Teoriaconjuntos
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TEORIA INGÊNUA
DOS CONJUNTOS NUMÉRICOS
NATAL
AGOSTO DE 2019
1
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Prof. Ronaldo Xavier de Arruda - CCET
RN/UF/CCET CDU 51
TEORIA INGÊNUA
DOS CONJUNTOS NUMÉRICOS
NATAL
AGOSTO DE 2019
2
JAQUES DIEGO MEDEIROS DA FONSECA
TEORIA INGÊNUA
DOS CONJUNTOS NUMÉRICOS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Mate-
mática em Rede Nacional, do Departa-
mento de Matemática da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como
requisito parcial para obtenção do Título
de Mestre em Matemática. Área de con-
centração: Teoria dos Conjuntos.
BANCA EXAMINADORA
3
Agradecimentos
A Deus, por tudo em minha vida!
A minha mãe, Maria José Medeiros da Fonseca, por tudo que ensinou a fazer
e não fazer, estar sempre ao meu lado, ter me incentivado a buscar sempre mais
e não desistir nunca, por ter me tornado a pessoa honesta que sempre fui e todo
amor que me proporcionou.
Ao meu pai, Antônio Jaques da Fonseca, por tudo que me ensinou, todo amor
que me proporcionou, ter me dado todo o tempo necessário para me dedicar aos
estudos.
A minha esposa, Renata Costa Pereira, por todo o amor, todo o apoio em tudo
que faço, toda a ajuda.
Aos meus lhos, Jaques Davyd A. da Fonseca, Lucy Marcelly D. da Fonseca,
Tarso F. Costa Lima e Luna Manuele D. da Fonseca, por todo amor, todo carinho
e por momentos e emoções inesquiváveis.
Ao meu orientador, Ronaldo Freire de Lima, pelo que me ensinou durante todo
o mestrado e a ajuda imprescindível no desenvolvimento deste trabalho.
A minha família, em geral, por toda a ajuda.
A todos os meus professores do PROFMAT - UFRN e da minha graduação em
matemática na UFRN pela força e todo o ensinamento na área de matemática e
didática em sala de aula.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
pelo apoio nanceiro.
4
Resumo
O Trabalho em questão tem como objetivo trazer a luz à discussão sobre as
convenções nas operações matemáticas realizadas nos conjuntos numéricos, bem
como abordar o conceito de cardinalidade de conjuntos utilizando uma linguagem
acessível a alunos do ensino médio.
Abstract
This manuscript aims to shed light on the discussion of conventions in mathe-
matical operations performed on numerical sets, as well as addressing the concept
of cardinality of sets at a high school level.
5
Conteúdo
1 Conjuntos 8
1.1 Conceitos Básicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
1.2 Operações entre Conjuntos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
2 Conjuntos Numéricos 11
2.1 Números Naturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
2.2 Números Inteiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
2.3 Números Racionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
2.4 Números Reais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
3 Cardinalidade de Conjuntos 30
6
Introdução
Neste trabalho, faremos uma breve discussão acerca dos conjuntos numéricos
elementares do ponto de vista estrutural. Para tanto, daremos uma atenção es-
pecial às operações denidas nesses conjuntos, bem como aos aspectos relativos à
cardinalidade dos mesmos.
Nossa motivação parte da constatação de que os estudantes, de modo geral,
veem as operações em conjuntos numéricos com meras convenções, arbitrariamente
denidas e sem justicativa alguma. O caso notório é a clássica regra de multipli-
cação de números inteiros negativos: menos por menos dá mais”.
Nesse contexto, percebemos também uma ausência de discussão dos concei-
tos relacionados à cardinalidade de conjuntos numéricos. Mais especicamente,
ignoram-se certos fatos como a enumerabilidade dos números racionais e a não
enumerabilidade dos números irracionais.
Nossa proposta, então, é a de discutir esses importantes aspectos relativos aos
conjuntos numéricos em uma linguagem acessível a alunos do ensino médio.
O texto é organizado da seguinte forma. Apresentamos, no capítulo 1, alguns
conceitos fundamentais da teoria dos conjuntos. No capítulo 2, introduzimos, jun-
tamente com suas operações, os conjuntos numéricos elementares, quais sejam, o
dos naturais (N), o dos inteiros (Z), o dos racionais (Q) e o dos reais (R). No
capítulo 3, introduzimos o conceito de cardinalidade e enumerabilidade de conjun-
tos, estabelecendo, inclusive, a enumerabilidade de Q e a não enumerabilidade de
R, citadas acima. Concluímos, então, com a apresentação do célebre Teorema de
Cantor, segundo o qual, a cardinalidade do conjunto das partes de um conjunto
arbitrário, A, é sempre maior que a cardinalidade do próprio A.
7
Capítulo 1
Conjuntos
O conceito matemático de conjunto pode ser usado como fundamento para toda
a matemática conhecida.”
Paul R. Halmos
8
Quando todos os elementos de um conjunto A pertencem a um conjunto B ,
dizemos queA está contido em B , e escrevemos A ⊂ B , ou, equivalentemente, que
B contém A, e escrevemos B ⊃ A.
Quando um conjunto A não está contido em um conjunto B , escrevemos A 6⊂ B
ou B 6⊃ A.
Verica-se facilmente que a inclusão tem as seguintes propriedades fundamen-
tais, as quais são válidas para quaisquer conjuntos A, B e C:
• Reexividade: A⊂A
União e Intersecção
Sejam A e B dois conjuntos quaisquer. A união entre os conjuntos A e B , A∪B ,
e a intersecção entre A e B , A ∩ B , são denidas respectivamente por
• ∅⊂A
• A∪∅=A e A∩∅=∅
• Associatividade: A ∪ (B ∪ C) = (A ∪ B) ∪ C e A ∩ (B ∩ C) = (A ∩ B) ∩ C
9
Diferença
Sejam AeB dois conjuntos quaisquer. A diferença entre AeB é, por denição,
o conjunto formado pelos elementos que pertencem a A e não pertencem a B, a
qual denotamos por A − B. Assim,
A − B = {x ∈ A; x ∈
/ B}.
P (A) = {∅, {a}, {e}, {i}, {a, e}, {a, i}, {e, i}, {a, e, i}}.
#A = n ⇒ #P (A) = 2n .
Uma vez que, para todo número natural n, a desigualdade n < 2n é verdadeira,
podemos dizer que, para todo conjunto nito A, o conjunto das partes de A tem
cardinalidade maior que a de A. Neste trabalho, estenderemos a noção de cardina-
lidade (comparativa) para conjuntos innitos, e vericaremos que essa propriedade
é verdadeira também nesse caso.
10
Capítulo 2
Conjuntos Numéricos
Deus criou os números naturais; tudo o mais é produto da mão do homem.”
Leopold Kronecker
(i)
A teoria moderna dos números naturais foi introduzida por Giussepe Peano ,a
qual baseia-se em quatro postulados, presentemente conhecidos como Axiomas de
Peano. A partir dos mesmos, constrói-se a estrutura formada pelos números natu-
rais e suas operações. Tomaremos essa estrutura, então, como ponto de partida do
processo de construção dos outros conjuntos numéricos fundamentais (excetuando-
se o dos números complexos).
Dessa forma, consideraremos estabelecido o conjunto
N = {1, 2, 3, 4, ...}
dos números naturais, juntamente com as suas operações de adição (+) e multi-
plicação (·), as quais possuem as seguintes propriedades, validas para quaisquer
naturais a, b e c:
• Associatividade: a + (b + c) = (a + b) + c e a · (b · c) = (a · b) · c
(i)
Peano, G.: Arithmetices principia, nova methodo exposita (Torino: Bocca) 1889.
11
• Elemento neutro: a·1=a
an = a
| · a {z
· ... · a} .
n fatores
Vale ressaltar que, por denição, N ⊂ Z, e também que as relações menor que”
(<) e maior que” (>) se estendem de N para Z. Mais especicamente, valem as
desigualdades :
12
• · · · 4 > 3 > 2 > 1 > 0 > −1 > −2 > −3 > −4 · · · .
13
Assim, devemos denir a multiplicação de dois números negativos de uma ma-
neira tal que essa operação tenha, em Z, as propriedades fundamentais. Isso nos
sugere que, ao multiplicarmos dois números inteiros quaisquer, em particular dois
inteiros negativos, o produto obtido seja um inteiro com módulo igual ao produto
dos módulos dos fatores. Dessa forma, para a multiplicação (−2) · (−3), teríamos
dois resultados possíveis, 6 e −6, uma vez que estes são os únicos inteiros que têm
módulo igual a | − 2| · | − 3| = 2 · 3 = 6.
Vejamos que, se tivéssemos (−2) · (−3) = −6, a propriedade fundamental de
distributividade da adição com respeito à multiplicação não seria válida em Z. De
fato, nesse caso, teríamos
14
O conjunto dos números racionais, Q, é denido como uma extensão do con-
junto das frações, da mesma maneira que Z é concebido como uma extensão de
N.
a
Considera-se, para cada fração (positiva)
b
, uma fração negativa
− ab , e dene-se
Q como o conjunto formado pelas frações que são positivas ou negativas, junta-
mente com 0.
Introduziremos, agora, algumas notações que nos permitirão descrever Q de
uma maneira mais homogênea, bem como estender a esse conjunto os conceitos de
igualdade, adição e multiplicação de frações.
a
Uma vez que uma fração
b
é interpretada como o resultado de se tomar a vezes
1
a medida , é natural denirmos
b
0
= 0, ∀ a ∈ N.
a
1
Por outro lado, uma fração
é tida como a medida de cada um dos segmentos
b
obtidos quando se divide um segmento de comprimento 1 em b partes iguais.
Nesse sentido, não se pode estender o conceito de fração de uma maneira tal que
se permitam frações de denominador zero, pois estas não deniriam subunidades,
o que subverteria esse conceito tal como ele é.
Adotando-se então a convenção
a −a a
− = = ,
b b −b
tem-se
p
Q= ; p, q ∈ Z e q 6= 0 ·
q
A relação de igualdade do conjunto das frações estende-se naturalmente a Q,
p m
isto é, dados ,
q n
∈ Q, dene-se
p m
= ⇔ pn = qm.
q n
−1
Por exemplo,
2
= −2
4
e
−3
−5
= 35 .
p
Note que, dado p ∈ Z, tem-se p = , isto é, todo número inteiro é também um
1
número racional. Dessa forma, valem as seguintes relações de inclusão
N ⊂ Z ⊂ Q,
15
ou, equivalentemente, 50 centavos. Sendo assim, como zemos com os inteiros
negativos, podemos associar frações negativas a dívidas para , a partir daí, denir
as operações de adição e multiplicação em Q.
Dados p, q , m, n ∈ Z, q , n 6= 0, denem-se
p m pn + qm p m pm
+ = e · = ·
q n qn q n qn
Além disso, a subtração em Q é denida por
p m p m pn − qm
− = + − =
q n q n qn
e a divisão por
p/q p n pn
= · = , m 6= 0.
m/n q m qm
Note que a divisão por zero não está denida.
1 −4 2/3
Determinemos, como exemplo, o valor da expressão − · − .
5 7 5/9
Pelas denições anteriores, temos
1 −4 2/3 1 −4 2 9 1 −4 6
− · − = − · − · = − · − =
5 7 5/9 5 7 3 5 5 7 5
1 −4 −6 1 −62 62
= − · + = − · = ·
5 7 5 5 35 175
Vale Salientar que, em Q, a adição e a multiplicação têm as propriedades funda-
mentais da Aritmética, o que pode ser facilmente vericado a partir das denições
dadas.
Convém observar ainda que a adição e a subtração de números racionais, assim
como a multiplicação e a divisão, são operações invernas uma da outra, conforme
as identidades
p m m p m m p
• q
+ n
− n
= q
− n
+ n
= q
, q ,n 6= 0;
ax + b = 0 a,b ∈ Z, a 6= 0.
Com efeito, para isolamos x no primeiro membro da equação dada, basta sub-
trairmos b de ambos os seus membros e, em seguida, devirmos por a, isto é,
ax −b −b
ax + b = 0 ⇔ (ax + b) − b = 0 − b ⇔ ax = −b ⇔ = ⇔x= ·
a a a
16
−5
Por exemplo, a equação 2x + 5 = 0 tem solução x=
2
·
Diz-se que uma operação está bem denida num conjunto numérico A, quando,
através dela, ao operarmos dois elementos quaisquer de A, o resultado ainda é um
elemento de A.
Dessa forma, a adição está bem denida em N, Z e Q, enquanto a subtração
está bem denida em Z e Q, porém não em N. Com efeito, 2 e 3 são números
naturais, entretanto, 2−3∈ / N.
Conjuntos como Z e Q, que têm bem denidas as operações de adição e sub-
tração, juntamente com suas propriedades fundamentais, são chamados de anéis.
Note que, em Q, além da adição e da subtração, estão bem denidas as opera-
ções de multiplicação e divisão, o que caracteriza esse conjunto com um corpo. Tal
característica é o que diferencia, em termos estruturais, os conjuntos Z e Q. De
fato, embora a adição, a subtração e a multiplicação estejam bem denidas em Z,
a divisão não está, pois ao dividirmos dois números inteiros quaisquer, nem sempre
obtemos um número inteiro como resultado. Dessa forma, Z é um anel, mas não é
um corpo.
Vejamos agora como se dene a potenciação de números racionais.
p
Dados p, q ∈ Z, q 6= 0, e n ∈ N, denimos a potência de base
q
e expoente n
por
n
p p p p pn
= · ··· = n·
q q q q q
| {z }
n fatores
Assim, tem-se
2 3
32 (−2)3
3 9 −2 −8
= 2 = e = 3
= ·
7 7 49 5 5 125
p
Observemos agora que, dados, m, n ∈ N e
q
∈ Q, vale
m n m+n
p p pm pn pm+n p
· = m · n = m+n = , (2.1)
q q q q q q
17
Se quisermos então que seja válida a equação (2.1), devemos ter
1+0 1 0 0
1 1 1 1 1 1
= = · = · ,
2 2 2 2 2 2
0
p p
= 1, ∀ ∈ Q, p 6= 0.
q q
0 −n+n
p p
1= = ·
q q
−n n
p p
1= · ,
q q
sugerindo a denição
−n n
p q p
= , ∀ ∈ Q, p 6= 0.
q p q
−1 1 −3 3
1 2 −3 5 125 125
= =2 e = = =− ·
2 1 5 −3 −27 27
18
Por exemplo,
3 !2 6 2 2 2
(−1)6
−1 −1 1 1 3 1 3
= = 6
= e · = · ·
3 2 3 729 5 2 2 2
p a n
a
= pq , n ∈ N, dizemos que ab é a
Se e são racionais positivos tais que
b q q b
raiz n-ésima p
de , que é denotada por n
q
p
q
. Note que, neste caso,
r √
n p
p
n
= √ ·
q n q
a p
Vale a mesma denição quando
b
e
q
são racionais negativos e n é ímpar.
Logo,
r r r
36 6 4 16 2 3 64 4
= , = e − =− ·
25 5 81 3 343 7
Para nalizarmos esta seção, observemos apenas que a representação decimal
de um racional negativo,− ab , a,b ∈ N, é feita acrescentando-se o sinal menos” (−)
a
à representação decimal de . Por exemplo,
b
1 1
− = −0, 5 e − = −0, 333333 · · · .
2 3
O conjunto dos números reais R é obtido pela união do conjunto dos números
racionais com o conjunto dos números irracionais, os quais representam medidas
que não são realizadas por frações.
Pensava-se, na antiguidade, que qualquer medida podia ser representada por
um fração ou, equivalentemente, que dois segmentos de reta quaisquer era sempre
comensuráveis.
Denição 1. Dois segmentos de reta AB e CD são ditos comensuráveis se existe
um segmento de reta P Q que cabe uma quantidade inteira de vezes em AB e CD.
19
De modo geral, se AB tem medida a/b e CD tem medida c/d, então AB e CD
são comensuráveis, pois um segmento P Q de medida 1/bd cabe ad vezes em AB e
cb vezes em CD.
Dessa forma, se as medidas de todos os segmentos fossem representadas por
frações, dois quaisquer deles seriam sempre comensuráveis. Vejamos, agora, que
isso não é verdade.
Para tanto, consideremos um quadrado ABCD cujos lados têm ambos medida
igual a 1. Provaremos que a diagonal AC desse quadrado e um qualquer de seus
lados não são comensuráveis, isto é, são incomensuráveis.
Suponhamos, por absurdo, que AC e BC são comensuráveis. Nesse caso, existe
um segmento P Q que cabe um número inteiro de vezes em AC bem como em BC .
Denotando-se esses números inteiros por m e n, respectivamente, teremos, pela
denição de fração, que o segmento P Q tem medida 1/n e AC tem medida m/n.
Podemos supor que a fração m/n está na forma reduzida, pois, caso contrário,
poderíamos eliminar os fatores comuns a m e n e obter uma fração reduzida e
equivalente a esta.
Aplicando o Teorema de Pitágoras ao Triângulo retângulo ABC , obtemos
m 2
= 2 ⇒ m2 = 2n2 . (2.2)
n
Essa equação nos diz que m2 é um múltiplo de 2, isto é, um número par. É
fácil vericar que o quadrado de um número ímpar é também um número ímpar.
Sendo assim, concluímos que m é par. Logo, existe um inteiro a tal que m = 2a.
Combinando-se essa igualdade com a equação (2.2), temos
20
metro, obtém-se sempre o mesmo número, o qual é simbolizado pela letra grega
π. √
Assim como 2, π é um número irracional. No entanto, a demonstração desse
fato é bastante difícil. Para se ter uma ideia disso, vale salientar que a irraciona-
lidade de π só foi demonstrada no século XVIII por J. H. Lambert,
√ em contraste
com a de 2, que, como vimos, foi feita por volta do século IV a.C.
Provaremos, no próximo capítulo, que o conjunto dos números irracionais é
innito. No entanto, podemos nos convencer também da veracidade desse fato
através da representação decimal desses números.
√
Vejamos o caso de
√ 2. Uma vez que o quadrado desse número é 2, temos que
√
1 < 2 < 2. Logo, podemos dizer que 2 = 1 + α com 0 < α < 1. Tomando-se
α1
α ∈ N tal que α101 < α, teremos 1 + √ 2
. Logo,
2
(10 + α1 )2
α1 2 10 + α1
1+ <2⇒ <2⇒ < 2,
10 10 100
o que nos dá
Uma vez que(10 + 4)2 = 142 = 196 e (10 + 5)2 = 152 = 225, vê-se que 4 é
o maior valor de α1 , para o qual a desigualdade (2.3) é verdadeira. Sendo assim,
√
podemos dizer que 1,4 é o maior número decimal que é menor que 2 e que tem
uma casa decimal.
Tomemos agora α2 ∈ N tal que
4 α2
+ < α.
10 100
Procedendo de maneira análoga, conclui-se que 1 é o maior valor de α2 , para o
qual a desigualdade
2
4 α2
1+ + <2
10 100
√
é verdade, isto é, 1,41 é o maior número decimal que é menor que 2 e que tem
duas casas decimais.
Esse processo pode ser continuado indenidamente, obtendo-se, a cada etapa,
√
uma aproximação decimal de 2 com um número maior de casas decimais. Se
assim o zéssemos, obteríamos nas cinco etapas seguintes as aproximações 1,414;
1,14142; 1,41421; 1,414213 e 1,4142135.
√
Dessa forma, assim como as frações representadas por dízimas periódicas, 2
é o limite de uma soma innita:
√ 4 1 4 2 1 3 5
2=1+ + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 + 7 + · · · = 1, 4142135 · · · . (2.4)
10 10 10 10 10 10 10
21
A interpretação da equação (2.4) é a seguinte:
√
Como se vê, as propriedade (i) e (ii), que caracterizam 2 como limite de uma
soma innita, são as mesmas que caracterizam como tal uma fração representada
√
por uma dízima periódica. Observe, porém que na representação decimal de 2
não há um número que se repete ao longo desta, de forma a constituir um período.
Com efeito, se fosse esse o caso, obteríamos, a partir dessa representação decimal,
√
uma fração igual à 2, contradizendo o fato de que esse número é irracional.
√
Sendo assim, a representação decimal de 2 tem innitas casas decimais e não
constitui uma dízima periódica. Neste contexto, essa é a propriedade que distingue
os números irracionais dos racionais.
Assim, um número é irracional se, e somente se, sua representação decimal
tem innitas casas decimais e não constitui uma dízima periódica.
Verica-se, por exemplo, que a representação decimal de π é
π = 3, 14159 · · · .
N ⊂ Z ⊂ Q ⊂ R.
22
Além disso, no universo dos números reais, o conjunto dos números irracionais
é o complementar de Q, R − Q.
isto é, é o conjunto
A propriedade fundamental do conjunto R é que uma medida qualquer é sempre
representada por um número real e reciprocamente. Assim, o comprimento de
qualquer segmento de reta é igual a um número real positivo.
Mais precisamente, se tomamos uma reta r e representarmos nesta o conjunto
R, teremos que, para cada número real corresponderá um único ponto de r e vice-
versa, isto é, existe uma correspondência biunívoca entre R e os pontos da reta r .
Nesse caso, r é dita a reta real.
Como consequência dessa propriedade, costuma-se, por economia, fazer referên-
cia aos números reais como pontos de
√ r e vice-versa. √
Podemos dizer, por exemplo,
o ponto 2”, ao invés de o ponto de r associado à 2”.
Neste contexto, introduzem-se as sequências de números reais. Diz-se então que
uma tal sequência converge para x ∈ R, se a correspondente sequência de pontos
de r converge para o ponto associado a x. Diz-se também que x é o limite da
sequência dada.
Por exemplo, π é o limite da sequência
Vale salientar que o conceito de limite de sequência é mais geral, e que lidamos
apenas com casos particulares, a saber, sequências crescentes (cada termo é maior
que o precedente) e limitadas (existe um número que é maior que todos os termos
da sequência). No entanto tomando-se representações decimais, mesmo se consi-
deramos apenas esses casos, não será difícil nos convencermos de que todo número
real é igual ao limite de alguma sequência de números racionais. No caso de um
número irracional α,α1 α2 α3 α4 · · · , temos que este é limite da sequência
23
O módulo, ou valor absoluto, de um número real x, denotado por |x|, é denido
por
x se x≥0
|x| =
−x se x < 0.
Por exemplo, |3, 47564738283 · · · | = 3, 47564738283 · · · e | − π| = −(−π) = π .
Observe que, para todo x ∈ R,
|x| ≥ 0 e |x| = 0 ⇔ x = 0.
Vejamos agora como comparar dois números irracionais a partir de suas repre-
sentações decimais.
Se eles têm partes inteiras distintas, é fácil ver que o menor deles será o que
tiver menor parte inteira. Por exemplo,
1 2 3 1 2 9 9 9 9
0, 123 · · · = + 2 + 3 · · · < + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 +· · · = 0, 124 < 0, 124 · · · .
10 10 10 10 10 10 10 10 10
Esse exemplo justica a seguinte regra.
No caso de as partes inteiras serem iguais, comparamos casa decimal por casa
decimal até encontramos duas distintas, sendo menor o irracional que tiver, dentre
estas, a casa decimal de menor valor.
Por exemplo, dados x = 3,12375658 · · · , y = 3,12377959 · · · e z = 3,123796587 · · · ,
tem-se x < y < z , uma vez que 5 < 7 < 9.
Já havíamos visto que há innitos números racionais entre dois números raci-
onais dados. Vemos que o mesmo acontece com números irracionais. De um modo
geral, temos que:
Por esta razão, os conjuntosQ e R−Q são ditos densos em R. Mais preci-
samente, um subconjunto A⊂Ré dito denso em R, A estão
se os elementos de
espalhados por toda a reta, isto é, se entre dois elementos quaisquer de R, não
importando quão próximos eles estejam, existirem innitos elementos de A. Note
que N e Z não são densos em R.
Vejamos agora como estender as operações já denidas em Q para o conjunto
R. Para isso, resta-nos denir tais operações entre números irracionais entre si,
bem como entre racionais e irracionais.
24
No que se segue, deniremos alguns resultados de operações em R como limi-
tes de certas somas innitas. Convém observar, entretanto, que estamos supondo
tacitamente a existência desses limites, isto é, a convergência das sequências cor-
respondentes, o que pode ser provado rigorosamente.
Observemos ainda que, assim como em Q, as operações de adição, multiplicação
e divisão de números reais positivos podem ser feitas geometricamente, o que sugere
a existência dos limites mencionados.
√
Tomemos, uma vez mais, o irracional 2. Uma vez que sua parte inteira é 1, é
razoável denirmos, por exemplo,
√
1+ 2 = 1 + 1, 414213 · · · = 2, 414213 · · · ,
√ 4 1 4 2 1
2=1+ + 2 + 3 + 4 + 5 + ···
10 10 10 10 10
1 4 1 5 9
π =3+ + 2 + 3 + 4 + 5 + ···
10 10 10 10 10
.
√
2 + π como o limite da soma innita
Dene-se então
4 1 1 4 4 1 2 5 1 9
(1+3)+ + + + + + + + + +· · ·
10 10 102 102 103 103 104 104 105 105
5 5 5 7 10 5 5 5 8
4+ + 2 + 3 + 4 + 5 + ··· = 4 + + 2 + 3 + 4 + ···,
10 10 10 10 10 10 10 10 10
isto é,
√
2 + π = 4, 5558 · · · .
Procede-se igualmente quando efetuamos a adição de um irracional a um raci-
onal. Por exemplo,
1 1 4 1 5 9 5
π + = 3, 14159 · · · + 0, 5 = 3+ + 2 + 3 + 4 + 5 + ··· + ·
2 10 10 10 10 10 10
25
Logo,
1 6 4 1 5 9
π+ =3+ + 2 + 3 + 4 + 5 + · · · = 3, 64159 · · · .
2 10 10 10 10 10
Dados x, y ∈ R dene-se a subtração x − y por
x − y = x + (−y).
26
Uma vez que, em R, estão bem denidas as operações de adição, subtração,
multiplicação e divisão, e considerando a relação de ordem, temos que esse conjunto
é um corpo ordenado. Logo, podemos dizer que
• xn = x · x · x · x...x · x (n fatores);
• x−n = 1
xn
, x 6= 0;
• x0 = 1, x 6= 0.
Além disso,
• (x · y)p = xp · y p ;
• (xp )q = xpq .
√
Relembremos agora que, por denição, 2 é o número real x tal que x2 = 2.
De um modo geral, prova-se que, se n ∈ N e a ∈ R, a > 0, então, existe um
único número real positivo x tal que
x n = a, (2.6)
√
o qual simbolizamos por
n
a, lê-se raiz
√ n-ésima a. de
√
2
Por exemplo, o número real x= 3 é tal que x = 3, enquanto y = 7 π satisfaz
7
y = π.
Prova-se ainda que a equação (2.6) admite uma única solução, se
√ n é ímpar
√ e a
3
é negativo ou nulo. Igualmente, essa solução é representada por
n
a. Assim, −5
3
é o número real x tal que x = −5.
Note que, como em Q, uma potência de expoente par sempre resulta num
número real não-negativo. Dessa forma, a equação (2.6) não admite solução, se n
é par e a é negativo.
Vale observar também que, adotando-se um procedimento análogo àquele da
√ √
demonstração da irracionalidade de 2, prova-se que, se a ∈ N, então n
a é um
número inteiro ou irracional.
27
Propriedade 1. Sejam a, b números reais não negativos e m, n n ∈ N. Então,
√ √ √
i) n a · n b = n ab;
√ √
ii)
p
m n
a = mn a.
√ √
Demonstração. Sejam x = n
a e y = n
b. Temos, então, que x n = a e y n = b.
n
Multiplicando-se essas igualdades membro a membro, obtemos (xy) = ab. Logo,
√
n
por denição, xy = ab o que prova (i).
p √ √
A m de provarmos (ii), façamos z =
m n
a, isto é, z m = n a. Essa igualdade,
m n
porém, nos diz que (z ) = a, o que implica
√ z mn = a. Segue-se, por denição, que
z= mn
a, o que prova (ii).
Fazendo-se x = a1/q , essa igualdade nos diz que x q = a, o que nos sugere a
denição
√
a1/q = q
a.
Agora, se p > 0, temos
Denimos, então,
√
ap/q = ( q a)p .
Por m, se p<0 e a > 0, denimos
1 1
ap/q = = √ ·
a−p/q q
a−p
Por exemplo,
√ 1 1
31/2 = 3 e π −2/3 = = √ ·
π 2/3 ( π)2
3
28
√
Uma aplicação à geometria. Vimos, anteriormente,
√ que 2 é um número ir-
racional. De modo análogo, pode-se vericar que 3 é também irracional. Vejamos,
então, no teorema e corolário que se seguem, que uma interessante propriedade dos
triângulos equiláteros no plano decorre desse fato.
Figura 2.1: a, b , c , d ∈ Z .
Temos, também, que as áreas dos triângulos ∆i são números racionais, bem
como que a área do retângulo circunscrito a ABC é um número inteiro. Logo, a
área de ABC , sendo a diferença entre as áreas do retângulo e a soma das áreas
dos triângulos ∆i , é um número racional. Isso conclui nossa demonstração.
29
Capítulo 3
Cardinalidade de Conjuntos
A noção de innito, de que é preciso se fazer um mistério
em Matemática, resume-se no seguinte princípio:
Depois de cada número inteiro existe sempre um outro.”
J. Tannery
f: A → B
x → y = f (x),
30
A igualdade y = f (x) que dene uma função f : A → B, chamada de lei
de correspondência ou expressão de f, nem sempre é dada por uma expressão
algébrica, mesmo que A e B sejam conjuntos numéricos.
Por exemplo, dado o conjunto dos números naturais N, a função
f : N → N ∪ {0}
n → f (n),
tal quef (n) é igual à quantidade de números primos (positivos) menores que n, está
bem denida, isto é, para cada natural n, existe um único número correspondente
f (n) em N ∪ {0}.
Vimos que o conjunto-imagem de uma função pode ou não ser igual ao seu
contra-domínio. Igualmente, podemos observar que dois elementos distintos do
domínio de uma função podem ter imagens iguais.
Essas considerações nos levam a concluir que, nem sempre, uma função esta-
belece uma correspondência biunívoca entre o seu domínio e o contra-domínio.
Veremos agora que quando essa correspondência acontece pode-se inverter a
função, realizando então uma operação que, num certo sentido, é semelhante à
inversão de números reais.
31
Teorema 2. Z e Q são conjuntos enumeráveis.
Demonstração. Considere a função f :N→Z denida por:
(n − 1)/2, n ímpar.
f (n) =
−n/2, n par.
b1 = 0, se a11 6= 0 e b1 = 1, se a11 = 0;
32
b2 = 0, se a22 6= 0 e b2 = 1, se a22 = 0
e assim por diante. Ou seja, bn = 0, se ann 6= 0
bn = 1, se ann = 0, para cada n.
e
Vejamos agora que o número b
é diferente de x1 , pois, por construção, sua
primeira casa decimal é diferente da primeira casa decimal de x1 (b1 6= a11 ).
O número b também é diferente de x2 , pois b2 6= a22 , · · · . Para cada n, o número
b é diferente de xn , pois bn 6= ann .
Mas isso contradiz o fato de {x1 , x2 , x3 , · · · } ser uma enumeração de [0, 1],
já que encontramos um número b ∈ [0, 1] que não estava nessa lista. Portanto o
intervalo [0, 1], e por consequência R, não são enumeráveis.
s : x11 ,x21 ,x12 ,x31 ,x22 ,x13 ,x41 ,x32 ,x23 ,x14 , · · ·
observe que a sequência s tem uma regra de formação (semelhante ao que realiza-
mos nos racionais): primeiramente começamos com o termo x11 , depois os termos
cuja soma dos índices é 3, a saber, x21 e x12 , depois termos cuja soma dos índices
é 4: x31 , x22 e x13 e assim por diante.
Como conseguimos escrever todos os elementos da matriz em forma de uma
sequência, existe uma função de N no conjunto U, que associa os números 1, 2, 3,
33
··· , respectivamente a x11 , x21 , x12 , x31 , x22 , x13 , x41 , x32 , x23 , x14 , · · · . Como a
primeira linha da matriz já é um conjunto enumerável, logo innito, os termos da
sequências formam um conjunto enumerável.
Assim, U é um subconjunto innito do conjunto enumerável formado pelos
termos da sequência s. Pelo teorema 3, U é enumerável.
34
Bibliograa
[1] HALMOS, Paul R. Teoria Ingênua dos Conjuntos . 1nd Ed., Rio de
Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2001.
[2] LIMA, Elon L.; CARVALHO, P. C. P.; WAGNER, Eduardo; MORGADO, Au-
gusto C. A Matemática do Ensino Médio . vol.1.9nd Ed., Rio de Janeiro:
Editora SBM, 1997.
[4] ANDRADE, Rubens Leão de; LIMA, Ronaldo Freire de Pré-Calculo . 2nd
Ed., Natal: EDUFRN, 2012.
[5] LIMA, Elon L. Números e Funções Reais . 1nd Ed., Rio de Janeiro: Editora
SBM, 2013.
[6] LIMA, Elon L. Análise Real Volume 1 . 11nd Ed., Coleção Matemática
Universitária”: Editora do IMPA, 2012.
[7] LIMA, Elon L. Curso de Análise Volume 1 . 14nd Ed., Coleção Projeto
Euclides”: Editora do IMPA, 2013.
35