toda explica çã o
de significado ao seu pr ó prio campo, transformando outros fen ô menos
em epifen ô menos, tem-se um reducionismo.

O biologismo afirma que a for ç a motriz da hist ó ria é a sobreviv ê


ncia . Um exemplo de autor e obra, j á citados aqui, que se enquadram
nessa classifica çã o s ã o Richard Dawkins e seu O gene ego í sta .
Dawkins inicia seu livro da seguinte forma:
Se algum dia criaturas superiores do espa ç o visitarem a terra, a primeira
pergunta que eles far ã o, a fim de avaliar o n í vel da nossa civiliza çã o ser
á : “ Eles j á descobriram a evolu çã o? ” Organismos vivos haviam existido
sobre a terra, sem nunca saber por que, por mais de tr ê s bilh õ es de anos
antes que a verdade finalmente tenha raiado sobre um deles. Seu nome era
Charles Darwin. Para ser justo, outros tiveram leves ind í cios da verdade,
mas foi Darwin quem primeiro organizou uma descri çã o coerente e
convincente do por que n ó s existimos . 143
É interessante observar a linguagem religiosa que o bi ó logo brit â nico
emprega para falar em verdade. Sua descri çã o da teoria da evolu çã o e
do papel de Darwin tem quase o car á ter de uma revela çã o. De igual
modo, a narrativa filos ó fica de Dawkins conecta sua ideia de origem ao
significado da exist ê ncia humana. Prossegue o autor:
Darwin tornou poss í vel a n ó s respondermos de modo razo á vel à crian ç
a curiosa, cuja quest ã o d á nome a esse cap í tulo. N ó s n ã o precisamos
mais buscar a supersti çã o quando encaramos problemas profundos: H á
significado para a vida? Para que existimos? Quem é o homem? Depois de
enunciar a ú ltima dessas quest õ es, o eminente zoologista G. G. Simpson
assim a explicou: o ponto que quero salientar é que todas as tentativas de
responder a essa pergunta antes de 1859 n ã o possuem valor algum e seria
melhor se as ignor á ssemos completamente . 144
Quando respalda a afirma çã o de que todo conhecimento produzido
antes de Darwin e tamb é m fora de suas categorias n ã o tem valor,
Dawkins tenta transformar sua tese em uma ant í tese indissol ú vel e
absoluta. Rejeita tanto a filosofia quanto qualquer forma do que ele
chama religioso ou supersticioso. Na gram á tica dele, a moral, a est é
tica, o transcendente, o amor, etc., s ã o meros epifen ô menos do
substrato biol ó gico. De uma perspectiva dooyeweerdiana, poder í amos
afirmar que se tem um reducionismo em opera çã o. Comentando a obra
de Dawkins, o te ó logo brit â nico Graham Ward observa que o bi ó
logo cria um í dolo conceitual , 145 uma forma moderna e sofisticada de
idolatria cujo resultado continua sendo aquele descrito no salmo 115.

Economicismo

O segundo exemplo de resposta à pergunta sobre o que move a hist ó ria


prov é m da sociologia de Karl Marx. Para o economista pol í tico do s é
culo XIX, as rela çõ es em sociedade estariam fracionadas em duas
partes distintas. Marx cria que h á um substrato, um solo fundante do
qual os outros fen ô menos emergem. Para ele, o que dirige a hist ó ria e
a mudan ç a social s ã o as rela çõ es econ ô micas engendradas na produ
çã o do trabalho material. Outros aspectos da vida humana, como
cultura, arte, religi ã o, Estado, é tica, etc., derivariam, portanto, dessas
rela çõ es materiais de trabalho, o que ele denominou de
infraestrutura , enquanto os aspectos aqui citados fariam parte da
superestrutura , podendo ser categorizados, de igual modo, como
epifen ô menos .
Na abertura do Manifesto do Partido Comunista , escrito em parceria
com Friedrich Engels em 1848, Marx declara:
A hist ó ria de todas as sociedades que j á existiram é a hist ó ria da luta de
classes. Homem livre e escravo, patr í cio e plebeu, senhor e servo, chefe de
corpora çã o e assalariado; resumindo, opressor e oprimido estiveram em
constante oposi çã o um ao outro, mantiveram sem interrup çã o uma luta por
vezes velada, por vezes aberta — uma luta que todas as vezes terminou com
uma transforma çã o revolucion á ria ou com a ru í na das classes em disputa
. 146
Para ele, portanto, o elemento mais fundamental presente na realidade é
uma disputa de poder, expressa na luta de classes. Ela concede din â
mica e movimento à hist ó ria. Em seus dias, meados do s é culo XIX,
Marx afirmava que a classe dominante, a burguesia — aqueles que
detinham os meios de produ çã o — oprimia e explorava a classe
dominada, o proletariado — supostamente aqueles que n ã o possu í am
os meios de produ çã o material. Dessa feita, a luta de classes seria por
excel ê ncia o locus em que a hist ó ria realmente acontece. Tal fato
configuraria uma esp é cie de economicismo ou sociologismo.

N ã o pertence ao escopo dessa obra explorar como o pensamento de


Rousseau e de Hegel tiveram uma enorme influ ê ncia sobre a produ çã o
intelectual de Marx, todavia é importante que se observe que, seguindo
Hegel, Marx acreditava que a hist ó ria tem um telos , isto é , caminha
em determinada dire çã o. Nesse caminho, ela passaria, inevitavelmente,
por uma revolu çã o, a fim de chegar ao que alguns acreditam ser o
estado comunista , uma esp é cie de estado de natureza rousseauniano
restaurado.

Data í smo

O terceiro exemplo, mais recente, mas que vem se espalhando


rapidamente como perspectiva te ó rica, adv é m da obra Homo Deus ,
escrita por Yuval Harari, professor de hist ó ria da Universidade
Hebraica de Jerusal é m. O livro foi best-seller por v á rias semanas na
Europa e nos EUA quando lan ç ado em 2016. A leitura é voltada ao p ú
blico geral, com uma linguagem acess í vel, sem se valer de termos
demasiado t é cnicos.

A obra é basicamente uma apresenta çã o do que ele descreve como a


nova religi ã o da humanidade: o data í smo . A religi ã o dos dados,
da informa çã o e dos algoritmos. Harari defende a ideia de que o telos
da hist ó ria é o constante aumento no fluxo da informa çã o. Ele acredita
que a quantifica çã o de tudo melhorar á a vida humana.
Data í smo [...], como toda a religi ã o, [...] tem seus mandamentos pr á ticos.
Primeiro e preliminarmente, um data í sta tem de maximizar o fluxo de dados
conectando-se cada vez mais a m í dias, produzindo e consumindo mais
informa çã o . 147
Com uma abordagem ir ô nica e extremamente simplista em rela çã o
tanto à filosofia quanto ao cristianismo, o autor promulga a cren ç a de
que a era da religi ã o e a era do humanismo chegaram ao fim e estariam
dando lugar à era dos algoritmos . Em outra passagem do livro, Harari
assevera: “ [O] humanismo ordenou: ou ç a os seus sentimentos, eles
lhe dir ã o o que fazer , mas o data í smo diz: ou ç a os algoritmos, eles
te conhecem melhor do que voc ê conhece a si mesmo ” . 148

A perspectiva de Harari pode ser enquadrada numa perspectiva mais


ampla, de uma nova utopia arraigada em uma esperan ç a na tecnologia
como elemento religioso de reden çã o da humanidade, express ã o que
tem ganhado adeptos a partir do trans-humanismo e do p ó s-
humanismo.

A for ç a motriz da hist ó ria em Dooyeweerd

Para o fil ó sofo holand ê s, em sua perspectiva reformacional, a for ç a


motriz da hist ó ria est á localizada no que ele denomina de motivo-
base religioso . Ele explica que:
As Escrituras nos ensinam n ã o apenas que o cora çã o ou alma é o centro
religioso de toda a exist ê ncia individual e temporal de uma pessoa, mas
tamb é m que cada pessoa é criada na comunidade religiosa da humanidade.
[...] A humanidade é uma comunidade religiosa que é espiritual quanto à
natureza. Isso quer dizer que ela é governada e mantida por um esp í rito
religioso que funciona como for ç a central . 149
Os motivos-base religiosos podem ser definidos como dire çõ es
religiosas coletivas que refletem as cren ç as fundamentais de uma
civiliza çã o e cultura. Ademais, Dooyeweerd acreditava que a hist ó
ria representa o aspecto formativo do desenvolvimento humano.
Nela, a cultura é gerada e orientada a uma dire çã o particular.

A partir da concep çã o dooyeweerdiana de realidade, pensar a dimens ã


o da cultura e seu desenvolvimento dentro do aspecto hist ó rico passa,
impreterivelmente, pela an á lise da religi ã o, uma vez que, para ele, o
religioso é a base sobre a qual a cultura constr ó i e cria seus artefatos.
Nesse sentido, sua vis ã o se aproxima muito da de Paul Tillich, quando
este afirma que a religi ã o é o substrato da cultura . 150

A aproxima çã o de Tillich com a perspectiva do fil ó sofo holand ê s


tamb é m é vista claramente no conceito de religi ã o. A defini çã o de
Paul Tillich é abrangente e universal, uma vez que procura n ã o
identificar a religi ã o com nenhum aspecto em particular, ou seja, n ã o
reduz a religi ã o à moral, à cogni çã o, à est é tica, etc., mas a entende
como a dimens ã o da profundidade que permeia e transcende todos
esses aspectos, orientando-se a um incondicionado — ultimate
concern . 151

Por permear o todo da vida, a religi ã o, para Tillich, conforma — d á


forma — a cultura. A partir disso, os dualismos e separatismos entre
religi ã o e cultura, sagrado e profano, por exemplo, s ã o recha ç ados
pelo te ó logo alem ã o. Tillich reage contra uma autonomia e uma
heteronomia , propondo uma teonomia , ou seja, a centralidade e volta
de Deus ao cen á rio cultural. Nesse sentido, o Cristo de Tillich é o
transformador da cultura, numa esp é cie de proposi çã o de rompimento
n ã o dualista, mas reformador . 152

Ora, tal perspectiva assemelha-se ao pensamento dooyweerdiano, na


medida em que tamb é m contempla a cultura como express ã o de algo
anterior, que é justamente a religi ã o, entendida como a orienta çã o do
cora çã o a um absoluto. Al é m disso, a transforma çã o e a reforma da
cultura eram e s ã o ê nfases dos neocalvinistas, que a interpretam a
partir da ideia de um mandato cultural criacional de produ çã o de
artefatos que glorifiquem ao criador.

Para Dooyeweerd, s ã o quatro os motivos-base religiosos que d ã o


forma tanto ao pensamento quanto à cultura no mundo ocidental: o
motivo-base grego mat é ria/forma, o crist ã o cria çã o/queda/reden
çã o , o escol á stico natureza/gra ç a e o humanista
natureza/liberdade . Para ele, “ [...] esses motivos b á sicos s ã o as for ç
as motrizes mais profundas por tr á s de todo desenvolvimento cultural e
espiritual do Ocidente ” . 153 Comentando sobre os fundamentos do
pensamento filos ó fico, Dooyeweerd assevera: “ O ponto de partida real
do pensamento filos ó fico n ã o pode ser o pr ó prio ego, que é uma no
çã o vazia. O ponto de partida s ó pode ser o motivo b á sico religioso
operativo no ego como o centro do nosso horizonte temporal da experi ê
ncia ” . 154

Na perspectiva dooyeweerdiana, dentre os motivos-base ocidentais, o ú


nico que seria sinteticamente indissol ú vel é o da cria çã o-queda-
reden çã o , sendo este a verdadeira metanarrativa da hist ó ria humana.
Os outros tr ê s seriam ap ó statas e id ó latras. Em suas palavras: “ A ess
ê ncia de um esp í rito id ó latra é que ele separa o cora çã o do homem
do Deus verdadeiro e, em lugar de Deus, coloca uma criatura. Toda
absolutiza çã o do que é relativo aponta para a deifica çã o do que foi
criado. Considera autossuficiente o que n ã o é autossuficiente ” . 155
A altern â ncia entre os polos dial é ticos desses motivos-base
configuraria a din â mica de desenvolvimento e diferencia çã o do
pensamento e cultura no Ocidente. Nesse sentido, Dooyeweerd postula
que o motivo religioso grego mat é ria/forma representa uma
poderosa for ç a de desenvolvimento hist ó rico, ao passo que, mesmo
sofrendo adapta çõ es e modifica çõ es, continuou em opera çã o — na
medida em que foi sintetizado — nos motivos-base escol á stico e
humanista.

Motivos-base religiosos

Mat é ria e forma


Em sua reflex ã o, o fil ó sofo de Amsterd ã tenta problematizar o
contexto grego antigo, compreendendo-o como algo mais complexo do
que algumas simplifica çõ es modernas tentaram pint á -lo. Dooyeweerd
afirma que no centro dos diferentes aspectos da cultura grega, incluindo
o surgimento da filosofia, havia uma quest ã o religiosa central,
relacionada à origem de todas as coisas. Na ess ê ncia da disputa pela
ideia de origem encontrava-se um dualismo entre mat é ria e forma ,
que n ã o podia ser resolvido por categorias te ó ricas, uma vez que suas
ra í zes se estendiam a cren ç as religiosas pr é -te ó ricas.

Tendo em vista que a religi ã o em Dooyeweerd se relaciona com a


busca pela arch é , j á mencionada aqui, ou seja, a origem tanto do ser
humano quanto da realidade, o conflito fundamental na Gr é cia antiga
teria sido o confronto religioso no que concerne à ideia de origem,
contendo, de um lado, as antigas religi õ es da natureza e, de outro, a
nova religi ã o cultural dos deuses ol í mpicos.

O motivo da mat é ria era baseado na “ [...] deifica çã o de um fluxo


de vida c í clico e informe" . 156 A partir disso, a pr ó pria ideia grega
de tempo constitu í a uma concep çã o de tempo c í clico que se repetia
como os pr ó prios ciclos da natureza. Esse fluxo vital n ã o poderia ser
reconhecido e estudado de forma racional, visto que era identificado
como Anangk é . 157 Sendo assim, para Dooyeweerd, os deuses n ã o
eram identificados com personalidades, mas “ [...] os deuses da natureza
eram sempre fluidos e invis í veis ” . 158 Outra express ã o para esse
fluxo era a Moira , cujo sentido era um destino inexor á vel.

Entretanto, uma nova forma religiosa teve origem na Gr é cia: a religi ã


o da cultura, com seu culto à forma, harmonia e medida. Essa novidade
religiosa ganhou for ç a com o desenvolvimento das cidades-estado na
Gr é cia, cujo centro estava no Monte Olimpo. De acordo com
Dooyeweerd, esta nova religi ã o da forma ganhou sua articula çã o na
poesia heroica de Homero.
Os deuses ol í mpicos deixaram para tr á s a “ m ã e terra ” e seu ciclo vital.
Eram deuses da forma, imortais e radiantes: eram for ç as culturais invis í
veis, pessoais e idealizadas. O Monte Olimpo era o lar deles. A religi ã o
cultural acabou por encontrar sua express ã o grega mais elevada no deus d é
lfico Apolo, o legislador [...]. [Homero se preocupou] em colocar um freio ao
culto selvagem e apaixonado de Dion í sio, o deus do vinho, substituindo
esse culto pelo princ í pio normativo da forma que caracterizava o culto a
Apolo . 159
Dooyeweerd argumenta que, nas obras de Homero e Hes í odo, é
expressa uma tentativa de harmoniza çã o entre essas duas ideias de
origem, numa tentativa de explicar os deuses ol í mpicos como formas
evolu í das dos deuses da natureza. Nesse sentido, a concep çã o grega
teria estabelecido uma ideia fundamental de origem — princ í pio: “ [...]
tudo que vem a ser é o ca ó tico e informe ” . 160

Todavia, na tentativa de reconcilia çã o entre a religi ã o da natureza —


mat é ria — e a religi ã o cultural — forma — a Moira , antes
identificada como o destino cego, assume, sob a ins í gnia dos deuses
culturais, uma nova modelagem: “ [...] a Moira tornou-se um princ í
pio de ordem ” . 161 Ainda assim, sua origem era mais antiga que os pr ó
prios deuses ol í mpicos, remontando a um estado disforme e impessoal.
Tal era a tens ã o e o dualismo presente na ideia religiosa de origem da
civiliza çã o grega.

Na concep çã o dooyeweerdiana, a contradi çã o central entre esses dois


polos, natureza e cultura, estava na incapacidade de a religi ã o
cultural lidar com as quest õ es da morte e da vida, visto que os pr ó
prios deuses estavam submetidos a este insuper á vel ciclo. Dessa forma,
ainda que a religi ã o oficial da Gr é cia no s é culo VI a.C. fosse a dos
deuses ol í mpicos, o “ culto dos mist é rios ” era muito popular entre os
gregos, sendo praticado pela popula çã o grega em uma esfera privada.
Nesse sentido, “ [...] a cr í tica contra ela [religi ã o da forma] tornava-se
cada vez mais aberta nos c í rculos intelectuais, e os pensadores sofistas
gregos, os ‘ iluminados ’ do s é culo 5 º” . 162

Um ponto important í ssimo decorrente dessa explana çã o é que a distin


çã o entre forma e mat é ria teria influenciado na conhecida no çã o
de dualismo grego entre corpo e alma , que viria a influenciar
posteriormente as concep çõ es crist ã s de corpo e alma, permeando
tamb é m a ideia de uma separa çã o entre mundo natural (material) e
sobrenatural (ideal).

Na compreens ã o da forma çã o epistemol ó gica da filosofia contempor


â nea, Dooyeweerd aponta para a influ ê ncia desse motivo-base, por
exemplo, na formula çã o da ideia de teoria. Theoria , segundo ele,
estaria ligada ao motivo da cultura . “ A forma do ser n ã o podia ser
apreendida por um simples conceito, mas precisava da contempla çã o
para ser ilustrada de forma luminosa e suprassens í vel. ” 163 Tal
postulado se oporia a uma simples cren ç a — doxa .

Dessa forma, Dooyeweerd acredita que a filosofia de Plat ã o, por


exemplo, estava alicer ç ada na cren ç a b á sica de uma origem de todas
as coisas enraizada nessa tens ã o dial é tica entre mat é ria e forma .
O Demiurgo plat ô nico n ã o é uma divindade que cria todas as
coisas, mas é a divindade que d á forma a tudo, uma vez que recebe de
Anangk é uma mat é ria que n ã o tem forma nem sentido.

A ideia de Plat ã o do divino, portanto, é a de uma Raz ã o divina, que


organiza e persuade o mal é fico fluxo disforme de vida. De modo
semelhante, para “ [...] Arist ó teles, o grande disc í pulo de Plat ã o, a
forma pura era a mente divina ( nous ), mas a Anangk é , que permeava
a mat é ria, era ainda a causa peculiar de tudo que era an ô malo e
monstruoso no mundo ” . 164

Sendo assim, a partir da interpreta çã o de Dooyeweerd, os gregos


reconheceram uma ordem c ó smica, sem, entretanto, reconhecer uma
cria çã o divina. O que eles fizeram foi a absolutiza çã o de um aspecto
relativo presente na cria çã o. Para eles, o princ í pio racional era o
centro organizador de uma mat é ria sem sentido. Portanto, desse
motivo-base central derivariam as suas ra í zes filos ó ficas e culturais
em cujos fundamentos estaria, para Dooyeweerd, uma dire çã o
equivocada da ideia de origem.

Cria çã o, queda e reden çã o

Diferentemente do motivo grego mat é ria/forma , o motivo-base do


cristianismo é , para Dooyeweerd, o ú nico que n ã o reconhece uma tens
ã o — dualismo — entre forma e mat é ria. Ele é revelado atrav é s da
a çã o redentora de Cristo e d á um verdadeiro insight a respeito de
quem Deus é e da verdadeira origem de tudo. A partir do motivo-base b í
blico, todo o cosmo é cria çã o de Deus. A cria çã o — mundo material
— n ã o é m á em si, pois traz consigo o sentido e significado atribu í
dos pelo criador. “ Essa cria çã o é ordenada pela vontade do Criador e
reflete a sua gl ó ria, de modo que, em sua estrutura, h á uma ordem de
leis, ou cosmonomia . ” 165
A realidade do mal ou daquilo que causa ruptura e sofrimento na ordem
criada é resultado direto da queda no pecado, que pode ser
interpretado como uma dire çã o ap ó stata do impulso religioso humano
natural. A desobedi ê ncia do ser humano teria causado sua aliena çã o
em rela çã o ao criador, a si mesmo e a toda a cria çã o. O pecado, para
Dooyeweerd, n ã o teria afetado a estrutura da cria çã o, mas, antes, a
forma humana de rela çã o com esta . 166

O terceiro elemento presente na revela çã o crist ã é o da reden çã o de


todas as coisas em Cristo. A reden çã o é compreendida, em
Dooyeweerd, como o redirecionamento do centro religioso humano para
o Deus verdadeiro, num processo de recria çã o e restaura çã o das rela
çõ es que foram distorcidas pelo pecado. Comentando isso, Carvalho
afirma que “ [...] a reden çã o n ã o significa o acr é scimo de uma gra
ç a especial , mas, simplesmente, em sua ess ê ncia, a reconstitui çã o do
prop ó sito original de Deus ” . 167

O ap ó stolo Paulo, na carta ao Colossenses, escreve:


Ele é a imagem do Deus invis í vel, o primog ê nito de toda a cria çã o, pois
nele foram criadas todas as coisas nos c é us e na terra, as vis í veis e as invis
í veis, sejam tronos ou soberanias, poderes ou autoridades; todas as coisas
foram criadas por ele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e nele tudo
subsiste. Ele é a cabe ç a do corpo, que é a igreja; é o princ í pio e o primog
ê nito dentre os mortos, para que em tudo tenha a supremacia. Pois foi do
agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude, e por meio dele
reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que est ã o na terra quanto as
que est ã o no c é u, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz
. 168
Dessa forma, ao afirmar que Cristo é o Senhor de todas as coisas criadas,
a f é crist ã diferencia-se radicalmente da vis ã o grega da divindade. A
deidade grega d á forma a todas as coisas, mas n ã o d á origem à mat é
ria. Em Cristo, entretanto, todas as coisas subsistem. Seu senhorio se
estende a todas as esferas da realidade criada. Sendo assim, por esse
motivo-base trazer a ideia de um Deus criador de tudo o que existe, ele
se constitui uma ant í tese absoluta na rela çã o com o motivo-base
grego mat é ria/forma , n ã o devendo, de acordo com Dooyeweerd, ser
sintetizado com este . 169

Outro elemento importante desse motivo-base é o postulado da unidade


inquebrant á vel entre a revela çã o de quem Deus é e,
consequentemente, de quem o ser humano é . Essa identidade humana
arraigada na imagem e semelhan ç a do criador demonstra o car á ter
essencialmente religioso da vida humana. O fil ó sofo holand ê s
observa, ainda, que o motivo da cria çã o, queda e reden çã o “ [...]
independe de teologia humana. Seu sentido radical s ó pode ser
explicado pelo Esp í rito Santo operando no cora çã o [...] dentro da
comunh ã o da igreja cat ó lica invis í vel ” . 170

A partir dessa ideia, portanto, desconsiderar a humanidade de um ponto


de vista religioso e espiritual seria impens á vel. Tal atitude, seja na
reflex ã o filos ó fica, seja na atividade cient í fica, configuraria uma
redu çã o de quem o ser humano é e do que a pr ó pria realidade é
constitu í da. De certa forma, a n ã o aceita çã o desse motivo-base j á
seria em si uma atitude religiosa.

Natureza e gra ç a

A terceira for ç a motriz religiosa de grande influ ê ncia no Ocidente é


resultado, de acordo com Dooyeweerd, de uma grande s í ntese do tema
mat é ria/forma grego com o motivo-base advindo com o cristianismo.
Na hist ó ria da igreja, pode-se identificar o movimento gn ó stico
como o primeiro a tentar introduzir o dualismo grego na vis ã o de
mundo crist ã , numa tentativa de diferenciar um Deus criador, que
estaria em uma esfera “ mais baixa ” , tendo na figura do Deus do
Antigo Testamento sua express ã o, e um Deus “ mais elevado ” , que se
apresenta como Deus redentor, expresso no Novo Testamento . 171
Nesse sentido,
Muitos gn ó sticos negavam a encarna çã o de Jesus, pois diziam eles que
Deus n ã o poderia ter se tornado mat é ria sem contaminar-se. Sendo assim,
Jesus apenas aparentava ser humano, todavia, seu corpo n ã o era real, apenas
aparente. O Evangelho de Jo ã o, assim como as ep í stolas joaninas,
claramente combatem o equ í voco desse ensinamento gn ó stico . 172
O fil ó sofo holand ê s comenta essa influ ê ncia, quando escreve sobre
os chamados padres gregos da Igreja Primitiva:
Em particular, os pais gregos da igreja concebiam a cria çã o como sendo
resultado da atividade divina de dar forma à mat é ria. Portanto, desde que n
ã o podiam considerar a mat é ria em si como divina eles n ã o queriam
reconhecer plenamente que a palavra, por meio da qual todas as coisas
haviam sido criadas e que se fez carne em Jesus Cristo, é o pr ó prio Deus.
Da mesma maneira, degradaram o Verbo (o Logos ) a um “ semideus ” , o
qual, como “ mediador ” da cria çã o, encontrava-se entre Deus e a criatura.
E, tamb é m nesse contexto, o conhecimento te ó rico especulativo acerca de
Deus, elaborado numa teologia filos ó fica, foi colocado acima da f é da
comunidade eclesi á stica . 173
Dooyeweerd defende que essa ideia ganhou sua forma mais conhecida
com o fil ó sofo medieval Tom á s de Aquino (1225-1274 d.C.) e com a
s í ntese que este realizou entre o pensamento de Arist ó teles e a f é crist
ã . Entretanto, Dooyeweerd tamb é m faz uma an á lise de um fil ó sofo
anterior, cuja obra est á no in í cio do per í odo medieval: Agostinho de
Hipona (354-430 d.C.). Como calvinista reformado, Dooyeweerd tem
em Agostinho uma grande fonte de inspira çã o. O principal ponto de
converg ê ncia com o bispo de Hipona diz respeito à sua rejei çã o da
ideia de uma autonomia da filosofia em rela çã o à f é crist ã . 174

Agostinho mantinha o motivo-base b í blico da cria çã o-queda-reden


çã o , defendendo uma cria çã o boa que é maculada pelo pecado, mas
redimida em Cristo. Entretanto, ele teria proposto uma solu çã o
equivocada ao problema da rela çã o entre filosofia e f é crist ã . Por
identificar erroneamente a teologia dogm á tica com a f é crist ã ,
Agostinho cria que a teologia crist ã era o motivo-base da filosofia. “
Assim, a teologia funcionava como regina scientiarum , ou ‘ a rainha
das ci ê ncias ’ . " 175 De uma perspectiva cosmon ô mica, a teologia
enquanto ci ê ncia especial n ã o pode tomar nem o lugar da filosofia
nem mesmo ser confundida com o motivo-base b í blico.

Em um segundo momento, a partir do escolasticismo , especialmente


na obra de Tom á s de Aquino, houve uma distin çã o entre filosofia e
teologia, mas por outras raz õ es. Desde uma perspectiva tomista, h á
uma clara separa çã o entre natureza e sobrenatureza, ou seja, entre um
mundo natural e um mundo sobrenatural (gra ç a). Por herdar uma
concep çã o aristot é lica de natureza, “ [...] os escol á sticos
argumentavam que tudo o que estava sujeito ao nascimento e à morte,
incluindo os seres humanos, era constitu í do de mat é ria e forma ” . 176

Todavia, os escol á sticos defendiam que, na cria çã o, o criador teria


dado ao ser humano um dom sobrenatural — uma gra ç a, uma
faculdade supra-humana de vontade e pensamento, com a qual o ser
humano se relacionaria com o pr ó prio Deus. No entanto, “ a
humanidade perdeu esse dom na queda, e, consequentemente, reduziu-se
a uma simples ‘ natureza humana ’ , com as fraquezas inerentes a ela ” .
177
O ponto nevr á lgico desta interpreta çã o é que a natureza humana,
ainda que ca í da no pecado, continuaria a ser definida como “ alma
racional ” . Da í decorre a ideia de uma raz ã o natural.

Desse modo, “ [...] a esfera da natureza é vista como uma realidade aut ô
noma ” . 178
Com base nessa cosmovis ã o, os escol á sticos acreditavam que a raz ã o
natural, a despeito da queda, continuava com suas capacidades originais,
sendo incapaz apenas de refletir sobre realidades divinas, que deveriam ser
recebidas na revela çã o, por meio da f é . [...] A f é deveria orientar a raz ã o
para que esta compreendesse as verdades do evangelho, mas tal orienta çã
o n ã o era considerada necess á ria para que a raz ã o compreendesse a
natureza . 179
A introdu çã o desse dualismo no pensamento crist ã o teve como
consequ ê ncia a ideia de uma suposta esfera independente e aut ô noma
em toda cria çã o, o que daria espa ç o para o passo seguinte no avan ç o
do pensamento ocidental: o polo da natureza “ devorando ” o polo gra ç
a . 180 Eis o fundamento, na interpreta çã o dooyeweerdiana, da ideia de
um mundo secular. Essa “ grande s í ntese ” medieval teve sua influ ê
ncia no Ocidente at é o s é culo XVI, marcado pelo movimento
nominalista e o surgimento de um novo motivo-base, o da natureza e
liberdade .

Natureza e liberdade

Se o motivo-base escol á stico que predominou na Europa por v á rios s


é culos era o que mantinha uma rela çã o dial é tica entre natureza e gra ç
a, o motivo-base predominante no per í odo moderno teve sua origem na
mesma é poca, com a obra do franciscano brit â nico Guilherme de
Ockham (1280-1349 d.C.). Ockham teria rompido completamente com a
ideia de uma s í ntese entre f é e filosofia grega. Partindo da ideia de um
criador que é soberano — potestas absoluta — , ele tentou atacar a
cren ç a tomista que se assemelhava à deifica çã o grega da raz ã o . 181

Em consequ ê ncia desse pressuposto, Ockham separou completamente,


de acordo com Dooyeweerd, essas duas dimens õ es: natureza e gra ç a,
apregoando, por exemplo, a arbitrariedade da lei divina expressa no dec
á logo. Tal postulado contrariava a ideia aristot é lico-tomista de uma raz
ã o natural habilitada para o conhecimento de Deus. A ideia ockhamista
teve grande impacto na rela çã o da estrutura eclesi á stica cat ó lico-
romana medieval com a sociedade, com o Estado e tamb é m com o pr ó
prio pensamento filos ó fico. Podemos afirmar que com Guilherme de
Ockham h á uma mudan ç a no centro de gravidade da ideia de poder e
soberania. Dessa forma,
O futuro apresentava apenas duas op çõ es: ou se podia voltar ao motivo b á
sico da religi ã o crist ã ou, alinhado como o novo motivo da natureza,
apartado da f é da igreja, estabelecer uma concep çã o moderna da vida
concentrada na religi ã o da personalidade humana. O primeiro caminho
levou à Reforma; o segundo, ao humanismo moderno. Em ambos os
movimentos, os efeitos posteriores do motivo cat ó lico-romano da natureza e
da gra ç a continuaram a ser sentidos por um longo tempo . 182
Na Reforma Protestante, os efeitos do ockhamismo e seu motivo-base
natureza/gra ç a , ainda que sob uma nova forma, no motivo da
liberdade , foram sentidos na ideia luterana de oposi çã o entre lei e
evangelho. Herman Dooyeweerd assevera que “ [...] no pensamento
luterano [a lei foi depreciada] como a ordem para a ‘ natureza
pecaminosa ’ e, assim, come ç ou a entender a lei em termos de uma
ant í tese religiosa com a ‘ gra ç a evang é lica ’” . 183 O que
Dooyeweerd chama de uma escol á stica protestante viria a
influenciar posteriormente a teologia dial é tica de Karl Barth, muito
popular nos dias de Dooyeweerd.

Como j á referido, tal separa çã o entre natureza e gra ç a teria


como consequ ê ncia o desenvolvimento do humanismo moderno, cujo
principal elemento é o postulado de que a natureza possui uma realidade
independente da esfera da gra ç a. Portanto, a f é — cujo funcionamento
seria exclusivo dessa esfera independente da natureza — seria uma quest
ã o privada do ser humano. Essa suposta autonomia do pensamento teria
o seu sentido religioso camuflado. Eis o ponto principal da cr í tica
dooyeweerdiana: “ Desde Kant [...] o dogma da autonomia [...] do
pensamento [...] foi apresentado como um tema puramente filos ó fico
concernente à rela çã o entre a raz ã o te ó rica e a pr á tica, um tema
igualmente discutido nas filosofias grega e escol á stica ” . 184
Nesse contexto, a renascen ç a foi, para Dooyeweerd, o movimento
que articulou a ideia de uma concep çã o de um novo ser humano: “ [...]
essa personalidade foi pensada como absoluta em si mesma e
considerada a ú nica governante de seu pr ó prio destino e do destino do
mundo ” . 185 Esse ideal de liberdade e autonomia humanas entrou em
conflito com a nova concep çã o de natureza dos modernos, que j á n ã o
era o fluxo cont í nuo e disforme dos gregos, mas uma natureza
determinista, repleta de leis causais, as quais podem ser racionalmente
estudadas pelos olhos da raz ã o.
A imagem de mundo mecanicista constru í da sob a primazia do motivo da
natureza, visando a domina çã o soberana do mundo, n ã o deixou espa ç o
para a liberdade aut ô noma da personalidade humana em sua atividade pr á
tica. Natureza e liberdade pareciam ser motivos opostos baseados no ponto
de partida humanista . 186
A posi çã o dooyeweerdiana é de que esses dois polos dial é ticos do
humanismo n ã o podem encontrar uma s í ntese ú ltima, uma vez que s ã
o aspectos da realidade tornados absolutos. A resposta kantiana ao
problema do determinismo da natureza, por exemplo, fora resolvido com
uma separa çã o entre natureza e liberdade , na medida em que “ [...]
a liberdade aut ô noma do homem n ã o pertence ao campo sens ó rio da
natureza, mas ao campo suprassens ó rio da é tica, que n ã o é governado
por leis naturais, mas por normas ” . 187 Com Kant, o polo da
liberdade teve primazia.

O dualismo kantiano teria sido superado pelo idealismo p ó s-kantiano ,


que buscava uma s í ntese ú ltima entre esses dois polos. É na figura de
Friedrich Hegel (1770-1831 d.C.) que essa tentativa de s í ntese via
hist ó ria — ou a raz ã o na hist ó ria — foi empreendida.

A filosofia de Hegel é uma filosofia universalista em suas ra í zes. Seu


objetivo era desenvolver grandes quadros explicativos que dessem conta
de diversos t ó picos. De igual forma, Hegel tinha um conceito teleol ó
gico da hist ó ria, o que o coagia a escrever e pensar grandes esquemas
que encaixavam diferentes contextos de um mesmo quadro de progresso
de evolu çã o, em dire çã o a um fim ú ltimo, no qual a humanidade toda
estava inserida. Para ele, deve-se procurar um fim universal na hist ó ria,
o fim ú ltimo do mundo, uma raz ã o . 188

A principal ideia desenvolvida na obra A raz ã o na hist ó ria


universal é a de que a humanidade caminha em dire çã o à plena consci
ê ncia de liberdade, seu desenvolvimento m á ximo, alcan ç ado pelo
desenvolvimento da raz ã o, que n ã o é uma raz ã o particular, mas que
diz respeito a uma totalidade. Hegel tenta demonstrar, principalmente
atrav é s da an á lise hist ó rica, como essa raz ã o universal que
governa a hist ó ria tem se manifestado no contexto de diferentes povos.

A linguagem usada por Hegel nessa obra muitas vezes é religiosa,


valendo-se de analogias e exemplos tirados principalmente do
cristianismo e da B í blia. Parece haver uma equival ê ncia entre o
conceito de Hegel de raz ã o universal e a ideia crist ã de provid ê ncia.
Na hist ó ria universal, por é m, lidamos com indiv í duos que s ã o povos,
com totalidades que s ã o Estados; por conseguinte, n ã o podemos, por
assim dizer, permanecer na ninharia da f é na provid ê ncia, nem de igual
modo na f é meramente abstrata, indeterminada, que persiste apenas no
enunciado universal de que h á uma provid ê ncia que governa o mundo, mas
sem querer passar ao determinado . 189
De certa forma, o fil ó sofo “ seculariza ” o ideal de uma provid ê ncia
divina em a çã o no mundo, que governaria o rumo da hist ó ria humana,
substituindo-o por um conceito que, segundo Hegel, n ã o seria
demasiado abstrato, como o crist ã o. Entrementes, no contexto filos ó
fico p ó s-hegeliano, desenvolveu-se uma vis ã o historicista do mundo
temporal, de acordo com Dooyeweerd, o qual “ [...] reduziu todos os
outros aspectos de nossa experi ê ncia ao hist ó rico ” . 190

Dooyeweerd conclui esse ponto — o da constante mudan ç a de um polo


ao outro dentro do motivo-base natureza/liberdade , escrevendo que,
[...] em meados do s é culo XIX, o idealismo da liberdade alem ã o
entrou em colapso, dando lugar a um positivismo naturalista. O
motivo da natureza retomou a preemin ê ncia, e o modo hist ó rico
de pensamento transformou-se em um tipo mais complicado de
pensamento cient í fico natural . 191
O ponto central, desde uma perspectiva da filosofia cosmon ô mica, é
que “ [...] o positivismo l ó gico contempor â neo e seu oposto polar, o
existencialismo humanista, testificam de uma crise fundamental na
filosofia humanista ” . 192 Assim, essa dial é tica constante assola as
possibilidades de uma compreens ã o mais profunda da realidade.

Alguns apontamentos

Em um mundo cada vez mais plural e diversificado, h á uma profunda


necessidade de di á logo entre diferentes tradi çõ es de pensamento. A cr
í tica aguda de Dooyeweerd à modernidade parece abrir caminho à religi
ã o, principalmente no que concerne à esfera p ú blica — em muitos
contextos — entendida como neutra e aut ô noma em rela çã o a valores
religiosos. A filosofia cosmon ô mica desacredita dessa possibilidade. A
partir dela, portanto, seria poss í vel pensar em uma reforma das esferas
de debate p ú blico, na qual o ser humano se apresentaria em sua
integralidade, com tudo que o comp õ e.

Outro ponto a ser destacado, merecendo um aprofundamento posterior, é


a ontologia modal apresentada por Dooyeweerd, cuja origem remete a
Abraham Kuyper e seu conceito de esferas de soberania . Tal aparato
te ó rico pode servir, diante da crescente complexidade das rela çõ es pol
í ticas e sociais, como substrato para a elabora çã o e desenvolvimento
de uma teoria social e pol í tica relevantes na promo çã o da justi ç a e
bem p ú blicos . 193 De igual modo, a filosofia cosmon ô mica pode
prover um arcabou ç o te ó rico para a atua çã o do crist ã o na cultura,
na perspectiva da transforma çã o e cr í tica cultural.
Outra quest ã o, que est á em plena discuss ã o no contexto brasileiro, diz
respeito à constitui çã o do campo da teologia enquanto ci ê ncia, em di á
logo e/ou oposi çã o à (s) ci ê ncia(s) da(s) religi ã o e à filosofia. Tudo
parece indicar que a posi çã o dooyeweerdiana aproxima muito esses
dois campos de estudo. Em que medida poder í amos pensar essa rela çã
o, a partir da filosofia cosmon ô mica de Herman Dooyeweerd, parece
ser uma quest ã o em aberto, mas que pode nos fornecer importantes
insights sobre pontos controversos.

Por fim, acredito que, por ser n ã o serem muito conhecidas no contexto
acad ê mico brasileiro, a filosofia e o pensamento de Dooyeweerd
precisam de tempo de apropria çã o e discuss ã o. Os frutos de sua
contribui çã o s ó ser ã o colhidos mediante o estudo, debates e cr í ticas,
e isso s ó se faz com uma comunidade acad ê mica disposta a dialogar
com essa tradi çã o rica de pensamento.

Nesse sentido, o pr ó ximo cap í tulo busca refletir sobre poss í veis
contribui çõ es que a tradi çã o neocalvinista de Dooyeweerd pode fazer
no contexto brasileiro. Nessa dire çã o, é preciso fazer com que a
filosofia cosmon ô mica dialogue com a cultura brasileira e com a produ
çã o teol ó gica e filos ó fica latino-americana, as quais t ê m profundas
influ ê ncias sobre as dimens õ es sociais e pol í ticas de nosso pa í s.
5

O que Amsterd ã tem a ver com o Brasil? Reflex


õ es sobre cristianismo e cultura

Cristianismo e cultura

A tradi çã o filos ó fico-teol ó gica reformada holandesa afirma uma rela


çã o direta entre religi ã o e cultura e a impossibilidade de serem
completamente separadas. Ainda que haja variadas perspectivas dessa
rela çã o, incluindo modelos de oposi çã o radical, a primeira seria
sempre o fundamento da ú ltima. É importante reafirmar que, nas
categorias dooyeweerdianas, religi ã o é a orienta çã o do cora çã o a
um absoluto, cuja finalidade é dar sentido e significado à vida e à experi
ê ncia humana.

Assim, percebe-se que uma das principais ê nfases da tradi çã o


neocalvinista é a do cristianismo como cosmovis ã o total da vida, com a
proclama çã o da soberania de Deus sobre o todo da vida . 194 Desse
modo, a esfera cultural seria uma esfera absolutamente leg í tima de atua
çã o e engajamento para o crist ã o no mundo, na medida em que a gl ó
ria de Deus deveria ser expressa nela.

Um dos grandes dilemas dos crist ã os evang é licos brasileiros diz


respeito, justamente, à rela çã o com o mundo e seu sistema cultural.
Afinal, o crist ã o é ou n ã o é deste mundo? L ê -se em uma das cartas
do ap ó stolo Jo ã o: “ N ã o ameis o mundo nem as coisas que h á no
mundo. Se algu é m amar o mundo, o amor do Pai n ã o est á nele ” . 195
Entretanto, o mesmo ap ó stolo escreve no evangelho que: “ [...] Deus
amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unig ê nito [...] ” . 196
O que é o mundo , a partir de uma perspectiva crist ã ? Pode-se dizer
que h á uma grande confus ã o entre mundo como sistema pecaminoso e
mundo como cria çã o de Deus.

Em seu cl á ssico estudo Cristo e cultura , 197 Richard Niebuhr


apresenta alguns modelos de rela çã o entre cristianismo e a cultura . 198
Essa tipologia, ainda que n ã o seja perfeita — pois os tipos de rela çã o
nunca acontecem isolados e desassociados — , pode lan ç ar luz sobre o
caso do Brasil. A adapta çã o dessa tipologia de an á lise servir á como
instrumento interpretativo panor â mico do contexto brasileiro, com uma
consequente reflex ã o sobre as implica çõ es do pensamento
neocalvinista holand ê s diante desses modelos . 199 Usarei os seguintes
modelos: cristianismo contra a cultura; cristianismo da cultura; e
cristianismo como transformador da cultura.

Tais modelos n ã o ser ã o usados como o autor os fez, mas, para os fins
deste trabalho, servir ã o como tipos ideais, pensando-se na cultura como
a dimens ã o da criatividade humana e na produ çã o de artefatos
diversos, tais como express õ es art í sticas, produ çã o de conhecimento
e arranjos pol í ticos. Dessa forma, quando é apresentado, o termo
representa o todo complexo da produ çã o humana e n ã o um conceito
espec í fico, desenvolvido principalmente pela antropologia cultural.

Para tanto, farei uma apresenta çã o panor â mica desses modelos de rela
çã o entre cristianismo e cultura, localizando a perspectiva kuyperiana-
dooyeweerdiana no modelo de transforma çã o da cultura. Nesse í
nterim, ser ã o apresentados exemplos contextualizados e apontamentos
da manifesta çã o dessas interfaces no contexto brasileiro.

Cristianismo contra a cultura


Nessa perspectiva, cristianismo e cultura s ã o esferas completamente
separadas e que n ã o podem ser integradas. De maneira geral, grupos
com maior proximidade de express õ es carism á ticas e evangelicais de f
é d ã o vaz ã o a essa vis ã o. Muitas das ê nfases da prega çã o desses
segmentos s ã o a santidade pessoal e a separa çã o do mundo . 200

Um dos fundamentos para essa interpreta çã o da rela çã o entre os crist


ã os e o mundo — cultura — est á enraizado no dualismo plat ô nico
corpo/alma , 201 que no per í odo medieval viria a transformar-se no
motivo-basenatureza/gra ç a , como j á abordado aqui. Em seu cerne est
á a cren ç a fundamental de que a mat é ria — o vis í vel ou o mundo
sens í vel — é m á , pois nela est ã o contidas as paix õ es pecaminosas
que destruiriam a alma. A ú nica sa í da seria a nega çã o sistem á tica do
corpo, via valoriza çã o das atribui çõ es das atividades da alma . 202

Nesse sentido, parece haver uma identifica çã o entre a realidade e o


sobrenatural, como se o natural — vis í vel — fosse mera distor çã o de
uma realidade superior. Ora, essa cren ç a tem origem filos ó fica na
teoria das formas de Plat ã o. Na cl á ssica obra A rep ú blica , 203 Plat
ã o apresenta a sua famosa alegoria da caverna , a fim de ilustrar a
sua vis ã o filos ó fica. No di á logo entre S ó crates e Glauco, ele
escreve:
[...] é preciso aplicar exatamente essa alegoria ao que dissemos
anteriormente. Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à
estada na pris ã o , a luz do fogo que ilumina a caverna à a çã o do sol.
Quanto à subida e à contempla çã o do que h á no alto , considera que se
trata da ascens ã o da alma at é o lugar intelig í vel, e n ã o te enganar á s
sobre minha esperan ç a, j á que desejas conhec ê -la. Deus sabe se h á
alguma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade . 204

Nos di á logos socr á ticos, Plat ã o apresenta o mundo sens í vel como
pris ã o e o exerc í cio da raz ã o como um ponto de abertura superior a
uma realidade mais elevada. Tal vis ã o parece corresponder a uma
identifica çã o — presente no evangelicalismo brasileiro — do mundo e
de suas estruturas como algo mal em si. O abandono desse mundo, pelo
exerc í cio das coisas espirituais — entendidas como invis í veis — ou
pelo uso da f é , seria o modelo de vida e de espiritualidade para os crist
ã os.

É preciso esclarecer, todavia, que essa recep çã o e adapta çã o do


pensamento plat ô nico n ã o é imediata e direta, na medida em que
sofreu um longo processo hist ó rico de muta çã o e adapta çã o, sendo
sintetizada com outras formas de pensar, segundo a interpreta çã o dos
motivos-base do pensamento ocidental, descritos por Dooyeweerd. O
estabelecimento de um paralelo entre o dualismo plat ô nico e a
cosmovis ã o evangelical brasileira, no que diz respeito à rela çã o com a
cultura, é tra ç ado mais como uma refer ê ncia à s suas origens e menos
como uma deriva çã o direta.

H á uma desconfian ç a em rela çã o a toda a produ çã o cultural, se n ã o


demonizada, ao menos entendida como express ã o pecaminosa. Existe,
de acordo com Na ñ ez, um colapso da ment e 205 que d á lugar a um
fide í smo — ou seja, a redu çã o de toda a interpreta çã o da realidade à
s categorias da f é , em detrimento do reconhecimento do aspecto da f é
como parte de uma estrutura mais ampla. Aqui, a verdadeira religi ã o se
configuraria no abandono das estruturas do mundo e na busca de uma
realidade superior identificada com o sobrenatural.

Al é m disso, um olhar mais atento à s primeiras miss õ es evang é licas


presentes no Brasil revela forte tend ê ncia a uma prega çã o
separatista . 206 Essas miss õ es do s é culo XIX e XX tiveram suas
origens, principalmente, nos movimentos avivalistas nos Estados
Unidos . 207 De acordo com Na ñ ez, comentando o caso dos EUA,
Nesses anos de revolu çã o, a mar é do anti-intelectualismo come ç ou a
aumentar [...]. At é esses anos revolucion á rios, o minist é rio e a disciplina
mental, o reavivamento e a raz ã o, o secular e o sagrado, at é mesmo os r ó
tulos “ pastor ” e “ intelectual ” haviam-se mantido lado a lado . 208

Em terras norte-americanas, muitos desses movimentos que defendiam


uma atitude anti-intelectual passaram a ser chamados de
fundamentalistas , 209 na medida em que seu fide í smo se manifestava,
por exemplo, na interpreta çã o literal da B í blia. Em 1925, houve um
caso paradigm á tico que ficou conhecido como The Monkey Trial (O
julgamento do macaco), no qual o estado do Tennessee proibiu o ensino
da teoria darwinista da evolu çã o por supostamente contradizer o ensino
b í blico da cria çã o . 210 Sob a influ ê ncia do debate nos Estados
Unidos, muitos dos aspectos da discuss ã o entre cristianismo e ci ê ncia
no Brasil est ã o calcados na dualidade cria çã o e evolu çã o , 211 como
se o crist ã o n ã o pudesse assumir outra postura sen ã o aquela
propagada pelo design inteligente . 212

No caso brasileiro, al é m da tend ê ncia defensiva e de uma postura de n


ã o envolvimento com a cultura e com o exerc í cio intelectua l 213 por
parte do evangelicalismo, h á em outro espectro uma forte influ ê ncia do
movimento positivista na academia. Dessa forma, criou-se um
ambiente extremamente hostil a qualquer manifesta çã o que envolva
categorias crist ã s, tanto no debate acad ê mico quanto na esfera p ú
blica de forma mais ampla.

De acordo com Rudolf von Sinner, “ [...] as universidades p ú blicas no


Brasil t ê m uma tradi çã o de fortes reservas contra a religi ã o e a
teologia ” . 214 Uma poss í vel explica çã o hist ó rica para essa postura,
na perspectiva desse te ó logo, corroborando o que j á foi afirmado nesse
trabalho, est á no advento do “ [...] ecletismo, trazido ao Brasil da Fran ç
a (Maine de Biran, Victor Cousin) via Portugal, bem como o positivismo
de Comte, [que] se tornaram influentes durante o Imp é rio brasileiro [...]
” . 215
Voltando ao campo cultural mais amplo, pode-se afirmar que, al é m das
in ú meras programa çõ es evang é licas, tanto na grade da TV aberta,
quanto na por assinatura, canais com programa çã o exclusivamente
evang é lica t ê m aumentado . 216 Uma TV a cabo evang é lica foi lan ç
ada sob o nome de Nossa TV . O empreendimento encabe ç ado pelo
mission á rio R. R. Soares pretende-se uma alternativa de entretenimento
para o p ú blico evang é lico . 217

Al é m disso, o mercado da m ú sica gospel é um dos mais rent á veis em


termos fonogr á ficos no Brasil . 218 Todavia, mesmo diante da produ çã
o musical h á uma constante crise com o universo art í stico. De acordo
com Magali do Nascimento Cunha: “ Uma das marcas da express ã o
musical gospel ‘ louvor e adora çã o ’ é o fato de os cantores
insistirem que n ã o s ã o artistas, mas adoradores ” . 219

Ainda que haja certa ambiguidade nesse caso, h á uma real inser çã o em
termos de uma produ çã o cultural evang é lica . 220 Entretanto, a l ó
gica dessa produ çã o segue padr õ es de segmenta çã o mercadol ó gica,
n ã o sendo dilu í do para o todo da cultura. Exemplo dessa segmenta çã
o e diferencia çã o é o caso do Esp í ritoval , 221 uma festa evang é lica
que, em contraposi çã o à “ festa da carne ” , o carnaval, celebraria a “
festa do esp í rito ” . Em outra passagem, Cunha aponta que, para essa
concep çã o, “ a carreira art í stica [...] é incompat í vel com o prop ó sito
de Deus [...] ” . 222

Nesse sentido, h á forte tend ê ncia ao exclusivismo, na medida em que a


cultura produzida por determinado segmento é entendida como santa,
em detrimento da cultura mundana que seria fruto do pecado. Sendo
assim, o mundo ganharia a seguinte conota çã o:
A linguagem t ã o marcada na tradi çã o evang é lica, “ mundo ” , para se
referir ao espa ç o que n ã o é o da igreja, dos salvos, daqueles que est ã o
resguardados do mal e do pecado [...]. O dualismo “ igreja-mundo ” constitu
í do como base da teologia e da a çã o dos evang é licos brasileiros é
conservado ainda que em meio à s transforma çõ es inseridas pela composi
çã o de melodias pop, entoadas por cantores pop . 223

Esse ponto entra em choque com a ideia de gra ç a comum , enfatizada


por Kuyper e os neocalvinistas. O te ó logo Rodomar Ramlow afirma:
Enquanto a gra ç a particular ou especial é aquela pela qual Deus salva os
pecadores atrav é s de Jesus Cristo, a gra ç a comum seria aquela por interm
é dio da qual Deus restringe a corrup çã o do mundo causada pelo pecado e
permite o desenvolvimento da vida e cultura humanas . 224

O te ó logo holand ê s defendia que a gra ç a comum de Deus faz com


que todos os seres humanos, independente de serem crist ã os ou n ã o,
teriam a capacidade de criar coisas boas: artefatos culturais, por
exemplo, que reflitissem a gl ó ria de Deus. Assim, as produ çõ es
culturais n ã o podem ser analisadas — e rejeitadas — em fun çã o da
confiss ã o religiosa do autor, na medida em que pode ser um reflexo da
gra ç a comum derramada sobre a cria çã o.

Cristianismo da cultura

Se o primeiro modelo apresentado tende a ver a esfera cultural como


algo n ã o leg í timo em si mesmo, uma vez que h á forte influ ê ncia de
um dualismo “ crist ã o versus cultura ” , criando uma fissura na
realidade entre o sobrenatural e o natural, esse segundo modelo é aquele
cuja ê nfase est á no envolvimento direto do crist ã o com a cultura
contempor â nea.

Um olhar sobre o crescimento evang é lico nos ú ltimos anos no Brasil


demonstra tanto um crescimento de igrejas neopentecostais , como é o
caso da Universal do Reino de Deus e da Internacional da Gra ç a de
Deus, como de igrejas como a Bola de Neve Gospel Church e Onda
Dura, cujo p ú blico-alvo é majoritariamente o jovem urbano de classe m
é dia.

Um dos esfor ç os empreendidos por esses novos modelos eclesi á sticos


est á em tornar o cristianismo atrativo aos n ã o familiarizados com os
ambientes eclesi á sticos. Nesse sentido, o cristianismo e a igreja
precisariam adaptar-se à s mudan ç as, aceitando e dialogando com as
novas formas de pensar e com os novos artefatos culturais contempor â
neos.

Historicamente, de acordo com Richard Niebuhr, alguns movimentos


foram identificados com a perspectiva de harmoniza çã o entre o Cristo e
a cultura, qui çá o principal deles tenha sido o “ liberalismo ” , ainda que
o autor prefira o termo protestantismo cultural . 225 Para o te ó logo
americano,
[...] embora o seu interesse fundamental seja com aquilo que se relaciona
com este mundo ( this wordly ), eles n ã o rejeitam aquilo que transcende
este n í vel ( other-worldliness ), mas procuram entender o reino
transcendente como cont í nuo em tempo ou em car á ter à presente vida .
226

Certamente, h á um v á cuo consider á vel entre o liberalismo teol ó gico


e os referidos movimentos neopentecostais brasileiros — ainda que
eventuais semelhan ç as mais profundas entre seus fundamentos care ç
am de um estudo mais cuidadoso — , entretanto, aproximam-se no fato
de “ flertarem ” com certas din â micas culturais, seja em termos de uma
extrema racionaliza çã o ou de uma recep çã o acr í tica da l ó gica do
mercado da sociedade de consumo.

Grande parcela da cr í tica feita a esse modelo parte da ideia de que uma
simples acomoda çã o entre cristianismo e cultura faz com que a f é crist
ã e suas cren ç as fundamentais — ortodoxia — sejam corro í das por
cosmovis õ es que distorceriam verdades b í blicas centrais. Assim, tem
sido lugar comum interpretar a é poca contempor â neo, especialmente
ap ó s a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), como tempos p ó s-
modernos .

Entre as caracter í sticas centrais dessa nova configura çã o estaria a


perda do significado e do prop ó sito da vida, tanto pela via religiosa
quanto pela via racional, resultando em um esfacelamento da ideia de
verdade, o que geraria uma fragmenta çã o em v á rios n í veis, atingindo
em cheio a identidade pessoal, cujas refer ê ncias estariam perdidas
diante da crise das grandes metanarrativas. Dessa forma, o
enfraquecimento de categorias explicativas com um car á ter mais
universal abre espa ç o para narrativas individuais relativistas. Tal cen á
rio é respons á vel por um dinamismo exacerbado, cujo resultado é a
constante mudan ç a.

Nesse contexto, destaca-se o crescente aumento do individualismo .


Nas palavras de Andrew Fellows:
At é o Iluminismo, a religi ã o era o ponto de integra çã o para o sentido de
identidade do eu. Com a remo çã o desta base, a filosofia e a ci ê ncia
passaram a assumir essa fun çã o. Quando ambas n ã o podiam mais fornecer
um senso positivo de valor, n ã o restava outro caminho a n ã o ser uma retra
çã o em dire çã o ao eu. Foi assim que se deu o processo de subtra çã o do
mundo objetivo para o estado narcisista . 227

Tendo como quadro de refer ê ncia esse paradigma p ó s-moderno,


muitos te ó ricos sociais, fil ó sofos e te ó logos t ê m analisado o fen ô
meno religioso brasileiro com paralelos e similitudes à s l ó gicas
mercadol ó gicas e individualistas de nosso tempo, na medida em que “
[...] as religi õ es e teologias que surgem a partir de uma cosmovis ã o p
ó s-moderna divergem bastante da ortodoxia b í blica [...] e da pr ó pria
modernidade ” . 228
N ã o est á no escopo deste trabalho aprofundar a an á lise desse ponto.
O que cabe aqui, entretanto, é a indica çã o de alguns exemplos desse
modus operandi no interior de certos movimentos religiosos crist ã os
no Brasil. Como exemplo mais not á vel, tem-se o crescimento da
teologia da prosperidade, que pode ser pensada como:
[Um] movimento carism á tico interconfessional que enfatiza a sa ú de f í
sica e a prosperidade financeira como evid ê ncias b á sicas das b ê n çã os
divinas na vida crist ã . [Ela] é , sem d ú vida, a mais expressiva acomoda çã
o da f é crist ã ao ideal capitalista da prosperidade f í sica e material . 229

Um dos pilares da f é crist ã , muito enfatizado no contexto reformado


— a soberania de Deus — parece ser abalada pelo profundo centramento
no indiv í duo, que v ê Deus como um meio de autorrealiza çã o pessoal.
A vontade individual é soberana e é determinada em campanhas de vit ó
ria espiritual e financeira, mediada por t é cnicas contempor â neas de
motiva çã o e autoajuda.

Dessa forma, o passo da cultura contempor â nea acaba por subverter o


princ í pio b í blico da soberania de Deus, fazendo com que a a çã o crist
ã na cultura seja mera acomoda çã o, sem um quadro cr í tico
suficientemente forte com vistas a uma transforma çã o motivada pelas
categorias crist ã s.

De outro lado, o modo de ser igreja, a partir desse modelo, faz com que
o culto e a liturgia crist ã s sejam alterados com fins adaptativos e pragm
á ticos, como, por exemplo, a atra çã o de diferentes p ú blicos . 230 No
convite de uma igreja evang é lica carioca, l ê -se: “ Aproveite e traga
aquele seu amigo que curte m ú sica eletr ô nica, forr ó e outros ritmos,
que n ã o perde uma boa partida de futebol e ama uma agita çã o! Vamos
mostrar para a galera que sabemos fazer festa e juntos adorar a Deus! "
231
Esse é um exemplo da chamada balada gospel . H á , certamente,
uma flexibiliza çã o das formas, que muitas vezes acaba por atingir o
conte ú do, processo que é caracter í stico de uma sociedade que vive ap
ó s o fim da tradi çã o . 232

De um ponto de vista neocalvinista, nem a rejei çã o total da cultura nem


a acomoda çã o acr í tica a ela s ã o propostas que refletiriam o motivo-
base crist ã o central, de cria çã o, queda e reden çã o. Assim, como
contraponto a essas formas, apresenta-se a seguir um panorama do
modelo dooyeweerdiano de intera çã o entre cristianismo e cultura.

Cristianismo como transformador da cultura

Uma vez que, para os reformacionais, o cristianismo é uma cosmovis ã o


abrangente de toda a realidade, a ê nfase dessa tradi çã o est á na
soberania absoluta de Cristo sobre toda a vida, baseada na afirma çã o de
uma harmonia completa entre o Deus criador e o Deus redentor. Intr í
nseco à filosofia cosmon ô mica de Dooyeweerd est á o princ í pio teol ó
gico de um mandato cultural, cuja enuncia çã o seria pr é -queda. H á ,
portanto, valoriza çã o de uma teologia da cria çã o.

Nessa dire çã o, “ [...] a base e a compreens ã o do mandato cultural est ã


o no resgate do relato da cria çã o em G ê nesis. O ser humano é criado à
imagem e semelhan ç a de Deus e recebe a ordem para desenvolver a
cultura ” . 233 O mandato de cultivar o jardim , 234 presente no
primeiro livro da B í blia, implicaria uma s é rie de atividades
complexas, como a administra çã o de diferentes t é cnicas de manejo da
terra e o desenvolvimento de instrumentos necess á rios para seu cultivo.
Al é m do mais, normas sociais de agrupamento precisariam ser
desenvolvidas a fim de aprimorar o trabalho . 235

Esse ponto é uma heran ç a direta da no çã o de voca çã o , 236 t ã o


enfatizada pelos reformadores Lutero e Calvino. Ou seja, todo trabalho
seria uma forma de glorificar a Deus, e n ã o somente o trabalho eclesi á
stico espec í fico. Nesse sentido, um ferreiro glorifica a Deus da mesma
forma que um pastor realizando um serm ã o no culto. Kuyper insistia
em um cristianismo que n ã o fendesse a realidade entre sagrado e
profano.

Um dos grandes desafios enfrentados pelo movimento crist ã o evang é


lico no Brasil é o desenvolvimento de uma mentalidade crist ã . O cen á
rio atual nos remete a uma polariza çã o entre os dois modelos de intera
çã o apresentados anteriormente. Nas categorias dooyweerdianas, essa
mentalidade seria uma forma de pensamento fundada em uma cosmovis
ã o crist ã que funcione como refer ê ncia hermen ê utica abrangente —
integral — sobre os aspectos da vida, envolvendo, sem d ú vida, quest õ
es da ordem social e da esfera cultural.

A partir da constru çã o de uma vis ã o crist ã neocalvinista da atividade


cultural em di á logo com o contexto brasileiro, Guilherme de Carvalho
observa que:
Em oposi çã o a uma forma isolacionista e uma forma sint é tica de
evangelicalismo, é preciso buscar uma forma dial ó gico-antit é tica de
evangelicalismo: em contato permanente e cr í tico com a cultura,
reconhecendo seu car á ter criador e intrinsicamente bom, mas tamb é m
conscientes dos efeitos perversivos e universais da queda . 237

Uma vez que a cria çã o é boa, visto ser obra do Deus criador de todas as
coisas, suas diferentes dimens õ es expressariam a vontade dele para a
criatura. Entretanto, juntamente com essa ideia, os neocalvinistas
enfatizam a vis ã o da queda no pecado como deprava çã o total , 238
como uma distor çã o da realidade criada. Como j á referido nesse
trabalho, a no çã o dooyeweerdiana de dire çã o ap ó stata do cora çã o
constitui-se como a defini çã o de pecado, afirmada por essa tradi çã o.

Para o pensamento cosmon ô mico, o cora çã o humano inclina-se para


um motivo-base religioso, em busca de sua origem, como forma de dar
significado à experi ê ncia. Todavia,
Se esse motivo b á sico é de car á ter ap ó stata, ele distanciar á o ego de sua
Origem verdadeira e direcionar á seu impulso religioso para nosso horizonte
temporal de experi ê ncia, buscando dentro deste tanto a si mesmo quanto a
sua Origem. Isto dar á origem a í dolos provenientes da absolutiza çã o
daquilo que s ó tem sig nificado relativo . 239

Tal direcionamento cria o ú nico dualismo existente na realidade: a ant í


tese religiosa do cora çã o. O pecado introduz essa fissura no cora çã o
humano. O antit é tico, portanto, estaria alojado no cora çã o humano —
centro religioso — e n ã o em estruturas externas. Essa dire çã o
equivocada afeta todos os aspectos da vida, da dimens ã o cultural à
produ çã o filos ó fico-cient í fica.

Diante dessa afirma çã o relacionada aos efeitos da queda, a tradi çã o


reformacional aponta para uma reden çã o total em Cristo. Tal reden çã o
incluiria a esfera cultural e todo tipo de produ çã o humana, que envolva
a criatividade. Na medida em que a cultura deve ser afirmada como algo
bom da cria çã o, ela é tanto uma d á diva quanto uma tarefa a ser
realizada. Conforme Carvalho,
[...] a cultura humana como um todo tamb é m faz parte da ordem criacional
de Deus. Diversos aspectos da cultura (Estado, fam í lia, economia,
moralidade, etc.) j á existiam antes da igreja e continuam v á lidos com a
vinda do reino de Deus. A nova cria çã o n ã o implica a destrui çã o ou a
dissolu çã o da ordem criacional original; n ã o é uma subvers ã o, mas a
restaura çã o e a glorifica çã o da arquitetura original da cria çã o . 240

Sendo assim, o crist ã o seria chamado a trabalhar na obra redentiva de


Cristo, que abrangeria toda a realidade criada. Nesse ponto, todavia,
podem surgir algumas cr í ticas e controv é rsias, na medida em que
algumas perguntas se fazem necess á rias: n ã o haveria uma tend ê ncia
a confundir o reino de Deus com a igreja institucional? N ã o seriam os
neocalvinistas os defensores de uma teocracia com caracter í sticas
medievais de uma cristandade ?

Nesse aspecto, analisando-se a rela çã o entre filosofia e teologia,


observou-se no decorrer desta obra, que Dooyeweerd n ã o submete a
filosofia à teologia, como se a ú ltima fosse a rainha das ci ê ncias ,
com a cren ç a subjacente de que os te ó logos teriam um acesso mais
pleno ao conhecimento.

Como exemplo desse tipo de perspectiva, Kuyper criou a Universidade


Livre de Amsterd ã . A refer ê ncia “ livre ” na nomenclatura dessa
institui çã o tinha a inten çã o de comunicar uma liberdade tanto em rela
çã o ao Estado quanto em rela çã o à igreja institucional, uma vez que
ele aplicava a ideia de que a educa çã o tinha uma esfera de atua çã o
independente ou, em sua linguagem, uma esfera de soberania. Portanto,
n ã o caberia à igreja o papel de controlar as outras esferas.

A ú nica garantia para essa liberdade dentro das esferas seria a afirma çã
o de um Deus criador soberano, cujo poder n ã o poderia ser usurpado
por ningu é m nem por nenhuma institui çã o. Sendo assim, a proposta
neocalvinista se constitui, justamente, como uma tentativa de prote çã o
contra qualquer poder absolutista. As esferas de soberania seriam uma
forma de prote çã o e afirma çã o da liberdade humana dentro dessas
esferas. Esse alcance da soberania do criador teria o escopo do universo,
sendo refletido em todas as dimens õ es da realidade criada.

Alicer ç ados na cosmovis ã o reformacional, muitos minist é rios se


desenvolveram. Um exemplo que pode ser citado por aplicar os princ í
pios da tradi çã o holandesa em seu modus operandi é o do L ’ abri
Fellowship . 241 Sob a influ ê ncia do historiador da arte
dooyeweerdiano Hans Rookmaaker , 242 o te ó logo americano Francis
Schaeffe r 243 trabalhou, juntamente com sua esposa Edith Schaeffer,
nesse minist é rio, a partir de 1955, na Su íç a.
Um dos principais motes do L ’ abri é a integra çã o do cristianismo com
diferentes á reas da vida, com forte ê nfase na dimens ã o est é tica. De
acordo com Steve Turner, um ex-estudante de L ’ abri nos anos 1970:
A vida em L ’ abri afiou nossas percep çõ es. Muitos de n ó s tinham vindo
de contextos em que é ramos encorajados a categorizar toda a cultura como
crist ã ou n ã o crist ã , espiritual ou carnal. Schaeffer, influenciado pelo
historiador da arte holand ê s Hans Rookmaaker, prop ô s, ao inv é s disso,
que olh á ssemos para as obras de forma individual. Em vez de perguntar “
esse artista é salvo? ” , dever í amos perguntar: essa obra de arte mostra
excel ê ncia t é cnica? É uma express ã o v á lida da vis ã o de mundo do
artista? A forma e o conte ú do est ã o bem integrados? A verdade est á
sendo comunicada ? 244

A refer ê ncia ao L ’ abri e a Francis Schaeffer s ã o fundamentais, na


medida em que esse autor foi muito lido no Brasil, nos anos 1970 e
1980. De igual modo, parte de suas obras est ã o sendo publicadas com
novas edi çõ es no Brasil . 245 Tal fato pode explicar, em alguma
medida, o crescente interesse pela tradi çã o neocalvinista no contexto
brasileiro, uma vez que, embora n ã o seja de forma direta, o pensamento
de Schaeffer foi muito influenciado pelas categorias interpretativas de
Herman Dooyeweerd, via a intensa amizade e influ ê ncia de
Rookmaaker sobre o pensamento de Schaeffer . 246

Observou-se no decorrer desse cap í tulo que a tradi çã o na qual


Dooyeweerd est á inserido afirma a insufici ê ncia e incoer ê ncia dos
modelos de rela çã o entre o crist ã o — e o ser humano em geral — e o
mundo — sistema cultural, de um modo amplo — , na medida em que
tais modelos, de oposi çã o ou de assimila çã o, n ã o reconhecem a
legitimidade do mundo como locus de manifesta çã o da gl ó ria e
soberania do criador ou n ã o reconhecem o poder transformador da vida
crist ã em diferentes esferas da vida. Nesse sentido, uma proposta de a çã
o cultural baseada na tradi çã o neocalvinista liberaria o crist ã o para
atuar na cultura como transformador de seus conte ú dos e n ã o de sua
estrutura criacional.

Nessa dire çã o, tal perspectiva pode gerar uma nova mentalidade e pr á


tica no que concerne à atua çã o dos crist ã os na cultura brasileira, ainda
marcada fortemente por um dualismo, o que faz com que os crist ã os n ã
o se envolvam na produ çã o de artefatos culturais significativos, a n ã o
ser de forma segmentada e espec í fica, com uma produ çã o
intraeclesia , no que se convencionou chamar de mercado gospel . Al é
m disso, o reconhecimento da gra ç a comum pode servir como base
para uma aprecia çã o da cultura nacional que celebre a cria çã o, ainda
que n ã o seja crist ã . Tal fato poderia catalisar o envolvimento dos crist
ã os com a transforma çã o da cultura.

Realizada a reflex ã o a respeito das din â micas culturais do contexto


brasileiro, interpretadas a partir de uma perspectiva reformacional, cabe
agora prosseguirmos para a discuss ã o das propostas teol ó gicas
presentes no Brasil. Para isso, no cap í tulo a seguir ser ã o discutidas
duas propostas teol ó gicas latino-americanas, a saber, a teologia de
miss ã o integra l e a teologia da liberta çã o , cujas perspectivas dizem
respeito a uma intera çã o entre cristianismo e a dimens ã o s ó cio-pol í
tica da realidade. Em seguida, faz-se uma reflex ã o e uma cr í tica a
essas interpreta çõ es, a partir do neocalvinismo, propondo-se caminhos
para um futuro di á logo entre essas tradi çõ es, com a finalidade de
construir um debate edificante, que contribua com a igreja e com a
sociedade brasileira.
6

(Re)pensando a teologia latino-americana: um di


á logo entre Amsterd ã , Lausanne e Medell í n

Na medida em que ganha f ô lego no Brasil, é inevit á vel que a


perspectiva reformacional dialogue com as perspectivas teol ó gicas
presentes na Am é rica Latina. A partir do Primeiro Encontro de
Cosmovis ã o B í blica e Transforma çã o Integral , 247 ocorrido em
2005, em Curitiba, iniciou-se uma reflex ã o sistem á tica em torno de
temas importantes à igreja e sociedade brasileiras, tendo como base a
tradi çã o kuyperiana de pensamento.

Contudo, ainda é cedo para falar em di á logo com outras perspectivas,


visto que o primeiro esfor ç o dos autores que comungam desta tradi çã o
foi o de apontar semelhan ç as e diferen ç as com o que j á se tem
produzido, em termos de uma reflex ã o crist ã , especialmente a partir
da teologia de miss ã o integral e da teologia da liberta çã o , em
reconhecimento ao legado desses movimentos. Guilherme de Carvalho
— um dos articuladores do pensamento neocalvinista no Brasil —
afirma que:
A ideia de que a cosmovis ã o crist ã deve ter um impacto decisivo em todas
as á reas da vida, inclusive no pensamento, desenvolvida no neocalvinismo
holand ê s, tem seu paralelo nos movimentos crist ã os como o socialismo
crist ã o europeu, a teologia da liberta çã o e a teologia da miss ã o integral,
refletida no Pacto de Lausanne . 248
A apresenta çã o da teologia da miss ã o integral (TMI) e da teologia
da liberta çã o (TdL) , portanto, pretende real ç ar os pontos de
congru ê ncia e de tens ã o com essas tradi çõ es a partir da aplica çã o de
uma perspectiva cosmon ô mica de reflex ã o e pr á xis. Nesse sentido, a
descri çã o dessas propostas teol ó gicas de forma panor â mica n ã o
representa todo o seu f ô lego te ó rico e pr á tico em campos distintos.
Esta apresenta çã o serve mais como in í cio de debate entre as tradi çõ
es, e menos como um trabalho comparativo pormenorizado dessas
importantes perspectivas teol ó gicas, cujos frutos tiveram grande
impacto na Am é rica Latina e no mundo.

Teologia da miss ã o integral (TMI)

Assim como a teologia da liberta çã o pode ser chamada de teologia


contextual, na medida em que se volta para o di á logo com as quest õ es
pr ó prias do contexto latino-americano, em resposta ao Conc í lio
Vaticano II, a teologia de miss ã o integral se originou como uma
resposta dos protestantes latino-americanos à s quest õ es debatidas no
Congresso Mundial de Evangeliza çã o ocorrido na cidade de Lausanne,
na Su íç a, em 1974.

Os principais articuladores dessa proposta nos anos 1970 foram: Ren é


Padilla, Pedro Savage, Samuel Escobar, Pedro Arana, Emilio Nu ñ ez e
Valdir Steuernagel. Para Jos é Miguez Bonino, apesar de o movimento
ter influ ê ncia de grupos evang é licos dos Estados Unidos e da ala
evang é lica da Igreja Anglicana, na Inglaterra, o movimento de miss ã o
integral “ [...] tem um rosto pr ó prio e uma hist ó ria particular em nosso
continente ” . 249

O Congresso Mundial de Evangeliza çã o, que reuniu crist ã os


protestantes de v á rias partes do mundo, teve como finalidade refletir
sobre o significado da miss ã o da igreja crist ã na segunda metade do s é
culo XX. O grande mote desse movimento teol ó gico foi: O evangelho
todo para o homem todo , no sentido de resgatar uma perspectiva n ã o
dualista do ser humano e da realidade. Assim, o evangelho e a salva çã o
n ã o diriam respeito somente à salva çã o da alma, mas seriam um poder
de transforma çã o da realidade, incluindo as din â micas sociais.

De acordo com Ricardo Gondim,


[...] Havia uma clara efervesc ê ncia entre os latino-americanos que
reivindicavam maior liberdade para “ contextualizar ” a teologia. Com
menos tutela da matriz norte-americana, igrejas e semin á rios viram na Miss
ã o Integral a possibilidade de fazer miss ã o nos moldes propostos pelo
Pacto de Lausanne . 250

No cerne das discuss õ es estava contida uma dupla cr í tica: tanto ao


fundamentalismo teol ó gico , como ao liberalismo teol ó gico . Sobre
isso, Bonino afirma que:
O movimento come ç a com uma afirma çã o da centralidade das
Escrituras, na dupla frente da cr í tica ao literalismo torpe e à interpreta çã
o arbitr á ria do fundamentalismo e de um liberalismo que parecia reduzir a B
í blia a uma cole çã o de documentos do passado ou a um reposit ó rio de
verdades religiosas e é ticas gerais e universais . 251

A constata çã o de uma baixa influ ê ncia do protestantismo na Am é rica


Latina, diante de uma realidade de pobreza e exclus ã o social, fez com
que os proponentes da miss ã o integral, cuja express ã o institucional se
encontra em entidades como a Fraternidade Teol ó gica Latino-
americana (FTL), buscassem retomar a dimens ã o hol í stica do
evangelho, com foco tanto na salva çã o da alma quanto na transforma
çã o social de comunidades. Nessa dire çã o, afirmava-se que “ [...]
qualquer evangeliza çã o que queira apenas salvar almas empobrece o
evangelho, tem uma soteriologia unilateral e n ã o dignifica o ser
humano como criado por Deus à sua imagem ” . 252
Na perspectiva da TMI, portanto, h á um reconhecimento do ser humano
como um ser cultural e social, cujas expectativas e necessidades podem
e devem ser respondidas pela proposta evang é lica, que precisa ver o ser
humano em sua totalidade, para al é m da alma. De igual modo, h á uma
preocupa çã o — assim como na TdL — com as dimens õ es estruturais
da sociedade, como a pol í tica e a economia . 253 Uma a çã o crist ã
integral no mundo n ã o poderia deixar de levar em considera çã o esses
aspectos.
A express ã o “ por todo o Evangelho ” significou para a Miss ã o Integral n
ã o apenas o an ú ncio dos conte ú dos da mensagem crist ã para indiv í
duos, mas uma mensagem c ó smica que revelasse um Deus que “ abarca o
mundo inteiro ” e n ã o se dirige ao indiv í duo per se [...], sem distin çã o
de g ê nero, cultura ou etnias e condi çã o econ ô mica . 254

Dessa maneira, a TMI representa uma proposta crist ã evang é lica


latino-americana para a a çã o social crist ã no mundo, bem como para
uma atua çã o em termos sociais e pol í ticos. Assim, ela pode ser
enquadrada como uma teologia contextual, visto que dialoga com os
aspectos particulares do contexto brasileiro e latino-americano, sem abrir
m ã o de uma vis ã o crist ã da realidade.

Considerando a reflex ã o pol í tica, o movimento tem como refer ê ncia


o bispo anglicano Robinson Cavalcanti — que at é a sua morte, em
2012, tinha intensa produ çã o e influ ê ncia na miss ã o integral — e o
soci ó logo ingl ê s, radicado no Brasil, Paul Freston. Historicamente,
Cavalcanti foi um dos fundadores, em 1990, do MEP (Movimento
Evang é lico Progressista) , 255 cuja perspectiva e atua çã o diferiram
profundamente da tradicional identifica çã o dos evang é licos com a
direita pol í tica e com perspectivas mais conservadoras . 256 Assim,
O movimento come ç ou a ganhar visibilidade nas elei çõ es presidenciais de
1989, quando organizou-se o Movimento Evang é lico Pr ó -Lula, liderado
por Robinson Cavalcanti, que chegou a aparecer no hor á rio televisivo, no
primeiro turno, causando impacto entre os evang é licos, que tendiam a
demonizar a esquerda . 257

Observa-se que um dos fundamentos da miss ã o integral é a no çã o de


justi ç a social , o que faz com que seus adeptos n ã o se apeguem ao
conservadorismo. Em semelhan ç a à teologia da liberta çã o, h á ê nfase
na condi çã o de pobreza presente na Am é rica Latina e na luta para
transformar essa condi çã o que oprime o ser humano. O papel do crist ã
o seria um engajamento pol í tico cr í tico.

Todavia, essa defesa da justi ç a social faz com que o movimento se


aproxime muito de uma orienta çã o socialista, aceitando algumas
categorias interpretativas, como a teoria da depend ê ncia e o
materialismo hist ó rico . O ponto cr í tico para os neocalvinistas n ã o é
o di á logo com essas matrizes de pensamento, mas sua recep çã o acr í
tica e a falta de um filtro hermen ê utico crist ã o, na medida em que a
reboque de algumas teses pol í tico-econ ô micas s ã o incorporadas
determinadas antropologias e teologias, as quais seriam incompat í veis
com uma vis ã o de mundo crist ã .

Os neocalvinistas reconhecem, entretanto, que essa predile çã o à


esquerda do movimento da miss ã o integral pode ser mais uma estrat é
gia moment â nea do que um compromisso ideol ó gico . 258 Tal
alinhamento se configuraria como uma co-beliger â ncia contra um
inimigo comum: nesse caso, a injusti ç a social. Pode-se inferir que tal
perspectiva aproxima-se do posicionamento da tradi çã o kuyperiana-
dooyeweerdiana de afirma çã o daquilo que promova a soberania de
Deus e a consequente promo çã o da fun çã o plena de cada esfera de
soberania. Na medida em que a fun çã o do Estado é promover a justi ç
a, toda iniciativa nessa dire çã o — ainda que de n ã o crist ã os — deve
ser apoiada e incentivada.

Aproxima çõ es e tens õ es entre a TMI e o neocalvinismo


Tomando emprestada a linguagem conceitual dooyeweerdiana, pode-se
afirmar que o motivo-base primordial, sobre o qual a teologia pol í tica
da miss ã o integral constr ó i sua a çã o, é o mesmo presente nWWWa
cosmovis ã o neocalvinista. Ambas as perspectivas comungam da cren ç
a fundamental de uma cria çã o-queda-reden çã o, constando tamb é m o
princ í pio escatol ó gico da consuma çã o. Nesse sentido, l ê -se na
declara çã o de Jarabacoa:
Reafirmamos nossa firme convic çã o de f é nas Sagradas Escrituras e,
dentro da tradi çã o da Reforma, proclamamos o senhorio de Cristo sobre o
indiv í duo e sobre a sua igreja. Com a mesma for ç a confessamos que Ele é
o Senhor de toda a realidade criada. Consideramos que o poder redentor e
renovador de Cristo afeta, n ã o somente o indiv í duo, como tamb é m a
esfera social, econ ô mica, cultural e pol í tica nas quais este se desenvolve .
259

Para Carvalho, essas tem á ticas apresentadas na Declara çã o de


Jarabacoa (1983) , 260 t ê m “ [...] precis ã o e coer ê ncia evang é lica,
[uma vez] que evita indicar uma ideologia pol í tica espec í fica ” . 261
De igual modo, tal declara çã o, ao mesmo tempo que libera a a çã o
crist ã em todas as estruturas criacionais, n ã o ignora a presen ç a do
pecado, como distor çã o de uma correta orienta çã o do centro religioso
humano. Essa postura evita um isolamento infrut í fero — do crist ã o
contra a pol í tica — ou de uma aceita çã o indiscriminada de certos
modelos de a çã o pol í tica.

Valendo-se das ideias do te ó rico social dooyeweerdiano Nicholas


Wolterstorff , 262 os reformacionais brasileiros defendem uma a çã o pol
í tica evang é lica de cunho formativo , cuja vis ã o é a da “ [...] exist ê
ncia terrena como locus da experi ê ncia religiosa [...] intramundana
[...] ” , 263 em contraposi çã o a uma a çã o avertiva , cuja ê nfase
estaria em uma forma extramundana de religiosidade. A perspectiva
formativa teria como finalidade uma constante reforma das estruturas
pol í tico-sociais, numa esp é cie de aplica çã o do princ í pio Ecclesia
Reformata Semper Reformanda Est ao campo pol í tico.

Nessa dire çã o, h á um progressismo que aproxima os diferentes


movimentos alicer ç ados na teologia de miss ã o integral com a tradi çã
o reformada holandesa. Entretanto, os neocalvinistas recha ç am um
progressismo de tipo humanista, que interpreta a ordem social como
mera constru çã o social, como desenvolvido na ideia de contrato
social , dos fil ó sofos iluministas franceses e ingleses. A ordem social
seria, em contraposi çã o, resultado de um ordenamento divino
fundamentado na cria çã o, e n ã o em princ í pios racionais abstratos ou
em aspectos hist ó ricos espec í ficos . 264

Uma das cr í ticas centrais de Guilherme de Carvalho à TMI decorre de


uma suposta aus ê ncia de fundamenta çã o da ordem social em uma
ordem criada. Ademais, o te ó logo pergunta: “ Afinal de contas, de
qual progressismo a teologia da miss ã o integral fala ? 265 Essa é uma
das quest õ es levantadas pelo movimento de cosmovis ã o crist ã no
contexto brasileiro, cuja resposta ainda n ã o foi elaborada
sistematicamente pela TMI. Pode-se afirmar, assim, que ainda n ã o h á
um debate acad ê mico — via produ çã o de artigos, ensaios ou coment á
rios — no que concerne à possibilidade de leitura cr í tica e conversa
entre TMI e neocalvinismo.

Ainda seguindo Wolterstorff, Carvalho afirma que um progressismo


reformacional constitui:
[um] cristianismo [...] cosmoformativo (world-formative) n ã o [...]
meramente disruptivo, sen ã o redentivo; e n ã o reacion á rio, pois
compreende que h á uma linha de avan ç o e diferencia çã o cultural
enraizada no mandato cultural em G ê nesis. A forma neocalvinista de
progressismo seria ent ã o o compromisso com a reforma da ordem social,
para submet ê -la à s leis de Deus . 266
O que est á em jogo para os neocalvinistas é a proposta de uma filosofia
pol í tica de cunho crist ã o. Como j á exposto, o projeto cosmon ô mico
de Dooyeweerd prev ê um rearranjo epistemol ó gico, propondo uma
nova forma de interpretar as rela çõ es entre as ci ê ncias e as diversas
formas de conhecimento. Em certo sentido, esse é um projeto audacioso
de reforma do pensamento. Tal empreitada é estendida, de igual forma, à
esfera de atua çã o pol í tica.

Para os defensores das ideias neocalvinistas no Brasil, a proposta


kuyperiana-dooyeweerdiana de filosofia sociopol í tica é a ú nica
coerente com o motivo-base cria çã o, queda e reden çã o. Nesse ponto,
eles pretendem colaborar para a reflex ã o da miss ã o integral que, ao
que tudo indica, carece de uma proposta inovadora e enraizada nas
categorias crist ã s, em termos filos ó ficos. Os reformacionais veem
com desconfian ç a a aproxima çã o entre crist ã os e a esquerda pol í
tica, cujas filosofias sociais estariam erigidas sobre motivos-base
religiosos ap ó statas.

Todavia, essa cr í tica ao socialismo n ã o faz com que haja imediata


aceita çã o acr í tica dos princ í pios do conservadorismo ou da cl á ssica
direita pol í tica. Leonardo Ramos — autor brasileiro que integra a
AKET (Associa çã o Kuyper para Estudos Transdisciplinares) —
defende a supera çã o do bin ô mio direita/esquerda , nem tanto atrav é
s de um centrismo ou por equil í brio entre os dois polos, mas pela ado
çã o de uma “ [...] postura mais à ‘ direita ’ do que a direita e mais à ‘
esquerda ’ do que a esquerda, mais ‘ tradicionais ’ que os tradicionais e
mais ‘ revolucion á rias ’ que os revolucion á rios ” . 267 Portanto, a
postura dos crist ã os diante desse bin ô mio deveria ser de desconfian ç
a, na medida em que
[esses] dois extremos: individualista : pr ó -mercado, politicamente de
direita; e coletivista : em geral pr ó -Estado, politicamente de esquerda [...]
reificam metanarrativas modernas — mercado e Estado, liberalismo e
marxismo — , que por sua vez s ã o í dolos do nosso tempo e, como tais,
conduzem à idolatria e ao afastamento dos prop ó sitos de Deus . 268

Outro ponto de tens ã o entre os neocalvinistas e a TMI diz respeito à a


çã o crist ã extraeclesi á stica , ou seja, ao lugar e miss ã o da igreja em
rela çã o ao lugar e miss ã o de institui çõ es paraeclesi á sticas. A cr í
tica de Carvalho à perspectiva da miss ã o integral é de que ela, muitas
vezes, n ã o confere legitimidade pr ó pria a essas institui çõ es,
tornando-as extens õ es da miss ã o da igreja. Em outros termos, elas s ó
teriam legitimidade onde h á aus ê ncia da igreja. Ainda h á , de acordo
com ele, l í deres e ministros que enxergam qualquer projeto social como
de responsabilidade pr ó pria do governo . 269

Em contrapartida,
Esse problema simplesmente n ã o existe no pensamento neocalvinista,
porque nele o envolvimento dos crentes em projetos paraeclesi á sticos e
extraeclesi á sticos n ã o é visto como forma de “ compensar ” a fraqueza da
igreja, mas como uma de suas finalidades principais. Nessa perspectiva, a
igreja é vista como uma esp é cie de “ centro pastoral ” , que visa a capacitar
e enviar os santos para a çõ es de transforma çã o integral nos diversos
campos da sociedade . 270

Diante da exposi çã o dos elementos da tradi çã o reformacional,


percebe-se que h á um encorajamento da ocupa çã o dos espa ç os (
esferas ) por parte dos crist ã os, como forma de promo çã o do senhorio
de Cristo sobre toda a realidade. N ã o h á um combate de distor çõ es
via aus ê ncia ou de uma centraliza çã o eclesi á stica, mas um
preenchimento, que v ê em cada esfera particular um locus de
manifesta çã o da soberania e gl ó ria divina.

Certamente, h á muito mais pontos de aproxima çã o do que de tens ã o


entre essas duas tradi çõ es . 271 Cabe aos crist ã os, partindo de ambos
os espectros, continuar um debate frut í fero que possa servir de refer ê
ncia para a constru çã o de paradigmas edificantes de uma atua çã o crist
ã na realidade, que seja relevante e que fa ç a a diferen ç a em v á rios
campos.

Teologia da liberta çã o (TdL)

Assim como é o caso da teologia de miss ã o integral, a teologia da


liberta çã o (TdL) tem uma vasta literatura e uma gama de autores que
versam sobre os mais variados temas. Sua influ ê ncia e import â ncia na
Am é rica Latina transcendem o n í vel eclesi á stico — tanto cat ó lico,
como protestante — sendo reconhecidas por autores de diferentes tradi
çõ es. Ademais, muitos te ó logos da liberta çã o se engajaram em lutas
pol í ticas, especialmente contra os regimes ditatoriais na Am é rica
Latina na segunda metade do s é culo XX. É importante frisar,
novamente, que o escopo dessa se çã o ser á delinear os tra ç os
fundamentais dessa tradi çã o teol ó gica, apresentando-a a partir de uma
interpreta çã o neocalvinista , 272 e n ã o de forma exaustiva e detalhada,
empreitada que demandaria um trabalho espec í fico.

Dos grandes tratados teol ó gicos universais (ou universalizantes) à s


teologias contextuais (particulares): esse foi o caminho percorrido por
muitos te ó logos e teologias, especialmente no s é culo XX. Essas
teologias surgem de demandas de minorias , 273 geralmente exclu í das,
sob algum aspecto, seja ele social, pol í tico, econ ô mico ou, mais
recentemente, de g ê nero. Portanto, a primeira afirma çã o que se faz é
de que a TdL é uma teologia contextual, cujo impulso inicial est á na
experi ê ncia de um sujeito espec í fico. E que experi ê ncia e sujeito s ã
o estes? No caso da Am é rica Latina, é a experi ê ncia de exclus ã o e
o sujeito é o pobre . A articula çã o teol ó gica seria, em primeiro lugar,
uma luta por emancipa çã o e depois por liberta çã o . 274
De acordo com Alessandro Rocha, “ [...] a TdL emerge da articula çã o
entre a positividade da f é e a realidade hist ó rica dos pobres ” . 275 Tal
articula çã o teria iniciado como a resposta dos te ó logos latino-
americanos ao Conc í lio Vaticano II (1962-1965), que foi o respons á
vel por uma maior abertura da Igreja Cat ó lica Apost ó lica Romana em
tem á ticas contextuais. Nesse sentido, “ [este evento] foi importante
para trabalhar uma eclesiologia que entendia a Igreja como povo de
Deus ” . 276 De certa maneira, a partir do Conc í lio, h á uma abertura
para uma descentraliza çã o das estruturas eclesi á sticas e consequente
valoriza çã o das demandas particulares de contextos espec í ficos.

Um importante evento que se seguiu ao Conc í lio Vaticano II foi a


Confer ê ncia do Episcopado Latino-Americano, realizada em Medell í
n, Col ô mbia, no ano de 1968. Nela, “ [...] surge com muita for ç a a
consci ê ncia da solidariedade com os pobres que articula duas dimens õ
es da realidade latino-americana at é ent ã o pouco dialogantes na reflex
ã o teol ó gica: unidade hist ó rica e dimens ã o pol í tica da f é” . 277
Essa dimens ã o da historicidade, relacionada à pr á xis , de toda
teologia é uma das marcas da TdL.
A origem da TdL na Am é rica Latina n ã o é casual: uma reflex ã o sobre a f
é a partir das inquieta çõ es dos setores populares que sofrem injusti ç a
dificilmente poderia ter nascido nos pa í ses ricos do mundo. Nos pa í ses
ricos, as preocupa çõ es s ã o outras: a seculariza çã o, a abund â ncia que
produz materialismo e ate í smo, a perda do sentido da vida e o medo da
guerra. No terceiro mundo as inquieta çõ es s ã o: como sobreviver, como se
livrar da injusti ç a, como sair da situa çã o da fome e mis é ria em que a
maioria vive, como libertar-nos . 278

Entre os autores apontados como os pioneiros da reflex ã o libertadora


na Am é rica Latina, destacam-se: Gustavo Guti é rrez, J. L. Segundo,
Hugo Assmann, Jos é Comblin, Enrique Dussel, Jos é Migu é z Bonino,
Rubem Alves e Leonardo Boff. A obra Teologia da liberta çã o , de
Gustavo Guti é rrez, publicada em 1971 foi pioneira e fundamental para
lan ç ar as bases da TdL. Nela, “ [se busca] conciliar a salva çã o com o
processo hist ó rico da liberta çã o ” . 279

No labor teol ó gico da luta pela liberta çã o, foram identificados tr ê s


momentos que, de certa forma, deixam claros os fundamentos da TdL. O
m é todo do ver , julgar e agir articula a teologia com a liberta çã
o do oprimido. O primeiro momento — ver — diz respeito a uma
compreens ã o da situa çã o do pobre, num est á gio pr é -teol ó gico ,
que vai al é m de uma an á lise individual, tocando as estruturas sociais
de opress ã o. Com a finalidade de ver a real situa çã o do pobre, a
TdL opta por um instrumental sociol ó gico de leitura da realidade —
uma media çã o socioanal í tica (MSA), visto que ela captaria as distor
çõ es introduzidas por diferentes ideologias.

Sobre a escolha desse m é todo, Carvalho observa que, “ [...] na sele çã o


de qual MSA é mais adequada à causa dos pobres, o te ó logo utilizar á
crit é rios teol ó gicos para identificar qual delas favorece melhor os
pobres; tamb é m rejeitar á aqueles aspectos da MSA que s ã o
destrutivos para a f é” . 280 O vi é s sociol ó gico selecionado é o
marxismo , cuja utiliza çã o é o maior ponto de cr í tica à TdL.
Entretanto, de acordo com Alessandro Rocha, “ [...] é tomado o Marx
humanista e n ã o o dogm á tico, e economista ou materialista ing ê nuo.
Marx é tomado como cr í tico social, mas os valores s ã o os da f é” . 281

Os autores da TdL reconhecem essas cr í ticas e respondem a elas


argumentando que nenhuma teologia é neutra — ponto comu m 282 com
o neocalvinismo dooyeweerdiano — e que toda pr á tica teol ó gica
implica uma interpreta çã o da realidade. Codina defende o uso das ci ê
ncias sociais como instrumental anal í tico, por é m refor ç a que o
fundamento ú ltimo da TdL est á na palavra de Deus e n ã o na
sociologia. Ele afirma, todavia, que “ [a TdL] n ã o pode deixar de
analisar a realidade, coisa que as demais teologias tamb é m fazem,
ainda que muitas vezes n ã o estejam conscientes disso ” . 283
O segundo momento, o julgar , se configura como o fazer teol ó gico
propriamente dito. Esse é o momento de “ [...] perguntar sobre o que diz
a palavra de Deus acerca de tal realidade analisada ” . 284 No julgar
se encontra a atitude prof é tica de den ú ncia, an ú ncio e transforma
çã o , iluminada pelas Escrituras . 285 Nesse contexto, pr á ticas como a
leitura popular da B í blia s ã o encorajadas, na medida em que a revela
çã o divina encarnada na hist ó ria fala diretamente a um sujeito exclu í
do em determinado contexto. Nesse sentido, alguns te ó logos da TdL
contempor â nea t ê m identificado a figura do exclu í do em diferentes
perspectivas: negro, mulher, ind í gena, homossexual, etc.

Por fim, o agir d á o car á ter militante e de engajamento social e pol í


tico da TdL. Ela quer ver a liberta çã o na realidade, e n ã o somente na
dimens ã o te ó rica da reflex ã o. “ N ã o basta ter ideias corretas, é
preciso lev á -las à pr á tica. " 286 E essa pr á tica é entendida como uma
op çã o clara pelos pobres. Nessa dire çã o, o labor teol ó gico envolve o
reconhecimento de que esse fazer est á situado numa determinada pr á
xis , e que para a teologia n ã o h á a op çã o de neutralidade.

A cr í tica reformacional à TdL

Os neocalvinistas reconhecem a import â ncia e a coer ê ncia b í blica da


ê nfase dada aos pobres pela TdL. É justamente nessa quest ã o,
reconhece Carvalho, que a tradi çã o holandesa, em sua contextualiza çã
o ao Brasil, est á sujeita a cr í ticas, visto que “ [...] o problema da
pobreza, da explora çã o econ ô mica e o tema da liberta çã o est ã o
ausentes em Dooyeweerd ” . 287 De fato, seguindo a l ó gica da produ çã
o intelectual conectada a um contexto, é not á vel que as quest õ es com
as quais Dooyeweerd lidou digam mais respeito a uma crise espiritual —
dado o per í odo entre e p ó s-guerras na Europa — do que a uma crise
material . 288 Em defesa da tradi çã o reformada, o te ó logo brasileiro
afirma, todavia, que “ [...] n ã o se pode deduzir dessa aus ê ncia uma
incompatibilidade com os temas da pobreza e da liberta çã o, mormente
porque esses temas s ã o nativos no pensamento de cosmovis ã o crist ã”
. 289

Os pontos de incompatibilidade, entretanto, entre a TdL e a proposta


kuyperiana-dooyeweerdiana s ã o bem mais expl í citos do que a anterior
rela çã o com a teologia da miss ã o integral. As principais cr í ticas
apresentadas pelos neocalvinistas, as quais t ê m implica çõ es em
diferentes dimens õ es da experi ê ncia humana e do ser igreja na Am é
rica Latina e no Brasil, s ã o: o dualismo natureza/gra ç a presente na
TdL; uma concep çã o de pr á xis que conduz ao historicismo ; e o
problema da media çã o socioanal í tica.

Dualismo natureza/gra ç a presente na TdL

Como j á referido e exposto nessa reflex ã o, Dooyeweerd interpreta esse


dualismo natureza/gra ç a como um motivo-base religioso, resultante
da s í ntese do motivo-base cria çã o-queda-reden çã o com o grego da
mat é ria/forma. Partindo de uma compreens ã o equivocada de queda,
esse motivo propaga a ideia de que a racionalidade humana n ã o teria
sido afetada pelo pecado. Portanto, seria poss í vel constituir uma ci ê
ncia neutra, capaz de analisar a realidade como fonte de desvelamento
do real.

“ Ao construir [...] sua proposta de liberta çã o, a TdL utiliza o esquema


tomista da rela çã o entre f é e racionalidade ” , 290 afirma Carvalho. O
autor prossegue com sua cr í tica, dizendo que na pr á tica libertadora da
TdL “ [...] assume-se que a f é dever á apoiar-se [...] numa concep çã o
de racionalidade e de pensamento te ó rico anterior a ela mesma para
constituir-se como discurso cient í fico ” . 291 A grande novidade da
TdL é o uso da jovem ci ê ncia, a sociologia, e n ã o mais o instrumental
filos ó fico de outros tempos. O pr ó prio Codina reconhece essa tradi çã
o quando afirma que:
Sobre a quest ã o do uso das ci ê ncias humanas e sociais para julgar a
realidade é preciso dizer que se devem usar as ci ê ncias sociais que sejam
mais s é rias, objetivas e aptas para melhor compreender a realidade. [...] Isso
é o que a Igreja vem fazendo atrav é s dos s é culos, ao utilizar para a sua
teologia elementos filos ó ficos ou cient í ficos alheios à f é . Este é o caso
da Igreja primitiva com [...] Plat ã o, o que fez Santo Tom á s com a filosofia
de Arist ó teles, o que fez a teologia moral moderna ao distinguir na
psicologia de Freud os elementos cient í ficos da filosofia ateia do autor da
psican á lise [...] . 292

Dessa forma, partindo de Dooyeweerd, é poss í vel dizer que o dogma da


autonomia religiosa da raz ã o est á em opera çã o, na medida em que a
TdL busca interpretar a realidade a partir de uma ci ê ncia livre e aut ô
noma, que, erigida sob um fundamento de objetividade, é o instrumento
para ver o que est á acontecendo. Para Carvalho,
[...] a f é e a teologia crist ã (a “ gra ç a ” ) s ã o acomodadas a uma
interpreta çã o socialista da “ natureza ” , de modo que o pr ó prio conceito
de “ salva çã o ” é adaptado a uma concep çã o antropol ó gica de base
marxista. Efetivamente, portanto, a vis ã o de totalidade social utilizada
pela TdL é o socialismo, uma forma espec í fica de humanismo secular . 293

Haveria, de semelhante modo, uma inclina çã o à responsabiliza çã o de


um sistema opressor, cujo ô nus pela condi çã o do pobre sobrepujaria
qualquer tentativa aut ô noma de supera çã o dessa condi çã o. Por isso, a
linguagem de cosmovis ã o est á ausente, uma vez que o papel do
indiv í duo — no sentido da mudan ç a de cosmovis ã o — é secund á rio
no processo de liberta çã o. Nesse sentido, o ú nico caminho vi á vel
seria a revolu çã o — a transforma çã o radical das estruturas — em
contraposi çã o ao ideal neocalvinista de reforma. Para os neocalvinistas
brasileiros, a TdL tende a conceber a realidade social como socialmente
constru í da, sem refer ê ncias a um ordenamento criacional, assim como
no caso da teologia de miss ã o integral. Para refor ç ar esse ponto,
Carvalho afirma que “ [...] as leituras libert á rias da B í blia (teologia da
liberta çã o, teologia feminista e algumas formas de teologia contextual,
por exemplo) padecem quase universalmente de insensibilidade à s
estruturas normativas para a vida social ” . 294

Esse dualismo natureza/gra ç a afeta toda a constru çã o teol ó gica da


TdL, sendo respons á vel, da mesma forma, por um entendimento de pr
á xis que acaba por absolutizar um aspecto finito da realidade.

O problema da pr á xis e o historicismo

De um modo geral, a pr á xis pode ser definida como um


engendramento complexo entre a reflex ã o (teoria) e a a çã o (pr á tica),
abarcando o todo da vida humana. H á , na TdL, uma diferencia çã o e
um questionamento em rela çã o a dois tipos distintos de pr á xis : a te
ó rica e a hist ó rica . De acordo com Carvalho, h á em autores como
Bonino e Segundo — e nessa tradi çã o como um todo — uma valoriza
çã o da pr á xis hist ó rica , como aquela que condiciona qualquer
produ çã o te ó rica, incluindo a teologia. É por isso que um dos
problemas da teologia diz respeito à sua rela çã o com a pr á xis . 295

Nessa dire çã o,
A pr á xis d á forma à teologia ao colocar as quest õ es para a teologia, e a
teologia avalia e cr í tica a f é que move a a çã o, mas a teoria em si n ã o
engendra a pr á xis, nem pode control á -la, sendo apenas um momento de
contempla çã o que nasce da vida e a ela retorna . 296

Tal concep çã o se distingue da interpreta çã o neocalvinista, visto n ã o


haver primazia ontol ó gica de um tipo de pr á xis sobre a outra. Para os
neocalvinistas, essa perspectiva da TdL absolutiza um aspecto da experi
ê ncia humana, no caso o hist ó rico , tendendo a reduzir todos os
outros aspectos a ele, gerando uma forma particular de historicismo .
297
O problema reside no fato de o aspecto hist ó rico ser sempre relativo,
uma vez que n ã o tem nenhum fundamento universalizante; é sempre
particular e contextual. Entretanto, a liberta çã o seria o par â metro
avaliativo do desdobramento hist ó rico no entendimento da TdL. Sendo
assim, os neocalvinistas veem um risco de relativiza çã o — via
condicionamento hist ó rico — dos conte ú dos da f é e da autoridade das
Escrituras, em uma esp é cie de supervaloriza çã o da ortopraxia , em
detrimento da ortodoxia . 298

Carvalho menciona a reflex ã o do fil ó sofo reformado James Olthuis


sobre a obra de Jos é Luis Segundo, que demonstra como Segundo teria
formulado seu sistema teol ó gico baseado em um conceito
evolucionista da realidade, advindo do te ó logo e antrop ó logo
Teilhard de Chardin. De acordo com Olthuis, Segundo concebe a hist ó
ria como uma din â mica dial é tica ascendente rumo à liberta çã o. A
partir disso,
Em cada etapa desse processo evolutivo, as “ verdades ” humanas v ã o se
transformando, como diz explicitamente Segundo: “ n ã o h á verdades
universais no processo de liberta çã o; a ú nica verdade é a pr ó pria liberta
çã o ” . Ou seja, para ele, a pr á xis libertadora é a ú nica verdade . 299

Portanto, pela via da absolutiza çã o de um aspecto relativo, essa tradi çã


o latino-americana estaria sujeita a sintetizar a f é crist ã com certos
elementos que a distorceriam, correndo o risco de perder o verdadeiro
potencial transformador do evangelho, na medida em que flerta com
concep çõ es humanistas e libert á rias do ser humano e da realidade
criada.

A media çã o socioanal í tica (MAS)

WPara os reformacionais, a condi çã o do pobre n ã o é s ó sociol ó gica,


mas tem v á rios aspectos que essa MSA n ã o consegue dar conta:
aspecto bi ó tico-ecol ó gico, é tico, p í stico, etc. A discord â ncia das
duas tradi çõ es evidencia-se no fato de que, para os neocalvinistas, a f é
é um elemento antropol ó gico, arraigado na natureza humana, e n ã o
um dom puramente superposto à natureza.

Portanto, “ [...] n ã o h á e n ã o pode haver uma ‘ media çã o ’


socioanal í tica para a teologia , mas antes uma coopera çã o cient í
fica entre as ci ê ncias sociais e as ci ê ncias da f é na busca da
compreens ã o da situa çã o real e complexa do oprimido ” . 300 O risco
inerente a um estreitamento sociol ó gico seria uma identifica çã o da
reden çã o do Cristo como mera transforma çã o social. O escopo da
reden çã o, em sua integralidade, transforma todos os aspectos da
realidade criada, renovando o ser humano em uma nova antropologia, a
partir da nova cria çã o.

De igual modo, critica-se a concep çã o dessa MSA como uma ci ê ncia


neutra capaz de interpretar — sem pressupostos — a realidade criada.
Como j á exposto no decorrer deste trabalho, a partir da perspectiva
dooyeweerdiana, dar tal status à sociologia seria insistir e fazer
perdurar o dogma da autonomia religiosa da raz ã o , t ã o combatido
pelo pensamento reformacional holand ê s.

Nesse ponto, h á de se observar que o olhar dos autores neocalvinistas


sobre as teologias latino-americanas precisa ainda interagir com
trabalhos mais recentes, de atualiza çã o das discuss õ es outrora
vigentes e dos novos rumos que essas teologias est ã o tomando, para
que n ã o ignore as transforma çõ es nessas tradi çõ es . 301

Desse modo, no que concerne aos debates teol ó gicos com implica çõ es
pol í ticas e sociais, o contexto brasileiro possui duas tradi çõ es robustas
de pensamento: a teologia de miss ã o integral e a teologia da liberta çã
o. A tradi çã o kuyperiana-dooyeweerdiana tem pontos em comum com
essas tradi çõ es, mas tamb é m pontos de tens ã o e cr í tica em rela çã o
aos fundamentos teol ó gicos e filos ó ficos desses movimentos.
Entretanto, diante de um cen á rio ainda incipiente de debate e di á logo,
seria temer á rio fazer progn ó sticos. O que se pode afirmar é que uma
conversa franca entre essas tradi çõ es pode contribuir para o
protagonismo e relev â ncia dos crist ã os na sociedade brasileira. Afinal,
n ã o é a reden çã o de todas as coisas o objetivo comum de todas essas
tradi çõ es?
Considera çõ es finais

Diante da exposi çã o dos principiais elementos da filosofia cosmon ô


mica de Herman Dooyeweerd, observei que o pensador holand ê s
produziu a sua reflex ã o calcado em um movimento teol ó gico cujo
escopo era muito abrangente, a saber, o neocalvinismo. A premissa
sobre a qual os propagadores do movimento, com destaque para
Abraham Kuyper, desenvolveram suas a çõ es era a compreens ã o do
cristianismo como uma cosmovis ã o integral. Isso equivale a dizer que n
ã o h á á rea da vida humana, diziam eles, que n ã o esteja sob a
soberania de Cristo.

O grande insight de Dooyeweerd foi aplicar esse princ í pio ao


pensamento te ó rico. Evidenciou-se que, para os autores dessa tradi çã
o, falar em f é e religi ã o privadas, que n ã o dialoguem com diferentes
campos da vida humana, é algo inconceb í vel, que contraria a natureza
da pr ó pria cren ç a e da f é crist ã . O fil ó sofo de Amsterd ã desconfia,
portanto, de qualquer constru çã o te ó rica que aliene o aspecto p í stico
de outras dimens õ es da exist ê ncia. Como aqui apresentado, h á uma
afirma çã o do ser humano como um ser naturalmente religioso.

Ora, a religi ã o é compreendida, na perspectiva dooyeweerdiana, como


a orienta çã o do cora çã o, o qual seria o centro religioso da vida, para
um absoluto: uma fonte de sentido ú ltimo, que contenha uma explica çã
o da origem de todas as coisas, algo de que tudo o mais dependa —
arch é . Essa concep çã o difere significativamente da imagem de religi ã
o constru í da na modernidade. Observei ao longo da obra que a religi ã
o, no per í odo moderno, tendeu a ser reduzida a uma cren ç a privada.
Tal fato, de acordo com Dooyeweerd, encontra ra í zes em um modelo
distorcido de racionalidade, que tende a desconsiderar o aspecto
religioso em sua constru çã o te ó rica.

Para o autor holand ê s, essa constru çã o distorcida do pensamento te ó


rico tem express ã o na obra do fil ó sofo alem ã o Immanuel Kant. A
partir dele, um dogma poderoso teria ganhado for ç a: a autonomia
religiosa da raz ã o . Tal dogma assevera que a racionalidade est á isenta
de influ ê ncia religiosa em seu campo de investiga çã o. Dooyeweerd
ataca tal perspectiva, afirmando que, ao contr á rio do que imaginava
Kant, o pensamento te ó rico sempre tem um pressuposto pr é -te ó rico,
o qual se fundamenta numa escolha religiosa. Dessa forma, ignorar esse
aspecto seria incorrer em erro grave.

Essa abertura dooyeweerdiana para uma nova concep çã o de religi ã o e,


consequentemente, de um novo modelo de rela çã o entre f é e
racionalidade pode servir como refer ê ncia para a reforma e transforma
çã o de certas inst â ncias do debate p ú blico e do desenvolvimento cient
í fico e filos ó fico que ainda est ã o fechadas a essas dimens õ es. Esse
ponto é ainda mais salutar no contexto acad ê mico brasileiro, cuja heran
ç a adv é m do positivismo franc ê s. Em muitos c í rculos, o dogma da
autonomia religiosa da raz ã o parece reinar absoluto. Por isso, h á uma
forte resist ê ncia à introdu çã o de t ó picos que contemplem o aspecto
religioso no meio acad ê mico.

Ademais, conclui-se que a contribui çã o filos ó fica de Herman


Dooyeweerd lan ç a luz sobre a rela çã o entre filosofia e cristianismo.
Tal rela çã o sempre foi um ponto controverso na hist ó ria do
cristianismo. O fil ó sofo holand ê s entende que o cristianismo cont é m
um motivo-base religioso radicalmente distinto dos demais. Segundo
ele, no cerne da f é crist ã est á a ideia fundamental da cria çã o-queda-
reden çã o como narrativa absoluta da vida humana. Para o pensador
cosmon ô mico, esse motivo-base é uma ant í tese indissol ú vel, que
opera no cora çã o humano em n í vel pr é -te ó rico. Qualquer tentativa
de sintetiz á -lo com outros princ í pios faz com que se originem
motivos-base ap ó statas.

Dessa forma, um di á logo honesto entre tradi çõ es distintas de


pensamento envolveria uma exposi çã o desses motivos-base em opera
çã o no cora çã o humano. Sem essa compreens ã o, h á o risco da
constru çã o de um pensamento supostamente livre dessa influ ê ncia. O
fato de algu é m negar essa influ ê ncia n ã o o eximiria de estar sob a
batuta de um motivo-base religioso.

Identificou-se no sistema cosmon ô mico uma tem á tica que j á era


central nos reformadores do s é culo XVI: o fato de o conhecimento de
Deus e de si caminharem no mesmo passo. O ego, em Dooyeweerd, é
pensado como o locus da imago Dei , caracter í stica definidora do
ser humano, que o distingue do restante da realidade criada. O eu
dooyeweerdiano n ã o tem um conte ú do em si mesmo, uma vez que é
constitu í do por suas rela çõ es, sendo a principal delas a rela çã o com a
origem. Esse eu é transcendental, na medida em que n ã o pode ser
reduzido a nenhum aspecto da realidade temporal.

Nessa dire çã o, a pergunta inevit á vel que se procurou enfrentar foi a


que diz respeito à subordina çã o da filosofia à teologia. Tendo em vista
que Dooyeweerd v ê Cristo como a verdadeira arch é — a revela çã o
suprema de quem Deus é e de quem o ser humano é — n ã o seria a
teologia crist ã a ci ê ncia mais habilitada para empreender qualquer
projeto de conhecimento? A resposta dooyeweerdiana foi n ã o. O objeto
pr ó prio da teologia n ã o é o motivo-base, mas o aspecto f é . Sendo
assim, a teologia tamb é m est á subordinada à opera çã o religiosa do
motivo-base no cora çã o. Ela n ã o tem um lugar privilegiado da
compreens ã o da realidade e do ser humano.

Esse aspecto pode ser um ponto de abertura para a reflex ã o epistemol ó


gica atual no contexto brasileiro. Diante do aumento dos cursos de ci ê
ncias da religi ã o, o lugar e objeto da teologia est ã o sendo pensados em
di á logo com a ci ê ncia. As categorias explicativas de Herman
Dooyeweerd podem auxiliar, em trabalhos futuros, na compreens ã o e
nas defini çõ es conceituais no que diz respeito à s problem á ticas
estudadas.

De semelhante modo, fez-se uma breve reflex ã o acerca das teses p ó s-


modernas de interpreta çã o filos ó fica. De acordo com a pesquisa
realizada, viu-se que Dooyeweerd n ã o v ê o per í odo contempor â neo
como uma ruptura radical com a modernidade. Nesse sentido, ele se
afasta da interpreta çã o dominante. De acordo com o autor de Amsterd ã
, o que se v ê é uma ê nfase no polo da liberdade, uma vez que o motivo-
base em opera çã o é o humanista natureza/liberdade. Enquanto a
modernidade enfatizou a ci ê ncia, a objetividade e a determina çã o
estrutural sobre a vontade individual, os contempor â neos tendem a
valorizar o que ele denominou de o ideal de personalidade. Sendo esse
um motivo-base dualista, n ã o é poss í vel transcender essa polaridade
dial é tica. Assim, a cr í tica de Dooyeweerd difere, consideravelmente,
dos autores da p ó s-modernidade.

Al é m das contribui çõ es te ó ricas para a filosofia, o fil ó sofo holand ê


s e os autores que comungam dos princ í pios do neocalvinismo d ã o
aten çã o especial à s din â micas culturais em determinado contexto.
Com vistas a uma contribui çã o, via neocalvinismo, e an á lise da recep
çã o do pensamento de Dooyeweerd no Brasil e seus poss í veis
desdobramentos em diferentes campos, empreendi uma reflex ã o sob
dois vieses: no campo cultural e no campo da teologia pol í tica.

Foram discutidos tr ê s modelos de rela çã o entre cristianismo e cultura,


expondo algumas das perspectivas que os fundamentam. De modo geral,
observou-se que h á uma tend ê ncia majorit á ria no contexto evang é
lico brasileiro a uma oposi çã o entre cristianismo e cultura, o que se
manifesta na forma de um dualismo entre sagrado/profano,
santo/pecaminoso. Criam-se, a partir desse modelo, artefatos culturais
segmentados, exclusivos para um p ú blico evang é lico, na medida em
que n ã o se reconhece a estrutura cultural como algo leg í timo em si.

A tradi çã o kuyperiana-dooyeweerdiana combate esse dualismo e separa


çã o atrav é s da ideia de gra ç a comum, num reconhecimento de que a
imagem de Deus impressa no ser humano faz com que qualquer pessoa
produza artefatos que glorifiquem ao Criador, ainda que essas pessoas n
ã o sejam crist ã s. O modelo defendido pela tradi çã o holandesa é o do
cristianismo como transformador — reformador — da cultura. Os
neocalvinistas afirmam a legitimidade da esfera cultural como locus
da a çã o crist ã no mundo e como fonte de louvor e gl ó rias ao Deus
criador.

No mesmo passo, realizei uma breve reflex ã o a respeito de duas


perspectivas teol ó gicas presentes no contexto brasileiro: teologia da
miss ã o integral e teologia da liberta çã o. À luz do neocalvinismo
holand ê s, fez-se uma leitura cr í tica dessas teologias. Dentre os pontos
observados, o de maior tens ã o foi o combate ao dogma da autonomia
da raz ã o que ainda estaria em opera çã o tanto na perspectiva da miss ã
o integral como na teologia da liberta çã o, o que faz com que ambas se
valham de compreens õ es humanistas do ser humano, as quais podem
comprometer sua a çã o crist ã no mundo. Tal fato pode torn á -las mais
suscet í veis a reducionismos, como a perda da no çã o de integralidade
da vida humana.

Conclu í mos afirmando que a presente obra constituiu uma introdu çã o


ao pensamento de Herman Dooyeweerd. O seu legado filos ó fico j á
tem sido explorado em diferentes campos do saber. Discutir cada um
deles demandaria outros trabalhos. Certamente, cabe a cada autor, em
seu pr ó prio campo de atua çã o, utilizar as ferramentas te ó ricas dispon
í veis em Dooyeweerd como instrumentos de desenvolvimento de novas
teorias e, quem sabe, de uma reforma crist ã de sua á rea.
As ideias aqui discutidas podem ser desdobradas futuramente em di á
logo com tradi çõ es distintas de pensamento. Como exposto aqui, uma
conversa franca, tanto com a teologia de miss ã o integral quanto com a
teologia da liberta çã o, pode ser uma fonte rica de transforma çã o e
reforma do pensamento, da sociedade e da cultura no Brasil. Nesse
sentido, a perspectiva dooyeweerdiana serve como um encorajamento a
todos os crist ã os para exercerem sua voca çã o em diferentes campos,
tendo a convic çã o da soberania de Cristo sobre toda a exist ê ncia.

Por fim, acredito que a filosofia cosmon ô mica tem muito a contribuir
com a constru çã o de uma teologia p ú blica . Em que medida essas vis
õ es se aproximam e t ê m pontos semelhantes é algo a ser pensado e
desenvolvido em trabalhos vindouros.
1 C. S. Lewis, “ De description temporum ” . In: They Asked for a Paper
(London: Geoffrey Bles, 1962), p. 11.
2 Cf. Rodolfo Amorim, “ Cosmovis ã o: evolu çã o do conceito e aplica çã o
crist ã” . In: Guilherme de Carvalho, Maur í cio Cunha e Cl á udio Ant ô nio
Cardoso Leite (Org.), Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o (Vi ç osa:
Ultimato, 2006), p. 41.
3 Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó s-moderna: Novas
teorias sobre o mundo contempor â neo (Rio de Janeiro: Zahar, 1997), p. 79.
4 Wilhelm Wachholz, Hist ó ria e teologia da reforma: introdu çã o (S ã o
Leopoldo: Sinodal, 2010), p. 14.
5 Cf. Carter Lindberg, As reformas na Europa (S ã o Leopoldo: Sinodal,
2001), p. 114.
6 Cf. Max Weber, A é tica protestante e o esp í rito do capitalismo (S ã o
Paulo: Companhia das Letras, 2004).
7 Wilhelm Wachholz, Hist ó ria e teologia da reforma , p. 14.
8 Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought (Ontario:
Paideia Press, 1984), p. 57.
9 Anthony Giddens, As consequ ê ncias da modernidade (S ã o Paulo:
Editora Unesp, 1991), p. 11.
10 Marshall Berman, Tudo que é s ó lido se desmancha no ar: a aventura da
modernidade (S ã o Paulo: Companhia das Letras, 2007), p. 24.
11 Cf. Max Weber, A é tica protestante e o esp í rito do capitalismo , p. 88.
12 Mars í lio de P á dua, O defensor da paz (Petr ó polis: Vozes, 1995), p.
73.
13 Cf. Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental: as op çõ es pag ã
, secular e crist ã (S ã o Paulo: Cultura Crist ã , 2015), p. 45-46.
14 Alain Touraine, Cr í tica da modernidade (Petr ó polis, RJ: Vozes,
1994), p. 17.
15 Lesslie Newbigin, Discovering Truth in a Changing World (London:
Alpha International, 2003), p. 4. Grifo nosso. Em geral, as cita çõ es foram
traduzidas por mim. Quando n ã o for o caso, darei a refer ê ncia da edi çã o da
obra utilizada.
16 Fritjof Capra, O ponto de muta çã o: a ci ê ncia, a sociedade e a cultura
emergente (S ã o Paulo: C í rculo do Livro, 1982), p. 54.
17 C. Ibid. , p. 58.
18 Kant apud Will Durant, A hist ó ria da filosofia (S ã o Paulo: Nova
Cultural, 2000), p. 256. Grifo nosso.
19 Ibid. , p. 267.
20 Alain Touraine, Cr í tica da modernidade , p. 37.
21 Thomas Hylland Eriksen e Finn Sivert Nielsen , Hist ó ria da antropologia
(Petr ó polis, RJ: Vozes, 2007), p. 19.
22 Marshall Berman, Tudo que é s ó lido se desmancha no ar , p. 25.
23 Anthony Giddens, Modernidade e identidade (Rio de Janeiro: Zahar,
2002), p. 9.
24 Cf. Gertrude Himmelfarb, Os caminhos para modernidade (S ã o Paulo:
É Realiza çã o, 2011). Nessa obra, a historiadora norte-americana Gertrude
Himmelfarb defende a exist ê ncia de “ iluminismos ” e argumenta que tanto nos
Estados Unidos quanto na Gr ã -Bretanha houve “ iluminismos ” anteriores ao
franc ê s e que estes tinham caracter í sticas distintas dos ideais revolucion á rios
manifestos na Fran ç a, revelando, inclusive, um vi é s conservador.
25 Touraine e Dubet s ã o soci ó logos franceses contempor â neos vinculados
a uma Sociologia da a çã o . Apesar de diferen ç as em suas interpreta çõ es,
ambos enfatizam a dimens ã o da experi ê ncia individual — subjetividade — na
forma çã o e constru çã o da sociedade.
26 Alain Touraine, Cr í tica da modernidade , p. 12. Grifo do autor.
27 Cf. Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó s-moderna , p.
83.
28 Express ã o popular com origem na passagem b í blica do livro de
Eclesiastes 1.9b.
29 Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó s-moderna , p. 80.
30 Alain Touraine, Cr í tica da modernidade , p. 70.
31 Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó s-moderna , p. 92.
32 Marshall Berman, Tudo que é s ó lido se desmancha no ar , p. 26.
33 Cf. Anthony Giddens, As consequ ê ncias da modernidade , p. 22.
34 Cf. Dubet, Fran ç ois, A sociologia da experi ê ncia (Lisboa: Instituto
Piaget, 1994), p. 53.
35 Cf. Anthony Giddens, As consequ ê ncias da modernidade .
36 Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó s-moderna , p. 94.
Grifo do autor.
37 Cf. Eric J. Hobsbawm, A era das revolu çõ es: Europa 1789-1848 . Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1977; Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó
s-moderna ; Marshall Berman, Tudo que é s ó lido se desmancha no ar .
38 Eric J. Hobsbawm, A era das revolu çõ es , p. 50.
39 Anthony Giddens, As consequ ê ncias da modernidade , p. 61.
40 Karl Polanyi, A grande transforma çã o: as origens de nossa é poca
(Rio de Janeiro: Campus, 2000), p. 51.
41 Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó s-moderna , p. 94,
95.
42 Movimento que perpassou campos diferentes como a filosofia e as artes.
Caracterizou-se por uma forte cr í tica à racionalidade iluminista e uma volta à
subjetividade e aos temas do indiv í duo.
43 Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó s-moderna , p. 96.
44 Nasceu em Paris em 1821 e morreu na mesma cidade em 1867.
45 Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó s-moderna , p. 97.
46 Fi ó dor Dostoi é vski, Notas do subsolo (Porto Alegre: L&PM, 2010),
p. 41.
47 Ibid. , p. 42. Grifo nosso.
48 Ibid. , p. 42.
49 Jean-Fran ç ois Lyotard, O p ó s-moderno (Rio de Janeiro: Jos é
Olympio, 1993), p. 3.
50 Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó s-moderna , p. 143.
51 Ibid .
52 Leonildo Pereira de Souza, O adjetivo e seus substantivos: Uma leitura
acerca de elementos do discurso te ó rico p ó s-moderno (Monografia em Ci ê
ncias Sociais. Pelotas: UFPel, 2003), p. 53.
53 David Lyon, P ó s-modernidade (S ã o Paulo: Paulus, 1998), p. 69.
54 Krishan Kumar, Da sociedade p ó s-industrial à p ó s-moderna , p. 152.
55 Anthony Giddens, Modernidade e identidade , p. 26.
56 Anthony Giddens, As consequ ê ncias da modernidade , p. 46.
57 Peter Leithart, Solomon Among the Postmoderns (Grand Rapids,
Michigan: Brazos Press, 200W8), p. 54.
58 A disserta çã o de mestrado de Rodomar Ramlow apresenta um panorama
amplo do neocalvinismo, servindo como uma ó tima introdu çã o a essa tem á
tica. Cf. Rodomar Ricardo Ramlow, O neocalvinismo holand ê s e o movimento
de cosmovis ã o crist ã (Disserta çã o de Mestrado. S ã o Leopoldo: Escola
Superior de Teologia, 2012).
59 Comte (1798-18570) foi um dos principais representantes do positivismo
na Europa. É considerado um dos fundadores da sociologia.
60 L. Kalsbeek, Contornos da filosofia crist ã : a melhor e mais sucinta
introdu çã o à filosofia reformada de Herman Dooyeweerd (S ã o Paulo:
Cultura Crist ã , 2015), p. 15.
61 Ibid .
62 Cf. Rodomar Ramlow, O neocalvinismo holand ê s: Temas e autores
(Anais do Congresso Internacional de Teologia. S ã o Leopoldo: EST, 2012, v. 1,
p. 1701-1716), p. 1702.
63 Ricardo Quadros Gouv ê a, O lado bom do calvinismo: ensaios acerca de
um calvinismo saud á vel (S ã o Paulo: Fonte Editorial, 2013), p. 222.
64 Para Kuyper, a ideia de uma Universidade Livre remetia à liberdade em rela
çã o ao Estado e à interfer ê ncia eclesi á stica.
65 Abraham Kuyper, Calvinismo (S ã o Paulo: Cultura Crist ã , 2003), p.
19.
66 Jonathan Chaplin, Herman Dooyeweerd: Christian philosopher of State
and Civil Society (Indiana: Notre Dame, 2011), p. 21.
67 Ibid. , p. 22.
68 Jonathan Chaplin, The Full Weight of our Convictions: The Point of
Kuyperian Pluralism . [S.l] 01 nov. 2013. Dispon í vel em:
<https://www.cardus.ca/comment/article/4069/the-point-of-kuyperian-
pluralism/>.
69 Cf. http://www.allofliferedeemed.co.uk/
70 Cf.<http://www.abrahamkuypercenter.vu.nl/en/>
71 Cf. <http://www.ptsem.edu/library/kuyper/>.
72 Cf. <http://www.reformationalphilosophy.org/>
73 Cf. Ricardo Quadros Gouv ê a, O lado bom do calvinismo , p. 271.
74 Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought , p. 9.
75 Jonathan Chaplin, Herman Dooyeweerd , p. 30.
76 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental: estudos
sobre a pretensa autonomia da raz ã o (Bras í lia, DF: Monergismo, 2018), p.
49.
77 Ricardo Quadros Gouv ê a, O lado bom do calvinismo , p. 274-75.
78 Guilherme Carvalho, “ Sociedade, justi ç a e pol í tica na filosofia de
cosmovis ã o crist ã : uma introdu çã o ao pensamento social de Herman
Dooyeweerd ” . In: Maur í cio Cunha et al. (Org.), Cosmovis ã o crist ã e
transforma çã o: espiritualidade, raz ã o e ordem social (Vi ç osa, MG:
Ultimato, 2006, p. 189-218), p. 192.
79 Nesse ponto, v ê -se a forte influ ê ncia da obra Ser e tempo , de Martin
Heidegger, sobre o pensamento de Dooyeweerd, admitida por ele mesmo no pref
á cio da New Critique of Theoretical Thought.
80 L. Kalsbeek, Contornos de uma filosofia crist ã , p. 28.
81 No original De Wijsbegeerte der Wetside.
82 Ainda sem tradu çã o para o portugu ê s.
83 Herman Dooyeweerd, Introduction to a Transcendental Criticism of
Philosophic Thought . Dispon í vel em:
<http://www.reformationalpublishingproject.com/pdf_books/Scanned_Books_P
DF/IntroductiontoaTranscendentalCriticismofPhilosophicThought.pdf>. Acesso
em: 07 mai. 2012.
84 Cf. Ibid .
85 Cf. Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought , p. 22.
86 Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental , p. 21.
87 Cf. Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p.
62.
88 Jonathan Chaplin, Herman Dooyeweerd , p. 29.
89 Herman Dooyeweerd, Introduction to a Transcendental Criticism of
Philosophic Thought .
90 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p. 167.
91 Guilherme de Carvalho, “ Herman Dooyeweerd, reformador da raz ã o ” .
In: Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento (S ã o Paulo:
Editora Hagnos, 2010), p. 30.
92 Roy A. Clouser, O mito da neutralidade religiosa: um ensaio sobre a cren
ç a religiosa e seu papel oculto no pensamento te ó rico (Bras í lia, DF:
Academia Monergista, 2018), p. 3.
93 Ibid. , p. 3. Grifo nosso.
94 Guilherme de Carvalho, “ Herman Dooyeweerd, reformador da raz ã o ” .
In: Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento , p. 30.
95 Herman Dooyeweerd, Introduction to a Transcendental Criticism of
Philosophic Thought .
96 Tertuliano, De praescriptione haereticorum , c. 7.
97 Cf. Wolfhart Pannenberg, Filosofia e teologia (S ã o Paulo: Paulinas,
2008), p. 17.
98 Cf. Atos 9.1-19.
99 Cf. Atos 17.16-34.
100 K. J. Popma, Inleiding in de Wijsbeerte (Kampen, 1956), p. 94. Apud:
L. Kalsbeek, Contornos da filosofia crist ã , p. 31.
101 Cf. Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought , p.
8.
102 Cf. Ibid. , p. 8.
103 Guilherme Carvalho, “ Sociedade, justi ç a e pol í tica na filosofia de
cosmovis ã o crist ã” . In: Maur í cio Cunha et al. (Org.), Cosmovis ã o crist ã
e transforma çã o
, p. 195.
104 Cf. Rosino Gibellini, A teologia do s é culo XX (S ã o Paulo: Edi çõ es
Loyola, 2012), p. 134.
105 Cf. Abraham Kuyper, Calvinismo , p. 54.
106 Nome de uma das principais obras do fil ó sofo brit â nico Thomas
Hobbes. O Leviat ã é uma alus ã o ao “ monstro marinho ” , descrito no livro
de J ó , que representaria, na obra de Hobbes, o poder do Estado. Cf. J ó 41.
107 Guilherme de Carvalho, A obje çã o reformada ao dogma da autonomia
religiosa da raz ã o. Revista Di á logo e Ant í tese, vol. 1, n º 1, 2009, p. 4-53,
p. 43.
108 Abraham Kuyper, Calvinismo , p. 98.
109 Cf. Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p.
47.
110 Ibid. , p. 233.
111 Veja L. Kalsbeek, Contornos da filosofia crist ã , p. 38.
112 Guilherme de Carvalho, “ O senhorio de Cristo e a miss ã o da igreja na
cultura: a ideia de soberania e sua aplica çã o ” . In: Leonardo Ramos et al.
(Org.), F é crist ã e cultura contempor â nea (Vi ç osa, MG: Ultimato, 2009),
p. 78.
113 Cf. Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought , p. 3.
114 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p. 48.
115 Cf. Ibid. , p. 57.
116 Guilherme Carvalho, “ Sociedade, justi ç a e pol í tica na filosofia de
cosmovis ã o crist ã” . In: Maur í cio Cunha et al. (Org.), Cosmovis ã o crist ã
e transforma çã o , p. 196. Grifo nosso.
117 Cf. Richard Dawkins, O gene ego í sta (S ã o Paulo: Companhia das
Letras, 2007).
118 Cf. Clifford Geertz, A interpreta çã o das culturas (Rio de Janeiro:
LTC, 1989).
119 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p. 70.
120 Cf. Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought , p.
8.
121 Ricardo Quadros Gouv ê a, O lado bom do calvinismo , p. 276.
122 Guilherme de Carvalho, In: Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do
pensamento , p. 82. Nota de rodap é 75.
123 Ricardo Quadros Gouv ê a, O lado bom do calvinismo , p. 280.
124 Guilherme de Carvalho, A obje çã o reformada ao dogma da autonomia
religiosa da raz ã o , p. 9.
125 Roy A. Clouser, O mito da neutralidade religiosa , p. 23.
126 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p. 231.
127 Ibid. , p. 232.
128 Ricardo Quadros Gouv ê a, O lado bom do calvinismo , p. 279.
129 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento , p. 236. Grifo do
autor.
130 Cf. Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento , p. 175.
131 Ibid. , p. 171.
132 Ibid. , p. 173.
133 Ibid. , p. 175.
134 Ibid. , p. 181. Grifo nosso.
135 Ibid. , p. 182.
136 Ricardo Quadros Gouv ê a, O lado bom do calvinismo , p. 272.
137 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p. 185.
138 Ibid. , p. 187-8.
139 Ibid. , p. 190
140 Ibid. , p. 194.
141 Guilherme de Carvalho, nota de rodap é 21. In: Ibid. , p. 195-6.
142 As no çõ es de telos e aret é s ã o infer ê ncias minhas e n ã o
correspondem à linguagem usada por Dooyeweerd.
143 Richard Dawkins, O gene ego í sta (S ã o Paulo: Companhia das
Letras, 2007).
144 Ibid .
145 Cf. palestra Against Idolatry , de Graham Ward, professor de Teologia
no Christ Church College em Oxford. Dispon í vel on-line:
146 Karl Marx e Friedrich Engels, O manifesto do Partido Comunista (S ã
o Paulo: Paz e Terra, 1998), p. 9.
147 Yuval Harari, Homo Deus: A Brief History of Tomorrow (Penguin
Random House, 2017), p. 334.
148 Ibid. , p. 454.
149 Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental , p. 44.
150 Cf. Rosino Gibellini, A teologia do s é culo XX , p. 85.
151 Cf. Ibid. , p. 87.
152 Cf. Ibid. , p. 102.
153 Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental , p. 22.
154 Cf. Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento , p. 84.
155 Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental , p. 26.
156 Ibid. , p. 30.
157 Do grego, significa destino cego e incalcul á vel. Foi uma figura que
apareceu na mitologia desenvolvida por Homero.
158 Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental , p. 30.
159 Ibid., p. 31.
160 Ibid .
161 Ibid .
162 Ibid. , p. 33.
163 Ibid. , p. 35.
164 Ibid. , p. 43-44.
165 Guilherme Carvalho, “ Sociedade, justi ç a e pol í tica na filosofia de
cosmovis ã o crist ã” . In: Maur í cio Cunha et al. (Org.), Cosmovis ã o crist ã
e transforma çã o , p. 128.
166 Cf. Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p.
86; Guilherme Carvalho, “ Sociedade, justi ç a e pol í tica na filosofia de
cosmovis ã o crist ã” . In: Maur í cio Cunha et al. (Org.), Cosmovis ã o crist ã
e transforma çã o , p. 128.
167 Guilherme Carvalho, “ Sociedade, justi ç a e pol í tica na filosofia de
cosmovis ã o crist ã” . In: Maur í cio Cunha et al. (Org.), Cosmovis ã o crist ã
e transforma çã o , p. 128. Grifo do autor.
168 Colossenses 1.15-20.
169 Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental , p. 43.
170 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p. 84-
5.
171 Cf. Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental , p. 130 ss.
172 Fernando Albano, Dualismo corpo/alma na teologia pentecostal .
(Disserta çã o de Mestrado. S ã o Leopoldo: EST, 2010), p. 2. Veja tamb é m: Jo
1.1-18; 1 Jo 4.1-3.
173 Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental , p. 133.
174 Ibid.
175 Guilherme Carvalho, “ Sociedade, justi ç a e pol í tica na filosofia de
cosmovis ã o crist ã” . In: Maur í cio Cunha et al. (Org.), Cosmovis ã o crist ã
e transforma çã o , p. 133.
176 Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental , p. 136.
177 Ibid.
178 Guilherme Carvalho, “ Sociedade, justi ç a e pol í tica na filosofia de
cosmovis ã o crist ã” . In: Maur í cio Cunha et al. (Org.), Cosmovis ã o crist ã
e transforma çã o , p. 134.
179 Ibid.
180 Cf. Francis Schaeffer, A morte da raz ã o (Vi ç osa, MG: Ultimato,
2014), p. 17.
181 Cf. Herman Dooyeweerd, Ra í zes da cultura ocidental , p. 159.
182 Ibid. , p. 160.
183 Ibid. , p. 162.
184 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p. 88.
185 Ibid ., p. 89.
186 Ibid. , p. 92.
187 Ibid ., p. 93.
188 Cf. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, A raz ã o na hist ó ria universal:
Introdu çã o à filosofia da hist ó ria universal (Lisboa: Edi çõ es 70, 1995).
189 Ibid. , p. 40.
190 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p. 93.
191 Ibid .
192 Ibid ., p. 94.
193 Esse tem sido o esfor ç o do cientista pol í tico brit â nico Jonathan
Chaplin, que, a partir de Dooyeweerd, prop ô s um pluralismo secular crist ã o
em termos pol í ticos.
194 Cf. Abraham Kuyper, Calvinismo , p. 17.
195 C.f. 1 Jo ã o 2.15.
196 Jo ã o 3.16.
197 H. Richard Niebuhr, Cristo e cultura (Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1967).
198 Nessa quest ã o, a palestra em á udio de Jock McGregor, intitulada
Christ and Culture revisited , foi de grande ajuda, na medida em que reflete
sobre a obra de Richard Niebuhr. Dispon í vel em: <. Acesso em: 05. mar. 2014.
199 É importante esclarecer que este trabalho n ã o é uma interpreta çã o
aprofundada da obra de Richard Niebuhr. A men çã o à obra desse autor
pretende apenas aludir à s poss í veis formas de rela çã o entre cristianismo e
cultura. De igual modo, é importante ressaltar que a tipologia usada pelo te ó
logo norte-americano apresenta cinco modelos de rela çã o entre Cristo e a
cultura. Os n ã o citados aqui s ã o: Cristo acima da cultura e Cristo e
cultura em paradoxo .
200 Veja a perspectiva cr í tica de Rick Na ñ ez com rela çã o a esse anti-
intelectualismo, bem como seu estudo sobre a origem desse dualismo dentro do
cristianismo. Cf. Rick Na ñ ez, Pentecostal de cora çã o e mente: um chamado
ao dom divino do intelecto (S ã o Paulo: Vida, 2007), p. 160.
201 Cf. Fernando Albano, Dualismo corpo/alma na teologia pentecostal , p.
13.
202 Cf. M. J Inwood. In: Ted Honderich (Org.), Platonism . The Oxford
Companion to Philosophy (Oxford: Oxford University Press, 22005, p. 723-
725), p. 724.
203 O texto A rep ú blica , assim como boa parte dos textos plat ô nicos,
foram escritos em forma de di á logo. O principal personagem e interlocutor foi o
mestre S ó crates, que nunca escreveu nada e ganhou voz atrav é s das obras de
Plat ã o. Nesse excerto, lemos S ó crates explicando o significado da alegoria a
Glauco.
204 Plat ã o, A rep ú blica , 514a-517c. Tradu çã o de Lucy Magalh ã es. In:
Danilo Marcondes, Textos b á sicos de filosofia: dos pr é -socr á ticos a
Wittgenstein , 2 ª ed. (Rio de Janeiro: Zahar, 2000). Grifo nosso.
205 Cf. Rick Na ñ ez, Pentecostal de cora çã o e mente: um chamado ao dom
divino do intelecto , p. 187.
206 Certamente o car á ter das miss õ es evang é licas no Brasil n ã o pode ser
reduzido somente a esse separatismo. Reconhece-se aqui a complexidade dos
aspectos religiosos e sociol ó gicos implicados na an á lise desses eventos.
207 Cf. Jos é Miguez Bonino, Rostos do protestantismo latino-americano
(S ã o Leopoldo: Sinodal, 2002), p. 29.
208 Rick Na ñ ez, Pentecostal de cora çã o e mente: um chamado ao dom
divino do intelecto , p. 151.
209 Definir a posi çã o fundamentalista n ã o é tarefa simples. De acordo com
o Dicion á rio brasileiro de teologia : “ [o fundamentalismo] foi gestado, em
oposi çã o à Ilustra çã o e ao Liberalismo e s ã o filhos do Romantismo. [...] Os
fundamentalistas viam-se como contra-ofensiva a um modernismo que, assim
diziam, havia se apossado do mundo protestante. Particularmente, esse
fundamentalismo primeiro entendia-se como contra-ofensiva a uma teologia
orientada em m é todo, que estava interpretando os conte ú dos da f é ,
especialmente os textos b í blicos, a partir de uma perspectiva hist ó rico-cr í tica
[...] Fundamentals eram os conte ú dos de f é , verdades absolutas e intoc á
veis, que deveriam ficar imunes à ci ê ncia e à relativiza çã o por meio do m é
todo hist ó rico ” (Martin Dreher, Fundamentalismo . In: Fernando Bortolleto
Filho, Dicion á rio brasileiro de teologia [S ã o Paulo: ASTE, 2008, p. 452-
456], p. 452-53).
210 Cf.: < http://www.ushistory.org/us/47b.asp>. Acesso em: 01. mai. 2014.
211 Certamente, no que diz respeito ao campo dos estudos biol ó gicos.
212 Cf.: < http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=25540>. Acesso
em: 10. jul. 2014.
213 Cf. Gedeon Alencar, Protestantismo tupiniquim: hip ó teses sobre a (n ã
o) contribui çã o evang é lica à cultura brasileira (S ã o Paulo: Arte editorial,
2005).
214 Rudolf von Sinner, “ Teologia P ú blica no Brasil ” . In: Afonso Maria
Ligorio Soares e Jo ã o D é cio Passos (Org.), Teologia p ú blica: Reflex õ es
sobre uma á rea de conhecimento e sua cidadania acad ê mica (S ã o Paulo:
Paulinas, 2011, p. 265-276), p. 269.
215 Ibid.
216 Exemplo disso é a Rede Super , pertencente à Igreja Batista Lagoinha, de
Belo Horizonte, e a
Rede G ê nesis pertencente à Igreja Sara Nossa Terra, com sede em Bras í lia.
217 Cf.:<http://www.nossatv.tv.br/>.
218 Cf. <http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/musica-gospel-
trinados-fe-e-dinheiro>. Acesso em: 01. Mai. 14.
219 Cf. Magali do Nascimento Cunha, A explos ã o gospel: um olhar das ci ê
ncias humanas sobre o cen á rio evang é lico no Brasil (Rio de Janeiro: Mauad
X: Instituto Mysterium, 2007), p. 107. Grifo da autora.
220 Pode-se dizer que, apesar de um discurso por vezes separatista de parte da
popula çã o evang é lica, as estruturas e os aparatos culturais acabam por ser
usufru í dos e celebrados mediante a cria çã o de mercados segmentados, como é
o caso do Gospel . Nesse sentido, a ambiguidade n ã o se manifestaria nessa
nega çã o da cultura, mas em sua afirma çã o — ainda que de forma segmentada.
221 Dispon í vel em: < http://www.lagoinha.com/ibl-noticia/adoracao-e-
alegria-compoe-o-espiritoval-2014 > Acesso em: 02. jun. 14.
222 Magali do Nascimento Cunha, A explos ã o gospel , p. 108.
223 Ibid. , p. 131.
224 Rodomar Ramlow, O neocalvinismo holand ê s e o movimento de
cosmovis ã o crist ã , p. 25.
225 Cf. H. Richard Niebuhr, Cristo e cultura , p. 111.
226 Ibid. , p. 110.
227 Andrew Fellows, “ O narcisismo como cosmovis ã o dominante no
ocidente ” . In: Leonardo Ramos et al. (Org.), F é crist ã e cultura contempor â
nea , p. 180.
228 Robson Ramos, Evangeliza çã o no mercado p ó s-moderno (Vi ç osa,
MG: Ultimato, 2003), p. 91.
229 Alberto R. Timm, “ Teologia da prosperidade ” . In: Fernando Bortolleto
Filho et al. (Org.), Dicion á rio brasileiro de teologia , p. 966.
230 Cf. Eduardo Guilherme de Moura Paegle, A “ mcdonaldiza çã o ” da f é
. O culto como espet á culo entre os evang é licos brasileiros (Tese de
Doutorado em Ci ê ncias Humanas. Florian ó polis: UFSC, 2013).
231 Dispon í vel em: < http://www.boladeneve.com/eventos/balada-da-zona-
sul> Acesso em: 02. jun. 2014.
232 Cf. Anthony Giddens, Mundo em descontrole: o que a globaliza çã o est
á fazendo de n ó s (Rio de Janeiro: Record, 2007), p. 53.
233 Rodomar Ricardo Ramlow, O neocalvinismo holand ê s e o movimento
de cosmovis ã o crist ã , p. 28.
234 Em G ê nesis 2.15, l ê -se: “ Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o
colocou no jardim do É den para o cultivar e guardar ” .
235 Cf. Guilherme de Carvalho, “ O senhorio de Cristo e a miss ã o da igreja
na cultura ” . In: Leonardo Ramos et al. (Org.), F é crist ã e cultura contempor
â nea , p. 65.
236 Cf. Martinho Lutero, À nobreza crist ã de na çã o alem ã : Acerca do
melhoramento do estado crist ã o . In: Pelo Evangelho de Cristo (Porto
Alegre/S ã o Leopoldo: Conc ó rdia/Sinodal, 1984, p. 75-152), p. 81.
237 Guilherme Carvalho, “ Sociedade, justi ç a e pol í tica na filosofia de
cosmovis ã o crist ã” . In: Maur í cio Cunha et al. (Org.), Cosmovis ã o crist ã
e transforma çã o , p. 143.
238 Essa terminologia foi criada e desenvolvida no S í nodo de Dort (1618-
1619), a partir da Igreja Reformada Holandesa, que elaborou “ Os cinco pontos
do Calvinismo ” , como uma resposta à ascens ã o do arminianismo , no in í
cio do s é culo XVII. Cf. Andr é do Carmo Silv é rio, Cinco pontos do
calvinismo . Dispon í vel em:
<http://www.monergismo.com/textos/jcalvino/joao_calvino_5pontos_silverio.ht
m>.
239 Herman Dooyeweerd, No crep ú sculo do pensamento ocidental , p. 75.
240 Guilherme de Carvalho, “ O senhorio de Cristo e a miss ã o da igreja na
cultura ” . In: Leonardo Ramos et al. (Org.), F é crist ã e cultura contempor â
nea , p. 73.
241 Cf.: < http://www.labri.org/ >.
242 Hans Rookmaaker (1922-1977) foi durante muitos anos professor de hist ó
ria da arte na Universidade Livre de Amsterd ã , onde recebeu forte influ ê ncia
do neocalvinismo, especialmente das categorias dooyeweerdianas de interpreta
çã o da realidade, aplicando-as ao campo da arte. A obra de Rookmaaker tamb é
m est á recebendo uma aten çã o especial no contexto brasileiro. Em 2010, foi
traduzida e publicada a obra: A arte n ã o precisa de justificativa (Vi ç osa,
MG: Ultimato, 2010). Dois anos mais tarde, foi lan ç ada uma biografia em
portugu ê s, publicada pela mesma editora: Laurel Gasque, Rookmaaker: arte e
mente crist ã (Vi ç osa, MG: Ultimato, 2012). Mais recentemente apareceram
tamb é m A arte moderna e a morte de uma cultura (Vi ç osa, MG: Ultimato,
2015), Filosofia e est é tica (Bras í lia, DF: Monergismo, 2018) e O dom
criativo (Bras í lia, DF: Monergismo, 2018).
243 Francis Schaeffer (1912-1984) foi um influente te ó logo norte-americano
cujas obras t ê m grande influ ê ncia sobre as alas evangelicais que ainda mant ê
m um discurso de integra çã o do cristianismo com diferentes á reas da vida.
Entretanto, Schaeffer foi acusado de ser um dos mentores da direita norte-
americana, no que ficou conhecida como a Moral Majority , ainda que tenha se
afastado desse movimento antes da sua morte. Sua obra é vasta e abrangente,
mas recebeu v á rias cr í ticas por n ã o demonstrar um rigor acad ê mico r í
gido. Tem como maior legado a funda çã o do L ’ abri Fellowship.
244 Steve Turner, Imagine: A Vision for Christians in the Arts (Illinois,
InterVarsity Press, 2001), p. 11.
245 Duas dessas obras s ã o: Francis Schaeffer, A arte e a B í blia (Vi ç osa,
MG: Ultimato, 2010) e A morte da raz ã o (S ã o Paulo: ABU Editora; Vi ç
osa, MG: Ultimato, 2014).
246 Sobre este assunto a palestra The Intriguing Friendship Between Francis
Schaeffer and Hans Rookmaaker , de Edith Reitsema, ajuda a compreender a
influ ê ncia da tradi çã o neocalvinista sobre Schaeffer. Dispon í vel em:
<http://www.labri-ideas-library.org/download.asp?fileID=711> Acesso em: 07.
Out. 2014.
247 Esse primeiro encontro reuniu pastores, te ó logos, professores e
profissionais liberais que, de alguma forma, j á tinham tido contato com a tradi
çã o kuyperiana. Desse encontro, teve origem a obra Cosmovis ã o crist ã e
transforma çã o , lan ç ada em 2006 pela editora Ultimato e amplamente citada
nessa obra.
248 Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p. 123.
249 Jos é Miguez Bonino, Rostos do protestantismo latino-americano , p. 49.
250 Ricardo Gondim, Miss ã o integral: em busca de uma identidade evang é
lica (S ã o Paulo: Fonte Editorial, 2010), p. 61.
251 Jos é Miguez Bonino, Rostos do protestantismo latino-americano , p. 49.
252 Steuernagel apud Ricardo Gondim, Miss ã o integral , p. 62.
253 Cf. Jos é Miguez Bonino, Rostos do protestantismo latino-americano , p.
50.
254 Ricardo Gondim, Miss ã o integral , p. 68. Grifo do autor.
255 Cf. Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p.
241.
256 Vale ressaltar, contudo, que o MEP precede ao Mensal ã o, ao “ Petrolh ã
o ” e à Lava-Jato, entre outros esc â ndalos nos quais a “ esquerda ” brasileira est
á envolvida. Para cr í ticas mais contundentes à teologia da miss ã o integral,
bem como à teologia da liberta çã o, recomendamos as seguintes obras: a instru
çã o geral de Joseph Ratzinger, dispon í vel no site do Vaticano: “ Instru çã o
sobre alguns aspectos da teologia da liberta çã o ” ; tamb é m Hubert
Lepargneur, A teologia da liberta çã o: uma avalia çã o; e Sobral Pinto,
Teologia da liberta çã o: o materialismo marxista na teologia espiritualista . [N.
do E.]
257 Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p. 241.
258 Cf. Ibid. , p. 251.
259 Declara çã o de Jarabacoa. Dispon í vel em: <
http://www.ftl.org.br/new/downloads/bt02.pdf >.
260 Tal declara çã o foi fruto do encontro de te ó logos e pol í ticos,
convocados pela Fraternidade Teol ó gica Latino-Americana (FTL), que se
reuniram em 1983, na cidade Jarabacoa, na Rep ú blica Dominicana, com a
finalidade de refletirem sobre a seguinte tem á tica: os crist ã os e a a çã o pol í
tica .
261 Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p. 260.
262 Wolterstorff é um fil ó sofo dooyeweerdiano que j á lecionou na
Universidade Livre de Amsterd ã , na Universidade Notre Dame e no Calvin
College. Atualmente é Professor Em é rito de Teologia Filos ó fica da
Universidade de Yale, nos EUA. Mais informa çõ es em:
<http://religiousstudies.yale.edu/wolterstorff>.
263 Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p. 261.
264 Cf. Ra í zes da cultura ocidental , p. 72.
265 Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p. 262.
266 Ibid. , p. 263.
267 Leonardo Ramos, “ Os í dolos do nosso tempo: A cosmovis ã o crist ã em
um mundo de esquerdas e direitas ” . In: Rodolfo Amorim, Marcel Camargo e
Leonardo Ramos (Org.), F é crist ã e cultura contempor â nea , p. 147.
268 Ibid. , p. 146.
269 Cf. Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p.
269.
270 Ibid. , p. 270.
271 Cabe aqui a indaga çã o sobre os reais pontos de contato do neocalvinismo
(ao menos como formulado por Abraham Kuyper e Prinsterer) e a TMI, ainda
mais levando-se em conta a assertiva do pr ó prio autor de que esta ú ltima
apresenta pressupostos ap ó statas que confrontam a Palavra de Deus. Talvez o
problema mais evidente numa tentativa de concilia çã o entre essas duas
correntes seja o mesmo que se encontra no cerne da tens ã o entre “ reforma e
revolu çã o ” ; isto é , o neocalvinismo, diferentemente do reacionarismo ou do
posterior tradicionalismo do s é culo XX, parte de uma posi çã o antirrevolucion
á ria, e n ã o contrarrevolucion á ria, o que significa que n ã o é uma idealiza çã
o ou um retorno ao passado, mas uma oposi çã o à causa primeira de toda e
qualquer revolu çã o que subverte a ordem espiritual e a hierarquia social: a
incredulidade. Nesse sentido, as mazelas do passado (e do presente) s ã o
percebidas pelas lentes da Palavra de Deus, abrindo-se, pois, espa ç o para sua
corre çã o mediante a reforma , que, como evidente na pr ó pria etimologia da
palavra, conserva as estruturas e repara as eventuais fraturas do edif í cio social
ou teol ó gico. Assim, para o neocalvinismo, a causa das desigualdades sociais,
espiritualmente falando, seria n ã o a injusti ç a social , mas a incredulidade e a
idolatria, as quais, por seu turno, geram injusti ç as. Dito de outro modo, é a falta
de confian ç a na Provid ê ncia divina, al é m das ó bvias motiva çõ es
pecaminosas, que conduz à gan â ncia e eventual explora çã o por parte de um
segmento da sociedade. De igual modo, n ã o nos é cab í vel — como deseja a
TMI — a afirma çã o de que a pobreza é sempre resultado do descaso estatal
ou da ina çã o da igreja, j á que, como consequ ê ncia do pecado, ela est á
associada logicamente à condi çã o espiritual de uma na çã o (pa í ses sem a
influ ê ncia crist ã tender ã o mais à corrup çã o, à inatividade, etc.). H á ,
ademais, a posi çã o historicamente enviesada (quando n ã o falsa) de que a
igreja separou ou fraccionou o homem em partes, sendo agora necess á ria a
restaura çã o de sua integralidade. A despeito da influ ê ncia de pressupostos ap
ó statas (em especial neoplat ô nicos), a igreja sempre conservou a doutrina e
confiss ã o de que é o homem em sua condi çã o “ de carne ” que é salvo — n ã
o somente sua alma, nem somente seu corpo, mas na sua cria çã o à imagem de
Deus. N ã o h á , pois, necessidade de uma afirma çã o da TMI, mas a simples
repristina çã o da confiss ã o cat ó lica (universal) da igreja. [N. do E.]
272 Afirmar que h á uma cr í tica robusta — no sentido de um corpo acad ê
mico consolidado — à teologia da liberta çã o, a partir da reflex ã o
neocalvinista no Brasil, seria um exagero. Limitamo-nos à cr í tica feita pelos
membros da AKET (Associa çã o Kuyper para Estudos Transdisciplinares), cuja
reflex ã o indica estar, em parte, alicer ç ada na cr í tica de James Olthuis — fil ó
sofo reformado — à TdL, na obra: James H. Olthuis, Evolutionary Dialectics
and Segundo ’ s Liberation Theology (Toronto: Institute for Christian Studies,
1986). Ademais, n ã o existe um di á logo e resposta por parte de autores ligados
à TdL talvez por causa da pouca visibilidade da tradi çã o neocalvinista no
Brasil.
273 Ou de maiorias, como é o caso dos pobres, no contexto Latino-Americano.
274 Cf. Rosino Gibellini, A teologia do s é culo XX , p. 349.
275 Alessandro Rodrigues Rocha, “ Teologia da liberta çã o ” . In: Fernando
Bortolleto Filho et al. (Org.), Dicion á rio brasileiro de teologia , p. 962-65.
276 Ibid. , p. 962.
277 Ibid. , p. 963.
278 Victor Codina, ¿ Que es la Teologia de la Liberacion? (Santiago:
Rehue, 1987), p. 13.
279 Alessandro Rodrigues Rocha, “ Teologia da liberta çã o ” . In: Fernando
Bortolleto Filho et al. (Org.), Dicion á rio brasileiro de teologia , p. 963.
280 Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p. 144.
281 Alessandro Rodrigues Rocha, “ Teologia da liberta çã o ” . In: Fernando
Bortolleto Filho et al. (Org.), Dicion á rio brasileiro de teologia , p. 964.
282 Talvez apenas superficialmente tenhamos aqui um ponto em comum, pois
o pensamento neocalvinista dooyeweerdiano nega a neutralidade em raz ã o de
sua antropologia e “ ontologia ” fundamentadas respectivamente no cora çã o
humano e no Deus tri ú no. Isto é , sendo o homem um ser essencialmente
religioso, toda a sua vida e todas as suas a çõ es s ã o um culto, dirigem-se ou ao
Deus verdadeiro ou a um í dolo. N ã o h á neutralidade, pois o “ esp í rito ” que
move o cora çã o humano sempre e necessariamente é ou o Esp í rito de Cristo
que gera liberdade e ilumina a mente do eleito ou é um esp í rito ap ó stata em
rebeldia contra o Criador e, em ú ltima inst â ncia, contra a ordem criada. A
teologia da liberta çã o, por sua vez, simplesmente adota o bin ô mio marxiano
de “ infraestrutura/superestrutura ” , sendo este ú ltimo apenas um subproduto e
justifica çã o daqueles que det ê m os meios de produ çã o e um meio de dar
continuidade à sua hegemonia. A pr ó pria no çã o que Marx tem de “ ideologia
” (termo tomado de empr é stimo de Antoine Louis Claude Destutt de Tracy) é
um arremedo da no çã o crist ã de Logos, j á que, em sua concep çã o, é o pr ó
prio ambiente intelectual, jur í dico, social e cultural no qual o homem vive,
existe e se move, mas que, no entanto, é gerado pela classe ent ã o dominante
como meio de justifica çã o da sua supremacia. Nesse sentido, para o
pensamento marxista nada de fato é neutro, pois, oculto sob as rigorosas
racionaliza çõ es, jaz oculta a vontade de poder. [N. do E.]
283 Victor Codina, ¿ Que es la Teologia de la Liberacion? , p. 25.
284 Alessandro Rodrigues Rocha, “ Teologia da liberta çã o ” . In: Fernando
Bortolleto Filho et al. (Org.), Dicion á rio brasileiro de teologia , p. 964.
285 Cf. Victor Codina, ¿ Que es la Teologia de la Liberacion? , p. 28.
286 Ibid. , p. 29.
287 Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p. 263.
288 N ã o se quer dizer com isso que as duas dimens õ es, espiritual e material,
estejam desconectadas e que n ã o convivam de diferentes formas.
289 Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p. 264.
290 Ibid. , p. 149.
291 Ibid. , p. 149.
292 Victor Codina, ¿ Que es la Teologia de la Liberacion? , p. 25-26.
293 Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p. 150.
294 Guilherme de Carvalho, “ O senhorio de Cristo e a miss ã o da igreja na
cultura ” . In: Leonardo Ramos et al. (Org.), F é crist ã e cultura contempor â
nea , p. 70.
295 Cf. Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p.
146.
296 Ibid. , p. 147.
297 Na obra No crep ú sculo do pensamento , Herman Dooyeweerd tem um
cap í tulo pr ó prio para tratar sobre o historicismo , onde faz um balan ç o, a
partir da hist ó ria da filosofia, do desenvolvimento dessa perspectiva, come ç
ando pelo humanismo cartesiano, passando por Kant e Hegel e chegando a
Comte e Marx.
298 Cf. Guilherme de Carvalho, Cosmovis ã o crist ã e transforma çã o , p.
148.
299 Ibid. , p. 148.
300 Ibid. , p. 155.
301 Sobre esse assunto e sobre as transforma çõ es da teologia da liberta çã o,
veja Rudolf von Sinner, Da teologia da liberta çã o para uma teologia da
cidadania como teologia p ú blica . Dispon í vel em:<
https://est.academia.edu/RudolfvonSinner>. Acesso em: 04.jul.2014. Este texto
foi publicado originalmente em ingl ê s no International Journal of Public
Theology . a. 1. n 3/4. p. 338-363, 2007. Tradu çã o de Lu í s Marcos Sander.

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