Humberto Sauro Victorino Machado
Humberto Sauro Victorino Machado
Humberto Sauro Victorino Machado
Rio de Janeiro
2020
Humberto Sauro Victorino Machado
Rio de Janeiro
2020
Medicalization and family and community medicine: memories of a slum physician
Catalogação na fonte
Fundação Oswaldo Cruz
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde
Biblioteca de Saúde Pública
Banca Examinadora
Rio de Janeiro
2020
Para Cissa e Toni
Que um dia recompense as desculpas sob alegação de
cansaço de seus pais
AGRADECIMENTOS
À Larissa, que convive com meus defeitos e mesmo assim, mais próxima de
qualquer um, os tolera pelas tolices do amor.
À Ana Beatriz Victorino Machado, que assim descuidada deixou escapulir em um
café da manhã, que o irmão derramava poesia no chão, sem saber que ele de soslaio
escutava.
À Natália Nunes, voraz leitora do mundo, dos amigos, que assim espontânea,
estimula toda atividade criativa em seu entorno.
A Alfredo de Oliveira Neto, que assim, como um entusiasta nato, nos faz acreditar
que algumas estórias e ideias outras devam ser ventiladas.
A Adelson Guaraci Jantsch, que por tudo se interessa genuinamente, e assim
inquieto, co-produz com todos nós.
A Guilherme Tritany que compartilha sentimentos e leituras e assim, com
afetividade, nos transcende.
À Ana Paula Melo Dias, que assim de uma maturidade à frente dos nossos tempos,
significa um grande encontro para quem com ela esbarra.
A Daniel Gonzaga, quem trouxe ainda mais pra perto, por entender que assim
verdadeiro, busca como eu, as mesmas frustrações.
À Paula Gaudenzi, que mesmo antes da era pandêmica, e assim dedicada, tornou a
distância para o aprendizado, relativa.
À Dandara Morais, que assim meticulosa, revisou, corrigiu e aperfeiçoou toda a
matéria.
A Eduardo Alves Melo, que assim cuidadoso, me conduziu por uma jornada de
descoberta acadêmica e para muito além, pessoal.
“[...] eu tinha de gritar em furor que a
minha loucura era mais sábia que a
sabedoria do pai, que a minha enfermidde
me era mais conforme que a saúde da
família, que os meus remédios não foram
jamais inscritos nos compêndios, mas que
existia uma outra medicina (a minha!), e
que fora de mim eu não reconhecia
nenhuma ciência, e que era tudo uma
questão de perspectiva, e o que valia era o
meu e só o meu ponto de vista.”
RADUAN NASSAR, 1975, p. 87.
RESUMO
The strengthening of primary care is one of the main focuses of the Unified
National Health System actors and institutions in Brazil, with the family health strategy
(ESF in Portuguese) betting on changing the techno-assistance model. As part of
multiprofessional teams with a generalist profile in primary health care (PHC) / ESF,
family and community medicine (MFC in Portuguese) is the specialty chosen by different
actors, more and more, to act in this area of assistance, considering a great gateway to the
healthcare system. Medicalization constitutes a phenomenon for which, in the eagerness or
from the justification of protecting and caring, medicine, in a way, would run over people's
rights. This paradox has been extensively studied in specialties such as psychiatry,
preventive medicine and in surgical and interventionist specialties, but little attention has
been paid to its expression in the MFC, as it is understood that this specialty is an intrinsic
resistance to medicalization. Not completely convinced of this concrete opposition, the
author intended, in this work, through his experience as a family physician, to dissect
situations and experiences that go back to the meeting between medicalization and MFC.
Tehreunto, we started with an approach inspired by cartography and autoetnography that
produces and processes an analysis of “personal” memories, using scenes and other
narrative formats, with the objective of reflecting on medicalization in family and
community medicine. The problematization of the experience showed some potentially
medicalizing elements in the MFC, such as assistance pressure, the conducting of protocols,
the (non) recognition of the other (poor) capacity for self-determination and the legitimacy-
authority of medical-sanitary practices. Some demedicalizing practices, rationally thought
out (as an intention for quaternary prevention) or improvised (based on sensitivity-
intuition), appeared with problems and successes. The path followed produced less
unambiguous conclusions than visibility for lines of force and tensions, perhaps new
questions.
1 PRÓLOGO..................................................................................................... 12
2 HISTÓRIA PREGRESSA E IMPLICAÇÃO ATUAL............................... 14
2.1 TRAJETÓRIA................................................................................................. 14
2.2 (DES)ENCONTROS COM A MEDICALIZAÇÃO....................................... 16
3 NOTAS SOBRE METODOLOGIA............................................................. 18
4 SABERES-PODERES E A MEDICALIZAÇÃO....................................... 27
4.1 DO SABER LEIGO......................................................................................... 27
4.1.1 Do Antiprotocolo............................................................................................ 29
4.1.2 Saúde Médico-Especialista-centrada........................................................... 30
4.1.3 Autonomia para Auto-medicalização?........................................................ 32
4.1.4 O embate entre o saber técnico e o saber leigo........................................... 33
4.2 DO MEIO MEDICALIZANTE....................................................................... 35
4.3 DA AUTORIDADE SANITÁRIA.................................................................. 39
5 “A MEDICALIZAÇÃO NOS SETTINGS DA MFC”............................... 44
5.1 NO AMBULATÓRIO...................................................................................... 44
5.2 NA VISITA DOMICILIAR............................................................................. 47
5.3 NA GESTÃO................................................................................................... 49
6 ATRIBUTOS E ROTINAS EM CRISE...................................................... 51
6.1 PESARES SOBRE A COORDENAÇÃO DO CUIDADO............................. 51
6.2 DO PROCESSO DE TRABALHO DO MÉDICO DE FAVELA................... 55
7 A DISTOPIA COMO UM ENSAIO SOBRE A MEDICALIZAÇÃO E
A MFC............................................................................................................. 61
8 MEDICALIZAÇÃO E MFC: EM BUSCA DE UMA TEORIA............... 72
8.1 A CONSTITUIÇÃO DA MEDICALIZAÇÃO NA MODERNIDADE.......... 72
8.2 BREVE APANHADO DE FORMULAÇÕES SOBRE A
MEDICALIZAÇÃO........................................................................................ 75
8.3 MEDICALIZAÇÃO NA APS E MFC............................................................ 79
8.4 ANÁLISE POLÍTICA DA MFC EM UM HORIZONTE
MEDICALIZADO........................................................................................... 82
8.5 DEZ HIPÓTESES SOBRE MEDICALIZAÇÃO E MEDICINA DE
FAMÍLIA E COMUNIDADE......................................................................... 83
9 EPÍLOGO....................................................................................................... 86
REFERÊNCIAS............................................................................................. 89
ANEXO - UMA ENTREVISTA INUSITADA............................................. 96
12
1 PRÓLOGO
Pensando em conduzir o leitor por uma viagem cujo roteiro o próprio autor
desenhou, faz-se importante explicar a partida, contextualizar as paradas e antecipar de
algum modo a chegada. Grande parte dessa estrada se dará sob céu cinza e chuvoso. É um
passeio sob os olhos de um viajante inquieto, não de um deslumbrado, numa tentativa de se
reacomodar para, então, começar a se fustigar outra vez.
Foi um exercício de quebrar um par de encantos com a minha escolha profissional,
de minha esposa e dos alunos para os quais tenho me esmerado em convencer a percorrer
esse mesmo caminho.
Como pesquisa do ponto de vista tradicional, não fui ao campo. Os extratos dessa
fase são memórias e reflexões, elaborações fabulosas que funcionarão como analisadores.
São produtos sem enquadramento, métrica ou padrão de coleta. Não podem nem mesmo ser
agrupados em uma mesma categoria. Toda essa matéria é, então, regurgitação dos dez anos
de trabalho no campo da medicina de família e comunidade (MFC), sazonalmente assolado
pela medicalização.
Adotei como médico de favela o personagem que vagueia nas cenas. Escolhi essa
denominação por ser aquela que desenvolvi, ao longo dos anos, para explicar a terceiros a
“mística” por trás da minha atuação profissional. Foi a maneira mais curta (e talvez grossa)
que alcancei para esclarecer a função, o compromisso da extensa e, até então, estranha para
leigos e mesmo para médicos, nomenclatura de médico de família e comunidade (mfc). Ao
responder “médico de favela”, as perguntas abertas eram inibidas na sucessão do diálogo.
Não por querer encerrar o assunto, esconder a trajetória, envergonhar-se do título. Não por
ironia, por glorificação de um compromisso social, mas para me fazer compreender.
Também para me diferenciar da prática no setor privado, que não pode ser contemplada por
minhas andanças e vice-versa.
Optei também por não nomear os pacientes, acompanhantes e demais atores. Assim,
os homens são tratados como moços e as mulheres, moças, ou ainda, senhores, senhoras,
Ele ou Ela, sempre de maneira genérica. Não para calar as personagens, mas talvez para
evitar estereótipos que tratam com humor os nomes reais dos pobres e favelados na
oralidade das estórias.
13
O esqueleto do ensaio está dividido em seis partes. Este prólogo, seis capítulos e um
epílogo. No capítulo I, pormenorizo minha trajetória desde o término da graduação em
medicina até o presente, a fim de contextualizar a construção do objeto neste mestrado
profissional.
No capítulo II, são inseridas notas sobre a metodologia, procurando demonstrar
como elementos da autoetnografia e da cartografia foram empregados na elaboração
textual.
No terceiro capítulo, três cenas são empregadas para ilustrar desdobramentos
distintos do fenômeno a depender do cenário. Retratam o vir à tona do saber leigo no
primeiro encontro, em seguida uma atmosfera medicalizante que não permite condutas
outras e, por fim, o médico na pele de uma autoridade sanitária na comunidade.
No quarto capítulo, dando prosseguimento às interfaces entre Medicalização e
MFC, outros settings de ocorrência da medicalização são explorados: o cenário do
ambulatório, o da visita domiciliar e o da gestão.
No quinto capítulo, trato das rachaduras em pilares teóricos. De como princípios e
atributos de uma política pública sofrem mediações e choques de diferentes tipos ao
aterrissar no plano da vida organizacional e cotidiana. Na primeira cena, a coordenação do
cuidado é analisada sob um prisma que revela uma metamorfose desse dogma.
Profissionais imbuídos da responsabilidade de coordenar o cuidado, mesmo que envoltos
das melhores intenções, podem reforçar práticas medicalizantes. A segunda cena aborda o
processo de trabalho do médico de favela, as possibilidades de leitura do arquétipo de
consultório e analogias díspares desse espaço com a oficina e o artífice. Nessa crônica, a
medicalização está por trás de uma das principais agonias do médico de família e
comunidade: a alta pressão assistencial.
No sexto capítulo, a cena compartilhada assume um formato diferente: trata-se de
uma distopia. Em País Sem Médicos, as circunstâncias ficcionais permitem um
remodelamento único do binômio sociedade-medicina.
O sétimo capítulo é uma última parada, na qual busco construir um texto teórico
sobre medicalização e medicina de família e comunidade.
No epílogo, trago algumas marcas do campo em mim, as modificações promovidas
por este estudo no médico de favela.
No anexo, uma entrevista inusitada traz quatro questões provocativas sobre poder
que são respondidas pelo personagem principal.
14
2.1 TRAJETÓRIA
Aos dezenove anos, querendo prestar vestibular para jornalismo, cursou medicina
por influência do pai neurologista. A não pulsátil paixão por escrever se atenua na fase de
descoberta da medicina de família e comunidade, que acolhe bem os corações amolecidos
pelas ciências humanas. Desloca-se junto com a companheira para o interior do estado do
Ceará, no nordeste brasileiro, movidos por fuga urbana, desejo de interiorização/ruralização
e descoberta de outros brasis.
Aficcionado por tecnologias de baixa densidade com potencial de atingir grande
resolutividade, dedica grande parte do seu tempo ocioso, por exemplo, em filas de pão e
banco a pensar em processos inovadores. De maneira que tenta expandir cada vez mais o
leque de serviços de sua unidade, a fim de representar um ideal de atenção primária forte,
onde se faz de tudo. Muitas dessas ações representam procedimentos, pequenas cirurgias,
porém, há um entendimento, de sua parte, que atividades na comunidade, de grupos, de
práticas integrativas e complementares, devam fazer parte desse processo. Essa aparente
prática subespecializada deve-se ao fato de que a medicina procedimental é mais valorizada
pelo meio acadêmico da graduação — o qual tentou arduamente persuadir dia após dia, em
seu contato com os alunos — em detrimento de uma prática clínica pautada na sabedoria e
cultura. Esse proselitismo e a busca incessante por resolutividade arrefeceram nos últimos
anos, pois se tonara uma forma de propaganda algo desonesta.
Crê que nenhum outro campo da medicina seja mais propício para uma revolução
nos cuidados, para atender ao novo conceito de saúde que elege o modelo biopsicossocial.
Não espera dos psiquiatras a ruptura com a indústria farmacêutica, ou de qualquer outra
especialidade médica práticas não corporativistas, de despreocupação ao protecionismo de
mercado, posicionamento contra o ato médico, simpatia e adesão em massa a movimentos e
lutas sociais ou engajamento político na defesa da saúde pública, salvo exceções de
profissionais iluminados como seres humanos que se encontram dispersos em todas as
15
áreas. Por isso, com orgulho, enquanto a medicina de família e comunidade, no Brasil, é
tida como prima pobre e alternativa das carreiras médicas, há quem aposte que é a
vanguarda do pensamento médico.
O capitalismo, acredita, envenenou princípios de todas as áreas, do cinema ao
futebol, não deixando escapar a medicina. Resgatar uma atuação médica generalista não
vinculada diretamente ao retorno financeiro como grande êxito, mas à defesa das vidas e
realidades locais, fixando-se em um serviço, tornando-se “folclórico” após décadas de
dedicação àquela mesma região e povo, são valores que procura inspirar. Ao longo dessa
iniciativa, também enxerga como meta sedutora o compartilhamento do conhecimento entre
as profissões como prática fundamental para o trabalho em equipe, além de estimular a
autonomia dos profissionais de saúde “não médicos” e dos pacientes.
Essa coleção de impressões se deu em grande parte num itinerário do médico de
favela que começa com a residência em medicina de família e comunidade, no município
de Sobral, interior do Ceará, preceptor de internos da graduação de cursos de Medicina e,
depois, como médico de família e comunidade e preceptor de programa de residência
médica, na cidade do Rio de Janeiro, por seis anos. Nos últimos dois anos, também exerceu
função de coordenador dessa residência médica, além de supervisor de outros médicos
intercambistas no interior do estado do Rio de Janeiro, no âmbito do Programa Mais
Médicos para o Brasil (PMM)1.
Reter conhecimento teórico-prático é universal no meio médico e uma medida
crucial para exclusividade de prestação de serviços e comercialização de cuidados em
saúde, daí o seu interesse particular em banalizar — no sentido de desmistificar —
procedimentos médicos cada vez mais banhados a ouro e inacessíveis. Sua atuação é mais
voltada para a micropolítica, microsociedade, e seus esforços são direcionados para
mudanças no território de abrangência de sua clínica 2, que cobre uma população de
aproximadamente quarenta e cinco mil pessoas no Complexo de Favelas do Alemão, em
Ramos, Rio de Janeiro.
No primeiro dia do seu novo e último emprego, disse que ficaria até quando
octogenário e, desde então, segue firme e provocador. Vive o momento mais crítico do
1O PMM foi lançado em julho de 2013 com a Medida Provisória nº 621, posteriormente convertida na Lei nº
12.871, em outubro de 2013. Foi baseado em evidências que apontavam para um cenário de escassez de
médicos no País, sobretudo na Atenção Primária à Saúde. (SILVA; CECILIO, 2019)
2
Na cidade do Rio de Janeiro, com a reforma da APS iniciada em 2009, no governo Eduardo Paes, as
unidades básicas de saúde do SUS passaram a ser chamadas de Clínicas da Família, com uma completa re-
estruturação, incluindo novo desenho arquitetônico, composição da equipe de gestão e alterações legais
(CAMPOS et al., 2016).
16
O mestrado mostrou-se uma oportunidade para reatar com aquela dor mal resolvida.
Sete anos após a publicação do ensaio supracitado sobre a expropriação da saúde, Illich
traria considerações que refletiam uma possível desmedicalização da sociedade por parte
dos médicos generalistas, em discurso proferido no Royal College of General Practitioners,
em Londres:
Falamos sobre medicalização porque, talvez incorretamente, acredito que os
clínicos gerais sob o sistema britânico estão em posição de revertê-la. Eles têm
uma função ambígua: eles podem contribuir mais efetivamente do que o
especialista para medicalizar ainda mais a vida, ou apoiar a tendência oposta
(ILLICH, 1982, p. 467).
Quando lhe foi sinalizado que o estudo do tema revolveria de alguma maneira suas
entranhas, desmereceu tal preocupação. Em verdade, o despertar de qualquer desconforto
era bem-vindo para servir de fio condutor a um processo de elucubração. Mas, a partir da
leitura da sociologia médica edificadora do conceito de Medicalização, e com a tarefa de
associar o fenômeno ao terreno da medicina de família e comunidade e a atenção primária
em saúde, sem deixar de também colocar no banco dos réus a saúde pública e o Sistema
Único de Saúde, as náuseas subiram como maré.
Viu-se a produzir um material potencialmente nocivo, amargo, envolvendo
instituições já fragilizadas, sendo um tanto quanto covarde por questionar políticas e
práticas que, se outrora gozavam de credibilidade, perspectiva de expansão e consolidação
paulatina em âmbito nacional, agora sofriam constantes ameaças e investidas de desmonte.
O produto de uma jornada acadêmica em saúde pública deve servir para refletir
sobre questões que afligem a sociedade, no sentido de rever a política, a gestão e a
assistência, procurando sempre melhores caminhos para medidas que afetam e modificam a
vida de milhares de pessoas. O alinhamento governamental que o país assumiu nas últimas
eleições obstaculiza aquilo que parecia inconteste, que uma atenção primária forte
conectada ao conjunto das redes é a base de um sistema de saúde público e universal.
Assim, por mais que o exercício de desconstruir axiomas, de interrogar verdades,
seja atividade legítima quando da realização de um mestrado, a recente reviravolta no
contexto sóciopolítico brasileiro, acredita, pervertera sua dúvida de pesquisa, trazendo certa
sensação de sadismo e traição de causa.
Apesar do inoportuno momento para investigar possíveis falhas e desacertos,
excessos e disrupções, relacionados a um controle social em parte policialesco por parte do
modelo assistencial em vigor na atenção primária, o pessimismo e a acidez advindos do
conviver corporativo atingiram um nível que transborda na escrita.
A ideia de estrangular a carreira que escolheu para forçá-la à confissão sob tortura
quanto à sua culpa em ser mais um instrumento de imperialismo e dominação será sempre
com uma esperança. De, ao apertar com toda a força, dela, resistindo ainda entre risos,
sarcástica e, quando já gemente e suspirosa, ouvir com dificuldade declarar um
inconfundível: — “Inocente!!!”
Este trabalho busca, a partir de inserções e experiências singulares do autor, refletir
sobre encontros e desencontros da MFC com o fenômeno da medicalização.
18
Assim, para um sujeito que reconhece sua lembrança como legítima e verdadeira,
malgrado o desacordo com os “fatos”, a única forma de examinar e avaliar a
experiência mnêmica é instaurar um ponto de vista supraindividual que possa
julgar a experiência subjetiva: um ponto de vista de terceira pessoa que é social
(PASSOS, 2010, p. 114).
O desafio vital que se coloca a cada um de nós, pois, não é emergir do nada,
numa criação exnihilo, mas atravessar uma espécie de caos original e “escolher,
através de mil e um encontros, proposições do ser, o que assimilamos e o que
rejeitamos” (PELBART, 2014, p. 251).
Pois então, eles falaram disso comigo somente quando pensaram que eu tinha
sido “pega” pela feitiçaria, quer dizer, quando reações que escapavam ao meu
controle lhes mostraram que estava afetada pelos efeitos reais – freqüentemente
devastadores – de tais falas e de tais atos rituais. Assim, alguns pensaram que eu
era uma desenfeitiçadora e dirigiram-se até a mim para solicitar o ofício; outros
pensaram que eu estava enfeitiçada e conversaram comigo para me ajudar a sair
desse estado. [...] Os materiais recolhidos são de uma densidade particular, e sua
análise conduz inevitavelmente a fazer com que as certezas científicas mais bem
estabelecidas sejam quebradas (SAADA, 2005, p. 157).
Ocorre-me a vontade de trazê-las não em cenas com início, meio e fim, porque o
passado não nos visita com essa linearidade, mas em lapsos e fragmentos. Os contatos com
a medicalização, quando estive desarmado, serão agora descritos com toda a inconsistência
de um sonho, com saltos e regressões, de quando estive nessa outra posição.
Pai Nosso
Eu e minha irmã mais velha estamos ajoelhados na sala. Eu tenho em torno de seis
anos de idade, ela dez. Não é uma brincadeira. É uma prece. Nossa vó carola ficou
surpresa como desde os quatro eu já era capaz de recitar o Pai Nosso, a Ave Maria e o
Credo. Minha irmã me chamava para o quarto dela todas as noites, pois tinha medo de
dormir sozinha no escuro, e me adiantava a catequese.
Mamãe, ao se deparar com a atípica formação da dupla, questiona. Interrompemos
a oração e a professorinha responde:
— Estamos rezando para ele não voltar.
Ao que minha mãe retruca:
— Ele é doente, crianças!
A psiquiatria adentrou as cenas forenses, sendo consultada para discernir sobre estados
mentais mórbidos e desvios de caráter.
Vejamos que o cerne da questão não é a avaliação dos aspectos positivos e
negativos deste juízo sorvido agora do bálsamo de uma neurociência, mas a relevância
crescente dessa disciplina na tomada de decisões. O que está sendo colocado, então, é a
convocação do olhar médico para uma sorte maior de problemas sociais, sobre os quais
antes a Medicina não contribuía ou opinava, uma vez que não havia a promessa de uma
suposta melhor condução (ZOLA 1972).
De fato, a psiquiatria ou a camisa de força, outra cena inesquecível, nunca ajudou
papai com sua bengala etílica. Esse assombro da medicalização que está presente em
momentos marcantes na história de vida pessoal do autor, não deixa de transparecer em sua
vida profissional como médico de favela. Em uma infinidade de encontros, essa
manifestação se dá: como quando foi presenteado ou glorificado por mero cumprimento do
seu dever; quando buscou ser resolutivo, transpor barreiras, para depois ver-se desmesurado
em seu afã por procedimentos; ou ainda quando sentiu que sua assinatura era o selo, a
outorga para tão pouco; ou seus conselhos virgens por demais requisitados. Ao longo do
trabalho, o conflito vem à tona em uma série de cenas descritas e problematizadas.
Dando prosseguimento à tarefa de colher, garimpar, filtrar e recontar:
23
Sombradiagnóstica3
Aos um ano e nove meses, ela era uma fofura. Nós dois, médicos, não esperávamos
dádiva maior, naquela tenra idade, do que toda a delícia que esbanjava um bebê com
várias dobrinhas nas pernas. Em visita a casa de minha irmã, meu cunhado me mostra um
vídeo de um garotinho de dois anos, filho de amigos da família, com um comportamento
diferente, gritos e agitação no berço, sem fofura alguma. O menino tinha quase a mesma
idade de nossa filha e recaía sobre ele a suspeita de autismo.
A mesma sombra não demorou a me cobrir. Naquele domingo, retornando de
viagem, as perguntas começaram a sufocar. Fofura descarta autismo? Breve pesquisa na
internet coloca em minhas mãos questionários de triagem. Sua filha tem contato visual,
olha nos olhos por mais que alguns segundos? Sua filha atende pelo nome? Aponta quando
quer pedir algo? Brinca de maneira instrumental com seus brinquedos? Procura os
amiguinhos no parquinho? Não. Não. Não. Não. E não, fofura não descarta Transtorno do
Espectro Autista.
Compartilho com minha esposa. O vídeo, os questionários, as impressões e os
receios. Testamos a nossa filha. No colo, converso com ela rosto a rosto, seu olhar é vago
e me atravessa, não se comunica com meu semblante, independente das minhas caretas e
emoções. Chamamos por todos os possíveis apelidos e alcunhas, não torce o pescoço.
Vasculhamos as recordações. Uma foto de nós sentados numa sessão do supermercado, ela
ao meu lado no chão do estabelecimento. Eu estou vaidoso da sua habilidade metódica em
separar treze latas de leite por cores, equidistantes e com precisão. No questionário, esse
feito incrível traduz-se em comportamento repetitivo, obsessão por padrões e rotinas fixas.
Pontua contra ela. Outras fofuras gravadas em que agita os braços como uma foquinha
excitada com bolhas de sabão se encaixam, agora, nos trejeitos estereotipados do
3
Falamos, então, de sobrediagnóstico, de diagnóstico como um erro prognóstico. No sobrediagnóstico, não há
erro de diagnóstico. Por exemplo, em três situações típicas de sobrediagnóstico: se é câncer de tireóide, é
câncer de tireóide; se é uma mutação da hemocromatose, é uma mutação da hemocromatose; e se é embolia
pulmonar, é embolia pulmonar. Em outras palavras, o superdiagnóstico não é um "falso positivo". O que é
falso é o prognóstico associado ao diagnóstico. E com esse erro, o dano de rotular (e intervir) ocorre sem
melhorar a qualidade de vida (às vezes piora) ou mudar a causa da morte. No primeiro exemplo, muitos
cânceres de tireoide são “histológicos” (eles não evoluem e às vezes retornam por conta própria); no segundo,
genes mutados com pouca “penetração” (e não causam doença clínica); e, no terceiro, a TC helicoidal permite
diagnosticar micro-embolia pulmonar “fisiológica”, sem nenhum impacto como patologia. O
sobrediagnóstico é um erro prognóstico. O sobrediagnóstico não ajuda a melhorar a qualidade de vida, nem
altera a causa da morte. O sobrediagnóstico não previne, cura ou alivia a doença e não ajuda a morrer bem. O
sobrediagnóstico vai contra os objetivos da Medicina (GERVÁS, 2013). No título da cena, o termo
Sombradiagnóstica é um neologismo do autor, que remete tanto ao conceito de Sobrediagnóstico quanto ao de
Espectro Autista, que possui critérios diagnósticos turvos e de margens imprecisas ou sombreadas.
24
diagnóstico. Minha esposa analisa tudo. Não digere em negação ou desespero. Com o
mesmo pragmatismo de sempre, agenda um neuropediatra.
A consulta é doída. A médica tem vasta experiência na área e confirma a suspeita.
Nossa filha não responde as interações com os chocalhos e o escore nos questionários e
marcos do desenvolvimento são aquém do esperado para a idade. Minha esposa desaba em
choro pela primeira vez. Nos abraçamos, enquanto ela segura a fofa na maca. Lembro de
uma fala da médica sobre os prognósticos de alto rendimento em uma tentativa empática:
— Ela poderá fazer até medicina, quem sabe, e ser a estranha da turma.
Uma segunda opinião de um psiquiatra não nega ou exclui a possibilidade. Não
nos ilude, mas acolhe melhor. Da segunda consulta, minha esposa não sai chorando. Liga
e agenda toda a nova agenda de terapias de reabilitação. É o que se pode fazer nesse
momento. Os resultados são imprevisíveis.
Em me recolho em dor interior. Passo a comer por obrigação e dormir por
exaustão. O trabalho me ocupa e me impede de prever cenários drásticos, em que minha
filha não verbaliza ou se automutila, em que não espelhará meu humor, minhas ironias ou
a coragem da mãe, porque seu afeto e sociabilidade habitarão outro mundo.
Ligo para a minha mãe, para fazer pirraça sobre aquela injustiça. Minha mãe sabe
que eu não merecia. E o melhor! Poderá sofrer em dobro por ser avó, assim tenho alguma
compreensão do meu sofrimento. Digo:
— Mãe, eu fiz tudo certo, venci na vida. Sobrevivi ao papai e a bebida, me tornei
médico. Levei minha irmã caçula fofa e Down no parquinho e por diversas vezes aturamos
os olhares e condenações das crianças “normais”. Agora começa tudo de novo? Quando a
vida fica boa?
Minha mãe não tem resposta, sempre teve, mas agora não. Seu choro é mais
convulso que o meu e entrecorta sua tentativa de fala. Aquilo me consola.
A fofa começa sua ciranda de terapias. São pelo menos seis horários semanais de
estimulação por semana.
Um colega que acaba de ter filho, sem saber da minha paternidade fraturada, me
diz:
— Porque você não disse que ter filho era tão bom?
Sorrio amarelo e desculpo-me por não ter lhe dado dica.
Mais magro, sorumbático, insone e dissociado, em torno de sete meses depois
minha esposa agenda uma consulta com um psicólogo.
25
4Durante os anos 50 e 60 do século passado, houve muita confusão sobre a natureza do autismo e sua
etiologia, e a crença mais comum era a de que o autismo era causado por pais não emocionalmente
responsivos a seus filhos (LEANDRO, 2018).
5
O escore de risco poligênico aplicado para TEA foi associado a características de TEA entre crianças da
população em geral. Os riscos genéticos para TEA podem estar associados a atrasos em alguns domínios do
desenvolvimento neurológico, como habilidades grosseiras de linguagem motora e receptiva (TAKAHASHI,
2020).
26
conjugando experiências que influenciaram na escolha do tema como uma tentativa de lhes
dar visibilidade e intensidade tal como vivida. Passaremos, no próximo capítulo, a um outro
platô dos encontros do médico de favela com o fenômeno da medicalização.
27
4 SABERES-PODERES E A MEDICALIZAÇÃO
O moço é açougueiro, vindo da Paraíba. Possui chagas nas pernas que lhe
atrapalham e muito a vida. Apesar dos 35 anos, apresenta veias incompetentes em fazer a
circulação dos membros inferiores fluir. Daí que evoluiu para a formação de úlceras de
estase pré-tibiais, ou seja, feridas de difícil cicatrização nas duas canelas. A bota do
trabalho roça bem nessas aberturas da pele. Somam-se a isso dores, secreção e chances de
infecção.
Comparecia à clínica três vezes por semana para a realização de curativos, tomava
seus remédios e batalhava junto a previdência social para manter-se apoiado pelo Estado.
Diante da lenta recuperação das lesões que mantinham seus bordos territoriais sem recuos
visíveis, optou-se por colocar outro tipo de bota do moço.
A bota de unna é um curativo a base de óxido de zinco que realiza uma compressão
das pernas, substituindo o papel das paredes e válvulas vênulares, facilitando o retorno do
sangue. Assim, a rotina do moço se modificou, porque o novo par de botas pode ser
trocado a cada sete dias e já na primeira troca observou-se um recorte menor das
sanguinolentas placas geográficas. Na segunda semana, o moço apareceu com a bota
modificada. Havia retirado a porção que cobria os pés e tornozelos, referindo incômodo. A
conduta imediata do doutor foi de repressão e julgamento como má prática, imaginando
que a violação da cobertura levaria a sua ineficácia. No entanto, se surpreendeu com novo
recuo das fronteiras ulcerativas.
A cada troca, o moço mantinha uma postura ativa ao suspender a perna para
facilitar o seu enfaixamento, cortar o esparadrapo, enrolar a atadura final de acabamento,
de maneira que o médico passou a prescindir de um ajudante durante o procedimento.
Apesar da evolução favorável, por vezes o encontro era dificultado pela sobrecarga da
agenda do médico e o moço esperava por até 4 horas até que ele pudesse se dedicar ao seu
caso.
28
Por volta da oitava troca, teve início um debate a partir de uma brincadeira dos
dois, na qual sugeria-se que moço, dado o grau de colaboração e a audácia de partir o
curativo, talvez pudesse realizá-lo sozinho em sua casa, desde que lhe fossem fornecidos os
insumos. Naquele dia, a hipótese terminou mesmo como uma piada. A regulamentação da
confecção da bota de unna exigia uma capacitação profissional em uma unidade
especializada, com dois turnos de treinamento prático e teórico, permitindo, pois, a
outorga através de publicação no diário oficial do município. Apesar de trabalhar de
avental branco, não ter medo de sangue, ser dotado de uma destreza para destrinchar um
boi inteiro em dezenas de cortes precisos com facas tão afiadas quanto bisturis, o moço
não parecia atender essas credenciais.
Naquele grande posto de saúde, dos vinte oito médicos, trinta enfermeiros e
quatorze técnicos de enfermagem, apenas dois profissionais tinham a licença, o que
restringia o acesso da população a um cuidado que mostrava resultados por demais
satisfatórios. Foi então que, em um dia caótico, de grande pressão assistencial e muitos
atendimentos, que o médico resolveu arriscar e, como contrabandista, o moço levou duas
caixas do rolo para calçar a si próprio.
Qual não foi a surpresa do médico na semana seguinte quando o açougueiro
encostado apareceu com botas de unna amputadas a sua maneira muito justas e bem
aplicadas. O trato continuou. Agora a liberação passara a ser quinzenal. Em contato
telefônico e por mensagens, o paciente enviava as fotos do seu progresso e recebia o aval
do seu fornecedor clandestino, até que se curou sozinho na décima sexta semana.
Uma análise mais distanciada da narrativa permite identificar, em seu bojo, quatro
elementos maiores que suscitam a discussão no universo proposto entre medicalização e
medicina de família e comunidade: 1) o antiprotocolo, exemplificado pela postura do
médico em prescindir da necessidade do profissional devidamente capacitado; 2) a
concentração de tecnologias, que envolvem um curativo secular cercado de entraves para
aumento de oferta à população; 3) a aposta na potência do paciente, por meio da migração
de uma tutela aprisionadora para uma tutela autonomizante; 4) o embate entre o saber
técnico e o saber leigo, ou a explícita diferença entre o modelo ideal e a prática eficaz,
presente entre a modelagem criteriosa na clínica e a adaptação da bota realizada pelo
paciente.
29
4.1.1 Do Antiprotocolo
colocações que parecem se confrontar e realçam o tipo de conflito que o médico sentiu em
sua prática:
Esse procedimento é restrito a profissionais especializados e deve ser realizado
sob indicação médica.
Receita da bota de Unna: 100g de gelatina em pó, sem sabor e cor; 350ml de água
destilada; 100g de óxido de zinco e 400g de glicerina.
calorias e faça a manutenção corpo como você mantém seu carro...o revendedor
de peças vai lucrar com isso. "Doctor yourself!" É o slogan final em um mundo
medicalizado (ILLICH, 1982, p. 470).
Tom Zé
Aquele da Resignação
Joelhos de Sucata
O senhor, pelo ranger de suas dobradiças, deve ter perto de sessenta. Destes, mais
da metade foram dedicados a uma empresa de reciclagem. O cargo do senhor: caçador de
tesouros. Há alguns anos, a companhia fechou as portas e o dono português cruzou
novamente o atlântico sem pagar os direitos dos empregados. O senhor, então, se viu
perdido, mas, como caçador inveterado, não viu outra forma de andar a vida, não fosse
esmiuçando descartes à procura de ouro, o que melhor sabia fazer. O grande problema
aqui foi o depósito, pois, não tendo mais o pátio para armazenar o material, a saída foi
estocar em casa. Tendo ainda pouca saída para as mercadorias, com poucos compradores
para suas relíquias, vendendo quatro a cinco baldes de plástico na feira de domingo e com
um comprador de motor de geladeira aqui e outro que ainda barganha por um cavaco de
ferro ali, inviabilizando transações, a pilha de achados se avolumou.
Foi aí que começaram as desavenças com vizinhos e familiares. O filho do senhor
solicita o apoio da equipe de saúde da família, entendendo que o caso se tornara uma
questão de saúde. O médico da favela, que já estivera com o senhor em pelo menos quatro
consultas, tratando da sua artrose nos joelhos, que produziam as mais altas crepitações
que ouvira ao flexionar e estender as articulações, seguiu com seu residente e a agente
comunitária para a visita domiciliar, na semana seguinte ao recebimento daquela
inusitada demanda.
Na véspera, estudou as possibilidades de intervenção e, confiante na relação
médico-paciente, que havia cultivado durante as infiltrações nos esfarelados joelhos e
dispensação de analgésicos, e numa lembrança do senhor sempre muito cortês e
agradecido, mesmo quando demorava a ser chamado para o atendimento, pensou em
possibilidades diagnósticas de transtorno-obsessivo-compulsivo, em indicação de drogas
psicotrópicas e apoio psicológico, em até mesmo trazer o insight para o seu paciente, com
toda a técnica de comunicação clínica que havia aprendido e do alto da sua palavra
médica de autoridade sanitária, que aquele amontoado de lixo era um grande risco para
todos, que o acúmulo havia se tornado patológico.
A equipe foi muito bem recebida, naquela manhã. Teve café e uma reunião familiar
na pequena sala. Todos tiveram sua fala. Os filhos se queixaram daquilo que parecia
40
óbvio, que o pai era um acumulador de sucata e a situação exigia uma medida drástica e
definitiva: o senhor tinha que se livrar daquelas bugigangas e, ainda, interromper suas
andanças diárias de coleta, pois, mesmo depois de uma limpeza geral, seria capaz de
restaurar o caos em semanas. O médico da favela trouxe, então, seus diagnósticos e
terapêuticas, mais complexos para este mal do que aqueles empregados nas juntas do
acusado, que, apesar de aparente relutância, aceitou começar com o desapego das pilhas
de ferragens e entulhos de obra da calçada.
Café digerido em estômagos contorcidos pela atmosfera da ocasião, conduta
traçada, decisão compartilhada, parte a equipe, com planos de retorno em sete dias, para
averiguar a acordada nova arquitetura minimalista da calçada.
Em reunião de equipe, dois dias após a visita domiciliar, a agente comunica que o
senhor foi agressivo com a esposa e filhos após investida dos profissionais de saúde, que
não ia se desfazer de tudo aquilo que encontrara de uma hora para outra, que o doutor,
como ele mesmo assumia, não entendia desse tipo de negócio. Comunicava ainda que os
filhos pensavam agora em sair de casa junto da mãe, acionar outros órgãos competentes,
como a companhia municipal de coleta de lixo ou vigilância sanitária, e que os transtornos
no perímetro do lixão urbano eram tantos que os vizinhos ameaçavam atear fogo naquele
mar de resíduos.
Passados alguns meses, o senhor procurava a clínica novamente por dores que
insistiam em limitar suas jornadas do trabalho. O médico da favela examinava e palpava
aqueles joelhos deteriorados, condenados pela ortopedia, mas funcionais para um errante
catador de artefatos fora de uso, enquanto dava o aceite ao convite para mais uma xícara
de café.
De fato, apenas no âmbito da atenção básica se pode ter uma dimensão real da
ecologia humana, porta de entrada preferencial do sistema e “braço” mais
capilarizado do Estado dentre todo o aparato governamental em interface com a
sociedade civil, ainda mais do que as escolas, a assistência social e até mesmo
que a “arrecadação de impostos”. E todo esse “privilégio” de ser o ponto mais
acessível do sistema [...] coloca a atenção básica em vantagem tanto para
observar o fenômeno da medicalização, como para perpetuá-lo ou ainda fazer
enfrentamento a este […] (CARDOSO, 2014, p. 41).
43
5.1 NO AMBULATÓRIO
6
Na prevenção quaternária, é comum a presença dos “combatentes” (“P4 fighters”, como seus entusiastas se
definem) que enfatizam os interesses do mercado e os dados da medicina baseada em evidências (estes como
um antídoto) na batalha contra o excesso de medicalização, embora com pouca atenção para a relação clínica
(CARDOSO, 2014).
45
7
Erisipela é um processo infeccioso da pele, que pode atingir a gordura do tecido celular, causado por uma
bactéria que se propaga pelos vasos linfáticos. Pode ocorrer em pessoas de qualquer idade, mas é mais comum
nos diabéticos, obesos e nos portadores de deficiência da circulação das veias dos membros inferiores. Não é
contagiosa. Nomes populares: esipra, mal-da-praia, mal-do-monte, maldita, febre-de-santo-antônio. BRASIL,
Ministério da Saúde. Erisipela. Biblioteca Virtual em Saúde, 2015. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/dicas-em-saude/2066-erisipela>. Acesso em: 4 mar. 2020.
48
o quadro “O médico” de Samuel L. Fields8, busca-se interrogar a visita per se como mais
uma roldana medicalizante independente da ação impetrada em seu espaço.
Não é incomum nos depararmos com uma dificuldade quando – os agentes
comunitários de saúde, enfermeiros e médicos – precisamos efetuar as visitas em
microáreas que cobrem ruas de asfalto e classe média baixa. Por que esses profissionais
deixam de ser bem recebidos conforme se observa uma mudança de classe social e a menor
utilização/dependência do serviço público de saúde? Sem dúvida são fatores a serem
considerados e que obrigatoriamente nos levam a considerar como se desenvolve o hábito,
como parte inerente do trabalho em saúde, de visitar ou vigiar a casa dos pobres. A etiqueta
parece ser menos rigorosa aqui, bem como a liberdade e o costume, por parte dos anfitriões,
de não abrir a porta.
As visitas passam a fazer parte do aparelho estatal de vigilância. Um roteiro
periódico de incursões está previsto para cada lar que abrigue uma gestante, puérpera, uma
criança, um idoso, uma família. A gestão tem suas metas ensandecidas bem estabelecidas
por métodos de melhoria de qualidade com grande respaldo no meio da administração de
empresas. Em muitas cidades, como São Paulo, por contratos de gestão entre a prefeitura e
as organizações sociais de saúde, o ACS deverá fazer um número mínimo de duzentas
visitas mensais (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2015). Seguido à risca, somadas as idas
de médicos e enfermeiros, os quais também possuem metas avaliadas e parametrizadas
através de variáveis de desempenho, por vezes expostas em sessões públicas de
accountability9, a visita domiciliar como cuidado em saúde pode ser tida como um
patrulhamento ostensivo e inconveniente.
8
No Natal de 1877, Philip, primeiro filho do pintor, morreu com apenas um ano de vida devido à tuberculose,
apesar dos cuidados do Dr. Murray, um médico de família. Fields, impressionado e agradecido pelo
compromisso desse médico em tentar salvar seu filho, prestou homenagem a ele quando pintou este quadro
em que vemos um médico pensativo e impotente avaliando, em um domicílio miserável e insalubre, uma
criança gravemente eferma, com os pais consternados no fundo sombrio (MIRANDA; MIRANDA, 2013).
9
Normalmente, se refere a um relacionamento que envolve uma responsabilidade, uma obrigação de relatar,
dar conta de ações e de não ações. Isso indica que existe uma expectativa assumida da necessidade de relatar e
explicar, seja pessoalmente ou por escrito, com consequências e sanções previstas para resultados fora do
esperado (MAYBIN et al., 2011). Prática de prestação de contas dos profissionais de saúde e gestores,
empregada no NHS (Sistema de Saúde Britânico) e importada no modelo de reforma da atenção primária da
cidade do Rio de Janeiro, a partir do ano de 2008.
49
5.3 NA GESTÃO
Ela tem 44 anos. Diagnosticada com neoplasia maligna da mama está aguardando
o início da quimioterapia. Com o crescimento da massa tumoral produziu-se uma
ulceração com descarga de grande quantidade de secreção de odor fétido. Ela usa gazes
para absorver esse conteúdo e possibilitar sua higiene, não sujar as roupas e conseguir
sair na rua quando necessário ou desejável. A clínica da família libera insumos em
quantidade insuficiente para os curativos caseiros. Ela conta com o médico de favela todas
as semanas para ajudar com o provimento de gazes não estéreis.
Illich (1975) sugeriu que uma das facetas iatrogênicas da medicina seria a
Iatrogênese Social. Essa, devia-se a grande soma de gastos públicos destinados a
contratação de pessoal médico pelos governos, prescindindo de investir, assim, em outras
áreas, seja alimentação saudável, cultura, distribuição de renda e demais segmentos.
Declara que a Medicalização do orçamento é nociva, pois:
O autor nos provoca com um oxímoro10 estarrecedor: quanto mais médicos menos
saúde! O autor argumenta por meio de dados referenciados sobre explosão de gastos
médicos nos EUA, correspondendo a fração significativa do PIB daquela nação, e
resultando em declínio da expectativa de vida. Outras fontes evidenciam a lamúria e
10
Segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa:
Combinação engenhosa de palavras cujo sentido literal é contraditório ou incongruente (ex.: bondade cruel é
um oxímoro). "oxímoro", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-
2020, https://dicionario.priberam.org/ox%C3%ADmoro [consultado em 05-03-2020].
50
11
Valor bruto em reais representando o total de proventos incluindo gratificações de preceptoria da residência
médica em medicina de família e comunidade, responsabilidade técnica da clínica da família, titulação de
mestrado e doutorado, pagos a um(a) médico(a) por 40h/semanais de jornada de trabalho em fevereiro de
2020. Infomação extraída de contracheque emitida pela parte contratante Organização Social de Saúde
VivaRio.
51
12 Na perspectiva das pessoas usuárias e de suas famílias, a coordenação do cuidado constitui qualquer
atividade que ajude a assegurar que as necessidades e as preferências dessas pessoas por serviços de saúde e o
compartilhamento de informações entre profissionais, pessoas e locais de atendimento sejam realizados de
forma oportuna. As falhas na coordenação do cuidado ocorrem, em geral, na transição de uma unidade de
saúde a outra, no caso, entre a Estratégia Saúde da Família e a unidade de Atenção Ambulatorial
Especializada, e manifestam-se por problemas de responsabilização e de quebra do fluxo de informações. Na
perspectiva dos profissionais de saúde, há que se considerar que a coordenação do cuidado é uma atividade
centrada nas pessoas e nas famílias, destinada a atender às necessidades dessas pessoas, apoiando-as a se
moverem, de modo eficiente e efetivo, através do sistema de atenção à saúde. Isso implica a coordenação
clínica, que envolve determinar a quem e aonde referir as pessoas usuárias, que informações são necessárias
transferir na referência e na contrarreferência e que responsabilidades são imputadas aos diversos membros
das equipes de saúde. Além disso, há uma coordenação logística que envolve sistemas de apoio e de
informação, de transportes e até mesmo sistemas financeiros. As falhas na coordenação do cuidado, na
perspectiva dos profissionais, surgem quando a pessoas são referidas a um profissional não adequado ou a
uma unidade de saúde errada ou quando se atingem resultados ruins em função de um mau manejo clínico ou
de fluxos de informações inadequados (MENDES, 2012, p. 344).
52
Em último exemplo de boa prática poluída, refere que a ampliação da clínica sem a
responsabilização do sujeito afetaria de maneira negativa e direta a construção de
autonomia, construção essa que nos permite a introdução da cena que segue:
Relações Descoordenadas
No hospital, a filha fica. A mãe num vai e volta. A agente e o médico voltam. Seu
tórax é drenado mais de uma vez, ela é sedada e contida, sabe-se lá como fazem melhor o
TDO do que a agente e a mãe, ou se mesmo conseguem fazê-lo. Não resiste.
A mãe passa na clínica uma última vez, avança pelo guichê de recepção sem se
identificar ou aguardar ser chamada. Entra na sala decidida, sem bater, encontra o
médico de favela em sua cadeira, em seu computador, ninguém nada ouve no corredor. A
mãe sai em luto, sai em paz.
Não foi injustiça ou ingratidão daquela mãe o desabafo de abertura. Uma ocorrência
do exagero no exercício da coordenação do cuidado com consequente invasão do arco de
autonomia e autocuidado da paciente pode ter ocorrido. O médico se responsabilizou por
levar a paciente em automóvel próprio para a realização do exame complementar, além de
tentar garantir a busca do laudo e entrega em mãos do resultado, o que não foi honrado.
O foco talvez se resuma ao fracasso dessa iniciativa. Não há intenção qualquer de,
através da teorização, eximir o médico de favela de sua falha e condenar a atitude da mãe.
É frente a um possível vão no atendimento da moça que o médico de favela julga
necessário construir uma ponte. É diante do risco de a paciente perder o exame, de perder a
oportunidade diagnóstica por motivo fútil e revoltante, devido a uma dificuldade de
deslocamento pela cidade, que ele se exaspera. Esse outro recurso (carona e entrega do
resultado), advindo de um arcabouço paternalista, acaba por ferir a relação, ao falhar na
interligação e fazer desmoronar a ponte.
A cena abre com um desentendimento, uma faísca na relação médico-paciente. Esse
é o ponto crítico. A noção de vínculo pode ser dinâmica a ponto de o profissional ver-se
claramente ultrapassando barreiras da relação entre a figura do médico de favela e a
paciente, passando a atuar como um amigo da família. Cardoso (2014), ao ponderar sobre o
tênue equilíbrio entre vínculo e dependência, compartilha conosco a seguinte reflexão:
Outra situação que me inquieta há muito é até onde vai o vínculo e inicia a
dependência? Pude acompanhar médicos de família preceptores na residência que
eram excelentes profissionais, uma relação ótima com as pessoas de sua área de
abrangência, tecnicamente bons, mas qualidades que pareciam favorecer uma
certa relação de dependência. Não sei, este tema é delicado, pois, por um lado,
poderíamos dizer que seria melhor ter dependência de um nível de atenção que se
pretende menos iatrogênico, mais integral, que sabe lidar com a complexidade do
adoecer usando tecnologias de “baixa densidade”. Por outro, para os defensores
da autonomia, tal como Illich (1982) isso já é naturalmente danoso, isto é,
depender de um serviço ou profissional de saúde, mesmo que numa perspectiva
“desmedicalizante” e voltada para uma “saúde ativa” (em analogia ao atual
“envelhecimento ativo”), já coloca a pessoa em uma posição de dependência, na
54
qual todos os ganhos que ela própria alcançar em benefício de sua saúde e bem-
estar, ela atribuirá aos valiosos conselhos e acompanhamento do especialista em
saúde. (CARDOSO, 2014, p. 47).
13
Conforme o dicionário online da língua portuguesa Priberam: 2. Ausência de autonomia. = SUJEIÇÃO
"heteronomia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-
2020, https://dicionario.priberam.org/heteronomia [consultado em 25-03-2020].
55
por exceder os limites nessa condução dos itinerários, pode, por fim, se revelar
desinteressada e falhar de maneira abrupta e brutal como em relações descoordenadas.
Ainda, é preciso ter em mente que os dois extremos da coordenação do cuidado
podem reproduzir erros, não apenas um controle total, como também a
desresponsabilização.
Essa narrativa traz uma possível visão do médico de favela sobre o consultório
médico. Uma percepção de que realiza um trabalho como um artesão, exercendo peripécias
com grande destreza manual e perspicácia intelectual, por meio de um lapidado raciocínio
clinico, estando absorto em atendimentos que se empilham como peças a serem moldadas,
trabalhadas por esse artista. Personifica-se aqui um médico de favela, incansável, sempre
acessível, onipresente, não só aquele que trabalha na favela. Procura-se demonstrar que, ao
médico de favela, cabe, de maneira honrosa, grande parte do trabalho braçal dos médicos.
Dos reclames vulgares, das dores comuns, dos motivos prevalentes, dos diagnósticos de
rua, das moléstias autolimitadas. Que o volume de pacientes, a variedade das queixas, das
idades, são rotinas inerentes a sua prática. Que a partir desse tipo de concepção, mais do
que a aceitação dessa rotina, deve-se buscar uma profunda identificação com ela.
Contrariando a sedução com que a crônica trata o labor do médico de favela tal qual
artesão, Illich faz comparações sobre esse mesmo espaço:
suficiente para informá-lo do diagnóstico, ou para lhe permitir tomar uma cápsula
na ausência do enfermeiro (ILLICH, 1975, p. 84).
A cena Fôlego, pilhas e xaropes foi resgatada por demonstrar um dia típico de
trabalho do profissional, que não é aquele idealizado pelos poucos aspirantes. O ritmo
acelerado, o atropelo de atendimentos e a espontaneidade no enfrentamento desse dia a dia
faz parte de um entendimento de que a demanda medicalizada, e a reação que pode assumir
tom medicalizante ou desmedicalizante, é um processo com seu curso natural na APS.
Candidatos a enfrentar uma pesada rotina e a representar um protótipo de médico
polivalente, ingressam jovens recém-graduados em medicina que, se não tiveram que
assumir desde cedo uma posição de luta política para sobrevivência da carreira escolhida,
decidiram-se por uma especialidade médica que, no bojo de seus pressupostos e
racionalidades, carrega como lema:
O grande desafio passa a ser o equilíbrio e o uso coerente dessas duas vertentes,
tanto a técnico-científica quanto a sociocultural. De maneira que o que se observa na
prática cotidiana é que o peso das partes se incorpora de maneira cada vez mais
desarmônica. Enquanto uns se esmeram em defender uma atuação pautada na ortodoxia
clínica e a demonstram por meio de performances aterradoras em número de atendimentos,
outros deixam de lado o plano cartesiano da medicina diagnóstica e alopática, aplicando a
epistemologia integral em cenários inoportunos. Daí que não só o holismo e a objetividade,
o macro e o micro, a generalização e a particularidade devem comportar-se como
59
Assim, a epistemologia da especialidade que nos ocupa estará formada por dois
tipos de elementos, que chamarei primários e secundários. Os elementos
primários derivariam do modelo biopsicossocial, incorporando as ideiasholistas e
totalizantes, e os elementos secundários do modelo biomédico, que anexaria as
ideais de segmentarização. Estes dois tipos de elementos se relacionariam em
uma espécie de sincretismo hierárquico, de onde se originarão as diferentes
modalidades da prática da medicina de família; a relação e englobamento desses
elementos dependerá de cada contexto e de cada situação onde se realizam as
práticas. [...] Nesse sentido, a medicina de família estaria tentando dar conta dos
híbridos com que se encontra permanentemente no mundo do meio; olhando para
o meio, se inserindo no mundo, ou na “ponta”, como se referem os médicos de
família para falar dos postos de saúde, é que se percebem híbridos. E com eles, se
percebem as relações e não as segmentações modernas (BONET, 2014, p. 170).
Por mais que esse médico tenha uma notável capacidade persuasiva, seja treinado
em comunicação clínica e tenha uma escuta e fala com potencial terapêutico, em
60
significativa parte das vezes a medicalização, a partir de uma vetorização assimétrica, vinda
dos pacientes, o forçará a intervir. Porém, caso não forneça a medicação, o exame, a talha
que nesse primeiro momento não aparenta ser uma conduta sábia, o usuário poderá deixar a
consulta com uma avaliação negativa do desfecho, insatisfeito.
Não se pretende anunciar a derrota definitiva da missão de desmedicalizar, que
porventura é exercida com grande sucesso, mas evidenciar a grandiosidade desse desafio e
onde está a principal força motriz que sabota o cumprimento das exigências para o bom
exercício da medicina em comunidades, enunciadas por Fry. Se a rachadura entre o
discurso e a prática já pode se avistar para as demandas agudas e autolimitadas, para as
queixas crônicas não é menos relevante. Porque, acima de tudo, consome também o
precioso tempo, põe em xeque a produtividade, ameaça metas, gera conflitos por tempo de
espera. Os demorados compartilhamentos dos sofreres de pacientes crônicos, com uma
estória de doença de longa data, também acabam por gerar desinteresse, desatenção e
repulsa entre os mesmos profissionais que as programam, agendam e convocam.
Os estudos de burnout têm voltado o seu recorte para os médicos de família e
comunidade, tanto no Brasil quanto internacionalmente (FELICIANO et al., 2011;
SANTOS, 2013; MORELLI et al., 2015). A fim de refutar a hipótese de que a
medicalização produz esse padrão, a culpa poderá ser lançada sobre o inchaço das equipes,
no número de pacientes pelos quais as equipes que sofrem por alta demanda são
responsáveis.
Um contingente expressivo dos médicos de família e comunidade elegem a pressão
assistencial, e as dificuldades em lidar com a mesma, como a principal desvirtuação da sua
prática. Por conta dela, não conseguem fazer a tão enigmática gestão do tempo,
assoberbados por ela, abandonam a carreira, pois não conseguem dar o tratamento que
gostariam e nele foram treinados. Ao invés de compaixão e zelo, passam a retribuir falas
embrutecidas e se reconhecem despersonificados.
Frustram-se, enfim, por diversos sentimentos e percepções, quando carregam
atendimentos para casa, casos na consciência, esvaziam seu repertório de lazer e tempo
livre em razão das funções laborais.
Fôlego, pilhas e xaropes é sobre a arte de ressignificar rotinas, reinterpretar
cansaços e reprocessar poderes.
61
14“O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quarta-feira (17/06/2009) derrubar a exigência do
diploma para exercício da profissão de jornalista. Em plenário, por oito votos a um, os ministros atenderam a
um recurso protocolado pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (Sertesp) e
pelo Ministério Público Federal (MPF), que pediam a extinção da obrigatoriedade do diploma. ” Notícia
veiculada no portal G1, disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,MUL1198310-5604,00-
STF+DERRUBA+EXIGENCIA+DE+DIPLOMA+PARA+EXERCICIO+DA+PROFISSAO+DE+JORNALI
STA.html
62
Mas o maior e mais direto impacto se deu entre os médicos de família e comunidade, os
gineco-obstetras, pediatras e cirurgiões gerais, especialidades consideradas básicas.
Nesses postos, em torno de quinze anos após a medida, a varredura foi completa. Enquanto
os subespecialistas continuaram a atuar, em número muito mais restrito, atendendo as
elites.
O que se passou naquele ano não teria precedentes. Não foi lobby para reserva de
mercado, não foi um ataque premeditado a determinada categoria em favorecimento
doutra, mas uma expressão da desobediência civil, levando, sim, a consequente outorga
para constitucional. Ora, se o povo já estava em desalento, há muito sem ter onde recorrer,
faminto, só lhe restava comer croissants. Neste caso, o maior fruto da rebelião que
culminou na histórica desregulamentação, pontuaram bem os analistas do futuro que se
consagraram como escritores, foi a retomada da autonomia.
Pela lógica do processo de trabalho daquele grupo de médicos, a transferência de
conhecimento encadeada – do especialista focal para o generalista, desse para os
enfermeiros, em seguida para técnicos e agentes de saúde, até que o saber fosse repassado
à população –, isto é claro, sobretudo aquilo que fosse comum, prevalente, sobre as
patologias que mais afligissem a gente, era um dos maiores objetivos. Como não ocorrera
pela maturidade da profissão e de seus atores, a nova organização da sociedade frente às
questões médicas acabava por abocanhar aquilo que lhe fora ofertado à distância.
Se antes era preciso enfrentar uma fila de horas para, na unidade de saúde, receber
uma receita de amoxicilina a fim de combater a presumível pneumonia do seu filho, agora,
sem valer-se de mercado negro, ou desvio do farmacêutico, conseguia-se o antibiótico.
Caso assumisse comportamento de risco e temesse por ter contraído uma doença,
como o HIV, era possível recorrer a um centro administrativo de saúde, solicitar para si
próprio o teste, confirmar o resultado positivo com um segundo, pegar as medicações e
realizar os exames de rotina e seguimento, tudo isso sem ter que confessar seus atos, abrir
pauta sobre sua sexualidade a um médico e ouvir seus conselhos tardios e julgamentos
precoces.
Nesses fluxos, o protocolo e a máquina haviam substituído o médico. Mas, se a
internet e tecnologia ameaçavam, muito antes dos médicos de família e comunidade, os
radiologistas e imaginologistas, esses primeiros não foram pegos de surpresa.
65
Vinte anos atrás, eram considerados o flavour of the season15, haviam se tornado a
maior sociedade de médicos especialistas do país. Como carro chefe do modelo
tecnoassistencial escolhido pela esfera federativa, tiveram uma grande onda de
valorização salarial e foram beneficiados, em termos de poder, por grandes reformas pró-
conteúdo e pró-coordenação16 insaturadas nos mais remotos municípios.
No entanto, por mais que se pretendessem com aparente similaridade aos médicos
de bairro cubanos ou algo parecido ao barefoot doctors17 da revolução cultural chinesa,
com o acúmulo de poder vieram a tomar novos rumos. Arregimentados pelo que
convencionou-se chamar de saúde corporativa, foram alocados em cargos de grande
respaldo, passando a servir como primeiros correspondentes em saúde de executivos de
ponta, em empresas nas mais iluminadas avenidas e praças comerciais.
Um dos seus lemas mais bradados era aquele que dizia: “O médico de família é
especialista em gente”. Essa bandeira não foi sustentada. Hasteada em altura muito baixa,
passou a tremular irônica ao vento. Uma crítica à segmentação corporal em órgãos e
sistemas, prática doutrinária das demais especialidades focais, perdeu o sentido.
O editor chefe da redação, que começara como office boy, sem nunca ter prestado
vestibular, do jornal de maior veiculação do fim do século em que se deu essa hecatombe
política, haveria de enunciar, em feliz publicação, que os médicos de família tiveram a
chance de se infiltrar no seio das famílias, dos lares, de, com a toga da medicina, se
aproximar das pessoas e fazer parte das comunidades como engrenagem mítica, mas
declinaram. Diriam que era trabalho por demais, muita demanda, muito problema. “Não
bancamos essa curiosidade toda, não é possível ser bala de prata do Estado para a
infinidade de mazelas sociais que na saúde desaguam. Porteiro, nesta portaria, não!”
Tudo aquilo que apregoavam ou que propagandeavam como genuíno interesse, na
hora decisiva, recusaram, reclamaram.
15
Do inglês: sabor da estação. Expressão empregada pelo autor para demarcar a era de ouro da especialidade.
16
As reformas internacionais da atenção primária costumam ser pró-conteúdo (melhoram a oferta de serviços
e a capacidade de resolução de problemas de saúde). Poucas reformas são pró-coordenação (dão mais poder
ao médico geral para coordenar os serviços que seus pacientes precisam). A tendência internacional é
fomentar a autonomia e independência do médico de família e comunidade e aumentar seu poder de
coordenação, com a implantação do pagamento por capitação e do papel de filtro (gatekeeper, ou porteiro)
(GUSSO et al., 2019).
17
Médicos de pés descalços foi uma tentativa via mobilização política para resolver os problemas básicos de
saúde nas áreas rurais da China em 1968, sob o governo de Mao Tse-Tung, quando a nação estava em
desenvolvimento. A maioria dos médicos de pés descalços se formavam no ensino médio, praticando por 3 a
6 meses treinamento no condado ou hospital comunitário. Daí a cobertura médica no campo rapidamente
expandiu. Apesar das críticas, as pessoas geralmente têm memória positiva dos médicos de pés descalços que
forneceram serviços médicos equitativos, especialmente quando a crise de saúde dos camponeses agravou-se
substancialmente após o sistema quebrar, na década de 1980 (ZHANG, 2008).
66
Em O Senhor das Moscas (1959), William Golding descreve uma distopia onde
crianças de seis a doze anos, ilhadas após acidente aéreo, fundam nova organização social,
sem a interferência de adulto algum. O clássico da literatura infanto-juvenil tornou-se uma
das teses mais contundentes sobre a naturalidade do mal, que encontra seus meandros em
um meio de escolares aparentemente puros e inocentes, do ponto de vista de contaminação
pelos desejos e caprichos da vida adulta.
O que me leva a ensaiar um universo paralelo em que a Medicina perde seu valor
como sólida instituição social, e a motivação para construir uma analogia com a obra de
ficção, se dá a partir da erupção da autonomia que gozam Ralph, Porquinho, Jack e demais
garotos ao se perceberem, apesar de isolados, livres. Também com a ruína do establishment
médico, quero colocar em observação as manifestações da autonomia de que passam a
desfrutar as pessoas.
Assim como crianças podem sobreviver a uma tragédia e ficar à própria sorte e
regras, alheios à civilização, como em uma ilha, apesar de improvável, não é impossível.
Mudanças na regulamentação de categorias profissionais dessa monta, assimilação de
novos comportamentos pelos pacientes ou desdobramentos espontâneos da evolução de
uma carreira também seriam passíveis de se materializar. Até onde País sem Médicos é
ficção? Em que momento esbarra na realidade? Algumas das projeções estão em curso,
talvez em um estágio prévio ao do texto? Trata-se de exploração de absurdos ou contextos
possíveis? A fusão realidade-ficção é pretendida desde o início, entendendo como exitoso o
alcance de um fator confusional entre os dois mundos. Sobremaneira, em País sem
Médicos, quis mostrar as consequências da destituição de um poder.
Landi (2018), em sua etnografia sobre os cuidados em saúde, a partir das vivências
de uma psicóloga em um hospital geral, menciona caminho de Cho (2008), que
68
engajamento que não quer distrair ou apenas alienar, senão provocar. No livro
Intermitências da Morte18, de José Saramago, a lida com uma realidade súbita e inesperada
é capaz de despertar toda uma nova visão sobre as passagens enlutadas, a negação da
terminalidade e os entendimentos sobre a história natural dos ciclos de vida.
A medicalização funcionaria conectando de maneira tão magnética as pessoas aos
sistemas de saúde pelo fato de problemas de ordens diversas serem encarados como
problemas médicos. E, dentro desse campo de atração, o médico de família e comunidade
estaria em zona crítica e estrategicamente funciona como mais um ímã.
Em A História da Sexualidade volume I - a vontade de saber, Foucault (1999)
explora a consagrada confissão pela Igreja Católica, bem como sua apropriação por outras
instituições, fomentando os novos discursos sobre o sexo em espaços controlados e
coercitivos:
A Idade Média tinha organizado, sobre o tema da carne e da prática da confissão,
um discurso estreitamente unitário. No decorrer dos séculos recentes, essa
relativa unidade foi decomposta, dispersada, reduzida a uma explosão de
discursividades distintas, que tomaram forma na demografia, na biologia, na
medicina, na psiquiatria, na psicologia, na moral, na crítica política
(FOUCAULT, 1994, p. 35).
Em País sem Médicos, há uma chamada em relação a essa função de pároco que o
médico de família assume. Por vezes, na consulta ambulatorial, em busca de um
diagnóstico oculto com causalidade psicossocial, mais do que assemelhar-se a uma
confissão, esse momento pode ainda descarrilhar para um inquérito sobre nuances de
relações familiares, desejos, perversões e outras intimidades da alma.
Enquanto a confissão provou ser mecanismo poderoso para a rendição individual, o
sermão, por sua vez, poderia ser compreendido como uma prática capaz de subjugar
coletividades. Constitui um discurso pelo qual se ensinam valores ético-morais,
normatizam-se comportamentos, proíbem-se os desvios e condenam-se as diversidades. Na
atenção primária à saúde, há um grande apelo em relação as abordagens comunitárias e
atividades voltadas para intervenções coletivas, grupos de educação em saúde representam
práticas doutrinárias. Em uma perspectiva histórica resgata-se que:
18
Na obra de Saramago, enquanto a ausência da morte mostra o colapso das estruturas políticas, sociais e
religiosas, seu retorno deixa inquietos todos os vivos, pois relembra que basta existir para estar sujeito a tal
desfecho. A obra convida o estudante de medicina a refletir sobre o respeito à vida, incitando-o a admitir seus
limites. Tal apelo permite entender e evitar a tentativa de preservar a vida a qualquer custo, como acontece
quando a prática médica incorre em obstinação terapêutica curativa, prolongando muito o sofrimento do
paciente em lugar de oferecer algum alívio com o emprego de cuidados paliativos (SANTOS, 2018).
70
Como são orquestrados por lógicas de produção, gerenciais, ávidos por números de
controle, os grupos criativos que conseguem trabalhar a saúde de forma lúdica são
exceções. Em sua maioria, as atividades coletivas são pouco dinâmicas e atrativas.
Não à toa, os grupos de planejamento familiar, em sua maioria, são esvaziados. A
educação sexual pregada nas escolas é motivo de troça pelos alunos pré-adolescentes. Os
grupos de hiperdia (hipertensos e diabéticos) funcionam apenas para pacientes obedientes,
que já frequentam com regularidade as unidades e escutam o sermão a fim de obterem sua
nova receita e pedido de exames. As reuniões antitabagismo não sustentam a assiduidade
do grupo, dada sua longevidade em etapas e extenso conjunto de normas, enquanto as
71
19
A biomedicalização, por outro lado, implica a internalização da necessidade de autocontrole e vigilância
pelos indivíduos eles mesmos, não exigindo necessariamente intervenção médica. Não é apenas uma questão
de definir, detectar e tratar processos mórbidos, mas também de ser informado e alerta de possíveis riscos e
condições que podem levar à doença (IRIART; MERHY, 2017).
77
Isso, para não elencar uma infinidade de outros exemplos que se tornaram lógicos,
que tiveram uma relação inextricável com o desenvolvimento da medicina. Daí o selo de
medicalização não servir nem mesmo como crítica à simples associação de qualquer
fenômeno à influência médica, porque, sim, já é reconhecida sua universalidade.
O enquadramento de todas as facetas e dinâmicas das complexas relações entre
profissionais de saúde, pacientes, poder público e mercado, dentre outros atores, parece
insuficiente quando resumido em medicalização. Outras denominações auxiliaram na
descrição das diferentes cenas que passaram a fazer parte desse repertório, como a
Biomedicalização e a Farmacologização20, dando conta dos efeitos gerados pela
incorporação de novas tecnologias. A Farmacologização parece, por exemplo, definir
melhor o processo pelo qual o médico torna-se um mero intermediário entre a consulta do
paciente e a propaganda do remédio ou sua busca digital, utilizando calculadoras
diagnósticas virtuais, o que, evidentemente, vai contra a ideia de imperialismo e poderio
médico evidenciados pelos teóricos da década de setenta.
A análise do desdobramento desse fenômeno na pós-modernidade trouxe a
preocupação para dispositivos que deixaram de representar a ficção científica e aportaram
na realidade, como a aplicação das descobertas da biologia molecular, da manipulação
genética e dos avanços no transplante de órgãos. O grau de sofisticação desses campos
definitivamente coloca essa discussão em um patamar futuro e distante de um lócus
contemporâneo, onde o contexto médico majoritário dos encontros em saúde é verificado
em atendimentos ambulatoriais, emergenciais e de hospitais gerais.
20
[...] Tradução ou transformação de condições, capacidades e potencialidades humanas em oportunidades
para intervenções farmacológicas. Ainda que com larga superposição com a medicalização, a
farmacologização se distinguiria por não estar necessariamente ligada a algum tipo de diagnóstico médico,
como se vê no fenômeno cada vez mais presente da utilização de medicamentos sem indicação terapêutica,
mas para atingir uma certa "supernormalidade", por meio do aperfeiçoamento farmacológico
("enhancement") (CAMARGO JUNIOR, 2013, p. 845).
79
Nos ambientes de atenção primária à saúde, que somam a maior parcela dos sítios
ao redor do mundo onde se vive a relação médico-paciente, esses instrumentos alegóricos
das tecnologias ultra brutas não se fazem tão presentes. Nesses espaços, a Medicalização se
dá ainda de maneira rudimentar, conforme explicitado pelos teóricos da segunda metade do
século XX, em velhas práticas medicalizantes, encontrando-se nas palavras do profissional,
na assimetria da relação, em suas atitudes autoritárias, no cerceamento de autonomia do
doente e sem deixar de se impor nas receitas.
Tendo essa construção histórica em mente, é possível explorar sob outra lente as
políticas públicas de expansão e cobertura máxima pela Estratégia Saúde da Família, de
territorialização, esquadrinhamento populacional por meio de cadastro detalhado das
famílias, visitas domiciliares regulares pelos agentes comunitários de saúde para
verificação de dados e coleta de informações. Enfim, todo esse conjunto de medidas, desde
a adscrição de clientela, gerenciamento do cuidado através de listas, busca ativa,
coordenação do cuidado, mapeamento de áreas e vigilância clínico-epidemiológica, todo
esse equipamento pautado no elemento central família, alvo antigo da medicalização, pode
ser lido como um retorno às mesmas práticas medicalizantes foucaultianas, agora
repaginadas em fresco verniz, mas conservando a ideia a respeito do poder exercido pelo
estado no controle dos corpos.
Análises históricas dos processos que culminaram com grande concentração de
poder pela empresa médica, que agora tem grande parte do seu poderio concentrado em
linhas de frente da atenção primária, são fundamentais para compreensão de como a
medicina de família e comunidade pode ter raízes de uma medicina social, a partir de uma
construção massiva e insidiosamente medicalizante
Caminhos, esses, que apontam para a descentralização dos cuidados em saúde, com
atendimentos domiciliares, valorização dos médicos generalistas e rurais, a preservação dos
grandes centros hospitalares para a concentração de áreas subespecializadas e cirúrgicas,
tratamento de doenças raras e graves, não sendo porta de entrada, mas dedicando-se ao
treinamento dos novos médicos e realização de procedimentos técnicos de alta
complexidade.
A MFC, não diferente das demais especialidades, pode desviar para quatro distintos
atalhos facilitadores da instauração de um cuidado altamente medicalizado. Em primeiro
lugar, por meio da expansão do que, na vida, é considerado relevante para a boa prática da
medicina; em segundo, por meio da manutenção do controle absoluto de determinados
procedimentos técnicos; em terceiro, por meio da retenção do acesso quase absoluto a
certas áreas "tabus"; e, finalmente, por meio da expansão do que, na medicina, é
considerado relevante para a boa prática da vida (ZOLA, 1972).
A primeira categoria pode ser exemplificada por ferramentas muito empregadas em
ambientes de atenção primária, no Brasil e no mundo, seja desde uma escuta qualificada a
uma aplicação sistemática da medicina centrada na pessoa, ou ao respeito por uma
medicina holística, essa dimensão enfatiza a mudança nos padrões de entrevista médica
que, na busca por uma consulta mais humanizada, passou a se interessar por tudo de mais
íntimo na vida das pessoas, seus hábitos, angústias, preocupações e etc.
Notadamente, a sintomatologia psicossomática responde por grande parte das
queixas em medicina ambulatorial, mas talvez faça sentido rodar esse caleidoscópio de
investigação clínica para rever os extravasamentos do que sempre é chamado de vínculo,
até mesmo por um equilíbrio entre uma prática cartesiana-ortodoxa eficaz e não
essencialmente fria e aquilo que pode significar intromissão profissional e influência em
demasia.
Esse novo modelo de raciocínio clínico com valorização do contexto sociofamiliar
passou a atender melhor o paradigma multicausal das doenças, ascendendo em
concomitância com a falência do modelo etiológico-específico, esse último se restringindo
a explicar casos agudos orgânicos como infecções bacterianas e infartos agudos do
miocárdio, porém, contribuindo pouco para decifrar pacientes multimórbidos e as
condições crônicas.
Atentos à expressão do fenômeno medicalização, interrogamos desdobramentos
dessa progressista hegemônica forma de construir a relação médico-paciente, cultuada no
81
meio da medicina de família, mas não exclusiva dessa categoria, exatamente pelo fato de
soar infalível, devendo ser reproduzida, ensinada e disseminada por realmente parecer
isenta de más intenções.
O segundo plano contempla o controle sobre procedimentos; disputa que, em nosso
país, remonta ao histórico processo da regulamentação da profissão médica, figurada pela
batalha judicial da lei do ato médico. O autor assinala ainda para a repaginação de
especialidades como a cirurgia plástica, que caminhou das reconstruções para a estética,
como também não deixamos de observar a “cosmetização” da dermatologia e
endocrinologia.
Dentro do mesmo escopo, de controle de atividades e garantia de fatias do mercado
de trabalho, extintos os boticários e limitados os farmacêuticos, os médicos tornaram
exclusiva para a sua classe a prescrição de drogas e, por volta da década de 70 do século
XX, o potencial de sobremedicalização já chamava atenção dos estudiosos do tema. Hoje, o
temor se volta para indicação massiva de fármacos no intuito de atenuar fatores de risco
provocados por estilos de vida não saudáveis (GODLEE, 2018).
O terceiro rumo para a medicalização da sociedade envolve a colonização de áreas
polêmicas, pois, se previamente eram notadas como processos naturais e fraquezas morais,
evoluíram para o status de doença, assim se sucedeu com o envelhecimento, a gravidez, o
alcoolismo e a drogadição, todas elas, questões consideradas de competência do médico de
família, constando na carteira de serviços 21(PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2011).
Procedimentos, esses, que vão desde o pré-natal até a desintoxicação alcoólica.
A quarta trilha diz respeito ao emprego da retórica médica para se avançar em
qualquer discussão, embasar determinados pontos de vista, vencer argumentações e
implementar políticas, seja tratando de questões da macroeconomia no dialeto médico ou
até mesmo relacionando as regras de comportamento e convivência em escolas de bairro
com aspectos da saúde, para que ganhem legitimidade e a devida atenção.
21
A Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde (APS) é um documento que visa nortear as ações de
saúde na atenção primária oferecidas à população no Município do Rio de Janeiro. Voltada para todos os
profissionais, gestores e população no intuito de se apropriarem dos serviços de saúde oferecidos na APS. Os
profissionais da APS devem estar preparados para resolver os problemas de saúde mais comuns na população.
Nesse sentido, a carteira busca equalizar as ofertas, já que muitas unidades de saúde não estariam preparadas
para oferecer todos os serviços descritos na carteira de serviços, relembrando, porém, a importância de que
sejam oferecidas condições para que essas ações na APS sejam disponibilizadas à população
(PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2011).
82
Percebo que a compreensão histórica daquilo que responde pelo frenesi em nossas
portas (alta pressão assistencial) seja um ponto de partida para que o trabalho do MFC seja
de alguma forma ressignificado. Só a partir desse entendimento será possível enxergar que
atender muito não é necessariamente enxugar gelo. Nesse momento, é inaceitável o sofrer
por ser muito demandado, por ser muito poderoso, sem uma profunda reflexão de todo o
processo que nos trouxe até aqui.
Aspectos-chaves:
1. A Medicalização é “um processo pelo qual problemas não médicos passam a ser
definidos e tratados como problemas médicos, frequentemente em termos de
doenças ou transtornos” (CONRAD, 2007). Como instância de domínio ideológico
na sociedade, a Medicina tem sustentado e perpetuado esse movimento.
2. A Atenção Primária à Saúde, pautada em princípios e atributos que se alinham aos
preceitos do Sistema Único de Saúde, tende, por meio da racionalização de práticas,
humanização do cuidado e lógica regional de territorialização, a configurar-se como
um campo de resistência à medicalização da vida.
3. No entanto, fundamentos que remontam à humanização da assistência e são
doutrinários para a MFC, como integralidade, acesso facilitado, coordenação do
cuidado, longitudinalidade, advocacia em prol do paciente e clínica ampliada podem
favorecer a perda de autonomia dos usuários e passam a atuar como práticas
medicalizantes.
4. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, o médico de família e comunidade,
como “porteiro do sistema de saúde”, torna-se o responsável por acolher uma
infinidade de mazelas sociais que funcionam como determinantes sociais em
saúde22. Com isso, a demanda por consultas médicas se torna insaciável.
22
[...] Os determinantes sociais de saúde são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais,
psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco
na população (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007).
84
23
Medidas tomadas para identificar pacientes em risco de sofrer intervenções excessivas, protegendo-os de
nova invasão médica e oferecer-lhes alternativas, eticamente aceitáveis (BENTZEN, 2003). Tradução nossa.
85
86
9 EPÍLOGO
coadjuvantes. Apesar das inegáveis perdas, ao relativizar esses demais atores, foi uma
opção desde o princípio a fim de dar visibilidade ao encontro MFC-Medicalização, naquilo
que há de forte desde o lugar de médico. Outra limitação importante foi um foco voltado
para a manifestação da medicalização na relação médico-paciente.
Quis demonstrar que, antes mesmo de todo o mal em potencial causado pelo médico
generalista, que atua na atenção primária sem uma especialização “de excelência”, como a
residência médica – estando a salvo, exceções para o bem e para o mal de ambos os lados –,
o protótipo ideal de um médico de favela, aquele com boa formação e experiente, teria um
amplo alcance medicalizante, talvez maior do que os colegas.
Na interminável tarefa de reler as páginas, editando o trabalho, foi possível
reencontrar os sentimentos que deflagraram a discussão que me propus a fazer. Deveriam
estar apaziguados, pois são fruto de uma intempérie interna, mas parecem ter aflorado com
essa jornada de amadurecimento. Gostaria de terminar a escrita com uma fala mais doce e
ter remediado uma série de decepções, como ousei fazer em algumas das postulações
teóricas apresentadas. No entanto, aguça-me esse espaço de livre reflexão para semear mais
perguntas e provocações.
Divagarei um pouco mais por aqui, já que resultados, se os tenho, estariam
dispersos nos capítulos prévios. Surgem últimas ideias espasmódicas, como insistentes
digressões, sendo tentativas de extrapolação da experiência autoetnográfica.
Percebo ainda uma seletividade nítida de acesso, um filtro sabotado, desleal no
tocante ao emprego do poder pelo médico de favela. Imaginemos a seguinte cena,
desnecessária de se encenar, por ser um tanto quanto corriqueira, em que o paciente busca
por atendimento na unidade básica de saúde e, a depender da queixa, do porte de
documentos, da classe social, é absorvido ou não pelo serviço. Ela é capaz de exemplificar
o nó assistencial, onde, mais do que a confusão dos fluxos, o caminhar na rede e seus
itinerários se dão ao sabor de coordenadas traçadas por diretrizes como a boa vontade, a
compaixão, a misericórdia e seus correlatos ultrajantes, antes do que pela sapiência clínica
dos médicos.
O discernimento enviesado, a seleção do que se quer tratar e do que se quer mandar
embora ou rechaçar com obstáculos, o cultivo de pacientes à maneira do que agrada atender
ainda é uma via de medicalização pernóstica.
Essa nova trajetória me marca por explicar os porquês de algumas derrotas parciais.
Porque, em um meio de jovens idealistas médicos de família, a desolação é cada vez maior,
88
porque, apesar de lindas estórias de novas formas de cuidado, a transformação social pela
MFC ainda é uma miragem.
89
REFERÊNCIAS
DUNCAN, BB, Ivana Cristina H. C. Barreto, Vera Dantas, Luiz Odorico Monteiro de
Andrade, Ana Ester Maria Melo Moreira, Educação em Saúde e Intervenções
Comunitárias In: Duncan BB, organizador. Medicina ambulatorial: condutas de atenção
primária baseadas em evidências. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2013. p. 98.
GODLEE, F. Pills are not the answer to unhealthy lifestyles. BMJ, p. k3046, 12 jul.
2018.
ILLICH, I. Medicalization and primary care. The Journal of the Royal College of
General Practitioners, London, v. 32, n. 241, p. 463-470, 1982.
HORTON, R. (b): Is it time for a glorious Revolution? Lancet 2015; 385: 1818.
KEATING, N. L.; Pace L. E. Breast Cancer Screening in 2018: Time for Shared
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PELBART, P. P. “Por uma arte de instaurar modos de existência que não existem”. In:
FUNDAÇÃO BIENAL. 31ª Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal,2014.
SENNET, R. O artífice. Trad. Clóvis Marques. 3 ed. Editora Record. Rio de Janeiro, 2012.
ZHANG, Daqing and Paul U. Unschuld. “China's barefoot doctor: past, present, and
future.” The Lancet 372 (2008): 1865-1867
96
Tony Benn, democrata britânico, enunciou cinco questões que sugeria serem
colocadas para toda instituição: Que poder você tem? Qual a origem do seu poder? O
exercício de seu poder atende aos interesses de quem? Você responde a quem? Como
podemos nos livrar de você? (HORTON, 2015). Peço o direito de resposta em relação às
instituições a que pertenço: a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e
a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, pois considero respostas que exigem
uma autocrítica que os sujeitos institucionais em sua maioria não fazem. Mas, não respondo
por elas, respondo como um médico de favela para os usuários.
Em verdade, seria até mesmo difícil precisar onde ele começa e por onde se estende.
O tenho como algo inato, divino, como monarcas absolutistas o tinham. Mas, o esforço da
retórica filosófica me impele a pensar e posso dizer que me sinto poderoso, a princípio, por
ter emprego pleno como médico, num país com dezenas de milhões de desempregados.
Uma vez graduado, me encontro em um andar da pirâmide dos trabalhadores
liberais assalariados próxima ao topo, em termos de renda. Seja eu médico de piscina, a
deliberar sobre aptos e inaptos a banharem-se, após “minucioso” exame dermatológico, seja
eu médico examinador, a aprovar ou descartar trabalhadores capazes de assumir suas
funções laborais com um estetoscópio patronal.
No entanto, me tornei um médico de favela. Com isso tenho poderes específicos, os
quais descrevo naquilo que segue: tenho o poder de te privar de escolhas. Goste de mim ou
não, fui nomeado médico da sua rua, seu, da sua família e dos seus vizinhos. Não poderá
escolher outro doutor, outra equipe24, nem da mesma clínica, quer ele seja mais resolutivo,
ético ou empático do que eu. Mas, de fato, essa condição não é o meu poder. Essa é a sua
falta de poder. Sua submissão. Porque o poder, de certa forma, para ser poder, exige o seu
exercício sobre o outro. De qualquer forma, essa primeira definição de sujeição nos fornece
uma base.
24
A forma de pagamento aos médicos gerais pode ser por capitação (médicos profissionais independentes
trazem consigo a lista de pacientes e o monopólio do acesso aos especialistas – papel de filtro do médico
geral). [...] Entre os países com sistema de saúde nacional público e pagamento por capitação encontram-se:
Canadá (província de Ontário), Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Holanda, Irlanda, Itália, Noruega, Nova
Zelândia e Reino Unido. (GUSSO, 2019). Sob esse sistema, o paciente tem alguma liberdade de vincular seu
cadastro e prontuário ao médico que lhe convir.
97
Não tendo certeza sobre a origem desse mal que lhe atormenta, uma coisa tens
como certa, a saúde não vai bem e a medicina terá alguma resposta, o médico de favela será
sua única opção, na maioria das ocasiões. Terás ainda que codificar esse sofrimento em
minha linguagem científica, ou terá que torcer para que eu tenha esse cuidado de tradutor.
Por isso, conhecimento é poder. Daí também que ele emana. Mais do que reprimir,
julgar, condenar, você será programado a respeitar normativas que vão desde um guia de
conduta em meu espaço, a unidade básica de saúde, até uma prescrição detalhada, estando
eu atento à sua obediência a todo esse novo comportamento.
Acredito que vários atores se beneficiam de uma corrente do absurdismo como essa,
da qual fazemos parte como promotores da saúde. Ganham os gerentes, os secretários, os
médicos, os políticos, a indústria farmacêutica e de equipamentos, afinal, é uma soma
importante envolvida na operacionalização desse grande projeto.
Por que é uma lógica absurda? Porque trata-se de uma meta inalcançável. Somos
como Sísifo (CAMUS, 1942), rolando a pedra montanha acima e deixando-a escapar e
descer já próxima do cume. Afinal, como se espera alcançar um sentimento descrito como:
um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença
ou enfermidade (OMS, 1946)? Pois, lhe garanto, a depender de mim, eu jamais posso te
garantir esse deslumbramento utópico de felicidade.
Outra máxima, há muito ventilada, é aquela que diz:
Sem dúvidas, isto só pode se dar a partir de uma nova consciência e, daí, para uma
insurreição. Caminhando dentro da filosofia camusiana, podemos avançar da questão
existencial trazida em O Mito de Sísifo, “Por que não devo me matar? ”, pela falta de
sentido da vida, para aquela suscitada em o Homem Revoltado, “Por que não devo matar os
outros?” (CAMUS, 1942; 1951).
O assassinato, aqui, deve ser encarado de maneira não literal, e análogo a um dizer
de um “não”. Uma negação como uma imposição de limites. Esse tipo de negativa ao
médico já é uma realidade em diversas situações. Quando não se convence de um
diagnóstico, quando não se adere a um tratamento, quando não se aceita uma recomendação
de mudança de estilo de vida ou não se acata a realização de um exame complementar
indicado.
Mas, ainda assim, seria um não tardio, já após a procura, o desespero e a
insegurança. Instiga-se uma retomada de autonomia, que quer devolver os saberes do corpo
e da psique para que o próprio indivíduo tenha discernimento maior de quando deve ou não
recorrer a terceiros. E não estamos, aqui, falando de uma completa ruptura dessas relações,
o que seria imprudente, temerário e inexequível, mas de um distanciamento e não uma
renúncia.
A revolução poderia também ter um caminho contrário, partindo da conscientização
do médico de favela, a partir da opressão que sofrem os pacientes, e talvez um despertar
reflexivo sobre a medicalização possa nascer do lado mais poderoso.