Castro Santos Lopes - 2023
Castro Santos Lopes - 2023
Castro Santos Lopes - 2023
Alexander de Castro1
Diego Prezzi Santos2
Vinicius Basso Lopes3
RESUMO
1
Doutor em Direito. É professor dos cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu em ciências
jurídicas da UniCesumar (Maringá-Pr). Pesquisador e bolsista do Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia
e Inovação – ICETI.
2
Pós-Doutor em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Doutor em Direito pela Faculdade
Autônoma de São Paulo (FADISP). Mestre em Direito pelo programa de mestrado em ciências Jurídicas do
Centro Universitário de Maringá (CESUMAR) na linha de pesquisa Instrumentos de Efetivação dos Direitos
da Personalidade, recebendo aprovação com nota máxima da banca. Pós-graduado em Direito e Processo
Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor de pós-graduação na Universidade Estadual
de Londrina (UEL). Professor de pós-graduação no Centro Universitário de Maringá (UNICESUMAR).
Professor convidado na Universidade Paranaense (UNIPAR). Professor de graduação no Instituto Catuaí de
Ensino Superior (ICES) e na Universidade Estadual de Londrina (UEL).
3
Mestrando em Ciências Jurídicas (UNICESUMAR); Pós-graduado em Direito e Processo Penal pelo Instituto
de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC) (2020-2022); Bacharel em Direito pela Faculdade Catuaí
(2016-2020); Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais e as Ciências Criminais do
Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC) (2020-2021 e 2021-2022).
ABSTRACT
Criminal Law in a with the rule of law has the obligation to limit the state’s punitive power
in order to avoid abuses of power. Based on this premise, this work seeks to present a
proposal to mitigate a structural problem of the criminal justice system: its selectivity. For
this, we understand as insufficient the current formulation of the concept of criminal
culpability (normative and finalist), which is based on the myth of equality within criminal
law that has long been questioned by criminological criticism. As an alternative we
propose a reformulation based on the idea of vulnerability to criminalization of certain
individuals for a better protection of personal fundamental rights. We consider this
reformulation as essential for the fundamental personal rights to be effectively respected
within the punitive activity of the state, in order to assure that the integral protection of
the human person (corollary of the principle of the dignity of the human person) guide
the restrictions of rights imposed by criminal law. We base this thesis on the unitary
conception of the rights inherent to the human person, which overcomes the public-
private dichotomy that separates private personal rights from fundamental rights.
1. INTRODUÇÃO
conforme a norma, não o faz. Nesse sentido, considera-se que o agente poderia agir
conforme o Direito quando é imputável (capaz de conhecer o caráter ilícito dos seus atos
e poder agir de acordo com tal conhecimento); quando possui potencial conhecimento da
proibição dos seus atos (potencial conhecimento da ilicitude); e quando é exigível que
agisse de outra forma (exigibilidade de conduta diversa). Como se verá, tal conceito, muito
embora seja o mais aprimorado da dogmática penal, quando colocado em confronto com
os dados da realidade e com a crítica criminológica, se demonstra insuficiente. Isto
porque, o agir conforme o Direito parte de uma premissa de neutralidade do Direito Penal,
ou seja, parte do mito de que o Direito Penal criminaliza todos da mesma forma, porém, a
realidade empírica demonstra que o sistema de justiça criminal é absolutamente seletivo,
criminalizando com maior rigor e com prioridade determinados sujeitos, que como é
exposto pelas teorias criminológicas críticas, são os sujeitos vulneráveis aos processos de
criminalização em uma sociedade capitalista.
Considerando que o Direito vigente se funda a partir da primazia dos Direitos
Humanos, que se inserem no ordenamento jurídico pátrio nos Direitos Fundamentais
constitucionalmente previstos, a seletividade penal é um grave problema estrutural que
deve encontrar soluções dentro do próprio sistema jurídico. Portanto, um dos fatores que
pode contribuir para a mitigação da seletividade penal é o aprimoramento do conceito
“neutro” de culpabilidade, passando a considerar a desigualdade socioeconômica
presente em uma sociedade capitalista como sendo um fator de criminalização pujante.
Para isto, apresenta-se a Culpabilidade por Vulnerabilidade, uma formulação que conta
com o marco teórico de Eugênio Raul Zaffaroni, que não despreza o conceito dogmático
de culpabilidade, mas acrescenta a ele um viés criminológico e social baseado na lógica de
desigualdade material, voltada à preservação dos direitos humanos, dos direitos
fundamentais e dos direitos da personalidade numa perspectiva de superação da
dicotomia entre direito público e direito privado que segmente a proteção integral da
pessoa.
A proteção dos direitos fundamentais da personalidade desempenha um papel
fundamental na garantia da dignidade humana e da justiça social. No entanto, o atual
sistema penal não leva em conta a desigualdade social e a vulnerabilidade dos menos
privilegiados, resultando em violações desses direitos. A criminalização de pessoas em
situação de vulnerabilidade acarreta em punições desproporcionais e injustiças sociais. É
imprescindível reconstruir o conceito de culpabilidade penal, considerando a
desigualdade e a vulnerabilidade social. Isso exige uma abordagem sensível às
circunstâncias socioeconômicas, com o objetivo de promover inclusão e recuperação.
Para proteger efetivamente os direitos fundamentais, é necessário estabelecer uma
justiça criminal mais equitativa, que esteja alinhada com os princípios de igualdade e
dignidade humana. A reconstrução do conceito de culpabilidade penal é essencial para
aprimorar a proteção desses direitos e garantir uma verdadeira justiça. Dentre os direitos
ameaçados pelo sistema penal seletivo, destacam-se o direito à honra, à liberdade, à
integridade corporal e à saúde. Embora esses direitos sejam considerados como aspectos
do direito privado, mesmo quando protegidos por leis penais, eles são inextricavelmente
ligados à natureza humana e devem ser classificados como direitos fundamentais da
personalidade. A quebra da igualdade no sistema penal resulta na violação desses direitos,
como a destruição da honra durante investigações, a privação do direito de locomoção
como forma de punição e os danos à saúde e integridade decorrentes das condições
insalubres das instituições prisionais. Mesmo com garantias constitucionais, o sistema
penal impõe um fardo significativo que muitas vezes não pode ser revertido por meio da
absolvição. É essencial lembrar que mesmo os condenados possuem direitos
fundamentais e de personalidade, e qualquer forma de punição deve respeitar os limites
legais e constitucionais, tendo como base a culpa penal. A participação da sociedade na
criminalização de pessoas vulneráveis resulta em violações de direitos que não são
justificadas pela culpabilidade penal, uma vez que o conceito de culpabilidade falha em
considerar adequadamente as influências sociais nesse processo de criminalização.
Portanto, para garantir a proteção integral da pessoa, fundamentada no princípio da
dignidade humana, é necessário revisar o conceito de culpabilidade penal.
A teoria do delito atual divide o conceito de crime em quatro elementos, sendo eles:
a ação, a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade, sendo cada um destes conceitos
de complexidade a parte, com suas próprias características e pressupostos (TAVAREZ,
2018, p. 99). Pode se dizer ainda que o aperfeiçoamento da teoria do delito, em síntese, se
deu em especial na realocação de critérios objetivos e subjetivos dentro dos quatro
elementos do delito.
Ademais, segundo Juarez Tavarez, é notória a evolução da teoria do delito a partir
do conceito de ação, afirmando que “por contribuição de FEURBACH, eliminou-se do
direito penal a criminalização de simples estado ou qualidade de pessoa. Ao contrário
disso, passou-se a exigir que o delito tivesse na ação o seu elemento básico” (TAVAREZ,
2018, p. 99). Além disso, para que a ação seja considerada como criminosa, é
imprescindível a sua previsão legal como tal, devendo ainda ser uma conduta contrária à
toda ordem jurídica. A literatura especializada utiliza o termo "tipo" para se referir ao
conjunto de elementos que estabelecem, de acordo com a lei, a conduta delituosa,
enquanto o conceito de "antijuridicidade" se refere à oposição da conduta à totalidade do
sistema jurídico. Percebe-se que a conduta antijurídica não se limita simplesmente à
contrariedade de uma norma isolada, mas sim abrange a contrariedade a todo o
ordenamento jurídico. Assim, “conduta que contraria uma norma é antinormativa, mas
não necessariamente antijurídica (TAVAREZ, 2018, p. 101).
Quando a conduta, portanto, preenche os requisitos de tipicidade e
antijuridicidade, tem-se a existência do “injusto penal ou o fato injusto” (TAVAREZ, 2018,
p. 102). Mas não basta só isso, isto porque muito embora à pretérita advertência de que o
delito não versa sobre um indivíduo, mas sim sobre a sua ação, o injusto é obviamente
sempre praticado por uma pessoa, e para que se possa atribuir a responsabilidade do fato
injusto ao agente que a praticou, devem estar presentes alguns elementos determinados,
que compõem justamente o último ponto da estrutura do delito, a culpabilidade. A
culpabilidade representa uma característica da conduta que resulta na imputação de
responsabilidade a um sujeito pelo cometimento de um ato injusto. Mesmo quando certas
leis estabelecem a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, isso não altera a
patológica completa” (TANGERINO, 2014, p. 21). Ademais, caso o agente seja considerado
semi-imputável, o efeito é somente a diminuição da pena, nos termos do parágrafo único
do art. 26 do Código Penal. O segundo requisito trata-se do potencial conhecimento da
ilicitude, ou seja, é o conhecimento do sujeito de que a conduta por ele praticada é
proibida, e a ausência de tal conhecimento é denominada de erro de proibição, que se for
inevitável exclui a culpabilidade, e quando evitável diminui a pena (TANGERINO, 2014, p.
21 e 22). Por fim, a inexigibilidade de conduta diversa, é a análise da exigência sobre o
agente, conforme as circunstâncias do caso, ter agido conforme o direito, sendo que, são
fatores que excluem a culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa: “(i) coação
moral irresistível; (ii) obediência hierárquica ou devida; (iii) estado de necessidade
exculpante.” (TANGERINO, 2014, p. 22).
continuidade perfeita de uma sociedade que jamais conheceu a escravidão, a não ser de
modo muito datado e localizado” (SOUZA, 2014, p. 42).
Diante disso, parece-nos indispensável basear a análise do conceito de
culpabilidade levando em conta tanto as peculiaridades histórico-sociais do contexto
brasileiro, como o fato de que em uma sociedade capitalista é indispensável uma análise
crítica do Direito Penal a partir da concepção de luta de classes. Ora, os meios de controle
sociais formais (sistemas jurídicos), garantem as condições materiais de funcionamento
da sociedade, e o faz, consequentemente, a partir da proteção dos interesses das classes
economicamente hegemônicas, de modo a preterir os interesses dos grupos mais
vulneráveis, deste modo, segundo Juarez Cirino dos Santos “o Direito Penal garante as
estruturas materiais em que se baseia a existência das classes sociais”. Esta análise de
Cirino é precisa e esclarecedora, de modo a colocar em jogo a suposta “aparência de
neutralidade do Direito Penal” (SANTOS, 2014, p. 08), e parte, salvo melhor juízo da crítica
criminológica iniciada pelas teorias liberais de etiologia social, pelo labbeling approach e
principalmente pela criminologia crítica.
A evolução das teorias criminológicas é extensa e com certeza demanda muito mais
espaço do que dispomos no presente trabalho, porém, existem conclusões advindas deste
ramo da ciência que há muito colocaram em xeque alguns conceitos ainda utilizados na
dogmática penal, dentre eles a formulação do conceito de culpabilidade. Isto porque,
segundo Alessandro Baratta, a criminologia contemporânea superou os paradigmas da
criminologia positivista, a qual entendia o criminoso como um sujeito patológico,
buscando analisar as causas do crime a partir das características biológicas e psicológicas,
já que o objeto de estudo de tais teorias não eram “propriamente o delito, considerado
como conceito jurídico, mas o homem delinquente, considerado como indivíduo diferente
e, como tal, clinicamente observável” (BARATTA, 2011, p. 29). O positivismo
criminológico resultou, segundo Salo de Carvalho em uma justificação por parte da
criminologia para a pena. A criminologia tradicional teve o papel de legitimar as práticas
punitivas ao longo da evolução do direito penal moderno, utilizando uma perspectiva de
falso humanismo que se expressava no discurso da ressocialização. De forma subliminar
e invisível, a criminologia etiológica foi incorporada como discurso orientador das fases
legislativa, judicial e executiva, estabelecendo a concepção de uma pena de cunho clínico
e correcional (CARVALHO, 2007, p.84).
A criminologia positivista foi superada por subsequentes teorias criminológicas,
que foram alterando tanto o seu objeto de estudo quanto os métodos de investigação, até
chegar no que hoje chama-se de criminologia crítica. Vera Malaguti Batista explica que a
criminologia crítica é a responsável por deslocar o “autor para as condições objetivas,
estruturais e funcionais”, bem como deslocar as “causas para o mecanismo de construção
da realidade social” (2012, p. 89), isto ocorre porque a questão criminal passa a ser
analisada a partir de uma visão macrossociológica, que superou a ideia do crime como
fator ontológico, passando a compreende-lo como um processo de seleção através da
criminalização primária e secundária (BATISTA, 2012, p. 89).
Com maior afinidade ao objeto abordado no presente artigo, Juarez Cirino dos
Santos explica que a Criminologia Crítica surge como uma crítica aos chamados
“princípios da ideologia social” (2021, p. 248), que dentre outros aspectos é composto
pelo conceito de culpabilidade que pressupõe que o “crime é produzido por uma atitude
interior reprovável de um sujeito que tinha o poder de agir conforme o direito” (SANTOS,
2021, p. 249). Cirino afirma que tal conceito se encontra em desacordo com as teorias das
subculturas, que rechaçam o preceito basilar da culpabilidade, vez que “o comportamento
criminoso constitui adesão a valores subculturais e não de valores culturais gerais”
(SANTOS, 2021, p. 249), isto porque a sociedade não é composta por um sistema cultural
único, ao contrário, é uma pluralidade de culturas diversas que formam os valores e
normais sociais de cada grupo (SANTOS, 2021, p. 250).
Esta crítica à culpabilidade de acepção normativa e funcionalista foi exposta
também por Alessandro Baratta quando aborda tais teorias das subculturas criminais.
Segundo o autor, tal teoria parte da recusa de que o delito seja uma negação “aos valores
e às normas sociais gerais” (BARATTA, 2013, p. 73), já que, tais valores sociais não são
homogêneos em toda a sociedade, ao contrário, “existem valores e normas específicos dos
diversos grupos sociais (subcultura)” (BARATTA, 2013, p. 73). Por isso, o autor conclui
4Optou-se por colocar os números de forma aproximada tendo em vista que o sistema do Banco Nacional
de Mandados de Prisão se atualiza com frequência quase diária, portanto, os números exatos ficariam quase
imediatamente defasados.
privação do direito de ir e vir, uma das formas mais comuns de punição no sistema
jurídico-penal, tem um impacto significativo na liberdade individual e na integridade
corporal das pessoas sujeitas a essa medida. O direito de ir e vir é um dos pilares
fundamentais de uma sociedade democrática e é protegido por diversos instrumentos
legais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e várias constituições ao redor
do mundo. No entanto, quando uma pessoa é privada desse direito como consequência de
uma condenação criminal, ela enfrenta uma restrição severa à sua liberdade. A privação
da liberdade individual envolve o confinamento em espaços limitados, geralmente dentro
de estabelecimentos prisionais, onde a pessoa perde sua autonomia e sua capacidade de
tomar decisões sobre sua vida diária. Ela é submetida a um conjunto de regras e rotinas
impostas pelo sistema penitenciário, resultando em uma perda significativa de liberdade
de escolha e movimento.
Em terceiro lugar, o ambiente insalubre e violento das instituições carcerárias pode
expor os detentos a condições que comprometem sua saúde física e mental, resultando
em danos irreparáveis à sua integridade e bem-estar. Os ambientes prisionais são
frequentemente caracterizados pela superlotação, falta de higiene, violência e negligência.
Aqueles que estão cumprindo pena podem enfrentar agressões físicas, abuso emocional,
falta de acesso adequado a cuidados médicos e más condições de saúde e saneamento.
Essas condições precárias podem levar a danos físicos e psicológicos significativos. A
saúde física e mental dos indivíduos pode ser comprometida durante o período de
encarceramento, resultando em sofrimento e prejuízos que muitas vezes persistem
mesmo após a sua libertação.
É importante ressaltar que mesmo um indivíduo condenado mantém seus direitos
fundamentais e de personalidade. Qualquer punição imposta pelo sistema jurídico-penal
deve respeitar os limites legais e constitucionais, além de ser baseada na culpabilidade
penal de forma justa e proporcional. A imposição de penalidades desproporcionais e
injustas a pessoas vulneráveis viola esses direitos fundamentais e a ideia de justiça. Em
outras palavras, a participação da sociedade na criminalização de pessoas vulneráveis
também resulta em violações de direitos que não são justificadas pela culpabilidade penal.
conceito que superou ideias baseadas no positivismo científico e que adotavam uma
concepção de Direito Penal do autor. O que se propõe é que se insira em tal conceito as
conclusões advindas da criminologia crítica, fazendo com que o Direito Penal se torne
efetivamente um limitador do poder punitivo, e não somente um mecanismo de
justificação.
Como já apontado anteriormente, o conceito de culpabilidade se consolidou como
sendo um juízo de reprovação ao autor do crime, sendo inclusive um princípio que norteia
a dosimetria da pena. Neste diapasão, como explica Bruna Gonçalves da Silva Loureiro, a
culpabilidade deve ser analisada de acordo com as condições sociais do sujeito, caso
contrário resultará em uma aplicação completamente desconexa da realidade social
(LOUREIRO, 2019, p. 65). Ainda segundo a autora, torna-se imprescindível uma
reconstrução substancial do conceito de culpabilidade, de forma a abarcar não apenas a
análise da conduta ilícita e das condições mentais e psicológicas do agente no momento
da sua ocorrência, mas também levar em consideração elementos externos e prévios ao
ato criminoso, que estejam intrinsecamente ligados ao processo de criminalização
(LOUREIRO, 2019, p. 65).
Diante disso, a autora inicia a sua formulação explicando que a finalidade do direito
penal deve ser a limitação do poder punitivo estatal, sendo esta a concepção compatível
com o Estado Democrático de Direito (LOUREIRO, 2019, p. 129). Isto porque, caso
contrário, “retrocederia a um Estado de Polícia, caso permitisse-se a expansão do poder
punitivo manifestado mediante a operacionalização seletiva e arbitrária da
criminalização” (LOUREIRO, 2019, p. 131). Portanto, segundo Bruna Loureiro, é
necessário a reformulação do discurso jurídico penal buscando uma harmonização com
tal pressuposto de limitação do poder punitivo, em especial da teoria do delito, a partir de
uma concepção agnóstica quanto aos fins da pena, a qual parte da premissa de que a pena
não é um instrumento apto a solucionar os conflitos causados pelo crime, mas sim uma
“simples manifestação de poder” (LOUREIRO, 2019, p. 131).
Esta conclusão se dá pois os discursos postos das teorias positivas da pena, que
preveem uma finalidade preventiva, não se sustentam empiricamente. Segundo a autora,
a teoria da prevenção geral negativa (aplicação da pena como meio para coagir a
sociedade a não praticar delitos) desconsidera a complexidade do fenômeno criminal, que
não é extinto pela simples ameaça de uma pena, além de transformar o homem em simples
objeto de coação para a sociedade, sendo esta, inclusive, uma violação ao imperativo
categórico de Kant, que considera que o homem deve ter um fim em si mesmo, e não ser
utilizado como meio para algo (LOUREIRO, 2019, p. 131 e 132).
Da mesma forma, a prevenção geral positiva, ao visar a reafirmação da ordem
jurídica por meio da aplicação da sanção, parte de premissas equivocadas, principalmente
quando aplicada em sociedades absolutamente estratificadas, ao passo que a pena não é
capaz de “reafirmar valores consensualmente abalados”, mas sim de “reforçar a ideologia
do grupo dominante e a vulnerabilidade do grupo dominado” (LOUREIRO, 2019, p. 132).
Da mesma conclusão não escapa a teoria da prevenção especial positiva, que se
consolida nas chamadas “ideologias re” (reeducação, reinserção, ressocialização,
repersonalização e reincorporação), que perderam sua base após a superação do
positivismo criminológico que enxergava o criminoso como um sujeito patológico que
deveria ser tratado (LOUREIRO, 2019, p. 132).
Por fim, a teoria da prevenção especial negativa, que defende a pena como um
instrumento de neutralização do sujeito que praticou um crime, evitando com que ele
venha a cometer novos ilícitos, segundo a autora, é absolutamente incompatível com o
Estado Democrático de Direito, pois viola o direito à autodeterminação do indivíduo sob
o argumento de evitar o cometimento de novos crimes futuros (LOUREIRO, 2019, p. 133).
Diante da insustentabilidade (dogmática e empírica) das teorias justificadoras da
pena, para que se possa alcançar a efetividade dos Direitos Fundamentais, que são os
verdadeiros ditames do Estado Democrático de Direito, “é preciso abandonar o discurso
construído pelas teorias positivas da pena que acabam por legitimar o poder punitivo”
(LOUREIRO, 2019, p. 133), buscando uma concepção negativa e agnóstica da pena, que
deve partir necessariamente do pressuposto de limitação do poder punitivo, e não de
qualquer pretensão de prevenção ou pacificação de conflitos sociais (LOUREIRO, 2019, p.
134). Esta conclusão, que considera a pena como um exercício do poder, despida de
novamente como uma expressão tangível de poder. Assim, diz o autor, “tal como a guerra
(modelo sancionatório nas relações internacionais), a pena representaria resposta
sancionatória extrema e cruel, isenta de quaisquer justificativas” (CARVALHO, 2007, p.
97). A teoria agnóstica da pena, portanto, se funda na ideia de negação da legitimidade da
pena, a partir das constatações da realidade da sua ineficácia e efeitos danosos,
permitindo assim que os esforços se concentrem na diminuição dos danos causados pelo
poder punitivo e em neutralizar os efeitos negativos, principalmente nos sujeitos
vulneráveis que são submetidos ao sistema prisional (CARVALHO, 2007, p. 100).
A disseminação dos direitos da personalidade teve início após a Segunda Guerra
Mundial, por volta de 1945, e pode ser entendida como uma incorporação de aspectos dos
direitos fundamentais no âmbito das relações privadas de forma normativa. Ao mesmo
tempo em que normas foram positivadas nos códigos civis de diversos países sob a
denominação de direitos da personalidade, a doutrina da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais, originada na Alemanha (FABISCH, 2010; SIEREN, 2014), ganhava força.
Essa doutrina encontrou ampla aceitação no direito da União Europeia (ENGLE, 2009, pp.
165-173) e teve impacto significativo na ciência jurídica brasileira, por meio da teoria da
constitucionalização do direito privado (FACHIN, 2007, p. 201; FACHIN, 2012). A reflexão
sobre o surgimento e desenvolvimento dos direitos da personalidade levou à conclusão
de que esses direitos possuem uma natureza híbrida, ocupando uma posição
intermediária entre o direito público e o direito privado (MELLO, 2003, p. 80). Assim, os
direitos da personalidade representam um ponto de convergência entre esses dois ramos
de base do ordenamento jurídico. Essa perspectiva é reforçada ainda pela dificuldade
amplamente reconhecida de se estabelecer um parâmetro definitivo para se distinguir
claramente o direito público do direito privado (ZANINI; OLIVEIRA; SIQUEIRA; FRANCO
JR., 2018). Assim, conclui-se que os direitos positivos destinados à proteção da
humanidade do ser humano, tanto em sua dimensão física quanto moral, ultrapassam os
limites das diferentes divisões do direito, tornando-se o pilar central de toda a arquitetura
jurídica. Dito de outra maneira, esses direitos – os direitos fundamentais, os direitos
humanos e os direitos da personalidade – possuem uma natureza substancial comum,
independentemente das formas que assumam. Justamente por isso, adotamos a expressão
direitos fundamentais da personalidade.
A relação inseparável dos direitos da personalidade com os direitos humanos e os
direitos fundamentais dificulta enquadrá-los nas estruturas clássicas dos direitos
subjetivos próprias do direito privado. Mesmo que a civilística tenha atribuído inúmeras
características excepcionais a esses direitos, como sua indisponibilidade, a fim de encaixá-
los a todo custo dentro dos quadrantes da sua disciplina, há uma incompatibilidade
fundamental com o objetivo de tutelar algo tão complexo e multifacetado como a
personalidade humana. Essa incompatibilidade surge da fragmentação dos direitos da
personalidade em diversos interesses isolados e estritamente definidos, que
supostamente deveriam categorizar as formas jurídicas da expressão dessa
personalidade humana. O fato de que a personalidade é um todo unitário e sempre capaz
de encontrar formas de expressão praticamente imprevisíveis pelo legislador parece ter
sido completamente ignorado nas tentativas de positivar os direitos da personalidade,
desde os trabalhos de Orlando Gomes nos anos 60. No entanto, a experiência internacional
demonstra que é possível basear a proteção da personalidade em uma cláusula geral que
evite fatiá-la em direitos singularizados. Este é precisamente o caso de Portugal e o artigo
70º, 1, do seu Código Civil (promulgado em 1966). Somente dessa maneira é possível
abranger o número ilimitado de situações em que a personalidade de um indivíduo é
violada.
O Brasil também possui um norma positiva dedicada de proteção integral da pessoa
humana: trata-se do princípio da dignidade da pessoa humana, que encontra seu lugar no
artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Sendo parte da constituição
federal, torna-se assim juridicamente impossível limitar a proteção determinada por ela
por meio de legislação infraconstitucional. Portanto, as situações específicas
descriminadas pelo código civil ganham um caráter meramente exemplificativo de tutela
de aspectos inerentes à personalidade, eis que não se pode impor limites a tal proteção na
legislação ordinária (TEPEDINO, 2004, p. 50. MORAES, 2008, p. 375). No entanto, a mais
relevante decorrência desse raciocínio é a natureza indissociável que possuem entre si
conteúdo do próprio injusto, pois se assim o fosse “suporia a falta de humanidade, ou seja,
igualdade e imitabilidade de todos os seres humanos” (ZAFFARONI, 2004, p. 33).
Por isso, a culpabilidade em um Estado Democrático de Direito não pode se basear
apenas no ato praticado, devendo ser incorporada a esta o “dado real da seletividade”
(ZAFFARONI, 2004, p. 37). Segundo Zaffaroni, há muito tempo é reconhecida a inclinação
da seleção para a criminalização em conformidade com estereótipos, incidindo
predominantemente sobre o que ele chama de “criminalidade grosseira”. Isto é, aquela
cometida por indivíduos pertencentes às classes sociais mais desfavorecidas, que
possuem menos habilidades para práticas delitivas mais complexas ou menos
perceptíveis pelo sistema de justiça criminal (ZAFFARONI, 2004, p. 37).
Esta conclusão, segundo Bruna Loureiro, advém do labeling approach e da
criminologia crítica, que desnudaram a ilegitimidade do sistema penal em razão da
seletividade dos processos de criminalização, o que torna absolutamente incompatível a
concepção normativa de culpabilidade, já que falar em capacidade de agir conforme o
direito enquanto se sabe que os processos de criminalização selecionam sujeitos
vulneráveis é um paradoxo intransponível (LOUREIRO, 2019, p. 184). Prossegue a autora
sugerindo ser questionável como se pode conferir racionalidade a um conceito de
culpabilidade que outorga às autoridades judiciais o poder e a obrigação de reprovar um
agente que cometeu uma infração específica sob pressão de condições sociais
extremamente desfavoráveis, o que inegavelmente mais fácil sua detecção e seleção pelo
sistema penal. No entanto, ao mesmo tempo, não se permite ao julgador realizar o mesmo
julgamento de reprovação em relação a outro indivíduo que cometeu a mesma infração,
simplesmente porque esse segundo indivíduo não foi selecionado pelo sistema. Tal
discrepância levanta questionamentos sobre a racionalidade subjacente a esse conceito
de culpabilidade (LOUREIRO, 2019, p. 184).
Isso não significa, porém, que deve-se abandonar o conceito de culpabilidade pelo
ato e que a culpabilidade por vulnerabilidade é uma espécie de culpabilidade do autor,
isto porque, como explica Zaffaroni o “mero status ou estado de vulnerabilidade não
determina a criminalização”, sendo necessário, para que o sujeito seja selecionado um
certo nível de esforço pessoal, para que se alcance uma “situação concreta de
vulnerabilidade” (ZAFFARONI, 2004, p. 38). Ou seja, o sujeito se coloca em uma situação
concreta, contrária as próprias pretensões redutoras do direito penal, o que justifica, por
conseguinte, a reprovação advinda do próprio direito penal (ZAFFARONI, 2004, p. 39),
não se analisa, portanto, o caráter pessoal ou a personalidade do agente, mas sim a sua
contribuição, realizada através da sua conduta, para que o poder punitivo se concretize
(LOUREIRO, 2019, p. 213).
Nesse sentido, a culpabilidade por vulnerabilidade não é um substitutivo da
culpabilidade pelo ato, mas sim uma “antítese redutora”, o que deve resultar na
“culpabilidade penal como síntese” (ZAFFARONI, 2004, p. 39), ou seja, a culpabilidade por
vulnerabilidade tem a função de limitar a resposta penal para aqueles casos em que a
culpabilidade normativa já determinou a possibilidade da punição (LOUREIRO, 2019, p.
212). O raciocínio, muito embora a princípio pareça complexo, é simples: o juiz, ao
analisar a reprovabilidade do sujeito que praticou uma conduta ilícita (culpabilidade pelo
ato), deve também considerar “o dado real da seletividade do sistema penal que opera de
acordo com a vulnerabilidade do agente e interfere no poder de contenção da agência
judicial (culpabilidade por vulnerabilidade)”, (LOUREIRO, 2019, p. 213). Em outras
palavras, a culpabilidade penal engloba uma noção abrangente de culpabilidade, que deve
ser examinada em duas fases distintas. A primeira etapa envolve a avaliação da
culpabilidade da conduta, a qual pode ser mitigada “ou até excluída, com base na
culpabilidade pela vulnerabilidade, que funciona como uma segunda etapa da
culpabilidade penal”. A fim de conduzir este “juízo normativo-valorativo”, é naturalmente
necessário constatar a ocorrência dos tradicionais requisitos da culpabilidade em sua
versão normativa pura (a saber, imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e
exigibilidade de conduta diversa) e, adicionalmente, “perquirir o grau de esforço
empreendido pelo agente para colocar-se na situação de vulnerabilidade, extraindo-se
dessa análise o nível máximo de poder limitador que poderá exercer para refrear o
processo criminalizante” (LOUREIRO, 2019, p. 214). Isto leva a uma contenção racional
do poder punitivo, permitindo a aplicação de uma pena menor, para aqueles sujeitos
6. CONCLUSÃO
Vale advertir, por fim, que a missão de diminuição da seletividade penal dentro do
sistema de justiça criminal é tarefa árdua e contra majoritária, vez que as tendências
atuais demonstram um expansionismo do poder punitivo e um consequente aumento da
seletividade. Portanto, a reformulação do conceito de culpabilidade para a adoção do
critério material de vulnerabilidade é uma gota no oceano, mas é indispensável para dar
ao Direito Penal mais racionalidade e justiça social.
Dentre os direitos ameaçados pelo sistema penal seletivo, destacam-se o direito à
honra, à liberdade e à integridade corporal e à saúde. Esses direitos são considerados
aspectos do direito privado, mesmo quando protegidos por leis penais. No entanto, eles
são inseparáveis da personalidade humana e classificá-los como direitos fundamentais da
personalidade é preciso. A quebra da isonomia no sistema penal resulta na violação
desses direitos, como a devastação da honra durante um procedimento investigativo, a
privação do direito de ir e vir como punição e os danos à saúde e integridade causados
pelo ambiente insalubre das instituições carcerárias. Mesmo com garantias
constitucionais, o sistema penal impõe um ônus significativo que muitas vezes não pode
ser revertido pela absolvição. É fundamental lembrar que até mesmo um condenado
possui direitos fundamentais e de personalidade, e qualquer punição deve respeitar os
limites legais, constitucionais e se basear na culpa penal. A participação da sociedade na
criminalização de pessoas vulneráveis resulta em violações de direitos que não são
justificadas pela culpabilidade penal, pois o conceito de culpabilidade falha em considerar
adequadamente as determinantes sociais nesse processo de criminalização. Portanto, a
proteção integral da pessoa, baseada no princípio da dignidade humana, requer uma
revisão do conceito de culpabilidade penal.
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