Eneo 2022
Eneo 2022
Eneo 2022
Autoria
Fabiana Florio Domingues - fabianafd@yahoo.com.br
Centro de Pós-Grad e Pesquisas em Admin – CEPEAD / UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
Agradecimentos
Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) pela bolsa de doutorado que permitiu a realização da pesquisa.
Resumo
O objetivo deste ensaio é propor o encontro da cartografia e da Teoria dos Afetos como
possibilidade teórico-metodológica para pesquisas qualitativas nos Estudos Organizacionais.
Trazemos a cartografia a partir da filosofia da diferença de Deleuze e Guatarri como o
mapear processos de subjetivação, identificando as linhas que compõem um rizoma.
Discutimos a Teoria dos Afetos sob a ótica de Moriceau ao buscar uma perspectiva afetiva
para fugir do mundo das representações e assumir pesquisadores, pesquisados e leitores
como participantes e coprodutores do território pesquisado em um movimento ético-estético,
a reflexividade. As principais implicações do texto são de ordem ontológica, epistemológica
e teórica, destacando-se a questão das diferenças como central para considerar que ser,
conhecer e explicar as organizações passa por um lugar necessariamente de pluralidade e de
afeto.
XI Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD - EnEO 2022
On-line - 26 - 27 de mai de 2022 - 2177-2371
Resumo
O objetivo deste ensaio é propor o encontro da cartografia e da Teoria dos Afetos como
possibilidade teórico-metodológica para pesquisas qualitativas nos Estudos Organizacionais.
Trazemos a cartografia a partir da filosofia da diferença de Deleuze e Guatarri como o mapear
processos de subjetivação, identificando as linhas que compõem um rizoma. Discutimos a
Teoria dos Afetos sob a ótica de Moriceau ao buscar uma perspectiva afetiva para fugir do
mundo das representações e assumir pesquisadores, pesquisados e leitores como participantes
e coprodutores do território pesquisado em um movimento ético-estético, a reflexividade. As
principais implicações do texto são de ordem ontológica, epistemológica e teórica,
destacando-se a questão das diferenças como central para considerar que ser, conhecer e
explicar as organizações passa por um lugar necessariamente de pluralidade e de afeto.
Introdução
nos processos de subjetivação do ser, sustentando a complexidade do real sem reduzi-lo, uma
vez que não ignora a complexidade da própria vida. Em outras palavras, não há dissociação
entre objetividade e subjetividade, entre pesquisa e vida (Romagnoli, 2009).
Trazemos para dialogar com a cartografia a Teoria dos Afetos, que se coloca como
forma de “mergulhar no concreto, no vivido, na porção parcial, local, específica, relacional e
estética da experiência” (Moriceau, 2020, p. 13), ultrapassando assim o mundo das
representações ao se deixar levar pelos afetos presentes na pesquisa. A abordagem afetiva
coaduna com a experiência cartográfica uma vez que ambas utilizam o corpo do pesquisador
(o corpo do cartógrafo) como dispositivo para considerar as impressões, efeitos de prazer,
sensações, incômodos, familiaridades e estranhamentos, os espaços e as relações de poder em
um contato autêntico, marcado pelo encontro com a alteridade. Sugerindo grandes
possibilidades no campo dos estudos organizacionais brasileiros, esta perspectiva já foi
mobilizada como elemento chave em pelo menos dois textos. Na homenagem à Professora
Neusa Cavedon, Fantinel e Figueiredo (2019), o afeto foi o eixo condutor da práxis
acadêmica, estabelecendo relação de produção de conhecimento engajado, atento, sensível e
crítico. Teixeira (2019), por sua vez, refletiu sobre como os afetamentos do seu encontro com
o Professor Alexandre Carrieri foram fundamentais em sua inserção do ponto de vista
identitário no campo dos estudos organizacionais.
Após esta breve introdução, apresentaremos a cartografia e o rizoma. Em seguida
discutiremos a Teoria do Afeto ou abordagem afetiva, propondo o corpo como mediador da e
na pesquisa para, em seguida fazer o imbricamento entre as duas formas de pesquisa teórico-
metodológica, o que precede as considerações finais.
O Rizoma e a Cartografia
29). Isso significa que cartografar é identificar as linhas que compõem o rizoma. O decalque
é a repetição, é a cristalização das linhas estruturantes (Deleuze, 2018). Em outras palavras
“se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação
ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o
constrói” (Deleuze & Guattari, 2011, p. 30). Nessa perspectiva, o mapa é movimento na
medida em que está em constante mutação.
Haesbaert (2012) explica que o território tomado por Deleuze e Guattari é composto
por uma sobreposição que se inicia com o território etnológico, passa pelo território
psicológico para alcançar o território sociológico e atingir o território geográfico, formando o
território da subjetivação, que culmina em “pragmaticamente, toda uma série de
comportamentos, de investimentos, nos tempos e espaços sociais, culturais, estéticos,
cognitivos” (Guattari & Rolnik, 1996, p. 323). Uma noção de território que “emerge como um
eterno fazer-se e desfazer-se, compondo um rizoma, uma rede de relações, que se autoproduz
por agenciamentos com os mais variados elementos da realidade, aos quais se conecta e
reconecta a todo instante” (Romagnoli, 2014, p. 128) em puro movimento (Haesbaert, 2012).
Em termos deleuzianos, os territórios formados a partir das relações, no sentido da troca, entre
homem e natureza. Este território não é um pedaço de mundo em seu sentido material,
tampouco um espaço próprio no consciente coletivo – partimos da premissa que o consciente
coletivo está baseado na cognição humana do reconhecimento da existência de um outro com
diferenças e aproximações possíveis no plano da imanência que provocam efeitos no plano de
organização. Em suma, trata-se de um território psicossocial, mas ainda territorial, um
território “topológico-relacional” (Rolnik, 2018, p. 49).
O que se faz não é procurar extrair a verdade do real no campo de pesquisa, mas evitar
o reducionismo da complexidade da vida (Deleuze & Parnet, 1998). A cartografia então “é
um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os movimentos de
transformação da paisagem”, propondo o regresso da experiência, voltar à práxis, às artes de
fazer, uma bricolagem (Rolnik, 2006, p. 23). Para isso se apropria de técnicas amplamente
utilizadas em pesquisas, mas a partir de algo maior que o poder da observação, e superior ao
que a linguagem é capaz de reproduzir. Sua recomendação é sentir utilizando os dispositivos:
o corpo para captar o sentido; o sentimento ponderando e sendo ponderado pela
racionalização; e a pesquisa como instrumento de interpretação. Sugere que o pesquisador se
aventure por territórios desconhecidos, desafiando especialização e especialistas, e que se
permita afetar e ser afetado, experimentando a reflexividade da e na pesquisa.
É nesse sentido que o corpo de cartógrafo se relaciona com os princípios de conexão e
heterogeneidade presentes nos agenciamentos coletivos de enunciação nos quais é possível
“conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às
ciências e às lutas sociais (Deleuze & Guattari, 2011, p. 23). O que se intenciona é conectar
corpos em algo maior que a linguagem e seu regime de signos diferentes, mas sim em
afetamentos que se dão em variados campos de forças constituídos por afetos e
acontecimentos. Nesse jogo, o corpo funciona como condutor destes afetos de modo que a
“violência vivida no encontro entre um corpo e outros desestabiliza-o, colocando a exigência
de invenção de algo que venha a dar sentido e corporificar essa marca: um novo corpo, outro
modo de sentir, pensar, um objeto estético ou conceitual” (Liberman & Lima, 2015, p. 185).
Construir este corpo de pesquisador “implica um dobrar-se sobre si, e envolve a invenção de
dispositivos que apontam para o cuidado de si: dobrar a linha... num movimento de resistência
e luta contra os modos de assujeitamento (Liberman & Lima, 2015, p. 190).
A complexidade dos fenômenos sociais exige ainda uma quantidade maior de
dispositivos articulados entre si. Tedesco, Sade e Caliman (2013) apresentam a entrevista
como uma ferramenta que possibilita o acesso a um plano de compartilhado no campo das
experiências. É no manejo cartográfico da entrevista que a flexibilidade de transformar uma
3
XI Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD - EnEO 2022
On-line - 26 - 27 de mai de 2022 - 2177-2371
“coleta” de dados ou de informações em uma conversa mais aberta se torna uma possibilidade
na pesquisa. Acreditamos ser neste ponto que relações de proximidade são construídas,
fazendo surgir a troca de uma escuta sensível e interessada. As palavras ditas não representam
algo: são experiências vividas e sentidas pelos entrevistados, não havendo “separação entre
modos de dizer e o dito (expressão e conteúdo)”, conforme Tedesco, Sade e Caliman (2013, p.
204): as falas carregam em si afetamentos próprios da experiência relatada.
[...] não tem uma dimensão apenas, um sentido certo, ele toma forma, todas às
vezes, numa dinâmica plural. Nós não sabemos qual é a significação, pois o afeto
escapa à captura por uma palavra, não se pode dizer “os afetos são isso”, senão,
vamos perder o poder de mudar, a potência de transformar. Se tem uma definição
possível, uma definição muito velha, é aquela oferecida por Spinosa: “o poder de ser
afetado e de afetar”. [...] nós não sabemos o que é o afeto, mas ele vai se manifestar
por intensidades, velocidades, desejos, abatimentos, de muitas variadas maneiras.
tendo como ponto de partida a reflexividade. Para tanto, Moriceau (2020, p. 16) descreve a
criação desta metodologia como uma arte em três gestos, comunicacionais, políticos e éticos:
o primeiro é se expor, uma vez que o contato e a surpresa permitem ao pesquisador captar as
experiências realizadas, afastando-se da necessidade de comprovação de hipóteses ou de
controle. O segundo é caminhar, estar aberto a mudanças de percurso teórico-metodológico,
mantendo o questionamento acionado. O terceiro gesto é pensar e refletir, pois fugir das
pesquisas tradicionais tem de vir acompanhado de questionamento contínuo sobre a escolha
de teorias e autores. “Assim, ‘ser em pesquisa’ envolve aprender, mover-se, pensar, entender
o contexto, refazer, individuar-se e não apenas posicionar-se, modelar, representar”
(Moriceau, 2020, p. 17).
A escrita performativa e plural também faz parte da pesquisa acionada pelos afetos,
uma vez que é importante que o texto escrito “converse” com o leitor, convertendo-o em parte
importante do texto, afastando-se da “mimesis para se aproximar de uma poiesis” associando
estilo e teoria (Moriceau, 2017, p. 208). Nesta escrita há um imperativo ético na origem da
escrita, no qual podemos identificar, de forma indissociável, pesquisador, sujeitos de pesquisa
e leitores. Quando se escreve, é relatado um encontro que suscitou perguntas e respostas; o
leitor aparece como quem questiona e julga o que foi escrito de modo que escrita é realizada
dentro dessas três relações umas com as outra, em três relações éticas, caracterizada por uma
forma de descrever e de desencadear a reflexividade (Letiche & Moriceau, 2018).
Além do que é dito e do que não é dito, o texto, uma vez escrito recruta mais recursos
performativos: imagens, música, ritmos, entonações, vestimentas, gritos, respirações;
transforma-se em presença viva. É assim que faz nascer algo novo em uma pesquisa que não
se explica, nem julga, mas que convoca à reflexão implicando o leitor para que seja possível a
construção de interlocuções assimétricas, mas não hierárquicas, atravessadas por afetos e
afetações. “A escrita não é resultado, a escrita é ação performática, feita no momento em que
aquilo que eu sei conversa com o que o outro me diz e essa fricção produz o texto. É nesse
lugar que o texto se faz [...] A escrita não é um relatório do vivido, mas sua fabricação, sua
fabulação” (Moriceau, 2020, p. 51-55), de modo que estaria mais próxima dos agenciamentos
de enunciação que vão se reterritorializar a partir das narrativas refeitas no texto.
Reduzidas a uma forma de comunicar o resultado de pesquisas, as escritas tendem a
representações e, por isso, “afastam a experiência vivida, cristalizam as dinâmicas, fixam os
lugares, impõem um ângulo de visão ou uma narrativa, atribuem o papel central a seu autor”
(Moriceau, 2017, p. 205). Reconstruir o texto a partir do afeto leva a uma direção que
privilegia elementos da vida comum, narrando como aspectos próprios de uma vida ordinária
formam e transformam os sujeitos ao revelar suas capacidades de afetar e serem afetados.
Conforme Pessoa, Marques e Mendonça (2019, p. 8), são estudos dirigidos às “intensidades e
banalidades das experiências comuns; que olham atentamente para as experiências íntimas,
aquelas que estão carregadas de emoção, que são percebidas no corpo e nas relações
interpessoais e, portanto, que se inscrevem em um tempo e um lugar específico”.
A análise baseada nos afetos passa pela possiblidade de criação de vínculos nos
atravessamentos da empiria com o território pesquisado em diferentes contextos com os
leitores e a própria experiência do pesquisador (Moriceau, 2017). Nesse sentido, cabe ao
pesquisador expor certas situações vividas como quem aceita um desafio e se aventura num
contar-se, tal qual as mulheres de Margareth Rago (2013), de uma forma que se assemelha a
narrativas de histórias transmitidas sem preconceitos ou modulações, um contar que se coloca
mais próximo da oralidade que da escrita.
A partir do afeto, pesquisador e “pesquisados” são dispostos lado a lado, em uma
posição vulnerável de abertura e de recepção, dando passagem à sensibilidade, transformando
em conhecimento singular a estética do conhecimento, momentos de intensidade repletos de
significado, de algo que se possa descobrir ou compreender. Contudo, por “sua dupla
5
XI Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD - EnEO 2022
On-line - 26 - 27 de mai de 2022 - 2177-2371
afetamentos, significa aceitar que cada pensamento conduz a uma nova criação, a outro
rizoma e seus agenciamentos, e que somente podemos tentar identificá-los e mapeá-los.
Considerações Finais
8
XI Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD - EnEO 2022
On-line - 26 - 27 de mai de 2022 - 2177-2371
organização, assim, são bem mais complexas do que a racionalidade econômica alcança, o
que demanda novos lastros para a análise organizacional.
Do ponto de vista teórico, se faz sentido pensar que a cartografia e a teoria dos afetos
desafiam perspectivas estáveis e ordenadas de ontologia e epistemologia, as formas pelas
quais as organizações e sua dinâmica podem ser explicadas se multiplicam na proporção em
que as diferenças permitem olhares plurais baseados em vivências. Isso justifica teóricos
explicando as organizações a partir de referências raciais, sexuais, de gênero, de aparência, de
idade, de classe social e assim por diante. Bem sabemos que teorizações desse tipo já existem,
mas podem ser potencializadas quando se assume a centralidade das diferenças, isto é, como
elementos constitutivos de todos os seres humanos, o que impede que qualquer perspectiva
seja tomada como “referência” e outra como “alternativa” para o que quer que seja. As
diferenças enfatizam as existências, problematizando, por exemplo, pensar no econômico de
forma reificada, pois não há economia sem uma sociedade que a crie, mantenha e desenvolva.
Referências
Barreto, R. O. (2018). Cartografia dos modos de ser da velhice e do trabalho rurais no Médio
Vale do Jequitinhonha. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, Brasil.
Barros, L. M. R. & Barros, M. E. (2013). O problema da análise em pesquisa
cartográfica. Fractal: Revista de Psicologia, 25(2), 373-390.
Deleuze, G. (2018). Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Deleuze, G. & Guattari, F. (2011). Introdução: rizoma. In G. Deleuze & F. Guatarri. Mil
Platôs: capitalismo e esquizofrenia (pp. 17-49). São Paulo: 34.
Deleuze, G. & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta.
Fantinel, L. D. & Figueiredo, M. D. (2019). A experiência acadêmica do afeto, ou memórias
(e interlúdios) de nosso aprendizado com Neusa. Farol – Revista de Estudos Organizacionais
e Sociedade, 6(17), 836-860.
Guattari, F. & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.
Guidi, D., Moriceau, J.-L., & Paes, I. (2019). Sobre viver. In S. C. Pessoa, A. S. Marques, &
C. M. C. Mendonça (Orgs.). Afetos: pesquisas, reflexões e experiências em quatro encontros
com Jean-Luc Moriceau (pp. 9-23). Belo Horizonte: PPGCOM/UFMG.
Guimarães, B. M. A. (2019). Os afetos religiosos na vida de um pesquisador em religião no
Brasil. In S. C. Pessoa, A. S. Marques, & C. M. C. Mendonça (Orgs.). Afetos: pesquisas,
reflexões e experiências em quatro encontros com Jean-Luc Moriceau (pp. 113-134). Belo
Horizonte: PPGCOM/UFMG.
Haesbaert, R. (2012). O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Letiche, H. & Moriceau, J.-L. (2018). An interview with Alphonso LINGIS. Society and
Business Review, 13(3), 254-257.
Liberman, F. & Lima, E. M. F. A. (2015). Um corpo de cartógrafo. Interface, 19(52), 183-
194.
9
XI Encontro de Estudos Organizacionais da ANPAD - EnEO 2022
On-line - 26 - 27 de mai de 2022 - 2177-2371