2018 NeimardeAlmeida
2018 NeimardeAlmeida
2018 NeimardeAlmeida
NEIMAR DE ALMEIDA
BRASÍLIA
2018
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
BRASÍLIA
2018
NEIMAR DE ALMEIDA
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof. Dr. Guy Hamelin (Orientador)
Universidade de Brasília – UnB
___________________________________________
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Universidade de Brasília – UnB
___________________________________________
Prof. Dr. Carlos Eduardo de Oliveira
Universidade de São Paulo – USP
À minha raridade, Rubi.
AGRADECIMENTOS
Com este estudo temos o objetivo de investigar a teoria da alma em Tomás de Aquino.
Sabemos, sobretudo, que Tomás, em seu arcabouço filosófico e teológico, se afasta do
neoplatonismo e busca seus fundamentos essencialmente em Aristóteles. Ora, isso não é
diferente quando se trata das análises que Tomás desenvolve sobre a alma. Entretanto, é
importante destacarmos que, embora fiel filosoficamente a Aristóteles, o Doutor Angélico
de alguma maneira precisa adaptar a filosofia do Estagirita ao pensamento cristão. Diante
disso, queremos examinar a teoria da alma em Tomás e, de maneira geral, alguns aspectos
fundamentais sobre a alma em Aristóteles, visto que ele influenciou significativamente
toda obra filosófica do Aquinate. Para tanto, dividimos nosso estudo em três partes. Num
primeiro momento, examinaremos a teoria da alma no De anima, principal obra do
Estagirita sobre o assunto. Em seguida, iniciaremos nosso estudo sobre a teoria da alma
em Tomás de Aquino, precisamente na Summa theologiae Iª. É, pois, nesta segunda parte,
que examinaremos a natureza da alma humana e suas faculdades consideradas inferiores,
a saber, a vegetativa e a sensitiva. Por fim, trataremos do intelecto (intellectus) e da
vontade (voluntas), sendo estas as faculdades superiores da alma humana, segundo o
Aquinate. Vale ainda ressaltarmos que Aristóteles tem como propósito principal, no De
anima, o estudo da alma em um sentido amplo. Em outras palavras, a alma é a primeira
atualidade ( de um corpo natural que tem em potência ) a vida. Por
outro lado, o Doutor Angélico, apesar de não divergir de Aristóteles neste ponto – pelo
contrário, assume a definição de alma de seu antecessor – na Summa theologiae, sua
investigação tem como propósito o estudo do homem. Assim, sua ênfase está na alma
humana como substância separada (substantia separata) incompleta, que adquire
natureza completa quando está unida ao corpo.
In this study we investigate the theory of soul in Thomas Aquinas. It is well known that
Thomas, in his philosophical and theological work, moves away from neoplatonism and
seeks its foundations essentially in Aristotle. Nevertheless, this is no different when it
comes to the analysis that Thomas developed about the soul. However, it is important to
note that, though philosophically faithful to Aristotle, the Angelic Doctor must somehow
adapt the philosophy of the Stagirite to Christian thought. According to this, we want to
examine the theory of soul in Thomas and, in general, some fundamental aspects about
the soul in Aristotle since he significantly influenced all the philosophical work of
Aquinate. To do so, we divide our study into three parts. First, we will examine the theory
of soul in the De anima, Stagirita's main work on the subject. Following that, we will
begin our study of the theory of soul in Thomas Aquinas, precisely in Summa theologiae
Iª. Therefore, it is in this second part that we will examine the nature of the human soul
and its faculties, considered inferior, namely, the vegetative and the sensitive. Finally, we
will consider the intellect (intellectus) and the will (voluntas), which are the higher
faculties of the human soul, according to the Aquinate. It is worth mentioning that
Aristotle's main purpose in De anima is the study of the soul in a broad sense. In other
words, the soul is the first actuality () of a natural body that has a potential
) life. On the other hand, the Angelic Doctor, although not diverging from
Aristotle on this point – on the contrary, he assumes the soul definition of his predecessor
– in Summa theologiae, his investigation has as its purpose the study of man. Thus, its
emphasis is on the human soul as an incomplete separate substance (substantia separata),
which completes its nature when it is united with in the body.
INTRODUÇÃO .........................................................................................................1
I – A ALMA NO DE ANIMA DE ARISTÓTELES ................................................5
1 Os antecedentes platônicos .....................................................................................5
2 Aristóteles e as definições da alma () .............................................................9
3 Tripartição da alma ...............................................................................................12
3.1 Alma vegetativa .................................................................................................13
3.2 Alma sensitiva ....................................................................................................14
3.2.1 A imaginação ..........................................................................19
3.2.2 O apetite e o princípio do movimento ..........................21
3.2.3 A divisão dos apetites e o papel da vontade ..............24
3.3 Alma intelectiva .................................................................................................29
3.3.1 Intelecto ativo e intelecto passivo ...............................................................31
II – A ALMA EM TOMÁS DE AQUINO: NATUREZA E FACULDADES
INFERIORES ....................................................................................................34
1 A natureza da alma humana ..................................................................................34
2 A divisão das potências e partições da alma .........................................................45
2.1 As potências da alma vegetativa ........................................................................50
2.2 As potências da alma sensitiva ...........................................................................51
2.2.1 Sentidos externos ........................................................................................52
2.2.2 Sentidos internos .........................................................................................53
2.2.3 O apetite sensível ou sensibilidade .............................................................57
III – AS FACULDADES SUPERIORES DA ALMA: INTELLECTUS E
VOLUNTAS ........................................................................................................61
1 As potências da alma intelectiva ...........................................................................61
1.1 Intelecto possível (intellectus possibilis) e intelecto agente (intellectus agens) 63
1.1.1 O intelecto agente como parte da alma e individual ...................................68
1.1.2 O intelecto possível e a memória inteligível ...............................................73
1.1.3 O intelecto (intellectus) e suas funções ......................................................75
1.2 A vontade (voluntas): apetite intelectivo ...........................................................77
1.2.1 A relação entre vontade (voluntas) e intelecto (intellectus) ......................81
1.2.2 Livre-arbítrio: ato da vontade .....................................................................85
CONCLUSÃO..........................................................................................................88
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................93
INTRODUÇÃO
1
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud Ayoub, Carlos Eduardo de Oliveira e Paulo Eduardo
Arantes. 1ª ed. São Paulo: Paulus, 2013, p. 9.
2
Cf. De anima 412a 18.
2
Isto posto, nosso trabalho tem por objetivo principal investigar a teoria da alma
em Tomás de Aquino. Todavia, não podemos tocar na questão da alma no Doutor
Angélico sem examinarmos a mesma teoria apresentada por Aristóteles, notadamente na
obra De anima, uma vez que a filosofia do Estagirita tem grande influência no
pensamento do Aquinate, como já mencionamos anteriormente. Vale destacar que a
principal obra a ser investigada é a Summa theologiae, mais precisamente as questões 75
a 83 da primeira parte, onde Tomás inicia o tratado sobre o homem. Para ele, o homem –
composto de substância espiritual e corporal – deve ser considerado primeiro quando a
sua alma, e não no que se refere ao corpo, a não ser em sua relação com a alma4. Deste
modo, queremos, sobretudo, examinar a natureza ou essência da alma, suas potências ou
faculdades e suas operações. Enfim, almejamos com nosso estudo compreender a teoria
da alma em Tomás de Aquino. Para tanto, dividiremos nossa pesquisa em três capítulos.
3
Tomás de Aquino nasceu entre 1224 e 1225 no castelo de Roccaseca, no Reino de Nápoles. Faleceu em
7 de março de 1274. Foi frade da Ordem dominicana. É conhecido como Doutor Angélico, Doutor Comum,
Doutor Universal e Aquinate.
4
Cf. S. Th. Ia, q. 75.
3
5
De anima 412a 27. ARISTÓTELES. De anima. Apresentação, tradução e notas de Maria Cecília Gomes
dos Reis. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 72.
6
Cf. S. Th. Ia, q. 77, a. 5.
4
que, assim como para Aristóteles, são funções que pertencem também aos animais
irracionais. Contudo, as capacidades sensitivas da alma humana são superiores às dos
animais irracionais, tanto no que se refere aos sentidos internos como também aos
apetites.
1 Os antecedentes platônicos
7
Cf. De anima 403b 20-23.
8
Os filósofos pré-socráticos, também chamados de filósofos da ou da natureza, têm por objetivo
principal a busca pelo princípio ou o fundamento primeiro do universo. Para maioria deles, esse princípio
é material e deve ser encontrado na própria natureza. Por conseguinte, a alma é identificada em muitas
passagens, por estes filósofos, a um – ou mais de um – dos quatro elementos. A título de exemplo, temos
Anaxímenes, para o qual todas coisas derivam do ar, e a alma, por sua vez, é identificada ao próprio ar. De
forma análoga, Heráclito, que tem como princípio o fogo, considera que a alma seja feita a partir deste
elemento. Empédocles, seguindo na mesma linha de pensamento, concebe que ela seja formada pelos quatro
elementos. Cf. BERTI, Enrico. No princípio era a maravilha. As grandes questões da filosofia antiga.
Tradução: Fernando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 152.
9
Cf. COPLESTON, Frederick. Historia de la filosofia. Vol.I – Grecia y Roma. Barcelona: Ediciones Ariel,
1969, p. 213.
6
livrar-se dele. A libertação da alma em relação ao corpo se dá com a morte daquilo que é
material. É na direção dessa concepção geral que segue a sua análise a respeito da
dualidade entre alma () e corpo ().
Além de uma clara distinção entre alma () e corpo () na citação acima,
podemos verificar que o fato da alma assemelhar-se ao divino, ser imortal e possuir a
capacidade de pensar – pois a alma entre todos os seres é o único que tem inteligência
(11 – tem primazia sobre o corpo e, sendo superior e anterior a ele, deve controlá-lo
Entretanto, isso não significa que o corpo não possa influenciá-la. Em algumas passagens,
Platão admite que o corpo pode influenciar a alma. Em A República, por exemplo, ao
falar da educação verdadeira e da formação dos soldados para a cidade (), descarta
certos tipos de músicas que são ruins para a alma ()12. No Timeu, admite que uma
má formação física e hábitos corporais viciosos podem exercer uma péssima influência
sobre a alma13. Seja como for, o que se torna bastante evidente no Fédon é que o homem
não é um ser uno, mas composto de duas entidades, o corpo, preso ao mundo material e
sensível, e a alma, que é por sua natureza inteligível.
10
Fédon 80b. PLATÃO. Diálogos: O banquete – Fédon – Sofista – Político. Seleção de textos de José
Américo Motta Pessanha; Tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa.
2ª ed. São Paulo: Abril cultural, 1983, p. 84.
11
Platão retoma e afirma com mais exatidão no Timeu: “[...] entre todos os seres, o único ao qual é adequado
possuir intelecto () é a alma () - pois esta é invisível, enquanto que o fogo, a água, a terra e o ar
foram todos gerados como corpos visíveis”. Timeu 46d. PLATÃO. Timeu - Crítias. Tradução do grego,
introdução e notas: Rodolfo Lopes. 1ª ed. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011, p.
126.
12
Cf. A República 424b-c.
13
Cf. Timeu 86d.
7
apresentar tal problemática, o autor realiza um paralelo entre a alma (), a cidade
() e as virtudes (). O que é entendido como a cidade justa e ideal é aplicado
também ao indivíduo ou à sua alma. Segundo Platão, na cidade () há três tipos ou
classes de pessoas: os trabalhadores, os guardas e os governantes. À classe dos
trabalhadores pertencem os lavradores, os artesãos e os comerciantes. Essa classe ocupa-
se com as coisas mais fundamentais da cidade: alimentação, vestes e habitação. Seu papel
é dito eficiente quando a virtude da temperança () predomina entre seus
membros. Ademais, por ser a classe mais inferior precisa submeter-se às classes
superiores. A segunda classe, a dos guardas, é responsável pela defesa da cidade. A
virtude que deve prevalecer nesta classe é a coragem (). Enfim, a classe dos
governantes é a que deve ter o controle e o domínio da cidade. A sua virtude é a sabedoria
(). Compreendemos daí que a cidade perfeita e justa é aquela em que cada um, ou
cada classe, desempenha bem a sua função formando uma harmonia entre as partes14. De
acordo com Platão, como na cidade justa existem três classes de pessoas (temperantes,
corajosas e sábias), analogamente a alma possui três partes15 distintas que funcionam
como princípios da ação: a parte racional , a parte impulsiva ou irascível
e a parte apetitiva ou concupiscível ()16. A parte racional é
imortal e parecida ao divino enquanto as partes impulsiva e apetitiva são perecíveis.
O motivo pelo qual Platão afirma que a alma tem uma natureza tripartida, em A
República, é principalmente por identificar que existem conflitos que ocorrem no interior
dela. A separação entre alma e corpo e, de algum modo, um certo conflito entre eles
apresentado por Platão, no Fédon, é agora, em A República, substituído pelo conflito da
alma consigo mesma, entre as suas partes.
14
Cf. A República 419a-435a.
15
O próprio Platão emprega o termo , mas indica que se trata de um termo metafórico que não se
deve interpretar no sentido de que a alma tenha partes materiais e extensas. Cf. COPLESTON, Frederick.
Historia de la filosofia... Op. cit., p. 214.
16
Cf. A República 435c.
17
Cf. Fedro 246a-b.
8
parece simbolizar a alma racional () que precisa guiar e controlar os dois cavalos,
ou seja, a alma impulsiva (, ) e a alma apetitiva ).
Apesar de afirmar que a parte superior da alma é imortal e divina19, não fica muito
clara a questão da imortalidade no Timeu, visto que Platão não procura argumentar ou
justificar tal posição. Por esse motivo, retornamos ao Fédon a fim de examinar as
justificativas platônicas em favor da imortalidade da alma. Ao menos três argumentos são
apresentados por Platão.
18
Cf. Timeu 69c-70b.
19
Cf. Timeu 41c, 69c-70b.
20
Fédon 70e. PLATÃO. Diálogos: O banquete – Fédon – Sofista – Político. Op. cit., p. 73.
21
Cf. Fédon 70e-71b.
9
Ora, os argumentos apresentados por Platão no Fédon podem até provar que a
alma sobrevive ao corpo. Porém, isso não implica ou significa que se trata da alma
individual. Ao defender a imortalidade de uma alma particular, Platão recorre aos
argumentos mitológicos25. Segundo Copleston, a doutrina psicológica de Platão não
constitui um corpo sistematicamente elaborado e coerente. O que não equivale dizer que
ele não tenha elaborado profundas reflexões entorno do problema da alma26.
Se, por um lado, Platão discorre sobre a alma em diversos de seus diálogos, por
outro lado, fica difícil apresentar uma teoria precisa da alma, construída a partir desses
diversos fragmentos. A verdade é que, em Platão, não encontramos uma teoria
sistemática, ou seja, ele não aborda o problema da alma por completo e de maneira
organizada. Aristóteles, por sua vez, apresenta o conjunto do problema em um tratado
específico: De anima. Desta maneira, seu estudo torna-se muito mais aprofundado,
organizado e sistemático.
22
Fédon 72e. PLATÃO. Diálogos: O banquete – Fédon – Sofista – Político. Op. cit., p. 76.
23
Cf. Fédon 76a-e.
24
Cf. Fédon 80b.
25
Cf. Fedro 246a-b; Timeu 36e-37b, 90a-c; A República 614b-621b.
26
Cf. COPLESTON, Frederick. Historia de la filosofia... Op. cit., p. 221.
10
27
De anima 402a 8. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 45.
28
Sobre isso, Aristóteles afirma, na Metafísica: “Chama-se substrato primeiro (), em certo
sentido, a matéria (), noutro sentido a forma () e num terceiro sentido o que resulta do conjunto
de matéria e forma. Chamo matéria, por exemplo, o bronze; forma a estrutura e a configuração formal;
sínolo o que resulta deles, isto é, a estátua. De modo que, se a forma é anterior e mais do que a matéria,
pela mesma razão ela também será anterior ao composto”. Metafísica Z 1029a 1-6. ARISTÓTELES.
Metafísica. Introdutório, texto grego com tradução para o italiano de Giovanni Reale. Edição Brasileira:
Direção de Fidel Garcia Rodriguez. Edição de Texto de Marcos Marciolino. Revisão de Marcelo Perine.
São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 293.
29
Apesar de se falar de uma teoria do hilemorfismo em Aristóteles, a partir da própria junção dos termos –
matéria (); forma () –, é importante destacar que o Estagirita não usa o termo “hilemorfismo”.
Ademais, não se trata de um hilemorfismo universal. Existem substâncias supra-sensíveis que não admitem
matéria (). É o caso das múltiplas esferas celestes e, de forma mais evidente, o primeiro motor imóvel.
É pertinente, neste ponto, recorrermos novamente a um trecho da Metafísica: “[...] é necessário que haja
um Princípio, cujo a substância () seja o próprio ato (). Assim, também é necessário que
essas substâncias () sejam privadas () de matéria (), porque devem ser eternas, se é que
existe algo de eterno”. Metafísica 071b 20-22. ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., p. 559.
30
De anima 412a 18. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 71.
31
De anima 412a 27. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 72.
32
De anima 412b 2. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 72.
11
segundo a determinação (, ou seja, o que é, para um corpo de tal tipo, ser o que
é”33. (5) “A alma é isto por meio de que primordialmente vivemos ,
percebemos e raciocinamos (. Por conseguinte, a alma
será uma certa determinação (e forma (, e não matéria () ou
substrato ()”34. (6) “[...] a alma é uma certa atualidade
(e determinação (daquele que tem a potência de ser
tal”35.
Aristóteles recorre a dois exemplos para ilustrar melhor essa diferença. Segundo
o Estagirita, se o machado fosse um corpo natural, sua alma seria a essência () de
ser machado, ou seja, a capacidade de cortar a lenha. Assim como se o olho fosse um
animal, sua alma seria a vista, a capacidade de ver. Um machado incapaz de cortar lenha
poderia ser considerado machado apenas por homonímia38, quer dizer, só de nome. Assim
também, um olho, sem a capacidade de ver, seria considerado olho somente por
33
De anima 412b 12. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 72.
34
De anima 414a 12. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 76.
35
De anima 414a 28. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 76.
36
ROSS, David. Aristóteles. Tradução: Luís Filipe Bragança S. S. Teixeira. Lisboa: Dom Quixote, 1987,
p. 142.
37
Suas funções permanecem adormecidas, exceto a função vegetativa.
38
Aristóteles define como homonímia as coisas que têm em comum o nome, contudo a definição do ser
que corresponde ao nome é diferente. Deste modo, animal é tanto um homem real como um homem pintado
em uma pintura, por exemplo. Cf. Categorias I, 1a 1-5.
12
3 Tripartição da alma
Se, por um lado, Aristóteles rejeita veemente Platão em relação a visão dualista,
em que a alma pode existir separada do corpo, por outro, recupera a visão tripartida da
alma sustentada por seu antecessor. Para o Estagirita, a alma pode ser ordenada
hierarquicamente e dividida em três partes. Em uma das definições apresentadas
anteriormente, podemos identificar e entender essa hierarquia da alma nos diferentes seres
vivos. Vejamos, pois: “A alma é isto por meio de que primordialmente vivemos
, percebemos e raciocinamos (”40. O que poderia
nos gerar dúvida é que, anterior a essa definição, Aristóteles havia apresentado a alma
como: “[...] princípio das capacidades – nutritiva (), perceptiva (),
raciocinativa () e de movimento ()”41. Mais à frente ainda, ao
apresentar as potências, afirma: “Mencionamos como potências a nutritiva (),
a perceptiva (), a desiderativa (), a locomotiva () e a
raciocinativa ()”42. Todavia, existem três tipos de alma que comportam
capacidades diferenciadas. E isso se justifica da seguinte maneira: as plantas possuem
uma alma vegetativa, a qual consiste nos poderes de nutrição e reprodução. Além desses,
os animais possuem os poderes de percepção e locomoção, ou seja, possuem a alma
sensitiva. E, todo animal possui pelo menos uma capacidade sensitiva, na qual o tato é o
sentido mais universal. O que quer que possa sentir, pode sentir prazer ou dor e, portanto,
os animais têm apetite. Por fim, os homens, além disso, têm o poder da razão e do
39
Cf. De anima 412b 11-22.
40
De anima 414a 12-13. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 76.
41
De anima 413b 12. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 75.
42
De anima 414a 31. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 77.
13
43
Cf. KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental. Filosofia Antiga. Vol. 1. Tradução:
Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 284.
44
Cf. HAMELIN, Guy. “Vontade e consentimento em Aristóteles e Abelardo:
atos do apetite ou da razão ()?” Revista Doispontos, Curitiba, Vol. 7, nº. 1, abr. 2010, p.28.
45
Cf. De anima 415a 25.
46
Cf. De anima 416b 9-11.
47
De anima 415a 26-28. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 79.
14
Essa alma pode ser entendida a partir dos conceitos metafísicos de ato e potência.
Nesta perspectiva, afirma Reale: “Temos faculdades sensitivas que não estão em ato, mas
em potência, isto é, capazes de receber sensações”50. Em função disso, não
percepcionamos continuamente, mesmo que temos a capacidade de percepção. Vejamos
o que afirma o Estagitita:
48
Cf. ROSS, David. Aristóteles. Op. cit., p. 143.
49
Cf. BERTI, Enrico. Aristóteles. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. São Paulo: Ideias & Letras, 2015, p.
75.
50
REALE, Giovanni. Aristóteles. Coleção-História da Filosofia Antiga e Romana. São Paulo: Edições
Loyola, 2007, p.84.
51
De anima 417a 5-8. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 83.
15
52
De anima 417a 17-20. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 84.
53
Cf. De anima 418a 3-6. Deve-se assinalar, que este é um dos pontos da crítica feita por Aristóteles a
Platão no livro I do De anima. Cf. De anima 404b 16ss. De acordo com Reis, Platão não afirma
explicitamente a máxima: “o semelhante é conhecido pelo semelhante”. Todavia, Aristóteles se refere,
provavelmente, às doutrinas sustentadas por Platão no final da sua vida, quando as formas inteligíveis eram
concebidas como números. Para Reis, está em questão o seguinte: por um lado, o próprio universo que
Platão concebia como um grande organismo vivo é constituído do ponto ao plano e deste ao espaço, assim
como o volume e os demais objetos que o universo contém. Este processo é derivado de formas/números –
o Uno, a Díade e a Tríade. Por outro lado, os princípios do ato cognitivo seriam derivados dessas mesmas
formas/números. O processo de apreensão do objeto – científico, opinativo ou perceptivo – seria uma
relação entre semelhantes, ou seja, entre os princípios formais do conhecimento e os princípios constituintes
da realidade, ambos de natureza numérica. Cf. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 159.
54
Cf. De anima 424a 19-23.
16
maneira que se diz semelhante55. Pelo que vimos até aqui, a característica principal e, em
certo sentido, a mais importante da faculdade sensitiva é ser afetada pelos
sensíveis . Assim, antes de mais nada, precisamos investigar os tipos de
sensíveis, dado que Aristóteles classifica os objetos da percepção de acordo com o modo
pelo qual são percebidos.
55
Cf. MOREAU, Joseph. Aristote et son école. Paris: Boulevard Saint-Germain, 1962, p. 170.
56
Cf. De anima 418a 7ss.
57
Cf. De anima 425a 5-7.
58
Cf. De anima 425a 1-5.
17
próprios, pois não nos enganamos, por exemplo, de que seja cor ou som, apesar de nos
enganarmos sobre onde está o colorido ou o sonante59.
Quanto aos sensíveis comuns, não são próprios a nenhum sentido específico, mas
a todos ou mais de um. São ditos sensíveis comuns: o movimento, o repouso, o número,
a figura e a magnitude60. O movimento, por exemplo, pode ser percebido tanto pelo tato
como pela visão.
Apesar de não admitir a existência de um sexto sentido63, além dos cinco descritos
no decorrer do livro II, Aristóteles admite, no entanto, a necessidade de uma função
diferenciada na faculdade sensitiva. Vejamos, pois, que, segundo o Estagirita, dos
sensíveis comuns temos uma percepção comum e não por acidente, embora não haja
sentido próprio64 para eles. A explicação dada pelo Estagirita, para mostrar a
59
Cf. De anima 418a 11-16.
60
Cf. De anima 425a 15-17.
61
Cf. Metafísica 1025a 15.
62
De anima 418a 21-23. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 87.
63
Cf. De anima 424b 22ss.
64
Sentido próprio está sendo usado, neste caso, em referência aos cinco sentidos.
18
Diante disso, queremos investigar agora essa função exercida pela alma sensitiva
na percepção dos sensíveis comuns. Conforme salienta Ross, devemos considerar a
sensibilidade como uma única faculdade, a qual gera algumas funções em detrimento de
sua natureza genérica. Deste modo, o sentido comum em Aristóteles é ligado à natureza
comum, inerente e inseparável aos cinco sentidos. Como não possuímos um órgão
especial para detectar os sensíveis comuns, podemos afirmar ser uma faculdade interna
que tem a função de coordenar e unificar as demais sensações isoladas66.
65
Cf. De anima 425a 27ss.
66
Cf. ROSS, David. Aristóteles. Op. cit., p. 147.
67
Cf. KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental. Filosofia Antiga. Op. cit., p. 285.
68
Cf. De anima 425b 13ss.
19
Por outro lado, o segundo não é puro e simplesmente a percepção de uma cor, pois é a
partir da visão que formamos juízo sobre a visão ou não de uma cor69. Enfim, uma terceira
função do sentido comum é discernir as percepções que pertencem a distintos sentidos,
como o doce e o branco70. Esta distinção entre o branco e o doce não pode ser feita por
um único sentido e nem por dois sentidos atuando separadamente. Deve ser a obra de uma
faculdade unificada, que atua em um momento único. Perceber simultaneamente duas
qualidades tanto o branco e o preto, que são do mesmo gênero, ou a brancura e a doçura,
que são gêneros diferentes, é tarefa do sentido comum.
69
Cf. De anima 425b 20-25.
70
Cf. De anima 428b 16-19.
71
Cf. ROSS, David. Aristóteles. Op. cit., p. 150.
72
De acordo com Berti, Platão, apesar de usar o termo imaginação (), não o diferencia da
percepção do mundo sensível. Assim afirma Berti: “Em Platão, pode-se de fato dizer com certeza que o
termo está presente, mas este filósofo tende a confundi-lo ou identificá-lo com o conceito de
sensação ou, em geral, de conhecimento de mundo sensível. Isto se deve ao caráter particular da concepção
platônica da realidade. Com efeito, como é de conhecimento geral, para Platão o mundo sensível não
corresponde à realidade verdadeira, ao verdadeiro ser, mas é apenas uma imagem, uma aparência, o que se
constitui no componente parmenidiano do platonismo. Por isso, o conhecimento do mundo sensível passa
a ser conhecimento das aparências, das imagens, identificando-se, portanto, com a imaginação. Para Platão,
ter sensações não significa apreender a realidade autêntica, mas uma aparência da realidade, uma imagem.
De modo que nele não se podem encontrar os pressupostos filosóficos necessários para estabelecer uma
distinção clara entre conhecimento sensível e imaginação”. BERTI, Enrico. Novos Estudos Aristotélicos I.
Epistemologia, lógica e dialética. Tradução: Élcio de Gusmão Verçosa Filho. São Paulo: Edições Loyola,
2010, p. 79.
20
73
De anima 427b 14-15. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 110. Segundo Reis, a suposição
() é uma noção ampla que inclui tanto o conhecimento (), a opinião () e o
entendimento (). Cf. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 288.
74
Cf. De anima 427b 18-23.
75
Cf. De anima 428b 1-9.
21
76
De anima 428b 12-16. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 112.
77
Cf. De anima 428b 20-25.
78
Cf. ROSS, David. Aristóteles. Op. cit., p. 150.
79
Cf. De anima 428b 30.
22
dos sentidos. Ademais, aquele que tem ao menos um sentido está capacitado a
experimentar prazer e dor, ou seja, percebe o objeto como prazeroso ou doloroso. Com
efeito, aquele que sente prazer e dor pode apetecer o objeto prazeroso e evitar o objeto
doloroso. Logo, todo animal que tenha ao menos o sentido do tato possui também o apetite
80. Ao que tudo indica, o apetite pertence à alma sensitiva81.
80
Cf. De anima 414b 1-5.
81
Antes de mais nada, é importante esclarecer, para evitar confusão dos termos, que optamos pela seguinte
tradução: (apetite), (desejo), (impulso) e (vontade).
82
Cf. De anima 413b 12.
83
Cf. De anima 432b 14-30.
23
Por fim, Aristóteles apresenta três elementos que compõe o movimento: (1) o que
faz mover , ou o objeto visado e que move sem ser movido. (2) Também, há a
faculdade do apetite ),que move pelo fato de ser movida pelo objeto. (3)
Enfim, encontra-se aquele que é movido, o indivíduo. Portanto, a partir do que foi
apresentado, fica claro que tanto o apetite quanto o movimento ),
podem ser vistos, em relação à alma, como ligados à sensação.
84
De anima 433a 9-15. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 124
85
Cf. De anima 433a 17-21.
24
O apetite () é o que move o animal em direção ao seu objeto. Isto é, o objeto
) move o apetite () e o apetite, por sua vez, move o animal, como foi dito
anteriormente. Assim, o apetite () é ligado à faculdade desiderativa () e,
deste modo, pertence à parte sensitiva da alma. Ora, embora as espécies de apetites
() parecem pertencer à parte sensitiva da alma e, portanto, à parte não racional,
Aristóteles afirma que uma delas pode ser afetada pela parte racional, sobretudo,
obedecendo à função superior da alma, como veremos a seguir. Ora, como isso se explica?
86
Grifo nosso. De anima 414a 30 - 414b 5. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 77.
87
Cf. HAMELIN, Guy. “Vontade e consentimento em Aristóteles e Abelardo:
atos do apetite ou da razão ()?” Revista Doispontos. Op. cit., p.29.
25
88
Cf. KAHN, Charles H. “From Aristotle to Augustine”. In: DILLON, J. M.; LONG. A. A. (Editores). The
Question of "Eclecticism": Studies in Later Greek Philosophy. Berkeley: University of California Press,
1988, p. 239.
89
De anima 432b 1-7. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 122.
90
Cf. HAMELIN, Guy. “Vontade e consentimento em Aristóteles e Abelardo:
atos do apetite ou da razão ()?” Revista Doispontos. Op. cit., p. 29.
26
do apetite () julgar e realizar escolhas racionais. Para tanto, é necessário buscar na
Ética a Nicômaco alguns conceitos fundamentais que possam nos auxiliar.
No livro III da Ética a Nicômaco, Aristóteles procura realizar uma diferença entre
escolha () e ato voluntário () ou, melhor, o ato feito de bom grado
ou espontâneo91. Por se tratar de uma obra ética, o intuito dessa diferença é mostrar
principalmente que a ação moral não depende apenas do ato voluntário (), mas
que também é preciso um ato deliberado () e escolhido (). Assim,
apesar de ser voluntária, a escolha não se identifica ao ato voluntário (), pois os
atos voluntários nem sempre são escolhidos. Tanto uma criança, como um animal
irracional são capazes de praticarem atos voluntários (), embora não dizemos
que foram escolhidos ()92.
Seja como for, o que nos interessa aqui é a distinção feita pelo Estagirita entre a
escolha () e os apetites (). Afirma Aristóteles:
91
Cabe salientar que há grande discussões a respeito do termo em Aristóteles. David Gauthier, por
exemplo, se recusa até mesmo a traduzir os termos epor “voluntário” e “involuntário”,
alegando que na psicologia de Aristóteles a vontade, como se entende atualmente, não existe. Deste modo,
seria mais adequado falar em ato feito de “bom grado” e ato feito de “mau grado”. Cf. GAUTHIER, R.A.
& JOLIF. J.Y. L’Éthique à Nicomaque. Introduction, traduction et Commentaire. Louvain/Paris:
Publications universitaires/Béatrice-Nauwelaerts, 1970, p. 170. Fonseca, ao traduzir alguns textos
selecionados da obra de Aristóteles, afirma que o mais correto seria traduzir por “espontaneidade” e “não
espontaneidade” do apetecer. Cf. ARISTÓTELES. A ética – textos selecionados. Tradução e notícias
histórico-bibliográfica: Cássio M. Fonseca. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1965, p. 76.
92
Cf. Ética a Nicômaco 1111b 5-10.
93
Grifo nosso. Ética a Nicômaco 1111b 10-13. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. Seleção de
textos de José Américo Motta Pessanha. 4ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 44.
27
94
Ética a Nicômaco 1111b 20-23. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. Op. cit., p. 44.
95
Ética a Nicômaco 1111b 26-29. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. Op. cit., p. 44.
28
Não há, contudo, como equivocar-se diante dessas duas noções em Aristóteles. A
vontade (), como toda espécie de apetite (), relaciona-se exclusivamente
com um fim. Podendo, sobretudo, querer algo impossível de ser alcançado por nós. A
escolha (), ao contrário, não diz respeito ao fim, mas tem a ver com o melhor
meio para tal fim. Ademais, conforme o Estagirita, o objeto de escolha é algo que está ao
nosso alcance e depende de nós98. A escolha, dessa forma, parece restringir a vontade à
consideração do possível.
96
Cf. AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. 2ªed. São Paulo:
Paulus, 2008, p. 214.
97
Cf. ZINGANO, Marcos. Estudos de Ética Antiga. 2ªed. São Paulo: Paulus, 2009, p. 168.
98
Cf. Ética a Nicômaco 1113a 11-15.
29
Passamos a considerar agora a função mais elevada da alma, a parte pela qual a
alma conhece e entende 99: a alma racional. Esta última capacidade
da alma se apresenta de duas maneiras: como potência do conhecimento científico
e como potência deliberativa ou calculativa . A
primeira tem por objeto a verdade por si mesma, enquanto a segunda busca a verdade não
pela verdade em si mesma, mas em vista das coisas práticas100.
99
Cf. De anima 429a 10.
100
Cf. COPLESTON, Frederick. Historia de la filosofia... Op. cit., p. 329.
101
Cf. De anima 429a 13ss. É pertinente citar, nesse ponto, uma afirmação de Reis, no comentário ao De
anima. Segundo ela, esta analogia entre sentido e intelecto não deve confundir nosso entendimento sobre o
assunto. Vejamos: “[...] o intelecto, como veremos, não tem órgão físico; o objeto inteligível, de certa
maneira, está na própria alma, e por isso a análise em paralelo do intelecto e dos sentidos é imperfeita. A
expressão sofrer algo é ambígua, e sofrer algo pela sensibilidade é diferente de sofrer algo para o
pensamento. De fato, Aristóteles é mais lacônico do que se esperaria no detalhamento das diferenças entre
os dois”. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 295.
102
De anima 429a 20-24. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 114.
30
“[...] em potência () é assim com o uma tabuleta () em que nada
subsiste atualmente () escrito”103.
Cabe ainda lembrarmos que até então, ao tratar da alma vegetativa e sensitiva,
Aristóteles tem demonstrado que as capacidades da alma são inseparáveis do corpo. Por
outro lado, repetidamente, faz ressalvas quanto ao intelecto104. Por esse motivo, na
sequência do texto o Estagirita busca esclarecer de que modo a atividade do intelecto é, e
deve ser necessariamente separada da matéria. Afirma ele: “[...] é razoável que tampouco
ele (intelecto – ) seja misturado ao corpo, do contrário se tornaria alguma qualidade
– ou frio ou quente – e haveria um órgão, tal como há para a parte perceptiva, mas
efetivamente não há nenhum órgão”105. Desta maneira, parece justificada as ‘ressalvas’
feitas por Aristóteles em relação ao intelecto. Diferentemente das outras faculdades, ele
não é misturado ao corpo, pois não possui um órgão corporal especial. Ademais, se fosse
material não poderia receber simultaneamente a forma (do calor e a forma
(do frio, por exemplo.
Deve-se assinalar, também, que dentre tantos motivos, esta separação do intelecto
o diferencia da faculdade sensitiva. Vale ressaltar que, como foi afirmado anteriormente,
as duas faculdades – sensitiva e intelectiva – são afetadas pelo seu objeto, porém a
maneira de serem afetadas é totalmente diversa. No caso dos sentidos, quando o objeto
perceptível atua de maneira muito forte pode acabar por destruí-los. Por exemplo, quando
o som é muito alto, destrói o ouvido. A luz muito forte prejudica a vista. O calor quando
excessivo destrói o tato. E assim com os demais órgãos sensoriais. De modo contrário
acontece com o intelecto e o seu objeto. Quando o intelecto é intensamente afetado por
um objeto inteligível, ele não é destruído, pelo contrário, aumenta sua capacidade de
intelecção, pois o objeto inteligível não está atuando sobre um órgão corporal106. Enfim,
o intelecto não deve ser misturado a nenhuma matéria, já que pensa tudo. Ademais, é em
potência todas as coisas, mas em ato, absolutamente, nenhuma delas.
103
De anima 430a 3-4. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 116.
104
A título de exemplo: “Revela-se que, na maioria dos casos, a alma nada sofre ou faz sem o corpo, como,
por exemplo, irritar-se, persistir, ter vontade e perceber em geral; por outro lado, parece ser próprio a ela
particularmente o pensar”. De anima 403a 7-9. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 47. E ainda: “No
que diz respeito ao intelecto e à capacidade de inquirir, nada ainda é evidente, mas parece ser um outro
gênero de alma, e apenas isso admite ser separado, tal como o eterno é separado do corruptível”. De anima
413b 24-26. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 75.
105
De anima 429a 17-24. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 114.
106
Cf. De anima 429a 29ss.
31
Adentramos agora em uma das questões que suscitou inúmeras discussões durante
toda a história da filosofia, principalmente entre os medievais. Ainda hoje, não há
consenso entre os especialistas sobre a doutrina do intelecto ativo e passivo107. Não
obstante, segundo Ross, este ponto é o mais importante da psicologia aristotélica108.
[...] tal como em toda a natureza () há, por um lado, algo que é
matéria () para cada gênero – e isso é o que é em potência ()
todas as coisas – e, por outro, algo diverso que é a causa e fator
produtivo (), por produzir tudo, como a técnica () em
relação à matéria () que modifica (), é necessário que
também na alma () ocorram tais diferenças. E tal é o intelecto
(), de um lado, por tornar-se () todas as coisas e, de outro,
por produzir () todas as coisas, como uma certa disposição (),
por exemplo, como a luz () 109.
107
Não pretendemos e não ousamos resolver aqui as inúmeras questões em torno dessa problemática, mas
apenas apresentar como Aristóteles encaminha a discussão, até porque, não é o tema central de nossa
pesquisa. É pertinente citar, nesse ponto, uma afirmação de Berti, um dos grandes estudiosos de Aristóteles
na atualidade. Vejamos o que ele afirma em relação a esse dilema: “É preferível suspender o juízo e não
pretender resolver um problema que os maiores intérpretes de Aristóteles não conseguiram resolver de
modo satisfatório”. BERTI, Enrico. Novos Estudos Aristotélicos I. Epistemologia, lógica e dialética. Op.
cit., p. 176.
108
Cf. ROSS, David. Aristóteles. Op. cit., p. 156.
109
De anima 430a 10-15. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 116.
32
sensitiva se identifica com seus objetos, o intelecto aparenta-se aos objetos que conhece.
No caso da percepção sensível, a forma (do objeto é transmitida ao sujeito e torna-
se, de algum modo, todo a natureza deste sujeito sensível. Assim também, o intelecto
torna-se idêntico à natureza dos objetos quando os conhece. No caso do intelecto, esse
exercício de apreensão é atribuído ao intelecto passivo110. Ele tem acesso às imagens
produzidas pela imaginação . É nessas imagens apreendidas
pelo intelecto passivo que o intelecto ativo atua. É nesse sentido que Aristóteles compara
a ação do intelecto ativo à luz. A luz faz de cores em potência, cores em atividade111.
Tal analogia com a luz facilita nosso entendimento. Por exemplo, com relação à
vista, a luz é o que torna possível ou atualiza as cores. A luz não cria a visibilidade,
embora acione a visão, ou seja, é uma condição necessária, mas não suficiente para a
visão. O intelecto ativo está para o inteligível como a luz está para o sensível. O produzir
do intelecto ativo só é possível se o intelecto passivo possui o “material”, ou seja, o
inteligível ou as formas inteligíveis em potência. Convém ainda recordarmos o que
afirmamos anteriormente sobre o intelecto ser não misturado ao corpo e totalmente
separado da matéria. É pertinente novamente citarmos o próprio texto do Estagirita:
110
Cf. ROSS, David. Aristóteles. Op. cit., p. 156.
111
Cf. De anima 430a 16.
112
De anima 430a 24-26. ARISTÓTELES. De anima. Op. cit., p. 117
113
De acordo com Copleston, alguns filósofos, como Alexandre de Afrodísia (séc. III d.C) e Jacopo
Zabarella (séc. XVI) identificaram o entendimento agente com Deus. Assim, a função de Deus na alma
seria a iluminação do conhecimento em potência. Contudo, isso é contestado por outros, por haver assim,
uma certa incoerência em Aristóteles, pois no De anima falaria de uma imanência de Deus, enquanto na
Metafísica de uma transcendência de Deus. Cf. COPLESTON, Frederick. Historia de la filosofia... Op. cit.,
p. 331.
33
por não ser nada em potência que é eterno. Segundo Ross, ao afirmar que é o intelecto
ativo que é imortal, Aristóteles parece pretender deixar claro que a memória não
sobrevive à morte. O motivo é que intelecto ativo é impassível e não sofre qualquer
impressão das circunstâncias da vida. O seu conhecimento não possui qualquer marca de
data ou circunstância. Por outro lado, o intelecto passivo, que é impresso por
circunstâncias, morre juntamente com o corpo114. Embora tal interpretação pareça
plausível, está longe de ser um consenso entre os estudiosos aristotélicos.
114
Cf. ROSS, David. Aristóteles. Op. cit., p. 159.
34
115
No De ente et essentia a expressão substantiae separatae é definida por Tomás como substâncias
separadas da matéria. Para o Aquinate são três as substantiae separatae: a alma (anima), os anjos ou as
inteligências (intelligentia) e Deus ou causa primeira (causa prima). Cf. De ente et essentia IV. Convém
35
tal esclarecimento, pois muitas vezes o termo pode ser equivocadamente entendido e usado para se referir
apenas aos anjos, que não é o caso em Tomás, nessa obra. Todavia, a alma separada é uma substância
incompleta.
116
Cf. GILSON, Étienne. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás de Aquino. Versión
castellana de Alberto Oteiza Quirno. Buenos Aires: Édiciones Desclée Brouwer, 1960, p. 165.
117
Cf. S. Th. Ia, q. 75, a. 1.
118
“Manifestum est enim quod esse principium vitae, vel vivens, non convenit corpori ex hoc quod est
corpus, alioquin omne corpus esset vivens, aut principium vitae”. S. Th. Ia, q. 75, a. 1. AQUINO, Tomás
de. Suma Teológica. v. 2. Coordenação geral de Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira. 5ª ed. São Paulo:
Edições Loyola, 2015, p. 356.
119
“Anima igitur, quae est primum principium vitae, non est corpus, sed corporis actus, sicut calor, qui est
principium calefactionis, non est corpus, sed quidam corporis actus”. S. Th. Ia, q. 75, a. 1. AQUINO, Tomás
de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 357.
36
120
Cf. GILSON, Étienne. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás de Aquino. Op. cit., p.
265.
121
Subsistência é uma propriedade da substância que não está em outra coisa senão em si mesma. É o ser
em si da substância. Essa propriedade não tem a matéria e os acidentes. Subsistência possui dois
significados: enquanto pode considerar a forma ou o ser. No primeiro caso, se tem a subsistência de um ser
que não tem a necessidade da matéria para existir. Este é o caso dos anjos e da alma humana. No segundo
caso, se tem a subsistência de quem não depende de nenhuma causa para existir. Isso pode-se dizer somente
de Deus. Cf. MONDIN, Battista. Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso D’Aquino.
Bologna: Edizini Studio Domenicano, 1991, p. 593.
122
“Quod autem potest cognoscere aliqua, oportet ut nihil eorum habeat in sua natura, quia illud quod
inesset ei naturaliter impediret cognitionem aliorum”. S. Th. Ia, q. 75, a. 2. AQUINO, Tomás de. Suma
Teológica. v. 2. Op. cit., p. 359.
123
Cf. S. Th. Ia, q. 75, a. 2.
37
provar a imaterialidade da alma, Tomás está considerando a alma de modo geral, como
primeiro princípio de vida de todo ser vivo, agora, versa exclusivamente da alma humana.
A alma humana, além das operações fisiológicas, possui operações cognitivas, uma vez
que conhece a existência e as propriedades dos corpos. Como foi dito, no parágrafo
anterior, para conhecer algo é preciso não ser esse algo, ou seja, não ter nada em si do que
é conhecido. Logo, a alma humana exerce funções sem o corpo e opera por si. Seguindo
a argumentação anterior, afirma Tomás: “Portanto, o princípio intelectual, que se chama
mente ou intelecto, opera por si sem a participação do corpo. Ora, nada pode operar por
si, a não ser que subsista por si”124. Ou seja, se é independente em atuar é igualmente
independente em existir.
Neste aspecto, Tomás parece mais determinado que Aristóteles. Pois, apesar do
Estagirita afirmar que o intelecto ativo é separado de toda matéria e imortal, como vimos
no capítulo anterior, não desenvolve a questão. Parece deixar o tema em aberto, tanto que
não há um consenso do que seja exatamente o intelecto ativo para Aristóteles. Por outro
lado, embora levado por razões teológicas, o Aquinate procura evidenciar a
independência da operação do intelecto sem lhe tirar o caráter individual126.
124
“Ipsum igitur intellectuale principium, quod dicitur mens vel intellectus, habet operationem per se, cui
non communicat corpus. Nihil autem potest per se operari, nisi quod per se subsistit”. S. Th. Ia, q. 75, a. 2.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 359.
125
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. La síntesis tomista. Traducción de Eugenio Melo. Buenos
Aires: Ediciones Desclées, Buenos Aires, 1946, p. 207.
126
Trataremos amplamente do problema do intelecto e do seu caráter individual no terceiro capítulo, quando
discorrermos sobre as faculdades superiores da alma.
38
127
Cf. C. G. VI, 79.
128
Cf. GILSON, Étienne. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás de Aquino. Op. cit., p.
266.
129
Cf. S. Th. Ia, q. 75, a. 6.
130
Cf. ROVIGHI, Vanni Sofia. Introduzione a Tommaso d’Aquino. Roma: Editori Laterza, 1981, p. 91.
131
Cf. S. Th. Ia, q. 75, a. 6.
39
humana, é preciso buscá-la nela mesma. Tomás aponta neste trecho para a imortalidade
da alma humana:
Com efeito, é claro que aquilo que por si convém a uma coisa é
inseparável dela. Ora, ser por si convém à forma, que é ato. Por isso, a
matéria recebe o seu ser em ato ao receber a forma, e assim acontece
que ela se corrompe ao se separar dela a forma. Ademais, é impossível
que a forma se separe de si mesma. Por isso é impossível que a forma
subsistente cesse de ser132.
Nesse trecho, Tomás procura demonstrar que um corpo pode ser separado de sua
forma e do existir que ela lhe confere. No entanto, uma forma subsistente não pode ser
separada de si mesma, do existir que “é”. Assim, enquanto alma humana segue sendo o
que é, existe. A destruição do composto que ela compõe com a matéria retira o ser do
composto, mas não da alma. Ela não pode apartar-se de si mesma e deixa de ser o que é,
porque é um ser subsistente.
Segundo Gardeil, diante dessas considerações feitas por Tomás, a questão que
devemos levantar é a seguinte. De nenhum modo a alma humana pode desaparecer, ou
seja, tal como Deus, ela seria um ser absolutamente necessário? O próprio Gardeil afirma
que tal conclusão é evidentemente absurda. O ser da alma é criado. Por conseguinte,
continua na dependência da causa que está no seu princípio. Essa causa, que pode criá-la,
pode igualmente aniquilá-la, pois nenhum agente subordinado tem poder sobre si próprio.
Portanto, sendo incorruptível ou imortal no plano da realidade criada, a alma é
absolutamente submissa ao seu criador133. Contudo, ponderamos para o que afirma
Tomás na Summa contra gentiles: “[...] Deus, que é o instituidor da natureza, não retira
às coisas o que é próprio da natureza delas”134. Deste modo, se é da natureza da alma
humana ser imortal, Deus não retira dela essa condição.
132
“Manifestum est enim quod id quod secundum se convenit alicui, est inseparabile ab ipso. Esse autem
per se convenit formae, quae est actus. Unde materia secundum hoc acquirit esse in actu, quod acquirit
formam, secundum hoc autem accidit in ea corruptio, quod separatur forma ab ea. Impossibile est autem
quod forma separetur a seipsa. Unde impossibile est quod forma subsistens desinat esse”. S. Th. Ia, q. 75, a.
6. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 367.
133
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 186.
134
“[...] Deus, qui est institutor naturae, non subtrabit rebus id quod est proprium naturis earum”. C. G. II,
55. AQUINO, Tomás de. Suma Contra os Gentios. v.2. Tradutores: Joaquim F. Pereira e Maurílio José de
Oliveira Camello. São Paulo: Edições Loyola, 2015, p. 149.
40
Pode-se ainda tomar como sinal disso (da imortalidade da alma) o fato
de que cada coisa natural deseja ser segundo seu modo. O desejo, nas
coisas dotadas de conhecimento, corresponde ao conhecimento. O
sentido, por sua vez, não conhece o ser, senão referindo aqui e agora. O
intelecto, porém, apreende o ser de modo absoluto e sempre. Por isso,
todo ser dotado de intelecto deseja naturalmente existir sempre. Ora,
um desejo natural não pode ser vão. Logo, toda substância intelectual é
incorruptível136.
135
O mesmo argumento é apresentado na Summa contra gentiles II, 79.
136
“Potest etiam huius rei accipi signum ex hoc, quod unumquodque naturaliter suo modo esse desiderat.
Desiderium autem in rebus cognoscentibus sequitur cognitionem. Sensus autem non cognoscit esse nisi sub
hic et nunc, sed intellectus apprehendit esse absolute, et secundum omne tempus. Unde omne habens
intellectum naturaliter desiderat esse semper. Naturale autem desiderium non potest esse inane. Omnis
igitur intellectualis substantia est incorruptibilis”. S. Th. Ia, q. 75, a. 6. AQUINO, Tomás de. Suma
Teológica. v. 2. Op. cit., p. 368.
137
Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 368. Nota do tradutor.
138
Não só na Summa theologiae, mas principalmente no De ente et essentia IV, Tomás desenvolve a
questão. É pertinente, citarmos o que afirma o Aquinate: “Donde, não haver de modo nenhuma composição
41
de matéria e forma na alma ou na inteligência, caso se tome nelas a essência do modo como nas substâncias
corporais. Mas, há aí composição de forma e ser”. Grifo nosso. AQUINO, Tomás de. O ente e a essência.
Tradução de Carlos Arthur do Nascimento. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 37. “Unde in anima vel in
intelligentia nullo modo est compositio ex materia et forma, ut hoc modo accipiatur essentia in eis sicut in
substantiis corporalibus, sed est ibi compositio formae et esse”. De ente et essentia IV.
139
Cf. S. Th. Ia, q. 75, a. 5, ad 4. “Por isso só Deus, que é seu próprio ser, é ato puro e infinito. Mas nas
substâncias intelectuais há composição de ato e potência, porém não de matéria e forma, mas de forma e
ser participado”. “Unde solus Deus, qui est ipsum suum esse, est actus purus et infinitus. In substantiis vero
intellectualibus est compositio ex actu et potentia; non quidem ex materia et forma, sed ex forma et esse
participato”. S. Th. Ia, q. 75, a. 5, ad 4. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 366.
140
Cf. De ente et essentia IV.
141
“[...] licet anima humana per se possit subsistere, non tamen per se habet speciem completam”. Q. De
anima, q. 1 ad 4. AQUINO, Tomás de. Questões disputadas sobre a Alma. Tradução de Luiz Astorga. São
Paulo: Editora É Realizações, 2014, p. 47.
42
se pode entender uma forma separada que não seja senão uma só
espécie142.
Poderíamos nos perguntar agora se cada alma humana separada seria uma espécie.
Segundo Tomás, mesmo “separada” pela morte, a alma continua sendo a forma de
determinado corpo. Consequentemente, não pode ser espécie. É pertinente citar, neste
ponto, o próprio trecho em questão: “[...] deve-se dizer que embora a alma intelectiva,
como o anjo, não tenha matéria da qual seja feita, contudo, é a forma de determinada
matéria; o que não convém ao anjo. Portanto, há muitas almas de uma mesma espécie
conforme a divisão da matéria”145.
Pelo que vimos até aqui, a alma humana possui uma natureza independente da
matéria, isto é, subsiste por si. Ora, o fato de ter falado da essência da alma em si mesma
142
“[...] in substantiis incorporeis non potest esse diversitas secundum numerum absque diversitate
secundum speciem, et absque naturali inaequalitate. Quia si non sint compositae ex materia et forma, sed
sint formae subsistentes, manifestum est quod necesse erit in eis esse diversitatem in specie”. S. Th. Ia, q.
75, a. 7. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 370.
143
Cf. S. Th. Ia, q. 75, a. 7.
144
Cf. AQUINO, Tomás de. De Substantiis Separatis – Sobre os Anjos. Tradução Luiz Astorga;
apresentação de Paulo Faitanin. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2006, p. 19, (apresentação).
145
Grigo nosso. “[...] ergo dicendum quod, licet anima intellectiva non habeat materiam ex qua sit, sicut
nec Angelus, tamen est forma materiae alicuius; quod Angelo non convenit. Et ideo secundum divisionem
materiae sunt multae animae unius speciei”. S. Th. Ia, q. 76, a. 2, ad 1. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica.
v. 2. Op. cit., p. 381.
43
conduz Tomás ao problema da união desta com o corpo. Como é possível a união de uma
tal alma imaterial, imortal e que subsistente separada com um corpo material e
corruptível? Não somos levados inevitavelmente à tese platônica de que a alma é
suficiente para si mesma e encontra no corpo somente uma habitação precária e
provisória? Ademais, como manter ao mesmo tempo que a alma é a forma do corpo e que
o indivíduo humano é uno? Para Tomás, a solução não se encontra no dualismo platônico,
que de algum modo despreza o aspecto material dessa união. Não se pode dizer que o
homem está constituído tão somente por sua alma, porque cada homem percebe que pensa
e sente e não pode sentir sem o corpo. Tampouco, ele concorda com a interpretação de
Averróis que afirma ser o intelecto um único princípio pensante para todos os homens.
Ora, não se pode dizer que uma inteligência impessoal se une ao corpo de Sócrates, por
exemplo, para realizar nele o ato do pensamento. Afinal, isso não basta para afirmar que
o ato de pensar seja verdadeiramente de Sócrates. Sócrates não poderia dizer: “Eu penso”,
mas somente “Pensa”146. Ademais, não basta dizer que a alma se une acidentalmente ao
corpo como um motor, pois não se poderia dizer que Sócrates é absolutamente uno, mas
uma dualidade147. De acordo com Boehner e Gilson, o rigor com que o sistema tomista
defende a unidade essencial do homem não tem paralelo nos sistemas da filosofia
cristã148. A alma tem a capacidade de sentir, mas não pode exercer esta capacidade sem o
corpo. Também possui a faculdade de entender, mas não tem uma reserva de ideias
inatas. Depende da experiência sensível para a aquisição do conhecimento149.
146
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. La síntesis tomista. Op. cit., p. 211.
147
Cf. S. Th. Ia, q. 76, a. 1.
148
Cf. BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau
de Gusa. Tradução e notas introdutórias de Raimundo Vier. 13ªed. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 467.
149
Cf. COPLESTON, Frederick. El pensamiento de Santo Tomás. Traducción de Elsa Cecilia Frost.
México: Fondo de Cultura Económica, 1960, p. 178
44
modo, como ato primeiro, ela dá a vida ao corpo. E, a partir desse ato primeiro, o vivente
pode exercer seus atos segundos, como as funções vitais e as potencialidades operativas.
Já se percebe, através dessas considerações, que essa união entre alma e corpo é
substancial150. Agora, isso se evidencia, ao observarmos que quando a alma abandona o
corpo não resta nada nele de propriamente humano, a não ser a aparência que se
desintegra rapidamente com a morte. Um cadáver não tem potência para atualizar
nenhuma das atividades próprias do ente humano. Recordamos que o corpo separado,
assim como a alma separada, não é uma espécie humana, mas somente quanto unidos.
Em função disso, a união da alma com o corpo não pode ser acidental, mas substancial a
fim de que a espécie humana seja completada151. Segundo Copleston, Tomás não quer
dizer que a alma e o corpo sejam realidades que não se pode distinguir. Alma e corpo são,
cada um deles, substâncias incompletas que juntas formam o ser humano152. Ademais,
essa união abarca tanto o ser como o operar. Assim afirmar Tomás:
[...] a alma se une ao corpo tanto pelo bem que é a sua perfeição
substancial, ou seja, para que com isso a espécie humana é completada,
como pelo bem que é a sua perfeição acidental, ou seja, porque com
isso se perfaz o conhecimento intelectivo, que se dá através dos
sentidos. Pois este é o modo de intelecção natural ao homem153.
150
É pertinente, neste ponto, mostrar a diferença entre união substancial e união acidental. Seguimos o que
afirmam Boehner e Gilson: “Acidental é a união que existe entre uma substância e seus acidentes ou
propriedades, tais como o calor, o frio, a forma externa etc.; substancial é aquela que se origina da
composição de uma forma com uma matéria. União acidental não passa, no fundo, da enxertia de uma
entidade em outra, não havendo nelas nenhuma exigência natural de união mútua. A união substancial
combina dois seres que, tomados em separado, são incompletos: só na união é que vêm a constituir
seres completos. Por si mesmas, a matéria e a forma são incompletas, mas tão logo a forma atualiza
a matéria, elas se tornam uma substância completa. A matéria primeira, como pura potencialidade que
é, aspira a ser atualizada pela forma; do contrário, ela permanece matéria e não chega a se tornar corpo.
Mas também a alma é um ser incompleto, seu grau de autonomia é demasiadamente imperfeito para poder
expandir-se independente do corpo; e, uma vez separada deste, só torna a atingir sua perfeição natural após
sua reunião com um corpo, o que lhe permite exercer suas atividades por meio de órgãos corporais”. Grifo
nosso. BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau
de Gusa. Op. cit., p. 468.
151
Cf. MONDIN, Battista. Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso D’Aquino. Op. cit., p.
45.
152
Cf. COPLESTON, Frederick. El pensamiento de Santo Tomás. Op. cit., p. 176.
153
“[...]anima unitur corpori et propter bonum quod est perfectio substantialis, ut scilicet compleatur species
humana; et propter bonum quod est perfectio accidentalis, ut scilicet perficiatur in cognitione intellectiva,
quam anima ex sensibus acquirit; hic enim modus intelligendi est naturalis homini”. Q. De anima, q. 1, ad
7. AQUINO, Tomás de. Questões disputadas sobre a Alma. Op. cit., p. 49.
45
Vale ressaltar que, embora para Tomás a alma racional é a única forma do corpo,
não parece haver um consenso entre os medievais posteriores sobre o assunto. Segundo
Ladaria, o problema que já suscitava muitas dúvidas adquire maior relevância com a tese
do “pluralismo das formas” defendida pela maioria dos franciscanos – especialmente
Petrus Olivi –, segundo a qual o homem não é simplesmente uma substância em que a
alma é a forma e o corpo corresponde à matéria. Os defensores dessa tese, atribuem à
matéria certa atualidade antes da infusão da alma. Assim, existe a forma do corpo (forma
corporeitatis) e, de acordo com cada tipo de vitalidade de alma, uma forma vegetativa,
uma forma sensitiva e uma forma intelectiva. Deste modo, o cadáver, que continua a
possuir como tal sua forma própria, pode ser chamado de corpo. Por outro lado, os
defensores de uma forma única argumentam que a própria morte demonstra que o corpo
não tem a possibilidade de existir de outra maneira senão na união com a alma, visto que
o cadáver se decompõe. Para Tomás, falar de “corpo” vivo ou morto é um equívoco, pois
sem a alma não há corpo em sentido estrito155.
154
Cf. Q. De anima, q. 9, ad 14.
155
Cf. LADARIA, Luis-F. O homem criado à imagem de Deus. In: SESBOÜE, Bernard (Org.). História
dos dogmas. Tomo 2 - O homem e sua salvação. São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 122-125.
156
Cf. S. Th. Ia, q. 77, a. 1.
46
[...] o sentido, por si, se refere à quantidade passível que se divide, por
si, em cor, som etc. Haverá, pois, uma potência sensitiva para a cor, a
vista, outra para o som, audição. Mas uma qualidade passível, tal como
a cor, pode acidentalmente ser de um músico ou de um gramático, de
157
Cf. Q. De anima, q. 12.
158
Cf. S. Th. Ia, q. 77, a. 6.
159
Cf. HUGON, Padre Édouard. Os Princípios da Filosofia de São Tomás de Aquino: as vinte e quatro
teses fundamentais. Tradução e introdução de D. Odilão Moura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 150.
160
Cf. S. Th. Ia, q. 77, a. 3.
47
161
“Sicut sensus per se respicit passibilem qualitatem, quae per se dividitur in colorem, sonum et huiusmodi,
et ideo alia potentia sensitiva est coloris, scilicet visus, et alia soni, scilicet auditus. Sed passibili qualitati,
ut colorato accidit esse musicum vel grammaticum, vel magnum et parvum, aut hominem vel lapidem. Et
ideo penes huiusmodi differentias potentiae animae non distinguuntur”. S. Th. Ia, q. 77, a. 3. AQUINO,
Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 409.
162
Cf. S. Th. Ia, q. 77, a. 5.
163
“Destructo autem subiecto, non potest accidens remanere. Unde, corrupto coniuncto, non manent
huiusmodi potentiae actu; sed virtute tantum manent in anima, sicut in principio vel radice. Et sic falsum
est, quod quidam dicunt huiusmodi potentias in anima remanere etiam corpore corrupto. – Et multo falsius,
quod dicunt etiam actus harum potentiarum remanere in anima separata, quia talium potentiarum nulla est
48
actio nisi per organum corporeum”. S. Th. Ia, q. 77, a. 8. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op.
cit., p. 419.
164
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 1.
165
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 42.
166
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 1.
49
seus objetos, ou seja, quanto mais uma potência é elevada, tanto mais seu objeto é
universal167. Deste modo, segundo Gardeil, somos levados a distinguir três grandes
gêneros de objetos: o corpo particular que é unido à alma, o conjunto dos corpos sensíveis
e o ser considerado universalmente168. Assim, é o próprio corpo unido à alma que é
necessário nutrir, aumentar e reproduzir um vivente semelhante. Esta é a razão da
potência vegetativa. O conjunto dos corpos sensíveis ou o mundo sensível é um objeto
mais vasto. Para atingi-lo temos a potência sensitiva. Depois, o objeto universal, ou seja,
o próprio ser em toda a sua plenitude. Para entendê-lo, dispomos de uma faculdade
também universal, assim como seu objeto, isto é, a potência intelectiva. Enfim, há a
necessidade de se colocar em relação com os objetos e de tender para eles. Uma primeira
tendência se manifesta pela própria inclinação. Essa tendência requer a potência apetitiva.
Convenhamos, não basta apetecer, porque às vezes os objetos úteis estão longe e os
prejudiciais, muito perto. É necessário, pelo movimento, aproximar-se de uns e afastar-
se de outros. Tal é o papel da potência motriz. Decorre daí que existem no homem cinco
gêneros de potências: (1) a vegetativa (vegetativum), (2) a sensitiva (sensitivum), (3) a
intelectiva (intellectivum), (4) a apetitiva (appetitivum) e (5) a locomotora segundo o lugar
(motivum secundum locum)169.
Por fim, Tomás apresenta a distinção das potências segundo os modos de vida.
Essa distinção se funda sobre a hierarquia de perfeição de cada ser vivo, que são quatro:
(1) primeiro, os seres que têm apenas faculdade vegetativa, como as plantas. (2) Segundo,
os seres que, além desta última, possuem a faculdade sensitiva, mas não são dotados de
motricidade, como é o caso das ostras, por exemplo. (3) Outros ainda possuem a faculdade
sensitiva e têm movimento, ou seja, os animais que têm a capacidade de, por si mesmos,
irem em busca do que lhes é necessário para viver. (4) Por último, os seres que, além de
todas essas capacidades, possuem inteligência, o que é específico do homem170. Quanto
ao apetite, não é característico de nenhum gênero particular de vida, visto que se encontrar
em todo e qualquer ser.
167
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 1.
168
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 43.
169
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 1.
170
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 1.
50
[...] tal corpo requer da alma três operações: uma que lhe dá o existir;
para isso se ordena a potência de gerar. Outra, pela qual o corpo vivo
atinge o devido desenvolvimento; para isso se ordena a potência de
crescimento. Uma terceira, enfim, pela qual o corpo vivo se conserva
tanto em seu existir como em seu devido tamanho; a isso se ordena a
potência de nutrição171.
171
“[...] corpus triplex animae operatio est necessaria. Una quidem, per quam esse acquirat, et ad hoc
ordinatur potentia generativa. Alia vero, per quam corpus vivum acquirit debitam quantitatem, et ad hoc
ordinatur vis augmentativa. Alia vero, per quam corpus viventis salvatur et in esse, et in quantitate debita,
et ad hoc ordinatur vis nutritiva”. S. Th. Ia, q. 78, a. 2. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit.,
p. 424.
172
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 46.
51
capacidade de produzir outro ser da mesma natureza. Assim, apesar dos indivíduos não
existirem perpetuamente, a geração garante a preservação da espécie.
Segundo Tomás, de modo geral, há uma outra diferença entre essas potências. As
potências de nutrição e de crescimento produzem seu efeito naquilo em que se encontram,
pois é o corpo unido à alma que cresce e se conserva. Por outro lado, a potência de
geração produz seu efeito não no mesmo corpo, mas em outro, uma vez que nada pode
se gerar a si mesmo. Assim, a geração aproxima-se, de algum modo, da dignidade da
alma sensitiva, cujas operações recaem sobre coisas exteriores173.
Acima dos seres dotados apenas de vida vegetativa encontramos os que possuem
atividade sensitiva. Essa atividade está diretamente ligada à percepção sensível, ao apetite
sensível e ao movimento. A natureza própria da sensação é ser uma potência passiva que
é modificada pelo objeto exterior. Sentir é sofrer ou ser alterado, e o princípio ativo nessa
operação é o objeto percebido. Assim afirma Tomás: “O sentido é uma potência passiva
cuja natureza é ser modificada por um objeto sensível exterior. O objeto exterior
modificador é o que, por si, o sentido recebe, e o que, por sua diversidade, distingue as
potências sensitivas”174.
Sendo da natureza da sensação ser uma potência passiva que é modificada pelo
objeto sensível, Tomás estabelece que há duas espécies de modificação: uma natural
(naturalis) e outra espiritual (spiritualis). A modificação é natural (naturalis), quando a
forma que causa a mudança é recebida pelo sujeito e modifica sua natureza. Por exemplo,
o calor aquece o ser o qual é modificado. Por outro lado, a modificação é espiritual
(spiritualis), quando a forma é recebida segundo o ser espiritual. Por exemplo, a forma
da cor ao atingir a pupila não a torna colorida. A operação dos sentidos requer uma
modificação espiritual, como veremos em seguida. De outro modo, se a modificação
natural bastasse para produzir a sensação, todos os corpos naturais ao serem alterados
173
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 2.
174
“Est autem sensus quaedam potentia passiva, quae nata est immutari ab exteriori sensibili. Exterius ergo
immutativum est quod per se a sensu percipitur, et secundum cuius diversitatem sensitivae potentiae
distinguuntur”. S. Th. Ia, q. 78, a. 3. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 427.
52
175
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 3.
176
Cf. Q. De anima, q. 13.
177
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 3.
53
disso, parece também ser o mais importante ou o mais necessário dos sentidos178. Já no
início da Metafísica, Aristóteles ressalta a importância do sentido da visão. É conhecida,
pois, a passagem em que o Estagirita afirma que a visão nos proporciona mais
conhecimento do que todas as outras sensações179. Quanto a Tomás, ele parece considerar
a importância da visão na aquisição do conhecimento, ao situá-la no grau mais elevado
dos sentidos.
Igualmente a Aristóteles, Tomás afirma que não há outro sentido externo além dos
cinco mencionados. Por outro lado, o Doutor Angélico apresenta as potências sensíveis
internas, que ele próprio denomina de sentidos internos (sensus interiores)180. Segundo
Copleston, realmente a palavra “sentido” pode parecer estranha, visto que estamos
acostumados a usá-la somente em referência aos cinco sentidos externos. Porém, ao usar
este termo, Tomás quer indicar que a faculdade em questão pertence ao nível da vida
sensitiva e se encontra tanto nos animais quanto nos seres humanos181. Por fazer parte da
alma sensitiva e, por conseguinte, pertencer também aos animais irracionais, os sentidos
internos parecem atribuir a esses últimos um poder muitas vezes próximo ao da própria
razão182. Para Tomás, portanto, os sentidos internos são quatro: (1) sentido comum
(sensus comunis), (2) fantasia ou imaginação (phantasia/imaginatio), (3) estimativa
(aestimativa) e (4) memória (memorativa)183.
178
Cf. De anima 415a 2; 422b 17; 424b 30.
179
Cf. Metafísica 980a 24.
180
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 4.
181
Cf. COPLESTON, Frederick. El pensamiento de Santo Tomás. Traducción de Elsa Cecilia Frost.
México: Fondo de Cultura Económica, 1960, p. 197.
182
Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 430. Nota do tradutor.
183
De acordo com Tomás, Avicena em seu livro De Sensu e Sensibilibus apresenta uma quinta potência no
homem, que é intermediária entre a estimativa e a imaginativa. Essa potência teria o papel de compor e
dividir as formas imaginativas. Por exemplo, da forma imaginativa do ouro e da forma imaginativa da
montanha podemos compor uma única imagem, a de uma montanha de ouro. Assim, Avicena estaria
fazendo uma diferença entre a fantasia e a imaginação. Todavia, para o Aquinate não é necessária uma
quinta potência, pois a imaginação é o mesmo que a fantasia e cumpre essa atividade. Cf. S. Th. Ia, q. 78, a.
4.
54
O sentido comum (sensus comunis), assim como os cinco sentidos, tem a função
de receber as formas das coisas sensíveis. Ademais, possui algumas funções peculiares
que vão além dos sentidos próprios. Convém lembrarmos que, para Aristóteles, o sentido
comum cumpre basicamente três funções: percepção dos sensíveis comuns, a percepção
de que se percebe e discernir as percepções que pertencem a distintos sentidos. Entretanto,
Tomás apresenta apenas duas dessas funções na Summa theologiae: a unificação das
atividades dos distintos sentidos e a consciência da percepção dos sentidos. Quanto à
primeira, Tomás afirma que o sentido próprio versa sobre aquilo que lhe é próprio, ou
seja, a vista discerne o branco do preto ou o branco do verde. Contudo, nem o sentido da
visão nem o sentido do gosto podem discernir o branco do doce. Para discernir os dois, é
necessário ter tido contato com ambos. Logo, esta tarefa é do sentido comum. Quando à
segunda, Tomás reitera que quando alguém “vê” que está vendo, não o faz pelo sentido
próprio, pois este não abstrai, senão a forma do sensível pelo qual é modificado. Logo,
perceber que se está vendo é igualmente tarefa do sentido comum184.
184
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 4, ad 2.
185
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 4.
186
Cf. Q. De anima, q. 13.
187
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 4. Façamos um pequeno parêntese. O termo intentio pode ser tomado em dois
sentidos diversos: (1) primeiro, intentio é entendido como a tendência (tendere ad/in) ao fim. (2) Em um
segundo sentido, intentio é a espécie ou forma (species/forma). Neste segundo sentido, na teoria do
55
buscam ou fogem de certas coisas, não só enquanto convém ou não aos sentidos, mas
também à medida que são úteis ou nocivas à sua natureza. Por exemplo, a ovelha foge do
lobo não em razão de sua cor ou de sua forma, mas por ser nocivo à sua natureza. Do
mesmo modo, o passarinho recolhe a palha não por prazer dos sentidos, mas porque a
palha é útil para construir seu ninho. Logo, os animais por receberem tais intenções, as
quais não são captadas pelos sentidos externos, possuem a estimativa188.
conhecimento intentio é tomado como a forma inteligível. Na teoria da abstração, que é o caso aqui, intentio
é a species sensível. Assim, pertence também aos animais.
188
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 4.
189
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 4.
190
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 4.
191
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 73.
56
Cabe ainda lembrarmos que o que é chamado memória no animal recebe o nome
de reminiscência (reminiscentia) no homem. Assim, através da reminiscência, o homem
tem a capacidade de investigar a memória dos fatos como uma busca ativa, que consiste
em usar de silogismo para examinar as intenções individuais, e não apenas de forma
automática195.
192
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 4, ad 5.
193
“Unde etiam dicitur ratio particularis, cui medici assignant determinatum organum, scilicet mediam
partem capitis, est enim collativa intentionum individualium, sicut ratio intellectiva intentionum
universalium”. S. Th. Ia, q. 78, a. 4. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 433.
194
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 73.
195
Cf. S. Th. Ia, q. 78, a. 4.
57
196
Cf. S. Th. Ia, q. 80, a. 1.
197
Cf. S. Th. Ia, q. 80, a. 1.
198
“[...] sicut sensus recipit species omnium sensibilium, et intellectus omnium intelligibilium, ut sic anima
hominis sit omnia quodammodo secundum sensum et intellectum”. S. Th. Ia, q. 80, a. 1. AQUINO, Tomás
de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 465.
199
Cf. S. Th. Ia, q. 80, a. 1.
200
Cf. Q. De veritate, q. 25, a. 1.
58
201
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 77.
202
Cf. S. Th. Ia, q. 81, a. 3.
203
Cf. S. Th. Ia, q. 81, a. 1.
204
Cf. S. Th. Ia, q. 81, a. 2.
205
Cf. GILSON, Étienne. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás de Aquino. Op. cit., p.
338; Cf. S. Th. Ia, q. 81, a. 2.
206
Cf. S. Th. Ia, q. 81, a. 2.
59
deve tender para aquilo que lhe convém e evitar aquilo que possa lhe prejudicar; segundo,
deve combater o que lhe causa algum dano. Vejamos o que afirma Tomás:
207
“Una, per quam anima simpliciter inclinatur ad prosequendum ea quae sunt convenientia secundum
sensum, et ad refugiendum nociva, et haec dicitur concupiscibilis. Alia vero, per quam animal resistit
impugnantibus, quae convenientia impugnant et nocumenta inferunt, et haec vis vocatur irascibilis. Unde
dicitur quod eius obiectum est arduum, quia scilicet tendit ad hoc quod superet contraria, et superemineat
eis”. S. Th. Ia, q. 81, a. 2. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 471.
208
Cf. GILSON, Étienne. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás de Aquino. Op. cit., p.
339.
209
Cf. S. Th. Ia, q. 81, a. 2.
210
Cf. S. Th. Ia, q. 81, a. 3.
60
potência estimativa. É por esse motivo que, por exemplo, a ovelha, percebendo o lobo
como seu inimigo, foge naturalmente. No homem, a cogitativa, denominada como razão
particular, não tem um impulso imediato diante das ações, mas compara entre si as
representações particulares. O apetite sensitivo é naturalmente movido por ela. Por sua
vez, a razão particular é movida pela razão universal. É deste modo, que o apetite
sensitivo é movido pela razão. No segundo caso, o apetite sensitivo obedece à vontade
quanto à execução de suas ações. Com efeito, nos animais o movimento segue
imediatamente o apetite sensitivo. Por exemplo, a ovelha por ter medo do lobo foge
imediatamente. No homem, o apetite sensitivo espera a ordem do apetite superior, a
vontade211. Segundo Garrigou-Lagrange, embora obedeça à razão, é necessário que o
apetite sensitivo, iluminado imediatamente pelas faculdades cognoscitivas da ordem
sensitiva, esteja especificado pelo bem sensível deleitável ou útil e não pelo bem universal
e absoluto. Por conseguinte, o apetite sensitivo não pode querer o bem racional212.
211
Cf. S. Th. Ia, q. 81, a. 3.
212
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. La síntesis tomista. Op. cit., p. 217.
61
213
Cf. De anima 430a 24-26.
62
dizer que a inteligência tem por objeto o universal, enquanto o sentido atinge somente o
singular. Por exemplo, diante de uma planta, o que vejo com meus olhos é uma planta
determinada e particular. Minha inteligência, porém, tem a capacidade de formar a noção
geral de planta ao se deparar com outra planta. Em segundo lugar, a inteligência capta
objetos não sensíveis, como o conceito de verdade, por exemplo. Por seu lado, os sentidos
não podem ultrapassar a percepção das propriedades corporais. Ademais, a inteligência é
uma faculdade que pode, por reflexão, tomar consciência de si mesma e de sua atividade.
Ora, isso não é dado aos sentidos, pelo menos não no mesmo grau que da inteligência.
Por fim, ao compararmos as atividades práticas que competem a cada uma dessas
potências, é possível acrescentar que, enquanto uma – a que depende da inteligência – é
capaz de escolha, a outra – que se origina dos sentidos – é naturalmente determinada. Isso
explica, por exemplo, o fato de a andorinha construir o seu ninho sempre da mesma
maneira. Essas diferenças se fundamentam no fato de que a inteligência tem acesso à
essência das coisas, enquanto os sentidos ficam nas particularidades exteriores214.
214
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 84.
215
Cf. S. Th. Ia, q. 77, a. 1.
216
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 1.
63
Deste modo, fica compreensível, a partir do que foi dito – de que as potências
devem ser distintas da essência da alma –, que assim como o intelecto (intellectus), a
vontade (voluntas) não é a essência da alma. À luz desses pressupostos, passemos agora
a examinar de maneira mais específica estas duas faculdades superiores da alma humana.
217
“[...] nec in Angelo nec in aliqua creatura, virtus vel potentia operativa est idem quod sua essentia. Quod
sic patet. Cum enim potentia dicatur ad actum, oportet quod secundum diversitatem actuum sit diversitas
potentiarum, propter quod dicitur quod proprius actus respondet propriae potentiae. In omni autem creato
essentia differt a suo esse, et comparatur ad ipsum sicut potentia ad actum, ut ex supra dictis patet. Actus
autem ad quem comparatur potentia operativa, est operatio. In Angelo autem non est idem intelligere et
esse, nec aliqua alia operatio aut in ipso aut in quocumque alio creato, est idem quod eius esse. Unde
essentia Angeli non est eius potentia intellectiva, nec alicuius creati essentia est eius operativa potentia”. S.
Th. Ia, q. 54, a. 3. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 151.
218
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 2; C. G. II, 60.
64
sentido, mais geral, padecer (pati) representa aquilo que está em potência para algo e que
recebe aquilo para o qual estava em potência, sem que nada lhe seja tirado. Assim, tudo
o que passa da potência ao ato, padece. É deste modo que podemos afirmar que o ato de
conhecer é padecer (pati)219. Daí podemos entender por que, de um certo modo, o
intelecto (intellectus) é dito passivo. Ora, o intelecto (intellectus) não pode estar sempre
em ato em relação aos seus objetos, pois se assim o fosse, ele seria um ente infinito. Só
em Deus o intelecto é ato de todo ente. Assim explica Tomás:
Agora, entendido assim, poderíamos afirmar que o intelecto angélico também está
em potência em relação ao seu objeto, o que nos leva a perguntar se se trata de uma
potência passiva. Tomás não entende assim. Segundo o Doutor Angélico, nas
Inteligências (anjos), a potência é sempre completada pelo ato e não há passagem de
potência ao ato como no intelecto humano. Por conseguinte, o intelecto angélico está
219
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 2.
220
“Invenitur enim aliquis intellectus qui ad ens universale se habet sicut actus totius entis, et talis est
intellectus divinus, qui est Dei essentia, in qua originaliter et virtualiter totum ens praeexistit sicut in prima
causa. Et ideo intellectus divinus non est in potentia, sed est actus purus. Nullus autem intellectus creatus
potest se habere ut actus respectu totius entis universalis, quia sic oporteret quod esset ens infinitum. Unde
omnis intellectus creatus, per hoc ipsum quod est, non est actus omnium intelligibilium, sed comparatur ad
ipsa intelligibilia sicut potentia ad actum”. S. Th. Ia, q. 79, a. 2. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v.
2. Op. cit., p. 438.
65
sempre em ato em relação a seus inteligíveis, por conta de sua proximidade com o
intelecto primeiro (primum intellectum), que é ato puro. Todavia, quanto àquilo que Deus
lhes revela, seus intelectos (dos anjos) estão em potência221. Assim afirma o Doutor
Angélico:
[...] o intelecto dos anjos nunca está em potência com respeito àquelas
coisas às quais seu conhecimento natural pode se entender. Assim é que
os corpos superiores, isto é, os celestes, não têm potência para ser que
não seja completada pelo ato. Assim, os intelectos celestes, isto é, os
anjos, não possuem potência intelectiva que não seja totalmente
completada pelas espécies inteligíveis que lhes são conaturais. – Não
obstante, quanto àquilo que Deus lhes revela, nada impede que seus
intelectos estejam em potência, porque assim também os corpos
celestes estão em potência, às vezes, para ser iluminados pelo sol222.
Seja como for, o intelecto (intellectus) humano, último na ordem dos intelectos
(intellectus), está em potência em relação aos inteligíveis e, por isso, se diz que é uma
potência passiva.
221
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 2.
222
“[...] intellectus Angeli nunquam est in potentia respectu eorum ad quae eius cognitio naturalis se
extendere potest. Sicut enim corpora superiora, scilicet caelestia, non habent potentiam ad esse, quae non
sit completa per actum; ita caelestes intellectus, scilicet Angeli, non habent aliquam intelligibilem
potentiam, quae non sit totaliter completa per species intelligibiles connaturales eis. Sed quantum ad ea
quae eis divinitus revelantur, nihil prohibet intellectus eorum esse in potentia, quia sic etiam corpora
caelestia sunt in potentia quandoque ut illuminentur a sole”. S. Th. Ia, q. 58, a. 1. AQUINO, Tomás de.
Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 182.
223
Cf. GILSON, Étienne. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás de Aquino. Op. cit., p.
295.
66
Aristóteles, por sua vez, considera que as realidades universais só possuem existência a
partir das realidades particulares e sensíveis. Assim, elas só podem ser conhecidas quando
forem abstraídas de suas realidades particulares. Todavia, as formas das coisas sensíveis
que conhecemos não são inteligíveis em ato. Ora, de acordo com o Doutor Angélico,
somente um ser em ato pode fazer passar o que está em potência, da potência ao ato.
Como já foi dito, é assim com a apreensão sensível, isto é, o sentido atualiza as espécies
sensíveis a partir do objeto sensível em ato. Neste ponto, como sabemos, Tomás recorre
novamente ao Estagirita. Deste modo, para o Aquinate, é necessário ao intelecto
(intellectus) uma potência que abstrai as espécies das condições materiais e as torna
inteligíveis em ato. Portanto, é necessário o intelecto agente (intellectus agens)224.
224
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 3.
225
Cf. S. Th. Ia, q. 25, a. 1. No trecho em questão, Tomás está tratando sobre a potência divina (De divina
potencia). Assim afirma: “Existem duas potências: a potência passiva, que não se encontra de modo
nenhum em Deus, e a potência ativa, que se deve atribuir a Deus em sumo grau. Pois é claro que cada um,
na sua medida em que está em ato e perfeito, é princípio ativo de algo; mas é passivo na medida em que é
deficiente e imperfeito. Ora, já se demonstrou acima que Deus é ato puro, que é absoluta (sic) e
universalmente perfeito, que nele não há lugar para nenhuma imperfeição. Donde lhe cabe ao máximo ser
um princípio ativo, e de maneira nenhuma passivo. Ora, a razão de princípio ativo convém à potência ativa.
Porque a potência ativa é um princípio de ação sobre outro; ao passo que a potência passiva é um princípio
passivo em relação ao outro [...]”. “[...]quod duplex est potentia, scilicet passiva, quae nullo modo est in
Deo; et activa, quam oportet in Deo summe ponere. Manifestum est enim quod unumquodque, secundum
quod est actu et perfectum, secundum hoc est principium activum alicuius, patitur autem unumquodque,
secundum quod est deficiens et imperfectum. Ostensum est autem supra quod Deus est purus actus, et
simpliciter et universaliter perfectus; neque in eo aliqua imperfectio locum habet. Unde sibi maxime
competit esse principium activum, et nullo modo pati. Ratio autem activi principii convenit potentiae
activae. Nam potentia activa est principium agendi in aliud, potentia vero passiva est principium patiendi
ab alio [...].” S. Th. Ia, q. 25, a. 1. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 1. Op. cit., p. 475-476.
67
O Doutor Angélico, por sua vez, retoma estes dois sentidos do termo “potência”
apresentados pelo Estagirita na Metafísica. Deste modo, ele pode afirmar que existem na
alma não apenas potências passivas, como capacidade de sofrer alteração, mas potências
ativas, como princípio ativo de algo e capaz de alterar. Por conseguinte, afirma Tomás:
“[...] na parte vegetativa todas as potências são ativas; na parte sensitiva, todas são
passivas; mas na parte intelectiva, há um princípio ativo e um princípio passivo”228. Ora,
o intelecto agente (intellectus agens) – o entendimento capaz de tornar inteligível em ato
o inteligível que está em potência na realidade sensível – é uma potência ativa da alma.
226
Metafísica 1019b 15-20. ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., p. 225.
227
Cf. Metafísica 1019b 20-24.
228
“[...] in parte nutritiva omnes potentiae sunt activae; in parte autem sensitiva, omnes passivae; in parte
vero intellectiva est aliquid activum, et aliquid passivum”. S. Th. Ia, q. 79, a. 3. ad 1. AQUINO, Tomás de.
Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 440.
229
“Nam actus intellectus possibilis est recipere intelligibilia; actio autem intellectus agentis est abstrahere
intelligibilia. Nec tamen sequitur quod sit duplex intelligere in homine; quia ad unum intelligere oportet
quod utraque istarum actionum concurrat”. Q. De anima, q. 4, ad 8. AQUINO, Tomás de. Questões
disputadas sobre a Alma. Op. cit., p. 107.
68
230
Cf. De anima 430a 24-26.
231
Embora não contemplamos de maneira mais detalhada em nossa discussão por não ser o tema central de
nossa pesquisa, vale destacar que Tomás possui um texto específico onde trata do pensamento de Averróis
com o intuito principal de refutar aspectos contrários ao pensamento cristão: De unitate intellectus contra
Averroistas. Segundo Nascimento, tal opúsculo é datado pelos estudiosos das obras de Tomás como escrito
provavelmente em sua segunda estadia como professor em Paris, nos anos de 1268-1272. Mais
precisamente, de um pouco antes da condenação de 10 de dezembro de 1270. Cf. AQUINO, Tomás de. A
unidade do intelecto, contra os averroístas. Tradução, introdução e notas de Carlos Arthur Ribeiro do
Nascimento. São Paulo: Paulus, 2016, p. 8. Na ocasião (em Paris), Tomás foi chamado principalmente por
conta da crise intelectual provocada pelo movimento averroísta ao catolicismo, nas universidades. Além
deste opúsculo, escreveu também: De aeternitate mundi contra murmurantes. Embora rebatesse o que para
ele eram erros de Averróis, Tomás o chamava de “O Comentador”, em referência aos excelentes
Comentários do filósofo Árabe dos textos de Aristóteles.
69
se volta para a inteligência agente separada, para dela receber as formas inteligíveis
correspondentes as suas imagens sensíveis. Deste modo, está agora em ato, em virtude do
inteligível que recebe (intellectus adeptus). A repetição desse esforço adquire certa
facilidade que constitui, para o intelecto, o conhecimento adquirido232.
Por seu lado, Averróis vai ainda mais longe, negando aos homens individuais o
próprio intelecto possível234. Convenhamos que, se o texto de Aristóteles, em relação a
esta questão, é incompleto e com algumas ambiguidades, não parece ser Averróis que o
torna mais claro, sobretudo quanto à individualidade anímica de cada ser humano.
232
Cf. GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 1995, p. 434-435.
233
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 113.
234
Cf. MAURER, Armand. Medieval Philosophy. Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 1982,
p. 103.
235
Fraile se refere a este trecho: “Hoc nomen igitur intellectus secundum hoc dicitur in hoc libro quatuor
modis. Dicitur enim de intellectu materiali, et de intellectu qui est in habitu, et de intellectu agenti, et de
virtute ymaginativa”. “Portanto, este nome, intelecto, segundo se diz neste livro, se dá de quatro modos: se
diz do intelecto material, do intelecto que é in habitu, do intelecto agente e da virtude imaginativa”.
Tradução nossa. AVERROIS. Commentarivm Magnvm in Aristotelis De anima Libros. Cambridge: The
Medieval Academy of America, 1953, p. 452.
70
Saranyana, por sua vez, possui uma interpretação distinta de Fraile. Para ele,
Averróis considerou que existem três entendimentos: (1) o intelecto material ou o
entendimento que recebe, (2) o intelecto ativo e (3) o entendimento gerável ou corruptível,
que passa da potência ao ato, e que é o próprio entender. Os intelectos agente e material
são eternos e únicos para todos os homens. Inversamente, o entender é próprio de cada
indivíduo237.
236
Cf. FRAILE, Guillermo. Historia de la filosofía. II (2º) Filosofía judía y mulsulmana. Alta escolástica:
desarrollo y decadenicia. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1986, p. 89-92.
237
Cf. SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofia Medieval. Das origens Patrísticas à Escolástica Barroca.
Tradução de Fernando Salles. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2006,
p. 244-245.
238
COSTA, José Silveira da. Averróis: o aristotelismo radical. São Paulo: Moderna, 1994, p. 44-45.
71
Seja como for, o que é de comum acordo, e é o que de fato nos interessa aqui, é
que, para Averróis, tanto o intelecto agente quanto o intelecto possível (material) são
separados da alma humana e únicos para toda a espécie.
239
Vale destacar que, na Summa theologiae, a preocupação de Tomás é refutar a tese do intelecto agente
separado da alma. No capítulo IV da obra A unidade do intelecto, contra os averroístas, Tomás considera
a tese do intelecto possível separado ainda mais absurda do que a tese do intelecto agente separado.
240
A noção de participação (participatio) possui diferentes significados. Aqui, está sendo empregado em
um sentido preciso cuja importância metafísica é capital. Assim: “[...] participar é realizar parcialmente
em si próprio aquilo que está totalmente realizado em outro. Neste sentido existe participação quando
uma forma realiza-se de maneira total, plena, em um sujeito primeiro, e de modo parcial, mais ou menos
perfeito, naqueles que dela participam. Isso implica a ideia de dependência (aquele que participa depende
daquele do qual ele participa); de parcialidade (não se recebe a forma da qual se participa, segundo a
totalidade que a caracteriza); de inferioridade (a forma recebida é de um grau de perfeição menor que a
forma à qual ela participa); de pluralidade (se existe parcialidade, existe multiplicidade de participações
possíveis); de hierarquia: a multiplicidade dos participantes da mesma forma ordena-se segundo o mais ou
o menos de participação na realidade da mesma forma”. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 1. Op.
cit., p. 92. (Introdução e vocabulário).
241
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 4.
72
Deste modo, o intelecto agente transcendente, se existir um, requer a cooperação de uma
potência derivada e pertencente a cada alma. Notemos, contudo, que a razão mais
decisiva, para afirmar que o intelecto agente é um em cada alma, é o fato de sermos nós
que abstraímos as espécies (species) de onde procede a intelecção. A ação se relaciona a
um sujeito se ela procede dele segundo uma forma que lhe é inerente242. Tal afirmação é
confirmada por Tomás:
Todavia, embora Tomás defenda um princípio ativo no homem, ele não pretende
negar que todo ato do pensamento humano seja uma participação no pensamento divino.
Por isso que acima da alma intelectiva do homem há um intelecto superior que lhe dá a
potência de conhecer. Com efeito, o intelecto agente particular é como uma virtude
participada numa substância superior, a saber, Deus244. Assim, segundo o Doutor
Angélico, o único intelecto separado e universal é Deus245.
Através das considerações que acabamos de tecer, já se percebe, sem dúvida, que
o intelecto ativo, sendo uma potência e parte da alma, é individual e não é um só para
todos os seres humanos. Sobre isso, afirma Tomás: “[...] se o intelecto agente é parte da
alma, como uma sua potência, é necessário admitir tantos intelectos agentes, quantas
almas, que se multiplicam segundo a multiplicidade dos homens. Pois é impossível que
242
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 114.
243
“Et hoc experimento cognoscimus, dum percipimus nos abstrahere formas universales a conditionibus
particularibus, quod est facere actu intelligibilia. Nulla autem actio convenit alicui rei, nisi per aliquod
principium formaliter ei inhaerens; ut supra dictum est, cum de intellectu possibili ageretur. Ergo oportet
virtutem quae est principium huius actionis, esse aliquid in anima”. S. Th. Ia, q. 79, a. 4. AQUINO, Tomás
de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 443.
244
“[...] intellectus agens sit quasi quaedam virtus participata ex aliqua substantia superiori, scilicet Deo”.
Q. De anima, q. 5.
245
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 4; Q. De anima, q. 5.
73
uma só e mesma potência seja de várias substâncias”246. Deste modo, parece clara a
posição do Doutor Angélico sobre as duas questões levantadas anteriormente. (1) O
intelecto agente, e assim também o intelecto possível, pode ser dito separado, de modo
que não é o ato de um órgão corporal qualquer, como acontece com às demais partes da
alma, mas não que ele seja uma substância separada da alma humana individual247. (2)
Sobre a imortalidade da alma humana, como já foi apresentado no capítulo anterior,
Tomás sustenta que é a alma individual que é imortal. Contudo, sua preocupação primeira
é resguardar fundamentos da teologia cristã, embora use de argumentos filosóficos, por
exemplo, quando afirma: “Mas o intelecto separado, conforme o ensino da nossa fé, é o
próprio Deus, criador da alma [...]”248. Convém lembrarmos que não se pode admitir,
segundo os fundamentos cristãos, que a salvação não seja pessoal.
246
“Si autem intellectus agens sit aliquid animae, ut quaedam virtus ipsius, necesse est dicere quod sint
plures intellectus agentes, secundum pluralitatem animarum, quae multiplicantur secundum
multiplicationem hominum, ut supra dictum est. Non enim potest esse quod una et eadem virtus numero sit
diversarum substantiarum”. S. Th. Ia, q. 79, a. 5. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p.
445.
247
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 5, ad 1; Q. De anima, q. 5, ad 4.
248
“Sed intellectus separatus, secundum nostrae fidei documenta, est ipse Deus, qui est creator animae
[...]”. S. Th. Ia, q. 79, a. 4. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 443.
249
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 6.
74
250
Cf. GILSON, Étienne. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás de Aquino. Op. cit., p.
298.
251
Cf. Q. De veritate, q. 10.
252
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 6.
75
253
“[...] intellectus possibilis fieri singula, secundum quod recipit species singulorum. Ex hoc ergo quod
recipit species intelligibilium, habet quod possit operari cum voluerit, non autem quod semper operetur,
quia et tunc est quodammodo in potentia, licet aliter quam ante intelligere; eo scilicet modo quo sciens in
habitu est in potentia ad considerandum in actu”. S. Th. Ia, q. 79, a. 6. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica.
v. 2. Op. cit., p. 448.
254
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 6.
255
“[...] si memoria accipiatur solum pro vi conservativa specierum, oportet dicere memoriam esse in
intellectiva parte.”. S. Th. Ia, q. 79, a. 6. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 448.
76
256
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 7.
257
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 8.
258
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 9.
259
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 10.
77
ordena aquilo que apreende para a ação260. (6) A sindéresis (synderesis) que é responsável
pela intuição dos primeiros princípios da lei moral também não é uma potência especial
da alma, mas um habitus natural261. (7) Enfim, a consciência (conscientia) não é uma
potência distinta do intelecto (intellectus), mas um ato do intelecto. Consciência, significa
conhecimento com um outro conhecimento, isto é, a aplicação ou operação de um
conhecimento a alguma outra coisa e isso só é possível por meio de um ato262. Estas duas
últimas – synderesis e conscientia –, Tomás as distingue cuidadosamente. A consciência
é um ato intelectual, o ato pelo qual se julga um outro ato que se realizou ou um que será
realizado. Tal ato supõe não apenas a synderesis, mas todo o conhecimento moral que ela
contém263.
260
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 11.
261
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 12. Vale destacar que, segundo Tomás, existem habitus que são inatos e outros
adquiridos a partir de uma disposição inata. Eles estão presentes no homem em conformidade com sua
natureza específica. Deste modo, podemos falar de habitus naturalis, ou seja, o habitus que provém da
própria natureza. É pertinente citar, nesse ponto, uma afirmação do Doutor Angélico: “Portanto, existem
nos homens alguns hábitos naturais, procedentementes em parte da natureza e em parte de um princípio
exterior e isso de um modo nas potências apreensivas e de outro nas potências apetitivas. Na verdade, nas
potências apreensivas pode haver um hábito natural incoativamente, seja quanto à natureza específica seja
quanto à natureza individual. Quanto àquela, por parte da própria alma, como é hábito natural o intelecto
dos princípios. Efetivamente, pela própria natureza da alma intelectual, é próprio do homem conhecer o
todo como maior que a parte, uma vez conhecido o que é um todo e o que é uma parte e assim nos demais
princípios. Mas não pode conhecer o que é o todo e o que é a parte a não ser pelas espécies inteligíveis,
tomadas das representações imaginárias”. “Sunt ergo in hominibus aliqui habitus naturales, tanquam partim
a natura existentes et partim ab exteriori principio; aliter quidem in apprehensivis potentiis, et aliter in
appetitivis. In apprehensivis enim potentiis potest esse habitus naturalis secundum inchoationem, et
secundum naturam speciei, et secundum naturam individui. Secundum quidem naturam speciei, ex parte
ipsius animae, sicut intellectus principiorum dicitur esse habitus naturalis. Ex ipsa enim natura animae
intellectualis, convenit homini quod statim, cognito quid est totum et quid est pars, cognoscat quod omne
totum est maius sua parte, et simile est in ceteris. Sed quid sit totum, et quid sit pars, cognoscere non potest
nisi per species intelligibiles a phantasmatibus acceptas”. S. Th. Ia IIae, q. 51, a. 1. AQUINO, Tomás de.
Suma Teológica. v. 4. Op. cit., p. 63.
262
Cf. S. Th. Ia, q. 79, a. 13.
263
Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 460. Nota.
78
natural de um ente, que o faz tender ao seu fim, ou seja, não se trata de uma potência
exclusiva da alma, mas de uma inclinação natural de todo e qualquer ser; o apetite
sensitivo (appetitus sensitivus), que segue a apreensão (apprehensio) proveniente dos
sentidos, e o apetite racional (appetitus intellectivus), que segue o conhecimento
racional264. Com efeito, segundo Tomás, em todo ser inteligente devemos
consequentemente encontrar também uma vontade (voluntas)265.
Sabemos, portanto, que a vontade é a faculdade da alma que apetece ou que tem
como fim último o bem universal e absoluto indicado pelo intelecto (intellectus). Visto
que, segundo Tomás, toda potência tem relação necessária com o seu objeto próprio, a
vontade possui inclinação necessária ao bem absoluto268. De acordo com Gilson, no
animal desprovido de razão, o apetite é inclinado infalivelmente pelo objeto desejável que
é apreendido pelos sentidos, ou seja, o animal que vê o aprazível não pode deixar de
desejá-lo. O mesmo sucede em relação à vontade no homem. Seu objeto próprio é o bem
universal e, para ela, é uma necessidade natural e absoluta desejá-lo269.
264
Cf. Q. De veritate, q. 25, a. 1.
265
Cf. S. Th. Ia, q. 19, a. 1; C. G. IV, 19.
266
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 165.
Cf. MONDIN, Battista. Dizionario Enciclopedico del Pensiero di San Tommaso D’Aquino. Op. cit., p.
267
667.
268
Cf. Q. De veritate, q. 25, a. 1.
269
Cf. GILSON, Étienne. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás de Aquino. Op. cit., p.
342.
79
270
“Necesse est enim quod non potest non esse”. S. Th. Ia, q. 82, a. 1.
271
Cf. S. Th. Ia, q. 82, a. 1.
272
“[...] necesse est quod, sicut intellectus ex necessitate inhaeret primis principiis, ita voluntas ex
necessitate inhaereat ultimo fini, qui est beatitudo, finis enim se habet in operativis sicut principium in
speculativis [...]. Oportet enim quod illud quod naturaliter alicui convenit et immobiliter, sit fundamentum
et principium omnium aliorum, quia natura rei est primum in unoquoque, et omnis motus procedit ab aliquo
immobili”. S. Th. Ia, q. 82, a. 1. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 476.
80
273
Cf. Ética a Nicômaco 1095a 15ss.
274
Cf. AMEAL, J. São Tomás de Aquino: Iniciação ao estudo de sua figura e da sua obra. 5ª ed. Porto:
Livraria Tavares Martins, 1961, p. 425.
275
Cf. GILSON, Étienne. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás de Aquino. Op. cit., p.
343-344.
81
lado, existem os bens que têm relação necessária com a bem-aventurança, e, neste caso,
a vontade adere a eles necessariamente em vista do Bem Absoluto. Assim, afirma Tomás
sobre tais bens:
[...] são aqueles (bens) pelos quais o homem adere a Deus, em quem
somente se encontra a verdadeira bem-aventurança. Todavia, antes que
a necessidade dessa conexão seja demonstrada pela certeza da visão
divina, a vontade não adere necessariamente nem a Deus nem às coisas
que são de Deus. Mas a vontade daquele que vê Deus em sua essência
adere necessariamente a Deus, da mesma maneira que agora queremos
necessariamente ser felizes276.
276
“[...] quibus scilicet homo Deo inhaeret, in quo solo vera beatitudo consistit. Sed tamen antequam per
certitudinem divinae visionis necessitas huiusmodi connexionis demonstretur, voluntas non ex necessitate
Deo inhaeret, nec his quae Dei sunt. Sed voluntas videntis Deum per essentiam, de necessitate inhaeret
Deo, sicut nunc ex necessitate volumus esse beati”. S. Th. Ia, q. 82, a. 2. AQUINO, Tomás de. Suma
Teológica. v. 2. Op. cit., p. 478.
277
Cf. S. Th. Ia IIae, q. 13, a. 1. Convém lembrarmos que todo ato da vontade é precedido de um ato da
razão. Deste modo, a escolha (electio) – ato da vontade – está estreitamente ligado ao juízo da razão.
Conforme a nota do tradutor: “A escolha é a chave do ato humano, mas também o nó de todas as
dificuldades da análise do agir, tanto em teologia como em filosofia. Aristóteles vê nisso um desejo e um
juízo tão intimamente ligados que prefere não atribuir a escolha seja ao apetite, seja à razão. Sto. Tomás
corta o nó górdio: para ele, a escolha é substancialmente um ato da vontade, mas tão estreitamente associado
ao juízo da razão que se unem como matéria e forma, corpo e alma, de maneira vital”. AQUINO, Tomás
de. Suma Teológica. v. 3. Op. cit., p. 186. Nota do tradutor.
82
278
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 167.
279
Cf. S. Th. Ia, q. 82, a. 4. ad 1.
280
Cf. De anima 430a 24-26
281
Cf. S. Th. Ia, q. 82, a. 3; Q. De veritate, q. 22, a. 11.
282
Cf. Q. De veritate, q. 22, a. 11.
83
Quando, pois, a coisa na qual está o bem é mais nobre que a própria
alma em que se encontra a razão dessa coisa, então, relativamente a essa
coisa, a vontade é superior ao intelecto. Quando, porém, a coisa na qual
está o bem é inferior à alma, então relativamente, também, a essa coisa,
o intelecto é superior à vontade. Por isso, é melhor amar a Deus do que
conhecê-lo, e inversamente vale mais conhecer as coisas materiais do
que amá-las286.
283
Cf. S. Th. Ia, q. 82, a. 3.
284
“[...] nam obiectum intellectus est ipsa ratio boni appetibilis; bonum autem appetibile, cuius ratio est in
intellectu, est obiectum voluntatis”. S. Th. Ia, q. 82, a. 3. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op.
cit., p. 479.
285
Cf. Q. De veritate, q. 22, a. 11.
286
“Quando igitur res in qua est bonum, est nobilior ipsa anima, in qua est ratio intellecta; per
comparationem ad talem rem, voluntas est altior intellectu. Quando vero res in qua est bonum, est infra
animam; tunc etiam per comparationem ad talem rem, intellectus est altior voluntate. Unde melior est amor
Dei quam cognitio, e contrario autem melior est cognitio rerum corporalium quam amor”. S. Th. Ia, q. 82,
a. 3. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 480.
84
Se entender (cognitio) um objeto sensível é mais nobre do que querer esse mesmo
objeto sensível, de modo contrário se dá com os objetos que estão acima da alma. Por isso
que é mais nobre conhecer (cognitio) uma pedra do que querer uma pedra. Por outro lado,
amar a Deus é mais nobre do que conhecer a Deus, pois o “objeto” Deus é mais simples
e absoluto do que a ideia ou o conceito que entendemos de Deus, pelo intelecto. Portando,
fica evidente que o intelecto é superior à vontade em geral, e a vontade é superior ao
intelecto em particular – isso no caso de Deus.
287
Cf. S. Th. Ia IIae, q. 3, a. 4.
85
vontade, que tem como objeto o bem e o fim considerados universalmente, põe em
movimento as outras potências que estão ordenadas para os bens particulares, e que são
próprios de cada uma delas. A vontade, portanto, move o intelecto, bem como todas as
potências da alma a realizar seus atos, salvo as funções ou inclinações naturais da alma
vegetativa que não estão sujeitas ao nosso querer288. Todavia, esse poder da vontade sobre
as outras faculdades da alma não será sempre absoluto, pois outros fatores podem intervir.
Segundo Gardeil, em primeiro lugar e de modo imediato, este impulso da vontade é
exercido sobre a inteligência e sobre seus atos. A vontade utiliza a inteligência para seus
fins. É o que se produz no ato humano no qual, sob a pressão da intenção do fim, a
inteligência se move em busca dos meios próprios que podem trazer o fim, delibera a seu
respeito e julga sobre aquilo que é preferível. No que se refere ao poder da vontade sobre
as outras faculdades da alma – potências da apreensão sensível, apetite sensível e
motricidade – ele não será sempre absoluto, visto que outros fatores podem intervir.
Assim, sobre os sentidos internos ou as paixões que estão submetidas a influência
corporais, a vontade não tem mais que um poder político289.
288
Cf. S. Th. Ia, q. 82, a. 4.
289
Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino: Psicologia –
Metafísica. Op. cit., p. 170.
290
“Dicendum quod homo est liberi arbitrii, alioquin frustra essent consilia, exhortationes, praecepta,
prohibitiones, praemia et poenae”. S. Th. Ia, q. 83, a. 1. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op.
cit., p. 487.
86
irracionais – como já vimos no capítulo anterior – não julgam por comparação (collatio),
mas por instinto, ou seja, não agem livremente. Já o homem, age com julgamento (iudicio)
livre. Sua potência cognoscitiva julga que deve fugir ou procurar certas coisas. Esse
julgamento (iudicio) não é por um instinto natural, mas é uma comparação (collatio) feita
pela razão (ratio). Por isso, podemos dizer que o homem age livremente pelo fato mesmo
de ser racional291. Contudo, parece um tanto contraditório afirmar que o homem possui o
livre-arbítrio e, ao mesmo tempo, que a vontade – faculdade responsável pelo livre-
arbítrio – tende necessariamente ao bem ou fim último. Para resolver tal problema,
devemos, em primeiro lugar, recordar que o termo necessidade (necessitas) pode ser
entendido em vários sentidos, como vimos anteriormente – necessidade natural e absoluta
(necessitas naturalis et absoluta), necessidade de fim ou utilidade (necessitas finis ou
utilitas) e, necessidade de coação (necessitas coactionis). O ato da vontade repugna à
necessidade de coação (necessitas coactionis), mas admite necessidade final (necessitas
finis). Assim como, por exemplo, querer estar vivo pressupõe alimentar-se. Ademais, a
necessidade natural (necessitas naturalis) também não repugna à vontade, pois seria
contrária a sua própria natureza. É do princípio intrínseco da própria vontade desejar
necessariamente o bem universal. Segundo Gilson, a vontade nunca pode ser obrigada,
pois a obrigação pressupõe violência e o violento é, por definição, o que contraria a
inclinação natural de uma coisa. Os termos “natural” e “violento” se excluem
reciprocamente. O voluntário não é outra coisa senão a inclinação da vontade ao seu
objeto. Assim como o natural é o que se faz seguindo a inclinação de uma natureza, o
voluntário se faz seguindo a inclinação da vontade. Do mesmo modo que é impossível
que uma mesma coisa seja, ao mesmo tempo, violenta e natural, igualmente é impossível
que uma potência da alma seja simultaneamente obrigada (coagida) e voluntária292.
Vale nos atermos ainda ao fato de que, de acordo com o Doutor Angélico, o termo
“livre-arbítrio” designa um ato, mais especificamente o princípio pelo qual o homem julga
livremente293. Todavia, isso não significa que a vontade e o livre-arbítrio sejam potências
distintas. A razão disso, esclarece Tomás, é que, do mesmo modo que o intelecto
(intellectus) se refere à razão (ratio) – pois é próprio da mesma potência, conhecer e
raciocinar – a vontade se refere à potência de escolha (electio), ou seja, ao livre-arbítrio,
291
Cf. S. Th. Ia, q. 83, a. 1.
292
Cf. GILSON, Étienne. El tomismo. Introducción a la filosofia de Santo Tomás de Aquino. Op. cit., p.
346.
293
Cf. S. Th. Ia, q. 83, a. 2.
87
pois querer (velle) e escolher (eligere) também é próprio de uma mesma potência294.
Assim explica Tomás:
294
Cf. S. Th. Ia, q. 83, a. 4.
295
“Nam intelligere importat simplicem acceptionem alicuius rei, unde intelligi dicuntur proprie principia,
quae sine collatione per seipsa cognoscuntur. Ratiocinari autem proprie est devenire ex uno in cognitionem
alterius, unde proprie de conclusionibus ratiocinamur, quae ex principiis innotescunt. Similiter ex parte
appetitus, velle importat simplicem appetitum alicuius rei, unde voluntas dicitur esse de fine, qui propter se
appetitur. Eligere autem est appetere aliquid propter alterum consequendum, unde proprie est eorum quae
sunt ad finem”. S. Th. Ia, q. 83, a. 4. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 493.
296
“[...] proprium liberi arbitrii est electio, ex hoc enim liberi arbitrii esse dicimur, quod possumus unum
recipere, alio recusato, quod est eligere. Et ideo naturam liberi arbitrii ex electione considerare oportet”. S.
Th. Ia, q. 83, a. 3. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Op. cit., p. 491.
297
Cf. S. Th. Ia, q. 105, a. 4; Q. De veritate, q. 22, a. 8; S. Th. Ia -IIa, q. 9, a. 6.
88
CONCLUSÃO
Uma segunda consideração a ser feita, a partir da própria definição de alma, é que
ela é a única forma do corpo. Verificamos que, na sua divisão da alma, Tomás apresenta
três maneiras distintas de falar dela: quanto aos gêneros de potência, quanto aos modos
de vida e quanto aos tipos de alma. Em relação a esta última, a alma pode ser dividida em
vegetativa, sensitiva e intelectiva. Cada ser vivo possui um tipo de alma. As plantas têm
alma vegetativa, os animais, alma sensitiva, que carrega em si a função vegetativa. Quanto
ao homem, ele possui alma intelectiva ou racional que possui em si as demais funções.
Para Tomás, é evidente que cada ser vivo possui uma única alma. No homem, como
afirmamos, existe apenas uma alma, a racional, que envolve as operações das potências
inferiores, vegetativas e sensitivas. Por isso, falamos de um tipo de alma com referência
àquela que pertence a cada ser vivo distinto. Por outro lado, falamos também em partes
da alma, fazendo referência às funções que uma determinada alma, por ser mais
complexa, carrega em si. Portanto, trata-se de uma divisão lógica ou de razão e não real.
É deste modo que podemos afirmar que a alma racional, por exemplo, possui três partes
ou funções: vegetativa, sensitiva e intelectiva. Assim, evitamos também, concluir
298
Cf. S. Th. Ia, q. 75, a. 1.
299
Cf. De anima 412a 18.
89
equivocadamente, que as plantas ou os animais possuem uma parte da alma, ou seja, uma
alma incompleta. Portanto, assim como não há uma multiplicidade de almas, não há
também uma multiplicidade de formas no corpo. A alma é a única forma do corpo. Um
cadáver, por exemplo, não pode ser considerado corpo em sentido estrito, pois perdeu a
sua forma, isto é, a sua alma, que já não o faz existir como tal. Ademais, por ser a forma
do corpo, a alma é imaterial.
Vale ressaltarmos ainda que, nas questões que analisamos na Summa theologiae
– 75 a 83 –, o interesse primeiro de Tomás é o estudo do homem e, sobretudo, o exame
da alma humana. Para o Doutor Angélico, o homem não é só sua alma, mas o composto
alma e corpo. Com efeito, esta união – alma e corpo – não é acidental, mas substancial.
A essência do homem está no composto, como em Aristóteles. Todavia, para o Aquinate,
a alma humana em si mesma subsiste separada da matéria, por isso é considerada uma
substância separada. Porém, embora seja uma substância separada, a alma humana difere
das Inteligências (os anjos), pois apesar de subsistir sem a matéria a alma humana não é
uma substância separada completa. Os anjos são substâncias separadas completas, pois
não precisam da matéria para realizar perfeitamente suas funções. Por sua vez, a alma
humana necessita do corpo para isso. Portanto, a alma é uma substância separada
incompleta, que só realiza plenamente suas funções no composto. Por ser uma substância
incompleta, estar separada do corpo é contra a própria natureza da alma. Ela se une ao
corpo como forma e lhe confere assim a vida tanto vegetativa e sensitiva, como
intelectiva. Por dependerem do corpo, as funções vegetativas e sensitivas da alma humana
não têm por sujeito a alma, mas o composto. Por isso, elas desaparecem quando é
destruído o composto. Por seu lado, as potências superiores – intelecto (intellectus) e
vontade (voluntas) – têm por sujeito a própria alma. Por isso, uma vez destruído o
composto, essas potências permanecem. Por conseguinte, visto que exerce funções sem
o corpo, além de imaterial, a alma humana é subsistente. Ademais, é também imortal,
pois sobrevive após a morte do que é material.
memorativa. No homem, no qual essas funções não são desempenhadas apenas por
instinto como nos animais irracionais, estes dois últimos sentidos internos (aestimativa e
a memorativa) recebem o nome de cogitativa e reminiscentia e possuem funções
extremamente importantes. A cogitativa, chamada também por Tomás de ratio
particularis, é capaz de – em relação aos objetos particulares – comparar (confere),
compor (componere) e dividir (dividere). A reminiscentia, diferente da memorativa no
animal irracional, possui a capacidade de investigar os fatos da memória com uma busca
ativa e não apenas de forma automática e instintiva.
300
Cf. Metafísica 071b 20-22.
91
Tomás, por sua vez, apresenta o apetite (appetitus) de maneira diversa, muito por
conta do apetite intelectivo (appetitus intellectivus) ou vontade (voluntas). De acordo com
o Doutor Angélico, o apetite é a tendência ou a inclinação (inclinatio) de um ente em
busca de seu bem ou seu fim. Ou seja, não se pode dizer de todo apetite que seja uma
potência da alma, mas a inclinação (inclinatio) de qualquer ser em direção ao seu fim.
Visto deste modo, não há divergência entre o Aquinate e o Estagirita neste ponto. Com
efeito, Aristóteles afirma que o “bem” é aquilo para o qual todas as coisas tendem301.
Todavia, para Tomás, o apetite (appetitus) da alma é a inclinação que segue o que é
apreendido. Para a apreensão sensível, é necessário um apetite sensível que tente para o
objeto apreendido pelos sentidos. Já, para a apreensão inteligível, é necessário um apetite
intelectivo que tende para o que é conhecido. Deste modo, existem três tipos de apetites:
apetite natural (appetitus naturalis), apetite sensitivo (appetitus sensitivus) e apetite
intelectivo ou vontade (appetitus intellectivus ou voluntas).
301
Cf. Ética a Nicômaco 1094a 1-5.
92
último. Todavia, é o livre-arbítrio, como ato da vontade, que realiza a escolha (electio)302.
Neste sentido, podemos compreender a estreita relação entre o intelecto (intellectus) e a
vontade (voluntas) em Tomás. Todo ato da vontade é precedido por um ato do intelecto.
Assim, o que em Aristóteles são atividades da razão – deliberar () e escolher
() –, ou seja, de uma mesma faculdade, em Tomás são atividades de
faculdades distintas. A deliberação (consilium) – que é ato da prudência (prudentia)303 –
é realizada pela faculdade do intelecto (intellectus)304. A escolha (electio) – que é ato do
livre-arbítrio305 – é realizada pela faculdade da vontade (voluntas)306.
Com essas considerações, acreditamos que nosso objetivo principal foi alcançado,
visto que podemos ter uma compreensão significativa da teoria da alma em Tomás de
Aquino. Todavia, sabemos que o assunto aqui investigado é amplo e propedêutico para
outras questões. Diante disso, dentre tantos objetos de estudo possíveis, algo que nos
parece pertinente investigar é a questão da voluntas em Tomás. Muitos autores
consideram que o termo voluntas, tal como entende o Doutor Angélico, só aparece
verdadeiramente com o advento do cristianismo. Por outro lado, embora os gregos
desconheciam tal noção, é possível identificar em Aristóteles, ao examinarmos a doutrina
da escolha deliberada, uma tese muito sensata a respeito da vontade humana. Isto posto,
as questões que podemos levantar seriam: qual a origem do conceito de voluntas em
Tomás de Aquino? Poderia ele – o que parece bem pouco provável – ter como fundamento
para esse conceito tão somente a filosofia aristotélica? Ou ainda, qual a importância e a
necessidade do deslocamento da voluntas para a parte superior da alma, tornando-a
faculdade racional? Essas questões parecem pertinentes para estudos futuros.
302
Cf. S. Th. Ia, q. 83, a. 4.
303
Cf. S. Th. IIa IIae, q. 47, a. 8.
304
Cf. S. Th. IIa IIae, q. 47, a. 1.
305
Cf. S. Th. Ia, q. 83, a. 3.
306
Cf. S. Th. Ia IIae, q. 13, a. 1.
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