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Humberto Sauro Victorino Machado

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Humberto Sauro Victorino Machado

Medicalização e medicina de família e comunidade: memórias de um médico de favela

Rio de Janeiro
2020
Humberto Sauro Victorino Machado

Medicalização e medicina de família e comunidade: memórias de um médico de favela

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Saúde Pública, da Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca,
na Fundação Oswaldo Cruz, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Saúde Pública. Área de concentração:
Políticas Públicas, Gestão e Cuidado em
Saúde.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Alves Melo

Rio de Janeiro
2020
Medicalization and family and community medicine: memories of a slum physician

Catalogação na fonte
Fundação Oswaldo Cruz
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde
Biblioteca de Saúde Pública

M149m Machado, Humberto Sauro Victorino.


Medicalização e medicina de família e comunidade: memórias
de um médico de favela / Humberto Sauro Victorino Machado. --
2020.
100 f. : il. color.

Orientador: Eduardo Alves Melo.


Dissertação (mestrado) – Fundação Oswaldo Cruz, Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2020.

1. Medicalização. 2. Medicina de Família e Comunidade.


3. Atenção Primária a Saúde. 4. Saúde da Família. 5. Sistema Único
de Saúde. I. Título.

CDD – 23.ed. – 362.12


Humberto Sauro Victorino Machado

Medicalização e medicina de família e comunidade: memórias de um médico de favela


Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Saúde Pública, da Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca,
na Fundação Oswaldo Cruz, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Saúde Pública. Área de concentração:
Políticas Públicas, Gestão e Cuidado em
Saúde.

Aprovada em: 11 de maio de 2020.

Banca Examinadora

Prof.a Dra. Paula Gaudenzi


Intituto Fernades Figueira - Fiocruz

Prof. Dr. Gustavo Corrêa Matta


Escola Nacional de Saúde Pública - Fiocruz

Rio de Janeiro
2020
Para Cissa e Toni
Que um dia recompense as desculpas sob alegação de
cansaço de seus pais
AGRADECIMENTOS

À Larissa, que convive com meus defeitos e mesmo assim, mais próxima de
qualquer um, os tolera pelas tolices do amor.
À Ana Beatriz Victorino Machado, que assim descuidada deixou escapulir em um
café da manhã, que o irmão derramava poesia no chão, sem saber que ele de soslaio
escutava.
À Natália Nunes, voraz leitora do mundo, dos amigos, que assim espontânea,
estimula toda atividade criativa em seu entorno.
A Alfredo de Oliveira Neto, que assim, como um entusiasta nato, nos faz acreditar
que algumas estórias e ideias outras devam ser ventiladas.
A Adelson Guaraci Jantsch, que por tudo se interessa genuinamente, e assim
inquieto, co-produz com todos nós.
A Guilherme Tritany que compartilha sentimentos e leituras e assim, com
afetividade, nos transcende.
À Ana Paula Melo Dias, que assim de uma maturidade à frente dos nossos tempos,
significa um grande encontro para quem com ela esbarra.
A Daniel Gonzaga, quem trouxe ainda mais pra perto, por entender que assim
verdadeiro, busca como eu, as mesmas frustrações.
À Paula Gaudenzi, que mesmo antes da era pandêmica, e assim dedicada, tornou a
distância para o aprendizado, relativa.
À Dandara Morais, que assim meticulosa, revisou, corrigiu e aperfeiçoou toda a
matéria.
A Eduardo Alves Melo, que assim cuidadoso, me conduziu por uma jornada de
descoberta acadêmica e para muito além, pessoal.
“[...] eu tinha de gritar em furor que a
minha loucura era mais sábia que a
sabedoria do pai, que a minha enfermidde
me era mais conforme que a saúde da
família, que os meus remédios não foram
jamais inscritos nos compêndios, mas que
existia uma outra medicina (a minha!), e
que fora de mim eu não reconhecia
nenhuma ciência, e que era tudo uma
questão de perspectiva, e o que valia era o
meu e só o meu ponto de vista.”
RADUAN NASSAR, 1975, p. 87.
RESUMO

O fortalecimento da atenção primária é um dos grandes focos de atores e


instituições do SUS no Brasil, tendo na estratégia saúde da família uma aposta de mudança
do modelo tecnoassistencial. Como parte de equipes multiprofissionais com perfil
generalista na APS/ESF, a medicina de família e comunidade (MFC) é a especialidade
eleita por diferentes atores, cada vez mais, para atuar nesse âmbito de assistência,
considerando a grande porta de entrada para o sistema de saúde. A medicalização constitui
um complexo fenômeno pelo qual, na ânsia ou a partir da justificativa de proteger e cuidar,
a medicina, de certa forma, atropelaria os direitos das pessoas. Esse paradoxo foi
exaustivamente estudado em especialidades como a psiquiatria, a medicina preventiva e em
especialidades cirúrgicas e intervencionistas, porém pouca atenção se deu à sua expressão
na MFC, por se entender que essa especialidade teria uma resistência intrínseca à
medicalização. Não convencido completamente dessa oposição concreta, o autor pretendeu,
neste trabalho, através de sua experiência como médico de família, dissecar situações e
vivências que remontem ao encontro entre a medicalização e a MFC. Para isso, partiu-se de
uma abordagem inspirada na cartografia e na autoetnografia que produz e processa uma
análise de memórias “pessoais”, utilizando cenas e outros formatos de narrativas, com o
objetivo de refletir sobre a medicalização na medicina de família e comunidade. A
problematização do vivido evidenciou alguns elementos potencialmente medicalizantes na
MFC, como a pressão assistencial, a protocolização de condutas, o (não) reconhecimento
da capacidade de autodeterminação do outro (pobre) e a legitimidade-autoridade das
práticas médico-sanitárias. Algumas práticas desmedicalizantes, racionalmente pensadas
(enquanto intenção de prevenção quaternária) ou improvisadas (a partir da sensibilidade-
intuição), apareceram com problemas e êxitos. O caminho percorrido produziu menos
conclusões inequívocas do que visibilidade para linhas de força e tensões, quiçá novas
interrogações.

Palavras-chave: Medicalização, Medicina de Família e Comunidade, Atenção Primária a


Saúde.
ABSTRACT

The strengthening of primary care is one of the main focuses of the Unified
National Health System actors and institutions in Brazil, with the family health strategy
(ESF in Portuguese) betting on changing the techno-assistance model. As part of
multiprofessional teams with a generalist profile in primary health care (PHC) / ESF,
family and community medicine (MFC in Portuguese) is the specialty chosen by different
actors, more and more, to act in this area of assistance, considering a great gateway to the
healthcare system. Medicalization constitutes a phenomenon for which, in the eagerness or
from the justification of protecting and caring, medicine, in a way, would run over people's
rights. This paradox has been extensively studied in specialties such as psychiatry,
preventive medicine and in surgical and interventionist specialties, but little attention has
been paid to its expression in the MFC, as it is understood that this specialty is an intrinsic
resistance to medicalization. Not completely convinced of this concrete opposition, the
author intended, in this work, through his experience as a family physician, to dissect
situations and experiences that go back to the meeting between medicalization and MFC.
Tehreunto, we started with an approach inspired by cartography and autoetnography that
produces and processes an analysis of “personal” memories, using scenes and other
narrative formats, with the objective of reflecting on medicalization in family and
community medicine. The problematization of the experience showed some potentially
medicalizing elements in the MFC, such as assistance pressure, the conducting of protocols,
the (non) recognition of the other (poor) capacity for self-determination and the legitimacy-
authority of medical-sanitary practices. Some demedicalizing practices, rationally thought
out (as an intention for quaternary prevention) or improvised (based on sensitivity-
intuition), appeared with problems and successes. The path followed produced less
unambiguous conclusions than visibility for lines of force and tensions, perhaps new
questions.

Keywords: Medicalization, Family and Community Medicine, Primary Health Care.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Modelo de hipóstes das relações entre Medicalização pg. 85


e Medicina de Família e Comunidade.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

APS Atenção Primária à Saúde

ACS Agente Comunitário de Saúde

ESF Estratégia Saúde da Família

MFC Medicina de Família e Comunidade

mfc Médico(a) de Família e Comunidade

NASF Núcleo de Apoio a Saúde da Família

PMM Programa Mais Médicos

SBMFC Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

SUS Sistema Único de Saúde


SUMÁRIO

1 PRÓLOGO..................................................................................................... 12
2 HISTÓRIA PREGRESSA E IMPLICAÇÃO ATUAL............................... 14
2.1 TRAJETÓRIA................................................................................................. 14
2.2 (DES)ENCONTROS COM A MEDICALIZAÇÃO....................................... 16
3 NOTAS SOBRE METODOLOGIA............................................................. 18
4 SABERES-PODERES E A MEDICALIZAÇÃO....................................... 27
4.1 DO SABER LEIGO......................................................................................... 27
4.1.1 Do Antiprotocolo............................................................................................ 29
4.1.2 Saúde Médico-Especialista-centrada........................................................... 30
4.1.3 Autonomia para Auto-medicalização?........................................................ 32
4.1.4 O embate entre o saber técnico e o saber leigo........................................... 33
4.2 DO MEIO MEDICALIZANTE....................................................................... 35
4.3 DA AUTORIDADE SANITÁRIA.................................................................. 39
5 “A MEDICALIZAÇÃO NOS SETTINGS DA MFC”............................... 44
5.1 NO AMBULATÓRIO...................................................................................... 44
5.2 NA VISITA DOMICILIAR............................................................................. 47
5.3 NA GESTÃO................................................................................................... 49
6 ATRIBUTOS E ROTINAS EM CRISE...................................................... 51
6.1 PESARES SOBRE A COORDENAÇÃO DO CUIDADO............................. 51
6.2 DO PROCESSO DE TRABALHO DO MÉDICO DE FAVELA................... 55
7 A DISTOPIA COMO UM ENSAIO SOBRE A MEDICALIZAÇÃO E
A MFC............................................................................................................. 61
8 MEDICALIZAÇÃO E MFC: EM BUSCA DE UMA TEORIA............... 72
8.1 A CONSTITUIÇÃO DA MEDICALIZAÇÃO NA MODERNIDADE.......... 72
8.2 BREVE APANHADO DE FORMULAÇÕES SOBRE A
MEDICALIZAÇÃO........................................................................................ 75
8.3 MEDICALIZAÇÃO NA APS E MFC............................................................ 79
8.4 ANÁLISE POLÍTICA DA MFC EM UM HORIZONTE
MEDICALIZADO........................................................................................... 82
8.5 DEZ HIPÓTESES SOBRE MEDICALIZAÇÃO E MEDICINA DE
FAMÍLIA E COMUNIDADE......................................................................... 83
9 EPÍLOGO....................................................................................................... 86
REFERÊNCIAS............................................................................................. 89
ANEXO - UMA ENTREVISTA INUSITADA............................................. 96
12

1 PRÓLOGO

“Não existe nada na mente que já não tenha passado


pelos sentidos”
John Locke

Pensando em conduzir o leitor por uma viagem cujo roteiro o próprio autor
desenhou, faz-se importante explicar a partida, contextualizar as paradas e antecipar de
algum modo a chegada. Grande parte dessa estrada se dará sob céu cinza e chuvoso. É um
passeio sob os olhos de um viajante inquieto, não de um deslumbrado, numa tentativa de se
reacomodar para, então, começar a se fustigar outra vez.
Foi um exercício de quebrar um par de encantos com a minha escolha profissional,
de minha esposa e dos alunos para os quais tenho me esmerado em convencer a percorrer
esse mesmo caminho.
Como pesquisa do ponto de vista tradicional, não fui ao campo. Os extratos dessa
fase são memórias e reflexões, elaborações fabulosas que funcionarão como analisadores.
São produtos sem enquadramento, métrica ou padrão de coleta. Não podem nem mesmo ser
agrupados em uma mesma categoria. Toda essa matéria é, então, regurgitação dos dez anos
de trabalho no campo da medicina de família e comunidade (MFC), sazonalmente assolado
pela medicalização.
Adotei como médico de favela o personagem que vagueia nas cenas. Escolhi essa
denominação por ser aquela que desenvolvi, ao longo dos anos, para explicar a terceiros a
“mística” por trás da minha atuação profissional. Foi a maneira mais curta (e talvez grossa)
que alcancei para esclarecer a função, o compromisso da extensa e, até então, estranha para
leigos e mesmo para médicos, nomenclatura de médico de família e comunidade (mfc). Ao
responder “médico de favela”, as perguntas abertas eram inibidas na sucessão do diálogo.
Não por querer encerrar o assunto, esconder a trajetória, envergonhar-se do título. Não por
ironia, por glorificação de um compromisso social, mas para me fazer compreender.
Também para me diferenciar da prática no setor privado, que não pode ser contemplada por
minhas andanças e vice-versa.
Optei também por não nomear os pacientes, acompanhantes e demais atores. Assim,
os homens são tratados como moços e as mulheres, moças, ou ainda, senhores, senhoras,
Ele ou Ela, sempre de maneira genérica. Não para calar as personagens, mas talvez para
evitar estereótipos que tratam com humor os nomes reais dos pobres e favelados na
oralidade das estórias.
13

O esqueleto do ensaio está dividido em seis partes. Este prólogo, seis capítulos e um
epílogo. No capítulo I, pormenorizo minha trajetória desde o término da graduação em
medicina até o presente, a fim de contextualizar a construção do objeto neste mestrado
profissional.
No capítulo II, são inseridas notas sobre a metodologia, procurando demonstrar
como elementos da autoetnografia e da cartografia foram empregados na elaboração
textual.
No terceiro capítulo, três cenas são empregadas para ilustrar desdobramentos
distintos do fenômeno a depender do cenário. Retratam o vir à tona do saber leigo no
primeiro encontro, em seguida uma atmosfera medicalizante que não permite condutas
outras e, por fim, o médico na pele de uma autoridade sanitária na comunidade.
No quarto capítulo, dando prosseguimento às interfaces entre Medicalização e
MFC, outros settings de ocorrência da medicalização são explorados: o cenário do
ambulatório, o da visita domiciliar e o da gestão.
No quinto capítulo, trato das rachaduras em pilares teóricos. De como princípios e
atributos de uma política pública sofrem mediações e choques de diferentes tipos ao
aterrissar no plano da vida organizacional e cotidiana. Na primeira cena, a coordenação do
cuidado é analisada sob um prisma que revela uma metamorfose desse dogma.
Profissionais imbuídos da responsabilidade de coordenar o cuidado, mesmo que envoltos
das melhores intenções, podem reforçar práticas medicalizantes. A segunda cena aborda o
processo de trabalho do médico de favela, as possibilidades de leitura do arquétipo de
consultório e analogias díspares desse espaço com a oficina e o artífice. Nessa crônica, a
medicalização está por trás de uma das principais agonias do médico de família e
comunidade: a alta pressão assistencial.
No sexto capítulo, a cena compartilhada assume um formato diferente: trata-se de
uma distopia. Em País Sem Médicos, as circunstâncias ficcionais permitem um
remodelamento único do binômio sociedade-medicina.
O sétimo capítulo é uma última parada, na qual busco construir um texto teórico
sobre medicalização e medicina de família e comunidade.
No epílogo, trago algumas marcas do campo em mim, as modificações promovidas
por este estudo no médico de favela.
No anexo, uma entrevista inusitada traz quatro questões provocativas sobre poder
que são respondidas pelo personagem principal.
14

2 HISTÓRIA PREGRESSA E IMPLICAÇÃO ATUAL

2.1 TRAJETÓRIA

“Sabemos de quase nada adequadamente, de poucas


coisas a priori e da maioria por meio da
experiência”.

Gottfried Wilhelm Leibniz

Aos dezenove anos, querendo prestar vestibular para jornalismo, cursou medicina
por influência do pai neurologista. A não pulsátil paixão por escrever se atenua na fase de
descoberta da medicina de família e comunidade, que acolhe bem os corações amolecidos
pelas ciências humanas. Desloca-se junto com a companheira para o interior do estado do
Ceará, no nordeste brasileiro, movidos por fuga urbana, desejo de interiorização/ruralização
e descoberta de outros brasis.
Aficcionado por tecnologias de baixa densidade com potencial de atingir grande
resolutividade, dedica grande parte do seu tempo ocioso, por exemplo, em filas de pão e
banco a pensar em processos inovadores. De maneira que tenta expandir cada vez mais o
leque de serviços de sua unidade, a fim de representar um ideal de atenção primária forte,
onde se faz de tudo. Muitas dessas ações representam procedimentos, pequenas cirurgias,
porém, há um entendimento, de sua parte, que atividades na comunidade, de grupos, de
práticas integrativas e complementares, devam fazer parte desse processo. Essa aparente
prática subespecializada deve-se ao fato de que a medicina procedimental é mais valorizada
pelo meio acadêmico da graduação — o qual tentou arduamente persuadir dia após dia, em
seu contato com os alunos — em detrimento de uma prática clínica pautada na sabedoria e
cultura. Esse proselitismo e a busca incessante por resolutividade arrefeceram nos últimos
anos, pois se tonara uma forma de propaganda algo desonesta.
Crê que nenhum outro campo da medicina seja mais propício para uma revolução
nos cuidados, para atender ao novo conceito de saúde que elege o modelo biopsicossocial.
Não espera dos psiquiatras a ruptura com a indústria farmacêutica, ou de qualquer outra
especialidade médica práticas não corporativistas, de despreocupação ao protecionismo de
mercado, posicionamento contra o ato médico, simpatia e adesão em massa a movimentos e
lutas sociais ou engajamento político na defesa da saúde pública, salvo exceções de
profissionais iluminados como seres humanos que se encontram dispersos em todas as
15

áreas. Por isso, com orgulho, enquanto a medicina de família e comunidade, no Brasil, é
tida como prima pobre e alternativa das carreiras médicas, há quem aposte que é a
vanguarda do pensamento médico.
O capitalismo, acredita, envenenou princípios de todas as áreas, do cinema ao
futebol, não deixando escapar a medicina. Resgatar uma atuação médica generalista não
vinculada diretamente ao retorno financeiro como grande êxito, mas à defesa das vidas e
realidades locais, fixando-se em um serviço, tornando-se “folclórico” após décadas de
dedicação àquela mesma região e povo, são valores que procura inspirar. Ao longo dessa
iniciativa, também enxerga como meta sedutora o compartilhamento do conhecimento entre
as profissões como prática fundamental para o trabalho em equipe, além de estimular a
autonomia dos profissionais de saúde “não médicos” e dos pacientes.
Essa coleção de impressões se deu em grande parte num itinerário do médico de
favela que começa com a residência em medicina de família e comunidade, no município
de Sobral, interior do Ceará, preceptor de internos da graduação de cursos de Medicina e,
depois, como médico de família e comunidade e preceptor de programa de residência
médica, na cidade do Rio de Janeiro, por seis anos. Nos últimos dois anos, também exerceu
função de coordenador dessa residência médica, além de supervisor de outros médicos
intercambistas no interior do estado do Rio de Janeiro, no âmbito do Programa Mais
Médicos para o Brasil (PMM)1.
Reter conhecimento teórico-prático é universal no meio médico e uma medida
crucial para exclusividade de prestação de serviços e comercialização de cuidados em
saúde, daí o seu interesse particular em banalizar — no sentido de desmistificar —
procedimentos médicos cada vez mais banhados a ouro e inacessíveis. Sua atuação é mais
voltada para a micropolítica, microsociedade, e seus esforços são direcionados para
mudanças no território de abrangência de sua clínica 2, que cobre uma população de
aproximadamente quarenta e cinco mil pessoas no Complexo de Favelas do Alemão, em
Ramos, Rio de Janeiro.
No primeiro dia do seu novo e último emprego, disse que ficaria até quando
octogenário e, desde então, segue firme e provocador. Vive o momento mais crítico do

1O PMM foi lançado em julho de 2013 com a Medida Provisória nº 621, posteriormente convertida na Lei nº
12.871, em outubro de 2013. Foi baseado em evidências que apontavam para um cenário de escassez de
médicos no País, sobretudo na Atenção Primária à Saúde. (SILVA; CECILIO, 2019)
2
Na cidade do Rio de Janeiro, com a reforma da APS iniciada em 2009, no governo Eduardo Paes, as
unidades básicas de saúde do SUS passaram a ser chamadas de Clínicas da Família, com uma completa re-
estruturação, incluindo novo desenho arquitetônico, composição da equipe de gestão e alterações legais
(CAMPOS et al., 2016).
16

ponto de vista da administração pública municipal e, assim, já se vão oito anos de um


projeto de vida e legado, acreditando piamente que as crises e os tempos difíceis farão de si
ainda mais apaixonado.
Pensa o quão incrível ser pai, esposo, filho, irmão, doente, pode se relacionar tão
diretamente com sua profissão e influenciar seu trabalho de maneira tão sensível, sendo a
recíproca verdadeira. Cartografar trechos dessa experiência em intensidades e platôs mais
reflexivos, sovando antigos afetos, acredita ser uma grande reinvenção pessoal e uma
possibilidade de produzir algum conhecimento encarnado, quiçá encantado.

2.2 (DES)ENCONTROS COM A MEDICALIZAÇÃO

Tendo se deparado ao longo de sua jornada com Nêmesis da Medicina (ILLICH,


1975), recebeu a leitura de maneira indigesta:

A Nêmesis da medicina é mais que a soma de todas as faltas profissionais,


negligências, cinismo de casta, injusta repartição dos cuidados decretada pelos
médicos, invalidez por diktat médico. É mais que a degradação malsã das
estruturas sociais pela supermedicalização tentacular. E mais ainda que o
encorajamento médico da impotência do homem diante da dor, da doença e da
morte. A Nêmesis da medicina é autodesregulagem institucional do homem
diante do pesadelo. É a expropriação do querer viver do homem por um serviço
de conservação que se encarrega de mantê-lo em estado de marcha para benefício
do sistema industrial (ILLICH, 1975, p. 161).

O mestrado mostrou-se uma oportunidade para reatar com aquela dor mal resolvida.
Sete anos após a publicação do ensaio supracitado sobre a expropriação da saúde, Illich
traria considerações que refletiam uma possível desmedicalização da sociedade por parte
dos médicos generalistas, em discurso proferido no Royal College of General Practitioners,
em Londres:
Falamos sobre medicalização porque, talvez incorretamente, acredito que os
clínicos gerais sob o sistema britânico estão em posição de revertê-la. Eles têm
uma função ambígua: eles podem contribuir mais efetivamente do que o
especialista para medicalizar ainda mais a vida, ou apoiar a tendência oposta
(ILLICH, 1982, p. 467).

Portanto, para além de discutir o conceito e suas manifestações na ambiência da


Atenção Primária a Saúde (APS) e MFC, o próprio Illich já havia enunciado o principal
conflito sobre o qual pretendemos nos aprofundar no cenário brasileiro. Seria a MFC uma
defensora de uma tendência oposta ao fenômeno, favorecendo a retomada da autonomia das
pessoas, ou apenas mais uma força motriz da medicalização?
17

Quando lhe foi sinalizado que o estudo do tema revolveria de alguma maneira suas
entranhas, desmereceu tal preocupação. Em verdade, o despertar de qualquer desconforto
era bem-vindo para servir de fio condutor a um processo de elucubração. Mas, a partir da
leitura da sociologia médica edificadora do conceito de Medicalização, e com a tarefa de
associar o fenômeno ao terreno da medicina de família e comunidade e a atenção primária
em saúde, sem deixar de também colocar no banco dos réus a saúde pública e o Sistema
Único de Saúde, as náuseas subiram como maré.
Viu-se a produzir um material potencialmente nocivo, amargo, envolvendo
instituições já fragilizadas, sendo um tanto quanto covarde por questionar políticas e
práticas que, se outrora gozavam de credibilidade, perspectiva de expansão e consolidação
paulatina em âmbito nacional, agora sofriam constantes ameaças e investidas de desmonte.
O produto de uma jornada acadêmica em saúde pública deve servir para refletir
sobre questões que afligem a sociedade, no sentido de rever a política, a gestão e a
assistência, procurando sempre melhores caminhos para medidas que afetam e modificam a
vida de milhares de pessoas. O alinhamento governamental que o país assumiu nas últimas
eleições obstaculiza aquilo que parecia inconteste, que uma atenção primária forte
conectada ao conjunto das redes é a base de um sistema de saúde público e universal.
Assim, por mais que o exercício de desconstruir axiomas, de interrogar verdades,
seja atividade legítima quando da realização de um mestrado, a recente reviravolta no
contexto sóciopolítico brasileiro, acredita, pervertera sua dúvida de pesquisa, trazendo certa
sensação de sadismo e traição de causa.
Apesar do inoportuno momento para investigar possíveis falhas e desacertos,
excessos e disrupções, relacionados a um controle social em parte policialesco por parte do
modelo assistencial em vigor na atenção primária, o pessimismo e a acidez advindos do
conviver corporativo atingiram um nível que transborda na escrita.
A ideia de estrangular a carreira que escolheu para forçá-la à confissão sob tortura
quanto à sua culpa em ser mais um instrumento de imperialismo e dominação será sempre
com uma esperança. De, ao apertar com toda a força, dela, resistindo ainda entre risos,
sarcástica e, quando já gemente e suspirosa, ouvir com dificuldade declarar um
inconfundível: — “Inocente!!!”
Este trabalho busca, a partir de inserções e experiências singulares do autor, refletir
sobre encontros e desencontros da MFC com o fenômeno da medicalização.
18

3 NOTAS SOBRE METODOLOGIA

Quando falo de autoetnografia, pego emprestada parte da definição de Santos


(2017), que o faz com clareza:

[...] o que caracteriza a especificidade do método autoetnográfico é o


reconhecimento e a inclusão da experiência do sujeito pesquisador tanto na
definição do que será pesquisado quanto no desenvolvimento da pesquisa
(recursos como memória, autobiografia e histórias de vida, por exemplo) e os
fatores relacionais que surgem no decorrer da investigação (a experiência de
outros sujeitos, barreiras por existir uma maior ou menor proximidade com o
tema escolhido, etc.). Dito de outra maneira, o que se destaca nesse método é a
importância da narrativa pessoal e das experiências dos sujeitos e autores das
pesquisas, o fato de pensar o papel político do autor em relação ao tema, a
influência desse autor nas escolhas e direcionamentos investigativos e seus
possíveis avanços (SANTOS, 2017, p. 261).

A abordagem autoetnográfica é em grande parte concebida para dar voz a


pesquisadores que se engajam em lutas políticas e atravessaram locais e posições de
opressão social. O médico, o profissional mais bem remunerado das equipes de saúde
(apenas por isso, já se sabe da magnitude de sua valorização em todos os círculos sociais),
elege um objeto que é algo como uma onda de influência da sua instituição também
hegemônica. Pensa, este médico, em tatear e questionar, com o utensílio do método
autoetnográfico, uma realidade que a priori é de acomodação, conforto e superioridade.
E a resposta é que, longe de se vitimar no espaço que ocupou e que traz em contos,
o mergulho em sua experiência pessoal e profissional é uma tentativa de se chacoalhar,
como marionete carreada por essa onda. É por acreditar que, rechaçando o corporativismo
da classe, não terminará como muitos dos seus pares que se aposentam sem nunca terem se
sacudido sobre a possibilidade de terem selado a carreira tendo passado uma vida inteira
como instrumento de manutenção de um status quo aprisionador e mantenedor de
iniquidades, sendo caneta e carimbo contra o povo.
A opção de caminho utilizado neste trabalho também tem traços cartográficos, por
apostar na inversão etimológica da palavra metodologia, priorizando os caminhos antes das
metas (PASSOS, 2010).
As cenas e situações escolhidas para funcionarem como matéria-prima deste
trabalho, aqui adotadas como uma tentativa de tradução e operacionalização singular da
autoetnografia e da cartografia, o foram a partir de dois movimentos: o eco que provocam
em mim e sua relação com o fenômeno da medicalização.
19

Assim, para um sujeito que reconhece sua lembrança como legítima e verdadeira,
malgrado o desacordo com os “fatos”, a única forma de examinar e avaliar a
experiência mnêmica é instaurar um ponto de vista supraindividual que possa
julgar a experiência subjetiva: um ponto de vista de terceira pessoa que é social
(PASSOS, 2010, p. 114).

Acredita-se no pensamento e na sua convulsão filosófica como uma ferramenta


preciosa para a pesquisa social. Uma vez frente a frente com um episódio que transparece
traços da Medicalização, fragmentá-lo em passos, em tomadas, para que seja possível
realçar as nuances entremeadas no natural da clínica. Assim como o faz Rolnik (1989), em
Cartografia Sentimental - Cartografias do Desejo, que nos conduz à uma cena de flerte da
personagem noivinha por diferentes ângulos, no estalar das claquetes, ora através das lentes
artificiais da câmera, ora com a imperfeição realística dos próprios olhos, em diferentes
velocidades, destrinchando todos os movimentos das personagens e nos fazendo notar o
imperceptível sobre o que move o desejo e como nosso corpo vibrátil ressoa interpretando
cada cena.
A escolha por cartografar é também pelo exercício parcimonioso de tentar
desmanchar a paisagem e acessar um movimento que está presente o tempo todo, por meio
de mínimos detalhes, mutações, numa dinâmica. Por isso, talvez coubesse parar e observar
com um olhar mais sensível o que para outros passa despercebido e até mesmo para o autor
era ignorado.
Procurei em alguma medida dialogar com crenças, princípios e discursos da MFC.
Não em uma tentativa de imputar, em cada situação analisada, o selo denunciatório de uma
prática medicalizante, pois correria o risco de aplicar uma abordagem dicotômica e
maniqueísta, pouco contributiva para o debate. Em vez disso, pretendi problematizar
nuances, tensões deste processo, não necessariamente coerentes ou operadoras de um
sentido e efeito único.
A princípio, pensei em trabalhar estritamente com o passado, com uma memória
remota. No entanto, as memórias recentes que se constroem a partir de encontros do
presente também foram incluídas, afinal o autor continua na sua rota com suas vivências
ainda mais atento a conexão com o tema.
A evocação de memórias é apresentada em diferentes formatos: desde cenas em
narrativas de tom lírico a pílulas, que constam em textos menores com descrição mais
objetiva.
O trabalho de resgate de memórias e seu preparo fica melhor fundamentado na
colocação de Pelbart, em seu artigo sobre a arte de instaurar novas formas de existência:
20

O desafio vital que se coloca a cada um de nós, pois, não é emergir do nada,
numa criação exnihilo, mas atravessar uma espécie de caos original e “escolher,
através de mil e um encontros, proposições do ser, o que assimilamos e o que
rejeitamos” (PELBART, 2014, p. 251).

Não se deixa de advogar pelas memórias que me imprimiram marcas, que


compartilho atravessadas pelo âmago do objeto que parece a tudo tocar. Defendo, como ato
criador, a arte de instaurar vida em lembranças refletidas por uma nova crítica a fim de
permitir reações distintas a eventos do passado. Nesse percurso, foi preciso navegar em
outras disciplinas, como a antropologia, dramaturgia e filosofia, reconhecendo em autores
como Saada, Pelbart, Santos, Passos e Rolnik uma preciosa trilha de um método capaz de
trabalhar com o tratamento de três grandes dimensões: prática clínica, memória e
experiência.
Em Ser Afetado, Jeanne Favret-Saada (2005) revela um método inovador de se
praticar a etnografia. Estudando a feitiçaria entre o campesinato francês, na década de 1990,
nos brinda com uma coragem no campo que difere daquilo empregado por estudiosos que
se dedicaram previamente ao tema. Saada permite enfeitiçar-se, experimentar os rituais,
deslocar-se da frieza do papel de cientista que paga informantes, distribui questionários
pasteurizados e redige impressões de um cético. Ao se arriscar nesse mergulho, reporta:

Pois então, eles falaram disso comigo somente quando pensaram que eu tinha
sido “pega” pela feitiçaria, quer dizer, quando reações que escapavam ao meu
controle lhes mostraram que estava afetada pelos efeitos reais – freqüentemente
devastadores – de tais falas e de tais atos rituais. Assim, alguns pensaram que eu
era uma desenfeitiçadora e dirigiram-se até a mim para solicitar o ofício; outros
pensaram que eu estava enfeitiçada e conversaram comigo para me ajudar a sair
desse estado. [...] Os materiais recolhidos são de uma densidade particular, e sua
análise conduz inevitavelmente a fazer com que as certezas científicas mais bem
estabelecidas sejam quebradas (SAADA, 2005, p. 157).

De alguma forma, o sistema de crenças da feitiçaria apresenta lugares que podem


ser análogos a postos de atuação em meu estudo sobre “o sistema de fé da medicalização”.
O sítio em que me vi após a graduação me coloca nesse puxo-empuxo, fazer-desfazer,
medicalizar-desmedicalizar. Assim, as cenas em que sou feiticeiro ou desenfeitiçador são
expostas ao longo da trama.
Cumpro também a tarefa de me oferecer em sacrifício para poder relatar as
vivências por outro ângulo, o de medicalizado, o de enfeitiçado. Não em um novo
experimento, mas em um esforço de trazer as lembranças.
21

Ocorre-me a vontade de trazê-las não em cenas com início, meio e fim, porque o
passado não nos visita com essa linearidade, mas em lapsos e fragmentos. Os contatos com
a medicalização, quando estive desarmado, serão agora descritos com toda a inconsistência
de um sonho, com saltos e regressões, de quando estive nessa outra posição.

Pai Nosso

Eu e minha irmã mais velha estamos ajoelhados na sala. Eu tenho em torno de seis
anos de idade, ela dez. Não é uma brincadeira. É uma prece. Nossa vó carola ficou
surpresa como desde os quatro eu já era capaz de recitar o Pai Nosso, a Ave Maria e o
Credo. Minha irmã me chamava para o quarto dela todas as noites, pois tinha medo de
dormir sozinha no escuro, e me adiantava a catequese.
Mamãe, ao se deparar com a atípica formação da dupla, questiona. Interrompemos
a oração e a professorinha responde:
— Estamos rezando para ele não voltar.
Ao que minha mãe retruca:
— Ele é doente, crianças!

Esse quadro rememora a infância atormentada por um pai alcoolista. Enquanto a


mãe sustenta um entendimento de transtorno orgânico, um vício biológico, os filhos a
contestam e profanam a origem do distúrbio como sendo um desvio moral, uma
deformidade da personalidade. Como podemos perceber, a medicalização apresenta uma
vertente, muitas vezes, que acoberta e desculpa. Pode ser um rótulo bem-vindo, inclusive
batalhado, reivindicado a duras penas (GAUDENZI, 2016). Autismo e alcoolismo são
capítulos distintos na história da medicalização. Enquanto a primeira condição luta para
construir uma nova narrativa de aceitação sobre neurodiversidade ou normalidade diversa, a
segunda entidade podemos situar junto da pedofilia, quando advogados apelam para a
designação da perversão como doença.
Na escalada da Medicina angariando desvios comportamentais para sua tutela, as
mudanças das nossas noções sobre punição e responsabilidade moral conduziram ao
deslocamento de distúrbios e transtornos vários da alçada do direito e da religião para seus
domínios. E, aqui, o envolvimento crescente da Medicina é por muito tempo
inquestionável, uma vez que favorece a desestigmatização de muitos problemas humanos.
22

A psiquiatria adentrou as cenas forenses, sendo consultada para discernir sobre estados
mentais mórbidos e desvios de caráter.
Vejamos que o cerne da questão não é a avaliação dos aspectos positivos e
negativos deste juízo sorvido agora do bálsamo de uma neurociência, mas a relevância
crescente dessa disciplina na tomada de decisões. O que está sendo colocado, então, é a
convocação do olhar médico para uma sorte maior de problemas sociais, sobre os quais
antes a Medicina não contribuía ou opinava, uma vez que não havia a promessa de uma
suposta melhor condução (ZOLA 1972).
De fato, a psiquiatria ou a camisa de força, outra cena inesquecível, nunca ajudou
papai com sua bengala etílica. Esse assombro da medicalização que está presente em
momentos marcantes na história de vida pessoal do autor, não deixa de transparecer em sua
vida profissional como médico de favela. Em uma infinidade de encontros, essa
manifestação se dá: como quando foi presenteado ou glorificado por mero cumprimento do
seu dever; quando buscou ser resolutivo, transpor barreiras, para depois ver-se desmesurado
em seu afã por procedimentos; ou ainda quando sentiu que sua assinatura era o selo, a
outorga para tão pouco; ou seus conselhos virgens por demais requisitados. Ao longo do
trabalho, o conflito vem à tona em uma série de cenas descritas e problematizadas.
Dando prosseguimento à tarefa de colher, garimpar, filtrar e recontar:
23

Sombradiagnóstica3

Aos um ano e nove meses, ela era uma fofura. Nós dois, médicos, não esperávamos
dádiva maior, naquela tenra idade, do que toda a delícia que esbanjava um bebê com
várias dobrinhas nas pernas. Em visita a casa de minha irmã, meu cunhado me mostra um
vídeo de um garotinho de dois anos, filho de amigos da família, com um comportamento
diferente, gritos e agitação no berço, sem fofura alguma. O menino tinha quase a mesma
idade de nossa filha e recaía sobre ele a suspeita de autismo.
A mesma sombra não demorou a me cobrir. Naquele domingo, retornando de
viagem, as perguntas começaram a sufocar. Fofura descarta autismo? Breve pesquisa na
internet coloca em minhas mãos questionários de triagem. Sua filha tem contato visual,
olha nos olhos por mais que alguns segundos? Sua filha atende pelo nome? Aponta quando
quer pedir algo? Brinca de maneira instrumental com seus brinquedos? Procura os
amiguinhos no parquinho? Não. Não. Não. Não. E não, fofura não descarta Transtorno do
Espectro Autista.
Compartilho com minha esposa. O vídeo, os questionários, as impressões e os
receios. Testamos a nossa filha. No colo, converso com ela rosto a rosto, seu olhar é vago
e me atravessa, não se comunica com meu semblante, independente das minhas caretas e
emoções. Chamamos por todos os possíveis apelidos e alcunhas, não torce o pescoço.
Vasculhamos as recordações. Uma foto de nós sentados numa sessão do supermercado, ela
ao meu lado no chão do estabelecimento. Eu estou vaidoso da sua habilidade metódica em
separar treze latas de leite por cores, equidistantes e com precisão. No questionário, esse
feito incrível traduz-se em comportamento repetitivo, obsessão por padrões e rotinas fixas.
Pontua contra ela. Outras fofuras gravadas em que agita os braços como uma foquinha
excitada com bolhas de sabão se encaixam, agora, nos trejeitos estereotipados do

3
Falamos, então, de sobrediagnóstico, de diagnóstico como um erro prognóstico. No sobrediagnóstico, não há
erro de diagnóstico. Por exemplo, em três situações típicas de sobrediagnóstico: se é câncer de tireóide, é
câncer de tireóide; se é uma mutação da hemocromatose, é uma mutação da hemocromatose; e se é embolia
pulmonar, é embolia pulmonar. Em outras palavras, o superdiagnóstico não é um "falso positivo". O que é
falso é o prognóstico associado ao diagnóstico. E com esse erro, o dano de rotular (e intervir) ocorre sem
melhorar a qualidade de vida (às vezes piora) ou mudar a causa da morte. No primeiro exemplo, muitos
cânceres de tireoide são “histológicos” (eles não evoluem e às vezes retornam por conta própria); no segundo,
genes mutados com pouca “penetração” (e não causam doença clínica); e, no terceiro, a TC helicoidal permite
diagnosticar micro-embolia pulmonar “fisiológica”, sem nenhum impacto como patologia. O
sobrediagnóstico é um erro prognóstico. O sobrediagnóstico não ajuda a melhorar a qualidade de vida, nem
altera a causa da morte. O sobrediagnóstico não previne, cura ou alivia a doença e não ajuda a morrer bem. O
sobrediagnóstico vai contra os objetivos da Medicina (GERVÁS, 2013). No título da cena, o termo
Sombradiagnóstica é um neologismo do autor, que remete tanto ao conceito de Sobrediagnóstico quanto ao de
Espectro Autista, que possui critérios diagnósticos turvos e de margens imprecisas ou sombreadas.
24

diagnóstico. Minha esposa analisa tudo. Não digere em negação ou desespero. Com o
mesmo pragmatismo de sempre, agenda um neuropediatra.
A consulta é doída. A médica tem vasta experiência na área e confirma a suspeita.
Nossa filha não responde as interações com os chocalhos e o escore nos questionários e
marcos do desenvolvimento são aquém do esperado para a idade. Minha esposa desaba em
choro pela primeira vez. Nos abraçamos, enquanto ela segura a fofa na maca. Lembro de
uma fala da médica sobre os prognósticos de alto rendimento em uma tentativa empática:
— Ela poderá fazer até medicina, quem sabe, e ser a estranha da turma.
Uma segunda opinião de um psiquiatra não nega ou exclui a possibilidade. Não
nos ilude, mas acolhe melhor. Da segunda consulta, minha esposa não sai chorando. Liga
e agenda toda a nova agenda de terapias de reabilitação. É o que se pode fazer nesse
momento. Os resultados são imprevisíveis.
Em me recolho em dor interior. Passo a comer por obrigação e dormir por
exaustão. O trabalho me ocupa e me impede de prever cenários drásticos, em que minha
filha não verbaliza ou se automutila, em que não espelhará meu humor, minhas ironias ou
a coragem da mãe, porque seu afeto e sociabilidade habitarão outro mundo.
Ligo para a minha mãe, para fazer pirraça sobre aquela injustiça. Minha mãe sabe
que eu não merecia. E o melhor! Poderá sofrer em dobro por ser avó, assim tenho alguma
compreensão do meu sofrimento. Digo:
— Mãe, eu fiz tudo certo, venci na vida. Sobrevivi ao papai e a bebida, me tornei
médico. Levei minha irmã caçula fofa e Down no parquinho e por diversas vezes aturamos
os olhares e condenações das crianças “normais”. Agora começa tudo de novo? Quando a
vida fica boa?
Minha mãe não tem resposta, sempre teve, mas agora não. Seu choro é mais
convulso que o meu e entrecorta sua tentativa de fala. Aquilo me consola.
A fofa começa sua ciranda de terapias. São pelo menos seis horários semanais de
estimulação por semana.
Um colega que acaba de ter filho, sem saber da minha paternidade fraturada, me
diz:
— Porque você não disse que ter filho era tão bom?
Sorrio amarelo e desculpo-me por não ter lhe dado dica.
Mais magro, sorumbático, insone e dissociado, em torno de sete meses depois
minha esposa agenda uma consulta com um psicólogo.
25

Me confesso no divã. Ouço que é depressão. Saio e, ao chegar em casa, explico


para minha esposa que a consulta transcorreu bem, mas que eu reconheço como tristeza e
me recuso a medicar. Ela consente...

Agora eu. Agora minha família é afetada na condição de medicalizada, de paciente.


Fomos em certa medida tocados por esse poder. Revivo parte do itinerário terapêutico que
remonta ao diagnóstico precoce de minha primeira filha. Hoje, aos quatro anos, ela
apresenta cognição, fala e linguagem, bem como afeto e sociabilidade, sem rastros
autísticos. Enfim, tem desde piolhos a ciúmes do irmão mais novo.
Teve alta de todos os tratamentos, inclusive do psiquiatra. Foi uma decisão dos pais,
por não crerem que havia maior probabilidade da fofa desenvolver transtornos de ansiedade
e depressão na adolescência do que as demais crianças neurotípicas. Certos de que se o
cuidado preventivo para tal fosse o investimento em artes, ciência e cultura, no sentido de
prover um repertório de caprichos, a vida normal lhe permitiria ser exposta a tudo isso com
o maior incentivo e entusiasmo possível da família, não sendo necessária a curadoria por
um médico. Para tanto, a conduta mais acertada era abandonar o estigma.
Por ora, não podemos ter certeza se a fofa era uma maturadora tardia, se foi falta de
estímulo e muita tela e virtualidades, se apenas entrou na nebulosa do espectro e atravessou
aquela cortina de fumaça, se as terapias lançadas fizeram toda a diferença e a descoberta foi
a tempo, se o parto cesáreo retirou preciosas semanas de desenvolvimento neurossensorial
intraútero, se a mãe foi geladeira 4 e o pai privilegiou o trabalho e o lazer. Estudos recentes
sugerem que a herança genética5 parece ser a principal implicada.
Uma série de estudos tratam da mudança nos critérios diagnósticos e do aumento da
prevalência dessa desordem nas últimas décadas (HANSEN, 2015; IDRING et al., 2014;
STEINBERG, 2012). Em que pese o prognóstico favorável observado em curto prazo nesse
caso isolado, inevitavelmente remete aos pais a possibilidade de sobrediagnóstico.
Com essas duas histórias da vida do autor, nas quais é atravessado pela
medicalização, pretendi indicar um certo modo de praticar a autoetnografia e a cartografia,

4Durante os anos 50 e 60 do século passado, houve muita confusão sobre a natureza do autismo e sua
etiologia, e a crença mais comum era a de que o autismo era causado por pais não emocionalmente
responsivos a seus filhos (LEANDRO, 2018).
5
O escore de risco poligênico aplicado para TEA foi associado a características de TEA entre crianças da
população em geral. Os riscos genéticos para TEA podem estar associados a atrasos em alguns domínios do
desenvolvimento neurológico, como habilidades grosseiras de linguagem motora e receptiva (TAKAHASHI,
2020).
26

conjugando experiências que influenciaram na escolha do tema como uma tentativa de lhes
dar visibilidade e intensidade tal como vivida. Passaremos, no próximo capítulo, a um outro
platô dos encontros do médico de favela com o fenômeno da medicalização.
27

4 SABERES-PODERES E A MEDICALIZAÇÃO

4.1 DO SABER LEIGO


“O Homem nasce livre e por toda parte se encontra
acorrentado”
Jean-Jacques Roussseau

— Deixa que eu mesmo faço, Doutor!

O moço é açougueiro, vindo da Paraíba. Possui chagas nas pernas que lhe
atrapalham e muito a vida. Apesar dos 35 anos, apresenta veias incompetentes em fazer a
circulação dos membros inferiores fluir. Daí que evoluiu para a formação de úlceras de
estase pré-tibiais, ou seja, feridas de difícil cicatrização nas duas canelas. A bota do
trabalho roça bem nessas aberturas da pele. Somam-se a isso dores, secreção e chances de
infecção.
Comparecia à clínica três vezes por semana para a realização de curativos, tomava
seus remédios e batalhava junto a previdência social para manter-se apoiado pelo Estado.
Diante da lenta recuperação das lesões que mantinham seus bordos territoriais sem recuos
visíveis, optou-se por colocar outro tipo de bota do moço.
A bota de unna é um curativo a base de óxido de zinco que realiza uma compressão
das pernas, substituindo o papel das paredes e válvulas vênulares, facilitando o retorno do
sangue. Assim, a rotina do moço se modificou, porque o novo par de botas pode ser
trocado a cada sete dias e já na primeira troca observou-se um recorte menor das
sanguinolentas placas geográficas. Na segunda semana, o moço apareceu com a bota
modificada. Havia retirado a porção que cobria os pés e tornozelos, referindo incômodo. A
conduta imediata do doutor foi de repressão e julgamento como má prática, imaginando
que a violação da cobertura levaria a sua ineficácia. No entanto, se surpreendeu com novo
recuo das fronteiras ulcerativas.
A cada troca, o moço mantinha uma postura ativa ao suspender a perna para
facilitar o seu enfaixamento, cortar o esparadrapo, enrolar a atadura final de acabamento,
de maneira que o médico passou a prescindir de um ajudante durante o procedimento.
Apesar da evolução favorável, por vezes o encontro era dificultado pela sobrecarga da
agenda do médico e o moço esperava por até 4 horas até que ele pudesse se dedicar ao seu
caso.
28

Por volta da oitava troca, teve início um debate a partir de uma brincadeira dos
dois, na qual sugeria-se que moço, dado o grau de colaboração e a audácia de partir o
curativo, talvez pudesse realizá-lo sozinho em sua casa, desde que lhe fossem fornecidos os
insumos. Naquele dia, a hipótese terminou mesmo como uma piada. A regulamentação da
confecção da bota de unna exigia uma capacitação profissional em uma unidade
especializada, com dois turnos de treinamento prático e teórico, permitindo, pois, a
outorga através de publicação no diário oficial do município. Apesar de trabalhar de
avental branco, não ter medo de sangue, ser dotado de uma destreza para destrinchar um
boi inteiro em dezenas de cortes precisos com facas tão afiadas quanto bisturis, o moço
não parecia atender essas credenciais.
Naquele grande posto de saúde, dos vinte oito médicos, trinta enfermeiros e
quatorze técnicos de enfermagem, apenas dois profissionais tinham a licença, o que
restringia o acesso da população a um cuidado que mostrava resultados por demais
satisfatórios. Foi então que, em um dia caótico, de grande pressão assistencial e muitos
atendimentos, que o médico resolveu arriscar e, como contrabandista, o moço levou duas
caixas do rolo para calçar a si próprio.
Qual não foi a surpresa do médico na semana seguinte quando o açougueiro
encostado apareceu com botas de unna amputadas a sua maneira muito justas e bem
aplicadas. O trato continuou. Agora a liberação passara a ser quinzenal. Em contato
telefônico e por mensagens, o paciente enviava as fotos do seu progresso e recebia o aval
do seu fornecedor clandestino, até que se curou sozinho na décima sexta semana.

Uma análise mais distanciada da narrativa permite identificar, em seu bojo, quatro
elementos maiores que suscitam a discussão no universo proposto entre medicalização e
medicina de família e comunidade: 1) o antiprotocolo, exemplificado pela postura do
médico em prescindir da necessidade do profissional devidamente capacitado; 2) a
concentração de tecnologias, que envolvem um curativo secular cercado de entraves para
aumento de oferta à população; 3) a aposta na potência do paciente, por meio da migração
de uma tutela aprisionadora para uma tutela autonomizante; 4) o embate entre o saber
técnico e o saber leigo, ou a explícita diferença entre o modelo ideal e a prática eficaz,
presente entre a modelagem criteriosa na clínica e a adaptação da bota realizada pelo
paciente.
29

4.1.1 Do Antiprotocolo

A primeira dimensão encontra eco no texto de Cunha, quando discorre sobre os


problemas do protocolo tradicional:

[...] os protocolos herdam da instituição hospitalar o princípio de que o aspecto


biológico do Sujeito doente é o mais relevante para o sucesso do tratamento. Ou
seja, uma vez classificado o Sujeito como diabético, bastaria seguir corretamente
as instruções de exames e medicações que, automaticamente, obter-se-ia um
ótimo resultado (CUNHA, 2004, p. 151).

O médico, no entanto, não é um cientista de ambiente laboratorial ou um gestor de


gabinete, é um assistencialista constantemente atravessado por desfechos in vivo. Dotado de
uma observação crítico-reflexiva e de uma prática argumentativa, desfruta de suficiente
dose de autonomia para decisões compartilhadas, que o vínculo permite serem tomadas.
Ora, por que continuar preso a limitações burocráticas que, na prática, não se mostraram
ameaçadoras da integridade e segurança do(a) paciente? Se o mesmo se mostra capaz de se
autogerir e se autocuidar (como quando os incentivamos a, por exemplo, aplicarem insulina
sem depender de terceiros, a realizar exercícios fisioterápicos no domicílio), por que
deveriam se comportar como fiéis pacientes de uma sala de curativos, perdendo manhãs
inteiras, quando podem se remediar no conforto do lar?
No início, quando da implementação do novo serviço de bota de unna naquela
unidade, houve uma grande preocupação em relação a um curativo que se assemelhava a
um gesso, durava sete dias até nova avaliação e poderia ter complicações graves, como a
isquemia, por comprimir e reduzir o aporte de sangue através do fluxo arterial para a perna
afetada pela úlcera, seguido de dor excruciante e risco de necrose e amputação.
Pacientes, então, passavam a ser cuidadosamente triados para se tornarem
candidatos elegíveis. Uma entrevista e um exame clínico, incluindo a medida do índice
tornozelo braquial, que consiste em uma razão da pressão arterial dos membros superiores
sobre a dos membros inferiores, eram realizados para contraindicar o procedimento nos
pacientes com doença arterial periférica, nos quais os riscos poderiam superar os
benefícios.
Diante da impossibilidade de se calcular o coeficiente por razões técnicas, como
lesão na localização da ausculta do pulso ou outras alterações como edema e
dermatoesclerose, convencionou-se solicitar um exame complementar, como a
30

ultrassonografia com doppler arterial, para descartar a possibilidade dessa contraindicação


relativa.
Esse percurso metodológico da introdução de uma nova prática é retratado de
maneira resumida para que entenda-se como a instrumentalização protocolar é aplicada, no
início da operação, com todo o rigor científico e como ela se desmancha em suas diretrizes
ao longo da experimentação profissional, como também pela dos pacientes. Assim, são
infringidas as leis que regulamentam aquele procedimento não por preguiça, desleixo ou
qualquer outro motivo torpe, mas pela observação das reações em cada corpo e no conjunto
dos corpos, ou seja, na resposta idiossincrática dos indivíduos e na contemplação do
montante de resultados favoráveis como pelos insucessos na evolução das lesões ao se
olhar todo o grupo de pacientes.
Com isto, não se pretende justificar uma irresponsável oferta de serviço de saúde
baseado na tentativa e erro, mas compreender que um curativo, por mais que envolva
requisitos técnicos, sofre inevitavelmente variações a depender do operador que o
confecciona e do paciente que o utiliza.
Muitos dos pacientes, por exemplo, já haviam feito esse tipo de curativo em rede
privada com técnicas que, para não dizer um tanto quanto distintas, não empregavam o
repouso de pelo menos vinte minutos com o membro inferior elevado, reduzindo, assim, o
inchaço, uma etapa fundamental para ter êxito no enfaixamento compressivo. Essa é só
uma nuance que, a depender do julgamento, pode ser interpretada como erro por imperícia,
mas que aqui é colocada para demonstrar, e não defender, a heterogeneidade de emprego de
um cuidado relativamente simples.
A aparente ousadia de permitir ao paciente que aplique em si mesmo a bota é
minimizada pela rede de segurança que se constrói a partir do contato telefônico, da
possibilidade de envio de imagens, o que significa uma ampliação do acesso. Orientações
sobre a retirada do curativo diante de dor intolerável e o respeito sobre a condição de
prestar satisfação sobre o estado das feridas permitiram fortalecer essa rede e manter o
contrato social firmado naquela madura relação médico-paciente.

4.1.2 Saúde Médico-Especialista-centrada

Em um manual de condutas para úlceras neurotróficas e traumáticas, de publicação


do Ministério da Saúde, voltado para a reabilitação da hanseníase, é possível extrair duas
31

colocações que parecem se confrontar e realçam o tipo de conflito que o médico sentiu em
sua prática:
Esse procedimento é restrito a profissionais especializados e deve ser realizado
sob indicação médica.
Receita da bota de Unna: 100g de gelatina em pó, sem sabor e cor; 350ml de água
destilada; 100g de óxido de zinco e 400g de glicerina.

O médico sempre utilizou, em sua prática, botas de unna manufaturadas, adquiridas


pela secretaria municipal de saúde e distribuídas para poucas unidades com equipe
devidamente capacitada no rol de competências e percurso já exposto. Em muitas ocasiões,
os trâmites que envolviam a dispensação desse tipo de insumo – comprado via licitação,
estocado, e capilarizado conforme atendimento às normas, que exigem alimentação de
informações atualizadas sobre estágio evolutivo das lesões em um portal eletrônico –
muitas vezes conduziram a atrasos na renovação do pedido e impedimento das trocas,
retrocedendo na cicatrização e retardando a cura.
A advertência que sinaliza a restrição a profissionais especializados e a indicação
médica ilustra bem o grau de controle sobre o procedimento que, de medida ética,
regulamentar e técnica, em nossa análise, desvia-se para inimiga inerente do seu vicejar em
sociedade. Isto porque condiciona aos profissionais que não executam o procedimento a sua
indicação, impede aqueles reais responsáveis pelo desenvolvimento rotineiro de curativos,
os enfermeiros e técnicos de enfermagem, o seu empoderamento sobre o ato e isola em
subespecialistas, como cirurgiões vasculares e angiologistas, a tutela sob a perícia
prescricional, mitificando um unguento à base de atadura, óxido de zinco e gelatina, que
deveria ser arma do povo para lidar com seus machucados de décadas. Deve-se, ainda,
enfatizar outra interposição entre doente e o cuidado que a indústria farmacêutica faz ao
comercializar, sob a égide de marcas e patentes, marketing e propaganda, um produto de
matérias primas básicas e elevar o seu custo, torná-lo referência, condenando o preparo
artesanal do emplastro e, por fim, restringindo o acesso.
32

4.1.3 Autonomia para Auto-medicalização?

A transferência de tecnologia para usufruto dos pacientes em seus próprios corpos


pode ser considerada uma prática extremamente libertadora em determinados casos.
Algumas condições pró-trombóticas, ou seja, que favorecem a ocorrência de coágulos
sanguíneos, exigem a tomada de medicação anticoagulante ad eternum, como a warfarina,
o que, por sua vez, necessita de monitoramento constante, por meio de coleta de exame de
sangue (coagulograma), dado o potencial risco de sangramento que o fármaco causa.
A possibilidade de realizar esse mesmo teste por meio da obtenção de uma gota de
sangue capilar e de processar o resultado em aparelho doméstico (como no caso dos
glicosímetros empregados para hemoglicoteste usado por diabéticos no controle do seus
status glicêmico) foi um grande ganho de autonomia para os pacientes anticoagulados.
Assim, a posse, uso e manuseio de equipamentos e insumos médicos pelo usuário,
quando instruído e bem indicado, representa importante avanço no cuidado. Muitas vezes,
como no caso descrito, restringe-se a pequena parcela de pacientes devido ao custo elevado
no caso, a compra do aparelho e das fitas de aferição.
Mas, e quando essa tecnologia é barata e acessível, qual será o real ganho e
potencial dano? Ao longo do século XX, os pacientes detiveram em suas casas poucos itens
do arsenal médico para sua automedição, autodiagnóstico e autotratamento. O termômetro
de mercúrio para determinação da temperatura corporal e diagnóstico da Febre talvez tenha
sido o utensílio mais simbólico dessa incorporação doméstica. O uso do termômetro se
universalizou, adquirido nas farmácias sem autorização ou dispensação que dependesse do
aval médico. As pessoas eram, afinal, capazes de suspeitar da condição febril, um sinal,
entender a escala em graus celsius que acusava febre e até mesmo remediar diretamente
essa desregulação por meio de medicação antitérmica.
Talvez essa tenha sido uma das principais medidas de empoderamento popular a fim
de conter um sintoma tão comum e prevalente, com grande afetação de qualidade de vida,
capaz de provocar quadros agudos de deterioração do estado geral da pessoa e que passou a
poder ser remediado pelo pai, pela avó, vizinho ou pelo próprio doente febril. A
ambiguidade dessa independência é relembrada na releitura de Illich:

Finalmente, e mais importante, o que agora está sob o nome de autoajuda ou


autoatendimento, é um cuidado com tendência altamente ambígua. Atualmente, o
autocuidado é usado como uma etiqueta eufemística para muitos programas
lançados por profissionais treinar seus pacientes na automedicalização de suas
vidas: afira sua pressão arterial, sinta seus seios, teste sua urina, controle suas
33

calorias e faça a manutenção corpo como você mantém seu carro...o revendedor
de peças vai lucrar com isso. "Doctor yourself!" É o slogan final em um mundo
medicalizado (ILLICH, 1982, p. 470).

Se o termômetro foi o aparelho adotado como instrumental obrigatório do lar, trivial


do cotidiano, como panela de pressão ou chave de fenda, a peça hospitalar mais moderna
familiarizada a partir do século XXI foi o aparelho de aferição de pressão arterial. Com
isso, ocorre a vulgarização do seu emprego, as correlações clínicas e diagnósticas
inadequadas como visto em Gusso et al. (20196):

Frequentemente, as pessoas nomeiam seus sofrimentos diversos de “pressão


alta”, com indiscutível confusão entre os termos “hipertensão”, “tensão”,
“pressão” e “pressão alta”. Tensões e pressões de diversos tipos permeiam a vida
de todos, porém nem sempre são nomeáveis, mas a pressão alta nomeou as
anomias vivenciais. Esta observação também está fortemente assentada na
literatura, que consagra a HAS como fator de risco; doença; doença que não
causa sintomas, mas para a qual há tratamento; doença que passa a dar sintomas a
partir do diagnóstico, culminando em um “fator de risco sintomático” na
experiência de vida de cada um. Pesquisas qualitativas indicam que boa parte dos
indivíduos rotulados foi diagnosticada durante momentos de vida peculiares. É
frequente o relato de diagnósticos em pronto-atendimentos durante crises e do
uso indiscriminado do esfigmomanômetro automático durante eventos
estressantes do dia a dia. Além disso, na maior parte das vezes, a medida da PA é
feita de forma tecnicamente incorreta. (Gusso et al., 2019, p. 4176)

Como o médico já não é mais o carro-chefe do fenômeno, o perigo da


automedicalização está no fato do viver deixar de ser uma jornada contemplativa sobre o
conhecimento do próprio corpo, da vivência das dores e mediação dos riscos.

4.1.4 O embate entre o saber técnico e o saber leigo

Em “— Deixa que eu faço Doutor!”, é inequívoco o risco de delegar a um


subespecialista, o cirurgião vascular ou angiologista, a indicação de determinadas práticas
que acabam por ficar retidas a uma ou duas tipificações de profissional. Se a indicação
envolve esse tormento para o acesso, a execução também resvala em restrições, porque, se
o aval, o pretexto, a justificativa é um estorvo, a aplicação tende a se configurar como uma
regra de exceção.
A desconstrução introduzida pelo paciente que se mostra efetivamente capaz de
executar o curativo representa um questionamento ainda não respondido por aqueles que
defendem o trâmite de gabinete para a capacitação de profissionais na técnica, para aqueles
que defendem sua inércia assistencial protegidos por essa estagnação burocrática.
34

No serviço público, esses fluxos tornam-se ainda mais perversos, deixando os


pacientes que necessitam desse cuidado especifico em uma espécie de limbo. Não há
interesse do cirurgião vascular em se apropriar do procedimento, ele mesmo entende que se
trata de uma intervenção básica, devendo-se dedicar a abordagens mais complexas. A
doença venosa é uma das patologias mais prevalentes no mundo e consequentemente as
úlceras de estase por insuficiência venosa respondem por grande parcela desse tipo de
ferida. Se o único profissional chancelado para tal não tem a iniciativa de absorver a
demanda, bem como os demais médicos generalistas, angiologistas e enfermeiros não a
veem como uma atribuição, as úlceras ganham um contorno dramático de problema de
saúde pública. Esse hiato assistencial acontece como uma série de condições, nas quais o
subespecialista tenta repassar para o generalista, enquanto o mesmo, como num jogo de
empurra, não tem intenções de ganhar resolutividade. São, assim, os lipomas desprezados
pelos cirurgiões gerais, biopsia de pele retornadas por dermatologistas, transtornos mentais
comuns que batem nos CAPS e ricocheteiam na APS sem absorção dos casos. Para não
mencionar a população de negligenciados, esquecidos, evitados, como os decrépitos,
adictos, transexuais, presidiários, dialisados, paliativos, obesos mórbidos, soropositivos,
desalojados, superidosos, esquizofrênicos em cárcere privado ou acamados.
Negando-se a ser excluído, o moço pede para sair de uma tutela aprisionadora para
uma tutela autonomizante (MERHY, 1998) e rompe com esse jogo de empurra. Seu saber
leigo, sua sabedoria prática, mostra-se suficiente para uma prática eficaz, ainda que não
necessariamente o modelo ideal (LUZ, 2007).
35

4.2 DO MEIO MEDICALIZANTE

"Persistindo os médicos, os sintomas deverão ser


consultados"

Tom Zé

Aquele da Resignação

A moça é a sexta jovem no ano com sintomas ansiosos e depressivos. Sabendo


previamente do quadro, agravado por lesões cortantes em antebraço causadas por
automutilação, agendo para o fim do dia. Vem acompanhada do namorado, que aguarda
fora do consultório. O diálogo não flui bem a princípio. Penso que vou terminar com um
encaminhamento de gaveta para o serviço especializado em saúde mental, ou uma breve
canetada de antidepressivo. Até que ela resolve contar os tantos porquês. Não sei se foi por
uma janela de identificação, que atravessei com filmes e séries da cultura pop, que
palpitei, baseado no seu visual moderno com piercings e mechas fluorescentes, ou pelo
tempo que decorreu e o silêncio perdeu para a dor.
Ao fim daquela primeira consulta, a moça tem uma prioridade a ser atendida.
Precisa dormir. Não o faz há três dias, está a ponto de surtar por manter os olhos vígeis
nas madrugadas. Já teria feito uso de uma série de medicações sem sucesso. Opto por um
antigo psicótico com grande potencial sedativo. Construo uma alça de segurança com o
acompanhante, em relação a uma tomada escalonada e gradual de aumento da dose até o
efeito desejado.
A moça dorme, enfim. Me assusta o quanto dorme em mensagem telefônica. Mas
desperta e agradece. Tentará suicídio futuramente com a tomada de dez comprimidos, mas
já terá desenvolvido resistência o suficiente para a dose não alcançar uma toxicidade letal.
Os encontros continuam semanais ou a cada quinze dias, no máximo. Ajusto seu esquema
composto por três psicotrópicos. A especialista concorda com o coquetel. Ela não vincula
ao serviço de psicoterapia, sigo como sua referência assistencial.
Já são meses de acompanhamento, conversas sobre tatuagens e filhos, renovação
de receitas, acionamento da seguridade social, absenteísmo laboral. Uma frustração lateja
em mim. Não consigo ofertar muito além do que as pílulas que discordo desde a sua
farmacocinética até sua indicação, nem mesmo sua retirada.
36

O envoltório, aqui, é medicalizante, porque, apesar de o médico de favela conservar


uma descrença científica nos resultados do uso de psicotrópicos, como os inibidores da
receptação seletiva de serotonina (IRSs), no caso, a fluoxetina, acaba por agir de maneira
contrária e recorre frequentemente ao emprego dessa classe de drogas.
Está convencido, pois, de que os IRSs não possuem mecanismo de atuação
específico contra os transtornos depressivos, já que a droga seria a responsável por
provocar o desequilíbrio do neurotransmissor no cérebro, ao invés de corrigir (GOTZCHE,
2016; WHITAKER, 2017). Conduz-se, na verdade, a estados de abstinência em sua
retirada, que são interpretados erroneamente como recidiva da doença, o que produz uma
confusão em relação a etiologia dos sintomas e sedimenta a cronicidade dos quadros.
Está claro também para o médico de favela, como evidencia meta-análise
(LENZER, 2004), que medicamentos como a fluoxetina oferecem uma gama de efeitos
colaterais estimulantes, como insônia, agitação, agressividade e ataques de pânico, como
potenciais riscos, podendo levar a suicídios e violência, quando empregados no tratamento
de transtorno depressivo de crianças e adolescentes.
Na falta de recursos para a abordagem do sofrimento psíquico, na falta de tempo,
lança, o médico de favela, mão de uma conduta padrão, naturalizada nos ambulatórios
médicos, que consiste no enquadramento daquela melancolia como uma síndrome
depressiva e o direto acoplamento de um cuidado rápido e consagrado: a prescrição de um
fármaco. Mesmo que seja tal conduta legitimada através de marketing, fraude em ensaios
clínicos, compra de médicos especialistas e lobby político e jurídico ante escassez de
evidências sobre benefícios (GOTZCHE, 2016).
Se o uso desse esquema não era de todo um tratamento eficaz, na visão do médico
de favela, as alternativas que atendiam aos cuidados prescritivos, bem como suas
indicações protocolares e a concordância de colegas de referência na psiquiatria trouxeram
angústias outras. Em dado momento do acompanhamento da moça, optou pelo uso da
levomepromazina 25 mg, um antipsicótico típico com alto poder sedativo. A seara que
envolve o uso off label de psicotrópicos permite que utilizemos essas poções para um
quadro como o da moça. Apresentava insônia grave, estava há três dias sem dormir e o
efeito adverso da substância era o efeito desejado. A levomepromazina é uma droga da
mesma classe que a clorpromazina, o primeiro psicofármaco, descoberto por volta de 1952,
na busca por um anestésico potente para uso em cirurgias. Essa droga provou, em
laboratório, tornar ratos esfomeados e ariscos em animais inertes, dóceis, incapazes de
reconhecer estímulos dolorosos e refugar eletrochoques (WHITAKER, 2017).
37

Há uma grande discussão quanto a centralização dos transtornos mentais pela


disciplina da psicofarmacologia, que é de exercício exclusivo dos médicos. No entanto, o
aspecto chave que a cena deve nos remeter não é a crítica à eficácia dos antidepressivos ou
antipsicóticos, mas o médico de favela como refém de uma atmosfera medicalizante.
A escolha dessa memória deve-se a amarra a práticas que, mesmo diante da crítica
profissional, mesmo a partir de uma noção de maleficência, são condutas que voltam a se
repetir e, pelo contexto, seguem incólumes, apesar de toda a contestação que incitam. Caso
eu procure me ater a meus princípios, que orientam o uso parcimonioso desse tipo de
medicação, seria de suma importância, por exemplo, contar com outra sorte de recursos que
a rede falha em ofertar. Espaços adequados para a prática desportiva e de atividade física,
suporte de psicoterapia de fácil acesso, leque de práticas integrativas e complementares rico
com possibilidades de se realizar acupuntura, aromaterapia, fitoterapia, yoga e meditação,
musicoterapia, auriculoterapia, terapia em grupos e dentre outras (BRASIL, 2006).
Os dois primeiros fluxos representam caminhos pedregosos para meus pacientes. As
demais dependem de iniciativas acrobáticas dos profissionais, tanto no quesito busca por
capacitação nas referidas técnicas quanto na aplicação das mesmas dentro da agenda do
serviço. As equipes multiprofissionais dos Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF),
que se fundamentam no agregado de saberes da interdisciplinaridade para alcance da
integralidade e possuem um segmento destinado ao apoio em cuidados na saúde mental,
encontram uma dificuldade enorme de se consolidar como uma política pública, como um
dispositivo valorizado pela gestão na maioria dos municípios.
Para além da cultura da queixa que culpabiliza a fragilidade da rede, da escassez de
material humano com formação diversa, outros impulsos operam na ambientação do meio
medicalizante. O tempo de consulta que exige uma escuta paciente e o emprego de terapias
breves, quando possível, o número de encontros nesses casos que devem ser acompanhados
mais de perto, com consultas semanais ou quinzenais, exige uma dedicação que a equipe e
o médico têm grande dificuldade em entregar, acomodar em suas agendas.
Fatores relacionados ao conhecimento prévio do próprio paciente sobre o manejo
tradicional de transtornos mentais significam um apelo decisivo para a escolha da
medicamentalização como uma medida pertinente, aceita e rápida de se executar, já que o
tempo, também no universo da saúde e nas relações nele construídas, parece ter um valor
inestimável.
Crê o médico de favela que, enquanto os mercadores da dúvida (ORESKES, 2010),
representados pelos conglomerados farmacêuticos e sua espúria relação com a psiquiatria,
38

persistirem na ventilação de inverdades sobre as benesses da psicofarmacologia, essa


prática continuará hegemônica como o cerne do tratamento de desvios e transtornos,
sofreres e percalços da vida, encontrando reverberação entre os médicos generalistas. A
aceitação da correlação entre o tabagismo e o câncer de pulmão teve retardo de mais de
cinquenta anos até a tomada das primeiras medidas regulatórias. O aquecimento global é o
alvo atual da semeadura de incertezas a despeito das evidências.
As demais maneiras de se encarar um episódio depressivo, a tristeza, o luto, os
atrasos, a timidez, a euforia ou a própria psicose continuarão desacreditadas e restritas a
profissionais ecléticos, extravagantes e periféricos. Essas novas saídas, formas de lidar,
estariam inclusive cerceadas, impossibilitadas de desabrochar de maneira extraordinária.
Ao longo desses dez anos, o médico de favela pôde observar que todos os pacientes
psiquiátricos medicados sofrem algum grau de lobotomia química. O limite entre a dose
tóxica, capaz de causar inércia a estímulos sensoriais, letargia e estupefação, e a dose
terapêutica, que é capaz de reduzir os sintomas, é uma janela tênue, de alcance muito
difícil, pois o organismo trabalha adaptando-se às dosagens, gerando resistência e
dependência crescente de acréscimos na titulação.
Assim, as formas incubadas, pouco propaladas, das famílias acolherem seus entes
portadores de transtornos mentais, através de uma redescoberta de afetos e às custas de uma
ética dispendiosa, os esforços da sociedade para reintegrá-los, a reviravolta para que os
saudáveis não padeçam por longos prazos desnecessários após quadros agudos de perda de
controle do psiquismo, as maneira dos serviços de saúde abordarem cada vez de forma mais
humanística, holística essas queixas, os meios do Estado conseguir mitigar gatilhos
socioeconômicos como a concentração de renda, o desemprego, o vácuo recreativo e
educacional da população constituem, todos, elementos em perspectiva para a mudança
desse cenário.
39

4.3 DA AUTORIDADE SANITÁRIA

Joelhos de Sucata

O senhor, pelo ranger de suas dobradiças, deve ter perto de sessenta. Destes, mais
da metade foram dedicados a uma empresa de reciclagem. O cargo do senhor: caçador de
tesouros. Há alguns anos, a companhia fechou as portas e o dono português cruzou
novamente o atlântico sem pagar os direitos dos empregados. O senhor, então, se viu
perdido, mas, como caçador inveterado, não viu outra forma de andar a vida, não fosse
esmiuçando descartes à procura de ouro, o que melhor sabia fazer. O grande problema
aqui foi o depósito, pois, não tendo mais o pátio para armazenar o material, a saída foi
estocar em casa. Tendo ainda pouca saída para as mercadorias, com poucos compradores
para suas relíquias, vendendo quatro a cinco baldes de plástico na feira de domingo e com
um comprador de motor de geladeira aqui e outro que ainda barganha por um cavaco de
ferro ali, inviabilizando transações, a pilha de achados se avolumou.
Foi aí que começaram as desavenças com vizinhos e familiares. O filho do senhor
solicita o apoio da equipe de saúde da família, entendendo que o caso se tornara uma
questão de saúde. O médico da favela, que já estivera com o senhor em pelo menos quatro
consultas, tratando da sua artrose nos joelhos, que produziam as mais altas crepitações
que ouvira ao flexionar e estender as articulações, seguiu com seu residente e a agente
comunitária para a visita domiciliar, na semana seguinte ao recebimento daquela
inusitada demanda.
Na véspera, estudou as possibilidades de intervenção e, confiante na relação
médico-paciente, que havia cultivado durante as infiltrações nos esfarelados joelhos e
dispensação de analgésicos, e numa lembrança do senhor sempre muito cortês e
agradecido, mesmo quando demorava a ser chamado para o atendimento, pensou em
possibilidades diagnósticas de transtorno-obsessivo-compulsivo, em indicação de drogas
psicotrópicas e apoio psicológico, em até mesmo trazer o insight para o seu paciente, com
toda a técnica de comunicação clínica que havia aprendido e do alto da sua palavra
médica de autoridade sanitária, que aquele amontoado de lixo era um grande risco para
todos, que o acúmulo havia se tornado patológico.
A equipe foi muito bem recebida, naquela manhã. Teve café e uma reunião familiar
na pequena sala. Todos tiveram sua fala. Os filhos se queixaram daquilo que parecia
40

óbvio, que o pai era um acumulador de sucata e a situação exigia uma medida drástica e
definitiva: o senhor tinha que se livrar daquelas bugigangas e, ainda, interromper suas
andanças diárias de coleta, pois, mesmo depois de uma limpeza geral, seria capaz de
restaurar o caos em semanas. O médico da favela trouxe, então, seus diagnósticos e
terapêuticas, mais complexos para este mal do que aqueles empregados nas juntas do
acusado, que, apesar de aparente relutância, aceitou começar com o desapego das pilhas
de ferragens e entulhos de obra da calçada.
Café digerido em estômagos contorcidos pela atmosfera da ocasião, conduta
traçada, decisão compartilhada, parte a equipe, com planos de retorno em sete dias, para
averiguar a acordada nova arquitetura minimalista da calçada.
Em reunião de equipe, dois dias após a visita domiciliar, a agente comunica que o
senhor foi agressivo com a esposa e filhos após investida dos profissionais de saúde, que
não ia se desfazer de tudo aquilo que encontrara de uma hora para outra, que o doutor,
como ele mesmo assumia, não entendia desse tipo de negócio. Comunicava ainda que os
filhos pensavam agora em sair de casa junto da mãe, acionar outros órgãos competentes,
como a companhia municipal de coleta de lixo ou vigilância sanitária, e que os transtornos
no perímetro do lixão urbano eram tantos que os vizinhos ameaçavam atear fogo naquele
mar de resíduos.
Passados alguns meses, o senhor procurava a clínica novamente por dores que
insistiam em limitar suas jornadas do trabalho. O médico da favela examinava e palpava
aqueles joelhos deteriorados, condenados pela ortopedia, mas funcionais para um errante
catador de artefatos fora de uso, enquanto dava o aceite ao convite para mais uma xícara
de café.

Em Joelhos de Sucata, o médico é convocado para impor a lei e a ordem. Na figura


maior de autoridade sanitária daquele distrito e diante de um problema que tem íntimos
transbordamentos para a saúde pública, espera-se, enfim, que o efeito da fala do médico dê
algum direcionamento pragmático ao imbróglio.
Misturam-se os papéis de tal forma que o fracasso define o prognóstico da
intercessão. Tenta-se o caminho da patologização de um ofício, valendo-se da confiança
depositada na relação médico-paciente. Tenta-se a sensibilização do suposto doente para
uma situação periclitante a partir de um olhar externo e com dotes acadêmicos. Acaba-se
por agudizar o conflito familiar. Esse fim trágico era, de fato, inesperado, dadas as
circunstâncias do atendimento?
41

A audácia do médico de favela em projetar o impacto de uma visita na


desconstrução de um hábito, cultivado ao longo de décadas, que não se esvai diante de
dores físicas, não é um exemplo isolado dessa noção superestimada do poder de sua
palavra. O médico como remédio parece não ter reprodutibilidade aqui (BALINT, 1988). A
mesma petulância é rotineiramente empregada em pensar que, num par de encontros anuais,
se convenceriam os pacientes a ingerirem cápsulas diariamente até o fim das vidas. O mais
espantoso é que, diante da recorrente falha na adesão ao esquema da terapia
medicamentosa, ainda se surpreendem, os médicos, com a desobediência dos usuários.
Constantemente, os médicos de família e comunidade se deparam com uma
infinidade de situações para as quais não tiveram preparo adequado, nunca enfrentaram
semelhante ocorrência. E deles, se espera a conduta. Na maioria das vezes, o médico de
favela saiu-se com promessas, pendências e planejamento de medidas futuras, noutras, agiu
de maneira impulsiva, intempestiva. Em grande parte desses casos, exigem-se manobras
criativas, ousadas, jamais empregadas e com chances de êxito imprevisíveis. Em Joelhos de
Sucata, um pedido de orçamento pelo conjunto total de sucatas foi colocado na mesa, por
exemplo. O médico de favela cogitou comprar o estoque, tamanho o impasse e
complexidade do cenário. O senhor, porém, não colocou preço de venda. Talvez fosse
incalculável, impagável, ou ainda inegociável.
Esse posto de autoridade que o médico de favela assume permite um acúmulo
considerável de prestígio ao longo do tempo. Diz-se do médico dedicado, assíduo,
construtor de vínculos, incorporador e praticante dos princípios da especialidade. Sem
extrapolar sua função como médico, portanto, sem maiores esforços, com o passar dos
anos, esse médico de favela atingirá patamares de figura icônica para a comunidade.
Desde já, com poucas temporadas de compromisso junto a uma população, são
trazidos problemas para que o médico de favela aconselhe e apazigue desde furtos de
botijão de gás até perdas da libido. Em algum momento, pois, esse tipo de infortúnio se
enquadrou como transtorno da saúde e uma cura foi prometida.
Em uma APS modelo, tendo em vista um cenário de formação ideal, trabalhando-se
com recursos humanos advindos de uma residência médica credenciada, pretende-se, a
partir de serviços em instalações descentralizadas, vizinhas ou até incrustadas no seio de
cada bairro e comunidade, ofertar cuidados em saúde através de profissionais
especializados nas categorias mais prevalentes de doença: manejar a maior parte dos
problemas de saúde; aplicar uso racional das diferentes tecnologias; dedicar um
acompanhamento de longo prazo de cada paciente.
42

São os mfc, ainda, arregimentados com ferramentas como terapia familiar e


abordagem comunitária, sintonizados com as redes de atenção, dentre outras competências,
para responder de maneira diferente, no sentido de desmedicalizar a população (GUSSO;
LOPES, 2012).
É preciso ter em mente que esse médico, notadamente na experiência brasileira, não
está sozinho, mas inserido em uma equipe multiprofissional, composta por enfermeiro,
dentista, auxiliar de saúde bucal, técnico de enfermagem, agentes comunitários de saúde.
Apesar do incremento, nos últimos anos, do número de médicos com
formação/titulação na área, fruto de estratégias como o Programa Mais Médicos para o
Brasil (com seus eixos de provimento emergencial e formação na graduação e residência
médicas), de experiências municipais e outras estratégias de ampliação e qualificação das
residências em MFC, a grande maioria dos profissionais atuantes nas unidades de atenção
básica, no Brasil, são generalistas sem formação específica para tal, desenhando um
panorama de ocupação por especialistas em MFC de aproximadamente 14% de um total de
42 mil vagas nas equipes de saúde da família (AUGUSTO, 2018; COELHO et al., 2019).
Como parte da estratégia saúde da família, uma política pública em saúde, a MFC
segue modelos exitosos em países desenvolvidos que optaram por uma atenção primária
forte, com médicos generalistas como base dos seus sistemas de saúde. Com seu aparato
estrutural e humano íntimo do território de cuidado, a MFC busca entregar serviços
condizentes com princípios do sistema único de saúde: universalidade, integralidade e
equidade, tendo, dentre as suas diretrizes de trabalho, atividades de promoção e prevenção,
atenção curativa e reabilitação, sob um forte viés não hospitalocêntrico, de produção de
autonomia e valorização das tradições e saberes locais. No entanto, traz em seu âmago
corporativo a medicina e a impossibilidade de se desprender dessa cadeira institucional.
A atenção primária em Saúde (APS), apesar de toda orientação contra-hegemônica e
alternativa de mudança para inversão do modelo biomédico, não deixa de representar
ambiência permeável a práticas medicalizantes (CARDOSO 2014).

De fato, apenas no âmbito da atenção básica se pode ter uma dimensão real da
ecologia humana, porta de entrada preferencial do sistema e “braço” mais
capilarizado do Estado dentre todo o aparato governamental em interface com a
sociedade civil, ainda mais do que as escolas, a assistência social e até mesmo
que a “arrecadação de impostos”. E todo esse “privilégio” de ser o ponto mais
acessível do sistema [...] coloca a atenção básica em vantagem tanto para
observar o fenômeno da medicalização, como para perpetuá-lo ou ainda fazer
enfrentamento a este […] (CARDOSO, 2014, p. 41).
43

Em que pese a grande aposta que o movimento da reforma sanitária, a saúde


coletiva e medicina de família e comunidade fazem nesse espaço, que costuma ser
idealizado como um lugar de transformação social, contra-hegemônico, há que se revelar
possíveis tensões e contradições, mecanismos de reprodução de instituídos, engendrados
por um grupo que se identifica por vezes como uma especialidade de insurgentes.
Por muito tempo foi, e talvez ainda seja bradado por médicos de família e
comunidade uma máxima de que a nós tudo interessa, toda sorte de queixas e problemas,
todos os conflitos na comunidade, todos os desacertos e segredos familiares. E se interessar
ainda pode ser algo inconteste, talvez o que esteja em crise seja questionar se somos
consultores de tudo. É nesse ponto que o texto tenta provocar uma inflexão: será o mfc
capaz de representar o peso de um ator social a ponto de mediar questões complexas como
esta?
Coloca-se aqui em debate até que ponto essa proximidade deve ser praticada, essa
intimidade desejada, essa confiança depositada, sem defender o distanciamento acadêmico
do jaleco branco tradicionalmente lecionado nas escolas médicas. A impassividade, a
imperturbabilidade, a não afetação, a violação do código do choro conjunto, isso já foi há
muito superado pela medicina de família e comunidade. Mas cabe o reconhecimento dos
desfechos fora do esperado, dos finais infelizes, daquilo que ainda estará fora da alçada e
assim deverá permanecer, do rol de atribuições que se esgota, da limitação a resolutividade,
do entendimento que o poder de alcance da assistência pode ser reciclar, se reinventar, mas
é por vezes restrito.
44

5 “A MEDICALIZAÇÃO NOS SETTINGS DA MFC”

5.1 NO AMBULATÓRIO

O senhor de 54 anos comparece à consulta. Solicita exames de rotina para


prevenção do câncer de próstata. Tem realizado com regularidade anual esse cuidado. O
médico de favela procura descontruir. Certifica-se de que o senhor não possui nenhum
sintoma irritativo ou obstrutivo das vias urinárias, bem como a ausência de história
familiar desse tipo de câncer. Aborda as novas orientações vindas de entidades que gozam
de amplo respaldo nacional e internacional, como o Instituto Nacional do Câncer (INCA),
sobre a contraindicação desse rastreio (INCA, 2017). Explica riscos quanto à
possibilidade de entrada em cascata diagnóstica, biópsia e cirurgia desnecessárias, taxas
de incontinência urinária e impotência sexual após intervenções urológicas. O senhor é
reticente. O médico idem. A mídia apoia seus temores e lhe permite contra-argumentar. É
novembro, e novembro é azul, há grande alarde sobre o câncer que mais mata homens e
como podemos nos prevenir. Seu urologista recomenda a vigilância desde os cinquenta
anos. Em uma última cartada, o médico de favela apela para glosa do exame diante da
indicação não aprovada — homem com mais de cinquenta anos assintomático — alegando
que o laboratório não processaria. O senhor abandona o consultório e deixa um lastro de
impropérios. A relação médico-paciente foi estilhaçada.
Apenas mais tarde foi possível perceber que não era dessa maneira que deveria ser
praticada a prevenção quaternária. A saída mais adequada para conduzir é uma decisão
compartilhada e o papel do médico deveria limitar-se a elucidar riscos e benefícios do
rastreamento, para em seguida acatar a escolha do paciente (KEATING, 2018). Há um
itinerário de cuidado, nesse caso, que não pode ser redirecionado mediante uma negativa
vaidosa por vanguarda do médico de favela. É estúpida a conduta de entender como
protetiva e justificada a negação do exame à custa da ruptura de qualquer vínculo com o
paciente.
Na consulta acima, a postura do médico de favela como o que ficou conhecido
como P4 fighter 6, por defender de forma aguerrida o freio em intervenções com evidências

6
Na prevenção quaternária, é comum a presença dos “combatentes” (“P4 fighters”, como seus entusiastas se
definem) que enfatizam os interesses do mercado e os dados da medicina baseada em evidências (estes como
um antídoto) na batalha contra o excesso de medicalização, embora com pouca atenção para a relação clínica
(CARDOSO, 2014).
45

de danos, é um dos exemplos destrambelhados de como nos saímos tentando


desmedicalizar a população.
Uma das principais bandeiras desmedicalizantes dos médicos de favela é a
prevenção quaternária. Vejamos que até mesmo esse potente instrumento, por meio do qual
diz-se combater práticas excessivas e danosas em percursos diagnósticos e terapêuticos,
parece estar contaminado, como salientou Michael Duncan em palestra proferida no último
congresso brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, ocorrido em Cuiabá, 2019,
quando na ocasião alerta, citando Widmer, que:

Se a prevenção quaternária promover a abstinência de qualquer ação na presença


de dúvida (in dubio abstine), ou na ausência de evidência, há o risco de niilismo
terapêutico, de abandonar o paciente sem suporte. A inadequação ou insuficiência
do cuidado podem ser tão perigosos quanto a hipermedicalização (WIDMER,
2015, p. 4).

No caso compartilhado por Duncan, para exemplificar o mal-uso da prevenção


quaternária, um menino de oito anos é trazido por seus pais à consulta médica a partir de
um encaminhamento de seus professores. Referem dificuldades de aprendizado devido a
comportamento agitado e heteroagressividade.
Os pedagogos suspeitam de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH) e sugerem um redirecionamento a um psiquiatra ou neurologista. Diante da
vulgaridade desse diagnóstico de rua, tal qual sinusites, o médico de família e comunidade
rechaça essa alcunha que tanto medicaliza a infância de meninos danados e considera a
dinâmica familiar que abarca um pai alcoolista e uma mãe depressiva o gatilho principal
para o distúrbio.
Ao fim do ano, apesar das medidas de abordagem familiar e psicoterapia, o menino
é reprovado na escola.
É um descarrilamento com o qual o próprio Marc Jamoulle, idealizador do modelo,
se preocupava, com a disseminação de uma prática obstinada em negar a todo custo, entrar
em embate com o manejo tradicional de determinadas entidades sem ter em mente que:

Enfatizar a abordagem do “sobre” [diagnóstico, tratamento, etc.] é realmente


importante, e de fato, um dos eixos da P4. Mas eu peço que vocês não esqueçam
a alma da P4, que é a relação médico-paciente. Por favor, considerem o eixo do
paciente (JAMOULLE, 2013 apud CARDOSO, 2015).
46

Observa-se que a prevenção quaternária, nascida como uma moderação das


intervenções médicas, corre o risco de degenerar como resposta à medicalização da
sociedade, dada a reprodução banal, alheia a suas bases teóricas.
47

5.2 NA VISITA DOMICILIAR

Terminam as visitas da manhã. O médico de favela caminha de volta para a clínica


com o interno de medicina. O agente ficou na comunidade. Discute-se sobre o impacto
dessa incursão. O interno está algo desapontado. Apesar de saciar a curiosidade visitando
a comunidade, não viu alguém gravemente enfermo para quem o médico pudesse fazer a
diferença. Muita conversa com idosos acamados e familiares, cafés e bolos, mas uma
inconsolável escassez de aventura científica.
O médico de favela tenta explicar. Não é sempre que nos deparamos com um surto
psicótico e uma acrobacia deve ser executada para aplicação de medicação injetável, ou
trazemos no carro uma paciente inconsciente, na qual faremos o diagnóstico de neuroaids,
ou ainda encontramos um homem hígido de meia idade delirando de febre com erisipela
bolhosa7 e os comprimidos que deixarmos com a esposa o levantará da cama. Apesar de
um viés do tráfico de influência, que pode nortear o trajeto de casas escolhido pelo(a)
Agente Comunitário de Saúde (ACS), as visitas podem ser priorizadas em reunião de
equipe. Muitas vezes é preciso um contato regular com os idosos restritos ao lar, para que
acolham as nossas orientações quando se fizerem necessários os cuidados de fim de vida.
O aluno devolve com astúcia que realmente não se trata nem de safari médico, nem
de turismo de favela.

A visita domiciliar é um componente que, por definição, distingue o conjunto de


práticas e saberes da MFC. Não é exclusivo da especialidade, porém, é uma condição para
o exercício da mesma, assim como andar e se fazer visto na comunidade (MCWHINNEY,
2009). Assim, a sua regularidade, mesmo que na ausência de casos graves, encontra
subsídios teóricos que remontam ao respeito aos princípios básicos da MFC.
À primeira vista, a veia medicalizante da visita domiciliar encontra sua expressão na
insatisfação do graduando que mostra uma avidez por casos dramáticos que exigem
resposta essencialmente clínica e urgente. No entanto, amortecida a fantasia que nos remete

7
Erisipela é um processo infeccioso da pele, que pode atingir a gordura do tecido celular, causado por uma
bactéria que se propaga pelos vasos linfáticos. Pode ocorrer em pessoas de qualquer idade, mas é mais comum
nos diabéticos, obesos e nos portadores de deficiência da circulação das veias dos membros inferiores. Não é
contagiosa. Nomes populares: esipra, mal-da-praia, mal-do-monte, maldita, febre-de-santo-antônio. BRASIL,
Ministério da Saúde. Erisipela. Biblioteca Virtual em Saúde, 2015. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/dicas-em-saude/2066-erisipela>. Acesso em: 4 mar. 2020.
48

o quadro “O médico” de Samuel L. Fields8, busca-se interrogar a visita per se como mais
uma roldana medicalizante independente da ação impetrada em seu espaço.
Não é incomum nos depararmos com uma dificuldade quando – os agentes
comunitários de saúde, enfermeiros e médicos – precisamos efetuar as visitas em
microáreas que cobrem ruas de asfalto e classe média baixa. Por que esses profissionais
deixam de ser bem recebidos conforme se observa uma mudança de classe social e a menor
utilização/dependência do serviço público de saúde? Sem dúvida são fatores a serem
considerados e que obrigatoriamente nos levam a considerar como se desenvolve o hábito,
como parte inerente do trabalho em saúde, de visitar ou vigiar a casa dos pobres. A etiqueta
parece ser menos rigorosa aqui, bem como a liberdade e o costume, por parte dos anfitriões,
de não abrir a porta.
As visitas passam a fazer parte do aparelho estatal de vigilância. Um roteiro
periódico de incursões está previsto para cada lar que abrigue uma gestante, puérpera, uma
criança, um idoso, uma família. A gestão tem suas metas ensandecidas bem estabelecidas
por métodos de melhoria de qualidade com grande respaldo no meio da administração de
empresas. Em muitas cidades, como São Paulo, por contratos de gestão entre a prefeitura e
as organizações sociais de saúde, o ACS deverá fazer um número mínimo de duzentas
visitas mensais (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2015). Seguido à risca, somadas as idas
de médicos e enfermeiros, os quais também possuem metas avaliadas e parametrizadas
através de variáveis de desempenho, por vezes expostas em sessões públicas de
accountability9, a visita domiciliar como cuidado em saúde pode ser tida como um
patrulhamento ostensivo e inconveniente.

8
No Natal de 1877, Philip, primeiro filho do pintor, morreu com apenas um ano de vida devido à tuberculose,
apesar dos cuidados do Dr. Murray, um médico de família. Fields, impressionado e agradecido pelo
compromisso desse médico em tentar salvar seu filho, prestou homenagem a ele quando pintou este quadro
em que vemos um médico pensativo e impotente avaliando, em um domicílio miserável e insalubre, uma
criança gravemente eferma, com os pais consternados no fundo sombrio (MIRANDA; MIRANDA, 2013).
9
Normalmente, se refere a um relacionamento que envolve uma responsabilidade, uma obrigação de relatar,
dar conta de ações e de não ações. Isso indica que existe uma expectativa assumida da necessidade de relatar e
explicar, seja pessoalmente ou por escrito, com consequências e sanções previstas para resultados fora do
esperado (MAYBIN et al., 2011). Prática de prestação de contas dos profissionais de saúde e gestores,
empregada no NHS (Sistema de Saúde Britânico) e importada no modelo de reforma da atenção primária da
cidade do Rio de Janeiro, a partir do ano de 2008.
49

5.3 NA GESTÃO

Ela tem 44 anos. Diagnosticada com neoplasia maligna da mama está aguardando
o início da quimioterapia. Com o crescimento da massa tumoral produziu-se uma
ulceração com descarga de grande quantidade de secreção de odor fétido. Ela usa gazes
para absorver esse conteúdo e possibilitar sua higiene, não sujar as roupas e conseguir
sair na rua quando necessário ou desejável. A clínica da família libera insumos em
quantidade insuficiente para os curativos caseiros. Ela conta com o médico de favela todas
as semanas para ajudar com o provimento de gazes não estéreis.

Illich (1975) sugeriu que uma das facetas iatrogênicas da medicina seria a
Iatrogênese Social. Essa, devia-se a grande soma de gastos públicos destinados a
contratação de pessoal médico pelos governos, prescindindo de investir, assim, em outras
áreas, seja alimentação saudável, cultura, distribuição de renda e demais segmentos.
Declara que a Medicalização do orçamento é nociva, pois:

[...] é indicador de uma forma de iatrogênese social na medida em que reflete a


identificação do bem-estar com o nível de saúde nacional bruta e a ilusão de que
o grau de cuidados no campo da saúde é representado pelas curvas de distribuição
dos produtos da instituição médico-farmacêutica. Essa saúde nacional bruta
exprime a mercantilização de coisas, palavras e gestos produzidos por um
conjunto de profissões que se reservam o direito exclusivo de avaliar os seus
efeitos e que tornam o consumo de seus produtos praticamente obrigatório,
utilizando seu prestígio para eliminar da vida cotidiana as escolhas alternativas.
Este efeito paradoxal da medicalização do Orçamento é comparável aos efeitos
paradoxais da superprodução e do super-consumo nas áreas de outras instituições
maiores. Ê o volume global dos transportes que entrava a circulação; é o volume
global do ensino que impede as crianças de expandirem sua curiosidade, sua
coragem intelectual e sua sensibilidade; é o volume sufocante das informações
que ocasiona a confusão e a superficialidade, e é o volume global da
medicalização que reduz o nível de saúde (ILLICH, 1975, p. 37).

O autor nos provoca com um oxímoro10 estarrecedor: quanto mais médicos menos
saúde! O autor argumenta por meio de dados referenciados sobre explosão de gastos
médicos nos EUA, correspondendo a fração significativa do PIB daquela nação, e
resultando em declínio da expectativa de vida. Outras fontes evidenciam a lamúria e

10
Segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa:
Combinação engenhosa de palavras cujo sentido literal é contraditório ou incongruente (ex.: bondade cruel é
um oxímoro). "oxímoro", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-
2020, https://dicionario.priberam.org/ox%C3%ADmoro [consultado em 05-03-2020].
50

sofreguidão de países pobres e em desenvolvimento na corrida médica para a incorporação


de tecnologias em saúde sem jamais obter resultados esperados.
Outras publicações provam que o aumento de preços na área médica supera em
muito a inflação, ou o aumento de qualquer outro ramo, em muito alavancado pelos custos
hospitalares, de uma medicina intensiva, cirúrgica e de alta complexidade. No entanto,
dificilmente se aplicaria o mesmo raciocínio para tornar injustificável a alocação de
recursos em MFC, considerado um setor de baixa complexidade e custos operacionais.
De qualquer forma, a partir do caso descrito, gostaria de levantar uma situação-
problema, colocando, hipoteticamente, para a população, uma questão. Como deveria ser
empregado o recurso destinado ao pagamento do salário do médico de favela? Estão em
discussão duas opções levantadas pelo gestor do fundo público de saúde.
O médico de favela pode custar aos cofres públicos, incluindo os encargos
trabalhistas e a depender de seus benefícios por titulação, até R$ 25.616,7711 ao mês. Ele
dedica-se a essa comunidade 40h/semana. Duas mil e quinhentas pessoas estão cadastradas
em sua carteira de clientes, totalizando 800 famílias. Em um plebiscito, a população da área
03 pode agora decidir se ele continua prestando os seus serviços, ou se preferem receber um
acréscimo no programa de distribuição de renda do governo de R$ 32,00 reais por mês por
família, já que necessidades básicas parecem não estar sendo atendidas, como é o caso de
Ela, que não pode arcar com gazes para sua lesão na mama.
Em tempo, na ausência do médico de favela, ela poderia ainda contar com a
enfermagem para direcioná-la adequadamente ao serviço de mastologia oncológica.

11
Valor bruto em reais representando o total de proventos incluindo gratificações de preceptoria da residência
médica em medicina de família e comunidade, responsabilidade técnica da clínica da família, titulação de
mestrado e doutorado, pagos a um(a) médico(a) por 40h/semanais de jornada de trabalho em fevereiro de
2020. Infomação extraída de contracheque emitida pela parte contratante Organização Social de Saúde
VivaRio.
51

6 ATRIBUTOS E ROTINAS EM CRISE

6.1 PESARES SOBRE A COORDENAÇÃO DO CUIDADO12

Um tanto quanto farto de abordagens pelo médico de família e comunidade que se


valem da miséria do paciente para levantar reflexões dramáticas sobre a condição humana,
o direcionamento aqui se dá para a miséria do médico. Um olhar para preceitos como a
medicina centrada na pessoa, a coordenação do cuidado, a integralidade atentando a seus
tropeços e desacertos na aplicação prática.
Em Psicanálise e Saúde Coletiva (CAMPOS, 2014), somos convidados a
acompanhar um exercício de construção que agrega políticas públicas a conceitos da
psicanálise, para expor as potencialidades e ou fragilidades desses produtos. Supondo uma
atenção à vulnerabilidade sem escuta, sugere, a autora, que o cadastramento de famílias
sócio vulneráveis e o direcionamento automático e contínuo de políticas assistenciais, sem
uma adequada reavaliação e revisão da perda de autonomia, poderia representar uma
medida indesejável.
Ao explorar a busca ativa sem reconhecimento dos lugares e sua potência, também
alerta, a autora, para o risco em estigmatizar áreas onde historicamente iriam se
concentrando os pacientes sempre buscados, depreciando-se, assim, os espaços e
abandonando a iniciativa de encontrar, nas pessoas, uma outra imagem, uma redescoberta
do território.

12 Na perspectiva das pessoas usuárias e de suas famílias, a coordenação do cuidado constitui qualquer
atividade que ajude a assegurar que as necessidades e as preferências dessas pessoas por serviços de saúde e o
compartilhamento de informações entre profissionais, pessoas e locais de atendimento sejam realizados de
forma oportuna. As falhas na coordenação do cuidado ocorrem, em geral, na transição de uma unidade de
saúde a outra, no caso, entre a Estratégia Saúde da Família e a unidade de Atenção Ambulatorial
Especializada, e manifestam-se por problemas de responsabilização e de quebra do fluxo de informações. Na
perspectiva dos profissionais de saúde, há que se considerar que a coordenação do cuidado é uma atividade
centrada nas pessoas e nas famílias, destinada a atender às necessidades dessas pessoas, apoiando-as a se
moverem, de modo eficiente e efetivo, através do sistema de atenção à saúde. Isso implica a coordenação
clínica, que envolve determinar a quem e aonde referir as pessoas usuárias, que informações são necessárias
transferir na referência e na contrarreferência e que responsabilidades são imputadas aos diversos membros
das equipes de saúde. Além disso, há uma coordenação logística que envolve sistemas de apoio e de
informação, de transportes e até mesmo sistemas financeiros. As falhas na coordenação do cuidado, na
perspectiva dos profissionais, surgem quando a pessoas são referidas a um profissional não adequado ou a
uma unidade de saúde errada ou quando se atingem resultados ruins em função de um mau manejo clínico ou
de fluxos de informações inadequados (MENDES, 2012, p. 344).
52

Em último exemplo de boa prática poluída, refere que a ampliação da clínica sem a
responsabilização do sujeito afetaria de maneira negativa e direta a construção de
autonomia, construção essa que nos permite a introdução da cena que segue:

Relações Descoordenadas

Os gritos podem ser ouvidos no corredor, são de indignação, e se ouve apenas o


indignado. Até que a mãe abre a porta e sai da sala. O colega médico entra. O confidente
está atordoado, mas consegue reproduzir o desabafo na tentativa, inclusive, de buscar
compreender.
A mãe lhe cobra o laudo da tomografia de tórax da filha, que extrapolou em duas
semanas o prazo estipulado. O médico de favela não checou, não buscou como prometido.
Daí a revolta justificada. A filha, portadora de esquizofrenia, depende do exame para ter a
confirmação da suspeita diagnóstica de tuberculose miliar e iniciar o tratamento para
aquilo que lhe consome em tosse e febre nos últimos três meses.
O médico de favela é recém-chegado naquela clínica e obedece a seus fluxos e
diretrizes. Na suspeita de tuberculose, lhe reforça a responsável técnica da unidade, é
preciso isolar o bacilo colhendo duas amostras de escarro do doente, estando a liberação
das medicações, pela farmácia, sujeitas a essa etapa diagnóstica. O escarro é negativo.
Por isso, realizaram o exame complementar em empreitada na qual a equipe se mobilizou
pelo transporte da paciente e acompanhante até o centro da cidade.
Após a desconcertante cobrança, a busca do resultado é providenciada pela equipe
e o esquema medicamentoso é enfim iniciado. Toda uma nova luta começa para mãe, filha
e a agente comunitária de saúde responsável por controlar a administração do TDO,
tratamento diretamente observado. Apesar de todo o esforço do time, as coisas não vão
bem. Há dias em que a filha refuga os grandes e nauseantes comprimidos.
O médico de favela esquece novamente. As jornadas de atendimento e a
insolubilidade diagnóstica e terapêutica de outras mães e filhas o ocupam agora. Quando
a agente sinaliza do grave estado para o qual evoluíra sua cadastrada, ele, porém, não
retarda em solicitar sua internação.
Dessa vez, não precisam ir no carro particular, sem favores, caronas,
informalidades ou medidas heroicas, apenas o adequado funcionamento dos fluxos
previstos que se engrenaram harmonicamente naquele fim de tarde, desde a liberação da
vaga em leito hospitalar até a chegada da ambulância.
53

No hospital, a filha fica. A mãe num vai e volta. A agente e o médico voltam. Seu
tórax é drenado mais de uma vez, ela é sedada e contida, sabe-se lá como fazem melhor o
TDO do que a agente e a mãe, ou se mesmo conseguem fazê-lo. Não resiste.
A mãe passa na clínica uma última vez, avança pelo guichê de recepção sem se
identificar ou aguardar ser chamada. Entra na sala decidida, sem bater, encontra o
médico de favela em sua cadeira, em seu computador, ninguém nada ouve no corredor. A
mãe sai em luto, sai em paz.

Não foi injustiça ou ingratidão daquela mãe o desabafo de abertura. Uma ocorrência
do exagero no exercício da coordenação do cuidado com consequente invasão do arco de
autonomia e autocuidado da paciente pode ter ocorrido. O médico se responsabilizou por
levar a paciente em automóvel próprio para a realização do exame complementar, além de
tentar garantir a busca do laudo e entrega em mãos do resultado, o que não foi honrado.
O foco talvez se resuma ao fracasso dessa iniciativa. Não há intenção qualquer de,
através da teorização, eximir o médico de favela de sua falha e condenar a atitude da mãe.
É frente a um possível vão no atendimento da moça que o médico de favela julga
necessário construir uma ponte. É diante do risco de a paciente perder o exame, de perder a
oportunidade diagnóstica por motivo fútil e revoltante, devido a uma dificuldade de
deslocamento pela cidade, que ele se exaspera. Esse outro recurso (carona e entrega do
resultado), advindo de um arcabouço paternalista, acaba por ferir a relação, ao falhar na
interligação e fazer desmoronar a ponte.
A cena abre com um desentendimento, uma faísca na relação médico-paciente. Esse
é o ponto crítico. A noção de vínculo pode ser dinâmica a ponto de o profissional ver-se
claramente ultrapassando barreiras da relação entre a figura do médico de favela e a
paciente, passando a atuar como um amigo da família. Cardoso (2014), ao ponderar sobre o
tênue equilíbrio entre vínculo e dependência, compartilha conosco a seguinte reflexão:

Outra situação que me inquieta há muito é até onde vai o vínculo e inicia a
dependência? Pude acompanhar médicos de família preceptores na residência que
eram excelentes profissionais, uma relação ótima com as pessoas de sua área de
abrangência, tecnicamente bons, mas qualidades que pareciam favorecer uma
certa relação de dependência. Não sei, este tema é delicado, pois, por um lado,
poderíamos dizer que seria melhor ter dependência de um nível de atenção que se
pretende menos iatrogênico, mais integral, que sabe lidar com a complexidade do
adoecer usando tecnologias de “baixa densidade”. Por outro, para os defensores
da autonomia, tal como Illich (1982) isso já é naturalmente danoso, isto é,
depender de um serviço ou profissional de saúde, mesmo que numa perspectiva
“desmedicalizante” e voltada para uma “saúde ativa” (em analogia ao atual
“envelhecimento ativo”), já coloca a pessoa em uma posição de dependência, na
54

qual todos os ganhos que ela própria alcançar em benefício de sua saúde e bem-
estar, ela atribuirá aos valiosos conselhos e acompanhamento do especialista em
saúde. (CARDOSO, 2014, p. 47).

Não é por conta do desentendimento narrado que o autor se mostra arrependido do


feito e agora o julga como um erro, nem mesmo crê que estaria proibido de repetir uma
gentileza semelhante, e incorporara como ensinamento a contraindicação absoluta desse
tipo de conduta. Mas, tendo em mente o fenômeno medicalização e diante da tarefa de
realizar uma varredura dos atendimentos, não pode deixar de notar que, na categoria que
discute heteronomia13/autonomia do sujeito, a cena se tornou emblemática.
O médico, de forma misericordiosa, quer poupar a idosa da necessidade de buscar o
resultado do exame. Por isso, além de ter levado as duas mulheres para realização da
tomografia, também se compromete a retornar ao centro diagnóstico para obter o laudo.
Entretanto, apesar da boa intenção, atua de maneira negligente, sendo vítima da sua própria
atitude centralizadora, porque não finaliza o processo, invalidando de certa forma todo o
esforço prévio.
O que parece estar em jogo no desenrolar dessa situação é exatamente o pré-
julgamento de invalidade do paciente e de sua família. Mesmo em famílias com extrema
vulnerabilidade social há um equilíbrio no caminhar da vida que não pode ser ignorado, a
comunidade e seus indivíduos atravessam percalços e dificuldades muito antes de qualquer
estender de mão de ajuda dos médicos. A mãe cuidou da filha por décadas, desde o
primeiro surto psicótico, levando e trazendo do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS),
alimentando, vestindo e medicando. Não seria ela capaz de buscar, de maneira
independente, o resultado de uma tomografia? A resposta é sim. Foi dito pela mãe dentro
da sala, aos berros. Como fazia para retirada do benefício de prestação continuada (BPC-
LOAS) da filha, ou em relação às compras e contas da casa? Resolvia tudo isso sem a ajuda
de terceiros, inclusive rofissionais de saúde.
A coordenação do cuidado diante de pessoas pobres corre o risco de ser exercida
sem adequada singularização. Pode descambar para o superprotecionismo, para a rédea
curta, cerceando as liberdades individuais de autogoverno. Pode facilmente desconsiderar
as possibilidades de caminhar a vida que os usuários sempre encontraram e impedir sua
própria resposta, pode ferir a sua autonomia ao tentar guiar o paciente como marionete. E,

13
Conforme o dicionário online da língua portuguesa Priberam: 2. Ausência de autonomia. = SUJEIÇÃO
"heteronomia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-
2020, https://dicionario.priberam.org/heteronomia [consultado em 25-03-2020].
55

por exceder os limites nessa condução dos itinerários, pode, por fim, se revelar
desinteressada e falhar de maneira abrupta e brutal como em relações descoordenadas.
Ainda, é preciso ter em mente que os dois extremos da coordenação do cuidado
podem reproduzir erros, não apenas um controle total, como também a
desresponsabilização.

6.2 DO PROCESSO DE TRABALHO DO MÉDICO DE FAVELA

[...]A própria empatia é um exercício de fingir que


sou o outro, sendo que jamais serei o outro ou verei
o mundo da sua perspectiva. Minto que tenho
genuíno interesse na história que a décima paciente
da manhã me conta [...]

Um médico de família e comunidade de São Paulo

Fôlego, pilhas e xaropes

Passados os fugidios minutos de fôlego entre os atendimentos da manhã, era hora


de retornar à sala de sua oficina. Era assim que gostava de enxergar o que o mundo
chamava de consultório. Talvez porque entendesse a medicina ambulatorial como um
ofício artesanal, talvez porque um ímpeto natural o levava a se ver mais como operário,
artífice, do que com a construção social dos doutores. Não por gabar-se de destrezas ou
perícias mais nobres do que os colegas, mas por identificar-se com o baixo clero do clã
médico, não usar jaleco ou estudar comunicação.
Era preciso iniciar tratamento para tuberculose pulmonar pela segunda vez em um
senhor imunodeprimido, com peso de um magricela adolescente. Com febre e sem apetite,
trêmulo e passivo a receber papéis e orientações diversas. Era preciso pensar em como o
despejo da casa da solidária tia, por desconforto do marido, iria afetar as regras do rígido
e longo esquema terapêutico. Era fundamental acionar a assistência social e
previdenciária para garantia de um benefício.
Aquela consulta ia se arrastar por mais de uma hora. Todas as rinites, sinusites ou
não, lombalgias, encaminhamentos, entorses e dermatites, renovação de receitas e laudos
a se amofinar na sala de espera. Não era hora de transcender, mas de operar máquinas,
amparar debilidades sociais, transmitir cuidados e deixar a porta aberta para retornos e
más notícias.
56

— Até semana que vem!


A oficina de reparos humanos na medicina de família e comunidade tem dessas
coisas. De adscrever clientela, vincular usuários, trocar telefones, bilhetes e recados, por
vezes cartas, de congratulações ou queixas, desabafos e agradecimentos, cartas suicidas
ou de condolências. Quando se vê, já se está envolto por três, quatro mil pessoas, sendo
referência de tudo para todos. É, sem dúvida, uma grande responsabilidade.
Naquele resto de dia, o médico de favela fez interpelações burocráticas sobre a
precariedade do trabalho da gestante junto ao seu patrão; conversou com uma jovem
sobre corações partidos; arrancou canto de unha; reenviou dois irmãos de volta à escola,
justificando moléstias de pele como sendo de fundo não contagioso; embalou uma úlcera
em curativo e extraviou gazes para o senhor trocar a cobertura em casa; liberou vale
transporte para deficiente visual; orientou pai de primeira viagem quanto a normalidade
dos excrementos e golfadas do seu recém-nascido; sobretratou resfriados com
indispensáveis placebos expectorantes; solicitou exames para investigação dos contatos de
tuberculoso; prescreveu para cefaleias sem comemorativos de maior preocupação;
manipulou desordens fáscio-musculares; reinicializou a impressora sete vezes; solicitou a
angioressonância para o aneurisma cerebral da técnica de enfermagem; fez o pré-natal da
moça com 32 semanas de idade gestacional; intermediou conflito entre um paciente e a
residente de primeiro ano, no corredor, por conta do tempo de espera; encaminhou uma
escolar para a endocrinologia pediátrica por baixa estatura; ouviu 5 ou 7 tiros a uma
distância de três quarteirões; enviou morfina, pelo agente de saúde, ao paciente
falciforme; iniciou haloperidol gotas para psicose não orgânica de uma idosa, depois de
lavar seus ouvidos; inseriu um dispositivo intrauterino na nulípara; internou uma senhora
ofegante com água nos pulmões; deu seguimento à investigação da hepatomegalia de uma
sexagenária e a dor pélvica crônica de uma jovem.
Nesse rebuliço todo, para cima e para baixo as consultas não foram sagradas ou
estanques, mas entremeadas por andanças para buscar papel, entra e sai da sala,
recupera-se aqui o sonar doppler obstétrico, empresta-se acolá o otoscópio, vai esquentar
o soro fisiológico, volta para procurar pilhas novas, pára e discute um caso com o
plantonista da emergência, vai correndo urinar. Chamam os internos pedindo auxílio em
doses posológicas do antibiótico e, por fim, realiza uma interconsulta de um menino com
menos de dois anos, constipado com a sua enfermeira.
57

No fim da tarde, voltou à oficina, juntou os papéis, descansou as máquinas,


arrumou a mesa, retirou as pinças cirúrgicas e a cuba, guardou seus instrumentos e
materiais na valise, apagou a luz.

Essa narrativa traz uma possível visão do médico de favela sobre o consultório
médico. Uma percepção de que realiza um trabalho como um artesão, exercendo peripécias
com grande destreza manual e perspicácia intelectual, por meio de um lapidado raciocínio
clinico, estando absorto em atendimentos que se empilham como peças a serem moldadas,
trabalhadas por esse artista. Personifica-se aqui um médico de favela, incansável, sempre
acessível, onipresente, não só aquele que trabalha na favela. Procura-se demonstrar que, ao
médico de favela, cabe, de maneira honrosa, grande parte do trabalho braçal dos médicos.
Dos reclames vulgares, das dores comuns, dos motivos prevalentes, dos diagnósticos de
rua, das moléstias autolimitadas. Que o volume de pacientes, a variedade das queixas, das
idades, são rotinas inerentes a sua prática. Que a partir desse tipo de concepção, mais do
que a aceitação dessa rotina, deve-se buscar uma profunda identificação com ela.

A oficina é a casa do artífice. Na antiga tradição, era o que literalmente acontecia.


Na Idade Média, os artífices dormiam, comiam e criavam os filhos nos locais de
trabalho. [...] É fácil entender o apelo romântico da oficina-residência para os
primeiros socialistas que se defrontaram com a paisagem industrial do século
XIX. Karl Max, Charles Fourier e Claude Saint-Simon viam a oficina como um
espaço de trabalho em condições humanas. Também eles pareciam encontrar ali
um lar acolhedor, um lugar onde o trabalho e a vida se misturavam frente a frente
(SENNET, 2012, p. 67).

Contrariando a sedução com que a crônica trata o labor do médico de favela tal qual
artesão, Illich faz comparações sobre esse mesmo espaço:

A medicina passa a ser uma oficina de reparos e manutenção, destinada a


conservar em funcionamento o homem usado como produto não humano. Ele
próprio deve solicitar o consumo da medicina para poder continuar se fazendo
explorado. [...] O silêncio sobre a probabilidade desse perigo, mantido pelas
oficinas de lanternagem humana, é nova manifestação pública da incapacidade da
profissão médica de fazer uma profunda autocrítica, o que só pode trazer
consequências sinistras para a sociedade.[...] Mas essa prática reforça a convicção
das pessoas de que são máquinas cuja durabilidade depende da frequência das
visitas à oficina de manutenção, e elas são obrigadas a pagar para que a
instituição médica possa fazer seus estudos de mercado e desenvolver sua
atividade comercial. [...] O paciente é reduzido ao papel de objeto que se
conserta, mesmo que não tenha qualquer possibilidade de sair da oficina —
esqueceram-se de que ele poderia ser uma pessoa a quem se ajudaria a curar, ou a
capengar a seu modo na natureza. Quando é autorizado a participar do processo
de conserto, é para lhe confiar um trabalho de último aprendiz, muito abaixo da
hierarquia dos consertadores profissionais. Habitualmente não se confia nele o
58

suficiente para informá-lo do diagnóstico, ou para lhe permitir tomar uma cápsula
na ausência do enfermeiro (ILLICH, 1975, p. 84).

A cena Fôlego, pilhas e xaropes foi resgatada por demonstrar um dia típico de
trabalho do profissional, que não é aquele idealizado pelos poucos aspirantes. O ritmo
acelerado, o atropelo de atendimentos e a espontaneidade no enfrentamento desse dia a dia
faz parte de um entendimento de que a demanda medicalizada, e a reação que pode assumir
tom medicalizante ou desmedicalizante, é um processo com seu curso natural na APS.
Candidatos a enfrentar uma pesada rotina e a representar um protótipo de médico
polivalente, ingressam jovens recém-graduados em medicina que, se não tiveram que
assumir desde cedo uma posição de luta política para sobrevivência da carreira escolhida,
decidiram-se por uma especialidade médica que, no bojo de seus pressupostos e
racionalidades, carrega como lema:

Ao médico de família compele cuidar de pessoas, de forma personalizada e


mostrando compaixão pelo seu desconforto, compartilhando seu sofrimento e
entendendo o significado da doença para aquela pessoa, e esforçando-se para
sentir junto com a pessoa. Assim é possível humanizar os padrões de cuidado
protocolares e tecnológicos dos dias atuais (GUSSO; LOPES, 2012, p. 9).

Segundo Olesen e colaboradores, em uma das principais definições do perfil desse


profissional, o médico de família

é um especialista formado para trabalhar na linha da frente do sistema de saúde e


para dar os passos iniciais na prestação de cuidadospara qualquer problema de
saúde que as pessoas possam apresentar. O Médico de Família cuida de pessoas
no seio da sua sociedade, independentemente dotipo de doença ou de outras
características pessoais ou sociais organizando os recursos disponíveis no sistema
de saúde em benefício das pessoas doentes. O Médico de Família interage com
indivíduos autônomos nos campos de prevenção, diagnóstico, cura,
acompanhamento e cuidados paliativos, usando, integrando as ciências da
Biomedicina e da Psicologia e Sociologia Médicas (OLESEN et al., 2000, p. 4).

O grande desafio passa a ser o equilíbrio e o uso coerente dessas duas vertentes,
tanto a técnico-científica quanto a sociocultural. De maneira que o que se observa na
prática cotidiana é que o peso das partes se incorpora de maneira cada vez mais
desarmônica. Enquanto uns se esmeram em defender uma atuação pautada na ortodoxia
clínica e a demonstram por meio de performances aterradoras em número de atendimentos,
outros deixam de lado o plano cartesiano da medicina diagnóstica e alopática, aplicando a
epistemologia integral em cenários inoportunos. Daí que não só o holismo e a objetividade,
o macro e o micro, a generalização e a particularidade devem comportar-se como
59

potencialidades cooperativas, mesmo que em determinados casos essa coprodução


signifique um esvaecimento quase total de um dos saberes para imediata retomada desse
recurso com o usuário seguinte.
Em relação à dualidade conflituosa que tempera a construção desse conhecimento
próprio da MFC, Bonet tece as considerações que seguem:

Assim, a epistemologia da especialidade que nos ocupa estará formada por dois
tipos de elementos, que chamarei primários e secundários. Os elementos
primários derivariam do modelo biopsicossocial, incorporando as ideiasholistas e
totalizantes, e os elementos secundários do modelo biomédico, que anexaria as
ideais de segmentarização. Estes dois tipos de elementos se relacionariam em
uma espécie de sincretismo hierárquico, de onde se originarão as diferentes
modalidades da prática da medicina de família; a relação e englobamento desses
elementos dependerá de cada contexto e de cada situação onde se realizam as
práticas. [...] Nesse sentido, a medicina de família estaria tentando dar conta dos
híbridos com que se encontra permanentemente no mundo do meio; olhando para
o meio, se inserindo no mundo, ou na “ponta”, como se referem os médicos de
família para falar dos postos de saúde, é que se percebem híbridos. E com eles, se
percebem as relações e não as segmentações modernas (BONET, 2014, p. 170).

Termina por caracterizar esse manejo de conhecimentos híbridos como uma


medicina das margens, que coloca diversos saberes em constante negociação.
Apesar desse aparato criado para acolher e realizar uma escuta qualificada, uma
formação dedicada para a sensibilização frente a contextos sócio culturais, esse preparo se
mostra falho quando se observa que os mfc’s lamentam o comparecimento de usuários não
realmente doentes a congestionar a agenda. Em dado momento, passam a ser
inconvenientes aqueles tantos com resfriados comuns, febre baixa com poucas horas de
aparecimento sem outros comemorativos, tosse com características de benignidade, lesões
de pele superficiais e com características evolutivas de fugacidade, dores
musculoesqueléticas agudas, leves, sem sinais de gravidade. Como bem elucida Fry (1974),
sobre a ecologia médica:

Fora do hospital, as doenças comuns em uma comunidade se caracterizam por


serem de menor porte, benignas, fugazes e autolimitadas, com acentuada
tendência para a remissão espontânea. Sua apresentação clínica tende a ser um
tanto vaga e é difícil afixar-lhes um rótulo diagnóstico preciso. Frequentemente
permanecem indiferenciadas e não identificadas do começo ao fim do episódio.
Muitas vezes a patologia clínica vem acompanhada de problemas sociais, de
modo a exigir uma conduta que simultaneamente faça frente a ambas. (FRY,
1974).

Por mais que esse médico tenha uma notável capacidade persuasiva, seja treinado
em comunicação clínica e tenha uma escuta e fala com potencial terapêutico, em
60

significativa parte das vezes a medicalização, a partir de uma vetorização assimétrica, vinda
dos pacientes, o forçará a intervir. Porém, caso não forneça a medicação, o exame, a talha
que nesse primeiro momento não aparenta ser uma conduta sábia, o usuário poderá deixar a
consulta com uma avaliação negativa do desfecho, insatisfeito.
Não se pretende anunciar a derrota definitiva da missão de desmedicalizar, que
porventura é exercida com grande sucesso, mas evidenciar a grandiosidade desse desafio e
onde está a principal força motriz que sabota o cumprimento das exigências para o bom
exercício da medicina em comunidades, enunciadas por Fry. Se a rachadura entre o
discurso e a prática já pode se avistar para as demandas agudas e autolimitadas, para as
queixas crônicas não é menos relevante. Porque, acima de tudo, consome também o
precioso tempo, põe em xeque a produtividade, ameaça metas, gera conflitos por tempo de
espera. Os demorados compartilhamentos dos sofreres de pacientes crônicos, com uma
estória de doença de longa data, também acabam por gerar desinteresse, desatenção e
repulsa entre os mesmos profissionais que as programam, agendam e convocam.
Os estudos de burnout têm voltado o seu recorte para os médicos de família e
comunidade, tanto no Brasil quanto internacionalmente (FELICIANO et al., 2011;
SANTOS, 2013; MORELLI et al., 2015). A fim de refutar a hipótese de que a
medicalização produz esse padrão, a culpa poderá ser lançada sobre o inchaço das equipes,
no número de pacientes pelos quais as equipes que sofrem por alta demanda são
responsáveis.
Um contingente expressivo dos médicos de família e comunidade elegem a pressão
assistencial, e as dificuldades em lidar com a mesma, como a principal desvirtuação da sua
prática. Por conta dela, não conseguem fazer a tão enigmática gestão do tempo,
assoberbados por ela, abandonam a carreira, pois não conseguem dar o tratamento que
gostariam e nele foram treinados. Ao invés de compaixão e zelo, passam a retribuir falas
embrutecidas e se reconhecem despersonificados.
Frustram-se, enfim, por diversos sentimentos e percepções, quando carregam
atendimentos para casa, casos na consciência, esvaziam seu repertório de lazer e tempo
livre em razão das funções laborais.
Fôlego, pilhas e xaropes é sobre a arte de ressignificar rotinas, reinterpretar
cansaços e reprocessar poderes.
61

7 A DISTOPIA COMO UM ENSAIO SOBRE A MEDICALIZAÇÃO E A MFC

País sem Médicos

Acontecera previamente com o bacharelado em comunicação social:


desregulamentação14. Qualquer cidadão com um celular na mão e conexão à internet
poderia se passar por repórter. Com apenas uma sala e um computador, fundava-se um
tabloide com alcance além de algumas esquinas, jornais não mais precisavam de prédios
inteiros. Mas, com a Medicina? Jamais, isso era impensável. Pois bem, está dado, os
carimbos com os respectivos nomes dos doutores e números de registro do intocável
Conselho Federal de Medicina de nada mais valem em receitas, laudos ou atestados. Para
a classe médica, o decreto presidencial pareceu infame e apartado de qualquer estudo
sério e bem conduzindo para mudança de políticas públicas e marcos regulatórios.
O ato médico havia caducado de vez. Mais do que isso, todo e qualquer cidadão
poderia definitivamente brincar de médico. Os jornalistas amadores estamparam essa
famigerada manchete em suas primeiras páginas.
A capital havia se tornado, após sucessivas vitórias dos republicanos liberais, uma
espécie de instância virtual, uma esplanada mitológica do tão almejado Estado mínimo. As
notícias, se eram verdade ou fakenews, escritas, como já dito, por uma horda de curiosos,
seriam apuradas conforme o cotidiano se transformasse ou inalterado permanecesse.
E os dias, de fato, estavam diferentes, mas não após aquela canetada como um
divisor de águas. Em verdade, a forma de se cuidar, procurar ajuda quando doente,
mudara insidiosamente ao longo da primeira metade do século XXI. O fenômeno que
agora se concretizara, expresso com rubrica do primeiro ministro, poderia ser
compreendido se considerassem a escalada da mais poderosa e clássica ciência durante o
período. Primeiro ocorreu a falência do sistema público de saúde, fruto do
subfinanciamento, de políticas neoliberais que não atentaram para o fato de que o custo
em saúde estava tão desmesurado que levaria à bancarrota inclusive os maiores planos
privados de saúde do mercado.

14“O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quarta-feira (17/06/2009) derrubar a exigência do
diploma para exercício da profissão de jornalista. Em plenário, por oito votos a um, os ministros atenderam a
um recurso protocolado pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (Sertesp) e
pelo Ministério Público Federal (MPF), que pediam a extinção da obrigatoriedade do diploma. ” Notícia
veiculada no portal G1, disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,MUL1198310-5604,00-
STF+DERRUBA+EXIGENCIA+DE+DIPLOMA+PARA+EXERCICIO+DA+PROFISSAO+DE+JORNALI
STA.html
62

A medicina havia se tornado perfumaria. Primeiramente, houve uma explosão


demográfica do quantitativo de médicos, com a mercantilização da graduação nas
fronteiras e no interior. A carreira, que representava próspero retorno financeiro,
começou a ser corrompida pelo capital, na formação. Como o mercado se autorregulava
sem redirecionamento dessa força de trabalho para o bem-estar social e coletivo, essa
massa de graduados em medicina optava por especializações ultramodernas relacionadas
à pedra filosofal ou ao elixir da vida eterna.
Em pouco tempo, os dermatólogos esteticistas, nutrólogos e sábios da metabologia,
experts em emagrecimento e soroterapia, cultuadores da performance humana, adeptos da
pornoprevenção e obtentores da nulidade do risco para se viver digladiavam-se, desde as
redes sociais em busca de pseudocelebridades às suas saletas de espera por pessoas
saudáveis. Até mesmo esse oceano azul de mercado em potencial se esgotou perante a
oferta ininterrupta daquela estirpe de médicos.
Com o disparar da desigualdade social, que alcançou patamares medievais, apenas
pequena parcela da população poderia arcar com fragrâncias francesas. Por incrível que
pareça, aliada a potentes aplicativos tecnológicos, a indústria farmacêutica apoiou o
suposto golpe. A população era uma consumidora voraz de toda a sorte de panaceias
químicas, a automedicação vulgarizou-se ainda mais como hábito e o aval médico, o
entreposto do consultório e o diploma haviam se tornado um estorvo para o consumo, que
agora era livre – e seus efeitos de responsabilidade do cliente.
Assim, a esmagadora maioria da população, que há anos já não podia contar com
uma seguridade social garantidora desse direito inalienável e que, por isso, já respondia a
sofreres de maneira caseira, passou a investir e aventurar-se na sabedoria do jaleco
branco, como se fosse a arte da culinária ou as engenhosidades da construção civil.
E como formam-se exímios pedreiros e meros ajudantes de obra, como se forjam
verdadeiros chefs em cozinhas clandestinizadas pela sombra da vigilância sanitária ou
açougueiros, peixeiros, marceneiros por pura prática de corte, os clínicos gerais passaram
a nascer de outras escolas que não das desacreditadas faculdades de medicina.
A posse sobre as manufaturas do homem os separavam, os distinguiam entre
classes, entre aqueles que ainda tinham acesso aos luxuosos centros hospitalares, que se
transfiguraram em hotéis de cinco ou seis estrelas, e os marginalizados. Todavia, algo
muito precioso e poderoso havia se tornado universal.
A internet promovera a informação para todos, isso, nunca se conseguiu restringir
ou cercear. De maneira que os grandes tratados das especialidades médicas, sem exceção,
63

encontravam-se disponíveis e a um clique para qualquer estudante secundarista. A


pesquisa clínica havia degenerado e todo o conhecimento médico produzido até o início do
século XX era de certo modo finito e gratuito. Daí que os novos médicos e barbeiro-
cirurgiões conseguiram saltos de aprendizado capazes, de fato, de concederem satisfatória
resolutividade no seu dia a dia e legitimidade entre suas comunidades. Sem a exigência de
esgueirar-se pelo funil da universidade pública, que também ruiria em futuro próximo, ou
sem ter que hipotecar o imóvel ou nascer em berço de latifúndio para ingressar na carreira
de doutor.
Aquele mundo desigual forçou o povo a espremer de seu caldo social uma espécie
de curandeiro-prático e autodidata. Mas como era um serviço vital, não se observou uma
substituição dos antigos e inacessíveis profissionais por uma nova classe do ponto de vista
de ofício, de emprego para prestação de serviços. Os novos entendidos estudavam para
sanar as dores dos vizinhos, parentes e amigos, desconhecidos próximos e transeuntes,
mas, como misturava a questão ética com uma liberdade revolucionária, esse tipo de ajuda
era pago ou retribuído com escambo simbólico, favores e agradecimentos.
Tatuadores que dotavam de ampla destreza manual e já sangravam a carne com
arte apoderaram-se da pequena cirurgia, retirando com precisão de lipomas a cânceres de
pele, empregando retalhos cirúrgicos dignos de cirurgiões plásticos. E, assim, a saúde que
esteve centenas de anos presa ao saber médico, escorregou de volta ao plano dos leigos e
curiosos, aos milhares de outros profissionais de saúde que por medo de cassação tinham
um leque de aptidões e habilidades contidos. Os enfermeiros voltaram a ser profissionais
essencialmente da assistência. Fisioterapeutas, quiropratas, dentistas, técnicos de
enfermagem viraram referência para uma lista de moléstias sobre as quais se debruçaram,
antes restritas ao desinteresse do médico.
O parto voltou a ser no domicílio. A morte também. Daí que todo um resgate de
subjetividades renascera. Toda a sorte de danças e crenças, cultos e valorização de
ancestralidades voltaram a permear esses momentos transcendentais. As mulheres se
agruparam umas às outras, se ajudando em momentos de alegria e debilidade, a partir de
um senso humano. Seja com os sentidos das mães ou o instinto das parteiras, tiveram um
dos maiores impulsos no movimento feminista, uma vez que recuperaram o controle dos
seus corpos com a guinada da ginecologia natural.
Grande parte dos médicos de carreira abandonou seus postos. Com a banalização
da prática, os empregos ficaram escassos e muito mal pagos. As mudanças afetaram todo
tipo de médico, do especialista em varizes ao cirurgião cardíaco, do clínico ao patologista.
64

Mas o maior e mais direto impacto se deu entre os médicos de família e comunidade, os
gineco-obstetras, pediatras e cirurgiões gerais, especialidades consideradas básicas.
Nesses postos, em torno de quinze anos após a medida, a varredura foi completa. Enquanto
os subespecialistas continuaram a atuar, em número muito mais restrito, atendendo as
elites.
O que se passou naquele ano não teria precedentes. Não foi lobby para reserva de
mercado, não foi um ataque premeditado a determinada categoria em favorecimento
doutra, mas uma expressão da desobediência civil, levando, sim, a consequente outorga
para constitucional. Ora, se o povo já estava em desalento, há muito sem ter onde recorrer,
faminto, só lhe restava comer croissants. Neste caso, o maior fruto da rebelião que
culminou na histórica desregulamentação, pontuaram bem os analistas do futuro que se
consagraram como escritores, foi a retomada da autonomia.
Pela lógica do processo de trabalho daquele grupo de médicos, a transferência de
conhecimento encadeada – do especialista focal para o generalista, desse para os
enfermeiros, em seguida para técnicos e agentes de saúde, até que o saber fosse repassado
à população –, isto é claro, sobretudo aquilo que fosse comum, prevalente, sobre as
patologias que mais afligissem a gente, era um dos maiores objetivos. Como não ocorrera
pela maturidade da profissão e de seus atores, a nova organização da sociedade frente às
questões médicas acabava por abocanhar aquilo que lhe fora ofertado à distância.
Se antes era preciso enfrentar uma fila de horas para, na unidade de saúde, receber
uma receita de amoxicilina a fim de combater a presumível pneumonia do seu filho, agora,
sem valer-se de mercado negro, ou desvio do farmacêutico, conseguia-se o antibiótico.
Caso assumisse comportamento de risco e temesse por ter contraído uma doença,
como o HIV, era possível recorrer a um centro administrativo de saúde, solicitar para si
próprio o teste, confirmar o resultado positivo com um segundo, pegar as medicações e
realizar os exames de rotina e seguimento, tudo isso sem ter que confessar seus atos, abrir
pauta sobre sua sexualidade a um médico e ouvir seus conselhos tardios e julgamentos
precoces.
Nesses fluxos, o protocolo e a máquina haviam substituído o médico. Mas, se a
internet e tecnologia ameaçavam, muito antes dos médicos de família e comunidade, os
radiologistas e imaginologistas, esses primeiros não foram pegos de surpresa.
65

Vinte anos atrás, eram considerados o flavour of the season15, haviam se tornado a
maior sociedade de médicos especialistas do país. Como carro chefe do modelo
tecnoassistencial escolhido pela esfera federativa, tiveram uma grande onda de
valorização salarial e foram beneficiados, em termos de poder, por grandes reformas pró-
conteúdo e pró-coordenação16 insaturadas nos mais remotos municípios.
No entanto, por mais que se pretendessem com aparente similaridade aos médicos
de bairro cubanos ou algo parecido ao barefoot doctors17 da revolução cultural chinesa,
com o acúmulo de poder vieram a tomar novos rumos. Arregimentados pelo que
convencionou-se chamar de saúde corporativa, foram alocados em cargos de grande
respaldo, passando a servir como primeiros correspondentes em saúde de executivos de
ponta, em empresas nas mais iluminadas avenidas e praças comerciais.
Um dos seus lemas mais bradados era aquele que dizia: “O médico de família é
especialista em gente”. Essa bandeira não foi sustentada. Hasteada em altura muito baixa,
passou a tremular irônica ao vento. Uma crítica à segmentação corporal em órgãos e
sistemas, prática doutrinária das demais especialidades focais, perdeu o sentido.
O editor chefe da redação, que começara como office boy, sem nunca ter prestado
vestibular, do jornal de maior veiculação do fim do século em que se deu essa hecatombe
política, haveria de enunciar, em feliz publicação, que os médicos de família tiveram a
chance de se infiltrar no seio das famílias, dos lares, de, com a toga da medicina, se
aproximar das pessoas e fazer parte das comunidades como engrenagem mítica, mas
declinaram. Diriam que era trabalho por demais, muita demanda, muito problema. “Não
bancamos essa curiosidade toda, não é possível ser bala de prata do Estado para a
infinidade de mazelas sociais que na saúde desaguam. Porteiro, nesta portaria, não!”
Tudo aquilo que apregoavam ou que propagandeavam como genuíno interesse, na
hora decisiva, recusaram, reclamaram.

15
Do inglês: sabor da estação. Expressão empregada pelo autor para demarcar a era de ouro da especialidade.
16
As reformas internacionais da atenção primária costumam ser pró-conteúdo (melhoram a oferta de serviços
e a capacidade de resolução de problemas de saúde). Poucas reformas são pró-coordenação (dão mais poder
ao médico geral para coordenar os serviços que seus pacientes precisam). A tendência internacional é
fomentar a autonomia e independência do médico de família e comunidade e aumentar seu poder de
coordenação, com a implantação do pagamento por capitação e do papel de filtro (gatekeeper, ou porteiro)
(GUSSO et al., 2019).
17
Médicos de pés descalços foi uma tentativa via mobilização política para resolver os problemas básicos de
saúde nas áreas rurais da China em 1968, sob o governo de Mao Tse-Tung, quando a nação estava em
desenvolvimento. A maioria dos médicos de pés descalços se formavam no ensino médio, praticando por 3 a
6 meses treinamento no condado ou hospital comunitário. Daí a cobertura médica no campo rapidamente
expandiu. Apesar das críticas, as pessoas geralmente têm memória positiva dos médicos de pés descalços que
forneceram serviços médicos equitativos, especialmente quando a crise de saúde dos camponeses agravou-se
substancialmente após o sistema quebrar, na década de 1980 (ZHANG, 2008).
66

Todo o movimento articulado pela gerência local, em prefeituras e subcidades, em


sertões e recôncavos, de balneários a grandes metrópoles, toda barganha e disputa para a
construção daquela porta de entrada, pensada a partir da humanização de técnicas e
políticas, toda a gama de atribuições pelas quais clamaram e receberam a
responsabilidade, extravasou em suas incompatíveis avaliações de declínio da qualidade
de vida próprias.
Não suportando tantos problemas, queixas e mais queixas de pacientes
desfigurados e deformados, nem tanto por organicidades adoecidas, mas por injustiça
social, jogaram a toalha e evadiram.
Toda a reviravolta apresentou reflexos diferentes a depender da província. Em
muitos rincões, o médico já era um intermediário a ser vencido, atravessado para consumo
das mercadorias em saúde. Um instrumento da política local a possibilitar favores,
chancelando o acesso a exames complementares ou a medicações. Muitos deles cediam,
antes mesmo do texto que virou lei, sem pestanejar, esses recursos como reféns do apelo
popular por xaropes, polivitamínicos, psicotrópicos, bem como por ultrassonografias,
tomografias e etc. De certo modo, pouca diferença fez, nessas instâncias, ter ou não aquela
figura apática e burocrática.
Mais uma vez, os fortuitos escribas vieram salientar que, se agora a situação era
perene, um ensaio bastante preciso das consequências da anulação dos carimbos poderia
ser relembrado durante uma greve com paralisação geral dos médicos. Há não mais de
nove meses apenas, o que se viu foi a continuidade da vida das pessoas e o lamento pela
falta do remédio controlado como a mais aguda reivindicação.
Os poucos médicos de família e comunidade que restaram tiveram que se adaptar.
Quem os procurava já tinha realizado uma série de tentativas terapêuticas, ampla pesquisa
virtual, considerado um punhado de diagnósticos diferenciais, mas continuavam sem
resposta. Os pacientes, então, procuravam estas esparsas e discretas garagens,
consultórios de fundo de quintal, para um café e uma segunda opinião. Nesses laboratórios
rudimentares, os médicos de família e comunidade preservavam um arsenal de
anacrônicos utensílios diagnósticos, entre martelos, fitas métricas, diapasões, dentre
outras quinquilharias, sempre armazenados em uma valise de couro, talvez a única marca
que os identificasse.
Até que os mais joviais periodistas divulgaram o contragolpe. Através de
embaraçado processo de apresentação de documentos comprobatórios, os médicos teriam
67

suas conquistas retomadas, conferindo-lhes o título de “Médico” por meio de pergaminho


com timbre a laser, resistente a estelionatários e falsificadores.
Não se sabe ao certo o porquê da decisão, mas veio de cima, como as opções de
entrar ou sair de determinada guerra, ser aliado ou inimigo de uma nação e depois aliado
novamente, em vai e vens, como aconteceu com a proibição e liberação do aborto, das
drogas ilícitas e do porte de armas, ficou resolvido que apenas aos médicos caberia a
diagnose, a propedêutica clínica e o direito à introdução de terapias.
Mas o cotidiano, diriam os herdeiros dos datilógrafos, não mais mudou.

Em O Senhor das Moscas (1959), William Golding descreve uma distopia onde
crianças de seis a doze anos, ilhadas após acidente aéreo, fundam nova organização social,
sem a interferência de adulto algum. O clássico da literatura infanto-juvenil tornou-se uma
das teses mais contundentes sobre a naturalidade do mal, que encontra seus meandros em
um meio de escolares aparentemente puros e inocentes, do ponto de vista de contaminação
pelos desejos e caprichos da vida adulta.
O que me leva a ensaiar um universo paralelo em que a Medicina perde seu valor
como sólida instituição social, e a motivação para construir uma analogia com a obra de
ficção, se dá a partir da erupção da autonomia que gozam Ralph, Porquinho, Jack e demais
garotos ao se perceberem, apesar de isolados, livres. Também com a ruína do establishment
médico, quero colocar em observação as manifestações da autonomia de que passam a
desfrutar as pessoas.
Assim como crianças podem sobreviver a uma tragédia e ficar à própria sorte e
regras, alheios à civilização, como em uma ilha, apesar de improvável, não é impossível.
Mudanças na regulamentação de categorias profissionais dessa monta, assimilação de
novos comportamentos pelos pacientes ou desdobramentos espontâneos da evolução de
uma carreira também seriam passíveis de se materializar. Até onde País sem Médicos é
ficção? Em que momento esbarra na realidade? Algumas das projeções estão em curso,
talvez em um estágio prévio ao do texto? Trata-se de exploração de absurdos ou contextos
possíveis? A fusão realidade-ficção é pretendida desde o início, entendendo como exitoso o
alcance de um fator confusional entre os dois mundos. Sobremaneira, em País sem
Médicos, quis mostrar as consequências da destituição de um poder.
Landi (2018), em sua etnografia sobre os cuidados em saúde, a partir das vivências
de uma psicóloga em um hospital geral, menciona caminho de Cho (2008), que
68

traz para a discussão sobre a metodologia de pesquisa, a possibilidade de mesclar


fantasia, ficção, relatos factuais e narrativas das ciências sociais ou da história,
dando atenção ao que faz as lacunas, os intervalos, que marcam os não-ditos e
mostram o que os furos da história podem carregar. A autora propõe uma
mudança no foco da questão metodológica de uma pesquisa. Ao invés da
preocupação estar em qual método deve ser adotado, ela propõe a questão sobre o
que no percurso da pesquisa é rejeitado ou permanece invisível (CHO, 2008 apud
LANDI, 2018).

Já no primeiro período note-se que a opção não é dar aà Medicalização as rédeas da


narrativa. Pelo contrário, opto por derrubar o fenômeno para, então, revelar seus domínios e
interferências em uma especialidade e uma população por essa atendida. Escolho tratar da
desMedicalização antes de tudo, do mundo a partir de sua inexistência, da sua ausência
como ordem. Acredito que a proposta de partir dessa reversão completa possibilite
demonstrar onde se expressa de maneira mais óbvia o poder médico sobre a vida das
pessoas, utilizando a medicina de família e comunidade como artifício, e bem como onde e
quando a entidade se rebela, negando-se a comportar-se como ardiloso artefato desse status
quo.
Um dos conflitos mais acirrados que busquei trazer em País sem Médicos foi a
afirmação e negação do poder do médico de família e comunidade por ele próprio. Essa
pulsão entre a absorção de queixas sociais, pessoais, familiares, culturais que, sim, tem
extravasamentos importantes no campo da saúde, mas que satura o profissional, o exaure.
Mesmo que procure negar a aceitação de mais atribuições que lhe são impostas, seu
perfil as atrai. É porta de entrada, é o primeiro contato, deve acolher todo e qualquer
problema, respeitando a inespecificidade inata do generalista. Tal posição no sistema de
saúde, porém, em tradução consagrada e adequada (gatekeeper - porteiro), não deixa de
significar poder. Poder, esse, retratado no texto que prove ao profissional médico uma
posição de sempre requisitado, pela qual as pessoas estão a buscar e necessitar de suas
vistas e cuidados. Esse mesmo poder que conduz, na atualidade, a um dos maiores desafios
e perturbações do seu processo de trabalho, a lida com uma demanda irrefreável, insaciável,
gravitacional.
Procuro chamar a atenção não para a restrição e controle desse fluxo, como por
vezes equipes de saúde da família praticam ao trabalharem organização do acesso, mas para
a perda desse poder, desse centro, desse lugar de referência com a inoculação imaginária no
cenário da desregulamentação.
Nessa cena, em que os dados são fruto da imaginação, os mesmos, porém, não
deixam de guardar ligação com o solo social e político contemporâneo, demonstrando um
69

engajamento que não quer distrair ou apenas alienar, senão provocar. No livro
Intermitências da Morte18, de José Saramago, a lida com uma realidade súbita e inesperada
é capaz de despertar toda uma nova visão sobre as passagens enlutadas, a negação da
terminalidade e os entendimentos sobre a história natural dos ciclos de vida.
A medicalização funcionaria conectando de maneira tão magnética as pessoas aos
sistemas de saúde pelo fato de problemas de ordens diversas serem encarados como
problemas médicos. E, dentro desse campo de atração, o médico de família e comunidade
estaria em zona crítica e estrategicamente funciona como mais um ímã.
Em A História da Sexualidade volume I - a vontade de saber, Foucault (1999)
explora a consagrada confissão pela Igreja Católica, bem como sua apropriação por outras
instituições, fomentando os novos discursos sobre o sexo em espaços controlados e
coercitivos:
A Idade Média tinha organizado, sobre o tema da carne e da prática da confissão,
um discurso estreitamente unitário. No decorrer dos séculos recentes, essa
relativa unidade foi decomposta, dispersada, reduzida a uma explosão de
discursividades distintas, que tomaram forma na demografia, na biologia, na
medicina, na psiquiatria, na psicologia, na moral, na crítica política
(FOUCAULT, 1994, p. 35).

Em País sem Médicos, há uma chamada em relação a essa função de pároco que o
médico de família assume. Por vezes, na consulta ambulatorial, em busca de um
diagnóstico oculto com causalidade psicossocial, mais do que assemelhar-se a uma
confissão, esse momento pode ainda descarrilhar para um inquérito sobre nuances de
relações familiares, desejos, perversões e outras intimidades da alma.
Enquanto a confissão provou ser mecanismo poderoso para a rendição individual, o
sermão, por sua vez, poderia ser compreendido como uma prática capaz de subjugar
coletividades. Constitui um discurso pelo qual se ensinam valores ético-morais,
normatizam-se comportamentos, proíbem-se os desvios e condenam-se as diversidades. Na
atenção primária à saúde, há um grande apelo em relação as abordagens comunitárias e
atividades voltadas para intervenções coletivas, grupos de educação em saúde representam
práticas doutrinárias. Em uma perspectiva histórica resgata-se que:

18
Na obra de Saramago, enquanto a ausência da morte mostra o colapso das estruturas políticas, sociais e
religiosas, seu retorno deixa inquietos todos os vivos, pois relembra que basta existir para estar sujeito a tal
desfecho. A obra convida o estudante de medicina a refletir sobre o respeito à vida, incitando-o a admitir seus
limites. Tal apelo permite entender e evitar a tentativa de preservar a vida a qualquer custo, como acontece
quando a prática médica incorre em obstinação terapêutica curativa, prolongando muito o sofrimento do
paciente em lugar de oferecer algum alívio com o emprego de cuidados paliativos (SANTOS, 2018).
70

A Educação em Saúde surge formalmente no Brasil noinício da década de 1920,


por iniciativa das elites políticas e econômicas, tendo sido fundamentalmente
influenciada pelas experiências europeias dos séculos XVIII e XIX, voltadas para
uma visão higienista, etnocêntrica e hegemonica.1 Esses discursos defendiam
uma conduta racional e laica perante a doença, contrapondo-se a ideologia
místico-religiosa. As práticas de saúde desconsideravam o saber e as formas de
ver e cuidar da vida da população, tendo um caráter excessivamente
normatizador, que visava garantir a manutenção do modelo concentrador de
riquezas. Essa tendência da Educação em Saúde manteve-se hegemônica até a
década de 1940 (DUNCAN, 2014, p. 98).

Notadamente a partir de 1970, os profissionais de saúde insatisfeitos com o modelo


em voga reagem e passam a confrontar essa proposta conservadora com ideias progressistas
de uma Educação Popular alinhada aos interesses das pessoas assistidas. Paulo Freire é o
principal teórico de correntes como a Pedagogia da Libertação, que ganham força a partir
desse período e passam a nortear uma transformação dessas práticas de maneira
antihierárquica, bem como servir de base para a formulação de políticas na área.
No entanto, como a formação qualificada dos profissionais em APS tem se
delineado como um dos maiores desafios para o SUS, a disseminação dessas orientações e
a capacitação dos mesmos se deu, ao longo dos últimos anos, de maneira heterogênea e não
capilarizada, de forma que, em grande parte das unidades de saúde em que as atividades
coletivas praticam rotineiramente educação em saúde, o fazem

Na pedagogia tradicional, segundo Pereira as ações de Ensino estão centradas na


exposição dos conhecimentos pelo educador, que assume posturas centradas na
vigilância, no aconselhamento, na correção e na transmissão do conhecimento,
constituindo-se como autoridade máxima, ou seja, único sujeito responsável pela
condução do processo educativo. Essa linha pedagógica em geral trabalha com
práticas nas quais predominam a metodologia expositiva, referendando a
repetição como forma de garantir a memorização de conteúdos que não
necessariamente se relacionam com a realidade local (DUNCAN, 2014, p. 100).

Como são orquestrados por lógicas de produção, gerenciais, ávidos por números de
controle, os grupos criativos que conseguem trabalhar a saúde de forma lúdica são
exceções. Em sua maioria, as atividades coletivas são pouco dinâmicas e atrativas.
Não à toa, os grupos de planejamento familiar, em sua maioria, são esvaziados. A
educação sexual pregada nas escolas é motivo de troça pelos alunos pré-adolescentes. Os
grupos de hiperdia (hipertensos e diabéticos) funcionam apenas para pacientes obedientes,
que já frequentam com regularidade as unidades e escutam o sermão a fim de obterem sua
nova receita e pedido de exames. As reuniões antitabagismo não sustentam a assiduidade
do grupo, dada sua longevidade em etapas e extenso conjunto de normas, enquanto as
71

medicações usadas na abstinência, como os adesivos de nicotina, passam da validade nos


estoques.
72

8 MEDICALIZAÇÃO E MFC: EM BUSCA DE UMA TEORIA

8.1 A CONSTITUIÇÃO DA MEDICALIZAÇÃO NA MODERNIDADE

Segundo Foucault (1979a), os primeiros registros da Medicina Social datam do


começo do século XVIII. O autor faz uma instigante colocação, a de que a medicina
moderna, atual à época da publicação, seria menos individualizante e mais coletiva do que
aquela praticada na Idade Média. Defende ainda a hipótese de que o desenvolvimento
capitalista caminhou no sentido de empoderar a medicina do controle dos corpos, daí sua
trajetória socializante, de se tornar tecnologia de alcance populacional, não sendo
satisfatoriamente representada a medicina moderna pelo cuidado individual, ou pelo
encontro médico-paciente, sendo estas últimas apenas uma de suas alegorias.
No entanto, a visão médica do corpo como força de trabalho será apenas uma das
últimas interpretações do capital, exemplificada no caso do desenvolvimento da Medicina
social inglesa, tendo, nos casos alemão e francês, etapas prévias.
O pioneirismo alemão no desenvolvimento de uma ciência de estado deveu-se
contraditoriamente a pressões negativas econômica e política. A ociosidade de um efetivo
burguês frente a uma vagarosa transição das práticas mercantilistas para o capitalismo
industrial, ao longo do século XVII, foi oportuna para aparelhar o estado prussiano com
recursos humanos e operacionais, de maneira a organizar o primeiro modelo de estado
moderno.
Chama a atenção a normalização do médico anteceder a normalização do doente,
nesse contexto, outorgando poder às universidades para a chancela dos primeiros atores da
profissão médica. Outros dois fatores contribuintes para a largada germânica à frente nessa
corrida foram a criação de um sistema de informações em uma esfera superior de
vigilância, sob a qual os médicos estavam subordinados, no sentido de fornecerem
notificações de doenças potencialmente epidêmicas e outros agravos de interesse do estado.
A organização do que o autor denomina de polícia médica alemã é, então,
representativa de uma Medicina Social que se desenrola antes mesmo da medicina
científica, acadêmica, anatomopatológica, mas gerida no bojo público-estatal, com meios e
fins políticos.
Diferentemente da Alemanha, a França normatiza prioritariamente seus canhões e
professores, não os médicos. A medicina social é fomentada pela desorganização dos
aglomerados urbanos capazes de gerar espaços insalubres. Não parte, então, de uma
73

sincronia administrativa do corpo estatal, mas da necessidade de regulamentar os serviços,


os espaços e as relações entre classes sociais assimétricas, para atender pressões político-
econômicas que emergem da explosão demográfica desses novos centros urbanos.
A adoção do modelo de quarentena, uma tecnologia medieval aparelhada com o
toque de recolher e fiscais de rua, é uma das principais medidas encontradas pela burguesia
e aplicada pelas autoridades para restabelecer a ordem frente a ameaças epidêmicas,
durante esse período. No caso francês, atende melhor o modelo de quarentena aplicado no
enfrentamento da peste, que é o de esquadrinhamento da cidade, inspeção, revista
minuciosa, registro, e não o da hanseníase, pautado na exclusão e isolamento do doente
estigmatizado como leproso.
Destacando os principais objetos de estudo da medicina social urbana francesa: os
cenários de confusão, amontoados e perigosos, e a circulação da água e do ar. A partir
desse enfoque, normas passam a operar quanto ao funcionamento de cemitérios, ossuários,
matadouros, feiras, espaços comuns de circulação e rede de esgotos e águas.
A medicalização das cidades trouxe à Medicina um contato com ciências extra
médicas, como a química, e a atenção para o estudo do meio como determinante para o
processo de adoecimento. Consagra-se o conceito de salubridade que, definindo o estado
das coisas que afetam a saúde, justifica a relevância de um controle político-científico desse
meio.
Em A Política da Saúde no século XVIII, Foucault (1979b) se detém
primordialmente à análise de três elementos chaves: a formação de uma nosopolítica, a
medicalização das famílias e a reestruturação dos hospitais. Faz, primeiramente, ressalva
antes de se ater aos elementos em estudo, enfocando na indissociabilidade entre a medicina
privada e socializada, que não devem ser interpretadas como forças concorrentes, ou
desdobradas uma da outra, mas como iniciativas paralelas, compositoras de uma estratégia
global comum: aumentar o nível de saúde da população.
Uma infinidade de movimentos e atores vem formar esse aparato assistencial, para
dar resposta a onda de explosão demográfica das cidades. Toda essa resposta não parte
exclusivamente do investimento estatal, observando-se uma rede construída pelas
fundações, abrigos e dispensários, instituições filantrópicas e paroquiais que, juntos, vão
representar os principais sítios de cuidado.
A nosopolítica descrita por Foucault, que encampa as ações das políticas públicas
em saúde bem como das relações entre o estado e o setor saúde, vai se dedicar ao doente e
ao pobre de uma maneira não calcada em terapêuticas baseadas em caridade, mas com
74

propensão a decompor a natureza dessas filas de desgraçados, separando-os entre aqueles


aptos e inaptos a retornar ao mercado de trabalho, os gravemente enfermos e os
mendicantes e ociosos, implementando toda uma lógica do que se chamou de
decomposição utilitária da pobreza e sob essa nova abordagem, com um novo viés de
custo-efetividade, é que se darão as novas modalidades de assistência. Tenta-se desapegar
dos hospitais a convenção de um depósito de marginalizados por mazelas mais sociais de
prognóstico estagnante, que condições clínicas.
Nesse cenário de transformação das formas de lidar de forma mais arrojada com
uma população carente, emerge a figura da polícia, responsável pela regulamentação desses
novos fluxos que controlam, de maneira ordeira, desde o respeito às práticas de higiene até
a vigilância dos vadios.
Foucault (1979b) também denuncia a medicalização das famílias, principalmente na
defesa das crianças como uma das prioridades imputadas aos pais. Nessa época é que as
regras de higiene, educação e relacionamento dentro lar são absorvidas, pela sociedade
ocidental, com um peso moral importante e, desde então, a família e as crianças tornam-se
objetos facultados ao controle da medicina de uma maneira que só viria a se intensificar.
Ficam bem estabelecidos os núcleos responsáveis pela saúde dos indivíduos e sua
interdependência: as crianças dos pais, e ambos aos médicos, esses, por sua vez, ao estado
ou ao mercado regulamentado, em clara linha hierárquica, moldando uma cadeia que
simboliza estruturalmente a política de saúde em fins do século XVIII. Sobre uma figura
central colocada aqui é válido ressaltar que:

O médico se torna o grande conselheiro e o grande perito, se não na arte de


governar, pelo menos na de observar, corrigir, melhorar o "corpo" social e
mantê−lo em um permanente estado de saúde. E é sua função de higienista, mais
que seus prestígios de terapeuta, que lhe assegura esta posição politicamente
privilegiada no século XVIII, antes de sê−la econômica e socialmente no século
XIX (FOUCAULT, 1979b, p. 310).

A crítica ao hospital é o último nó crítico relativo ao campo no século XVIII,


denunciando uma instituição que se tornara um feudo burocrático de difícil acesso, com
baixa resolutividade, distante das comunidades, centralizadores, sem serviços
especializados, de maneira não condizente com a pressão assistencial das novas famílias e
ou adequado para dar suporte às emergências. A descrição deste hospital decadente faz
parte de um estudo que demonstra um grau estarrecedor de atualidade e verossimilhança
com tais instâncias prediais contemporâneas em países em desenvolvimento.
75

Na verdade, o hospital, apesar de ser uma instituição com paredes e processos de


trabalho em ruínas há séculos, não sucumbiu. As críticas permanecem na atualidade, bem
como as soluções descritas também dialogam com os rumos tomados pelos sistemas de
saúde ao longo dos séculos XIX, XX e XXI.
A dogmatização de práticas que vigiam a sociedade, seja contabilizando o número
de mortos e de nascidos, seja por meio da regulamentação sanitária de cemitérios e
matadouros, oriunda da sistematização dos primeiros sistemas de saúde pública europeus,
como primeiras medidas incorporadas pela Medicina Social, ao longo do século XX e XXI
se sedimentaram como práticas estatais universais.
A contabilidade médica passou a ter interesse por dados cada vez mais diversos dos
cidadãos. Para muito além de contas mercantilistas de soma de nascimentos e subtração de
óbitos, que serviam para estimativa de população economicamente ativa, os cálculos
voltaram-se para uma extensa gama de variáveis, que agora almeja levantar o número exato
de pessoas com toda sorte de diagnósticos descritos no código internacional de doenças.

8.2 BREVE APANHADO DE FORMULAÇÕES SOBRE A MEDICALIZAÇÃO

A Medicalização é tida como um complexo fenômeno pela sociologia médica,


sendo objeto de estudo desde a década de 1950. O conceito em si sofreu mutações,
abarcando uma série de processos para além da sua definição clássica, tornando-se
polissêmico, razão pela qual alguns autores têm indicado a necessidade de maior precisão
teórica ao se abordar a medicalização (ZORZANELLI et al., 2014).
No início, o termo foi empregado para descrever a amplidão de condições humanas
que, de desvios morais, passam a ser tomados como posse, categorizados e biologizados
pela Psiquiatria. Recebe, em seguida, uma primeira cristalização teórica: “definir um
comportamento como um problema médico e licenciar à profissão médica a oferta de
algum tipo de tratamento para tal comportamento” (CONRAD, 1975). Seguindo essa
corrente, outros teóricos fundantes, como Zola (1972), reforçam, em seus trabalhos, a ideia
da expansão das fronteiras da medicina, colocando em evidência a instituição médica como
um órgão de controle social. Illich (1975) denuncia as várias faces iatrogênicas de uma
empresa médica que, por seu insaciável acúmulo de poder, lesa desde o indivíduo, por seus
excessos intervencionistas, até a sociedade e sua cultura.
76

Foucault (1979a) vem oferecer contribuições que agregariam ao constructo novos


sentidos. Primeiramente, realiza uma retrospectiva histórica, para alertar que a
Medicalização tem seu despertar no século XVIII através do nascimento da medicina social
nas embrionárias nações, como Alemanha, Inglaterra e França, datando, pois, da construção
dos sistemas e políticas de saúde desses estados. Para o autor, seria já nesse período,
quando da preocupação contábil da força produtiva das populações, da necessidade de se
esquadrinhar as cidades, instituir uma polícia com funções sanitárias e determinar normas
de convívio social nos seios das famílias que as primeiras práticas medicalizantes são
empregadas.
Esse biopoder, que envolve desde o controle dos corpos individuais (poder disciplinar),
e biopolítica, materializado no interesse estatal em estudar a saúde das massas sob uma
perspectiva de produtividade, servirão de base para a discussão contemporânea da
biomedicalização19. Essa, por sua vez, consiste em uma das principais derivações do
fenômeno macro que procura atender toda uma série de transformações nas relações de
poder entre medicina e homem. Todas elas, colocadas a partir da incorporação de
tecnologias como a genética e a sua maleabilidade futurística, a informática médica e os
novos dispositivos protéticos que ofuscam os limites entre corpo e máquina. (GAUDENZI,
2016).
Nessa linha do tempo, que narra as transformações de uma terminologia, aqui
expressa em saltos, é preciso destacar um importante descolamento na compreensão da
Medicalização. Estudiosas como Lupton (1997), passam a defender o componente de
participação ativa dos pacientes no processo, deixando de enxergar as pessoas como meros
corpos-alvo de políticas ou procedimentos. Na verdade, os cidadãos gozariam de um poder
decisório para se automedicalizar que independeria inclusive da figura médica sempre tida
como central. Mas, que num breve curso de vinte anos, perdera espaços para outras
entidades, como o mercado, a indústria farmacêutica e a internet, que passam a constituir
novos canais de contato e informação, constituindo-se como atores que passam a disputar a
exclusividade médica sobre o conhecimento e a informação em saúde.
A partir das distintas contribuições dos diversos pensadores e críticos que se
dedicaram ao tema, é possível sistematizar quatro diferentes níveis de ocorrência da
Medicalização (ZORZANELLI et al., 2014): 1) as estratégias massivas de sanitarização da

19
A biomedicalização, por outro lado, implica a internalização da necessidade de autocontrole e vigilância
pelos indivíduos eles mesmos, não exigindo necessariamente intervenção médica. Não é apenas uma questão
de definir, detectar e tratar processos mórbidos, mas também de ser informado e alerta de possíveis riscos e
condições que podem levar à doença (IRIART; MERHY, 2017).
77

população; 2) a transformação de comportamentos considerados desviantes em doenças; 3)


a ação do controle e imperialismo médico; 4) a participação de atores fora do campo da
medicina. Essa simples segmentação dos diferentes tipos de práticas medicalizantes já se
mostra capaz de especificar as facetas, categorizando os exemplos do passado ou
contemporâneos em eixos mais bem delimitados.
Através dessa esquematização, torna-se possível realizar o caminho inverso e inserir
cada corrente teórica em uma das dimensões propostas com relativa facilidade. Assim,
podemos compreender que as iatrogenias illichianas se encaixam mais adequadamente nas
ações de controle e imperialismo médico, sem, no entanto, negar a proximidade da ideia de
iatrogênese estrutural e cultural com a quarta dimensão. Enquanto o controle dos corpos e
somatocracia foucaultiana dialogam mais intimamente com o primeiro eixo. Szasz (1974),
quando se refere ao inchaço das questionáveis taxonomias psiquiátricas sobre padrões de
normalidade, fica contemplado na segunda linha.
Os autores citados na estruturação do elástico conceito de Medicalização versam
sobre a temática expandindo-a, porém, sem maiores choques, apenas interseções. Apesar da
crítica de Clarke (2010) sobre a contaminação do termo, ao agrupar o quarto nível de
ocorrência da Medicalização, este mais bem descrito por Lupton (1997), não chega a trazer
uma abordagem que vá de encontro com os autores fundantes da década de 70.
Afinal, Illich (1975) já alertava para o risco de dependência e da heteronomia
produzir consumidores eternos. De maneira que o que aconteceu com a descrição do
fenômeno parece mesmo ter sido intumescências semânticas sem maiores dilapidações,
apenas enxertos, o que reforça a relevância da divisão em categorias para melhor
entendimento dos seus variados sentidos.
Trabalhos mais recentes, publicados no início do século XXI, trazem uma dobra
nessas perspectivas. A Medicalização, segundo Rose (2007), estaria entranhada em tudo,
constatando que a Medicina realmente nos fez quem somos, dada a profunda influência em
todas as esferas da vida das pessoas.
Tal invasão que, por muito tempo, foi tomada como crítica pela sociologia médica,
hoje, deve ser repensada como ponto de partida, nunca para enquadramento de uma prática
“x” ou “y” como medicalizante ou não. Porque não bastaria acusar determinada ação da
apropriação médica, uma vez que a vida contemporânea foi construída em suas normas por
ditames da ciência médica:
78

[...] a escola e a casa, transformadas pela medicina em máquinas higiênicas,


inculcaram hábitos e maneiras que tornaram-se automáticas, de maneiras à mesa
para escova de dentes. Práticas de defecação, micção, menstruação etc.
produziram corpos que são disciplinados em relação a saúde de maneiras não
precedentes. Gerenciamento médico de sexualidade reformulou regimes de prazer
[...] (ROSE, 2007, p. 700).

Isso, para não elencar uma infinidade de outros exemplos que se tornaram lógicos,
que tiveram uma relação inextricável com o desenvolvimento da medicina. Daí o selo de
medicalização não servir nem mesmo como crítica à simples associação de qualquer
fenômeno à influência médica, porque, sim, já é reconhecida sua universalidade.
O enquadramento de todas as facetas e dinâmicas das complexas relações entre
profissionais de saúde, pacientes, poder público e mercado, dentre outros atores, parece
insuficiente quando resumido em medicalização. Outras denominações auxiliaram na
descrição das diferentes cenas que passaram a fazer parte desse repertório, como a
Biomedicalização e a Farmacologização20, dando conta dos efeitos gerados pela
incorporação de novas tecnologias. A Farmacologização parece, por exemplo, definir
melhor o processo pelo qual o médico torna-se um mero intermediário entre a consulta do
paciente e a propaganda do remédio ou sua busca digital, utilizando calculadoras
diagnósticas virtuais, o que, evidentemente, vai contra a ideia de imperialismo e poderio
médico evidenciados pelos teóricos da década de setenta.
A análise do desdobramento desse fenômeno na pós-modernidade trouxe a
preocupação para dispositivos que deixaram de representar a ficção científica e aportaram
na realidade, como a aplicação das descobertas da biologia molecular, da manipulação
genética e dos avanços no transplante de órgãos. O grau de sofisticação desses campos
definitivamente coloca essa discussão em um patamar futuro e distante de um lócus
contemporâneo, onde o contexto médico majoritário dos encontros em saúde é verificado
em atendimentos ambulatoriais, emergenciais e de hospitais gerais.

20
[...] Tradução ou transformação de condições, capacidades e potencialidades humanas em oportunidades
para intervenções farmacológicas. Ainda que com larga superposição com a medicalização, a
farmacologização se distinguiria por não estar necessariamente ligada a algum tipo de diagnóstico médico,
como se vê no fenômeno cada vez mais presente da utilização de medicamentos sem indicação terapêutica,
mas para atingir uma certa "supernormalidade", por meio do aperfeiçoamento farmacológico
("enhancement") (CAMARGO JUNIOR, 2013, p. 845).
79

8.3 MEDICALIZAÇÃO NA APS E MFC

Nos ambientes de atenção primária à saúde, que somam a maior parcela dos sítios
ao redor do mundo onde se vive a relação médico-paciente, esses instrumentos alegóricos
das tecnologias ultra brutas não se fazem tão presentes. Nesses espaços, a Medicalização se
dá ainda de maneira rudimentar, conforme explicitado pelos teóricos da segunda metade do
século XX, em velhas práticas medicalizantes, encontrando-se nas palavras do profissional,
na assimetria da relação, em suas atitudes autoritárias, no cerceamento de autonomia do
doente e sem deixar de se impor nas receitas.
Tendo essa construção histórica em mente, é possível explorar sob outra lente as
políticas públicas de expansão e cobertura máxima pela Estratégia Saúde da Família, de
territorialização, esquadrinhamento populacional por meio de cadastro detalhado das
famílias, visitas domiciliares regulares pelos agentes comunitários de saúde para
verificação de dados e coleta de informações. Enfim, todo esse conjunto de medidas, desde
a adscrição de clientela, gerenciamento do cuidado através de listas, busca ativa,
coordenação do cuidado, mapeamento de áreas e vigilância clínico-epidemiológica, todo
esse equipamento pautado no elemento central família, alvo antigo da medicalização, pode
ser lido como um retorno às mesmas práticas medicalizantes foucaultianas, agora
repaginadas em fresco verniz, mas conservando a ideia a respeito do poder exercido pelo
estado no controle dos corpos.
Análises históricas dos processos que culminaram com grande concentração de
poder pela empresa médica, que agora tem grande parte do seu poderio concentrado em
linhas de frente da atenção primária, são fundamentais para compreensão de como a
medicina de família e comunidade pode ter raízes de uma medicina social, a partir de uma
construção massiva e insidiosamente medicalizante

[...] com o início do século XX, temos um aprofundamento da industrialização e


da urbanização e a ascensão de doenças “sociais” como a tuberculose, as doenças
sexualmente transmissíveis e outros surtos epidêmicos. Inicia-se, assim, uma
preocupação maior do Estado com a atuação médica, diretamente no espaço
social, junto aos indivíduos, suas famílias, em suas casas. A medicina passa cada
vez mais a tomar como objeto a população e menos os corpos individuais dos
pacientes, monitorando o aparecimento de doenças e incorporando práticas
sanitárias. É nesse contexto que avança a estruturação de serviços primários de
saúde e, posteriormente, a consolidação da Atenção Primária em Saúde como um
nível de atenção na organização de sistemas nacionais de saúde. Esse processo é
fundamental para a expansão e formatação da prática médica generalista, familiar
e comunitária, tal qual conhecemos hoje (ANDRADE, p. 6).
80

Caminhos, esses, que apontam para a descentralização dos cuidados em saúde, com
atendimentos domiciliares, valorização dos médicos generalistas e rurais, a preservação dos
grandes centros hospitalares para a concentração de áreas subespecializadas e cirúrgicas,
tratamento de doenças raras e graves, não sendo porta de entrada, mas dedicando-se ao
treinamento dos novos médicos e realização de procedimentos técnicos de alta
complexidade.
A MFC, não diferente das demais especialidades, pode desviar para quatro distintos
atalhos facilitadores da instauração de um cuidado altamente medicalizado. Em primeiro
lugar, por meio da expansão do que, na vida, é considerado relevante para a boa prática da
medicina; em segundo, por meio da manutenção do controle absoluto de determinados
procedimentos técnicos; em terceiro, por meio da retenção do acesso quase absoluto a
certas áreas "tabus"; e, finalmente, por meio da expansão do que, na medicina, é
considerado relevante para a boa prática da vida (ZOLA, 1972).
A primeira categoria pode ser exemplificada por ferramentas muito empregadas em
ambientes de atenção primária, no Brasil e no mundo, seja desde uma escuta qualificada a
uma aplicação sistemática da medicina centrada na pessoa, ou ao respeito por uma
medicina holística, essa dimensão enfatiza a mudança nos padrões de entrevista médica
que, na busca por uma consulta mais humanizada, passou a se interessar por tudo de mais
íntimo na vida das pessoas, seus hábitos, angústias, preocupações e etc.
Notadamente, a sintomatologia psicossomática responde por grande parte das
queixas em medicina ambulatorial, mas talvez faça sentido rodar esse caleidoscópio de
investigação clínica para rever os extravasamentos do que sempre é chamado de vínculo,
até mesmo por um equilíbrio entre uma prática cartesiana-ortodoxa eficaz e não
essencialmente fria e aquilo que pode significar intromissão profissional e influência em
demasia.
Esse novo modelo de raciocínio clínico com valorização do contexto sociofamiliar
passou a atender melhor o paradigma multicausal das doenças, ascendendo em
concomitância com a falência do modelo etiológico-específico, esse último se restringindo
a explicar casos agudos orgânicos como infecções bacterianas e infartos agudos do
miocárdio, porém, contribuindo pouco para decifrar pacientes multimórbidos e as
condições crônicas.
Atentos à expressão do fenômeno medicalização, interrogamos desdobramentos
dessa progressista hegemônica forma de construir a relação médico-paciente, cultuada no
81

meio da medicina de família, mas não exclusiva dessa categoria, exatamente pelo fato de
soar infalível, devendo ser reproduzida, ensinada e disseminada por realmente parecer
isenta de más intenções.
O segundo plano contempla o controle sobre procedimentos; disputa que, em nosso
país, remonta ao histórico processo da regulamentação da profissão médica, figurada pela
batalha judicial da lei do ato médico. O autor assinala ainda para a repaginação de
especialidades como a cirurgia plástica, que caminhou das reconstruções para a estética,
como também não deixamos de observar a “cosmetização” da dermatologia e
endocrinologia.
Dentro do mesmo escopo, de controle de atividades e garantia de fatias do mercado
de trabalho, extintos os boticários e limitados os farmacêuticos, os médicos tornaram
exclusiva para a sua classe a prescrição de drogas e, por volta da década de 70 do século
XX, o potencial de sobremedicalização já chamava atenção dos estudiosos do tema. Hoje, o
temor se volta para indicação massiva de fármacos no intuito de atenuar fatores de risco
provocados por estilos de vida não saudáveis (GODLEE, 2018).
O terceiro rumo para a medicalização da sociedade envolve a colonização de áreas
polêmicas, pois, se previamente eram notadas como processos naturais e fraquezas morais,
evoluíram para o status de doença, assim se sucedeu com o envelhecimento, a gravidez, o
alcoolismo e a drogadição, todas elas, questões consideradas de competência do médico de
família, constando na carteira de serviços 21(PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2011).
Procedimentos, esses, que vão desde o pré-natal até a desintoxicação alcoólica.
A quarta trilha diz respeito ao emprego da retórica médica para se avançar em
qualquer discussão, embasar determinados pontos de vista, vencer argumentações e
implementar políticas, seja tratando de questões da macroeconomia no dialeto médico ou
até mesmo relacionando as regras de comportamento e convivência em escolas de bairro
com aspectos da saúde, para que ganhem legitimidade e a devida atenção.

21
A Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde (APS) é um documento que visa nortear as ações de
saúde na atenção primária oferecidas à população no Município do Rio de Janeiro. Voltada para todos os
profissionais, gestores e população no intuito de se apropriarem dos serviços de saúde oferecidos na APS. Os
profissionais da APS devem estar preparados para resolver os problemas de saúde mais comuns na população.
Nesse sentido, a carteira busca equalizar as ofertas, já que muitas unidades de saúde não estariam preparadas
para oferecer todos os serviços descritos na carteira de serviços, relembrando, porém, a importância de que
sejam oferecidas condições para que essas ações na APS sejam disponibilizadas à população
(PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2011).
82

8.4 ANÁLISE POLÍTICA DA MFC EM UM HORIZONTE MEDICALIZADO

É importante levantar a dúvida sobre o pensamento de que a Medicina de Família e


Comunidade é uma outra medicina. Por mais que a prática generalista difira
substancialmente daquela do subespecialista, as relações da MFC com a sociedade são
muito mais próximas das trocas de sua ascendente, a Medicina, do que da construção de um
novo paradigma.
A pujança com a qual cresce a MFC como classe de especialistas, na última década,
resultado tanto das políticas de Estado quanto pelo interesse e poder regulatório do
mercado, acaba por enquadrar a especialidade em condições de manufatura. O apelo em
torno da mesma, a liquidez de venda da força de trabalho, a expansão galopante da
titulação, que em breve se tornará a maior sociedade de especialistas médicos do Brasil,
contribuem para enquadrar a MFC como produto.
A expressão de subjetividades como relações médico-pacientes singulares e
espontâneas, profissionais dedicados às comunidades por períodos superiores a cinco anos,
grupos de educação em saúde com grande impacto no empoderamento popular, equipes
multiprofissionais orgânicas com efetiva harmonia da interdisciplinaridade continuam
restritas a exemplos sui generis, como demonstrou Helena Ferraz, em sua experiência na
comunidade do Salgueiro-RJ, desvelando a violência estrutural (FERRAZ, 2019).
Se a demanda por médicos de família e comunidade e ou generalistas configura uma
plataforma pública e privada prioritária na organização de seus respectivos sistemas de
saúde, é presumível que a classe gozará de privilégios. Por muito tempo ainda,
considerando a dificuldade em se ofertar de maneira plena a ocupação desses postos, a mais
básica regra de mercado nos mostrará que esse preço por cabeça médica tende a se
valorizar.
A democratização dessa função, como visto no exemplo do PMM (GONÇALVES
JUNIOR, 2017) com o intercâmbio de médicos cubanos, provou atender de maneira mais
eficaz o problema crônico dos vazios sanitários. A ruptura da parceria internacional, por
decisão unilateral do governo brasileiro, teve grande pressão das sociedades médicas,
demonstrando a preocupação maior em sustentar esse terreno de privilégios, em detrimento
das necessidades populares.
Uma vez solucionada a questão do provimento, a relação pacientes/equipes estaria
mais equilibrada, permitindo lidar com uma pressão assistencial de grupos vulneráveis
mesmo que encharcado de chagas sociais e impulsionado pela medicalização.
83

Percebo que a compreensão histórica daquilo que responde pelo frenesi em nossas
portas (alta pressão assistencial) seja um ponto de partida para que o trabalho do MFC seja
de alguma forma ressignificado. Só a partir desse entendimento será possível enxergar que
atender muito não é necessariamente enxugar gelo. Nesse momento, é inaceitável o sofrer
por ser muito demandado, por ser muito poderoso, sem uma profunda reflexão de todo o
processo que nos trouxe até aqui.

8.5 DEZ HIPÓTESES SOBRE MEDICALIZAÇÃO E MEDICINA DE FAMÍLIA E


COMUNIDADE

Aspectos-chaves:

1. A Medicalização é “um processo pelo qual problemas não médicos passam a ser
definidos e tratados como problemas médicos, frequentemente em termos de
doenças ou transtornos” (CONRAD, 2007). Como instância de domínio ideológico
na sociedade, a Medicina tem sustentado e perpetuado esse movimento.
2. A Atenção Primária à Saúde, pautada em princípios e atributos que se alinham aos
preceitos do Sistema Único de Saúde, tende, por meio da racionalização de práticas,
humanização do cuidado e lógica regional de territorialização, a configurar-se como
um campo de resistência à medicalização da vida.
3. No entanto, fundamentos que remontam à humanização da assistência e são
doutrinários para a MFC, como integralidade, acesso facilitado, coordenação do
cuidado, longitudinalidade, advocacia em prol do paciente e clínica ampliada podem
favorecer a perda de autonomia dos usuários e passam a atuar como práticas
medicalizantes.
4. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, o médico de família e comunidade,
como “porteiro do sistema de saúde”, torna-se o responsável por acolher uma
infinidade de mazelas sociais que funcionam como determinantes sociais em
saúde22. Com isso, a demanda por consultas médicas se torna insaciável.

22
[...] Os determinantes sociais de saúde são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais,
psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco
na população (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007).
84

5. Os médicos não conseguem fazer a gestão do tempo. As agendas fracassam.


Modelos diversos de acolhimento e acesso são empregados sem garantia de
equidade, triagem eficaz ou atendimento a todos em tempo hábil.
6. Medidas como prevenção quaternária 23 (P4) começam a degenerar, sendo uma
resposta vulgar da tentativa de desmedicalização, e os médicos passam a incorrer
em inércia clínica e niilismo terapêutico. Confundem-se as perícias. Medica-se
demais em casos desnecessários, medica-se de menos em situações que exigem
intervenção.
7. Atividades coletivas em grupo e abordagem comunitária são incorporadas como
ferramentas para a transformação social, mas persistem, em sua maioria, atividades
com teor normativo, de transferência hierárquica de saberes, com metodologia
tradicional e expositiva.
8. Mesmo que o médico de família e comunidade tenha uma formação de excelência,
através da residência médica, terá grandes dificuldades em lidar de maneira
combativa com o meio medicalizador. Com a irregularidade das forças que
contribuem para a medicalização da sociedade, os próprios pacientes, a gestão, a
academia, a internet e a indústria farmacêutica são agentes protagonistas e o médico
coadjuvante.
9. A dificuldade dos médicos de favela no amparo da população frente ao crescimento
da pressão assistencial se dá ao mesmo tempo em que se observa um acréscimo de
poder e reconhecimento pela classe. A responsabilidade quanto a novas atribuições,
a sua popularidade e seu esgotamento representam uma sequência ininterrupta.
10. Em grandes centros, a especialidade se ramifica em ofícios totalmente distintos, a
depender do cenário: privado x público, favelas x bairros de classe média. Essa
variação de possibilidades de atuação afeta sensivelmente a formação desse médico.
Em todos os espaços, há grande influência da medicalização, que raramente
distingue classe social, apenas permuta o uso dos corpos a depender do serviço.
11. Esse encadeamento, que procura demonstrar articulações causais entre a
medicalização e a MFC, é ilustrado na figura 1, em um modelo de hipóteses.

23
Medidas tomadas para identificar pacientes em risco de sofrer intervenções excessivas, protegendo-os de
nova invasão médica e oferecer-lhes alternativas, eticamente aceitáveis (BENTZEN, 2003). Tradução nossa.
85
86

9 EPÍLOGO

Ao fim, recontar uma série de topadas com a medicalização, retiradas de um baú de


memórias amarrotadas, foi como atravessar um julgamento de meses, em que tive de me
justificar, de me antecipar em explicações, por uma série de crimes cometidos. Crimes
perfeitos, autoconfessos, os quais jamais teria que dar depoimento.
O médico de favela flertou com a insurgência, em conluio com o paciente, em —
“Deixa que eu mesmo faço, Doutor!”, rendeu-se à opulência da medicalização, em Aquele
da Resignação, travestiu-se de uma figura de mandos e desmandos, em Joelhos de Sucata.
Por todas essas cenas, passou o mesmo personagem, lidando com um mesmo poder, sob
diferentes posições e tendo discursos diversos.
Em seguida, atravessou espaços consagrados da MFC e da APS, recintos que vão
desde o consultório, passando pelas visitas domiciliares e terminando no virtual sítio da
gestão, para demonstrar que, em cada um desses, uma espanada pode revelar marcas
indeléveis da medicalização, que antes de naturalizadas devem ser sempre problematizadas.
Em Relações descoordenadas, talvez o maior atrito comunicativo vivenciado pelo
autor, a reflexão proposta serviu para ressignificar ações automáticas que, apesar de
impensadas, se pretendem a partir de boas intenções. Fôlego, pilhas e xaropes é
indubitavelmente uma desconstrução do burnout, uma ode à entrega do médico de favela à
uma rotina exaustiva de atendimentos, de luta anti-sucateamento do SUS. Uma entrega sem
esquivas, por mais adoecedora que seja a realidade, a partir do entendimento de que ela foi
escolhida e, uma vez assumida, precisa ser transformada. Não deixa de ser uma crítica
polêmica à cultura da queixa. Esse sentimento tem continuidade na distopia que é
apresentada adiante.
As contradições estão em toda parte. Ora questiono a inépcia do médico de família e
comunidade, ora sua resolutividade. Em dado momento, a crítica volta-se à ostensiva
vigilância para, em outro trecho, encurralar a indiferença quanto às populações
negligenciadas. Mas, se a ação, o movimento, pode ter uma conotação medicalizante
pejorativa, nessas análises, o repouso não é por si só desmedicalizante e desejável. A falta
de reação é pior, é medíocre. Como não parti de certezas, a produção deu-se formulando
perguntas a todo tempo. Encaro essas oscilações como um resultado esperado do colóquio
entre o autor e o médico de favela.
Cabe uma ressalva sobre o recorte do trabalho. Esse se deu majoritariamente em
relação à figura médica. A equipe de ESF e a APS aparecem de forma muito indireta, como
87

coadjuvantes. Apesar das inegáveis perdas, ao relativizar esses demais atores, foi uma
opção desde o princípio a fim de dar visibilidade ao encontro MFC-Medicalização, naquilo
que há de forte desde o lugar de médico. Outra limitação importante foi um foco voltado
para a manifestação da medicalização na relação médico-paciente.
Quis demonstrar que, antes mesmo de todo o mal em potencial causado pelo médico
generalista, que atua na atenção primária sem uma especialização “de excelência”, como a
residência médica – estando a salvo, exceções para o bem e para o mal de ambos os lados –,
o protótipo ideal de um médico de favela, aquele com boa formação e experiente, teria um
amplo alcance medicalizante, talvez maior do que os colegas.
Na interminável tarefa de reler as páginas, editando o trabalho, foi possível
reencontrar os sentimentos que deflagraram a discussão que me propus a fazer. Deveriam
estar apaziguados, pois são fruto de uma intempérie interna, mas parecem ter aflorado com
essa jornada de amadurecimento. Gostaria de terminar a escrita com uma fala mais doce e
ter remediado uma série de decepções, como ousei fazer em algumas das postulações
teóricas apresentadas. No entanto, aguça-me esse espaço de livre reflexão para semear mais
perguntas e provocações.
Divagarei um pouco mais por aqui, já que resultados, se os tenho, estariam
dispersos nos capítulos prévios. Surgem últimas ideias espasmódicas, como insistentes
digressões, sendo tentativas de extrapolação da experiência autoetnográfica.
Percebo ainda uma seletividade nítida de acesso, um filtro sabotado, desleal no
tocante ao emprego do poder pelo médico de favela. Imaginemos a seguinte cena,
desnecessária de se encenar, por ser um tanto quanto corriqueira, em que o paciente busca
por atendimento na unidade básica de saúde e, a depender da queixa, do porte de
documentos, da classe social, é absorvido ou não pelo serviço. Ela é capaz de exemplificar
o nó assistencial, onde, mais do que a confusão dos fluxos, o caminhar na rede e seus
itinerários se dão ao sabor de coordenadas traçadas por diretrizes como a boa vontade, a
compaixão, a misericórdia e seus correlatos ultrajantes, antes do que pela sapiência clínica
dos médicos.
O discernimento enviesado, a seleção do que se quer tratar e do que se quer mandar
embora ou rechaçar com obstáculos, o cultivo de pacientes à maneira do que agrada atender
ainda é uma via de medicalização pernóstica.
Essa nova trajetória me marca por explicar os porquês de algumas derrotas parciais.
Porque, em um meio de jovens idealistas médicos de família, a desolação é cada vez maior,
88

porque, apesar de lindas estórias de novas formas de cuidado, a transformação social pela
MFC ainda é uma miragem.
89

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ANEXO - UMA ENTREVISTA INUSITADA

Tony Benn, democrata britânico, enunciou cinco questões que sugeria serem
colocadas para toda instituição: Que poder você tem? Qual a origem do seu poder? O
exercício de seu poder atende aos interesses de quem? Você responde a quem? Como
podemos nos livrar de você? (HORTON, 2015). Peço o direito de resposta em relação às
instituições a que pertenço: a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e
a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, pois considero respostas que exigem
uma autocrítica que os sujeitos institucionais em sua maioria não fazem. Mas, não respondo
por elas, respondo como um médico de favela para os usuários.

Que poder você tem?

Em verdade, seria até mesmo difícil precisar onde ele começa e por onde se estende.
O tenho como algo inato, divino, como monarcas absolutistas o tinham. Mas, o esforço da
retórica filosófica me impele a pensar e posso dizer que me sinto poderoso, a princípio, por
ter emprego pleno como médico, num país com dezenas de milhões de desempregados.
Uma vez graduado, me encontro em um andar da pirâmide dos trabalhadores
liberais assalariados próxima ao topo, em termos de renda. Seja eu médico de piscina, a
deliberar sobre aptos e inaptos a banharem-se, após “minucioso” exame dermatológico, seja
eu médico examinador, a aprovar ou descartar trabalhadores capazes de assumir suas
funções laborais com um estetoscópio patronal.
No entanto, me tornei um médico de favela. Com isso tenho poderes específicos, os
quais descrevo naquilo que segue: tenho o poder de te privar de escolhas. Goste de mim ou
não, fui nomeado médico da sua rua, seu, da sua família e dos seus vizinhos. Não poderá
escolher outro doutor, outra equipe24, nem da mesma clínica, quer ele seja mais resolutivo,
ético ou empático do que eu. Mas, de fato, essa condição não é o meu poder. Essa é a sua
falta de poder. Sua submissão. Porque o poder, de certa forma, para ser poder, exige o seu
exercício sobre o outro. De qualquer forma, essa primeira definição de sujeição nos fornece
uma base.

24
A forma de pagamento aos médicos gerais pode ser por capitação (médicos profissionais independentes
trazem consigo a lista de pacientes e o monopólio do acesso aos especialistas – papel de filtro do médico
geral). [...] Entre os países com sistema de saúde nacional público e pagamento por capitação encontram-se:
Canadá (província de Ontário), Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Holanda, Irlanda, Itália, Noruega, Nova
Zelândia e Reino Unido. (GUSSO, 2019). Sob esse sistema, o paciente tem alguma liberdade de vincular seu
cadastro e prontuário ao médico que lhe convir.
97

Qual a origem do seu poder?

Estatal. Minha existência deriva da promulgação de políticas públicas. A partir de


um entendimento de que a MFC pode contribuir com os países do mundo todo, para manter
e melhorar a saúde e o bem-estar de seus cidadãos (KIDD, 2016).
Faço parte de um grande projeto de biopolítica (FOUCAULT, 1999), que cuida e
trata as massas, computando em números e códigos todos os elementos do homem-corpo.
Debruço-me sobre as crianças vacinadas e as não vacinadas, o número de gestantes em
minha área, as taxas de mortalidade infantil e da população geral. Pelo quantitativo de
diabéticos, hipertensos e suas infindas parametrizações de acompanhamento. Interessam-
me também os tuberculosos, leprosos.
Também tenho o hábito de planilhar e bem identificar os desempregados, as vítimas
de violência, aqueles com problemas de abrigo e habitação, mães e pais solteiros,
sedentários, anoréxicos, dependentes de cadeiras de roda, usuários de drogas, transexuais,
profissionais do sexo, ex-presidiários, mulheres de presidiários, os adotados, idosos que
moram sozinhos, acamados, mulheres e homens do lar: quem são, quantos são.
Ainda, aqueles que vivem de aluguel, exilados, crianças fora da escola, moradores
sem saneamento básico, portadores de HIV, cuidadores de familiares doentes, portadores de
câncer, aqueles que vivem em condições miseráveis e os que convivem com incerteza
alimentar, os que tentaram suicídio, e um dia, enfim, terei atualizado o banco de dados com
mais de cento e trinta condições médicas e sociais de meu interesse e do meu chefe, listadas
na classificação internacional de doenças ou passíveis de consultar nos registros de cadastro
das fichas dos agentes comunitários de saúde.
Meu poder, porém, não emerge apenas da legitimidade de um governo. É ainda
creditado pela profissão com talvez o maior prestígio social. Sou médico.
Para além do alcance da minha influência sobre a comunidade, meu biopoder
(FOUCAULT, 1999) também se manifesta no plano individual, em cada corpo. Detentor de
um conhecimento médico geral, há de me procurar e atentar as minhas recomendações para
todo e qualquer mal que por revés venha lhe acometer. Ora se este não é um controle total!
Uma dependência completa! E uma soberania de fato!
Caso lhe suceda uma dor de cabeça, um lumbago ou um desassossego inespecífico
na barriga, uma estranheza nas mãos, virás a mim. Por uma dor em qualquer segmento do
seu corpo, ou até mesmo em sua alma, é a mim que recorres.
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Não tendo certeza sobre a origem desse mal que lhe atormenta, uma coisa tens
como certa, a saúde não vai bem e a medicina terá alguma resposta, o médico de favela será
sua única opção, na maioria das ocasiões. Terás ainda que codificar esse sofrimento em
minha linguagem científica, ou terá que torcer para que eu tenha esse cuidado de tradutor.
Por isso, conhecimento é poder. Daí também que ele emana. Mais do que reprimir,
julgar, condenar, você será programado a respeitar normativas que vão desde um guia de
conduta em meu espaço, a unidade básica de saúde, até uma prescrição detalhada, estando
eu atento à sua obediência a todo esse novo comportamento.

O exercício de seu poder atende aos interesses de quem?

Acredito que vários atores se beneficiam de uma corrente do absurdismo como essa,
da qual fazemos parte como promotores da saúde. Ganham os gerentes, os secretários, os
médicos, os políticos, a indústria farmacêutica e de equipamentos, afinal, é uma soma
importante envolvida na operacionalização desse grande projeto.
Por que é uma lógica absurda? Porque trata-se de uma meta inalcançável. Somos
como Sísifo (CAMUS, 1942), rolando a pedra montanha acima e deixando-a escapar e
descer já próxima do cume. Afinal, como se espera alcançar um sentimento descrito como:
um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença
ou enfermidade (OMS, 1946)? Pois, lhe garanto, a depender de mim, eu jamais posso te
garantir esse deslumbramento utópico de felicidade.
Outra máxima, há muito ventilada, é aquela que diz:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e


econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação (BRASIL, 1988).

Toda essa construção deveria atender ao maior interessado: você, paciente e


usuário. De fato, não é o que podemos observar, daí a atividade que estamos a desenvolver,
respondendo essas questões tão afrontosas.
É importante que perceba que, mesmo próximo desse objetivo insano, a
modernidade e as biotecnologias extrapolaram todas as nossas capacidades de medicalizar a
vida, o que lhe trará ciclicamente uma sensação de insatisfação. O biopoder tem novas
considerações a partir de corpos transformados por próteses e hormônios, órgãos artificiais,
dispositivos sintéticos que não são identificados como corpos estranhos, mas se ajustam
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perfeitamente a anatomia humana, resultando numa quebra de paradigmas radical, no


tocante à normalidade e patologia, derrubando categorias fixas de sexo, raça e deficiência.
A biopolítica e o biopoder têm reflexos inéditos na atualidade, incubados, ou
mesmo nem gerados, ao longo dos séculos XVIII em diante (GAUDENZI, 2016). Se antes
havia uma clara separação entre corpo e máquina, sendo adversários, como no cenário
laboral fabril, hoje, a mecânica é simbionte do homem.

Você responde a quem?

Há um complexo organograma hierárquico por trás da minha figura. Eu,


teoricamente, devo explicações a muitos superiores e pares. Ao gerente da minha unidade,
ao superintendente de atenção primária, ao secretário de saúde, à um código de ética, ao
conselho regional de medicina.
Sendo uma disciplina deôntica, obedecemos a um conjunto de regras, a conexões
ético-jurídicas. Há uma série de protocolos e diretrizes que devemos seguir. Em caso de
desobediência, pode-se incorrer em infrações e consequentes sanções e penalidades
previstas.
Devo reconhecer que, por vezes, respondo a tantas linhas e estatutos, que me sinto
um mero instrumento, me sinto iludido. Vítima de um management voltado para a
sobredata. Digno de uma autonomia controlada (GAULEJAC, 2013). Por outras vezes, são
mesmo vocês, usuários, que me fazem sentir como se o meu trabalho não tivesse sentido.
Em vez de recorrerem ao sindicato por justiça social, de forma coletiva, recorrem ao
médico de favela à procura de fluoxetina, individualmente.
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Como podemos nos livrar de você?

Sem dúvidas, isto só pode se dar a partir de uma nova consciência e, daí, para uma
insurreição. Caminhando dentro da filosofia camusiana, podemos avançar da questão
existencial trazida em O Mito de Sísifo, “Por que não devo me matar? ”, pela falta de
sentido da vida, para aquela suscitada em o Homem Revoltado, “Por que não devo matar os
outros?” (CAMUS, 1942; 1951).
O assassinato, aqui, deve ser encarado de maneira não literal, e análogo a um dizer
de um “não”. Uma negação como uma imposição de limites. Esse tipo de negativa ao
médico já é uma realidade em diversas situações. Quando não se convence de um
diagnóstico, quando não se adere a um tratamento, quando não se aceita uma recomendação
de mudança de estilo de vida ou não se acata a realização de um exame complementar
indicado.
Mas, ainda assim, seria um não tardio, já após a procura, o desespero e a
insegurança. Instiga-se uma retomada de autonomia, que quer devolver os saberes do corpo
e da psique para que o próprio indivíduo tenha discernimento maior de quando deve ou não
recorrer a terceiros. E não estamos, aqui, falando de uma completa ruptura dessas relações,
o que seria imprudente, temerário e inexequível, mas de um distanciamento e não uma
renúncia.
A revolução poderia também ter um caminho contrário, partindo da conscientização
do médico de favela, a partir da opressão que sofrem os pacientes, e talvez um despertar
reflexivo sobre a medicalização possa nascer do lado mais poderoso.

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