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UM COMENTÁRIO SOBRE GERASA, A CIDADE
DA DECÁPOLIS .
MARISA BÁLSAMO STEINBERG
Instrutora da Cadeira de História da Civilização Antiga e Medieval da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Num remoto e quieto vale, junto às montanhas de Gilead, ex-
tendem-se as ruínas de Gerasa (Jerash atual), cidade da Decápolis . Sente-se seu poderio através de suas ruas e monumentos em bom estado de conservação: um dos mais complexos de cidade provincial romana. Construída junto a um vale percorrido por um riacho, o Chrysorhoas, cujas margens se apresentam cheias de álamos e no- gueiras, verdes e refrescantes, enquanto as montanhas vizinhas redu- zem-se a uma áspera aridês . Gerasa fica a duas horas de Aman (capital atual da Jordânia, antiga Filadelfia dos ,romanos), via Sweleh (vila ao sul de Gerasa), ou um pouco mais distante, via Mafraq . A anterior é uma rota agra- dável aos olhos, pelas montanhas, cruzando o rio Zerka (o bíblico Jabbok), circundando uma "floresta" de pinheiros que cobre as montanhas de Ajloun. Daí contempla-se as ruínas, tendo o Arco do Triunfo em primeiro plano . A outra rota nos mostra aspectos do de- serto oriental, entre Zerka e Mafraq. Estando a mais ou menos 570 metros acima do nível do mar, cercada por terras de pastagens e campos férteis, perto de um curso de água (onde outrora existiu uma densa floresta), foi ocupada em tempos muito antigos (Pré-história — Paleolítico e Neolítico) mas nada se sabe exatamente por falta de provas . Talvez tivesse ela an- teriormente nome diverso. A primeira ocupação do local talvez tenho sido por um povo semita (amoritas ou amonitas, mais ou menos no século XVII a. C.) ou por nabateus-árabes . Seria uma pequena vila, exposta à influência grega. Reza a tradição que Alexandre-o-Grande, estabeleceu um desta- camento de veteranos no local. Surge posteriormente duas hipóteses: uma, que a cidade teria sido fundada por Antígono e outra, que atribui a fundação da mesma ao general Pérdicas no IV século a . C. — 198 —
Depois da batalha de Ipsus (301 a . C . ) os Ptolomeus são
senhores da Palestina e Gerasa fica sob o seu contrôle como cidade do distrito administrativo dos amanitas . A influência helenística no local é intensa, daí, por exemplo, a transformação da vizinha Rabbath •Ammon na cidade helenística de Filadélfia (sob o reinado de Ptolo- meu II, 285-246 a . C. ) . Com Antíoco III (223-187 a. C.) surge o contrôle selêucida ocasionando a criação de Antioquia sôbre o Chrysorhoas (que seria Gerasa) onde ela é definitivamente estabelecida. Foi instalada uma guarnição selêucida no local. O templo de Zeus talvez tenha sido edificado nessa época. Escavações feitas no local mostram alças de jarros de Rodes e a presença de todo o Panteão grego. Nos fins do II século e comêço do I século a . C . temos as pri- meiras referências históricas sôbre Gerasa, mencionadas pelo histo- riador judeu Flávio Josefo . Relata a ocupação do local pelo tirano de Filadélfia Teodoro ou seu pai Zeno Cotilas, nos últimos anos do século II a . C . E outros tiranos sucessivos que fazem do local de- pósito seguro de seus tesouros . Teodósio perde o contrôle de Gerasa depois do cêrco de Alexandre Janeu, sumo-sacerdote e rei dos judeus (102 a 76 a . C . ) . Gerasa caiu sôbre a influência de um govêrno judeu centralizado, fato que a prepara para a formação de uma liga com outras cidades romanas das proximidades . Permanece em mãos judias até a chegada de Pompeu, quando passa a pertencer à Pro- víncia da Síria . Este foi o ponto alto da vida da cidade, como posto avançado da civilização ocidental. Logo ,Gerasa torna-se membro da Confederação das cidades li- vres, conhecido como Decápolis (10 cidades reunidas) . Até hoje continuam incertos os propósitos dessa confederação . Até a- primeira metade do século I a . C . viveu a cidade um pe- ríodo de paz . Teve um florescente comércio em contacto com os nabateus (muitas moedas do rei Aretas IV foram encontradas) . So- fre, também, a influência nabatéia na arquitetura, cerâmica, religião . . . Encontram-se pedras gravadas com o tipo nabateu crowstep, justificado com a arquitetura local; capitéis nabateus, cerâmica do tipo sigillata . Inscrição bilíngüe, quase ilegível, em nabateu e grego referente ao templo do deus sagrado Pakidas (o deus árabe) são en- contradas na cidade . Deduz-se que êsse deus seja Dushara (Dionísio para os árabes) o mais importante dentro da religião nabatéia . Ins- crições encontradas nas vizinhanças da Catedral e do Pátio da Fonte, sugerem a existência de um antigo templo de Dionísio no local, com seu rito pagão. Inscrições encontradas nas vizinhanças do Forum e do templo de Zeus mostram-nos que no século I a . C ., a cidade extendeu-se no — 199 —
máximo, do templo de Zeus à Catedral. Mas nada se pode afirmar,
até que novas escavações sejam feitas no local. Gerasa participa do progresso econômico-social com o estabele- cimento da Pax Romana. Com sua posição previlegiada torna-se cen- tro de rotas de comércio que se dirigem para o mar e para o Norte; para o mar e para o Sul (como outrora fôra a Petra nabatéia) . Um compreensivo plano da cidade foi traçado, baseando-se no que podemos ver da rua das colunas e das outras duas ruas que se cru- zam (os cardo cruzados em ângulos retos pelas decumani) com as duas Tetrapilon (norte e sul) . Nenhuma mudança justificável foi feita em seu plano até sua fase decadente . Uma inscrição no portão noroeste mostra que a muralha da cidade completou-se em 75-76 a. C., fixando assim os limites para o desenvolvimento da cidade . O nôvo templo de Zeus foi começado em 22-23 d . C . e perma- neceu em construção até 69-70 d . C. , ajudado por presentes de ricos cidadãos . O teatro do sul, próximo ao templo, elevou-se ao mesmo tempo, o velho templo de Artemis foi embelezado com um pórtico e provido de uma piscina, e algures erigiu-se um santuário para o Im- perador Tibério . Essa grande atividade construtiva continuou até o II século quan- do o imperador Trajano extendeu as fronteiras do Império Romano, anexando o reino dos nabateus (106 d . C . ) . Forma-se a nova Pro- víncia da Arábia, onde inclui-se a Decápolis, dominada pela II Le- gião Cirenáica, com o legado C . Claudius Severus . Constroi-se um sistema de altos caminhos que incluia não só a fronteira da Acaba à Bostra (que corre até o leste de Gerasa) mas também grande número de estradas são reconstruídas no estilo romano. Mais conhecida torna-se a cidade e muitos dos edifícios construí- dos no I século são quase totalmente reconstruídos, mais elaborados com estruturas ornamentais . Duas enormes thermae são construídas, representavam o club life da época. O imperador Adriano visita a cidade no inverno de 129-130. Isso foi motivo para novas- construções e um Arco do Triunfo foi erigido em sua homenagem . Seria esta a idade do ouro da cidade, um grande programa de construções, ampliação de ruas do Forum para ,, o templo de Artemis e' substituição das colunas jônicas das ruas por modelos coríntios . O templo de Artemis com grandes acessos a leste e suas grandes saídas (portas) foi dedicado em 150 da nossa éra . O templo de Zeus (nova construção) foi erigido em 163; o Nimphaeum em 191. Muitas inscrições da época mostram altares, pedestais, está- tuas, edifícios, oferecidos por cidadãos ricos . Outras inscrições mos- tram a existência de sacerdotes para o culto do imperador vivo, ou- — 200 —
tras têm o nome de governadores, oficiais, e soldados da III Legião
Cirenáica e da X legião Gêmina . No século III Gerasa foi favorecida pela proclamação do Cons- tituto Antoniniana (212) e pela elevação a título de colônia com o nome de Colonia Aurélia Antoniniana. Daí em diante Gerasa sofre uma decadência gradativa . A des- truição de Palmira e o desenvolvimento do reino dos sassânidas (no Iraque) pôs fim ao comércio em grande escala e desviou muitas rotas do leste. Cidades como Gerasa, sentiram êsse efeito . O enfraqueci- mento do poderio romano e o instinto pedratório dos árabes começam a atuar sôbre elas . Com Dioclesiano, os sassânidas são derrotados e num curto pe- ríodo novas construções surgem em Gerasa . Inscrições da época fo- ram encontradas na base de pedestais, colunas, etc. Na metade do IV século Gerasa foi uma grande comunidade cris- tã, surgem a Catedral e o Pátio da Fonte, como se pode ver nos relatos feitos por Epifânio . Referências são feitas à representação dos cris- tãos de Gerasa no Concílio de Selêucia, em 359, pelo bispo Exerésio . O bispo Planco representou-os no Concílio de Calcedônia em 451, tempo em que o Cristianismo tornou-se religião oficial da cidade . Igrejas são construídas, como a dos Profetas apóstolos (464- -465) e a igreja dé São Teodoro (496) . Com Justiniano (531 a 565) muitas igrejas são construídas, assim como edifícios públicos, com uma superficial aparência de beleza . Os centros mais importantes da época eram as igrejas. Uma thermae especial foi construída pelo bisbo Placo, ao lado da igreja de São Teodoro, para o uso de seus paroquianos (talvez uns dos primeiros exemplos de limpeza diante' do sagrado) . Tôda uma beleza e confôrto em relação às habitações em geral (que eram feitas de forma muito rudimentar em relação às do período romano) . Os grandes edifícios e templos possuiam beleza e confôrto requintados . A última das igrejas construídas data de 611 e a invasão persa em 614 assinala o princípio do fim da cidade . Os únicos vestígios dessa invasão são as pilastras do goal, construidas no Hipódromo para o jôgo de polo. A conquista muçulmana, mais ou menos 635, completa o de- clínio da cidade . Uma série de tremores de terra destruiram muitas igrejas e edi- fícios, sem que os mesmos fôssem reconstruídos. A igreja de São Teodoro é um bom exemplo disso . O abandôno foi gradual . Em 720 o califa Iazide II baixou um decreto pelo qual tôdas as imagens e re- tratos de bronze, madeira, pedra ou colorido, deveriam ser destruídos em seus domínios As paredes internas dos templos mostram sinais — 201 —
de fogo (sistema, pelo qual, foram destruídos) . Êsse estado de coisas
continua até o estabelecimento, pelos turcos, em 1878, de uma colônia circassiana . Gerasa continuou pouco explorada e até hoje está por ser esca- vada.