2019 Dis Rcerdeiradelima
2019 Dis Rcerdeiradelima
2019 Dis Rcerdeiradelima
FACULDADE DE MEDICINA
DEPARTAMENTO DE SAÚDE COMUNITÁRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
MESTRADO ACADÊMICO EM SAÚDE PÚBLICA
Fortaleza
2019
Raquel Cerdeira de Lima
Fortaleza
2019
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
1. Redução de danos. 2. Políticas sobre drogas. 3. Políticas de saúde. 4. CAPS AD. 5. Fortaleza. I. Título.
CDD 610
RAQUEL CERDEIRA DE LIMA
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Profa. Dra. Maria Vaudelice Mota (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
____________________________________________
Prof. Dra. Maria do Socorro de Sousa (Coorientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
____________________________________________
Profa. Dra. Jaqueline Caracas Barbosa
Universidade Federal do Ceará (UFC)
___________________________________________
Prof. Dr. Aluísio Ferreira de Lima
Universidade Federal do Ceará (UFC)
____________________________________________
Prof. Dr. José Maria Ximenes Guimarães
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
À minha mãe, minha maior inspiração.
À minha mãe, por tanto amor e cuidado ao longo da vida, por sempre me apoiar e me consolar
nos momentos difíceis e por ter sido meu maior suporte em todo processo de pesquisa e de
escrita. Agradeço por tudo que ela me inspira.
A meu pai e irmãos que me apoiam sempre, mesmo nos seus silêncios ou nos seus gestos
tímidos, que aprendi a compreender.
A meus avós Constâncio (in memoriam) e Tereza (in memoriam) por ensinarem à minha mãe e
tios a importância da educação. Ensinamento que eles passaram para mim e que carrego como
meu maior legado.
A meu tio Sabá (in memoriam), que o destino nos levou antes da hora, por ter sempre me
ensinado o valor da universidade pública. Eu sei que dos céus ele sorri de orgulho.
A meu tio Juba que torce sempre por mim, onde quer que esteja nesse grande mar ou na nossa
querida Belém.
A todos os meus tios-primos e a todos os meus primos que de lá do nosso Pará, mesmo estando
longe, dão-me tanto carinho e amor, fortalecendo-me no meu dia-a-dia.
Às minhas orientadora e coorientadora, Profa. Vaudelice e Profa. Socorro, por tantas trocas,
discussões e apoio paciente ao longo desses últimos dois anos.
Aos professores convidados que participaram das bancas de qualificação e defesa, Profa. Maria
Lúcia, Prof. Aluísio, Prof. José Maria e Profa. Jaqueline por contribuírem com a pesquisa e me
suscitarem novos aprendizados.
Aos meus colegas do LAPQS por tantas acaloradas discussões, especialmente à Profa. Maria
Lúcia, que foi inspiradora e solícita em todo o processo de construção da pesquisa e sempre se
mostrou disponível para orientações diversas ao longo de todo o mestrado.
Aos meus colegas do Curso de Mestrado em Saúde Pública pelas trocas e por passarem pelas
dificuldades do percurso junto comigo.
Aos participantes da pesquisa e aos usuários do serviço pesquisado, pois sem a solicitude deles
essa construção não seria possível.
À Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza por ter aberto as portas dos serviços para receber
a pesquisa e ter considerado esse estudo relevante para a nossa população.
Aos meus colegas dos CAPSs AD que trabalho, por tornarem a minha escrita mais potente no
nosso cotidiano de construções coletivas sobre drogas e redução de danos.
Aos usuários desses serviços e de outros CAPSs AD, por darem mais sentido à minha pesquisa
a cada dia. Todo o esforço desse trabalho é para assisti-lhes melhor e para inspirar outros
profissionais que participam dessa assistência.
A meu sensei Luiz e a meus colegas de treino do aikido, com quem compartilho o meu caminho
de vida, ensinamentos, e por terem me ajudado a aprender a importância de ser resiliente.
À minha sobrinha Lis, por deixar meus dias mais leves com tanta doçura e por me inspirar para
trabalhar para um mundo melhor no futuro.
A nosso cachorrinho Antônio, porque ele faz parte da família e por sempre vir me abraçar
quando percebe em mim qualquer sinal de tristeza e cansaço.
Por fim, agradeço aos meus vários amigos, com os quais o destino me presenteou e que estão
espalhados pelo mundo afora. Não os nomearei pela quantidade e pela potencial falha de
memória, que me faria esquecer alguém. Obrigada pelo carinho, amor, paciência com minhas
ausências nesses últimos dois anos, por conseguirem me tirar de casa para ter lazer, pelo apoio,
pelas trocas “nerds” do dia-a-dia, pela ajuda com a pesquisa, por torcerem e rezarem sempre
por mim.
Para não serdes martirizados escravos do
Tempo, embriagai-vos, embriagai-vos sem
tréguas. De vinho, de poesia ou de virtude, à
vossa escolha.
Charles Baudelaire
RESUMO
This research aims to understand concepts and practices of harm reduction (HR) strategy from
the perspective of health professionals and Psychosocial Care Center for Alcohol and Drugs
(PSCC AD) managers in Fortaleza, as a way to reflect on the role of HR in the care of alcohol
and drugs users in the municipal Psychosocial Care Network (PSCN), guided by the regulatory
frameworks of psychosocial care and drug policies, considering the political-ideological
contradictions among them. It is a qualitative study, which dialogues with the field of public
policy assessment, formed by theoretical and methodological assumptions that blended aspects
of hermeneutic analysis and narrative analysis to construct results. Thirteen semi-structured
interviews were conducted with health professionals and managers of a PSCC AD, with
systematic observation of practices, and search and analysis of management documents
between October 2018 and February 2019. HR concepts emerged in two main components: HR
understood as a technique; HR understood as health care technology. The practices were
generally understood as HR practices, although some professionals did not realize the use of
the strategy in their own activities, recognizing it among the practices of colleagues.
Furthermore, the user embracement apparatus was seen as a HR enhancer, and the daily work
of this institution demonstrated the effectiveness of the strategy for the care of people who use
drugs, highlighting the significance of formation moments and permanent education for the
strategy adoption. In addition, the “Harm Reduction Group”, being a collaborative learning
space among professionals, users and family members about HR, proved to be powerful for the
consolidation of the strategy in this PSCC AD. Health professionals pointed out daily
challenges for the operationalization and consolidation of HR in PSCN: difficulties in physical
space, management and work processes, as well as fragile employment bonds that demotivate
health workers and managers. The absence of management documents related to HR at the state,
municipal and local levels has left us a gap in understanding these challenges. Finally, although
professionals understand, value and practice HR in the surveyed institution, the toughening of
drug policies in 2019 leaves numerous questions about the future of the strategy for the
psychosocial care of alcohol and drug users.
Keywords: Harm reduction, drug policy, health policy, CCPS AD, Fortaleza.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
1. PRELÚDIO.................................................................................................................. 16
2. INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 17
2.1 JUSTIFICATIVA E RELEVÂNCIA...................................................................................... 22
2.1.1 A implicação da pesquisadora.................................................................................... 22
2.1.2 Relevância político-social para o campo da saúde.................................................... 23
3 OBJETIVOS................................................................................................................. 25
3.1 G ERAL............................................................................................................................ 25
3.2 ESPECÍFICOS.................................................................................................................. 25
4 O USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS, O PROIBICIONISMO E A
REDUÇÃO DE DANOS.............................................................................................. 25
4.1 O USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS (DROGAS)......................................................... 26
4.2 O PROIBICIONISMO....................................................................................................... 30
4.2.1 O uso de drogas como um problema social: a lógica do proibicionismo................. 30
4.2.2 O proibicionismo e a saúde pública: o modelo de doença....................................... 34
4.2.3 O proibicionismo no Brasil......................................................................................... 37
4.3 A REDUÇÃO DE DANOS.................................................................................................. 39
4.3.1 Histórico da redução de danos................................................................................... 40
4.3.2 Redução de danos: da estratégia de prevenção ao paradigma
ético-político................................................................................................................ 48
4.3.3 A redução de danos nas políticas públicas brasileiras............................................ 52
4.3.4 A redução de danos nas pesquisas científicas........................................................... 59
4.3.5 A redução de danos e o Centro de Atenção Psicossocial Álcool
e Drogas ..................................................................................................................... 61
5 TENSÕES POLÍTICO-IDEOLÓGICAS NA ATENÇÃO AOS USUÁRIOS
DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS....................................................................... 63
6 METODOLOGIA....................................................................................................... 67
6.1 O ENFOQUE QUALITATIVO .......................................................................................... 67
6.2 ENTRE A HERMENÊUTICA E A NARRATIVA.................................................................. 68
6.3 CENÁRIO E SUJEITOS DE PESQUISA............................................................................. 72
6.4 O CAMINHO DA PESQUISA............................................................................................ 75
6.5 ASPECTOS ÉTICOS ....................................................................................................... 79
7 COMPREENDENDO A REDUÇÃO DE DANOS: A DIVERSIDADE
DE CONCEPÇÕES E PRÁTICAS........................................................................... 80
7.1 A REDUÇÃO DE DANOS COMO UMA TÉCNICA ASSISTENCIAL ........................................ 91
7.2 A REDUÇÃO DE DANOS COMO UMA TECNOLOGIA DE CUIDADO
NA ATENÇÃO ÀS PESSOAS USUÁRIAS SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS .............................. 95
7.3 AS PRÁTICAS DE REDUÇÃO DE DANOS NO CENTRO DE A TENÇÃO
PSICOSSOCIAL Á LCOOL E D ROGAS............................................................................. 102
1 PRELÚDIO
2 INTRODUÇÃO
vindo a tensionar o viés proibicionista e, em sua extrapolação, servindo de referência para outras
discussões bioéticas1 .
Assim, desde o lançamento da política do MS, a RD foi incorporada dentro das
políticas sobre drogas, sendo introduzida nas políticas de justiça e segurança pela Lei nº 11.343,
de 2006, que tem como base a Política Nacional Sobre Drogas (PNAD) de 2005.
A RD foi, ao longo da sua construção histórica, constituindo-se em um movimento
social, passando a ser entendida como um paradigma ético, clínico e político, que parte de
pressupostos filosóficos do pragmatismo e dos direitos humanos, enxergando o uso de drogas
como não necessariamente prejudicial, sendo uma estratégia de cuidado de menor exigência,
entendendo que existem indivíduos que não querem ou não conseguem parar o uso das
substâncias, além de que contemplaria uma parcela da população com dificuldades de acesso à
atenção integral. Ademais, parte de uma ideia de que o uso de substâncias entorpecentes é um
habito milenar das civilizações, sendo improvável uma sociedade sem drogas (TEIXEIRA,
2017; BRASIL, 2015b; PRESTES, 2017).
Apesar de estudiosos colocarem a RD como um novo paradigma, é importante que se
compreenda que as políticas brasileiras (e internacionais) ainda compreendem a lógica
proibicionista e da RD como complementares, embora no seio das concepções e ideologias que
as norteiam exista uma enorme contradição. Socialmente falando, podemos refletir para onde
apontam as tendências diversas do espírito da nossa época. De um lado a proibição moralista e
a guerra contra o grande mal das drogas, que corrompe e adoece o indivíduo; do outro, uma
visão progressista e pragmática, entendendo as drogas como um fenômeno da existência
humana, que não precisa ser combatido, mas compreendido e respeitado (SODELLI, 2010).
A política de 2003 torna clara essa via dupla do cuidado ao uso problemático de
substâncias psicoativas:
1
Ver RIBEIRO, M. M. “Cap. 5 – A redução de danos para além da ‘questão das drogas’”. In: Drogas e redução
de danos: o direito das pessoas que usam drogas – São Paulo: Saraiva, 2013.
19
Conforme o trecho, o MS adota uma postura prática, entendendo que não é mais
possível tratar o abuso e a dependência de drogas apenas pelo viés da doença e,
consequentemente, da abstinência, mas que é necessário levar em consideração o uso de
diferentes estratégias para tratar do problema. A RD, então, é entendida dentro de uma
perspectiva estratégica de operacionalização das políticas.
Há, por vezes, confusão de entendimento sobre a RD, pois inúmeros textos sobre o
assunto usam os termos “política”, “estratégia(s)”, “perspectiva”, “abordagem” ou
“paradigma”. A própria legislação utiliza termos diversos como “lógica da redução de danos”,
“ações de redução de danos”, “estratégias de redução de danos”. Neste estudo, utilizaremos o
termo “estratégia de redução de danos”, pois entendemos a RD em uma perspectiva de
macroestratégia, em uma noção ampliada de bases político-ideológicas demarcadas. Podemos
dizer que dentro dessa perspectiva existem microestratégias, que muitas vezes são referidas nos
textos das políticas como ações ou, propriamente, estratégias.
A categoria “estratégia” é cara dentro do planejamento de políticas públicas, incluindo
as de saúde. O termo, comumente utilizado em estudos do campo da administração, que lança
mão do conceito de “planejamento estratégico”, tem como principais representantes no Campo
da Saúde na América Latina os teóricos Carlus Matus e Mário Testa. Ambos, embora de
maneiras distintas, chamam a atenção para o planejador inserido dentro de uma estrutura social,
regida por relações de poder e interesses diversos, que precisam ser observadas na formulação
de estratégias que tem como objetivo mudanças no sistema ou uma transformação social
(URIBE RIVIERA, 1995; LIMA, 2004).
Corroborando com o pensamento de Testa, Giovanella (1990) afirma que o
Testa (1995) comenta que o termo “estratégia”, de origem militar, é usado em muitos
sentidos em várias disciplinas. Ele se relaciona a comportamentos organizacionais em que seja
preciso superar obstáculos que se oponham à conquista de um objetivo, ou seja, de uma meta.
A estratégia, portanto, não é uma maneira de alcançar a meta (se a entendermos como um alvo
fechado, estanque), mas uma forma de se colocar em situação de se aproximar para alcançar a
meta. Isso significa estabelecer condições favoráveis ao desempenho. É uma manobra para
ganhar liberdade da ação.
O autor discute os conceitos de política e estratégia em relação, que são de extrema
relevância em nosso estudo. Para ele, política é uma proposta de distribuição do poder e
estratégia é a forma de implementação de uma política, ou seja, um meio de distribuir poder.
Dito de outra maneira, pode-se falar de meios e fins. Como mencionamos, a estratégia busca
uma meta. O objetivo (a meta) é a política. A estratégia se torna instrumento para esse objetivo.
Contudo, Testa adverte que ao falar em objetivo, está se referindo a um processo que estabelece
prazos curtos, ou seja, começos e não pontos de chegada. Na concepção que trabalha, a política
surge como objetivo que a estratégia almeja, tal como esta é instrumento da política em um
diálogo circular, em um movimento recursivo sem princípio e fim.
Indo na mesma direção deste autor, Carlus Matus (1993), ao falar do planejamento
estratégico, coloca o movimento como lei do processo social. Assim, na construção da
estratégia há de se considerar esse incessante movimento.
Podemos pensar, com esses autores, que a noção de estratégia adotada nas políticas
sobre drogas agrega a ideia de liberdade, de maleabilidade. Ela é distinta da noção de
“programa”, usada no planejamento tradicional em saúde, que “congela a ação” no “deve ser”,
que é normativo. Passa-se de um plano normativo para um plano estratégico, tendo como
essência a mediação entre conhecimento e ação, além da consciência de que o planejador faz
parte de um sistema conflitante, com objetivos distintos de seus opositores (LIMA, 2004).
Ademais, quando a política de 2003 entende a estratégia como método, podemos
perceber uma ideia que se aproxima com a de Edgar Morin (2005), que vê o método em um
poliscópio de arte, pilotagem, neoartesanato e estratégia. Para o autor, o conceito de “estratégia”
liga-se à noção aleatoriedade, podendo esta ser relacionada à noção de liberdade defendida
pelos autores latino-americanos. Essa aleatoriedade, no entendimento do autor, está inscrita
tanto no objeto como no sujeito na sua complexidade.
Vemos que o pensamento estratégico dá norte às ações da atenção integral aos usuários
de álcool e outras drogas. Por esse motivo há tanta dificuldade acerca da definição de RD. As
21
políticas sobre drogas entendem o problema do uso dessas substâncias como complexo, em
uma população heterogênea. Essas características demandam a adoção de diferentes estratégias
maleáveis, uma vez que se inserem dentro de um complexo social que tem conflitos de poder e
interesses diferentes entre grupos sociais distintos.
Dessa forma, estrategicamente, o ponto de referência para a assistência das pessoas
com uso problemático de álcool e outras drogas é atualmente o CAPS AD, que se insere dentro
da Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, conforme intitulada pela
Portaria de nº 3088, de 23 de dezembro de 2011. Com a criação da rede, a RD foi fortalecida
na ideia de promoção de redes de cuidado e corresponsabilidade.
Chegamos a emergência do nosso problema: passados dezesseis anos da adoção da RD
como estratégia na atenção integral ao usuário álcool e outras drogas, pouco se sabe como ela
se apresenta nos discursos e práticas dos profissionais dentro da rede de atenção, nos próprios
equipamentos e cotidiano das práticas, especialmente no estado do Ceará e no município de
Fortaleza. Existe uma legislação e documentos oficiais que sugerem e legitimam as práticas,
mas compreendemos que lógica proibicionista é muito poderosa em nossa sociedade,
coexistindo com a visão de mundo da RD.
Dito isso, é fato que existem duas vertentes que convivem no cotidiano das práticas
em saúde: a da abstinência e a de redução de danos (TEIXEIRA et al., 2017). Inspiradas no
pensamento foucaultiano, poderíamos dizer que essas noções atuam como dispositivos
(PRESTES, 2017), entremeados em redes que produzem verdades, práticas e discursos, que
operam em relações de saber/poder que afetam o cotidiano dos serviços.
É sabido que o Estado do Ceará, por meio d a, hoje extinta, Secretaria Especial de
Políticas Sobre Drogas - SPD-CE (Lei Estadual nº 15.773, de 10 de março de 2015), seguindo
políticas federais, fortaleceu a noção da abstinência no tratamento dos usuários de álcool e
outras drogas, por meio da ampliação da parceria com as Comunidades Terapêuticas (CTs), que
seriam também dispositivos sob lógica do proibicionismo.
O interesse por este estudo partiu da suspeita de que a RD continuasse sendo pouco
conhecida e/ou adotada no cotidiano das práticas, como sugerem estudos recentes (SILVEIRA
et al., 2016; CALASSA, 2015; FILHO, 2009; CARVALHO & DIMENSTEIN, 2017; GOMES
& DELLA VECCHIA, 2018). Com isso podemos levantar questionamentos gerais, para o nosso
objetivo de pesquisa: a redução de danos estava sendo adotada como uma estratégia dentro da
22
Política de Atenção ao Usuário de Álcool e Outras Drogas no município de Fortaleza? Ela era
operada por meio de que concepções e práticas?
Este tópico é um exercício reflexivo. Fala de minha experiência pessoal que leva à
construção do objeto da pesquisa.
O uso de substâncias psicoativas sempre me fascinou desde a adolescência. Na minha
sede pelo conhecimento, eu estudava os diversos tipos de drogas e seus efeitos. Encantava-me
os mistérios da mente humana e eu acreditava que essas substâncias desempenhavam um papel
importante na alteração dos processos mentais e isso me causava tanto curiosidade, como
deslumbramento.
Cursei Psicologia na UFC e o estudo das drogas ilícitas passou à convivência com os
seus efeitos, que percebia de diversas maneiras entre companheiros de universidade nas
incontáveis festas boêmias do bairro do Benfica, em Fortaleza. Entre discussões de mesas de
bar ou rodas acadêmicas, a questão das drogas sempre esteve presente. Durante a faculdade,
meus estudos das drogas ilícitas ainda foram deslocados para o estudo das drogas lícitas e
controladas, os psicofármacos, pois a psicopatologia era um dos meus temas de maior interesse.
Eu gostava de compreender os mecanismos de ação das substâncias e as suas relações
“objetivas” no tratamento de condições como a psicose.
Já no último ano da faculdade a minha relação com a questão das drogas foi
estreitando-se. Fui estagiar no “manicômio judiciário”, instituição asilar que cuidava dos
“loucos infratores” e entre eles muitas pessoas que tinham diagnóstico de “transtorno
esquizoforme ocasionado pelo uso de substâncias psicoativas” e outros do gênero. A partir de
então o meu estudo tanto sobre as psicoses, quanto sobre as drogas começaram a se intensificar.
Depois de formada trabalhei por dois anos no sistema penitenciário do estado do Ceará
e a “droga” era considerado o maior “problema” do cárcere em todos os aspectos, desde a
segurança, até o social e de saúde. Se eu pudesse colocar em números, diria que nove entre dez
pessoas a quem assisti em todo o meu tempo no sistema prisional tinham questões relacionadas
ao uso de substâncias psicoativas.
23
público de que o campo da saúde mental no município de Fortaleza veio se fragilizando nos
últimos anos pela constante mudança de equipes e gestão de saúde da rede (por vínculos
empregatícios instáveis), incluindo os CAPS AD, gerando descontinuidade nos vínculos
profissional-usuário-serviço levando, possivelmente, a fragilidades na apropriação das políticas
por parte dos profissionais de saúde e gestão. Ademais, quando da busca dos documentos
oficiais nos sites governamentais, não foi conseguido encontrar Plano Estadual ou Municipal
de Saúde que contemplasse o campo da atenção psicossocial no estado e município. Assim, não
estava claro como se fazia a gestão dos serviços de saúde mental do município e estado, tendo
as políticas e diretrizes federais uma importância considerável. Destarte, os componentes
estratégicos das políticas podem ser enfraquecidos, uma vez que um dos princípios norteadores
do pensamento estratégico é a maleabilidade e adequação às condições do meio.
A estratégia de RD é um importante componente da Política de Atenção Integral aos
Usuários de Álcool e outras Drogas e de outras políticas públicas sobre drogas no Brasil. Uma
melhor compreensão deste componente estratégico faz-se importante para o entendimento de
fatores importantes no dia-a-dia da prática do CAPS AD, como: adesão ao tratamento, projeto
terapêutico singular (PTS), tipo de tratamento, locais de atendimento na rede, entre outros.
Além disso, ainda existem poucas pesquisas dentro enfoque qualitativo acerca da RD.
Há trabalhos quantitativos sobre distribuição de kits e programas de trocas de seringas, além de
trabalhos teóricos acerca das diferentes noções de RD e sobre o movimento social da Redução
de Danos em um olhar antiproibicionista. Todavia, há muito pouco sobre a prática profissional
em RD em relação aos profissionais de saúde da RAPS, que não sejam os chamados “redutores
de danos”.
Podemos refletir sobre a relevância deste estudo em uma dimensão que relaciona
política institucional e micropolítica. Isso significa dizer que para compreender o escopo de
uma política de estado é preciso entender a relação do seu texto com a interpretação do texto
pelo sujeito e a aplicação dessa interpretação na ação do cotidiano. Ora, é tão comum, desde
intelectuais do direito até o cidadão comum a crítica da lei ou da política que “não sai do papel”.
Essa pontuação, muitas vezes fundamentada, esbarra na falta de dispositivos para se
compreender os motivos que levam a isso ou as dinâmicas político-sociais que engendram esse
desfecho.
Ademais, Delbon et al. (2006) advertem que implantar intervenções em RD é um
processo gradativo, longo, devendo-se respeitar as diferenças das equipes e dos serviços.
Passados dezesseis anos do lançamento da política que incluiu a RD como estratégia na atenção
25
aos usuários de álcool e outras drogas, é pertinente refletirmos sobre em que momento desse
processo os serviços se encontram em Fortaleza.
Esta investigação é, portanto, uma tentativa de compreensão dessas relações dentro do
CAPS AD, que é o principal dispositivo da rede para atenção aos usuários de álcool e outras
drogas.
3 OBJETIVOS
3.1 G ERAL
3.2 ESPECÍFICOS
2 Estudos que se posicionam contrariamente ao chamado “paradigma proibicionista” e que não acreditam em um
mundo livre de drogas, entendendo o “fenômen das drogas” como parte da existência humana.
3 No dicionário Michaelis: palavra de origem grega (narkotikós) que significa substância que entorpece o cérebro
sendo que, de maneira objetiva, não há como se considerar o uso de drogas, em si, como
prejudicial (HELMAN, 2009; LABATE et al., 2008; SIMÕES, 2008).
Há, todavia, dentro de uma lógica de saúde pública, um entendimento de que no
comportamento do uso de substâncias psicoativas há riscos associados, da mesma forma que
eles existem em outros comportamentos humanos, tais como fazer sexo, viajar, praticar
esportes, comer, entre outros (LABATE et al., 2008). Ainda assim, as pessoas continuam
usando narcóticos, desde os tempos mais remotos, com os propósitos mais diversos, que
perpassam questões complexas, como a busca do prazer e alterações dos estados de consciência,
a aventura, a criminalidade, a sociabilidade, a transcendência e o conhecimento (SIMÕES,
2008).
Na antiguidade, em muitas culturas e em rituais tribais que remontam até o período
neolítico, essas substâncias, ou melhor, ervas ou produtos da natureza, tinham frequentemente
um papel de mediador espiritual, de transcendência e ligação com o divino (ESCOHOTADO,
1998; SIMÕES, 2008). Mesmo assim, desde aquele tempo, o caráter recreativo das drogas,
especialmente do álcool, era reconhecido. Exemplo disso é o Livro do Eclesiastes, no antigo
testamento, que descreve o vinho como o “gozo do coração e alegria”, além de posteriormente
ser consagrado como a representação do sangue de Cristo, que remonta a simbologias pagãs
(SIMÕES, 2008; ESCOHOTADO, 1998).
A idade média europeia viu a perseguição de tudo que era considerado magia, bruxaria
e que tinha o signo de pecaminoso ou demoníaco, afinal, o prazer era um dos pecados maiores,
sendo entendido em muitas ocasiões como obra do demônio, tendo um status de irrealidade. As
substâncias inebriantes, como a mandrágora, a amanita muscaria, o ópio, entre outras, –
inclusive aquelas ervas não psicotrópicas usadas para fins medicinais – eram associadas a rituais
pagãos e foram banidas da sociedade cristã, controlada, à época, pela Igreja Católica. Seus
usuários e prescritores foram torturados e/ou mortos pela Inquisição (ESCOHOTADO, 1998;
SOUZA, 2014).
No tempo da renascença, a alquimia medieval começava a dar os primeiros indícios
da formulação moderna da química, com advento da revolução científica da época. O alquimista
Paracelso foi um dos primeiros a postular a dupla face das substâncias químicas, que ora
poderiam exercer influências positivas (essentia) e ora negativas (venena). Para ele, “sola dosis
facit venenum” (somente a dose faz o veneno) e, com isso, as doenças passaram a ser entidades
tratadas por essas substâncias, que tinham o poder de curar ou destruir (VARGAS, 2008;
ESCOHOTADO, 1998).
29
A realidade cotidiana das pessoas que viviam nessa época era regid a por um princípio
de vida breve. Era uma Europa pré-industrial em que, sobretudo os pobres, viviam em estados
de torpor ou alucinação por boa parte do tempo, causados pela fome, pelo pão mal fermentado
ou adulterado por ervas entorpecentes (como a papoula, o cânhamo, o joio e o esporão de
centeio). Era uma época de excessos de uma sociedade febril e insone que recorriam a
mediadores de esquecimento para suportar o desalento daquela vida (VARGAS, 2008).
Entretanto, nem mesmo nesse tempo o estatuto contemporâneo da “droga” aparecia.
Em verdade, era cômodo para aquela sociedade que os pobres fossem “controlados” pelos
entorpecentes. Essa forma de existência os mantinha disciplinados e ajustados a uma dinâmica
social que não precisava deles.
Já na era moderna, com o comércio marítimo, é que se deu início à construção da nossa
noção atual de “droga”. Começou com a comercialização do que Vargas (2008) chama de
“alimentos-droga”. De início, essas transações caracterizavam-se como tráfico, a exemplo do
tráfico das especiarias, que tinha obtido muito sucesso, como bem aprendemos nos livros de
história do Brasil. Eram o açúcar, o chocolate, o chá, o café, o tabaco e as bebidas alcóolica s
destiladas.
Ao longo dos anos a demanda por esses “alimentos de luxo” começou a aumentar,
chegando às camadas populares. O capitalismo estava emergindo e este era palco favorável para
as bebidas quentes estimulantes (como o chá, café e chocolate adoçados), que davam energia e
vigor aos trabalhadores, seguindo os ditames de sobriedade e disciplina que esse sistema
demandava. As bebidas destiladas e o tabaco ganharam, então, o rótulo de inadequação ao
trabalho, mas ainda tinham a função de tornar suportável as condições extremamente precárias
de trabalho e de vida, principalmente após a revolução industrial (VARGAS, 2008).
O “problema social das drogas”, como será melhor explicitado na próxima sessão,
emerge de fato no final do século XIX, com o aumento da produção das bebidas alcóolicas e a
preocupação com a queda da produção dos trabalhadores nas indústrias, especialmente nos
Estados Unidos (RIBEIRO & ARAÚJO, 2006; VARGAS, 2008).
O século XX viu, ainda, um grande desenvolvimento da indústria farmacêutica e a
sintetização de muitos elementos químicos. Isso levou ao isolamento de inúmeras substâncias
psicoativas e manipulação de seus princípios ativos, tanto para funções terapêuticas, como
recreativas. Nesse mesmo período, enquanto certos narcóticos foram proibidos, outros foram
crescendo em produção dentro da indústria farmacêutica com a ampliação da importância social
30
das atividades biomédicas e com a legitimação médica para proibição de narcóticos específicos
(VARGAS, 2008), ficando claro o interesse de mercado nessa questão.
O fim do século passado e especialmente o início deste século assistiu um aumento
exponencial do uso de todos os tipos de substâncias psicoativas, sendo considerado um grave
problema de saúde pública no Brasil e no mundo. Dados da United Nations Office on Drugs
and Crime (UNODC) estimam que no ano de 2015, 255 milhões de pessoas eram usuárias de
drogas (ilícitas) no mundo, sendo dessas 29,5 milhões pessoas com transtornos relacionados ao
uso dessas substâncias (UNODC, 2017).
4.2 O PROIBICIONISMO
proibição das substâncias psicoativas, uma vez que após a 1ª Guerra Mundial, o país recebeu
um contingente muito grande de imigrantes vindos da China, que introduziram o hábito de
fumar ópio, o que preocupava o governo acerca da possível disseminação do consumo
(RIBEIRO & ARAÚJO, 2006).
Dessa maneira já em 1906 e 1911 ocorreram os Encontros de Xangai e em 1912 e 1914
os de Haia, na Holanda, nos quais os EUA visavam suprimir gradualmente o comércio de ópio.
Esses eventos foram resultado das Guerras do Ópio, no século XIX, quando o governo chinês
fechou seus portos para a entrada de ópio, trazido pelos britânicos, por conta do consumo
problemático naquela população (RODRIGUES, 2008; SOUZA, 2014).
Posteriormente, as pressões para o proibicionismo espalharam-se pelo mundo e parte
das nações começaram a compartilhar a ideia americana de que a dieta farmacológica deveria
ser regulada pelo Estado. Após o fim da proibição do álcool, em 1932 os EUA criaram o Federal
Bureau on Narcotics para regular a venda de psicotrópicos (RIBEIRO & ARAÚJO, 2006).
Além disso, convocaram uma série de eventos internacionais, sediado pela Comissão
de Narcóticos (CDN), criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1946, com a
finalidade de controlar e reprimir a produção, comércio e consumo de narcóticos. Foram três
convenções, conhecidas como Convenções-Irmãs. Em 1961, em Nova Iorque e em 1971 e 1988,
em Viena, com o objetivo de construir um plano de ação comum sobre as drogas pelos estados
membros, reafirmando o proibicionismo como política a ser seguida por todas as nações
(ALVES, 2009).
Segundo Ribeiro & Araújo (2006) desde o início das tentativas de proibição das
substâncias psicoativas “o feitiço virou contra o feiticeiro”. Mesmo tendo os britânicos e aliados
ganhado as Guerras do Ópio, eles não quiseram que o governo chinês legalizasse o consumo de
produto. Isso desembocou na criação de organizações criminosas que, com o atributo de
ilegalidade, agregava valor ao comércio da substância. As organizações criminosas chinesas,
mais tarde conhecidas como Tríades, capitaneavam o comércio ilegal para Europa e EUA, que
se tornou uma fonte de exploração econômica para sociedades secretas seculares, difundindo
as máfias criminosas pelo mundo, como as italianas Cosa Nostra, Camorra e ‘Ndranghetta –
que se destacaram por traficar bebidas alcóolicas (no tempo da lei seca) e cocaína nos EUA – a
Yakuza no Japão e os cartéis de tráfico de cocaína da América do Sul, como o de Cali, da
Colômbia.
Foi nessa ilegalidade do comércio e do uso que a chamada “guerra às drogas” foi
construída e, a partir dos anos 1980, com a internacionalização do tráfico e o fim da Guerra
33
Fria, ela se intensificou. Passos & Souza (2011) comentam que a guerra às drogas foi inserida
no “ciclo global de guerras”. Em meio ao fim dos regimes totalitários a anterior “guerra ao
comunismo”, transformou-se em guerra às drogas e, posteriormente, ao terrorismo, como
ameaça aos estados democráticos. Assim, ela
Para estes autores, como outros que analisam o fenômeno a partir das estruturas
econômicas, a guerra às drogas acaba por ter uma função econômica reguladora principalmente
no que diz respeito ao mercado bélico.
Além disso, a lógica proibicionista faz parte do que Souza (2014) chama de
“dispositivo das drogas”, inserida no que Foucault chamou de “a arte de governar” ou
governamentalidade, que controla os corpos para serem dóceis num deslocamento – que fica
claro na sociedade americana – do poder pastoral da Igreja, que controla as pessoas pela
obediência e negação do prazer, para uma tecnologia moderna de controle dos corpos pela
repressão e pela medicina.
O proibicionismo opera no controle das pessoas por discursos, que vão criando
verdades e práticas sociais. Na década de 1990, Bucher & Oliveira (1994) em uma perspectiva
dos estudos da linguagem, especialmente no âmbito da análise do discurso, realizaram uma
investigação analisando textos brasileiros da época (em que o discurso da guerra às drogas
vigorava em plena hegemonia), chegando à conclusão de que eles fazem parte de um conjunto
que denominou “formação discursiva antidrogas”, que levava a constituição de uma ideologia
de expressão condenatória, caracterizada por uma argumentação emotiva e alarmista, a serviço
de certas instâncias de poder e autoridade. A ideologia, sendo a principal categoria de análise
do estudo, era tomada pelos autores como “categoria explicativa do funcionamento dos
discursos sociais”, definição que lançamos mão também aqui.
Os textos analisados eram publicações americanas no Brasil, documentos oficiais
brasileiros e textos da imprensa brasileira. Nessa análise emergiram as seguintes unidades
analíticas:
produto tóxico ilícito; 5) tratamento genérico dos efeitos da droga, pela lei do tudo ou
nada, sem especificação do produto, do padrão de uso, da personalidade e história de
vida do usuário, do contexto; 6) associação dramática freqüente entre droga e sexo,
droga e crime, droga e morte; 7) omissão do fato de que droga pode propiciar prazer,
sensações agradáveis, facilidades de comunicação e relaxamento; 8) omissão ou
descaso a respeito do uso e abuso de psicotrópicos e outra s drogas lícitas; 9) crença
de intervenção heroica e desinteressada que livrará a comunidade e o país,
definitivamente, das drogas; 10) recomendação de atividades religiosas, morais,
patrióticas e esportivas como estratégias de prevenção (ou mesmo como “va cinas”)
(BUCHER & OLIVEIRA, 1994, p. 140).
tendo posteriormente sido construída uma noção de danos à saúde, sendo legitimada pelo poder
médico-sanitário da época.
É precisamente no início do século XX, quando o hábito do uso de entorpecentes deixa
de ser uma exceção entre os filhos da “boa sociedade”, passando para prostitutas, pequenos
criminosos e classe trabalhadora que este surge como problema de saúde pública, como uma
“epidemia” a ser combatida e controlada (RODRIGUES, 2008). Essa construção veio, segundo
Foucault, a partir do surgimento de um novo problema nos séculos XVIII e XIX, percebido
pelos governos e intelectuais da época: a população (SOUZA, 2014).
Com a modernização e a industrialização do período, o número de habitantes nas
cidades cresceu rapidamente, necessitando de uma forma de governar a cidade e conter as
massas humanas aglomeradas que se reproduziam velozmente. Era necessário um conjunto de
saberes que forjassem corpos saudáveis para o trabalho e mansos para o trato, sendo o momento
em que várias disciplinas, como economia, estatística, demografia e medicina social
desenvolveram-se (RODRIGUES, 2008; SOUZA, 2014).
A medicina social (precursora da saúde pública), segundo Foucault (1979), nasceu
junto com o capitalismo, no final do século XVIII, início do séc. XIX. Ele critica a tese de
alguns autores de que com o surgimento do mundo capitalista a medicina passou de coletiva
para privada, individualista. Pelo contrário. Para ele, o capitalismo socializou um primeiro
objeto que foi o corpo, como força de produção e depois força de trabalho. O controle da
sociedade sobre os indivíduos não opera simplesmente pela ideologia ou pela consciência mas
começa no corpo, no biológico, no somático, que foi onde investiu a sociedade capitalista. O
corpo foi investido política e socialmente como força de trabalho.
Todavia, no início da medicina social ocidental ainda não havia essa valorização do
corpo pelo poder da medicina, que só se deu na segunda metade do século XIX. Essa evolução
da medicina social passou por três etapas: primeiro, a medicina de Estado; depois a medicina
urbana, com o crescimento da cidade e; por fim, a medicina da força de trabalho e do controle
dos corpos.
A medicina de Estado teve como precursores as políticas estatísticas que ocorriam na
França, Áustria e Inglaterra, que começaram a contar a força ativa de suas populações no sec.
XVII, organizando taxas de mortalidade e natalidade, tendo como marca a polícia médica alemã
no fim do séc. XVIII, início do XIX, que possuía um sistema completo de observação de
morbidade, nascimento e morte, com dados coletados de hospitais e de médicos que atuavam
nas cidades. A formação dos médicos era definida pela própria corporação. Foi o tempo em que
36
junto às ações disciplinares de cunho coercitivo, como a prisão e ação das “forças da
lei”, a biopolítica operou estratégias de incremento das condições de vida dessas
mesmas populações vigiadas, o que originou investimentos em saúde pública –
campanhas de vacinação, reformas urbanas, saneamento público, regulam entação das
profissões médicas etc. – que significavam a um só tempo melhoria de vida e
fortalecimento para o trabalho. Assim, Foucault identifica positividades no exercício
do poder ou, em outras palavras, que o governar não se restringia a coagir (provocar
morte), mas também, em “causar vida” (p. 97).
Segundo esse autor, é nessa confluência entre coerção e assistência, entre reprimir e
oferecer que o proibicionismo desponta. O controle e a regulamentação do uso de drogas foram
elementos importantes para a consolidação do poder médico do período, que passou a dizer
quais os usos eram aceitáveis ou não, tendo papel fundamental na fixação de leis, que tomava
o que fosse cientificamente legítimo como “legal”, e o cientificamente ilegítimo como “ilegal”.
O primeiro hábito a tornar-se doença foi o de beber. Sobre isso Souza (2014) diz:
Parece óbvio que o fenômeno da “bebedeira” tenha se tornado problema para a saúde
pública no século XVIII, pois foi também nesse contexto que a saúde pública surgiu,
sendo desde o início uma modalidade de intervenção estatal. O que é menos óbvio é
que a saúde pública, entendida como campo exclusivamente médico -epidemiológico,
era uma matriz explicativa dos comportamentos e hábitos de vida. É neste âmbito que
o problema da “bebedeira” passa pelo crivo do saber médico se tornando
gradativamente uma doença (p. 991).
É nesse agenciamento de saberes que um hábito cultural é tornado uma doença que
deve ser curada, sendo a única forma de tratamento a abstinência. Algo parecido ocorre com o
ópio, e posteriormente, com as outras drogas.
Nessa inter-relação entre os saberes médico, jurídico e moral, a ideologia
proibicionista perdurou e se fortaleceu, ditando hábitos político-sociais até os dias de hoje,
tendo extrema importância dentro do saber/poder/fazer médico e consequentemente de toda a
área da saúde, que foi se complexificando, criando toda uma rede explicativa para doença da
dependência de substâncias psicoativas.
6Ver: KUHN, Thomas s. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 5ª edição,
1998.
40
A maioria dos estudos sobre o tema da RD traz seu marco histórico inicial na
Inglaterra, a partir das mudanças na forma de tratamento dos usuários de substâncias
psicoativas, oficializadas por meio da publicação do Relatório de Rolleston, em 1926. O
relatório foi produzido por um grupo de médicos britânicos, a pedido do governo. Este
recomendava que, em alguns casos, os dependentes de opiáceos poderiam receber narcóticos
do gênero (especialmente metadona) a fim de reduzir os danos d o seu uso e ajudá-los a levar
uma vida mais proveitosa, de acordo com suas necessidades. Nesses casos, a administração e
monitoramento do uso da droga ficava sob responsabilidade do médico (RIBEIRO, 2013;
MARLATT, 1999, NARDI & RIGONI, 2005; SODELI, 2010).
Apesar do pioneirismo britânico no que hoje chamamos de terapia de substituição e
manutenção, além da forma de “medicalização” do tratamento da dependência de drogas, essa
abordagem foi muito criticada nas décadas subsequentes, ganhando força, de fato, na Holanda
na década de 1980, com os Programas de Trocas de Seringas (PTSE) a partir da preocupação
com a crescente epidemia da AIDS e com a transmissão de outras doenças por via sanguínea,
como as hepatites (RIBEIRO, 2013, MARLATT, 1999).
O governo holandês, apesar de ser signatário de todos tratados internacionais sobre
narcóticos (como já visto, dentro de um viés proibicionista), destacava-se por adotar uma
postura política mais liberal. Assim, ainda em 1976, sancionou uma lei que estabelecia
41
tratamento distinto às drogas, de acordo com os tipos de danos que elas poderiam ocasionar,
categorizando as mesmas em “drogas leves” (maconha e haxixe) e “drogas pesadas” (cocaína,
heroína, LSD e anfetaminas). Com essa diferenciação, as políticas públicas implement adas
buscavam auxiliar ao usuário a melhorar seu estado físico e social, contando com sua
participação direta.
Esse protagonismo dos usuários nas políticas levou à sua organização em grupos
sociais, culminando em 1980, na fundação do “Junkiebond” em Roterdã, que era uma espécie
de associação de usuários de drogas injetáveis (UDI). Em 1984, com a preocupação da crescente
difusão de hepatite B entre os usuários de drogas injetáveis, o Junkiebond iniciou em Amsterdã,
com apoio do governo, um projeto piloto de trocas de agulhas e seringas usadas por novas.
Notemos que, embora seja pouco comentado, inicialmente os PTSEs iniciaram-se em razão da
transmissão das hepatites. Posteriormente, quando da descoberta da transmissão do HIV por
via sanguínea, é que se fortaleceram os programas para a prevenção da AIDS (RIBEIRO, 2013;
MARLATT, 1999).
Nesse contexto, a RD começa a se delinear como um movimento social, pois o papel
dos usuários foi fundamental para a adoção de políticas públicas de saúde e sociais que fossem
de acordo com as necessidades dessas pessoas. Conforme Marlatt (1999), no final dos anos
1990 já existiam grupos locais como o Junkiebond na maioria das grandes cidades holandesas,
com representação nacional na Federação Holandesa de Liga de Dependentes (ou “Junkies”,
para usar o termo preciso). O objetivo da federação era zelar pelos interesses dos usuários e
combater a deterioração deles, seguindo uma filosofia de que os usuários conhecem melhor
seus problemas. Assim, o trabalho da federação consistia em consultar o governo sobre
distribuição de metadona e disponibilidade de seringas esterilizadas gratuitas, além de questões
de legislação, polícia e moradia.
Com o sucesso comprovado do PTSE de Amsterdã, em 1986 esses programas
começaram a se expandir globalmente (RIBEIRO, 2013). Todavia, em muitas nações a RD
permaneceu por muito tempo dentro de programas de prevenção de HIV/AIDS e hepatites.
Como uma nova visão de mundo para o uso de substâncias psicoativas, ela se delineou no
contexto da mudança de legislação sobre drogas nesse país, tornando-a mais liberal e
pragmática, muito embora tenha sido, à época, criticada por outros países europeus, como
França e Suécia, além dos EUA (MARLATT,1999).
A mudança de legislação na Holanda teve início com a citada lei d e 1976, que
reformulava a “Lei do Ópio”. Esta, descriminalizava o uso de maconha e haxixe, podendo o
42
seu resultado ser observado na queda das estatísticas de consumo da maconha. Em 1976 o uso
da população era de 3% na população de 15 e 16 anos e de 10% na população entre 17 e 18
anos. Números que em 1985 eram de 2% e 6%, respectivamente. Muitos outros estudos desse
tipo foram conduzidos no país, evidenciando que a descriminalização da droga não leva
necessariamente ao aumento do uso, além de descreditar a “teoria da porta de entrada”7 , pois o
número de usuários de drogas pesadas permanecia estável e consideravelmente menor do que
o número de usuários de drogas leves (idem), indo de encontro a argumentos proibicionistas.
Para além da questão criminal, as políticas construídas a partir dessa lei colocaram na
legislação um viés mais humano. Criava-se uma nova “filosofia de tratamento”, em que o
governo incentivava formas de auxílio que não tinha o objetivo de eliminar o comportamento
dependente, mas melhorar o bem-estar físico e social dos usuários e ajudá-los em uma
reinserção social. Isso seria possível por meio de trabalho de campo nas ruas, hospitais, prisões,
centro de circulação para prostitutas, fornecimento de metadona, apoio material e oportunidades
de reabilitação social. Em 1985, com a revisão da política de drogas houve uma ênfase na
“normalização” do problema das drogas. Isso significa dizer que o usuário dependente de
drogas na Holanda assemelhava-se mais a um cidadão desempregado que a um monstro
ameaçador à sociedade (ENGELSMAN, 1989 apud MARLATT, 1999).
Dentro dessa conjuntura, o termo “redução de danos” é cunhado em 1981, em uma
publicação da Secretaria de Estado para Proteção da Saúde e do Meio Ambiente do governo
holandês (MARLATT, 1999). De início, ele era entendido dentro de uma lógica tradicional de
prevenção secundária e terciária, tendo hoje seu escopo ampliado também para uma lógica de
atenção primária. Sem dúvida, o que hoje conhecemos como “Movimento de Redução de
Danos” tem seu pioneirismo histórico nas transformações políticas e sociais da Holanda dos
anos oitenta do século passado.
Em linha coerente à desenvolvida na Holanda, posicionou-se o Reino Unido. Apesar
do pioneirismo do Relatório de Rolleston, o enfoque de redução ou “minimização” de danos
(como é conhecido no país) ficou restrito ao viés da medicalização, que foi muitas vezes
desaprovado pelo meio médico. Contudo, com o desenvolvimento da política holandesa, a
nação foi palco da primeira Conferência Internacional Sobre Redução de Danos, em Liverpool
em 1990, tendo sido patrocinada pelo Departamento de Saúde de Merseyside (idem).
7Ideia difundida pelas perspectivas proibicionistas de que o uso de uma droga leve, como maconha e haxixe, leva
necessariamente ao consumo de drogas pesadas, como cocaína e heroína.
43
O primeiro PTSE foi implantado em 1989, na cidade de Santos (SP). À época, a cidade
era conhecida como “a capital da AIDS”. Por ser uma grande cidade portuária, era porta de
entrada e saída de muitas mercadorias no país, sendo um ponto estratégico para o tráfico de
drogas. Dados epidemiológicos da época mostraram que, em 1988, a cidade liderava o ranking
do número de casos de AIDS proporcionais à população do país, onde 51% dos casos de
contaminação por HIV/AIDS estavam relacionados ao compartilhamento de seringas para o
uso de drogas injetáveis.
Apesar dessa iniciativa pioneira na cidade, a forma com que a mídia veiculou a
divulgação do programa criou muita polêmica, levando a ações da polícia e Ministério Público
contra a Secretaria de Saúde do Município. O então secretário municipal d e saúde David
Capistrano e o coordenador do Programa de DST/AIDS, Fábio Mesquita, sofreram ação judicial
por adotarem a estratégia, acusados de incentivarem o uso de drogas (PASSOS & SOUSA,
2011; RIBEIRO, 2013; MACHADO & BOARINI, 2013).
Ribeiro (2013), coloca que apesar do pioneirismo histórico de Santos no uso da
estratégia de RD, os dispositivos jurídicos que o Estado utilizou contra a implantação do
programa fez que ele ficasse obstaculizado até a presente década. Passos & Souza (2011)
lembram que essa retaliação do Estado contra a Secretaria Municipal de Santos evidenciou a
contradição da máquina estatal, na medida em que o poder judiciário suspende o direito
constitucional de acesso universal à saúde. É nesse tensionamento entre as políticas totalitárias
e políticas democráticas que coexistem e compõem o funcionamento d essa máquina, que
podemos situar a RD e os embates por ela travados nesses 30 anos de existência no Brasil.
Apesar da proibição judicial, diante do quadro epidemiológico das infecções por HIV
em Santos, iniciou-se um processo de debates e encontros públicos para sensibilização dos
agentes de estado acerca da importância das ações de RD. Dessa maneira, em 1991, foi criado
o IEPAS – Instituto de Estudos e Pesquisas em AIDS de Santos – uma organização não
governamental (ONG), formada por diversos profissionais da saúde ligados ao primeiro
programa de 1989. Com base em pesquisas de campo junto aos usuários, eles começaram uma
intervenção, que havia tido sucesso em outros países (principalmente naqueles onde a
distribuição de seringas era considerada ilegal), a saber: a distribuição de hipoclorito de sódio
para desinfecção das seringas (RIBEIRO, 2013; NARDI & RIGONI, 2005).
No campo, os agentes de saúde constataram que os UDIs lavavam as seringas antes de
reutilizá-las para retirar os vestígios de sangue que pudessem coagular e entupir a agulha
durante o compartilhamento. Assim, passaram a distribuir-lhes uma solução de hipoclorito de
46
sódio, em concentração 5,25%, para que lavassem as seringas antes da reutilização. Era
cientificamente demonstrado (à época, hoje já não é mais aceito) que essa concentração da
substância era eficiente para matar o vírus HIV (RIBEIRO, 2013).
Em 1994, boletins do Ministério da Saúde mostravam que 25% dos casos de AIDS
estavam relacionados ao uso de drogas injetáveis. Essa realidade epidemiológica foi decisiva
para a entrada definitiva da RD nos programas de HIV/AIDS na política nacional. Assim, no
mesmo ano, foi iniciado um projeto de articulação política em torno da interface “AIDS e
drogas”, sendo criado o “Projeto Drogas” do Programa Nacional de HIV/AIDS, que contava
com o apoio político e financeiro da ONU, por meio do Programa das Nações Unidas para o
Controle Internacional de Drogas (Sigla em inglês UNDCP). Esse projeto tentou articular, em
torno do tema “drogas”, a Coordenação Nacional de Saúde Mental, o então COFEN – que era
ligado ao Ministério da Justiça – e as Secretarias do Ministério da Educação e do Desporto.
Dessa forma, a RD foi inserida em diferentes programas e secretarias que criaram linhas de
intervenção em nível municipal e estatal, principalmente por meio dos Programas de Redução
de Danos (PRDs) (PASSOS & SOUSA, 2011).
Inicialmente, o “Projeto Drogas” contemplou dez estados: Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito
Federal, Ceará e Bahia. Esses estados foram prioritários pelo quadro epidemiológico com alta
taxa de notificação de AIDS contraída por compartilhamento de seringas no uso de drogas
injetáveis. Os usuários de drogas eram prioridade no projeto pela eficiência dessa via de
transmissão do HIV. O primeiro PRD foi implantado em Salvador em 1995, sediado no CETAD
– Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas – que ficava localizado em um centro de
estudos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, fato que contribuiu para
aceitação do programa (NARDI & RIGONI, 2005; RIBEIRO, 2013; FONSECA et al., 2006).
Assim como o início dos programas na Holanda, aqui também os programas eram
voltados para a questão da prevenção do HIV/AIDS, mas com a inserção da figura do redutor
de danos – que normalmente era um usuário ou ex-usuário de drogas da comunidade que tinha
maior acesso a outros usuários, estabelecendo uma relação de confiança – é que aos poucos a
RD saiu dos programas de prevenção de DST/AIDS, se transformando em uma estratégia de
cuidado aos usuários de substâncias psicoativas (PASSOS & SOUSA, 2011, NARDI &
RIGONI, 2005).
Além da importância do apoio da comunidade internacional para a implantação da RD
no Brasil, papel fundamental para a mudança da política de programas para a estratégia que
47
hoje existe nas políticas sobre drogas do país, foi a articulação dos movimentos sociais com o
governo, especialmente dos usuários e redutores de danos, similar ao que ocorreu na Holanda.
As ONGs tiveram grande importância nesse processo. Elas tinham o objetivo de
pesquisar e/ou implementar projetos com estratégias para reduzir os danos sociais e à saúde dos
usuários de drogas. Vale destacar a fundação da ABORDA (Associação Brasileira de Redução
de Danos) em 17 de novembro de 1997, durante 2º Congresso Brasileiro de Prevenção da AIDS,
em Brasília, que tinha (e permanece) como objetivos: a luta pelo direito e dignidade dos
redutores de danos e usuário de drogas e; implementar e fortalecer a redução de danos como
política pública. A ABORDA mobilizou redutores de danos e usuários de drogas para que
organizassem politicamente, fundando várias ONGs pelo Brasil (ABORDA, 2018; RIBEIRO,
2013; PASSOS & SOUSA, 2011).
O protagonismo da associação deu respaldo e fortaleceu a autonomia dos redutores de
danos, que não encontravam espaço de expressão nos PRDs. Estes, por serem aparelhos estatais,
encontravam-se num contexto institucional que colocava obstáculos à militância emergente dos
redutores e usuários de drogas. Essa militância forçou a criação de espaços de gestão exteriores
ao Estado, organizando o Movimento de Redução de Danos pelo país. Esses espaços foram de
suma importância para que os usuários e redutores se vissem respeitados e não mais vistos como
doentes ou criminosos (PASSOS & SOUSA, 2011).
O ano seguinte, 1998, foi marcante para o desenvolvimento da estratégia de RD no
Brasil. No mês de março ocorreu em São Paulo a IX Conferência Internacional de Redução de
Danos, que durante a abertura teve anunciada a sansão da Lei Estadual nº 9.758/97, sendo a
primeira lei no país que regulamentou a RD e autorizou a troca de seringas no estado. A partir
desta lei, a estratégia foi se legitimando e sendo aos poucos assumida como política pública,
levando ao surgimento de novas leis municipais e estaduais pelo país regulamentando as ações
de RD (RIBEIRO, 2013).
Ainda nesse ano foi criada, também com participação da ABORDA e outras ONGs, a
Rede Brasileira de Redução de Danos (REDUC), sendo uma organização de caráter nacional,
formada tanto por participantes de outras organizações, como por pessoas que participavam de
PRDs, sem articulação política. Eram redutores de danos, usuários de drogas, travestis,
profissionais de saúde, pessoas vivendo com HIV, estudantes, pesquisadores, entre outros. Eles
criaram uma gestão democrática e participativa, evitando que os programas ficassem isolados
em nível local. A consolidação dessa rede fez surgir um plano de formulação de políticas
articulando planos locais, estaduais e federal, envolvendo as minorias num ciclo relacional que
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envolvia trocas que ia muito além dos PTSs, tirando o foco específico da prevenção, dando a
RD contornos mais amplos (RIBEIRO, 2013; PASSOS & SOUSA, 2011).
Essa articulação política possibilitou a inserção da RD na Política de Atenção Integral
aos Usuários de álcool e outras drogas, em 2003. Nesta, como veremos mais adiante, ela se
amplifica. Além disso, em 2005, a Portaria do MS nº 1.059 regulamentou as “ações de redução
de danos sociais e à saúde”, sendo a RD, posteriormente, também incorporada à lei de drogas
de 2006.
No ano de 2013, havia no Brasil oficialmente registradas na receita federal duas
associações nacionais de redução/redutores de danos e 25 associações estaduais. Dos programas
registrados eram 267 PRDs ativos, atingindo um público aproximado de 146 mil usuários de
drogas injetáveis, o que corresponde a aproximadamente 18% desse universo, segundo
estimativas do Programa Nacional de HIV/AIDS (RIBEIRO, 2013).
Hoje, a Redução de Danos – em letra maiúscula, designando o movimento social,
conforme a ABORDA – vai para além das políticas de saúde e de segurança e se refere a um
movimento social amplo, que superou o paradigma sanitarista, sendo entendida como busca de
bem-estar social para todos, com ou sem o uso de drogas, inclusive as tidas como ilegais
(CAMPOS & SIQUEIRA, 2003). O próximo tópico abordará de forma abrangente a construção
da conceituação de RD.
Como vimos, ainda dentro de uma linha tecnicista, tendo como base o paradigma da
abstinência e a prevenção de doenças contagiosas por via sanguínea na década de 1980 e 1990,
a RD era tida especialmente em uma linha preventiva, que ainda permeia de forma importante
o discurso médico-psiquiátrico nos dias de hoje.
Carlini (2003), um importante representante dessa vertente, usando um modelo
americano, posicionou a RD nas três esferas de prevenção. Na primária, cabe prevenir o uso de
drogas antes que ele inicie. Na secundária, deve-se impedir a progressão desse uso, uma vez já
iniciado. E à terciária resta impedir piores consequências do uso contínuo.
Nesse olhar sobre o fenômeno das drogas, percebemos claramente a forma de operar
do poder médico em linha de proibição. De forma implícita nessas sentenças, podemos perceber
como o médico é o responsável pelo “quadro” da doença do paciente, restando ao usuário de
drogas a posição passiva de espectador.
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A redução de danos, portanto, pode ser entendida atualmente por, pelo menos, duas
vertentes diferentes: (a) a primeira, mais fidedigna aos conceitos primordiais de sua
criação, para reduzir danos de HIV e DST em usuários de drogas injetáveis e (b) a
segunda, cujo conceito mais abrangente inclui ações no campo da saúde pública
preventiva e de políticas públicas que visam a prevenir os danos antes que eles
ocorram. [...] A melhor forma de reduzir os danos de todas as drogas à sociedade é
estimular padrões de abstinência em todas as comunidades, famílias e indivíduos. Não
existe uso de drogas isento de riscos. Dados recentes mostraram que doses
relativamente baixas de álcool expõem adolescentes a maiores riscos de acidentes e a
outros problemas. As políticas de redução de danos, neste sentido mais amplo,
deveriam diminuir os danos sociais causados pelo uso de drogas.(DIAS, et al., 2003,
p. 342).
substâncias psicoativas. Nesse quesito, como veremos adiante, as políticas tentam ser o mais
abrangente possíveis, tentando mediar um diálogo com o paradigma tradicional, ainda
existente, mas tentando aos poucos trazer para a política de atenção psicossocial um modelo
melhor condizente com as necessidades dos usuários.
Dessa maneira, na visão de vários autores (NARDI & RIGONI, 2005; MOREIRA et
al., 2006; DELBOM et al., 2006; BARBOSA, 2011; FILHO et al., 2009; PASSOS & SOUSA,
2011; SODELLI, 2010; MACHADO & BOARINI, 2013; MORERA et al., 2015; SOUZA,
2013; CALASSA et al., 2015; RIBEIRO, 2013) a redução de danos é uma estratégia (entendida
de uma maneira ampliada) que visa reduzir os efeitos adversos do uso de substâncias
psicoativas, pautadas nos princípios dos direitos humanos e do pragmatismo, de baixa
exigência, entendendo que o sujeito tem a liberdade de escolher como se comportar em relação
às drogas, perante ao seu uso ou a abstinência delas. A RD entende que o fenômeno da
erradicação das drogas do mundo é irreal e incoerente com as necessidades humanas. É uma
alternativa aos modelos criminal e de doença. Estes que vêm travando uma guerra perdida
contra às drogas que gera, inclusive, mais agravos à população.
A RD não entende a abstinência como meta ideal de tratamento, pois há aqueles
usuários que não querem ou não conseguem parar o uso de drogas, todavia, reconhece a
abstinência como uma meta possível. É uma forma de trabalho em saúde centrada no usuário,
como protagonista do seu processo de cuidado e não de cura.
É uma estratégia norteada pelo princípio da dignidade humana e da cidadania, tento a
tolerância como chave para o processo de cuidado. Ao contrário do que se pode pensar, ela não
se resume à assistência às populações vulneráveis, embora muitos programas sejam dedicados
a esse público, mas ela compreende ações ampliadas de prevenção, educação e promoção nas
comunidades, escolas e sociedade, como um todo. Como nos modelos canadense e australiano,
ela deve ser também uma nova forma de educar sobre drogas. Diferente da preocupação
moralista e do modelo médico sobre o prejuízo que poderia acarretar o informe aos adolescentes
que não são usuários de drogas sobre elas, em uma perspectiva ampla, informar, educar e
esclarecer sobre o uso das mais diferentes substâncias (psicoativas ou não) é uma questão de
prevenção, promoção de saúde e empoderamento do sujeito, que no futuro fará as escolhas
adequadas para si sobre o uso de drogas.
Um dos objetivos da RD também é a reinserção social dos dependentes de drogas,
tentando minimizar o estigma vivido por essa população, que muitas vezes os impedem de
buscar tratamento. Esse estigma deve ser reduzido ao máximo dentro do serviço que acolhe o
52
danosas à saúde que decorrem do uso de drogas, sem necessariamente interferir na oferta ou no
consumo” (BRASIL, 2001, p. 11).
Embora no manual o foco da estratégia ainda estivesse no viés preventivo de
orientação dos profissionais para atuação nos programas, essa publicação foi importante para
abrir portas para a ampliação do conceito, trazendo reflexões importantes sobre direitos
humanos, advocacia e eficácia.
Na reflexão sobre os direitos humanos, a coordenação se posiciona de forma ética,
entendendo que o usuário de drogas ilícitas não é reconhecido como cidadão e propondo uma
inversão do que chamou de “ordem perversa”, em que a pessoa deve ser percebida como
cidadão antes de usuário de substâncias lícitas ou ilícitas por um princípio empático.
Reconhecendo a complexidade e sensibilidade da questão drogas-AIDS, a
coordenação ainda propõe uma advocacia da RD, isto é, uma intensa ação de promoção e defesa
de ideias e estratégias, que se torna relevante pela necessidade de uma consciência do problema
que supere preconceitos, para a legitimação das ações de RD.
Essa advocacia era justificada pela informação epidemiológica e o caráter estratégico
da RD no controle da infecção do HIV nos UDIs; pelas questões de direitos humanos
envolvidas; a demonstração dos resultados positivos na redução de riscos entre as populações
de UDIs e suas redes de socialização (tanto no campo internacional, como no nacional); as
relações custo/benefício das ações de RD, tendo redução dos gastos com assistência médico-
hospitalar e farmacêutica devido à prevenção dos casos de AIDS e hepatites; e a baixa eficácia
da tecnologia disponível para tratamento da dependência química.
Sobre esta última, a coordenação reconhece fortemente em seu argumento que, apesar
da variedade ampla de modalidades e técnicas de tratamento, não existe nenhuma de
comprovada alta eficácia (no sentido da meta da abstinência). Ao contrário, o trabalho com
dependência de drogas é caracterizado por uma baixa taxa de bom prognóstico, mesmo em bons
serviços e em pessoas que queiram parar o uso de drogas (BRASIL, 2001).
Com esse novo posicionamento do governo para além dos PRDs, foi-se criando o solo
para a inclusão da RD nas políticas públicas, sendo outro marco importante a inclusão da Lei
10.216, de 06 de abril de 2001, referência legal da Reforma Psiquiátrica, que veda o tratamento
em saúde mental em instituições com características asilares e que prioriza o tratamento dentro
da comunidade, fortalecendo os atendimentos nos CAPSs e na rede de saúde mental, tendo
como princípio a cidadania do usuário dos serviços de saúde mental.
54
porque reconhece cada usuário em suas singularidades, traça com ele estratégias que
estão volta das não para a abstinência como objetivo a ser alcançado, mas para a defesa
de sua vida. Vemos aqui que a redução de danos se oferece como um método (no
sentido de methodos, caminho) e, portanto, não excludente de outros. Mas, vemos
também que o método está vinculado à direção do tratamento e, aqui, tratar significa
aumentar o grau de liberdade, de co-responsabilidade daquele que está se tratando.
Implica, por outro lado, o estabelecimento de vínculo com os profissionais, que
também passam a ser co-responsá veis pelos caminhos a serem construídos pela vida
daquele usuário, pelas muitas vidas que a ele se ligam e pelas que nele se expressam
(BRASIL, 2004a, p. 10).
colocam essa substância como a mais prejudicial para a saúde das pessoas, sendo a mais custosa
para a saúde pública que todas as outras drogas em conjunto.
Além disso, discute a dificuldade do tratamento da dependência do álcool por parte
dos profissionais no quesito acolhimento e por não compreender fenomenologicamente as
questões desse cuidado, havendo uma crença compartilhada de não recuperação do paciente,
além do despreparo para perceber os sinais e sintomas de abuso e dependência, por falta de
competência e desresponsabilização, evidenciando, segundo o MS, estigma, exclusão e
preconceito (BRASIL, 2004a).
Pela especificidade do álcool, inclusive na sua licitude e, pela amplitude dos agravos
causados pelo seu consumo, a partir da parceria de várias instâncias do governo desde a saúde
à segurança, foi instituída a Política Nacional Sobre o Álcool, por meio o decreto presidencial
nº 6.117, de 22 de maio de 2007. Nele, a lógica ampliada do conceito de RD também foi inserida
como referencial para ações políticas, educativas, terapêuticas e preventivas em relação ao uso
do álcool, compreendendo-a na área da saúde como um conjunto estratégico de medidas de
saúde pública para minimizar os riscos à saúde e à vida, decorrentes do uso do álcool (BRASIL,
2010b).
O mesmo aconteceu mais recentemente com o crack, que foi colocado em caixa alta
dentro dos textos das políticas, pois foi visto como uma “epidemia” em 2011, retornando ao
lema da guerra às drogas no programa “Crack, é possível vencer” (PASSOS & SOUZA, 2011).
Embora este lema remonte à lógica proibicionista, as populações vulneráveis, em
grande parte os usuários de crack, são os principais alvos das ações de RD dentro dos PRD s.
Segundo a compreensão das políticas, esse quadro precisava ser ampliado.
Numa tentativa de elucidação das ações de RD, as quais ainda eram nebulosas para os
profissionais e instituições no quesito operacional, foi publicada pelo Ministério da Saúde a
portaria nº 1.028 de 1º de julho de 2005, regulando as ações de redução de danos sociais e à
saúde, explicitando os tipos de intervenções que deveriam ser promovidas e executadas,
inclusive dentro de instituições de caráter total, como o sistema penitenciário, cadeias públicas,
estabelecimentos educacionais destinados à internação de adolescentes, hospitais psiquiátricos,
abrigos e quaisquer instituições que privem as pessoas da liberdade.
Em 23 de dezembro de 2011, a portaria nº 3.088 criou a Rede de Atenção Psicossocial
para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de
crack, álcool e outras drogas no âmbito do SUS, que fortaleceu o potencial estratégico da RD
articulando-a com as outras estratégias e serviços da rede de atenção psicossocial, levando a
57
uma coexistência e uma relação dialógica com os serviços de acolhimento com características
asilares (de longa internação), como é o caso das CTs, que passaram a fazer parte da rede.
A pressão política que a ótica da RD exerceu no início dos anos 2000, especialmente
com a política do MS de 2003, impulsionou a reformulações gerais nas políticas sobre drogas
e na legislação sobre o assunto no Brasil.
Com isso, a Política Nacional sobre Drogas (PNAD) foi aprovada pela resolução nº 03
GSIPR/CH/CONAD, em 27 de outubro de 2005. Ela norteava todas as políticas públicas e ações
em torno da questão das drogas no Brasil, sendo base da construção da “Lei de drogas”, Lei
11.343, sancionada em 2006.
A sua construção deu-se a partir do diálogo entre o Estado e sociedade, para o
realinhamento da política até então vigente, de 2001. Foram três momentos de discussão: um
internacional, seis regionais e um nacional.
O primeiro foi o Seminário Internacional de Políticas Públicas sobre Drogas, que
promoveu o debate e o intercâmbio de experiências entre sete países com modelos diferentes
sobre o tema, a saber: Canadá, Itália, Países Baixos, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça. Do
evento participaram ONGs, comunidade científica, autoridades brasileiras e formadores de
opinião.
O segundo e terceiro momento foram fóruns realizados nas cinco regiões em parceria
entre a então Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) e os Conselhos Estaduais de
Entorpecentes/Antidrogas, para depois ser consolidada a política nacional no Fórum Nacional
Sobre Drogas (BRASIL, 2010b).
Nesses eventos, os capítulos da PNAD foram construídos coletivamente, sendo nesse
momento, no capítulo 4, nomeado “Redução de Danos Sociais e à Saúde”, que a RD ganhou
notoriedade, não mais apenas no campo da saúde, mas em todas as áreas das políticas públicas
sobre drogas.
A política entendia a RD de uma forma bastante ampla, tendo em sua primeira diretriz
do capítulo supracitado o seguinte: “reconhecer a estratégia de redução de danos, amparada
pelo artigo 196 da Constituição Federal, como medida de intervenção preventiva, assistencial,
de promoção da saúde e dos direitos humanos” (BRASIL, 2010b, p. 19). Tem ainda como
diretrizes a implementação, divulgação e acompanhamento das diversas estratégias, em
consonância com as políticas públicas de saúde, bem como prevê a capacitação dos
profissionais para atuação nas atividades de RD. Segundo o texto, a multiplicação das
atividades da estratégia deve ser estimulada e a RD deve ser incluída como abordagem de
58
promoção e prevenção da saúde no ensino formal nos níveis fundamental, médio e superior
(BRASIL, 2010b).
Apesar dessa legitimação, o texto da política mantinha a RD lado a lado com as
estratégias de redução da oferta e de demanda, permanecendo as tensões ideológicas do cuidado
em saúde. No capítulo “Tratamento, recuperação e reinserção social”, é de entendimento da
política a promoção da articulação e integração entre SUS e SUAS por meio da rede nacional
de intervenções para tratamento, recuperação, redução de danos, reinserção social e
ocupacional, formada por “Unidade Básica de Saúde, ambulatórios, Centro de Atenção
Psicossocial, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, comunidades terapêuticas,
grupos de autoajuda e ajuda mútua, hospitais gerais e psiquiátricos, hospital-dia, serviços de
emergências, corpo de bombeiros, clínicas especializadas, casas de apoio e convivência e
moradias assistidas” (BRASIL, 2010b, p. 18).
Nota-se a diversidade de modelos de tratamento adotados. A política traz ainda em
seus objetivos “Avaliar e acompanhar sistematicamente os diferentes tratamentos e iniciativas
terapêuticas, fundamentados em diversos modelos, com a finalidade de promover aqueles que
obtiverem resultados favoráveis” (BRASIL, 2010b, p. 15). Ou seja, em 2005, o governo propôs
promover os modelos com bons resultados. Podemos pensar que esses resultados positivos
podem resultar de uma maior, ou mais eficiente, articulação política.
Fica evidenciado na descrição da rede que o governo entende as diversas abordagens
de olhar o fenômeno da droga como complementares e, dessa maneira, pensamos que no dia-a-
dia de trabalho elas devem conversar de forma dialética.
A Lei 11.343/2006 confirma a aparente contradição que viemos discutindo até então.
Ao mesmo tempo em que coloca como um princípio os direitos fundamentais da pessoa
humana, especialmente em sua autonomia e liberdade, reconhecendo o fenômeno do uso
recreativo e indevido de substâncias psicoativas, mantém o porte para consumo como crime,
ainda que sob penas “brandas”, que não mais preveem encarceramento dos usuários. Entretanto,
as penas para tráfico e crimes associados à produção e ao comércio de drogas ilegais passam a
ser mais rigorosas, tendo o cárcere como medida privilegiada.
Percebemos que, mesmo com o deslocamento da lógica criminal para a de doença no
cuidado em saúde do usuário de drogas, esta noção criminalizante continua perpassando os
dispositivos jurídicos e coexistindo com um olhar tolerante sobre o fenômeno da droga.
59
O primeiro CAPS foi inaugurado em São Paulo, em 1986. A criação desse e de tantos
outros posteriormente foi resultado de um intenso movimento social, iniciado pelos
trabalhadores da saúde insatisfeitos com o único método de tratar os transtornos mentais à
época: o hospital psiquiátrico. Os CAPSs, tanto quanto os NAPSs – Núcleos de Atenção
Psicossocial – foram criados oficialmente pela Portaria GM 224, de 1992, sendo definidos como
“unidades de saúde locais/regionalizadas que contam com uma população adscrita definida pelo
nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial
e a internação hospitalar, em um ou dois turnos de quatro horas, por equipe multiprofissional”
(BRASIL, 2004b, p. 12).
Aos poucos os CAPSs foram se configurando como principal dispositivo dos serviços
substitutivos do cuidado em saúde mental, a partir dos princípios da Reforma Psiquiátrica,
legitimados pela lei de 2001. Nele, a assistência dentro da comunidade, em um projeto
terapêutico singular (PTS) e em coparticipação no tratamento são as diretrizes, respeitando os
direitos dos seus usuários como cidadãos.
Vários serviços substitutivos em saúde mental foram sendo criados, bem como as
modalidades dos CAPSs. O CAPS AD surge em 2002, seguindo os princípios do geral,
respeitando as especificidades dos usuários de álcool e outras drogas, tendo, por exemplo, um
leito destinado à desintoxicação. Segundo o manual do MS, Saúde Mental no Sus: os Centros
de Atenção Psicossocial, a lógica de planejamento que deve ser empregada no CAPS AD é a
da RD, devendo o equipamento ter articulação consistente com um hospital geral da sua região
para eventuais necessidades (BRASIL, 2004b).
Chama bastante atenção o número inexpressivo que encontramos em nossa revisão
sobre pesquisas que relacionavam a RD ao CAPS AD. Com isso, em um segundo momento,
usamos na plataforma utilizada os descritores nas combinações “redução de danos” e “centro
de atenção psicossocial”, “redução de danos” e “caps ad”, “redução de danos” e “centro de
atenção psicossocial álcool e drogas”, mas encontramos apenas os mesmos documentos
anteriores.
Apesar de estarem em pequeno número, essas pesquisas nos instigaram por sugerirem
uma fragilidade da RD dentro dos CAPS AD. Dos seis documentos que encontramos na base
de dados, quatro eram pesquisas de campo em CAPS AD. Um deles é um estudo quanti-
qualitativo sobre a avaliação da disponibilização de “kits de redução” de danos aos usuários de
62
Este capítulo tem função elucidativa à problematização que viemos construindo até
aqui. É evidente que existem tensões políticas e ideológicas (paradigmáticas para alguns
autores) na atenção aos usuários de álcool e outras drogas que dialogam, ou deveriam dialogar,
dialeticamente no cotidiano dos serviços.
Machado & Boarini (2013) colocam que embora haja legitimação da RD dentro das
políticas sobre drogas, o fenômeno do consumo dessas substâncias ainda suscita muita
discussão na comunidade acadêmica, na saúde, na segurança pública, nos meios de
comunicação e na sociedade em geral. No debate científico essa legitimidade estaria dividida
em três vertentes: a recusa da validade da estratégia no âmbito da prevenção sob a suspeita de
não cientificidade; a aceitação parcial e a sua aceitação.
O primeiro argumento, segundo as autoras, é moral, visto que há dados do MS e de
outras partes do mundo sobre a validade da estratégia. O segundo, está pautado especialmente
no conceito de “risco”, aceitando o uso da estratégia na prevenção da AIDS em UDIs, nos
PTSEs, mas ainda tendo a abstinência como meta. A terceira é a aceitação da RD em sua forma
ampliada.
Esses pontos de vistas diversos dificultam a consolidação da RD, a disseminação de
seus princípios e sua aplicação na saúde pública, especialmente porque se vem presenciando
um intenso direcionamento do dinheiro público para financiamento de CTs, contrapondo
decisões da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, pondo em risco os direitos dos usuários
64
Quadro 1: Sistematização das normativas sobre drogas na legislação brasileira de 2000 a 2016.
Esse quadro proposto pelos autores nos dá uma visão geral de como o alicerce da
assistência ao uso de drogas foi organizado nesse novo século.
67
Além disso, os autores apontam que se deve ter em mente que a implantação das
intervenções em RD é um processo gradual, que deve respeitar as diferenças das pessoas
envolvidas e dos serviços.
A nossa intenção nessa investigação é sobretudo ter uma noção, dentro de uma esfera
macro, em que momento o município encontra-se nesse processo, partindo da compreensão em
uma esfera micro da RD no serviço escolhido, levando em consideração a especificidade dos
operadores da estratégia nesse espaço.
6 METODOLOGIA
experiência contada, traz consigo a base da própria experiência, que é sua historicidade interna
(GADAMER, 1997). Para o pensar hermenêutico, a vida humana é histórica e não há outra
forma de se ver o fenômeno que não pela história por detrás do texto, a história por detrás do
conceito, sobre a qual Gadamer discutiu adotando a categoria preconceito. Essa ideia, que foi
mal interpretada em uma conotação negativa como se significasse “falso juízo”, diz respeito a
um julgamento que já existia antes da experiência, em uma espécie de estrutura pré-existente à
compreensão, ou seja, uma história viva que possibilita a compreensão. Essa história
necessariamente está marcada por um tempo e uma cultura.
Lawn (2007), um notável comentador de Gadamer, fala d essa possibilidade do termo
carregar tanto uma conotação positiva, quanto uma negativa. Segundo ele, a tradição iluminista,
da qual as sociedades ocidentais em muito devem, enfatizou a visão negativa em detrimento da
positiva. Contudo, a noção refere-se à necessidade de uma estrutura prévia de entendimento
para que ocorra a compreensão. Esta, vale-se intimamente da noção de experiência.
Tanto para os teóricos que trabalham com a hermenêutica como para aqueles que
trabalham as narrativas na pesquisa qualitativa, a noção de experiência ganha destaque. Esta,
tal como afirma Gadamer (1997), é um processo vital e histórico na peculiar fusão da
recordação e expectativa, num todo que se chama experiência. Assim, ele critica, como antes
citamos, a noção empirista de que os fatos são extraídos da experiência. Antes, essa é
constituída por meio dessa fusão, que podemos chamar de fusão de horizontes.
Esse conceito parte da ideia de “horizonte”, entendida como uma perspectiva sobre o
mundo. Parte dela é adquirida pela linguagem, tendo um horizonte linguístico básico, que está
em constante movimento, não sendo fixo. Ela é, então, uma inspiração. É ao mesmo tempo
revelação e limitação, pois essa fusão entre a perspectiva acomodada e a nova (o novo
horizonte) acontece a cada novo entendimento, sendo a compreensão sempre parcial, limitada
aquela fusão momentânea. Esta liga o presente ao passado (LAWN, 2007).
Gadamer toma emprestada a noção heideggeriana de “círculo hermenêutico” para falar
sobre como a interpretação ocorre. É uma “arte de interpretar”, é um movimento circular
dialógico do sistema, que tem suas partes em conexão com o todo. O movimento da
compreensão é, assim, do todo à parte e desta ao todo.
A metáfora usada por Lawn (2007), ilustra poeticamente este movimento:
8 O CAPS AD escolhido não será identificado nessa pesquisa por questões ético-políticas.
73
pelo atendimento das regionais ímpares e o segundo, das pares), 5 Unidades de Acolhimento
(UAs) e 2 Serviços de Residência Terapêutica (SRTs) (FORTALEZA, 2017), além dos outros
equipamentos da rede de saúde, que também fazem parte da RAPS, conforme a ilustração a
seguir:
9 Quando as sentenças aparecerem em primeira pessoa, trata -se de experiência pessoal da pesquisadora
principal.
74
alguns dos documentos encontrados da esfera estadual foram provenientes de uma busca por
informações no Portal da Transparência do Estado.
O uso da investigação de documentos pode ser útil nas Ciências Humanas na medida
em que possibilita ampliar o entendimento de objetos cuja compreensão necessita de uma
contextualização histórica e sociocultural, acrescentando a dimensão do tempo à compreensão
do social (SÁ-SILVA et al. 2009). Na intenção de uma construção temporal da RD nas políticas
públicas e, buscando compreender as especificidades regionais e locais, procuramos
documentos oficiais em nível estadual, municipal e local.
Essa busca documental foi posta como parte da investigação e não como parte da nossa
fundamentação teórica inicial, como fizemos com as políticas federais, pelo fato, já
mencionado, da fragilidade da organização do setor de Saúde Mental em Fortaleza.
O critério de seleção dos documentos partiu da referência histórica do capítulo que
falava sobre a história da RD no Brasil. O Ceará foi um dos dez estados contemplados com o
PRD em 1994/1995 no “Projeto Drogas”. Com isso, esse foi o ponto de referência dos
documentos que buscamos, sendo a margem temporal dos documentos de 1994 a 2019 em nível
local, municipal e estadual.
Além do critério temporal, criamos um roteiro de orientação (apêndice A) para a busca
dos documentos, com base nas normativas federais. Desse roteiro, conseguimos poucos
documentos, confirmando a fragilidade da gestão nessas três esferas. Visitamos a Secretaria
Especial de Políticas Sobre Drogas do estado (SPD-CE), a Coordenadoria de Políticas Sobre
Drogas (CPDrogas) do município, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), na Célula de Saúde
Mental, que é um dos órgãos reguladores dos CAPSs na cidade, e a Área Técnica de ISTs/AIDS,
além de ter tentado acesso ao plano de trabalho do CAPS AD, cenário da pesquisa, sem sucesso.
A busca precisou ser interrompida, especialmente, pela morosidade dos órgãos para dar algum
retorno às solicitações da pesquisa. Não conseguimos acesso à Secretaria Estadual de Saúde
(SESA), pois o período de transição do governo dificultou os contatos com os responsáveis.
Tivemos acesso aos planos municipais de saúde do início dos anos 2000 até o ano de
2019, mas nenhum dos documentos citava qualquer aspecto direto sobre a assistência à saúde
aos usuários de álcool e outras drogas. Acessamos alguns outros documentos de gestão, que
tinham cunho operacional ou financeiro e foram descartados da nossa análise. Em todos os
órgãos nos foi informado que eram seguidas as normativas federais para a condução da
assistência. Tivemos, ainda, acesso a um relatório de gestão do CAPS AD em questão, sendo o
único da esfera local. Os documentos que foram analisados traziam poucas referências sobre a
77
assistência aos usuários de drogas, e nada sobre a RD, sendo pouco utilizados nas nossas
discussões e análises, sendo, sobretudo, citados nas suas lacunas.
A entrevista, por sua vez, foi a principal técnica utilizada na investigação, que deu
vazão às narrativas dos sujeitos, tornando o estudo extremamente potente.
A entrevista, segundo Reste (2015), é literalmente uma entre – vista, uma troca de
pontos de vista entre duas pessoas que conversam sobre um tema de mútuo interesse. É uma
“conversação estruturada”, cuja força reside na apreensão da multiplicidade dos pontos de vista
dos sujeitos sobre um tema, de modo a construir uma imagem da diversidade e controvérsia do
mundo humano.
Em uma entrevista não se coleta informações. Constrói-se dialogicamente sentidos e
significados novos. O entrevistador, assim, tem um papel ativo no processo, sendo sua postura
fundamental para o discurso que ali será construído.
Esse entre-ver possibilitou a construção das nossas análises, existindo momentos que
as entrevistas viravam conversas, tendo, inclusive, um tom confessional. O fato de a
entrevistadora estar presente em quase todos os dias por dois meses no cotidiano do serviço
facilitou o processo da entrevista, na qual os atores estiveram, na maioria das vezes, muito à
vontade, especialmente aqueles últimos a serem entrevistados, que já estavam acostumados
com a presença da pesquisadora, enriquecendo o processo.
Optamos pelo uso da entrevista semiestruturada, organizadas em sessões. Cada uma
delas tinham ementas gerais para conduzir o diálogo. Mesmo assim, deixava-o aberto para a
narrativa dos profissionais ganhar corpo na sua própria condução. Essas ementas foram cruciais
para as informações obtidas, dando à pesquisa contornos mais amplos em relação os objetivos
inicialmente pretendidos. Mesmo que essa organização convidasse ao diálogo mais aberto, ela
tinha o objetivo de focalizar questões centrais para a pesquisa: as normativas relacionadas à
RD, o entendimento do conceito pelos profissionais e como eles percebiam a estratégia dentro
das práticas. Além disso, algumas das perguntas foram voltadas para a compreensão do
posicionamento dos profissionais acerca da RD, uma vez que entendemos que além da
apreensão das concepções e como se dá a aplicação desses conhecimentos na prática, a
dimensão do julgamento de valor que eles apresentavam diante da estratégia e do fenômeno
global do uso de substâncias psicoativas poderiam exercer influências diretas no cotidiano de
trabalho dentro do CAPS AD. Com isso, foi criado um bloco de perguntas iniciais, que
chamamos de “aquecimento”. Ele buscava o entendimento do fenômeno de uso de drogas em
geral, procurando compreender o olhar que os profissionais tinham sobre o usuário de drogas,
78
é uma técnica que faz uso dos sentidos para a apreensão d e determinados aspectos da
realidade. Ela consiste em ver, ouvir e examinar os fatos, os fenômenos que se
pretende investigar. A técnica da observação desempenha importante papel no
contexto da descoberta e obriga o investigador a ter um contato mais próximo com o
objeto de estudo. (GEHARDT & SILVEIRA, 2009, p. 74).
Esse olhar do fenômeno não se propõe de forma alguma a uma neutralidade. Dentro
de um serviço de saúde, por mais que se tenha um roteiro, a observação tem características
dialógicas, pois não há como se pensar uma observação que não afete o cotidiano das práticas
tanto em relação aos profissionais quanto aos usuários.
Optamos por uma modalidade de observação com o uso de um roteiro sistemático
(apêndice D), que pode ser chamada de observação dirigida, conforme assinala Minayo (2008),
79
sendo aquela que aponta alguns aspectos a serem observados tendo em vista os temas que
configuram o objeto e a partir de elementos exploratórios da realidade empírica. O nosso
roteiro, dessa maneira, era relativamente aberto, sendo apenas orientador, no sentido em que
focava especialmente nas práticas e atividades do serviço, na conduta dos profissionais, bem
como na relação destes com os usuários dos serviços e a rede. O uso do diário de campo também
foi importante ferramenta para as observações. Aspectos não contemplados no roteiro, bem
como relacionados a espaço físico e ambiência, os sentimentos e percepções da pesquisadora
foram relatados nesse instrumento, sendo muito utilizado nas análises. Nele, foi relatado o
desenrolar da pesquisa e as mudanças que surgiram no processo. O uso do roteiro aliado ao uso
do diário tornou a observação mais rica e ampla, abrindo as análises para as situações
inesperadas que o campo trouxe.
Essas três técnicas combinadas culminaram nos resultados do estudo. As informações
fornecidas pelos entrevistados foram transcritas, lidas repetidas vezes e organizadas em blocos
temáticos, que passaram por dois processos: um mais amplo e outro mais minucioso, onde os
temas foram afunilados e de onde emergiram núcleos de sentido. O mesmo aconteceu com as
informações do diário de campo, onde também eram registrados os aspectos do roteiro de
observação. Este serviu de base para organização do material do diário, mas as situações
ocorridas no campo também trouxeram outras categorias empíricas. Uma categorização menor
também ocorreu com as informações retiradas dos documentos. Entretanto, como a maioria
deles foi excluída da nossa pesquisa, pouco material foi utilizado nas análises.
Estas últimas foram realizadas de forma ampla e não se limitaram a categorias
empíricas. Em vez disso, organizamos nossos resultados em grandes temáticas que emergiram
das narrativas dos sujeitos e dos nossos insights. Os próximos capítulos representam esses
motivos, que mostram o diálogo entre a literatura, as narrativas e as nossas percepções.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da UFC, pelo parecer do CONEP de nº
2.899.226, CAAE nº 95368618.4.0000.5054, por meio da Plataforma Brasil.
Além da aprovação no comitê, por se tratar de pesquisa qualitativa em um serviço de
saúde, que tangencia o campo da avaliação em saúde, foram adotados inúmeros cuidados éticos
no que tange às identidades e às falas dos participantes da pesquisa. Nomes fictícios foram
adotados para dar ludicidade maior ao texto, que dessa maneira perde a dureza de um texto
80
técnico e ganha contornos literários. As alcunhas foram escolhidas pelos próprios participantes
ou pela pesquisadora principal, quando os entrevistados preferiam não escolher codinomes. As
identificações são acompanhadas dos códigos “PS” (Profissional de saúde) e “G” (Gestora).
Existem sessões do relatório em que os entrevistados terão os nomes fictícios suprimidos, sendo
referidos apenas pelos códigos, por citarem aspectos inerentes às suas profissões. No capítulo
sobre o Grupo de Redução de Danos – grupo do serviço extremamente pertinente para a
pesquisa e que passou a ser observado sistematicamente ao longo do estudo – os profissionais
que facilitavam os encontros serão identificados apenas como “facilitadores”. Além disso, um
personagem que apareceu constantemente nas diversas falas dos profissionais como referência
em RD será referido apenas como “Psiquiatra Referência”, também por questões éticas.
Assim como foram protegidas as identidades de todos os envolvidos, foi também
preservada a identidade do território onde ocorreu a pesquisa, tendo nomes de ruas, bairros,
praças e equipamentos comunitários suprimidos, observando todo o cuidado ético que tivemos
com a investigação.
O trabalho de campo foi riquíssimo e complexo. Além dos diálogos com os atores
envolvidos, foi uma imersão profunda no cotidiano das práticas do CAPS AD. Assim, parece-
nos que a melhor forma de expor essa complexidade é como fazemos quando queremos explicar
algo de difícil compreensão às crianças: contamos uma estória e, por vezes, reproduzimos
algumas falas dos personagens para que elas tenham melhor compreensão do enredo.
Construiremos, então, a partir deste capítulo, uma narrativa contando a experiência de
aprender sobre o que é a redução de danos neste CAPS AD em suas várias dimensões, nas quais
dialogam aspectos da gestão, de concepções e práticas pela visão dos profissionais de saúde e
gestores, pela minha própria visão (de pesquisadora de campo) e pelos documentos de gestão
que conseguimos ter acesso.
Conforme assinalamos na construção do nosso problema, a RD perpassa inúmeros
preconceitos – no sentido do pré-julgamento que antes discutimos – sobre o fenômeno do uso
de drogas, o que pode dificultar ou facilitar a inserção da estratégia de RD nas práticas pela
forma como os profissionais se posicionam diante dela.
81
A maioria dos atores contou que antes do trabalho neste CAPS AD, jamais havia
atuado em um equipamento similar e que a inserção no serviço e o tempo de trabalho fez com
que suas visões acerca do uso de drogas mudasse, o que afetava o entendimento das práticas e,
consequentemente, do trabalho junto aos usuários.
Buscando apreender um pouco do posicionamento dos entrevistados em relação a RD,
partimos do questionamento sobre o uso de substâncias psicoativas em si, como forma de abrir
a discussão sobre RD. O entendimento do fenômeno de uso das drogas emergiu em inúmeras
perspectivas entre esses atores, sobressaindo questões psicológicas e sociais. Para eles, em uma
primeira dimensão as pessoas usam substâncias psicoativas por uma fragilidade psíquica ou
social: por vínculos familiares frágeis, como uma forma de aliviar as angústias e os problemas,
como sintoma de algum outro problema psicológico, o contexto de vida, a frustração, como
uma válvula de escape dos problemas socias e subjetivos, para lidar com fatores
socioeconômicos, como uma forma de aliviar a vida difícil que levam e por meio da inserção
no mercado do tráfico. Seguem algumas narrativas deles neste sentido:
Antes de eu entrar no... na minha prática aqui nesse serviço, eu não fazia ideia do
tamanho que era esse fenômeno, essa gravidade, a quantidade de pessoas que estão
hoje em uso e isso é... esse serviço só é uma amostra do que a gente tem aí a nível
nacional, né? Mas, inclusive eu tava em discussão sobre isso recentemente com uma
outra pessoa, né? Do “bum” que tá sendo o uso de substâncias e qual seria o gatilho
disso. E atual... assim, atualmente eu tenho pensado bastante que uma das causas
principais, a meu ponto de vista, é... relações familia res, eu acho que é a ausência de
vínculos. E quando eu digo família, não só a congênita, geneticamente,
biologicamente, mas sim família desde aquele que eu escolho pra tá e considero como
família, meu vizinho, meu amigo, seja casais homo, casais hetero, é... eu acho que a
quebra das relações familiares tá sendo a causa desse fenômeno, a falta de respeito, a
falta de compreensão, a falta de afeto, a falta de privacidade, às vezes, de acolhimento
e aí... é... de preparo até mesmo pra pessoas jovens, muito jov ens que vão se tornar
pais, já não têm... já vem de trás, de uma dificuldade... a família já vem desestruturada
de antes, então no meu olhar o fenômeno se deve ao rompimento, à fragilidade dos
vínculos familiares (MARIE, PS).
Eu acho que é algo muito ligado à s própria s realidades sociais também, que a gente tá
vivendo hoje. Muito ligado mesmo à perspectiva, às condições socias, ao baixo índice
de educação, de direitos mínimos, né? Que a população vai encontrando, de alguma
forma e também com outros fatores mais subjetivos. Além do social, outros mais
subjetivos, que muitas vezes vai sendo mesmo uma válvula de escape, uma busca pra
tentar lidar com algumas questões mesmo mais subjetiva da pessoa, interiores, enfim,
é um pouco de como eu vou percebendo (MARIA, PS).
82
Nessa dimensão aparece em paralelo a noção de doença. Para alguns, o uso de drogas
é uma doença que necessita de tratamento, especialmente no contexto do CAPS AD. Surge na
narrativa de uma profissional como um atual problema de saúde pública pelo aumento da
quantidade de pessoas usuárias e consequentemente de políticas públicas voltada para esse
público:
Eu enxergo que assim, é... droga , né? Isso já existiu há muitos... desde os primórdios.
Os ancestrais, né? Mas com a evolução de novas drogas, co m a descoberta de novas
drogas, pessoas, que tão assim, encontrando meios, uma forma de na droga é... colocar
ali toda a sua angústia, os seus problemas, achando que a droga vai aliviar aqu ele seu
problema, entendeu? Então, eu acho que, assim, que vem aumentando muito e assim,
isso é dados, né? Não é eu que tô dizendo, é dados, que vem aumentando muito e é
hoje um problema de saúde pública, né? [...] A gente vê muito a política . Antigamente
era uma, o crescimento dessa política, né? E esse crescimento se deu por quê? Por
conta do aumento. Né? Dos casos, de pessoas, da cracolândia, né? De pessoas que
vivem na rua. Essas coisas todas (ROSA, PS).
Olha pelo, pelo pouco tempo que eu estou aqui [...] é que é como se eu tivesse
enxugando gelo, porque essa, essa luta contra a droga você... é um conjunto de coisas.
Não pode ser uma pessoa, duas pessoas, três pessoas fazendo isso. Precisa uma ação
de governo realmente que funcione, não uma brincadeira, você maquiar uma coisa e
dizer nós vamos tratar o usuário agora e não são mais vagabundos. Eles não são mais
criminosos, eles agora são usuários. Que até a pouco tempo eram considerados como
criminosos, né? Esse negócio todo. Então, pra você chegar a... a tra tar esses
indivíduos, esses usuários de drogas, você tem que... você tem que estar na prática do
dia-a-dia e você sentir realmente que se o governo tem vontade de fazer isso ou é só
uma resposta à sociedade (TIAGO, PS).
83
Tiago, quando perguntado sobre como ele entendia o uso dessas substâncias trouxe
muitas críticas, que passam por questões de políticas de governo. Ele trouxe uma reflexão
importante: antes eles eram vagabundos, criminosos, agora são usuários. Além disso, ao falar
da “luta contra a droga” traz consigo a visão da proibição que ainda perpassa o cotidiano dos
serviços no imaginário dos profissionais, mesmo que “agora” se tenha um outro ponto de vista,
orientado pela política. Evidenciou, ainda, um momento de transição, – ou possivelmente de
transição – que viemos discutindo, da passagem de um olhar proibicionista para um da lógica
da RD. Voltaremos a essas reflexões, que estarão transversais à toda nossa discussão.
Em outra dimensão, o uso substâncias psicoativas apareceu como uma escolha e uma
forma de conseguir prazer. Os profissionais também o entendiam como algo comum na nossa
sociedade, uma opção das pessoas, uma busca pelo prazer e por novas sensações, por
curiosidade. Alguns entrevistados colocaram que as pessoas começam no uso recreativo e
apenas alguns vão ter o uso problemático ou dependente e vão necessitar de cuidados. As
seguintes narrativas ilustram isso:
Nunca parei pra pensar nisso, mas assim, pensando rapidamente aqui, porque eu acho
que as pessoas procuram um, um... algo que lhe dê, algo que lhe dê prazer, né? Acho
que a maioria... acho não, tenho certeza que a ma ioria inicia por uma curiosidade, por
experimentar uma sensação diferente, um prazer e acabam se tornando, a maioria...
alguns, se tornando dependentes. Então acho que é isso, é a busca de prazer, de
sensações, acho que é isso que leva elas fazerem isso. Esquecer problemas, desilusões
que tiveram na vida e não têm a quem recorrer, recorrem as drogas (AMORA, PS).
Assim, hoje eu enxergo diferente. Antes eu tinha uma visão muito proibicionista das
coisas, de como que era. Hoje eu enxergo como uma opção de cada pessoa, quem quer
fazer uso, quem faz uso, às vezes antes de ser dependente, às vezes começa em uso
recreativo e eu vejo como algo comum, mas que precisa ser cuidado porque traz danos
à saúde, né? Dependendo da substância, dependendo de como ela é usada ou de outras
patologias, de outras comorbidades associadas ao uso, ela pode trazer muitos
malefícios. Entã o eu vejo como algo comum, mas que precisa de um olhar da saúde
pra ter esses cuidados. (ANA, PS).
Bem, eu entendo que o uso de substâncias, seja ela qual for, né, tem a ver com muito...
tem assim, a ver com muitas influências. Existem várias influências que fazem as
pessoas usarem. É... e eu sempre procuro fugir daquele pensamento preconceituoso
de que as pessoas usam porque querem. Somente isso. E isso é uma coisa que eu já
aprendi. Que antes de eu trabalhar, por exemplo, com esse público, álcool e droga s,
eu tinha o pensamento do senso comum, que as pessoas usam porque querem, porque
são malandras ou vagabundas e que existe os serviços e elas não querem se tratar, no
caso as que não conseguem, né? Eu tinha esse pensamento. E tinha preconceito
mesmo, de não querer estar por perto, de não querer conversa e, a partir do momento
que eu comecei a trabalhar com esse público [...] eu comecei a compreender que não
é bem assim, né? Que as pessoas, elas têm, as pessoas fazem uso de alguma
substância, elas têm, é... (4 segundos de pausa) ou elas não têm, né? Não existe
necessariamente a questão do desvio de caráter. Que era uma das coisas que passava
pela minha cabeça, né? Não acontece necessariamente dessa forma e que, entre todas,
tem um contexto por trás disso tudo. Contexto de vida de dificuldade, de privação,
frustração, enfim, né? Coisas que fazem com que as pessoas, a partir do momento que
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usem alguma droga , ela passe a... ou ela se sinta melhor. Que é uma das coisas que a
droga traz. Um prazer intenso, bom. Eu uso álcool eu sei que o prazer é bom, né? Do
uso do álcool, por exemplo. É... mas eu acredito que é isso fazem, que fazem também
as pessoas usarem. Pelo menos em algum momento ou naquele momento que estão
usando droga, elas estão sendo felizes, né? Esquecendo as coisas, que tanto as
atormentam. Que aí isso tá dentro das várias esferas da vida das pessoas. A questão
da vida social, a vida afetiva, que a í envolve as relações familiares, com outras
pessoas, né? As próprias privações, o desejo de consumo. E você não poder adquirir
as coisas, enfim, né? A vida. A vida difícil que as pessoas tem hoje. E algumas
encontram no uso de drogas uma forma de... de aliviar, né? Ou poder estar levando a
vida. Então pra mim, essa experiência, ela perpassa esses... essas coisas, né? E que às
vezes é difícil compreender, até pra mim mesmo foi difícil compreender. Mas hoje eu
tenho uma compreensão bem melhor sobre isso e a cada dia eu aprendo com eles um
pouco, a partir duma estória que eu escuto, do contexto de vida, eu vou pe rcebendo o
quão complexo é essa questão do uso de substância. (LEÃO, PS).
10Essa analogia refere-se ao trabalho do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, que realizava junto aos seus pacientes
um “teste de associação de palavras”, no qual as pessoas tinham que responder a um estímulo verbal o mais
rapidamente possível para que fosse m edido os seus tempos de reação a cada classe de palavras, dentre outras
aspectos. Esse teste fundamentou grande parte da abordagem psicológica criada por ele, a Psicologia Analítica. A
descrição do teste de forma simples está presente na sua obra Fundamentos de psicologia analítica (1972).
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olfato clínico, não dando margens para elaborações maiores, na espontaneidade das suas
verdades, como nos exemplos:
Mulher, eu acho que é uma pessoa normal! (Risos). Igual a mim, igual a ti. Eu acho
que não tem esse diferencial não. Entendeu? Não tá escrito na cara dele. O pessoal
coloca muito aquele prognóstico: pessoal de rua usa, mas a gente conhece pessoas de
rua que não usam, entendeu? A gente conhece pessoas que vivem numa praça aqui da
cidade que não usam. Eu já fiz junto com uma pessoa do CAPS também uma pesquisa
lá e nem todo mundo usa. Tem gente que tá lá realmente porque não tem onde morar.
Aqui próprio já tem usuários que tão abstinentes há bastante tempo e que às vezes
ficam na rua por algum motivo, uma briga com um parceiro ou alguma briga com os
irmãos ou porque querem se livrar daquele território. Eles realmente vão pra rua, mas
escolhem um local que não tenha tanta droga e eles não usam. Então, eu acho que ela
é uma pessoa normal e deve ser tra tada como uma pessoa normal, com o mesmo
respeito, com a mesma dignidade (LUIZA, G).
Como pessoa, assim, eu acredito que é de forma tranquila. Foi... foi a escolha que a
pessoa foi fazendo diante de realidades, diante de... das circunstâncias e que ela fa z
uso e, dependendo do caso, é alguém que precisa de um tratamento de saúde
adequado, né? Dependendo do caso já de como esteja esse uso. Mas eu , como pessoa,
eu olho de forma tranquila. Não é a opção pessoal minha, mas pra quem faz, assim,
eu olho com muito respeito e muita tranquilidade (MARIA, PS).
Eu vejo essa pessoa como uma pessoa , entendeu? É... os motivos que levaram ela a
usar, os motivos que fazem com que ela usa eu não... às vezes não me interessa tanto.
Como ela consegue a droga também não me interessa tanto. O que me interessa é
saber qual, o quê que ela é... o quê que ela deseja de mim. Eu como profissional: “O
quê que cê veio buscar? Cê quer ajuda pra quê? Cê quer ajuda pra diminuir, pra parar?
Você não consegue?”. Entendeu? E eu vejo como sendo uma pessoa que tá em busca
de alguma coisa, tá certo? O que levaram essa pessoa a buscar determinada coisa, isso
não vem muito ao caso pra mim . Mas que, tipo assim, na expectativa de profissional
de saúde pra auxiliar essa pessoa eu ajo dessa maneira. (GUSTAVO, PS).
Eu vejo como uma pessoa normal, como qualquer outra pessoa, qualquer outra pessoa,
é... mas aí assim, depende da pergunta. Como eu vejo a pessoa usuária de drogas
dependente ou... ou só usuária mesmo? [...] Não, eu vejo como qualquer outra pessoa,
mas que quando ela chega ao serviço, ela chega precisando de ajuda, né? De um olhar
da saúde. De uma ajuda para a saúde, porque tá trazendo muitos problemas de modo
geral: social, financeiro, é... de doenças mesmo, de patologias, clínicos, então são
pessoas que precisam de ajuda quando elas interpretam aquilo como algo que tá
fazendo mal. Agora quando nã o... porque esse é o acesso que eu tenho a essas pessoas
que fazem uso, né? Que chegam até nós, são pessoas que chegam precisando de um
auxílio, de uma ajuda pra iniciar um tratamento, então... (ANA, PS).
Enxergo uma pessoa que precisa de ajuda, né? Que precisa de um olhar da equipe,
duma equipe de saúde, de sem pré-julgamentos de uso ou sem a proibição “não faça
isso”, mas sim o olhar de cuidado, né? O que pode ser feito por aquela pessoa que já
se encontra num estágio ou avançado ou que está caminhando pra isso, porque quando
chegam aqui já chegam com um grito de socorro, alguma coisa aconteceu, uma crise,
né? Um problema dentro de casa, alguma coisa com que faz com q ue ele chegue até
aqui. Então são pessoas que precisam de ajuda, mas de uma ajuda de modo geral, não
só... não, não de um julgamento prévio de certo ou errado do que eles tão fazendo
(ANA, PS).
Na percepção de Ana fica claro o papel do CAPS AD para quem o procura. São
pessoas que tiveram problemas em alguma das esferas da vida por conta do uso de substâncias
psicoativas. Quando não há prejuízos percebidos, são pessoas comuns, que vivem suas vidas e
que não necessitariam dos cuidados de um equipamento como o CAPS, embora entendesse que
alguns cuidados para o uso de substâncias precisem ser observados. Dessa maneira ela rompe
com o pensamento proibicionista de que as drogas são sempre um mal e que devem ser
combatidas, independentemente de como são utilizadas.
A fala de Zuê amplifica esta discussão, criticando ainda a marginalização de usuários
de drogas ilícitas:
Essas pessoas que fazem uso de drogas e álcool, eu vejo elas como pessoas assim
como eu, você, qualquer outra, porque todos nós somos dependen tes químicos. A
primeira droga que alavancou a economia do país foi o quê? Me corrija se eu tiver
errada. Foi o açúcar. E quem é que vive sem o açúcar? Só eu que recentemente aderi
o uso do café sem o açúcar por causa da dieta, mas fui obrigada a deixar o açúcar. O
açúcar não é a droga? Não tra ficaram o açúcar? Entendeu? Não houve toda aquela
questão? Eu vou viciada em café, adicta, digamos assim. Vou desculpando o humor,
né? Então eu sou viciada em café. Cafeína causa dependência sim. E causa crise de
abstinência. A mesma forma que eu vejo a ga lera que veio pra cá, né? Os usuários, as
pessoas, eu prefiro chamar “pessoas”, né? Eu prefiro “indivíduo”, né? Mas eu prefiro
chamar “pessoas”. São pessoas como eu, que estão fazendo um uso e eu faço uso do
café, eu faço uso... do que mais? Sei lá, chocolate, que também, o cacau acaba
desenvolvendo aquele lance de dependência. É de igual pra igual. Então é hipocrisia,
por exemplo, eu tomar cerveja num bar e criticar quem usa Cannabis, porque criticar
quem usa Cannabis, então eu como “cidadã de bem”, entre aspas, né? Tô me referindo
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Nessa passagem Zuê trouxe uma reflexão importante sobre o uso e a marginalização
dos usuários das drogas ilícitas de forma bem humorada, dizendo que todas as pessoas são
“dependentes químicos”, corroborando com a nossa visão antes apresentada de que o uso de
substâncias psicoativas é um fenômeno existente nas sociedades humanas e dependendo da
dose e a forma de uso podem ser consideradas medicamentos ou venenos, citando essa célebre
ideia de Paracelso, conforme ilustramos anteriormente. Ela se afasta da visão proibicionista de
“o mal das drogas” nesse discurso, colocando as substâncias lícitas e ilícitas no mesmo patamar.
Contudo, ela pontuou o estigma que os usuários dessas substâncias recebiam, especialmente
em se tratando de drogas ilícitas, discordando dessa percepção social marginalizante. Esta
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percepção crítica também está presente no discurso das gestoras, inclusive quando discorreram
sobre como os usuários se sentem:
O maior problema das pessoas é que elas perderam a credibilidade. Elas perderam a
credibilidade delas mesmas, né? Aí, assim, então a família reflete isso toda hora . Não
tem a menor segurança mais em relação a pessoa, desqualifica, etc. E na vida social,
elas já sofrem o estigma. Do mesmo jeito que esse social muitas vezes incentiva para
o uso, ele valoriza e ele até coloca você no status, né? Quando você tá nesse uso,
dentro daquelas roda e você tem como bancar, que você tá numa situação confortável
ainda financeira e tem o reconhecimento até dentro do grupo por esse uso, aí é uma
coisa. Mas essas mesmas pessoas, em um momento outro, elas passam também a
desqualificar e a julgar, né? E aí essas pessoas muitas vezes se veem sem referência
mais de nada, ela já tá, já não acredita nela mesmo, o outro acredita muito menos,
entende? Então é como se nada pudesse ser... precisasse ser feito ou não pudesse mais
ser feito ou elas não veem saída daquela situação, entende? (ESPERANÇA, G).
Às vezes a gente vê que eles vêm mesmo, como é uma demanda espontânea, então a
gente vê que quando eles vêm , já é realmente em busca de ajuda, já é um apelo porque
eles também já se sentem muito discriminados. [...] Se sentem, eles mesmos. E eles
sempre têm uma autoestima muito baixa. Eles acham que todo mundo olha pra eles
diferente por isso, mas isso aí é eles mesmo, não somos nós. Não é a sociedade, mas
eles têm uma autoestima muito baixa (LUIZA, G).
Embora na visão de Luiza existisse uma crença de que eles mesmos se sentiam
discriminados, que não era a sociedade quem discriminava e que não eram os profissionais ou
o CAPS, no nosso entendimento a discriminação ou o estigma não pode vir apenas de dentro
pra fora, como uma condição psicopatológica ou uma característica do comportamento do
usuário de drogas. Ela está inscrita numa história e o fato de um usuário de drogas sentir-se
discriminado não pode partir apenas dele. Conforme discutimos ao falar de historicidade,
entendemos que conceito que temos sobre nós mesmos, tem um contexto social,
necessariamente histórico.
Dentro dessa compreensão, Goffman (2012) discutiu, na década de 1960, o conceito
de estigma em uma perspectiva antropológica. Esse termo foi cunhado na Grécia antiga para se
referir a sinas corporais, que tornavam evidentes algo de extraordinário ou mau no status moral
de alguém. Ou seja, ele marcava fisicamente com cortes ou com fogo uma pessoa para que
todos em uma comunidade tivessem ciência da sua inadequação social. Poderia ser este um
criminoso, um traidor ou um escravo. Era uma pessoa ritualmente poluída que deveria ser
evitada. Na idade média, o conceito passou a ter uma conotação positiva para denotar uma graça
divina, até que na contemporaneidade passou a designar um sentido mais próximo do
significado original, mas de forma mais ampla, apontando uma desgraça, onde a marca se
tornava simbólica por meio da linguagem.
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A maioria são pessoas de periferia, que tem uma vida difícil mesmo, po bres, alguns
não tem o que comer, alguns tão em situação de rua. Pessoas que estão tendo
atualmente problema com o uso da substância e que precisam de ajuda, precisam de
acolhimento, precisam de compreensão, precisam de escuta, que são coisas que eles
não conseguem facilmente lá fora. Uma população vulnerável é o maior público que
frequenta aqui. [...] É uma população em vulnerabilida de social, principalmente, né?
As pessoas que moram na periferia, né? Em algumas comunidades, que convivem
com a violência frequentemente, a violência de diversas formas. Então são... eu
percebo que esse é o maior público, que vêm pra cá. As pessoas que vivem é... com
vulnerabilidade sociais. [...] não querendo trazer esse fenômeno pra esse público,
especificamente, porque a gente sabe que o uso de drogas ele está instalado na
sociedade como um todo. Todo mundo usa droga, né? Isso se a gente for falar de um
modo geral, né? Porque existem vários tipos de concepção sobre drogas. Até a
alimentação da gente, alguns tipos a gente pode considerar como droga. Mas eu digo
assim, em relação ao público que frequenta esse serviço aqui, né? O serviço do SUS,
o serviço público. Que de uma certa forma acaba se expondo, né? Então esse é o
público que mais vem pra cá. É um público que de repente talvez não tenha acesso a
outros locais, que pudessem fazer esse acompanhamento de uma forma mais privada,
né? Privativa. Longe da visão das pessoas, porque a sociedade ela ainda vai pra cima
com um olhar bem preconceituoso das pessoas que fazem uso de dro gas. Então, é...
esse é o maior público que vem pra cá, um público que não tem acesso a outras, a
outros locais, que pudessem, de repente, ofertar um cuidado reservado, digamos
assim. Mas talvez esse não seja o termo adequado, é o que tá vindo agora na minha
cabeça. Mas assim, não... certamente outras pessoas de outras camadas da sociedade,
elas usam sim e algumas é... também de forma intensa, tanto quanto os daqui, com
prejuízo também. A diferença é que eles tem como bancar o prejuízo, pelo menos
ainda têm, né? E o outro, e esse que vem pra cá, é... de repente já perderam a
capacidade de bancar os prejuízos do uso da substância (LEÃO, PS).
Leão nos faz refletir sobre a própria estigmatização e marginalização do próprio SUS
na ideia comumente difundida e reproduzida pela mídia, políticos, gestores, profissionais de
saúde e, até mesmo, pela população, criando o senso comum de “SUS para os pobres”, em um
sistema que muitas vezes é entendido como ruim, sendo relegado àqueles que não têm acesso
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à formas de assistência à saúde privada (PAIM, 2018). Essa crença não é diferente dentro da
RAPS e foi reconhecida por alguns profissionais, podendo, inclusive, ser fortalecida pela
fragilidade da atenção em saúde mental.
Esse preâmbulo sobre o fenômeno do uso de drogas, seus usuários e os usuários do
CAPS AD nos ajuda a compreender como esses profissionais se posicionavam frente a
estratégia de RD e como o contato com os conceitos da RD lhes fez mudar a forma de olhar o
fenômeno das drogas e construir as próprias concepções da estratégia. Passemos a elas.
Durante as entrevistas, quando começávamos a conversar sobre RD, percebemos que
quase a unanimidade dos profissionais entraram em contato a primeira vez com o termo ao se
vincularem ao CAPS AD. Apenas dois dos treze profissionais tinham ouvido a noção
anteriormente, um durante a faculdade e outro durante uma residência em saúde mental. Logo,
podemos supor que a RD não é muito debatida nas graduações na área da saúde e essa percepção
desemboca na discussão sobre formação que traremos no capítulo seguinte.
A concepção de RD apareceu nas narrativas dos profissionais em vários sentidos.
Muitos deles foram discutidos nos primeiros capítulos no nosso marco teórico. Destacamos
duas vertentes: a redução de danos como técnica; a redução de danos como tecnologia de
cuidado e melhoria da qualidade de vida do usuário de substâncias psicoativas.
Percebemos, ainda, que por mais que estivéssemos em busca de concepções e práticas
de RD, esses dois aspectos estão entremeados. O conceito de RD foi se complexificando à
medida em que os profissionais falavam das suas práticas e das práticas de RD que ocorriam
no CAPS AD. Dessa forma, o conceito inicial ampliou-se, o que nos leva à percepção de que,
em algumas falas, a RD começava de uma forma e terminava de outra, em uma construção mais
ampla que o diálogo possibilitou.
Em vários momentos a RD emergiu das narrativas dos profissionais como uma técnica
assistencial na atenção às pessoas usuárias de substâncias psicoativas. Quando a RD apresenta-
se dessa maneira, ela pode aparecer apenas nessa perspectiva, mas pode ainda surgir vinculada
a uma noção ampliada. Isso significa dizer que num primeiro momento o discurso do ator social
concentrou-se no conceito técnico para depois, em um aparente paradoxo, haver um
reconhecimento de um conceito mais abrangente da estratégia, que se mostra em diferentes
facetas.
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Redução de danos é fazer com que o indivíduo é... em vez de morrer agora, morra
daqui a 10 anos. [...] É amenizar a morte dele. [...] “Meu amigo , cê quer morrer hoje?
Não morra agora não, vá morrendo aos pouquinhos”. Pronto, isso é redução de danos.
“Em vez de você morrer hoje, vamo fazer um negócio? Vamo fazer uma coisa? O
senhor quer morrer, né? Mas o senhor não vai morrer hoje. O senhor vai morrer
devagarzinho. Vai ser devagarzinho. Devagarzinho, devagarzinho, devagarzinho”
(TIAGO, PS).
Nessa passagem o profissional fez de maneira cômica uma analogia que denota o que
ele entendia ser a RD. É possível, inclusive, uma interpretação que leva a noção de “usar porque
quer”, muito comum no pensamento proibicionista ao se considerar o usuário uma pessoa com
um desvio de caráter, que usa drogas, especialmente as ilícitas, por fazer parte do seu
comportamento desviante. Chama atenção, todavia, o fato de ele considerar a RD como uma
experiência clínica válida, que ele acreditava ser o melhor tipo tratamento, embora fosse algo
que ele entendia ser parte de uma abordagem técnica importante em algumas situações,
colocando, ainda, que seria algo para ser feito por profissionais específicos, como psicólogos e
psiquiatras:
Mesmo como você diz diminuindo o número de cigarros, mas pra mim tanto faz você
fumar dez, como cinquenta. O mal do cigarro [...] pra mim vai ser a mesma coisa. E
outro exemplo é aquele exemplo que eu dei do cara que tá bebendo e tá perto de uma
cirrose, eu vou mandar ele diminuir? Não. Ou ele para, ou morre. Porque o que tá
agredindo a ele é o álcool. [...]Aí eu não sei como é que vocês psicólogos, psiquia tras
vão... vão promover isso aí, vão fazer essa redução de danos, mas eu acho que [...] o
melhor tratamento ainda é esse (TIAGO, PS).
Essa noção de RD como técnica para ser usada por profissionais específicos era
comum na fala dos entrevistados. Havia por parte de alguns uma percepção de que existiam
alguns profissionais do CAPS AD que eram “referência” para essas práticas em RD, como na
terapia de substituição ou na adoção de hábitos mais saudáveis para prevenção de doenças,
como o uso de preservativos. É como se para o uso de tais recursos houvesse algum receio por
parte de alguns profissionais que “passavam o caso” para outros profissionais mais experientes
no assunto. Ana é uma das que se sentia assim:
Eu conheço, eu acho super interessante, eu acho que é válido pros pacientes, mas
quando eu acho que precisa de uma orientação muito específica, muito minuciosa eu
passo pra enfermagem. Pra enfermagem que eu digo é porque um enfermeiro, dois
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enfermeiros que têm essa vivência da redução [...] Eu passo pra eles.[...] Então é como
se fosse isso, eu acho que aquele paciente vai se encaixar melhor ali, vai co nseguir
uma orientação melhor ali, a gente vai conversando e aí eu encaminho (ANA, PS).
Olha minha resposta vai ser muito pequena. Eu entendo pouco. Apesar de eu já tá
há um ano e dez meses aqui, é... e até tem portarias, materiais, eu ando lendo sobre,
vejo que... é... (hesita um pouco) é polêmico, tem horas que eu acredito na redução
de danos, tem horas que eu não sou a favor. [...] Faço uso de uma su bstância, por
exemplo, né? E a redução trabalha, segundo o que eu li, porque eu não participo da...
(não finaliza a frase). Fiz uma escuta de grupo, né? Quando eu entrei eu participei
de cada grupo pra ver como é que era. E aí eu vi que a redução, ela trab alha com
que o paciente pode é... os recursos que ele tem naquele momento, o que ele
consegue, com que ele tem, no limite dele, paciente... Tem um inclusive que eu
atendi semana passada e ele disse: “Grande parte das substancias que eu usava eu
parei de usar depois que eu entrei no Redução de Danos (referiu-se ao grupo), mas
eu ainda uso a maconha”, então, é... ele reduziu o dano dele, porque ele usava um
número maior de substâncias, né? Tá na maconha. Beleza. Ótimo. Esse é o meu lado
que entende a redução, né? [...] E ele tá conseguindo dentro do limite dele, com o
contexto dele, tá conseguindo minimamente manter a estabilidade da vida dele com
o uso da maconha. Ele: “Olha Marie, eu preciso usar a maconha pra conseguir tá aí
no meu dia -a-dia.”, ok. Mas por outro lado eu não sou a favor porque eu penso que
essa maconha que pra ele no momento tá sendo estável pode deixá -lo – como eu
posso achar a palavra? – é... próximo a voltar a usar as outras. [...] E aí é algo que
eu ainda estou me trabalhando pra entender, o que eu... quebrar... não... é... não é
desmanchar, mas eu tô... ainda tô trabalhando pra ver porque que eu tô pensando
dessa forma, é... o quê que tá me levando, será que é alguma experiência que eu tive,
que eu vi. Eu tô me questionando sobre esse meu olhar, mas a redução não é algo
que eu... digamos assim, eu não trabalho com redução. Quer dizer eu faço um grupo
de tabagismo, por exemplo. O objetivo do grupo não é reduzir o uso, o objetivo do
grupo é suspender. [...] Embora a gente tenha um grupo que seja sobre redução de
danos, eu penso que a prática da redução se insere em todos os espaços que tem o
acolhimento. [...] Se você é uma paciente que vai, chega aqui no serviço, vem pro
acolhimento e eu sou a profissional que vai lhe escutar e aí você fala pra mim que
você é usuária de muitas substâncias, que tá querendo diminuir o uso, entrou a
redução de danos. Esse profissional no momento do acolhimento, ele pode começar
ali a conversar com você sobre estratégias que você pode ir adotando, pensando e
refletindo sobre essa possibilidade de diminuir o uso, como é que você poderia fazer
isso dentro da sua realidade, então penso que a redução de danos é algo que, assim
como o acolhimento, perpassa todos os... porque num grupo faz um acolhimento, no
corredor você faz um acolhimento, né? Na hora do almoço, nas refeições você tá
fazendo um acolhimento. Então numa conversa, numa fala você pode sim tá
trocando ali algo sobre redução de danos, então não penso que seja só restrito a tá
dentro da sala de grupo não (MARIE, PS).
poderia levar a pessoa a voltar a usar outras substâncias. Nesse sentido, a RD aproxima-se da
noção de parte da psiquiatria que a via como um meio para um fim específico, que seria a
abstinência das substâncias, conforme discutimos anteriormente no cap. 4, ao tratar da RD em
um sentido técnico, dentro de uma lógica preventivista.
Além disso, na narrativa de Marie fica evidenciada a contradição também existente
nas políticas relacionadas à atenção ao usuário de drogas, que ora preconiza a RD, ora preconiza
a abstinência, como apontamos desde o início do nosso trabalho. Ela era facilitadora de um
grupo que tinha diretrizes federais, que visava a abstinência de tabaco. Ficou claro que no
cotidiano do CAPS AD havia esse duplo olhar do MS, que visa ao mesmo tempo a lógica da
abstinência e a lógica da redução de danos. O grupo que ela citou faz parte de um programa
federal, o Programa Nacional de Controle do Tabagismo, que existe desde o ano de 1996, sendo
atualizado a cada mudança de legislação. A última é a Portaria MS/GM nº 571, de 5 de abril de
2013, que atualizou as diretrizes para o tratamento do tabagismo, fortalecendo a atenção básica
e levando tratamento sistemático para o tabagismo para as unidades básicas de saúde, podendo
estar presente também na atenção secundária e terciária a depender de acordos de gestão
(BRASIL, 2015a). O CAPS AD também é contemplado no programa, que é voltado para
aquelas pessoas que desejam cessar o hábito de fumar. Apesar disso, na prática percebemos que
é possível que as pessoas que não consigam deixar o fumo por completo estejam no programa,
sendo a postura dos profissionais um importante fator relacionado ao tratamento, no sentido em
como o usuário lidará com sua condição. Pudemos ver a RD acontecendo dentro deste grupo,
quando Marie o conduzia, ainda que ela entrasse na aparente contradição de dizer que não usava
a RD, mas que ela estava presente no acolhimento, que ela também realizava, além da maneira
como ela se portava frente aos usuários:
Na condução de Marie não parecia ter apelo para a abstinência, embora fosse o
objetivo do grupo. Uma das usuária s contou que em seu processo a forte preocupação
com questões familiares lhe causava ansiedade e fumava três cigarros ao dia. Teve
sua fala acolhida pela profissional e pela colega, que fizeram sugestões. Era um
momento “individual” em grupo. A profissiona l problematizou a meta e falou da
importância de respeitar os próprios limites. Disse “A meta nunca é uma meta isolada,
é uma meta num contexto”. Conversou com as participantes sobre autocuidado e
promoção da saúde. Falaram da diminuição do “calibre” do adesivo. O cuidado era
voltado para o paciente (DIARIO DE CAMPO).
“acolher” foi referido em muitas das narrativas dos profissionais e por isso o trabalharemos em
um capítulo específico.
O discurso sobre RD manifesto como uma técnica para tratamento dos usuários
apareceu na maioria das concepções, especialmente no que diz respeito ao início da construção
da estratégia dentro dos programas de HIV/AIDS e DSTs, que os entrevistados tiveram contato
lendo sobre o assunto, em cursos sobre a temática ou mesmo quando falaram de práticas
específicas no serviço. Contudo, a noção do cuidado ao usuário é a maior potência identificada
nas narrativas dos profissionais de saúde e gestão.
Nesse sentido, ao falar das suas concepções de RD, muitos profissionais trouxeram
uma perspectiva de cuidado e qualidade de vida, do que chamaram de “princípios da redução
de danos”, como uma forma de pensar o cuidado das pessoas. A forma “técnica” na qual a RD
se apresenta ou o “como” esses princípios são aplicados apareceram especialmente quando
discutimos as práticas. Faremos uma tentativa didática de separar o “o quê” do “como” da RD
para melhor compreensão das concepções e das práticas. Porém, como já pontuamos ao
mostramos a RD como uma concepção técnica, essa é uma tarefa complicada. Ainda assim,
entendemos que esse esforço poderá clarear a forma como essa estratégia opera dentro do CAPS
AD.
Começamos esse tópico com a narrativa de um entrevistado para ilustrar que para
todos os profissionais do CAPS AD, incluindo aqueles que viram a RD prioritariamente como
técnica ou abordagem clínica, a RD era uma perspectiva de cuidado ou tinha sua concepção
atrelada à melhoria de qualidade de vida das pessoas:
Até tava pensando ontem no grupo, né? Que se fala muito, não sei, acho que alguém
falou alguma coisa e me disparou isso de que o conceito da palavra “curar”. Alguém
falou alguma coisa nesse sentido e me fez lembrar, né? Do curar como, no sentido
inicial dela significa cuidar. Então eu vejo muito, essa cura, digamos assim, tá
entendendo? De curar, não necessariamente como essa cura, curar que a gente tem do
concreto, curar uma doença . Curar como esse cuidado que a gente tem. Então a gente
trabalha com várias curas, vários cuidados assim. [...] Deixa eu ver se eu consigo...
várias curas é vários cuidados compartimentados. Eu posso levar pra esse sentido que
tu disse. Cada dia uma cura, um cuidado. Cada dia um cuidado, um cuidado, um
cuidado, um cuidado (MIGUEL, PS).
96
Essa concepção trazida pelo autor corrobora com o aspecto humanizado que esse
conceito ganha nas práticas contemporâneas em saúde, aproximando-se do sentido que os
participantes da pesquisa trouxeram ao se referir a esse cuidado, que leva em consideração a
profundidade das diversas dimensões de humanidade das pessoas a quem assistiam.
Além da relevância da discussão filosófica para as práticas objetivas em saúde,
Cantarore, Malfitano e Barros (2019) alertam para a importância de uma discussão sociológica
sobre o cuidado também para o campo da saúde, criticando a predominância do olhar biomédico
nos estudos do cuidado, que centram-se em prevenção, tratamento e cura de determinadas
doenças. Para eles, a dimensão sociológica do cuidado é anterior à da saúde, intrínseco às
relações sociais e à vida humana, que entre outros fatores, também se relaciona às questões de
saúde. Nessa perspectiva, os problemas de saúde foram realocados para uma dinâmica de
relações sociais e redes de atenção, onde os diversos atores têm protagonismo na tomada de
decisões, já que a relação de cuidado não consiste apenas entre um único indivíduo e um
profissional de saúde.
Os autores apontam que essa visão de cuidado como resultado das redes sociais dos
sujeitos possibilitou a afirmação de que o atual sucesso da ciência biomédica está relacionado
a uma mudança de olhar do microscópio para o ambiente. E mais, assinalam surpreendentes
resultados de estudos que sugerem melhor recuperação da saúde via assistência médica menos
sofisticada e com menos suporte tecnológico, mas com maior nível de interação entre os
envolvidos no processo.
O cuidado, segundo eles, está ligado a uma dimensão de solidariedade, do respeito e
zelo para a conservação da vida, sendo ele base necessária para resultado satisfatório nas mais
variadas ações sociais, incluindo as de saúde. Nos estudos sobre RD, esse cuidado relacionado
às redes sociais e à comunidade é comumente citado e, portando, as contribuições trazidas por
esses autores são imprescindíveis para entendermos a RD nessa noção ampliada de cuidado.
98
O entendimento dos profissionais sobre RD seguiu essa linha humanizada, que nega
o olhar criminalizante ou medicalizante do uso de drogas, acolhendo o usuário que chega ao
CAPS AD, considerando o seu uso problemático em uma perspectiva multifacetada e complexa,
a fim de cuidá-lo, enxergando-o como protagonista desse processo.
Essa visão do cuidado como central na ótica da RD estava explícita especialmente na
percepção da gestão local e dos profissionais responsáveis pelo Grupo de Redução de Danos,
que têm um contato maior com o conceito de RD cotidianamente. Para a gestora, Esperança, a
RD é cuidado:
Olha, eu entendo a redução de danos como o cuidado, entende? Como o cuidado para
com essas pessoas que fazem uso problemático de substância, né? É... e eu acho ele
tão fantástico, né? Essa política . Porque ela não visa impor um controle, mas ela usa
outros mecanismos que é... de atenção à saúde daquela pessoa que eu acho que , de
repente, pode até promover e fazer com que essa pessoa até mude esse olhar dele sobre
esse uso abusivo, ressignifique esse uso abusivo, a partir do momento que você olha
praquela pessoa e você dá esses parâmetros, entende? Na política da redução de danos,
que é esse cuidado com aquela pessoa, com aquele ser humano. Que assim, é uma
água, né? Que é uma coisa tão simples, né? Assim, você dar uma orientação praquela
pessoa ter um cuidado com a alimentação, né? Que a gente sabe que a maioria deles
dizem que quando faz uso da substância, eles ficam sem comer durante dois, três dias.
Então, assim, esse organismo vai se fragilizando, vai oportunizando vários tipos de
ameaça à saúde dessa pessoa, né? É você dar uma orientação, dar uma palavra . E que
essa palavra pode evitar uma doença, né? A partir de um compa rtilhamento de uma
latinha, né? Então, eu acho assim, que ela é tão simples a princípio e ela é tão
grandiosa na sua ação, que eu vejo que talvez, eu acho que talvez... eu acho que nada
é tão grandioso, mais do que ela, entendeu? Assim, quando eu olho aqui ó... o usuário
chega, todo sujo e ele quer um banho. Veja, um banho que pra gente que tá nas nossas
casas, né? Na nossa vida, é... que a vida é escolha de cada um, né? E é também
circunstância e é uma série de coisas aí também. E você tem oportunidade de tomar
um banho, aquilo gera um bem -estar, acaba gerando melhoras também no nosso
estado de humor, né? (ESPERANÇA, G).
sendo uma atividade essencialmente prática que tem o objetivo de alterar o mundo, mediante o
uso de ferramentas (KNELLER, 1980).
Associado à área da saúde, muitas vezes o termo é lembrado apenas para designar os
equipamentos utilizados em diagnósticos, como os aparelhos de raio-x e de ressonância
magnética, os instrumentos laboratoriais ou àqueles destinados ao exame do paciente.
Dentro do campo da Saúde Coletiva, Mehry (1998) é um dos autores que problematiza
essa visão, classificando as tecnologias dentro do trabalho em saúde em dura, leve-dura e leve.
A primeira refere-se às ferramentas-máquinas, sendo estas que citamos, ou seja, aqueles
instrumentos materiais utilizados na assistência à saúde. É dura porque faz referência à
materialidade dessas máquinas. Menos duras que estas são os saberes profissionais e científicos
bem estruturados e sistematizados em teorias e procedimentos, em campos de saber específicos
como a clínica médica, a psicologia, o saber da enfermagem, os procedimentos esquematizados
de cada uma dessas profissões. Essas são chamadas de leve-duras. A dureza aí reside no fato de
haver uma estruturação e organização desses saberes e práticas, mas é leve por levar em
consideração os aspectos humanos das pessoas que detém e conduzem esses saberes nas suas
práticas cotidianas.
As tecnologias leves, por sua vez, referem-se à produção de relações e vínculos que os
profissionais estabelecem com os usuários, a gestão dos processos de trabalho que se dá no
cotidiano deste e tudo que diz respeito ao capital humano presente nas relações de produção de
saúde. Mehry (1998), a define dessa forma:
Koerich e colaboradores (2006), que em seu artigo fizeram menção a essa conhecida
classificação de Mehry, discutiram as bases filosóficas do termo “tecnologia de cuidado” nas
suas diversas acepções encontradas na literatura e entre os doutorandos do Curso de Doutorado
em Enfermagem, da Universidade Federal de Santa Catarina. Eles entenderam que essas
tecnologias aludem tanto a recursos materiais, como humanos, destacando as seguintes ideias:
conjunto de conhecimentos; o profissional em sua interação com o cliente;
101
Essa noção de arte, que o autor traz para o campo da saúde, dialoga com o que Mehry
nomeia de tecnologia leve, quando ele traz a arte para o campo da técnica da assistência à saúde,
usando esse termo para levar em consideração diversas dimensões humanas que somente a arte,
e não a ciência, alcançaria.
As inúmeras noções de RD que apareceram relacionadas à assistência à saúde tanto na
literatura, como na fala dos profissionais deste CAPS AD e, especialmente nestas últimas,
remetem à noção de tecnologia de cuidado. Sua característica estratégica lhe dá a maleabilidade
para que esse seja um conceito multifacetado que perpasse, inclusive, por essas várias noções
de tecnologia dentro da saúde. Por mais que algumas ações da RD sejam entendidas como
materiais, como inicialmente foram os PTSEs, ela carrega dentro de si características artísticas
e intuitivas. Traz, ainda, a ideia do encontro, da compreensão do outro, da busca do cuidado
que é centrado no outro e na relação, atributos típicos das tecnologias leves.
102
Assim sendo, podemos pensar a RD como uma tecnologia de cuidado, por tudo isso
que os autores apontaram, sendo eminentemente uma tecnologia de contornos leves, uma vez
que mesmo a dureza que uma operacionalização de uma prática possa trazer, ela leva em
consideração o que os usuários dos serviços, nas suas necessidades, definirão como pertinente
ao seus processos de cuidado, essencial para o estabelecimento do encontro dialógico
necessário para o desenvolvimento de uma tecnologia leve. Perceberemos isso melhor na
próxima sessão, que trabalha o que os profissionais entenderam como práticas de RD nesse
equipamento.
Em todas. Pra mim, em todas. Em todas. Desde uma consulta com o psiquiatra,
passando por um atendimento com a terapia ocupacional, com o serviço social, todas
as práticas. Pra mim, o CAPS é redução de danos (MIGUEL, PS).
As práticas, ela tá envolvida em tudo porque eu acho que no momento que ele tá
inserido aqui, ele tá reduzindo o dano dele em tudo. [...] Porque eles são usuários, né?
Então eles tão sempre naquela vontade de usar. Entendeu? Como tem muitos que vem
pra cá à tarde: “Não, não! Me passa alguma coisa, eu quero falar com o médico, eu
quero conversar com alguém!” ou eles vêm só pra dizer assim: “Eu quero conversar.”,
porque enquanto ele tá aqui, é uma prática, nem que ele fique deitado, nem que ele
fique só em observação, ele tá reduzindo o dano dele (LUIZA, G).
103
Nesse sentido, Luiza coloca o foco naquela pessoa dependente – como classicamente
é chamado – que não consegue ficar sem a substância e só o fato de estar no CAPS seria uma
forma de afastá-la da mesma. Quando ela diz “nem que ele fique deitado”, ela demonstra uma
perspectiva de cuidado, que corrobora com a visão de Esperança, ao expressar que o cuidado
está nas coisas simples, como oferecer ao usuário uma água para beber ou um banho.
Rosa, por sua vez, acreditava que a RD estava para além de suas próprias atividades.
Ela chegou a citar ações desenvolvidas por colegas na comunidade, que ela acreditava serem
de RD:
Não, assim, eu falo assim: aqui no CAPS, né? O pessoal trabalha com isso. [...] Todo
mundo aqui. Eu nunca trabalhei. [...] Porque eu cheguei agora . Mas assim, eu já, já
ouvi falar que já foram fazer numa associação aqui próximo, né? Umas atividades.
Tipo social?[...] Eu acho que a redução de danos tá num acolhimento, né? Tá numa
consulta que o enfermeiro faz. Numa consulta de enfermagem. Tá numa con sulta
médica. Tá numa escuta, que a gente faz, que as vezes o pacient e chega com um
problema, a gente aconselha ele, né? Tá nos próprios grupos terapêuticos, que fala,
que direciona sobre isso. Eu acho que tá em vários setores. Em vários locais, esse
negócio de redução de danos. Que assim, quando você vai fazer uma consulta com o
paciente, então você vai acolher ele, você fica falando, você fica assim tentando
sensibilizar ele em relação ao uso, né, “mas por que que você vendeu o seu celular?”,
“por que que você vendeu sua bicicleta?”, “por que que você roubou isso pra usar
droga?”, “por que que você não tenta fazer assim?”. Então isso eu entendo também
como uma forma já de reduzir esse dano, reduzir esse uso, né? [...] Aqui eu trabalho
na visita né, domiciliar, que também é um tipo de redução de danos, a gente vai
sensibilizar o paciente, né? Pra que ele venha aqui pro CAPS fazer parte do nosso
trabalho, tentar fazer um PTS pra ele, discutir com ele o melhor tratamento, discutir
com ele uma melhor forma dele aderir, dele querer um tratamento (ROSA, PS).
O discurso de Rosa traz uma noção que é construída na relação, de uma sensibilização
e de uma atividade do profissional diante da necessidade do outro. Essa visão pode, obviamente,
ser criticada, uma vez que se pode pensar que em RD seja melhor evitar fazer sugestões aos
usuários. Contudo, na visão de Rosa, isso faz parte de uma sensibilização do trabalho, levando
em consideração a necessidade daquele indivíduo. Sobre isso, um dos facilitadores do Grupo
de Redução de Danos disse sempre se policiar para não direcionar muito a atividade, que, por
vezes, torna-se uma tendência do profissional, quando idealmente a RD devesse sempre ser
construída pelos próprios usuários.
Um profissional da psicologia fez uma interessante analogia com os conceitos que ora
trabalhamos, de concepções e práticas, ao dizer que a RD é mais facilmente visualizada no
“concreto”, pois às vezes o trabalho no olhar da psicologia é muito abstrato. É como se a RD
fosse um conceito do campo do abstrato, especialmente por ser imerso em subjetividade, mas
para que seja entendido ele precisa de alguma concretude. Ele afirmou que, metaforicamente, a
RD é distribuir seringas, como no seu início. Isso significa que tudo no concreto que protege a
104
saúde e que não obriga as pessoas a deixarem o uso é esse “distribuir seringas” metafórico,
sendo uma prática de RD.
O uso de medicamentos pelos usuários também foi entendida como prática de RD,
bem como o uso de chás e alternativas aos medicamentos:
Então droga por droga acaba sendo um conjunto. Então tem aquela parte de... da
pessoa utilizar a droga, aquela que é usada na rua, né? E passar a utilizar a medicação
aqui. Onde que é que entra a parte da redução de danos? Onde a pessoa tá exposta
aquela droga que é um pouco mais devastadora, lógico. Por exemplo, crack e cocaína
o quê que é uma medicação para controle de impulso frente a ela? Uma medicação
para controle de impulso, frente aquela substância que o indivíduo tá usando, que a
pessoa tá usando, é uma forma de redução de danos, que ele não vai esta r se expondo
aquela substâ ncia mais nociva, né? Então, nesse caso, tem uma parte que é benéfica,
sem dúvidas, que a pessoa ela não tá mais naquela... usando mais aquela droga ilícita
e ela passa a utilizar as medicações, que são fornecidas na farmácia que, de certa
forma, é uma forma de redução de danos. Outra também, outra forma de redução de
danos que eu encaro é os adesivos, são os adesivos para nicotina. Pacientes que fazem,
que estão expostos, por exemplo, a fumaça do cigarro, que tão expostas ao monóxido
de carbono, que são substâncias cancerígenas. Então é muito melhor, por exemplo,
fazer o uso do adesivo de nicotina do que ela tá exposta ao cigarro. E outra forma de
redução de danos, que era que... que foi até comprovada recentemente, que é um chá
de erva cidreira, o chá puro de erva cidreira, que combate ansiedade. Que, se houver
necessidade, tem o quê? O desmame de Diazepam, por exemplo. Você fazia aquele
desmame aos poucos, utilizando Diazepam, mas ela também vai fazendo o desmame
utilizando o chá de camomila pra combater a ansiedade. Então tinha muito isso, essa
técnica. De fazer o chazinho pros pacientes. Os pacientes faziam, eles mesmos
tomavam e tinha uma farmacêutica monitorando, né? Que era o projeto da Farmácia
Viva (ZUÊ, PS).
Essas pessoas elas acabam, que meio se consultando e fazendo uso de algumas
medicações que freiam, né? E não é que vá ser a solução dos problemas dela, porque
as medicações, por exemplo, drogas, eu considero também como drogas. Essas
medicações elas não vão solucionar o problema específico daquela pessoa, que eu
acho que tem que ser um conjunto. Então aquela pessoa tá passando por aquela
situação específica, então o medicamento, ele vai auxiliar, mas ele não vai ser o
salvador da pátria. Então é necessário uma equipe multidisciplinar pra que ela, essa
pessoa venha sendo acompanhada. Outro fa tor, um pouco sério [...] é o uso
indiscriminado de substâncias que podem levar é... que podem induzir ao uso
indevido. Por exemplo, os benzodiazepínicos, né, que são os tarja preta. Os Rivotris
da vida, né? O Rivotril da vida. As pessoas, a princípio, ela s usam como ansiedade,
mas a partir de um certo tempo, depois de três meses o organismo começa a ter, sofrer
tolerância e aquela pessoa passa a, de fato, a desenvolver o vício. Então começa a
fazer aquele hábito e, tem pessoas que fazem uso recreativo. A gente tem que tá muito
em cima disso, batendo na tecla pra fazer o uso racional, o uso consciente dessas
medicações, que também é uma droga psicoativa, os benzodiazepínicos também são.
Eles causam dependência tanto quanto as drogas que são legalmente, né? I lícitas,
digamos assim. Então elas causam dependência tanto quanto as outras (ZUÊ, PS).
105
...uma coisa que eu tenho verificado é que 99,999% desses pacientes procuram o
CAPS apenas, muitas vezes, ou pra comer ou para levar os medicamentos. Eu,
particularmente [...] não sou muito adepto, não, não gosto muito dessas drogas porque
eu acho que não resolve. Os pacientes que entram no CAPS, eles não têm... eles não
gostam muitas vezes de conversar com o psicólogo, é isso que eu vejo, eu verifico,
certo? O pouco tempo que esses profissionais têm pra a quantidade de pessoas, de
usuários e o tempo que um psicólogo tem aqui pra tratar do paciente é muito pouco,
porque se entra 50 e ele só pode tratar de quatro por dia, conversar com quatro por
dia... o trabalho do psicólogo é um trabalho maior, de muita conversa. Muitos deles
não gostam dessa conversa, querem ir direto pro medicamento. Alguns já se tornam,
se não eram usuários, se tornam usuários daquele medicamento do CAPS. [...] Por
isso que todo usuário, todo paciente, todo usuário que chega aqui eu olho pra ele e
digo “Olha, você é alcoolista. Você tem que participar do grupo. Não pense que esses
medicamentos vão resolver o teu problema. Não vão. Eles apenas vão evitar que você
tenha que ter esse tipo de problema quando você para de beber, você tem síndrome de
pânico, você começa a se tremer, você começa a ter isso. O medicamento só vai servir
pra isso. O que vai resolver a tua vida são esses grupos. Você tem que participar desse
grupo, contar a tua história, ou não falar nada, ouvir as histórias dos outros, mas esses
grupos são muito mais importantes do que essa droga que cê tá tomando.”. Eu só falto
olhar pra ele e dizer “eu não acredito nessa droga”, mas eu não digo. Eu digo “Essa
droga não vai resolver. Ela não vai fazer com que você pare de beber. Não é a droga
que vai fazer isso”. Aí é onde todo mundo se engana, que eu acho que se engana, que
eu acho que se engana dentro do CAPS (TIAGO, PS).
aqui já se tremendo e gritando, dizendo que não tinha dormido e a medicação sumiu,
que “eu tomei tudo, eu tomei mais do que eu precisava ”, que não conseguia dormir...
e aí a gente com... pra ela foi perfeito essa... esse método, né? De medicação
fracionada. E aí ela toma e ela chega aqui de boa, calma, tranquila, toma as
medicaçõeszinhas, só abre o pacotinho, ela sempre diz “Ai a que tem o pratinho é a
da tarde. A que tem o sol é a de manhã. A que tem a lua eu tomo à noite”. Ela sabe
tudo (PS).
Esse relato ilustra o “simples e grandioso” que a gestora Esperança relatou ser a RD,
em práticas que requerem, sobretudo, sensibilidade dos profissionais para compreender a
necessidade de cada pessoa que frequenta o serviço. Além disso, a importância da
interprofissionalidade para as práticas de RD está presente em todos esses últimos relatos. Neste
último de forma indireta, pois era comum, dado o que foi observado no cotidiano do
equipamento, que o trabalho da terapia ocupacional percebesse dificuldades cognitivas dos
usuários e indicasse um método mais efetivo de administração medicamentosa, por exemplo.
O mesmo poderia ser identificado por outros profissionais. Às vezes, na farmácia a dificuldade
era identificada e orientada à enfermagem que passaria a utilizar um método de medicação
fracionada adequado às necessidades dos usuários. Essa estratégia era bastante utilizada pelos
usuários que estavam em situação de rua, sendo adequado a cada necessidade, chegando alguns
casos a irem recolher os medicamentos diariamente.
Compreendendo que a RD perpassava todas as práticas desse serviço na ótica de
muitos dos profissionais de saúde e da gestão, que também identificamos por meio das
observações do serviço, poderíamos entendê-la como presente nos atendimentos individuais,
nos grupos, nas visitas domiciliares e institucionais, no matriciamento, nos atendimentos de
acolhimento e no próprio cotidiano do serviço, ainda que vários profissionais pontuassem que
sabiam apenas da sua própria prática no que tange, especialmente, os atendimentos individuais.
Isso foi um discurso que se repetiu entre os entrevistados. Vários deles reconheciam que embora
fosse transversal a tudo que ocorria no serviço, a RD poderia não estar presente o tempo todo
em absoluto, devido às próprias inclinações individuais dos profissionais, que trazem consigo
características proibicionistas, próprias das suas construções dentro da sociedade, havendo, por
vezes, uma oscilação entre o olhar da RD e o olhar proibicionista entre estes atores.
Notamos, assim, que permaneciam as tensões entre os dois paradigmas nessas práticas.
Contudo, a RD tomou um lugar de destaque, especialmente porque a equipe passou a valorizá-
la como tecnologia de cuidado, como um método que funciona, sendo positivo para os usuários
e buscado por eles.
Como concepção e prática a RD opera uma fusão. É um diálogo entre as várias ideias
que compõem o conceito e suas várias apresentações. A figura a seguir mostra como a partir
107
dos núcleos de sentido extraídos das falas dos entrevistados, a RD vai se ampliando em uma
perspectiva circular, como em uma constelação onde as partes e o todo estão interconectados e
exercem forças que ora se aproximam, ora se repelem, numa rede em constante movimento e
trocas de posições, o que torna a RD uma estratégia complexa e maleável, sendo diferente a
depender do contexto onde se insere, por ser construída na complexidade dos sujeitos que a
vivenciam. Assim, as concepções e práticas mesclam-se nessas operações, criando esse
diagrama da redução de danos nesse CAPS AD, que pode ser ampliado também a outras
realidades, respeitando suas especificidades:
Com isso, salientamos que havia uma compreensão inicial dos sujeitos sobre a RD,
mas por meio do diálogo que a entrevista promoveu, esse “projeto prévio” foi modificado nas
narrativas e ampliado numa revisão constante que o encontro possibilitou. Com ele, a própria
compreensão dos sujeitos sobre o assunto modificou-se. Como antes dito, o conceito que de
início parecia pequeno e simples, a partir da reflexão e da narração das estórias do cotidiano de
trabalho tornou-se bem mais amplo. Uma interpretação imediatista a partir do conceito inicial
perderia essa ampliação. Assim, o círculo hermenêutico é esse círculo interpretativo que vai
sendo construído conforme as revisões realizadas pela compreensão vão tomando corpo. Esta
ocorreu pelos próprios sujeitos nas suas narrativas, depois pelas pesquisadoras, a partir do
mosaico construído no encontro das falas dos atores e dos preconceitos que traziam.
Dessa maneira, no diagrama, observamos alguns princípios centrais (concepções) que
vão se espalhando no círculo para as práticas (que também podemos entender como princípios
derivados dos centrais) que se confundem com os princípios nessa constante troca de posições.
Os princípios centrais ou concepções que identificamos na fala dos sujeitos foram:
reduzir o uso da substância; reduzir riscos à saúde; cuidado; olhar integral; abstinência não
obrigatória; mudança de substância; acolhimento; melhorar qualidade de vida; autonomia do
sujeito; dentro do próprio limite; intersetorialidade; liberdade com responsabilidade; meio para
a abstinência; diminuir prejuízos; não impõe controle; não só para drogas; necessidade do
indivíduo.
Os núcleos de sentido que se aproximam da noção de prática foram: psicoterapia; dar
amor e carinho; visitas domiciliares; trabalhos na comunidade; estar no CAPS; cuidados com a
saúde; grupos terapêuticos; banho; adesivos de nicotina; planejamento de vida; comer;
descanso; troca de seringas; consulta de todas as áreas; orientação; sensibilização; recursos;
cachimbo pessoal; experiência clínica; beber água; tratamento; construção do PTS; utilizar
medicamentos; escuta.
Temos assim, visualmente, o que a investigação nos trouxe como concepções e
práticas de RD nesse CAPS AD, iniciando a contemplar nosso objetivo geral. Para compreender
de forma ampla tais concepções e práticas, alguns aprofundamentos são devidos e que
109
apareceram durante a pesquisa. Os próximos capítulos trazem aspectos importantes sobre como
essas concepções e práticas foram constituídas, levando em consideração questões de formação
e gestão, que são importantes para o recorte que propusemos dentro de uma linha de pesquisa
de políticas de saúde sobre drogas, além de trazer extrapolações que o estudo alcançou e novos
questionamentos sobre as políticas sobre drogas no Brasil.
11 Utilizamos aqui o termo “Saúde Mental” por ser a forma como os entrevistados, na maioria das vezes, referiam -
se às suas profissões dentro da atenção “psicossocial”, embora estes não sejam termos sinônimos. O termo
“psicossocial”, segundo Texeira et al. (2017), denota uma forma específica de olhar o fenômeno do adoecimento
mental, advindo da luta movimentos sociais que levaram para o campo da saúde o olhar ao indivíduo em sua
totalidade, para além da doença, em seus determinantes sociais, econômicos e políticos. O termo “Saúde Mental”,
então, tem uma denominação mais ampla que pode englobar diversos paradigmas como o apontado por esses
autores, que diferenciam o “paradigma asilar” do “paradigma da atenção psicossocial”, m esmo que ambos possam
ser considerados olhares do campo da Saúde Mental.
111
aconteciam em conjunto. Tornou-se evidente, a partir da observação das práticas, que há uma
diferença de olhar sobre o fenômeno, a depender do profissional que realiza determinada
atividade, em razão de sua especialidade profissional. Contudo, existem diretrizes clínicas
gerais que perpassam – ou deveriam perpassar – todas as profissões, como é o caso da própria
estratégia de RD e do atendimento humanizado. O que seria, então, exclusivo da prática de cada
profissão ficaria restrito aos atendimentos individuais, a exemplo da psicoterapia ou o
atendimento social, os quais não foram observados por questões éticas.
Nesse sentido, a clínica ampliada como uma ferramenta dentro da política de
humanização apresenta-se no sentido de articular e incluir diferentes enfoques e disciplinas. Os
três grandes enfoques compreendem o biomédico, o psicológico e o social. Assim, esta proposta
reconhece que em determinados momentos ou situações específicas um enfoque pode
predominar sobre o outro, sem que isso signifique a negação dos outros enfoques (BRASIL,
2009a).
A clínica ampliada, segundo o MS (idem), nasce na política junto com outros
dispositivos a partir do “SUS que dá certo”, deslocando o olhar do diagnóstico focado na
doença, no modelo clínico em que o médico avalia, realizando exames e conduzindo a
terapêutica, para um olhar que traz a singularidade do sujeito, levando em consideração as suas
condições de vida na sociedade (como família, comunidade e vida produtiva) e suas condições
psicológicas.
Na atenção psicossocial do usuário de substâncias psicoativas, podemos, inclusive,
inverter essa lógica. A clínica amplia-se na medida em que, além das questões biológicas,
psicológicas e sociais envolvidas no adoecimento mental, existem questões biológicas “não
mentais” a serem pesquisadas e tratadas. Esse entendimento apareceu bastante nos discursos
dos profissionais. Independente do enfoque de que partiam para explicar o papel de suas
profissões, eles, majoritariamente, culminavam na ideia da interconexão entre os pares e as
diferentes profissões, nessa clínica ampliada. Quando o profissional percebia que alguma
necessidade do usuário ultrapassava sua expertise, ele o encaminhava ao colega especialista no
assunto. Isso acontecia notadamente em relação ao atendimento do Serviço Social, que é a
especialidade mais destoante dentro do CAPS AD em relação às outras profissões, no sentido
que na formação acadêmica desses profissionais não há bases de origens biomédicas, ficando
isso a cabo de formações complementares, normalmente voltadas àqueles assistentes sociais
que atuam na área da saúde. Esse encaminhamento acontecia de forma dialogada e quem
112
Ainda que as três dimensões estejam entrelaçadas nos estudos sobre RD, quando esta
aparece como política, a depender dos objetivos da investigação, uma ou outra ficará
evidenciada. No discurso dos profissionais do CAPS AD, esses três elementos emergiram, mas
houve uma ênfase na dimensão institucional-normativa, que costuma ser menos abordada na
literatura. Por sua vez, a dimensão processual-conflitiva dos interesses proibicionistas e do olhar
progressivo da RD são comumente discutidos, bem como a aplicação concreta dos programas
ou ações de RD.
Assim, a “política de redução de danos” aparecendo em sua característica institucional
foi um entendimento construído dentro da equipe em seus processos de formação.
Ademais, a compreensão dos profissionais de que a RD é também uma política denota
a consciência de uma redistribuição do poder político relacionado ao fenômeno do uso de
drogas. Isto significa que a RD como política implica uma reorganização social que entende o
uso de drogas de forma diferente da organização proibicionista. Na assistência ao usuário
problemático de substâncias psicoativas são criadas novas relações de poder, nas quais este é
deslocado para o sujeito e retirado, mesmo que parcialmente, do profissional de saúde.
Podemos perceber uma troca de posições. Embora a RD seja uma estratégia para se
conseguir um fim dentro do CAPS AD, a saber: a produção de cuidado ao indivíduo em uso
prejudicial de substâncias psicoativas ou a atenção integral a esse usuário (como na política do
MS), ela pode tornar-se um fim em si mesmo/começo na medida em que desloca o poder para
esse usuário, no entendimento que ela produz autonomia dos sujeitos e enunciados de verdade
que produzem uma transformação social, redistribuindo o poder para as pessoas, que decidem
sobre o uso de substâncias psicoativas, seja ele problemático ou não. Esse poder é também
deslocado para elas na produção do próprio cuidado e na proteção da própria vida. Discutiremos
mais esse assunto no capítulo sobre o “Grupo de Redução de Danos”.
Apesar de os profissionais terem trazido a RD como política ou estratégia na sua
dimensão normativo-institucional, foram poucas as outras normativas que apareceram
nominalmente no discurso entrevistados, sobretudo, por serem de difícil memorização, como
muitos colocaram. As que ganharam destaque foram: a Lei 10.216, de 2001, marco da Reforma
Psiquiátrica, redirecionando o modelo assistencial em saúde mental; a Portaria 1.028, de 2005,
que regulamentava as ações de redução de danos sociais e à saúde; e as portarias relacionadas
aos CAPS e à RAPS. Eles discorreram especialmente sobre os conceitos encontrados nas
normativas e que guiam suas práticas. Rosa, ao tentar contar a história da Reforma Psiquiátrica
114
falou um pouco dos princípios que norteiam o trabalho na saúde mental, sendo ilustrativo do
entendimento e posicionamento também de outros sujeitos:
Eu acho que o CAPS desde o final dos anos 70, né? Começo de 70, que começou , né?
O primeiro CAPS foi em São Paulo. Eu não me recordo muito o ano, acho que foi 78,
eu não me recordo muito o ano. Mas foi assim que começou. Então, assim, foi um
processo de desinstitucionaliza ção, né? Então, assim, foi um processo que fizeram
de... de fazer o tratamento extra hospitalar e deu tão certo esse... esse CAPS, que foi
inaugurado em São Paulo, que esse serviço criou vários tipos de CAPS, várias
modalidades né, que I, II, III, o infantil, o Álcool e Drogas, agora o IV né? A nova
portaria de 2017, que é o IV. [...] E assim, eu acho um serviço... assim, fundamental
em relação ao tratamento realmente. Estudos mostram que o tratamento, o convívio
familiar, o meio social, você fazer com que aquela pessoa, ela volte a ter aquele
convívio dela social é a melhor maneira de realmente ter um tratamento eficaz e
duradouro. Não prendendo aquela pessoa no manicômio e deixando ela lá restrita,
presa. Presa pelo... que crime que ela fez, né? Por ela tá presa naquele manicômio? E
além do mais, né? Antigamente era com maus tratos. Além de tá presa, ainda tinha
maus tratos. Então assim, então eu, eu admiro muito o trabalho do CAPS, acho um
trabalho muito importante, muito interessante pra comunidade. Como um todo, não é
só o Álcool e Drogas, né? É como um todo, tanto o Geral, como o Infantil, cada um
na sua modalidade (ROSA, PS).
12O termo “antimanicomial” é um termo proveniente da luta travada pelo Movimento da Luta Antimanicomial
(MLA) desde a década de 1980, que teve como precursor o Movimento dos Trabalhad ores da Saúde Mental
(MTSM) na década de 1970, que lutava por uma sociedade sem manicômios, denunciando os maus -tratos sofridos
pelos pacientes nessas instituições asilares. O MLA nasceu oficialmente em 18 de ma io de 1987 pelo documento
“Manifesto de Bauru”, tendo como lema: “Por uma sociedade sem manicômios”. Esse movimento inspirou a Lei
10.216, de 2001, a qual proíbe o tratamento de pessoas com transtornos mentais em instituições asilares.
Referência: Barbosa, Costa e Moreno (2012).
115
discriminação e o abandono de pessoas por fazerem uso de álcool e outras drogas, que passaram
ou passam por fracassos quando da impossibilidade da abstinência imediata, ou que não se
veem em condições de aderir o tratamento. Para eles, dá-se maior visibilidade ao usuário como
sujeito de direitos, colocando em discussão a sua responsabilidade individual e penal, a
liberdade de escolha, o autocuidado e a pluralização terapêutica (várias modalidades de
tratamento) como exemplos fundamentais da conquista dos direitos humanos e cidadania.
Em vários discursos ouvidos, essa responsabilidade do sujeito era valorizada, bem
como o respeito a todos esses aspectos colocados pelos autores, que estariam diretamente
ligados à defesa dos direitos das pessoas, como forma de exercer cidadania.
O princípio da integralidade, que é entendido inicialmente na Lei 8080/1990 como
integralidade da assistência, sendo um “conjunto articulado e contínuo das ações e serviços
preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de
complexidade do sistema” (BRASIL, 1990, p. s/n) surgiu nas narrativas dos profissionais em
sua perspectiva ampliada de, além da assistência integral, o olhar integral ao sujeito em uma
visão holística. Em inúmeros momentos quando eles tratavam da multifatorialidade do processo
de adoecimento mental, especialmente quando eles falaram do fenômeno do uso de drogas, eles
tocavam nesse conceito, sobretudo ao tratar das comorbidades clínicas associadas ao
adoecimento. Essa noção inclui ao olhar do processo saúde-doença os vínculos sociais
estabelecidos pelo sujeito. Consideraram que também era importante compreender a situação
social da comunidade em que o indivíduo se encontra, se em baixa ou alta vulnerabilidade
social, buscando, ainda, identificar as potencialidades da comunidade para o processo de
cuidado da pessoa que frequenta o CAPS AD.
A universalidade, como princípio norteador, foi bastante comentada pelos
profissionais de saúde, que frisaram bastante o fato de o serviço ser do tipo “portas-abertas”,
algo que as gestoras também pontuaram. Isso significa que independente de quem fossem e
qual demanda traziam, as pessoas eram acolhidas naquele serviço e ficavam ali para tratamento,
caso necessário. Se assim não o fosse, eram enviadas ao serviço de referência levando as
coordenadas, que podiam ser dadas por todos os profissionais, inclusive os da recepção,
buscando, dessa forma, uma maior resolutividade das ações.
O entendimento desse princípio, percebido pela gestão do serviço como central para
todas as atividades, gerava momentos de desconforto e tensão dentro da equipe, em ocasiões
em que alguns profissionais entendiam que certos usuários usavam o equipamento como
serviço de assistência social, quando buscavam o serviço “apenas” em busca de alimento e
116
descanso, embora a alimentação e o repouso do corpo possam ser entendidos, inclusive sendo
citado por alguns profissionais, como estratégias de RD, especialmente em sua dimensão do
cuidado da vida.
Souza (2013) problematiza o conceito de universalidade fazendo uma genealogia que
perpassa a lógica da religião, do direito e da ciência. O SUS adota o princípio essencialmente
em seu sentido político-jurídico, que remonta a criação da cidadania na Grécia antiga,
especialmente no quesito do acesso. O princípio da universalidade dentro do SUS extrapola
inclusive a noção de cidadão grega em que os direitos eram iguais para os moradores da Pólis,
uma vez que qualquer indivíduo em solo brasileiro tem, juridicamente, acesso aos serviços de
saúde.
Todavia, segundo o autor, há intrinsicamente nesse conceito desde a sua gênese o
“risco do universal”, no sentido de ser algo aplicável a todos, independentemente do contexto,
sendo uma possibilidade de ser instituindo ao mesmo tempo um direito e um imperativo. Dessa
maneira, o cotidiano mostra que universalidade do acesso precisa ser amparada por outros
conceitos que determinem uma rede de princípios ético-políticos. Entre eles estão os conceitos
de “singularidade”, “diferença” e “alteridade”. Dito de forma simples: o outro é um ser único,
diferente de mim, com sua forma de ser outra, que não a minha.
Com a necessidade de conciliação entre o universal e o singular é que o Campo da
Saúde Coletiva e, consequentemente, o SUS, lançou mão do conceito de equidade, que surge
no limiar intransponível da universalidade, tendo como potência o ato não de totalizar, mas de
distinguir. É como se o conceito fosse um precipitado do conceito de universalidade. O autor
alerta, ainda, para a necessidade de distinção entre os conceitos de igualdade e equidade. A
igualdade diz respeito a uma noção jurídica de isonomia, onde todos são iguais perante a lei.
Essa ideia foi incorporada nas políticas públicas na noção de universalidade do acesso, sendo
igualdade e universalidade ideias mais corretamente correlatas. Por não ser possível uma
passagem total do universal ao singular, são necessárias mediações operativas e conceituais e
por isso existe a noção de equidade. Enquanto a universalidade diz “o que” deve ser feito, a
equidade diz “como” deve ser feito, levando em consideração as necessidades individuais dos
sujeitos. Assim sendo, o sistema jurídico justo precisa levar em conta como a regra geral se
aplica ao singular (SOUZA, 2013). Por esse motivo a equidade é comumente referida como
“reconhecer as diferenças entre os iguais”.
Embora tendo sido pouco citada diretamente, a orientação para o trabalho por meio do
princípio da equidade estava marcada no discurso de muitos profissionais. No caso citado, a
117
compreensão de que alguns usuários tinham necessidades básicas que não encontravam em
outro ambiente e que precisavam ser acolhidas dentro do CAPS AD, como o acesso a banho e
comida, mostra como essa noção estava imbricada nos valores que moviam várias das práticas
do equipamento.
Alguns profissionais teceram críticas sobre o fato de os textos das políticas e
normativas serem diferente do que ocorre na prática. Isto é: embora elas preconizem princípios,
diretrizes ou ações específicas, muitas vezes o que se observa na prática distancia-se do que
está escrito. Eles deram justificativas que lhes faziam crer porque isso acontece. Segundo eles,
uma primeira razão seria por uma questão de organização do SUS, uma vez que há tensões
políticas entre de grupos sociais diferentes e interesses diversos. Um profissional disse que o
governo quer “maquiar” a realidade, colocando profissionais em uma casa a fim de dar uma
resposta a uma demanda da sociedade, mas que não funciona como deveria, porque não existe
incentivo financeiro, especialmente o salarial para os profissionais, que ele acreditava que
ganhavam muito mal para a responsabilidade que tinham. Outro motivo apontado eram os
preconceitos que os próprios profissionais carregavam consigo, que poderiam destoar de
princípios e/ou diretrizes das políticas. Outra justificativa muito citada foi a falta de estrutura
disponibilizada pela gestão maior, seja municipal ou estadual para que as políticas se
efetivassem na prática. Os entrevistados não conseguiram identificar o porquê da ausência de
estrutura, seja relacionada ao quadro de pessoal ou às próprias instalações do CAPS. Sobre essa
última justificativa falaremos um pouco mais à frente, no capítulo 11.
Diante dessa percepção dos profissionais da disparidade entre dispositivos legais e o
cotidiano dos serviços, chegamos à discussão do SUS legal e o SUS real. Santos (2011) aponta
várias incongruências entre o que estava no papel e o que acontecia na realidade no SUS. Ele
aponta algumas dificuldades para a consolidação do que está previsto legalmente: a retirada do
financiamento federal ao sistema; subsídios à produção e ao consumo de serviços privados de
saúde; a ineficiência da gestão, que é centralizadora e burocratizada; a precariedade dos
vínculos de trabalho e remuneração perversa. Veremos mais a frente que os entrevistados
compactuavam com essa visão e também percebiam tais dificuldades apontadas pelo autor, que
eles viam como uma questão de gestão superior. Contudo, como aponta Santos, são desafios
que passam por questões políticas (de politics) e de Estado.
Essas dificuldades permeiam, indubitavelmente, a forma como os processos de
trabalho em saúde se desenvolvem e são (ou não) aprimorados. Trazemos, então, para nossa
discussão, o conceito de educação permanente para entender como, dentro desses processos, os
118
profissionais aprenderam sobre RD na prática cotidiana, uma vez que a maioria deles não tinha
qualquer conhecimento do conceito antes de começar a trabalhar nesse serviço.
Para a Política Nacional de Educação Permanente (BRASIL, 2009b), a educação
permanente é
como realizadores dos cursos junto à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) por meio da Célula
de Saúde Mental.
Alguns profissionais ainda apontaram o curso “SUPERA” como sendo fundamental
para o aprofundamento do conhecimento e atuação dentro do CAPS AD e para a ampliação do
conhecimento em RD. Este curso nomeado “Sistema para detecção do Uso abusivo e
dependência de substâncias Psicoativas: Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção
social e Acompanhamento (SUPERA)” foi inicialmente uma parceria entre a SENAD e a
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) entre 2006 e 2017, realizando doze turmas, e
ofertando 135 mil vagas, tendo a participação de docentes de 5 universidades federais (UFRGS,
UFPR, UFRJ, UFJF, UFBA) com patrocínio da SENAD. Atualmente, o curso existe por meio
de uma parceria entre UNIFESP e a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP),
tendo sido realizada a 13ª turma, entre outubro de 2018 e fevereiro de 2019. O seu objetivo é
capacitar profissionais da saúde e da assistência social para trabalhar com pessoas com
problemas associados ao uso álcool e outras drogas. É um curso de extensão de 170 horas na
modalidade “EaD” – Educação à Distância (SUPERA, 2019). Embora seja um curso procurado
por demanda espontânea, foram vários os profissionais que o realizaram, relatando a
importância do mesmo para trabalho com o público do CAPS AD.
Além disso, os relatos das gestoras frisaram a importância do espaço de educação
permanente durante as reuniões de equipe, as quais não ocorreram durante todo o período da
pesquisa por conta de outras demandas do serviço. Alguns profissionais falaram da existência
deste momento, mas reconheceram a dificuldade que a equipe estava tendo nos últimos meses
para concretizá-lo.
Entretanto, quando trazemos o conceito de educação permanente, queremos,
sobretudo, enfatizar a importância de uma figura-chave no processo de formação dos
profissionais: o Psiquiatra Referência. Essa alcunha foi atribuída a esse ator tamanha a
importância de sua passagem pelo serviço na formação dos demais prof issionais que se
encontravam no equipamento no momento da pesquisa. Sua importância é tão evidente, que
pelo menos metade dos entrevistados citaram-no como parte de seus processos de aprendizagem
da RD como conceito ou como prática dentro do serviço.
O papel desse ator na formação desses profissionais foi variado. Alguns citaram cursos
ministrados por ele em espaços formais de educação permanente que existiam no serviço.
Outros, falaram da observação das suas práticas clínicas, seguidas de discussões, que lhes
fizeram aprender sobre RD. Alguns pontuaram, ainda, a relevância da discussão de casos
120
clínicos com ele para sua formação e, o mais reconhecido por todos: a observação da condução
do Grupo de Redução de Danos, que ele havia implantado no serviço. Esse grupo funcionava
dentro do princípio da autonomia dos sujeitos, sendo o mesmo conduzido colaborativamente
pelos próprios participantes, juntamente aos facilitadores do grupo.
O conceito de educação popular em saúde aparece nesse contexto grupal, quando
consideramos que o grupo estava amparado em princípios da Política de Educação Popular em
Saúde, quando traz no seu texto os princípios norteadores de diálogo, problematização,
construção compartilhada do conhecimento e emancipação (BRASIL, 2013). Nele, os
profissionais também aprendiam com os usuários nos seus processos. Aprofundaremos melhor
o assunto no capítulo específico sobre o Grupo de Redução de Danos e sua construção dentro
de uma perspectiva também de educação popular.
Além disso, as narrativas dos profissionais nos trouxeram a importância do vínculo
com a universidade para o desenvolvimento das práticas em RD. Isso ficou bastante evidente
durante as observações. Os professores participavam do cotidiano do serviço com seus alunos
por meio dos projetos de extensão e muitas vezes cobriam “buracos” nas atividades que as
equipes não conseguiam desenvolver, especialmente pela falta de profissionais para realizar
determinadas ações. Trabalhos na comunidade – como nas escolas e centros comunitários – e
grupos terapêuticos eram desenvolvidos por eles e traziam novos conhecimentos sobre como
trabalhar dentro do CAPS AD, criando diálogos e levando à universidade de volta as suas
experiencias. As residências multiprofissionais também se inseriram nesse processo em alguns
momentos.
O pensamento de Ceccim e Feuerwerker (2004) dialoga de forma oportuna com tudo
o que trouxemos até aqui. Em seu ensaio, eles lançam o conceito de quadrilátero da formação
para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social, tecendo críticas sobre como os
modelos de formação para a saúde vinham sendo desenvolvidos, os quais consideravam
conservadores e baseados na acumulação sistemática de informações, como na noção de
“formação continuada”. Eles propõem a ideia de formação advinda de uma exigência política
de gestão que ao mesmo tempo ofereça propostas de transformação das práticas profissionais,
sendo baseada numa reflexão crítica sobre o trabalho em saúde e a experimentação da alteridade
dos usuários.
Essa seria uma formação tecnopolítica, no sentido da advocacia de uma formação
voltada para as questões políticas que levam em consideração as necessidades dos usuários a
partir do que eles próprios colocam como necessidades nos processos de controle social, que é
121
entendido como participação popular nos diversos dispositivos de tomada de decisão em saúde
como Conselhos e Comitês de Saúde. Nessa lógica, as instituições formadoras deveriam
também levar em consideração as necessidades advindas do SUS e seus processos de trabalho.
Para os autores, deve haver uma ampliação da noção da formação ensino-serviço para
uma ideia integrada de ensino-serviço-gestão-controle social. A importância da formação vista
dessa maneira dá-se pelo fato de que cada face libera fluxos específicos, dispõe interlocutores
específicos e configura espaço-tempo com diferentes motivações. Assim, uma formação com
vigor político para produzir um processo de mudança da realidade precisa ativar processos e
controlar outros. Em outras palavras, eles defendem uma formação que tenha um compromisso
político com a sociedade e que seja relevante para as práticas de saúde diante das necessidades
da população, onde os envolvidos tenham consciência dos seus papeis como agentes políticos.
A educação permanente, então, parte do pressuposto da aprendizagem significativa,
sendo uma lógica
Nessa vertente interpretativa, a educação permanente interpõe uma reflexão crítica das
práticas assistenciais e, consequentemente, das práticas de gestão.
De acordo com o que viemos mostrando, pudemos perceber um pouco dessa ideia
quadrilátera ocorrendo na formação dos profissionais dentro do CAPS AD. A educação
permanente mostrava-se em suas várias formas, de maneira ampliada, desde o aprender
informalmente nas discussões de trabalho, que acabavam tornando-se rotineiras no serviço, –
dialogando, inclusive, com a noção de permanência a que o conceito remete – até a
aprendizagem formal, ocorrendo dentro da equipe com o especialista ou com os pares
profissionais em uma visão de clínica ampliada.
A visão de educação permanente vê-se assim, amplificada. Não se poderia apenas
entendê-la como um espaço formalizado para ocorrência de processos de aprendizagens em
serviço. Ao contrário, as observações e narrativas mostraram que o processo de aprender era
constante no serviço, pois a cada nova intervenção ou novo problema que surgia, o cenário de
trocas de saberes se constituía, ali mesmo, na ação cotidiana do trabalho. Eram várias formas
de ensinar, aprender e refletir criticamente entre gestores, profissionais de saúde e usuários.
122
Por que motivo, deixa eu ver aqui... como é que eu posso te descrever por qual motivo?
Porque eu acho que todo mundo deve ser a colhido, seja lá que nome for. Redução de
danos, seja lá do que for. (ZUÊ, PS).
postura e prática nas ações de atenção e gestão nas unidades de saúde [que] favorece
a construção de uma relação de confiança e compromisso dos usuários com as eq uipes
e os serviços, contribuindo para a promoção da cultura de solidariedade e para
legitimação do sistema público de saúde. Favorece, também, a possibilidade de
avanços na aliança entre usuários, trabalhadores e gestores da saúde em defesa do
SUS como uma política pública essencial da e para a população brasileira (p . 3-4).
123
O texto traz, ainda, que acolher é uma atitude de inclusão. É uma ação de aproximação,
é um “estar com” ou um “estar perto de”. É admitir, aceitar, dar crédito a, agasalhar, atender.
Além disso, o MS entende o acolhimento como uma forma de posicionamento d e gestão, vendo
o acolhimento tanto como diretriz, como dispositivo de grande relevância ética, estética e
política dentro da PNH.
Como ética, traz o compromisso com o reconhecimento do outro, na atitude de acolhê-
lo em suas diferenças, suas dores, suas alegrias, suas formas de viver, de existir e estar na vida.
Na sua dimensão estética, entende que se traz para as relações e os encontros do dia-a-dia a
invenção de estratégias que contribuam para dignificar a vida para construção da nossa própria
humanidade. A dimensão política, por sua vez, implica o compromisso coletivo de
envolvimento nesse “estar com”, potencializando protagonismo e vida nos diferentes encontros
(BRASIL, 2010a; 2016).
Para a PNH, estruturar a prática do acolhimento nos serviços significa uma resposta aos
desafios de superar e inverter a lógica do modelo de saúde hegemônico centrado no hospital,
no médico e na doença, para um modelo que priorize a escuta e o cuidado do sujeito que
apresenta demandas que extrapolam os sintomas físicos de uma doença (BRASIL, 2016). Na
saúde mental, podemos falar em uma lógica que ultrapassa tanto os sintomas físicos, como
comportamentais e psicológicos esperados ou vinculados a uma determinada condição de
saúde.
O acolhimento, como reconhecimento do outro, nesse “estar com” o outro passa,
necessariamente, por um reconhecimento de si, da própria humanidade. Na atenção
psicossocial, especialmente na assistência ao usuário de drogas, a dimensão do acolher também
remete a preconceitos individuais relacionados à cultura, à sociedade e à forma como os
profissionais dos serviços de saúde se posicionam em relação aos usuários do CAPS AD. Foi
também por isso que a pesquisa teve preocupação em dialogar com os sujeitos acerca de como
eles percebiam o fenômeno do uso de substâncias psicoativas e explorar como eles se
posicionavam frente à assistência ao uso de drogas, seja este recreativo ou problemático, ao
sujeito usuário de drogas, à assistência a esse usuário no CAPS AD e à própria RD. Ao longo
das narrativas, pudemos entender a construção de uma visão mais progressista ou conservadora
sobre as drogas e a mudança de perspectiva de muitos profissionais. Eles percebiam, sobretudo,
a RD como um caminho possível e eficaz, em uma forma abrangente, para além das técnicas,
reconhecendo a potência do acolhimento e do atendimento humanizado frente a essa
perspectiva. Para Souza e Carvalho (2015), quando
124
atrelava-se a uma necessidade do outro e, ainda que ela tivesse uma visão mais voltada para a
abstinência, – ainda que em desconstrução – ela entendia a importância do acolhimento para
que acontecesse a prática da RD e percebia o acolhimento como algo da relação entre o
profissional e o usuário, entendendo o acolher da seguinte forma:
Acolher é tanta coisa. É ouvir. É ouvir sem julgamento, é respeitar, pensar juntos
formas se aquela pessoa, naquele momento tá buscando uma melhora pra qualidade
de vida dela . Pensar junto com ela e puxar que ela traga essas ideias, o quê que ela
poderia fazer a partir de agora. Motivá -la, incentivar, dar exemplos, silenciar, ficarem
os dois ali em silêncio quando algo for pontual pra isso e, às vezes, o silêncio, ele é
muito terapêutico. Então o acolhimento, ele... ele é tanta coisa. Não tem como, uma
resposta padrão não. É muita coisa. É um olhar, é uma mão. Já tive acolhimento de
todos esses tipos que eu trouxe. De o outro chorar e você deixar. É um espaço que
se... é um “se permita”, né? É um espaço pra ele. E pra você também, você enquanto
profissional, você também tá no acolhimento, você pra fazer o acolhimento você
também tem que ser acolhida por aquele paciente. O acolhimento , ele é uma mão
dupla (MARIE, PS).
Quando Marie discorre sobre o acolher, especialmente quando fala do ouvir sem julgar
e da busca da melhora da qualidade de vida da pessoa, seu discurso assemelha-se muito ao
conceito ampliado de RD que viemos discutindo. Dessa mesma forma, ela chegou à conclusão
que o acolhimento perpassava transversalmente o serviço, assim como a RD. Em sua fala
percebemos isso, inclusive no seu não-dito, como ela mesma sugere ser esse acolher.
Houve momentos em que as noções de “redução de danos” e “acolhimento” até se
confundiram no discurso dos profissionais. Mas antes de uma confusão, há uma fusão. São
noções complexas que dialogam entre si, potencializando a RD como estratégia de cuidado.
Sobre a importância desse acolher para a RD nessa assemblage que ora discutimos, a
fala de uma profissional é ilustrativa. Em seu discurso ela não conseguiu discorrer muito acerca
dos conceitos, princípios ou práticas da RD de forma direta, talvez por alguma ansiedade que a
entrevista lhe causara. Entretanto, no seu entendimento sobre a RD, tornou-se explícita a noção
do acolher. Nessa passagem ela explicava como conheceu a RD através da coordenadora do
serviço:
A coordenadora, sempre ela fala “Gente, olha a redução de danos. Isso é reduzir. Isso
é redução de da nos”. O paciente queria passar o dia aqui pra não tá na rua, pra não
querer ir se drogar. Isso é uma redução, que a gente tem de acolher aquele paciente,
entendeu? Que às vezes tem paciente aqui que “Olha, me ajuda, me dá uma
medicação, me dá um Diazepam, porque senão eu vou querer fumar, eu vou querer
me drogar, eu vou querer beber”. Então a partir do momento que ele vem pra cá , a
gente acolhe ele, pra poder dar uma medicação, né? Tudo isso é por ordem médica,
que ele tá querendo reduzir, que ele não tá querendo a quele dia ficar... ele tá querendo,
como tem muitos pacientes que quer se internar, mas a fila de internamento aqui é
grande. A gente tem... vai pela ordem... que nós tamos né, aqui, quem foi o primeiro ,
o segundo, pra poder eles entrar, tipo pra desintoxicação, lá na Santa Casa, né? E a
126
redução de danos, quando a gente vê um paciente querendo “Eu posso vir pra cá todo
dia? Eu posso passar o dia aqui? Porque eu não queria tá na rua, eu não queria tá nas
drogas. Eu queria passar um t... pra me limpar ”. Aí a gente pega esse paciente com
todo o carinho, agarra ele. Que a gente vê que ele tá querendo reduzir, que ele não tá
querendo mais ficar naquela vida de... de tá nas drogas, de tá bebendo. Então cê pega
o paciente ali com todo amor “Vamo deixar!”. A gente técnica, né, fala com os psico...
com os enfermeiros, que eles passam pelos enfermeiros primeiro pra redução, depois
é que eles vêm pra gente (PS).
O componente afetivo que o MS traz era, neste CAPS AD, o que mais se destacava,
visto que existiam algumas dificuldades estruturais que não tornava o ambiente do equipamento
o mais adequado para um cuidado humanizado. Essas dificuldades foram amplamente
criticadas pelos entrevistados.
O MS (BRASIL, 2016) também pontua que o acolhimento nos serviços muitas vezes
é reduzido à “consulta de acolhimento” e, como uma diretriz, ele deve ser muito mais que esse
atendimento específico. Pude acompanhar as consultas de acolhimento com quase todos os
profissionais de saúde entrevistados e apesar de existir a institucionalização dessa prática no
127
Enquanto aguardava na recepção vi uma usuária, que já vi outra vez no serviço, ser
acolhida por uma gestora. Esta a estava ajudando com a administração da medicação,
pois ela estava agitada enquanto aguardava ser acolhida na “consulta de acolhimento”.
Posteriormente, vi outra usuária, que também já vi outras vezes no serviço, que me
cumprimentou e ficou por ali. Ela foi acolhida pela mesma funcionária que conversou
longamente com ela (DIÁRIO DE CAMPO).
ver, sem ser visto (SOUZA, 2013; DELEUZE, 2005). Nessas três dimensões do dispositivo é
que podemos discutir sua função estratégica. No saber, nas práticas e no poder.
Assim como a própria RD pode ser considerada um dispositivo (PRESTES, 2017) sob
essa perspectiva estratégica ampla operando discursos, instituições e enunciados nesse jogo
heterogêneo sobre o fenômeno do uso de drogas e à atenção à saúde aos usuário de substâncias
psicoativas, o acolhimento em uma perspectiva de gestão também ganha essa característica.
O dispositivo, então, refere-se ao modo como vários elementos articulam-se para
atingir um determinado fim. Tem uma característica dinâmica de movimento. Os efeitos
produzidos por um dispositivo são rearticulados ao conjunto, produzindo uma mudança interna,
um reajustamento. Eles são linhas de força que promovem movimento, deslizamento, processos
de subjetivação e linhas de fissura (SILVA, 2014).
Para o MS (BRASIL, 2016) há uma indissociabilidade entre o modelo de atenção e o
de gestão e com isso a saúde é produzida – no que é de competência do setor saúde – a partir
da forma como os serviços e as equipes são organizados e, consequentemente, como se delineia
o processo de trabalho e que efeitos ele produz sobre os atores envolvidos: profissionais,
gestores e usuários. O acolhimento entra, então, como uma prática e um dispositivo dentro da
atenção e da gestão em saúde como uma forma produzir saúde, sendo ao mesmo tempo uma
diretriz dos diversos níveis de atenção.
Na perspectiva estratégica do dispositivo, o acolhimento potencializa a RD como
estratégia de cuidado ao usuário de substâncias psicoativas. Parece confuso, como uma
estratégia (ou um dispositivo) potencializa outra. Entretanto, o dispositivo em sua noção de
movimento traz consigo essa possibilidade de oscilação e troca de papéis, sendo que ao mesmo
tempo em que o acolhimento potencializa a RD como estratégia de cuidado e se confunde com
ela, a RD em sua noção ampliada potencializa o atendimento humanizado, que vê no
acolhimento o seu dispositivo central, nessa retroalimentação e nessa mudança de posições
constante apontada por Foucault.
Destarte, o acolhimento dentro de uma perspectiva de gestão perpassa todo o trabalho
da equipe em um movimento em que a gestão se torna compartilhada e a equipe inteira se torna
cogestora, tendo em conta os diversos interesses dos grupos inseridos nessa produção de saúde,
incluindo os usuários dos serviços e seus familiares, na percepção de que o trabalho cumpre um
conjunto de finalidades complexas (BRASIL, 2016).
Nesse sentido, o MS lança mão do conceito de dispositivo dentro da PNH por entender
que
130
a forma como a equipe se relacionava, que serão abordadas no penúltimo capítulo desse
trabalho. Mesmo assim, percebemos claramente a valorização dos afetos e das questões
subjetivas dos profissionais, sendo importante para o desenvolvimento das relações de trabalho,
da relação com os usuários e consequentemente da operacionalização da estratégia de RD de
forma objetiva. Isso significa dizer que as relações entre os profissionais e a organização do
serviço advinda dessas relações influenciam diretamente a forma como a RD acontece.
A formação dos profissionais, conforme debatemos longamente, influiu
decididamente na construção das concepções e práticas de RD, mas antes disso, as relações
estabelecidas ali, entre os profissionais de saúde, entre estes e a gestão e entre esses dois grupos
e os usuários foram decisivas para a formação em serviço que esses profissionais tiveram.
Assim, entender e praticar a RD passa por acolher e ser acolhido, bem como o próprio acolher
é uma forma de RD. Essas duas noções sempre se retroalimentando.
Em 2003, a Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas,
conforme citamos, já previa que a RD era uma forma de viabilizar o acolhimento nos serviços
de saúde. Contudo, esse estudo evidencia que o inverso também é válido.
O Grupo de Redução de Danos apareceu inúmeras vezes nos discursos dos atores
como o locus para a consolidação da RD dentro do cotidiano de trabalho do CAPS AD. Este
funcionava uma vez por semana, sempre no mesmo dia, com duração de 1h e 30min, sendo um
grupo aberto. Isso significa que qualquer pessoa que frequentasse o CAPS, incluindo os
familiares, poderia participar do mesmo. O grupo era facilitado por dois profissionais de saúde
e tinha ainda o apoio de uma professora de uma universidade parceira, também profissional de
saúde. Existiam regras do grupo que foram criad as e acordadas em conjunto pelos participantes
e facilitadores e, sempre ao início do grupo, elas eram relembradas.
Ele funcionava passando por algumas etapas. Primeiramente, eram rememoradas as
regras pelos participantes. Em um segundo momento passava-se à discussão do conceito de
RD, na qual aqueles que se sentissem à vontade falavam sobre a sua compreensão acerca do
tema. Essa etapa era seguida de uma breve meditação guiada por um dos facilitadores e depois
culminava numa discussão que o grupo elegia, a partir de um mote que era sugerido por um
132
participante e que era acolhido pelos outros. Quando havia sugestão de mais de um mote, eles
decidiam democraticamente sobre o que seria discutido no grupo.
Um dos facilitadores explicou que se tratava de um grupo operativo. Segundo ele, era
um grupo para as pessoas se alinharem a essa estratégia de cuidado e compartilhar experiências.
Era operativo, pois lançavam ideias que eram compartilhadas.
Segundo Pichon-Rivière (2005), o grupo operativo é uma técnica grupal centrada na
tarefa, numa práxis concreta centrada no “aqui e agora”. No sentido psicoterapêutico, está
voltado para a mudança de estruturas psicológicas estereotipadas. Nele, a comunicação, a
aprendizagem e a resolução de tarefas coincidem com a “cura”, o que leva a criação de um novo
esquema referencial. Nas palavras do autor, os grupos operativos
são constituídos por uma observação sistemática que se realiza juntamente com a
análise das operações da mente em sua inter-relação social e no seu contínuo
intercambio com o mundo externo – observa ção e análise que se centram, ambas, na
tarefa. Sobre o fundamento de uma psicopatologia grupal, propomos uma psicoterapia
pelo grupo centrada na tarefa, juntamente com a análise sistemática das dificuldades
na tarefa, seja essa tarefa de aprendizagem, de cura, de criação, etc. O grupo é o agente
da cura, e o terapeuta reflete e devolve as imagens dessa estrutura em c ontínuo
movimento, encarnando, além disso, as finalidades do grupo (PICHON-RIVIÈRE,
2005, p. 116).
Segundo esse ator, que por sua profissão trazia consigo uma linha discursiva baseada
na biomedicina e na cura da doença – a qual pudemos perceber no diálogo – vemos uma
mudança extremamente importante, fundamental para o entendimento de como a RD se
apresenta dentro das práticas da medicina. Ele compreendeu a importância das práticas grupais
a partir do trabalho com seu colega de profissão, reconhecendo a potência que o grupo
representava para o serviço. Só conseguiu fazer isto saindo do seu local de poder e se colocando
apenas como pessoa diante daquelas outras pessoas no grupo. Isso é evidenciado quando ele
diz que participou como se fosse um usuário, para aprender com eles. Em seu entendimento,
ele acreditava que as pessoas nos seus atendimentos não lhe contavam tudo o que sentiam por
irem ao serviço em busca apenas de medicamentos. Participar do grupo foi uma forma de
compreender as necessidades e a linguagem dos usuários, como ele apontou que era necessário
“conhecer aquelas pessoas”. A potência formativa desse grupo é evidenciada na fala desse
profissional. Esse ator, na sua compreensão, não trabalhava conforme a estratégia de RD, que
ele entendia como sendo uma prática clínica que ele viu o Psiquiatra Referência aplicar.
Entretanto, ao ter se colocado previamente como usuário e aprendido com eles, o médico, em
sua prática, passou a tentar sensibilizar os usuários para as suas necessidades humanas,
aplicando em sua clínica o que aprendeu nos grupos e de forma indireta, em nossa visão,
acabava trabalhando sob a perspectiva da RD. Com essa experiência do grupo e a observação
da prática clínica do Psiquiatra Referência, ele contou que acreditava muito na RD:
Tem um cara aqui, o maior exemplo de redução de danos que eu vi que o Psiquiatra
Referência fez, é espetacular. Esse cara ele, ele bebia com a mulher, tomava 14 litros
134
de cerveja, mas ele queria comer o caranguejo dele e queria tomar cerveja todo sábado.
Ele era alcoolista, assim, de um dia. Só que quando ele chegava em casa quebrava
tudo. Batia na mulher e quebrava tudo. E ele tava há muito tempo aqui. Ele fala alto,
tem problema de surdez. O pessoal pensa que ele é nervoso, é n ão. É porque ele é
surdo. Eu não sei se fui eu que descobri. O cara fala tão alto, todo mundo reclamando.
Não, ele fala assim porque ele é surdo! [...] Aí ele foi, botou o aparelho e tudo,
começou a falar baixo (rindo). Mas ele... o Psiquiatra Referência fez um trabalho com
ele, o seguinte: “Não, você vai beber... você não vai parar de beber.”. Que redução de
danos, cê não para. Não é assim. Cê não diz pro cara “Vai parar!”. E também eu não
acredito nesse negócio de parar de vez, ninguém para. Aí ele... fizeram um acordo, ele
ia com a mulher. Na hora que a mulher fazia... pisca o olho, fazia um sinal pra ele, ele
parava e iam pra casa. Aí foi... demorou, mas conseguiu fazer isso. Eu acredito muito
na redução de danos, eu digo que ninguém para duma vez [...] é o melhor tratamento
ainda é esse. Eu sou... eu digo que não tive vontade de parar de fumar, eu tive que
procurar ajuda pra parar. Tentei parar sozinho, não consegui (PS).
Mas aí, quando eu entrei aqui nesse CAPS, que eu comecei a vivenciar um grupo de
redução de danos e tive uma pessoa de referência, que foi o Psiquiatra Referência, aí
que eu fui vendo a dimensão maior disso. E, principalmente, quando eu escuto, né,
dos usuários veteranos do serviço e veteranos desse grupo, que atualmente tá vindo
poucos. Poucos estão vindo, infelizmente, dos veteranos, mas que eles já tinham
conceitos construídos por eles, né? Dentro desse grupo. Então assim, a redução de
danos, pra mim, tem a ver com qualidade de vida . Como você pode tá conduzindo a
sua vida, mesmo que pra isso você precise usar alguma substância, né? Partindo de
quê? Da consideração de que nem todo mundo consegue, infelizmente. Ou não quer.
Tem gente que não quer. Mas aí como é que essas pessoas, mesmo sem querer deixar
de usar ou não conseguindo, poderiam ter uma qualidade de vida, ou levar uma vida
de modo que diminuísse os prejuízos? E foi a partir da minha inserção nesse grupo,
vendo como eles fazem, foi que isso foi se construindo nisso. Se você me perguntar
se eu tenho um conceito de redução de danos, eu não tenho. Até porque eu já andei,
nas pesquisas que eu faço, que eu fico lendo sobre isso, eu já tô percebendo, né, que
alguns autores já estão que não se tem um conceito fixo, é uma coisa em construção,
devido ter inúmeras possibilidades em relação a redução de danos. Mas o que eu acho
mais bacana e importante, é justamente isso. É justamente o fato de que a redução de
danos, ela é democrática, ela consegue alcançar todos os perfis d e pessoas que tão
envolvidas com o uso de drogas, né? Porque ela não foca na abstinência total. Que
quando a gente trabalha só com esse foco, a gente acaba excluindo algumas pessoas
que, como eu falei, não querem deixar de usar drogas ou não conseguem, por uma
série de motivos. E assim, pra mim é bem gratificante, né, trabalhar sob essa
abordagem, eu consigo ter uma compreensão sobre isso. Claro que às vezes a gente
135
processos educativos em saúde, nesse caso, de uma educação em saúde voltada para essa
tecnologia de cuidado da RD e menos com um saber autoritário que parte dos profissionais,
salvo raras exceções. O que se destacou, de fato, foi que a relação entre profissional-usuário era
o que ditava muitas vezes esse interferir dos profissionais, que a nosso ver, pode ser também
um caminho de RD.
Outros grupos, além do Grupo de Redução de Danos, bem como outras atividades
individuais, mostraram-se potentes em relação à maneira que o usuário olhava para si mesmo,
podendo a RD inclusive ser vista como um dispositivo de subjetivação, o que ficou bastante
evidente no grupo. O relato de um usuário, descrito no diário de campo contempla essa
percepção:
O segundo facilitador pontuou que percebeu mudanças nos discursos dos usuários, que
transformaram também suas atitudes, a partir do que aprenderam no grupo com os outros. Ele
ainda compreendia que existiam várias facetas e vieses da RD, também tentando intervir o
menos possível para que os usuários tivessem protagonismo:
Eu vejo que as pessoas que tão lá os discursos são muito diferentes, já de quando eu
entrei. Eu vejo pessoas que quando eu entrei não estavam e começaram a participar e
é notável assim, notável a mudança no discurso. [...] Por exemplo, um discurso que a
gente escutou ontem no grupo “Aí eu quando usava substância eu passava quatro dias
fora de casa e quando eu voltava era aquela, aquela coisa em casa. E hoje eu
experimentei fazer outro caminho. Não vou... eu vou usar a substância, mas ao invés
de ir pra casa, eu venho pro CAPS. Minha família vem até o CAPS e me pega aqui no
CAPS e, sei lá, de repente tem a oportunidade de conve rsar com algum
profissional...”. Eu entendo isso claramente como uma redução de danos. Uma das
facetas, das várias facetas da redução de danos, assim. [...] De que cada um... eu
entendo, tanto que eu pergunto a ele “como é que você define a redução de dano s?”,
então eu, na realidade eu dei a minha definição, mas de repente, a pessoa que fez esse
discurso que eu acabei de citar já entende a redução de danos como outra coisa, né,
assim “Eu usava dez dias, eu só usei quatro”. É... “Eu usava e voltava pra casa, é... e
hoje eu de... resolvi vir ao CAPS pra poder a minha família...”, isso já é como eu
entendo como ele entende a redução de danos, mas também tem a questão de como às
vezes tem gente no grupo e não sabe o quê que é a redução de danos, eu coloco pra
eles dizerem e a pessoa ir meio que formulando, né? Porque não é uma... não é um
grupo que, que é uma aula, digamos assim. É uma... cada pessoa vai entendendo seu
conceito e ela, por exemplo, a menina que perguntou “o que é redução de danos, que
eu não sei direito?”, aí depois de todas as pessoas terem falado eu perguntei mais ou
menos o que ela achava. Eu lembro que ela até falou... eu: “você entendeu?”, e ela
“Entendi, mais ou menos. É como se fosse isso?”. “Também, é, pode ser.”. Entendeu?
Então a partir disso a própria pessoa vai formando o conceito de como é que ela acha
137
que pode ser a redução de danos nela. Também tem isso aí. Esse viés.
(FACILITADOR 2)
Além dos relatos dos profissionais, pude acompanhar seis semanas do Grupo de
Redução de Danos e apreender o papel dele dentro da lógica de cuidado do serviço, sendo um
espaço de potencialização da autonomia dos usuários sobre seus tratamentos e suas próprias
vidas. Era um lugar em que eles, com a facilitação dos profissionais, construíam diariamente as
noções e as microestratégias de RD para si. Os dois profissionais responsáveis pela facilitação
do grupo enfatizaram a importância da construção coletiva do mesmo a partir do Psiquiatra
Referência e dos usuários que frequentavam o CAPS há alguns anos (os veteranos). O
fortalecimento grupal foi tão importante para os usuários, que muitos deles permaneciam no
grupo por anos, mesmo estando em abstinência, por entendê-lo como um espaço de cuidado e
de fortalecimento pessoal.
Paulo Freire (2012), em sua Pedagogia do Oprimido lança a ideia da educação
libertadora, onde o conhecimento é construído em diálogo horizontal entre educador e
educando, opondo-se radicalmente ao que chamou de “educação bancária”, onde os conteúdos
são “depositados” nos educandos pelos educadores como se fossem apenas receptáculos, não
dando espaço para a ação e reflexão. A educação libertadora, para o autor, é humanista e
humanizante, focada no sujeito, retirando o poder do educador dominador e deslocando-o para
o educando em um processo dialógico. Para ele, nessa perspectiva ninguém liberta ninguém,
ninguém se liberta sozinho, mas que todos se libertam em comunhão no mundo, pois assim é
construída uma educação transformadora, no diálogo, na práxis e na crítica reflexiva desta. Essa
noção freiriana paira no campo da saúde, por meio da educação popular em saúde e para além
desta, inserida nos processos de corresponsabilização do cuidado em saúde. Elucidamos: ao
longo das observações, percebemos que o grupo tinha uma espécie de lema, a saber: “liberdade
com responsabilidade”, que era constantemente repetido no grupo, sobretudo no momento de
construção do(s) conceito(s) de RD pelos usuários. Esse processo de construção de concepções
no coletivo configurava-se como um processo educativo e transformador, indo ao encontro do
pensamento freireano. A ideia de liberdade responsável remete a essa noção da tomada de
consciência no coletivo pelo pensamento crítico, na construção do conhecimento de forma
problematizadora, dialógica, que fortalece a autonomia do sujeito que antes era oprimido pelo
poder dominante. Dessa maneira é que a RD, conforme o movimento social lhe constituiu,
torna-se horizontal, especialmente no campo da assistência à saúde, quando o saber/poder é
138
proibicionistas ligados à religião, essa temática era sempre presente no contexto do tratamento
do uso de drogas. Essa pessoa sentiu-se à vontade para criticar a fala de um colega que lhe
incomodou:
Uma pessoa pediu para partilhar um problema, pois precisava de ajuda. Foi escutada
pelos outros. Não sabia o que fazia. Já havia passado por 14 internações. Algumas
pessoas lhe deram sugestões. Foi lançada a pergunta: “Como cada um faz para se
controlar?”. As pessoa s falaram das suas experiências. Conforme as falas emergiam,
o facilitador fazia pontuações. Uma delas foi: “Não cabe a nenhum de nós tá julgando
o que cada um de nós faz para conseguir seus objetivos.”. Uma usuária pediu a fala,
desculpando-se. Criticou a religião, que era muito comentada por eles. Eles passaram
a discutir estratégias de manejo da ansiedade e, posteriormente, a conduta clínica do
médico clínico geral e da psiquiatria. A espiritualidade foi pontuada pelo facilitador,
colocando-a para além da religião cristã e a importância do respeito às crenças. Em
algum momento ele colocou ainda que “Cada um sabe o que é melhor pra si.”. Após
esse momento, eles escutaram um desabafo de uma mulher que falava que o marido
roubava as coisas de casa. Posteriormente, o mesmo facilitador fez um momento de
educação sobre a redução de danos. Afirmou que “a gente não pode generalizar para
os outros a partir das nossas próprias experiências.”. Ele enfatizou que a abstinência
não era o único caminho. Com isso, um usuá rio compartilhou: “Eu já vi gente
recuperada dentro da redução de danos. Totalmente diferente.” (DIÁRIO DE
CAMPO).
da assistência, esta ideia aparece no discurso desse sujeito no sentido de mudança de padrão de
comportamento, de transformação. Podemos pensar, com isso, que o cuidado pode ser
catalizador de mudanças na vida dessas pessoas.
Com tudo que trouxemos nesse capítulo, reforçamos a ideia de que a RD é, de fato,
uma estratégia para o cuidado ou uma tecnologia de cuidado, como pontuamos, que tem como
objetivo essencial a própria vida. No grupo, as pessoas constroem-se enquanto sujeitos, seres
viventes, que buscam melhorar suas vidas e viverem melhor usando ou não substâncias
psicoativas.
tipo IV, que é uma unidade 24h, em cidades com mais de 500 mil habitantes, capacitada para
atender urgências e emergências e para atuar nas cenas de uso de álcool, crack e outras drogas.
Para entendermos melhor como a RD está relacionada de forma estratégica à rede,
precisamos discutir um pouco do conceito de rede, que perpassa toda construção metodológica
da nossa pesquisa.
Amaral (2013), entendeu “rede” como um conceito que permeia inúmeras disciplinas
como princípio organizativo, explicativo, constitutivo ou analítico, sendo assim um
transconceito. A noção de transconceito é útil para a nossa análise, uma vez que a RD foi
apontada pelos entrevistados frequentemente em sua transversalidade característica,
permeando todos os princípios que orientavam as práticas do serviço, sendo estas sempre
conectadas à rede maior, inicialmente à Psicossocial, depois à Rede de Saúde como um todo e
ao SUS. A própria noção de rede, como aponta o autor, traz consigo os aspectos de ligação,
articulação, associação, interdependência e conjunto. Dessa mesma forma, podemos pensar a
própria noção de “sistema” como algo que é constituído por redes interconectadas. Assim se
pretende o SUS.
Tanto o é, que a Portaria 4.279, que estabeleceu diretrizes para a organização da rede
de atenção à saúde, em 2010 colocou que a “Rede de Atenção à Saúde é definida como arranjos
organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que
integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a
integralidade do cuidado” (BRASIL, 2010, p. s/n).
Portanto, a RD pode ser entendida como um dos aspectos estratégicos dos arranjos
organizativos da RAPS, especialmente voltada à assistência das pessoas usuárias de álcool e
outras drogas. Em sua essência, a RD tem dentro de si essa noção de cuidado integral, quando
aplicada ao âmbito da saúde. Com esse entendimento, a investigação buscou a relação entre a
RD e a rede, sobretudo no diálogo com a gestão. Embora não tenhamos encontrados
documentos quer versassem sobre isso nas esferas de gestão municipal ou estadual, o cenário
da pesquisa nos propiciou várias reflexões. Percebemos no campo que o diálogo em rede era
sempre algo buscado pela gestão local deste CAPS AD e, consequentemente, pelos
profissionais, que também tinham papel de articuladores.
Viemos, até aqui, discutindo a aproximação da RD à política de humanização por meio
do acolhimento, ambos como dispositivos estratégicos dentro do CAPS AD. Podemos entender
que estes se ampliam para a rede, na própria noção intrínseca ao dispositivo, conforme
discutimos. A PNH, sendo aplicada a uma esfera de gestão, defende a possibilidade de os
142
trabalhadores colocarem-se de forma ativa nos seus processos de trabalho, no planejamento das
atividades, elaborando as condutas, participando dos processos de gestão e avaliação do
trabalho, como copartícipes (BRASIL, 2016). Os profissionais de saúde tornam-se, então,
cogestores, sendo planejadores e o executores da política ao mesmo tempo. Uma gestão que
pensa a RD como princípio norteador precisa levar em consideração todos os envolvidos na
assistência, incluindo ainda os usuários, familiares e comunidade.
Dessa forma, durante a pesquisa percebemos a importância do trabalho em rede para
esse equipamento, sendo o diálogo com os outros pontos da rede articulado pelos profissionais
que realizavam as atividades institucionais de acolhimento, prioritariamente. Além disso, os
casos mais complexos eram coordenados pela gestão e grupos de trabalho eram montados para
esse fim. O relato do diário de campo mostra como a articulação acontecia:
Enquanto esperava, eu presenciei uma discussão acerca de um caso que a rede tinha
incluído o CAPS AD. A Célula de Saúde Mental tinha pedido suporte para um caso
de um hospital de grande porte, pela dificuldade do manejo de uma mãe que queria
internar o filho. Ela já havia tentado deixá-lo numa unidade de acolhimento durante a
noite. Não conseguindo, levou-o a esse hospital, que entendeu o caso como
ambulatorial, mas o vínculo fragilizado fazia com que ela não quisesse
responsabilizar-se por ele. A equipe (dois profissionais do serviço social e um da
psicologia) discutiam o caso. Tinham estudado seu prontuário e a coordenadora
pontuava que essa mãe necessitava de “cuidado” (DIÁRIO DE CAMPO).
O acompanhamento desse caso ficou a cargo da equipe responsável, que tomou a frente
dessa articulação, dando os encaminhamentos necessários. Nesse caso, a sensibilidade dos
envolvidos em olhar também a familiar do “paciente” propriamente dito nos mostra que essa
equipe levava em consideração o trabalho em rede, olhando várias dimensões desse adoecer.
Nesse caso a equipe identificou que os vínculos familiares tinham que ser melhor trabalhados
e debruçou-se sobre isso.
Embora existisse essa articulação com a rede nesse equipamento, muitos profissionais
colocaram a dificuldade de comunicação dentro da rede, e que cada um “ficava no seu
quadrado”. Uma profissional colocou que, às vezes, alterações simples, como a atualização dos
telefones e endereços das unidades básicas não eram feitas, que fazia com que os usuários
fossem a sítios errados dentro do território e retornarem ao CAPS. Um profissional, inclusive,
salientou a dificuldade que a violência trazia para esse trabalho em rede, uma vez que por conta
do domínio de facções criminosas, os usuários não podiam frequentar o território onde estaria
a sua unidade básica de referência, ou mesmo tinham que deixar de frequentar o CAPS, quando
o equipamento mudava de localidade, dificultando o cuidado integral. Ademais, alguns pontos
da rede, talvez por não se adaptarem às demandas do mundo atual (por conta dos problemas
143
territoriais que alguns usuários enfrentam), por vezes não atend iam aos usuários que pertenciam
a outra área que não fosse a de abrangência da unidade, dificultando o acesso à assistência.
Percebemos, com os dois meses de observação nesse CAPS AD, que a falta de médicos
fazia com que a coordenadora do serviço articulasse constantemente com a rede alguns
atendimentos para o equipamento e, por vezes, o serviço recebia médicos de outras unidades.
Isso causava um desgaste visível tanto na gestão local, quanto nos profissionais de saúde, que
se frustravam com a falta de resolutividade das ações, o que trazia em vários momentos muita
hostilidade por partes dos usuários aos profissionais, sendo muito prejudicial aos vínculos ali
estabelecidos.
Muitos profissionais de saúde reconheciam que a gestão local ficava de mãos atadas
em relação à questão dos profissionais e mesmo da estrutura. Seguem alguns relatos nesse
sentido:
A coordenação é que tenta organizar, né? Tenta organizar essas práticas. Mas assim,
eu até entendo, porque a coordenadora também fica de mão atadas, por conta do
espaço, né? [...] Aí tinha que ter um educador físico. Sim, vamo ver o local. Não tem
local. Vamo ver aqui uma sala pra gente fazer meditação, fazer uma coisa, não tem.
Então assim, a própria gestão também, eu acho, também fica um pouco desestimulada
ou então enfraquecida por conta do espaço, da estrutura e dos equipamentos também,
né? (ROSA, PS)
Mas tem uma coisa que é maior que os profissionais, que é exatamente, partindo de
um nível um pouco maior, de uma gestão maior. De eu não saber o quê que acontece
que o serviço ele não, ele não se desenrola tanto. Como eu venho te falando desde
começo, quando a gente começou a conversar, né? Nós sofremos várias baixas, tá
entendendo? De profissionais e isso tão somente por culpa da gestão. Somente por
conta de gestão, dessa gestã o maior a nível de Secretaria, né? Nós sofremos várias
baixas. Então hoje eu vejo, eu não sei, sinceramente eu não sei te dizer o que é que
acontece. Não sei se é falta de recurso, se é negligência, não sei. Não tenho uma
explicação plausível pra isso, mas passando de um nível hierárquico maior, né? No
caso que é esse da Secretaria, passando pra gestão do serviço. É... claro que, que, que
por conta dessa gestão maior não estar em consonância, digamos assim, com a
necessidade do serviço, o serviço ele acaba não funcionando tão bem. E eu vejo que
não é nem cul... responsabilidade, digamos assim, da coordenadora que tá aqui mais
com a gente, é... algumas coisas no serviço não funcionarem, tá entendendo? Que eu
vejo realmente que não depende dela, mas as coisas que estão a o nosso alcance, eu
vejo que elas funcionam relativamente bem, pra o que a gente tem, tá entendendo?
Claro que deveria funcionar muito melhor e que a necessidade dos nossos usuários é
muito maior do que a gente tem pra oferecer aqui hoje (MIGUEL, PS).
Como, como por exemplo, a gente vem... eu te falei que a gente se mudou pra cá e as
pessoas que ficam ali mais naquela cena de uso começam a frequentar. Então Raquel,
eles trazem muitas necessidades, tá entendendo? Às vezes, é como eu te falei, o cara
não quer: “Eu não quero médico, eu não quero grupo, eu quero só deitar um pouco
pra descansar. Então, como eu passei a noite usando crack, então eu quero aqui, quero
comer, quero descansar um pouco. Na rua a gente não dorme, não dorme direito.” e,
seria ideal que nós tivéssemos alguns leitos, eu acho. Eu enten do que, que não é que
fuja da proposta do CAPS, porque dentro da rede nós temos outros equipamentos,
exatamente isso que esses usuários tão precisando, mas que por um motivo ou por
outro, sei lá, de repente o sujeito não pode ir naquele território que tem o serviço
disponível e o que ele encontra é o CAPS, mas a gente não tem isso para oferecer. E
é uma coisa que a gente tá sentido agora. Agora, eu digo, de uns dois meses pra cá,
mas isso tá se desenhando com mais força agora, tanto que a gente tá tendo alguns
problemas com isso. Desde a semana passada que a gente vem fazendo algumas
reuniões pra entender como é que a gente pode dar conta dessa demanda que tá
chegando e a gente não tem como... não tem como oferecer comida pra todo mundo,
a comida é limitada. A gente não tem como oferecer um local de descanso pra essa
pessoa. E isso seria redução de danos, tá entendendo? E a gente não pode fazer isso
(MIGUEL, PS).
Maria, além de pontuar o problema com a gestão maior, coloca também que por vezes
essa gestão local enfraquecida dificultava as ações de RD:
a equipe, que era ruim. É como se, às vezes, a equipe não existisse, mas apenas partes dentro
de um todo desconectado. Essa evidência foi respaldada na ausência da reunião de equipe nos
dois meses de tentativa de acompanhar a atividade. De fato, outras atividades do serviço e outras
demandas da rede, de certa forma, impediam que ela acontecesse. Todavia, não parecia haver
esforços entre os envolvidos para que ela ocorresse, embora nos momentos de resolução de
casos pontuais a equipe se reunisse, em discussão de algum caso.
A questão da desvalorização profissional pelos baixos salários, os vínculos frágeis
pela contratação temporária por Seleção Pública – que era um contrato de um ano, renovável
por mais um, que não dava direito a férias – apareceram como fatores desmotivadores da
equipe, que acabava por fragilizar o trabalho em rede. Era perceptível em alguns moment os que
os profissionais estavam ali dando o seu mínimo e isso era algo que vários deles admitiram.
Houve dias em que havia muito poucos profissionais no serviço, sendo que faltas eram
recorrentes, denotando essa desmotivação que eles referiram.
A gestão local, por sua vez, atribuía também aos profissionais a fragilidade do trabalho,
uma vez que as atividades que eram realizadas no CAPS AD dependiam muito das habilidades
que os profissionais traziam consigo. A maioria dos profissionais de saúde entrevistados estava
terminando seu segundo ano de contrato e é compreensível que vínculos fragilizados e a
descontinuidade da equipe com a constante troca de profissionais e, portanto, descontinuidade
das atividades, gerasse desmotivação e enfraquecimento do trabalho. Dessa maneira, pudemos
compreender o impacto nas atividades do CAPS AD e na RD que a famigerada fragilidade da
RAPS em Fortaleza trazia.
Além dessa debilidade percebida na rede municipal, o cenário parece ser mais
complexo no que diz respeito à comunicação com as unidades administradas pela esfera
Estadual, como o Hospital Mental de Messejana. Este é um hospital psiquiátrico, sendo o único
destino de urgências em psiquiatria da cidade de Fortaleza. Para desintoxicação de substâncias
psicoativas todos os CAPS AD da cidade tinham apenas a Santa Casa de Misericórdia como
referência por meio de uma central de regulação, além desse hospital. O problema é que não
havia regulação pela rede para o Hospital Mental, uma vez que ele se tratava sempre de um
serviço portas abertas. O máximo que os CAPS faziam, então, era mandar um encaminhamento
para o equipamento, quando se deparavam com uma crise que precisava de cuidado em atenção
terciária. Essa falta de comunicação entre as esferas estadual e municipal foi apontado como
uma falha na gestão, bem como a comunicação com as CTs, financiadas pelo estado e que
fazem parte da RAPS.
146
Embora a regulação para as CTs pudesse ser feita pelos CAPS AD, quando de interesse
dos usuários, por meio do Acolhe Ceará, que à época ficava no Centro de Referência sobre
Drogas (CRD), da extinta SPD-CE, não havia comunicação entre essas entidades e os CAPS.
E, embora muitos profissionais entendessem a necessidade dos usuários de serem
encaminhados a essas instituições, muitas vezes por questões de abrigamento, de ameaças ou
por identificação, havia uma crítica a esse tipo de atenção asilar, tanto por alguns profissionais
da saúde como pela gestão, que entendiam que essas entidades podiam ser violadoras de
direitos.
Essas violações foram apontadas pelo Relatório Nacional de Inspeção das
Comunidades Terapêuticas (CFP/MNPCT/PFDC/MPF, 2018). O relatório realizado em
conjunto pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), Mecanismo Nacional de Prevenção e
Combate à Tortura (MNPCT), Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e
Ministério Público Federal (MPF) constatou que várias dessas instituições tinham caráter asilar,
com ausência de recursos para atenção integral aos usuários e a não garantia do direito das
pessoas portadoras de transtorno mental, além de violá-los. O relatório aponta, que mesmo que
a Lei 10.216 preconize meios menos invasivos e preferencialmente comunitários para a
assistência à portadores de transtornos mentais, o pretenso tratamento nas instituições se dava
em situação de segregação e isolamento, que é justamente o oposto do que prevê o modelo de
atenção psicossocial pela lei. O documento coloca ainda que ali se encontravam práticas de
anulação de subjetividade, de restrição de privacidade e do contato com o mundo exterior,
estabelecendo-se um tratamento extremamente invasivo, além de violar os direitos previstos na
lei relacionado às garantias de humanidade e respeito, buscando à recuperação pela inserção na
família, trabalho e comunidade, a proteção contra o abuso e a exploração e o livre acesso aos
meio de comunicação disponíveis.
Embora dentre as CTs inspecionadas nessa pesquisa nenhuma fosse localizada no
estado do Ceará, em 2011, outro relatório do CFP que realizou inspeção nos locais para
internação de usuários de drogas a nível nacional, incluindo o Ceará, já apontava violações de
direitos em CTs do estado, como internação compulsória nessas instituições, o
compartilhamento do mesmo espaço entre adolescentes e adultos, o afastamento do convívio
familiar e comunitário, restrição de liberdade, adoção de medidas punitivas e espaço de
isolamento para cumprimento de “penas disciplinares” (CFP, 2011).
Um informante da SPD-CE, que deu orientações para a busca de documentos estaduais
nas plataformas virtuais públicas do governo, informou que o número dessas entidades
147
vinculadas ao Estado vem caindo ao longo dos anos pela fiscalização da Secretaria que passou
a desvincular as comunidades que não cumpriam as normas para o convênio com o Estado. No
próximo capítulo discorreremos um pouco mais sobre essa temática.
Percebemos ao longo das falas dos entrevistados a dificuldade que a rede t inha de
articulação, especialmente no que tange a atenção terciária. Praticamente não há leitos em
hospitais gerais e a Santa Casa de Misericórdia disponibiliza pouquíssimos leitos para
desintoxicação para o tamanho da demanda do município. Na observação percebi que a procura
pela desintoxicação era constante. Os usuários buscavam com frequência uma internação e com
a ausência de leitos em hospitais muitos deles optavam pela “internação” de longa duração em
CT – como muitos usuários se referem, embora seja constantemente referida pelas entidades
como “acolhimento” –, sendo este um grande nó da rede. Numa lógica de RD, as necessidades
dos usuários sempre devem vir primeiro.
As assembleias de usuários são os dispositivos de controle social dos serviços de saúde
para acolher as necessidades e demandas dos usuários, buscando a melhoria dos serviços. Pude
presenciar uma delas e uma das grandes reivindicações dos usuários e familiares na ocasião era
a necessidade de mais profissionais psicólogos e psiquiatras. Ademais, embora existisse um
profissional de saúde e o conselheiro local presente na assembleia, eles reclamaram a presença
da gestão, pois acreditavam que as suas demandas só seriam ouvidas com a presença da
coordenação nas assembleias. Embora os CAPS trabalhem sob uma perspectiva de cogestão,
isso era algo que eles julgavam importante. Eles aproveitaram a assembleia para elogiar o
trabalho dos profissionais, mas entendiam que eles estavam em número reduzido e que muitas
vezes recebiam informações desencontradas. O conselheiro e o profissional facilitador usaram
o espaço para informar aos usuários que o CAPS voltaria a funcionar sendo tipo III (24 horas)
e que o concurso público para contratação profissionais de saúde para a área da saúde mental,
que ocorreria em breve, deveria suprir algumas de suas demandas.
O fato de o equipamento não estar funcionando em tempo integral era um grande
problema do serviço e uma grande demanda dos usuários. Vários profissionais de saúde
disseram “não saber” porque este CAPS AD, que deveria funcionar 24 horas para
desintoxicação, não estava há meses funcionando da maneira correta, o que eles atribuíam a
algo da gestão superior, especialmente na falta de estrutura e profissionais. Ana relata como
eles estavam tentando lidar com a grande demanda para desintoxicação e a falta de estrutura do
CAPS a fim de não deixar a população desassistida:
148
Por exemplo, esse CAPS ele era pra funcionar a desintoxicação, né? Aí tá desativado.
Não funciona pela estrutura do prédio e tal e aí a gente tá nessa espera já h á um tempo.
Então acaba que a gente tem uma demanda enorme pra desintoxicação e a gente só
tem a Santa Casa pra mandar ou o Hospital Mental, né? E aí, assim, isso limita muito
nossa... a regular as vagas entendeu? Porque a gente tem poucas opções e a Santa
Casa, ela é pra Fortaleza todinha não é só pra essa regional, então a gente, às vezes,
chega a ter aqui um paciente grave e a gente quer ma ndar, liga pra lá não tem vaga
masculina, por exemplo, ou não tem vaga feminina. Então acaba que é muito pequeno
pra quantidade casos que a gente recebe aqui. Só que, o quê que acontece? Qualquer
paciente pode chegar aqui, né? Paciente que já tem o prontuário. Quem não tiver, pode
fazer a abertura de prontuário, mas qualquer paciente pode chegar aqui e dizer assim
“Tô querendo a vaga”, no acolhimento, “Tô querendo a vaga na Santa Casa”, aí a
gente faz essa avaliação dos sintomas, o quê que tá sentindo né? Porque que quer a
vaga. Porque às vezes eles querem abrigamento, às vezes não é a desintoxicação, então
a gente vai fazer uma escuta qualificada pra entender aquilo, né? Pra poder fazer a
regulação da vaga. Aí como é que acontece? A gente liga p ra Santa Casa pra regulação
de vagas, pergunta se tem a vaga. Tendo a vaga, passa pro clínico geral, ele faz o
UNISUS, né? Que é um documentozinho que tem que ser preenchido e aí a gente
encaminha aquele paciente pra lá. O paciente vai por conta própria, n é? A gente não,
não disponibiliza dinheiro da passagem, transporte, nada disso. Ele vai por contra
própria. Aí é... isso pra se for uma desintoxicação. Aí se não tiver, o quê que a gente
tá fazendo? Era uma prática que não tinha antes, mas que agora tá ten do. Os pacientes
eles ficam em observação na enfermagem, às vezes é colocado soro, é como se
começasse o processo de desintoxicação até a gente conseguir a vaga. A gente sempre
orienta eles a chegarem de manhã cedinho às 8h da manhã pra gente já ligar e ve r se
tem a vaga. Se não tiver, ele fica em observação porque tem o médico, tem a equipe
de enfermagem, tem as técnicas e aí eles passam o dia aqui, aí tem as refeições, se
alimentam, almoçam, lancham. No final do dia vão pra casa, né? Então é um cuidado
que a gente pa ssa a ter pra que ele também não fique totalmente é... a mercê, né? Ali
do uso da substância, porque tá... usou, usou muito. Tá cheio de efeitos, cheio de
alucinação, dando febre, né? E aí a gente simplesmente voltar um paciente desse pra
casa, né? Então a gente faz esses cuidados aqui na enfermagem. E aí assim, acontece
dessa forma, aí às vezes eles querem comunidade terapêutica, que também é muito
deles. Aí também pra ir pruma comunidade terapêutica, também tem algumas
regrinhas. Eles tem que tá pelo menos 7 dias abstinentes, sem fazer uso de nada e aí o
ideal é que tenha passado pela desintoxicação antes, mas aí dependendo da avaliação
porque muitos deles também querem abrigamento e tudo, mas a gente sempre explica
né, como é a comunidade tera pêutica, a gente chama de CT, como é que funciona e
tudo, é aí eles já saem daqui com a consulta como médico, aí se for um caso de
medicação, também já pega na enfermagem e leva (ANA, PS).
Como vimos anteriormente, a RD era bem aceita pelos profissionais desse CAPS AD
não só como uma estratégia de atenção/gestão, mas como uma estratégia para o cuidado, ou
149
tecnologia de cuidado, conforme entendemos. Muitos deles apontaram-na como a melhor forma
de tratamento porque leva em consideração as necessidades dos usuários, não os obriga a estar
abstinentes, conseguindo melhor adesão, sendo uma experiência clínica relevante.
Todavia, a despeito dos bons resultados obtidos com a RD no dia-a-dia da assistência,
como essa investigação nos mostra, ainda há desafios para a consolidação da mesma nesse
CAPS AD, na RAPS fortalezense como um todo e, arriscamos dizer, no Brasil.
O primeiro deles apontamos nos primeiros capítulos deste trabalho e diz respeito a
moralização que o paradigma proibicionista colocou sobre o fenômeno do uso de d rogas. A
RD, como confirmamos na pesquisa, ainda é confundida com a defesa da legalização do uso de
drogas, embora como estratégia/tecnologia de cuidado no campo da saúde ela signifique outra
coisa. O conceito de RD, embora esteja sendo cada vez melhor entendido, continua obscuro e
confuso, pois sua pluralidade é, em muitos momentos, mal interpretada. Esse CAPS AD é um
exemplo de como uma boa formação em uma tecnologia pode influenciar diretamente no
cotidiano das práticas. A figura do Psiquiatra Referência foi decisiva para o fortalecimento da
RD nesse CAPS AD.
As questões de gestão apontadas no capítulo anterior certamente configuram-se como
desafios a serem superados. A dificuldade de comunicação entre os equipamentos da rede, entre
a própria equipe e a forma como a gestão era conduzida nesse CAPS AD tornaram-se
relevantes. Existia uma ambivalência por parte dos profissionais de saúde, por vezes, ao
perceber a gestão ora horizontal, ora com características verticais. Em RD é necessária
horizontalidade em seus princípios, práticas e entre todos os envolvidos. Buscar essa
configuração horizontal das relações dentro da saúde é um desafio constante, especialmente
dentro de uma perspectiva de humanização dos serviços.
Além disso, para fortalecimento da RAPS em Fortaleza, a gestão municipal parece ter
um enorme desafio, que é a valorização dos profissionais, que possuem frágeis vínculos de
trabalho, sendo estes temporários, com baixos salários e ausência de férias, levando comumente
à desmotivação destes para o trabalho. O Concurso Público para a Saúde Mental de Fortaleza
realizado no final de 2018 pode resolver esse problema apenas em parte, levando em
consideração a quantidade, ainda insuficiente, de profissionais inicialmente contratados.
Ademais, outro problema enfrentado pela RAPS no município é o da estrutura física dos prédios
que acomodam os CAPSs, os quais estão, muitas vezes, como o local dessa pesquisa, longe de
condições ideais para o bom funcionamento e para realizar as atividades as quais se propõem.
150
Para além das questões da rede municipal, o grande desafio contemporâneo para a
consolidação da RD é anterior. A sua própria existência está ameaçada frente às mudanças
reacionárias das políticas sobre drogas e da política de saúde mental em âmbito federal. Não
houve tempo para se consolidar a RD dentro das políticas e ela vem recebendo constantes
golpes.
Aprendemos com a nossa investigação que os governos estadual e municipal nesse
cenário seguem as diretrizes federais para o funcionamento dos equipamentos da atenção
psicossocial, não existindo leis, políticas ou outros dispositivos jurídicos específicos a nível
regional. No cenário nacional, as novas políticas têm atualmente o objetivo de aumentar o
financiamento das CTs, enfraquecendo, mesmo que indiretamente, a RAPS na assistência ao
usuário de substâncias psicoativas. O Estado do Ceará segue o exemplo federal no que tange o
financiamento público para essa área.
Em audiência pública alusiva ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, ocorrida em
17 de maio de 201913 , na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, que teve participação do
Poder Público e de movimentos sociais e que tinha como objetivo discutir o financiamento da
Saúde Mental e o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial no Estado, um representante
do Governo Estadual por meio da Secretaria Executiva de Saúde Mental fez uma defensiva ao
financiamento público para custeio das CTs por compreender a necessidade das diversas
estratégias terapêuticas, colocando que a rede ainda não supria a demanda de Saúde Mental a
esse público no Estado. Na ocasião, ele foi bastante questionado e criticado pelo público e por
representantes de movimentos sociais, como o Fórum Fortalezense de Redução de Danos e o
Fórum Cearense da Luta Antimanicomial, uma vez que não há atualmente uma coparticipação
do Poder Público Estadual em relação ao financiamento de outros pontos de atenção da RAPS
– especialmente os CAPSs – no estado do Ceará. A mesma situação ocorre no município de
Fortaleza em relação ao custeio dos CAPSs, apesar da compreensão de que houve, nos últimos
dois anos, investimento da prefeitura na RAPS por meio do concurso público para contratação
de profissionais, além da entrega de novas sedes de CAPSs com prédios próprios (muitos
CAPSs do município funcionam em prédios alugados). Esse investimento, inclusive, foi
bastante reconhecido e citado pelos participantes da pesquisa, no sentido de terem esperanças
de que os problemas que envolviam os frágeis vínculos dos profissionais iriam melhorar,
13Audiência pública veiculada ao vivo pela Rádio e TV Assembleia do Estado do Ceará na tarde do dia 17 de
maio de 2019 entre 15:00 e 18:00h, estando o arquivo disponível para consulta na Assembleia Legislativa do
Estado do Ceará mediante solicitação ou com a pesquisadora principal em arquivo de texto taquigrafado.
151
14A pesquisadora principal teve acesso ao documento por ter participado da audiência pública como representante
de movimento social.
152
descrição das atividades realizadas pelo equipamento tudo que se refere à RD, sem, contudo,
fazer menção a esse termo em nenhuma parte do texto. Esse foi o primeiro golpe oficial que a
RD sofreu nas políticas de saúde mental e drogas desde sua inserção em 2003.
O proibicionismo na saúde ainda ganhou força nesse mesmo governo com a Portaria
Interministerial nº 2, de 2017 e a Portaria GM/MS 2434, de 2018. A primeira fortalecia as CTs
por meio de formação, pesquisa e cuidado relacionado ao método utilizado por essas
instituições, sendo custeado pela União. Por sua vez, a segunda realizava alterações
orçamentárias para internação psiquiátrica acima de 90 dias, aumentando o financiamento.
Grosso modo, assistimos na saúde mental brasileira o fortalecimento gradativo da lógica
manicomial.
No que tange as políticas sobre drogas, o recrudescimento começou com a aprovação
da Resolução nº 1, 9 de março de 2018, do CONAD, que visava endurecer as políticas sobre
drogas, com o objetivo de reformulá-las, principalmente no sentido terapêutico, fortalecendo a
lógica da abstinência no cuidado ao usuário de drogas.
Neste ano de 2019, o novo governo federal do presidente Jair Bolsonaro seguiu os
princípios dessa resolução quando por meio de decreto publicou a nova Política Sobre Drogas
(Decreto nº 9.761, de 11 de abril de 2019), – que não foi construída em debate com a sociedade,
a exemplo da Política de 2005 – que tem entre os seus pressupostos o de proteger a sociedade
do uso de drogas lícitas e ilícitas e da dependência de tais substâncias. O texto da nova política
pode ter uma amplitude absurdamente abrangente do ponto de vista interpretativo, uma vez que
nessa perspectiva poderia se levar em consideração os psicofármacos dentro da categoria de
“drogas lícitas”, entrando em claro conflito com os interesses da indústria farmacêutica, que
movimenta um mercado relacionado aos psicotrópicos que está em constante expansão há
algumas décadas. Este mercado tem apoio de uma parcela de profissionais da medicina,
especialmente na psiquiatria, campo que tem se beneficiado pelo desenvolvimento de novas
drogas para o tratamento de diversas condições mentais. Com esse entendimento amplo, a nova
PNAD corre o risco de tensionar grupos que talvez não pretendesse, representada pela
psiquiatria e a indústria farmacêutica.
Destarte, torna-se evidente seu viés moralizante, como no início do proibicionismo
americano, uma vez que segue princípios conservadores das políticas públicas propostas pelo
governo federal. Estes são congruentes com os interesses de um grupo evangélico do Congresso
Nacional que apoia o Poder Executivo, visto que no texto da nova PNAD o tratamento para
153
usuários de álcool e outras drogas em CTs ganha destaque e é sabido que grande parte delas
são ligadas a instituições religiosas evangélicas.
Esse interesse político-ideológico é claro no texto da política quando ela pretende
aumentar significativamente o apoio às CTs, incluindo ainda financiamento a grupos de apoio
e de mútua ajuda. Este último tipo de financiamento não está previsto em nenhum documento
do SUS que trata da atenção às pessoas usuárias de álcool e outras drogas, provavelmente, por
não utilizarem estratégias assistências reconhecidas como da área da saúde propriamente dita e
por serem, em sua grande maioria, entidades anônimas. As CTs, por sua vez, não se tratam
efetivamente de estabelecimentos de saúde, uma vez que na normativa do MS que dispõem
sobre as instituições, elas caracterizam-se como uma entidade de assistência social por meio de
uma Certificação de Entidade Beneficente de Assistência Social na Área de Saúde (CEBAS),
sendo regulamentadas nesse status pela Portaria 834 de 26 de abril de 2016. É, no mínimo,
curioso, o financiamento de entidades que não são efetivamente de saúde, em detrimento do
maior financiamento aos estabelecimentos públicos de saúde do SUS que fazem parte da RAPS
que, como percebemos na investigação, poderia ser beneficiada com mais recursos financeiros
a esses estabelecimentos.
A ameaça dessa nova política não pode ser interpretada como sendo apenas para a RD
em todos os seus aspectos, especialmente quando a oculta frente ao fortalecimento das
estratégias de redução da oferta e, especialmente, de redução da demanda, esta última que a
política enfatiza, como nunca antes, ao falar em promoção e manutenção da abstinência pelas
pessoas em geral. A ameaça desta nova PNAD pode ser interpretada como sendo também para
a atenção aos usuários de álcool e outras drogas de forma geral dentro da RAPS, quando enfatiza
o financiamento de CTs. Além disso, o termo “redução de danos”, que na antiga PNAB era
norteador como uma das estratégias adotadas nas políticas públicas sobre drogas, praticamente
some no novo texto, sendo observado apenas em uma breve passagem que se refere à lei de
drogas, de 2006.
Embora a PNAB de 2005 previsse que fossem promovidas as iniciativas terapêuticas
que apresentassem melhores resultados, esse critério parece não ter sido observado nem na nova
PNAB, nem na recém sancionada Lei 13.840, de 5 de junho de 2019, de projeto original de
autoria do atual Ministro da Cidadania, Osmar Terra, que ignoraram pesquisas atuais sobre a
temática das drogas. A nova lei, que tem sido chamada de “nova lei de drogas”, altera alguns
aspectos da Lei 11.343/2006. Embora ela não tenha conseguido retirar o termo “redução de
danos” da lei, estando ele presente no capítulo II, renomeado “Das Atividades de Prevenção,
154
Essa investigação nos mostrou de forma complexa o que é a redução de danos dentro
do cenário escolhido e como a estratégia é operada. Aprendemos que as concepções e práticas
da RD estão entremeadas e são indissociáveis. As concepções seriam princípios gerais que
orientam as práticas. Dentre essas concepções estão: a redução do uso das substâncias, a
15 Esse fato foi amplamente divulgado na mídia e em notas oficiais das instituições. Ver:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/05/29/estudo-da-fiocruz-sobre-uso-de-drogas-no-brasil-e-
censurado.ghtml ,
https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-assegura -qualidade-de-pesquisa -nacional-sobre-drogas-0
155
redução dos riscos e prejuízos à saúde associados ao uso, o entendimento de que a abstinência
não é obrigatória para o tratamento do uso problemático de substâncias psicoativas, a mudança
de substância como opção de tratamento, o olhar integral ao sujeito, a busca do cuidado
humanizado do usuário e a melhoria da sua qualidade de vida, a adequação à necessidade do
indivíduo, o respeito aos limites do sujeito, a RD como acolhimento, a valorização da
autonomia do sujeito e a liberdade responsável.
Essas concepções são expostas concretamente nas práticas do CAPS AD por meio de
consultas de todas as especialidades profissionais, nos cuidados com a saúde orientados pelos
profissionais, nas visitas domiciliares, nos trabalhos na comunidade, nos grupos terapêuticos,
na construção do PTS, no tratamento medicamentoso, na distribuição de insumos, no acolher
com amor e carinho e nas ações simples do cotidiano, como oferecer água ou um banho aos
usuários. Em resumo, a RD estava presente, em alguma dimensão, em todas as atividades deste
CAPS AD.
A importância dada pelos atores ao cuidado que a RD proporcionava fez com que nós
a entendêssemos como uma tecnologia de cuidado de contornos leves, que tem como objetivo
primordial a melhoria da qualidade de vida das pessoas.
Compreendemos a importância da formação dos profissionais desse CAPS AD,
especialmente a educação em serviço, para a construção das concepções e consequentemente
das práticas de RD nesse contexto. A figura do Psiquiatra Referência e a existência do Grupo
de Redução de Danos foram fundamentais para esse processo de formação transformadora, pelo
qual os profissionais passaram, mudando seus preconceitos sobre o fenômeno do uso de drogas
e sobre a própria RD. Este grupo configurou-se como o locus da consolidação da RD no serviço,
tanto por parte dos profissionais como dos usuários, sendo um espaço de construção e
fortalecimento da autonomia dos sujeitos, onde eles encontravam, ainda, novas formas de
subjetivação.
O acolhimento como dispositivo estratégico da PNH demonstrou-se um
potencializador da RD, viabilizando-a. Esses conceitos dialogam de forma estreita, sendo que
um dispositivo potencializa o outro em uma troca de posições constante.
Um dos questionamentos iniciais da criação do nosso problema era saber se a RD
existia e como era operada nesse cenário de pesquisa para nos ajudar a compreender como
estava o desenvolvimento da estratégia na assistência em saúde do município de Fortaleza,
como uma forma de extrapolação dos resultados da investigação. Percebemos que a RD não só
existe no cotidiano de trabalho, mas que esses profissionais, em sua maioria, compreendem o
156
conceito de forma ampla, como as políticas do MS e as políticas sobre drogas preconizam, bem
como realizam as práticas de acordo com os princípios da RD, expostos nas políticas e na
literatura sobre o assunto.
Embora não exista evidências de que as práticas de RD tenham sido fortalecidas em
outras partes da cidade, especialmente pela ausência de documentos de gestão que nos apontem
nessa direção, aprendemos com essa investigação que existem grupos de pessoas e equipes
profissionais no município que trabalham sob essa perspectiva, especialmente quando
investigamos a RD em relação à RAPS fortalezense. Para um melhor aprofundamento de como
a RD é desenvolvida no município de forma global, seria preciso dialogar com gestores e
profissionais de outros equipamentos e, principalmente, conseguir acessar documentos de
gestão, como planos e relatórios, o que não foi possível neste estudo e que apontamos como a
principal limitação do mesmo.
Ademais, pudemos compreender como a RD foi se fortalecendo dentro do serviço
pesquisado como uma tecnologia de cuidado das pessoas que usam substâncias psicoativas. Os
motivos apontados pelos profissionais para trabalhar sob a perspectiva da RD foram: o fato de
ela ser funcional; ser a melhor forma de tratamento; pelo entendimento de que ela era necessária
para cuidar dos usuários e porque eles acreditavam nela, visto que conviviam com os seus
resultados positivos.
Em um momento em que a RD está sofrendo diversos ataques, presenciar a potência
da estratégia serve de acalento às pessoas que, como eu, preocupam-se com qualidade da
assistência e do cuidado das pessoas que usam drogas, respeitando suas necessidades. Segundo
os entrevistados, a RD constitui-se em um novo olhar para o uso das substâncias psicoativas,
para além da doença, para além do tratamento asilar, focado no sujeito, fortalecendo sua
autonomia, valorizando suas escolhas e respeitando seus direitos. É uma tentativa da construção
de um novo paradigma, que corre riscos de jamais ser consolidado frente aos retrocessos morais
e políticos que a sociedade contemporânea vive. O decreto presidencial que tenta tirar a RD das
políticas brasileiras é um golpe nas políticas de saúde, mas principalmente, é um golpe nas
pessoas que se beneficiam delas, os próprios usuários dos serviços de saúde e os usuários de
substâncias psicoativas que constituem o Movimento de Redução de Danos no Brasil.
Na área de políticas sobre drogas, não podemos assistir a este retrocesso senão por um
viés higienista, que quer tirar os “drogaditos” – os novos loucos – da sociedade pela imposição,
além de uma lógica punitiva da abstinência, uma lógica religiosa e moral, que não é condizente
157
com a noção de cuidado humanizado preconizada nas política institucionais de saúde, dentro
de um estado laico e diverso como o Brasil.
Neste momento cabe aos profissionais de saúde, aos redutores de danos e aos usuários
do serviço uma espécie de resistência, pois a perspectiva de um cuidado comunitário
humanizado baseado na obrigatoriedade da abstinência é tão contraditório, quanto incoerente.
Ainda que a RD não existisse, não é possível que se pense uma prática de saúde humanizada
que não escute as necessidades dos usuários.
Existem muitos desafios para a consolidação da RD no país, no estado do Ceará e no
município de Fortaleza, como vimos. Além das novas políticas federais e o financiamento de
CTs pelo Governo do Estado, a gestão desestruturada da RAPS em Fortaleza, a dificuldade de
comunicação da rede municipal entre as unidades de saúde e com a rede estadual, os baixos
salários e os vínculos empregatícios frágeis dos profissionais dos CAPSs, além da estrutura
física precária dos equipamentos são dificuldades a serem superadas.
Aos poucos, o investimento financeiro do Poder Público municipal em infraestrutura
e recursos humanos tem tentado reverter esse quadro, mas os esforços permanecem
insuficientes.
Não sabemos, portanto, como será o futuro da RD no que diz respeito às políticas de
saúde, mas esta investigação evidenciou a potência da estratégia, seja como uma lógica de
cuidado humanizada em uma tecnologia de cuidado, como política pública ou dentro de uma
noção de gestão estratégica para a atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas.
Aprendemos que a RD tem um aspecto pragmático inegável, que as novas políticas sobre drogas
podem tentar negar, mas não apagar.
Que a RD perdurará no movimento social não nos resta dúvidas. Nossas interrogações
referem-se ao futuro da RD nas políticas de saúde e, a partir do que aprendemos nessa
investigação podemos questionar: como se pode pensar as práticas dentro do CAPS AD fora da
perspectiva da RD? As novas políticas conseguirão suplantar suas concepções e suas práticas?
Essas perguntas apenas o tempo responderá. Todavia, é possível que se pense que as
mudanças já operadas pela estratégia nos serviços, como este em questão, não serão tão
facilmente esquecidas.
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dependências. São Paulo: Editora Atheneu, p. 457-68, 2006.
RICOEUR, P. Teoria da interpretação. – Lisboa, Portugal: Edições 70, 2013.
SANTOS, et al. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil.
Physis: revista de saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 995-1015, 2010.
SANTOS, N, R. Sistema Único de Saúde de todos: o legal e o real. Saúde em debate. Rio de
janeiro, v. 35, n. 90, p. 356-365, jul./set. 2011.
TEIXEIRA, M. B. et al. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise
da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Ciência & saúde coletiva, v. 22, n. 5,
p.1455-1466, 2017.
TEIXEIRA, M. B. et al. Potencialidades e desafios de uma política pública intersetorial em
drogas: o programa “De Braços Abertos” de São Paulo, Brasil. Physis: revista de saúde
coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, 2018.
UNODC. United Nations Office on Drugs and Crime. Pre-brief to the member states. World
drug report, 2017. – Viena, 26 June, 2017.
VARGAS E. V. Fármacos e outros objetos sócio-técnicos: notas para uma genealogia das
drogas, In: LABATE B. C. et al. (orgs.) Drogas e cultura: novas perspectivas – Salvador:
EDUFBA, 2008.
APÊNDICE A – ROTEIRO DE ORIENTAÇÃO PARA BUSCA DE DOCUMENTOS
INFORMAÇÕES GERAIS
Nome:
Gênero:
Data de Nascimento: Idade:
Profissão:
Nível de escolaridade:
Tempo de profissão:
Tempo no serviço:
Possui especialização referente ao trabalho no CAPS AD? Se sim, especificar.
Contato:
Ementas:
1. Para começar nossa conversa, você poderia me falar um pouco sobre como você
vê/percebe/entende o uso e abuso de álcool e outras drogas (substâncias psicoativas) pelas
pessoas? (Abordar significados, crenças, posicionamentos).
2. Você poderia me falar um pouco sobre a população que procura o serviço do CAPS AD?
(Pessoas que atende diariamente e que participa aqui das atividades).
3. Você poderia me falar um pouco sobre a sua profissão (atuação profissional) na assistência
às pessoas que usam drogas de forma geral?
Ementas:
Ementas:
1.Você conhece o termo redução de danos? (Se sim,) Como e quando o conheceu?
2. O que você entende por redução de danos? (Explorar o conhecimento do profissional de
forma geral acerca do conceito, deixar espaço aberto para ampliações).
Ementas:
1. Você poderia me falar um pouco sobre as práticas que são desenvolvidas no CAPS AD que
você trabalha?
2. Você poderia me falar um pouco a sua prática aqui no CAPS? (Possível explorar o que
alicerça a prática.)
3. Você recebe ou busca alguma orientação para a sua prática cotidiana no CAPS AD? (Se sim.)
Que orientações? Como ocorrem? São dadas por quem (instituição ou pessoas)?
4. A redução de danos está presente nas práticas do CAPS? (Se sim.) De que maneira?
5. A redução de danos está presente na sua prática no CAPS AD? (Se sim) Como? O que o leva
a adotar (ou não) a redução de danos em sua prática? Recebe ou busca orientações sobre a
prática na redução de danos?
6. Você pode comentar um pouco sobre como você percebe a gestão das práticas no CAPS AD
que você trabalha?
6.1. Como você percebe a gestão das práticas em relação à redução de danos?
7. Pensando agora nas práticas que você desenvolve, há algo que gostaria de desenvolver, mas
não consegue ou tem dificuldades para desenvolver? Por quê?
APÊNDICE C - ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA PARA
GESTORES DO CAPS AD
INFORMAÇÕES GERAIS
Nome:
Gênero:
Data de Nascimento: Idade:
Profissão:
Nível de escolaridade:
Cargo/função:
Tempo em cargo de gestão:
Tempo na gestão do serviço:
Possui especialização referente ao trabalho no CAPS-AD? Se sim, especificar.
Contato:
Ementas:
1. Para começar nossa conversa, você poderia me falar um pouco sobre como você
vê/percebe/entende o uso e abuso de álcool e outras drogas (substâncias psicoativas) pelas
pessoas? (Abordar significados, crenças, posicionamentos).
2. Você poderia me falar um pouco sobre a população que procura o serviço do CAPS AD?
(Pessoas que atende diariamente e que participa aqui das atividades).
3. Você poderia falar um pouco sobre a sua profissão (atuação profissional como gestora) na
assistência às pessoas que usam drogas de forma geral?
Ementas:
1. Você poderia falar um pouco sobre a gestão do CAPS AD em que você trabalha? O que
orienta esse trabalho? (Explorar princípios e diretrizes norteadores, políticas e normativas, além
da gestão prática).
2. Como é a relação da gestão desse equipamento com os outros níveis hierárquicos d a gestão,
a Rede de Atenção à Saúde e a RAPS? (Em nível local, municipal e estadual) Quais são os
órgãos gestores aos quais o CAPS AD responde, hierarquicamente?
3. Você recebe ou busca orientações para o trabalho na gestão do CAPS AD? (Se sim,) Que
orientações? Como ocorrem? São dadas por quem (instituição ou pessoas)?
SESSÃO 3 - REDUÇÃO DE DANOS
Ementas:
1. Você conhece o termo redução de danos? (Se sim,) Como e quando o conheceu?
2. O que você entende por redução de danos? (Explorar o conhecimento do gestor de forma
geral acerca do conceito, deixar espaço aberto para ampliações).
3. A redução de danos está presente na rede de atenção psicossocial onde esse CAPS AD está
inserido? (Se sim,) De que maneira?
1. Você poderia me falar um pouco das práticas que são desenvolvidas no CAPS AD que você
é gestor(a)? Poderia falar um pouco da gestão dessas práticas? (Explorar funcionamento do
CAPS, organização, coordenação das práticas, operacionalização, aprofundando as questões da
sessão 2.)
2. A redução de danos está presente nessas práticas? (Se, sim). De que maneira? O que leva a
adoção (ou não) da redução de danos? Recebe ou busca orientação para a gestão das práticas
em redução de danos?
3. Pensando na sua prática de gestão no CAPS AD, há algo que gostaria de desenvolver, mas
não consegue ou tem dificuldades para desenvolver? Por quê?
APÊNDICE D - ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO
• Aspectos a se observar:
1. Postura/conduta dos profissionais;
2. Construção do Projeto Terapêutico Singular;
3. Relação profissional-usuário e profissional-familiares;
4. Relação entre o CAPS AD (profissionais e gestão) e a RAPS.
APÊNDICE E – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA
PROFISSIONAIS DE SAÚDE
Prezado(a),
Eu, Raquel Cerdeira de Lima, aluna do Curso de Mestrado Acadêmico em Saúde Pública do
Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará
(UFC), estou desenvolvendo uma pesquisa intitulada “Estratégia de redução de danos em um Centro
de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas no município de Fortaleza: concepções e práticas”, sob
orientação da Profa. Dra. Maria Vaudelice Mota e coorientação da Profa. Dra. Maria do Socorro de
Sousa.
O estudo tem o objetivo compreender concepções e práticas da estratégia de redução de danos
na atenção à saúde a usuários de álcool e outras drogas em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool
e Drogas (CAPS-AD) no município de Fortaleza. Para alcançá-lo utilizaremos análise de documentos,
entrevistas individuais semiestruturadas e observação.
Convido-o(a) a participar voluntariamente do estudo, por meio de concessão de uma entrevista
e permitindo a observação das atividades que você realiza no CAPS AD, quando isto for viável, de
forma a contribuir para a elucidação dos objetivos da investigação. A sua participação não será
remunerada, nem trará prejuízo a você, à instituição que atua ou a seus usuários.
A pesquisa não lhe trará nenhum benefício direto. Ela poderá beneficiar-lhe indiretamente,
uma vez que seus resultados podem contribuir para mudanças na assistência à saúde que impactem os
serviços de saúde mental em que você trabalha.
Os riscos inerentes ao estudo estão relacionados à possibilidade de as perguntas da entrevista
ou a presença da pesquisadora nas observações das atividades lhe causarem algum desconforto
emocional ou constrangimento, podendo o participante optar por não responder questões da entrevista,
interrompê-la, ou retirar seu consentimento para as observações em qualquer momento do processo sem
qualquer prejuízo.
As entrevistas serão gravadas por meio de equipamento eletrônico de áudio, sendo
resguardado o sigilo de todas as informações obtidas, as quais serão utilizadas somente para fins da
pesquisa, preservando sua identidade. Para sua comodidade, a entrevista poderá ser agendada, de acordo
com a sua disponibilidade, em local, data e horário de sua preferência.
Você poderá ter acesso às gravações e às informações obtidas na entrevista, podendo deixar
a participação da pesquisa e/ou retirar seu consentimento para o uso das informações a qualquer
momento, sem que haja prejuízos ou penalidades de nenhuma natureza.
Este documento será assinado em duas vias e você receberá uma delas. Antes da assinatura,
tire quaisquer dúvidas que porventura possam existir. Estarei disponível para possíveis esclarecimentos
adicionais no endereço:
ATENÇÃO: Se você tiver alguma consideração ou dúvida, sobre a sua participação na pesquisa,
entre em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa da UFC/PROPESQ – Rua Coronel Nunes de
Melo, 1000 - Rodolfo Teófilo, fone: 3366-8344/46. (Horário: 08:00 -12:00 horas de segunda a sexta-
feira).
O CEP/UFC/PROPESQ é a instância da Universidade Federal do Ceará responsável pela avaliação
e acompanhamento dos aspectos éticos de todas as pesquisas envolvendo seres humanos.
Fortaleza, ____/____/____
________________________________
Assinatura do(a) Participante
________________________________
Assinatura da Pesquisadora
APÊNDICE F – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA
GESTORES
Prezado(a),
Eu, Raquel Cerdeira de Lima, aluna do Curso de Mestrado Acadêmico em Saúde Pública do
Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará
(UFC), estou desenvolvendo uma pesquisa intitulada “Estratégia de redução de danos em um Centro
de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas no município de Fortaleza: concepções e práticas”, sob
orientação da Profa. Dra. Maria Vaudelice Mota e coorientação da Profa. Dra. Maria do Socorro de
Sousa.
O estudo tem o objetivo compreender concepções e práticas da estratégia de redução de danos
na atenção à saúde a usuários de álcool e outras drogas em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool
e Drogas (CAPS AD) no município de Fortaleza. Para alcança-lo utilizaremos análise de documentos,
entrevistas individuais semiestruturadas e observação.
Convido-o(a) a participar voluntariamente do estudo, por meio de concessão de uma entrevista
e permitindo a observação das atividades realizadas no CAPS AD que você é gestor(a), quando isto for
viável, de forma a contribuir para a elucidação dos objetivos da investigação. A sua participação não
será remunerada, nem trará prejuízo a você, à instituição que atua ou a seus usuários.
A pesquisa não lhe trará nenhum benefício direto. Ela poderá beneficiar-lhe indiretamente,
uma vez que seus resultados podem contribuir para mudanças na assistência à saúde que impactem os
serviços de saúde mental em que você trabalha.
Os riscos inerentes ao estudo estão relacionados à possibilidade de as perguntas da entrevista
ou a presença da pesquisadora nas observações das atividades lhe causarem algum desconforto
emocional ou constrangimento, podendo o participante optar por não responder questões da entrevista,
interrompê-la, ou retirar seu consentimento para as observações em qualquer momento do processo sem
qualquer prejuízo.
As entrevistas serão gravadas por meio de equipamento eletrônico de áudio, sendo
resguardado o sigilo de todas as informações obtidas, as quais serão utilizadas somente para fins da
pesquisa, preservando sua identidade. Para sua comodidade, a entrevista poderá ser agendada, de acordo
com a sua disponibilidade, em local, data e horário de sua preferência.
Você poderá ter acesso às gravações e às informações obtidas na entrevista, podendo deixar
a participação da pesquisa e/ou retirar seu consentimento para o uso das informações a qualquer
momento, sem que haja prejuízos ou penalidades de nenhuma natureza.
Este documento será assinado em duas vias e você receberá uma delas. Antes da assinatura,
tire quaisquer dúvidas que porventura possam existir. Estarei disponível para possíveis esclarecimentos
adicionais no endereço:
ATENÇÃO: Se você tiver alguma consideração ou dúvida, sobre a sua participação na pesquisa,
entre em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa da UFC/PROPESQ – Rua Coronel Nunes de
Melo, 1000 - Rodolfo Teófilo, fone: 3366-8344/46. (Horário: 08:00 -12:00 horas de segunda a sexta-
feira).
O CEP/UFC/PROPESQ é a instância da Universidade Federal do Ceará responsável pela avaliação
e acompanhamento dos aspectos éticos de todas as pesquisas envolvendo seres humanos.
Fortaleza, ____/____/____
________________________________
Assinatura do(a) Participante
________________________________
Assinatura da Pesquisadora
ANEXO 1 – PARECER DO CONSELHO DE ÉTICA DE PESQUISA
ANEXO 2 – FINANCIAMENTO DAS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS DO
CEARÁ