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Samarone Da Silva Nunes Nós Museológicos Os Discursos Queer Nas Exposições

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
SOCIAL
LINHA DE PESQUISA: ETNOGRAFIAS DOS PATRIMÔNIOS,
MEMÔRIAS, PAISAGENS E CULTURA MATERIAL.

NÓS MUSEOLÓGICOS: OS DISCURSOS QUEER NAS


EXPOSIÇÕES HOMO (QUEER REMIXED) (2007) E
QUEERMUSEU - CARTOGRAFIAS DA DIFERENÇA NA ARTE
BRASILEIRA (2017).

SAMARONE NUNES

GOIÂNIA
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
SOCIAL
LINHA DE PESQUISA: ETNOGRAFIA DOS PATRIMÔNIOS,
MEMÓRIAS, PAISAGENS E CULTURA MATERIAL.

NÓS MUSEOLÓGICOS: OS DISCURSOS QUEER NAS


EXPOSIÇÕES HOMO (QUEER REMIXED) (2007) E
QUEERMUSEU - CARTOGRAFIAS DA DIFERENÇA NA ARTE
BRASILEIRA (2017)

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-graduação em Antropologia
Social – PPGAS, da Universidade
Federal de Goiás – UFG, como pré-
requisito para obtenção do grau de
Mestrado em Antropologia Social, sob
orientação da Profa. Dra. Camila A. de
Moraes Wichers.

GOIÂNIA
2019
Agradecimentos

Momentos difíceis pedem doses redobradas de coragem. Enquanto isso,


chegamos a acreditar que logramos obter qualquer coisa por mérito
exclusivamente próprio. Não é de tudo assim, antes desse trabalho chegar até
aqui, muitas relações foram construídas, outras desfeitas.
O que resta é o aprendizado, outros patamares a serem galgados, novas
relações tecidas e a possibilidade de empregar as ferramentas adquiridas em
prol dos que seguem após mim.
Dessa feita, quero agradecer em especial, a orientadora Profa. Dra.
Camila A. de Moraes Wichers, por encampar o desafio e pela paciência no
decorrer do processo.
Também, pela disposição em compartilhar suas memorias, arquivos e
conhecimento, quero agradecer ao Curador Hugo Siqueira pela generosidade.
Sou grato à profa. Nei Clara de Lima que sempre se colocou a
disposição para abrir suas memórias e ceder informações importantes para a
edificação desse estudo.
Agradeço ainda ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(FCS-UFG), na pessoa Luis Felipe Kojima Hirano enquanto coordenador e
presença nas bancas de qualificação e defesa. O corpo docente que nas
prelações deixaram cintilar na consciência questões fundantes trabalhadas
aqui. A secretaria do PPGAS-UFG, na pessoa do Elder Dias, meus
agradecimentos.
Estendo minha gratidão ao Adelino de Carvalho do MA-UFG, à Profa
Maria Luiza Rodrigues pelas valiosas contribuições nas bancas de qualificação
e defesa, assim como em outros momentos. Isabel Costa da equipe do Museu
de Arte de Goiânia e a colega Rosana pelo apoio.
Do Sul, Marco Fronckowiak no incentivo para realizar a pesquisa.
Por fim, agradeço todos àqueles que de uma forma ou outra, me
emprestaram suas memórias e escritos auxiliando na composição desse texto.
Grato.
Somos nossa memória, somos esse
quimérico museu de formas inconstantes,
esse montão de espelhos rompidos.
Jorge Luis Borges
RESUMO

Essa escrita reflexiva é resultado dos deslocamentos do "campo" e do fazer


"etnográfico". Esta contempla com especial atenção as implicações políticas e
epistemológicas das diferenças quando sofrem processos de captura.
Sugestões desses processos emergem quando comparo discursos Queer nas
mostras Homo (queer remixed) exibida no Museu Antropológico (UFG) em
Goiânia, Goiás em 2007 e QueerMuseu: cartografias da diferença na arte
brasileira, mostrada no Centro Cultural Santander – Porto Alegre, Rio Grande
do Sul em 2017. Produções contemporâneas como “epicentros” de conflitos ou
como gatilhos mnemônicos são mostradas, descritas e acessadas, segundo a
proposta de redesenhar uma costura perpassada por várias narrativas em que
uma das quais sou mero mediador. A dissertação é dividida em três capítulos
em que exponho o problema da representação de grupos desviantes
subalternizados e reúno o Fundo Digital da exposição ocorrida no Museu
Antropológico (UFG), mapeando e recompondo memórias. Para isso, recupero
de arquivos pessoais, memórias, fontes virtuais, internet, arquivos e produções
em meio eletrônico. Proponho, assim, uma reflexão sobre conflitos
externalizados, impactos das reverberações que os deslocamentos inversos
periferia-centro podem ocasionar. Tudo isso tendo em mente os filtros teóricos
selecionados entre as fileiras do queer e não (explicitamente) queer para o
presente trabalho visando, se não desatar, pelo menos principiar a caracterizar
os nós e nódulos deixados no tropo do fato expositivo pela tentativa de captura
do Queer nesses lugares e no sistema de arte brasileiro.

Palavras chave: Queer; Museu; Representação; Homo (queer remixed);


QueerMuseu.
ABSTRACT

This reflexive writing is the result of the displacements of the "fieldwork" and the
"ethnographic" doing. This one considers with special attention the political and
epistemological implications of the differences when they undergo processes of
capture. Suggestions for these processes emerge when comparing Queer
speeches in the Homo (queer remixed) exhibited at the Museu Antropológico
(UFG) in Goiânia, Goiás (2007) and QueerMuseu: cartografias da diferença na
arte brasileira, shown at Centro Cultural Santander – Porto Alegre, Rio Grande
do Sul (2017), Brazil. Contemporary productions such as "epicenters" of
conflicts or as mnemonic triggers are shown, described and accessed,
according to the proposal to redesign a seam pierced by several narratives in
which one of them is a mediator. The dissertation is divided in three chapters in
which I expose the problem of the representation of subalternized deviant
groups and I gather the Digital Fund of the exhibition at the Museu
Antropológico (UFG), mapping and recomposing memories. For this, retrieve of
personal files, memories, virtual sources, internet, files and productions in
electronic medium. I propose, therefore, reflection on outsourced conflicts,
impacts of the reverberations that the peripheral-center inverse displacements
can cause. All this bearing in mind the theoretical filters selected between the
queer and not (explicitly) queer for the present work, if not untie, at least begin
to characterize the knots and nodes left in the tropus of the expository fact by
the attempt to capture the Queer in these places and in the brazilian system of
arts.

Keywords: Queer; Museum; Reprentacion; homo (queer remixed);


QueerMuseu.
SUMÁRIO

ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES ......................................................................... 12

INTRODUÇÃO ................................................................................................ 15

Os nós que apertam .................................................................................. 13

CAPÍTULO I.................................................................................................... 24

Antropologizando museus - Musealizando devir ....................................... 24

1.1.1 Museus .......................................................................................... 25

1.1.2. Antropologia ................................................................................. 30

1.1.3. Cruzando a teia ............................................................................ 35

1.2. Interseccionalidade e museu ............................................................. 35

1.2.1. Interseccionalidade ...................................................................... 35

1.3. Teoria Queer ........................................................................................ 42

CAPÍTULO II................................................................................................... 47

Exposições Queer: ou é patrimônio, ou é esquecimento, os dois não dá 47

2.1. Homo (queer remixed) ........................................................................ 50

2.1.1. “Preliminares”: biografia de um discurso expositivo ............... 53

2.1.2. Leituras possíveis ........................................................................ 57

2.1.3. Produtos e produtores ................................................................. 63

2.1.4. Recriação ...................................................................................... 67

2.3. QueerMuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira – 2017 . 75

2.3.1. Recriação ...................................................................................... 78

2.3.2. Leituras possíveis ........................................................................ 85

CAPÍTULO III.................................................................................................. 92

Desvios do olhar antropologizado............................................................... 92

3.1. A virtualidade como campo em que se dão as disputas ................. 93

3.2. Preliminares: engenharia do Devir .................................................... 98

3.3. Ato I - diferença como tônica da representação ..............................103


3.4. Ato II - adiantando considerações ....................................................109

4. Conclusão .............................................................................................112

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................117


ÍNDICE DAS ILUSTRAÇÕES
FIGURAS
Figura 1 - Cartografia do movimento dispersivo geográfico e virtual. ............. 54
Figura 2 – Frame do vídeo que apresenta performance no espaço Circular. . 58
Figura 3 – Desenho (imagem com texto - Carrossel) Fernando Cardoso -
Postais. ........................................................................................................... 59
Figura 4 – Sem título 1, 2, 3, 4 e Passatempo 1, 2, 3, 4, Leopoldo Wolf
2003/2004. Desenho em papel (Acervo Bangalo) - Postal. ............................. 60
Figura 5 – O pornógrafo – Eu comigo I (nanio) e O pornógrafo – Eu comigo II
(veado) , Lincoln 2004. Desenho nanquim sobre papel - Postal. ..................... 61
Figura 6 – Série: Marcelo 2007 – Marcelo Henrique 2007. Desenho/pintura em
papel - Postais. ............................................................................................... 62
Figura 7 – São Jorge I (Série Santo Luxo), Ronan Gonçalves 2007. Desenho -
Postais. ........................................................................................................... 63
Figura 8 – Planta baixa e perspectiva Homo (queer remixed) - Daniel Almeida.
Fonte: Hugo Siqueira (2007). .......................................................................... 69
Figura 9 – Planta baixa assinalando produtores e obras identificadas em
exposição Homo (queer remixed). Fonte: Samarone Nunes (2019). ............... 70
Figura 10 – Produção “MANIFESTE-SE” – Glenda. ....................................... 72
Figura 11 – Produção “desagravo a Marcia X” – Tsi frombrasil. ..................... 72
Figura 12 – Montagem do altar – Hugo Siqueira. ........................................... 73
Figura 13 – Módulo “Louvores” (altar) Exposição Lavras e Louvores – MA-
UFG. ............................................................................................................... 74
Figura 14 - Grupos em oposição no debate (Grafo). ...................................... 77
Figura 15 – Fluxo gráfico dos movimentos conservadores, influência da opinião
virtual nos deslocamentos da exposição e MP-RS. ......................................... 78
Figura 16 – Frame do vídeo de divulgação da coluna Olha Só!. .................... 79
Figura 17, 18 e 19 - Panorâmicas da QueerMuseu no Santander Cultural Porto
Alegre. ............................................................................................................ 80
Figura 18 – Frame do vídeo que deu partida no ambiente virtual à denúncia
associando o discurso expositivo de “pedofilia”, zoofilia e desrespeito a
símbolos de culto religiosos. ........................................................................... 83
Figura 19 - Travesti da Lambada e Deusa das Águas. ................................... 85
Figura 20 - Cena de interior II - recorte........................................................... 86
Figura 21 - Cena de interior II – obra completa. ............................................. 87
Figura 22 - Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, de Fernando Baril. .... 88
Figura 23 - Comparativo dos desdobramentos dos discursos expositivos Homo
(queer remixed). .............................................................................................. 94
Figura 24 – Comparativo dos desdobramentos dos discursos expositivos
QueerMuseu. .................................................................................................. 97
Figura 25 – O crescendo no Caos. ................................................................108

GRÁFICOS
Gráfico 1 - Quantitativo por regiões dos produtores. ...................................... 66
Gráfico 2 – Amostra por gênero. .................................................................... 66

TABELA
Tabela 1 - Coletivo Circular com presença na Homo (queer remixed) MA-UFG
e por Estado.................................................................................................... 64

QUADROS
Quadro 1 - Vídeos de apresentação de produtores do Coletivo Circular. ...... 67
Quadro 2 - Seleção de significados. .............................................................. 99
Quadro 3 - Performação em escala. .............................................................107
Quadro 4 - Deslocamento e disputa .............................................................109
LISTA DE SIGLAS
BBC-Brasil - British Broadcasting Corporation no Brasil
BDSM - Disciplina, Dominação e Submissão, Sadismo e Masoquismo
EAV - Escola de Artes Visuais Parque Lage
ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio
ENUDES - Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual
FCS/UFG - Faculdade de Ciências Sociais Universidade Federal de Goiás
FGV DAPP – Fundação Getúlio Vargas Diretoria de Análise de Políticas Públicas
FFLCH/USP – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo.
Fies - Fundo de Financiamento Estudantil
ICOM – Conselho Internacional de Museus
Iphae-RS - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado
JC - Jornal do Comércio
LGBTTQ+ - Lésbicas, Gay, Trans, Travesti, Queer e outros
MA-UFG - Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás
MG – Estado de Minas Gerais
MC – Mestre de Cerimônia
MP-RS – Ministério Público Estado do Rio Grande do sul
MuBAN-IBRAM - Museu das Bandeiras do Instituto Brasileiro de Museus
NUMAS - Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença do Departamento de
Antropologia da FFLCH/USP
PPGAS - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
ProUni - Programa Universidade para Todos
PUC – GO - Pontifícia Universidade Católica de Goiás
Reuni - Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais Brasileiras
RJ – Estado do Rio de Janeiro
SEDUCE-GO - Secretaria Estadual de Educação Cultura e Esporte de Goiás
SP – Estado de São Paulo
UBC MOA - University of British Columbia Vancouver
UFBA - Universidade Federal da Bahia
UFG - Universidade Federal de Goiás
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
UFOP - Universidade Federal de Ouro Preto
UFPA - Universidade Federal do Pará
UFPE - Universidade Federal de Pernambuco
UFPEL - Universidade Federal de Pelotas
UFRB - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFS - Universidade Federal de Sergipe
UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina
UNB - Universidade de Brasília
Unibave - Centro Universitário Barriga Verde
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
Unirio – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
USP – Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO
13

Os nós que apertam

Escrever, dizem, é um ofício solitário e penoso. A escrita requer do autor


várias idas e vindas sobre o escrito, em um revisitar criterioso, muitas vezes
doloroso, análogo a “ir a campo”. Zelar em exprimir com fidelidade a miríade de
acontecimentos colhidos no campo requer diversos redesenhos daquilo que lhe
anima a mente. É prazeroso quando essa fidelidade é alcançada.
Pensei, para a introdução, várias abordagens que retratassem, com
mais ou menos acerto, aquilo que vivenciei nos últimos semestres entre as
salas da Universidade. Tomo o curso – que esse escrito é produto como
campo. Até porque essa escrita que por ora apresento é uma conjunção
daquilo que não aparece aqui de tudo.
Logo depois pensei em introduzir o texto descrevendo o longo corredor,
quase asséptico (me lembra, pela ausência de pouso, as alas de hospitais) de
pessoas que borram o brilho opaco do linóleo, com seus tipos característicos
sendo engolidos por portas silenciosas. Uma parada pela Sala 21, quase
sempre trancada a cadeado e a decisão necessária sobre sair a captura da
vigilante solicitando o franqueamento à sala. Após aberta, descrever a
disposição dos vários grupos que compõem a turma e contextualizar corpos e
falas. Ou ainda, traçar um panorama dos marcadores da diferença presentes e
quando essa categorização vez ou outra emergem no conjunto. Outra
possibilidade é apresentar as impressões causadas por conceitos e temas
tratados no curso.
Entretanto, por várias vezes, ainda que tentasse esboçar as questões
referentes ao conceito de campo e sua problemática, tais questões se
imiscuíam como tema recorrente tanto nesses grupos, quanto nos incômodos
rotineiros e pessoais que se impunham. A dimensão do campo surge como
pano de fundo a cada fala dita, testemunhando o desconforto dos participantes
no posicionamento frente às demandas dos projetos de pesquisa e as longas
discussões sobre a separação entre pesquisador e o objeto de pesquisa.

1
A Sala 2, antigamente conhecida como FCS2 fica no prédio de Humanidades I, Campus
Samambaia, onde ocorrem diversas aulas do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal de Goiás.
14

Ainda que se tratasse aqui de uma etnografia rudimentar da Sala 2, o


problema estaria na qualidade emprestada ao tratamento dado aos nossos
grupos. Ciente da impossibilidade de esgotar todas as possibilidades
metodológicas de escrita, teóricas e éticas e, já pensando nesse texto como
uma possibilidade ensaística de exploração de um mundo novo, o mundo da
escrita etnográfica enquanto um laboratório analítico para questões tanto
minhas, quanto da Antropologia, no que se refere ao locus do campo para os
eus descentrados.
Nesse texto pretendo alinhavar o campo expandido por meio de
alfaiataria composta por identidades provisórias comprometidas com uma
trajetória possível, compondo, há seu tempo, uma colcha matizada e diversa
que não se esgota aqui. Contudo, interrupções travam essa urdidura (Em
alguns momentos, o leitor poderá encurtar ou distender essas interrupções,
acessando pelos QR Code2 disponíveis nos rodapés das páginas informações,
imagens, vídeos e outras informações que sobrecarregam essa pesquisa.
Posteriormente estará disponível também, a versão em áudio dessa
3
dissertação no sítio Antropoqueer ).
No campo museológico, a operacionalização dos grupos desviantes em
vias de incorporação é um entrave recorrente. Nada melhor do que a
Antropologia para revirar os incômodos e arestas ignoradas pelo campo
museal. Os incômodos e arestas são os nós aludidos no título - Nós
museológicos: os discursos nas exposições Homo (queer remixed) (2007)
e QueerMuseu: cartografias da diferença na arte brasileira (2017).
Emprego com gosto as inversões propostas pelos teóricos queer4 nas tramas e
urdiduras necessárias para elaborar um tecido compreensível do campo, este

2
Quick Response Code (QR Code) é código de barras bidimensional facilmente escaneável e
de amplo uso no mundo virtual por permitir direcionar de maneira rápida as informações. Não é
preciso “baixar” aplicativo. Na extrema direita, acima, clicar nos três pontos (verticais) e
escolher “Ler Código QR”, no provedor de pesquisa Google. É uma funcionalidade presente
entre outros lugares nas páginas de redes sociais.

3
4
O termo está em disputa. Mas nesta pesquisa é empregado como termo êmico. Vindo em
ítálico para lembrar de sua condição colonizadora.
15

como estrutura, irregularmente constituído de tropos/rugosidades, que apontam


constantemente atritos silenciados que perturbam a “normalidade” do plano.
***
O objetivo da pesquisa é entender como instituições museais lidam com
os conflitos resultantes do desejo de musealização das diferenças a partir de
duas mostras expositivas intituladas como Queer. Há hiato de dez anos entre
as duas mostras. Em 2007, Goiânia por ocasião do 5º ENUDS, mais
precisamente no Museu Antropológico da UFG que recebeu a exposição
“Homo (queer remixed)” e em Porto Alegre, no Centro Cultural Santander em
2017, ocorreu a exposição “QueerMuseu - cartografias da diferença na arte
brasileira”. Nesse sentido, a investigação levantará questões de representação
de grupos sub-representados ou silenciados queer nos museus e no circuito de
exposições regionais brasileiras.
Chamo de grupos sub-representados aqueles constituídos por coletivos
e pessoas apresentadas no discurso museológico em situações deslocadas
física-temporal, muitas vezes conjugada, com objetivo de produzir uma
dissociação representacional. Essa prática que chamo de folclorização
(NUNES, 2015), sedimenta o silenciamento e posterior apagamento de grupos
e pessoas. Embora esteja falando de uma representação estética, a
dissociação representacional atinge de maneira prática esses coletivos,
vedando a esses grupos e pessoas a representação política, por exemplo.
Começo por citar os indígenas, a partir da realidade circunstancial de
Goiânia – Goiás, de onde acesso a maioria das informações que irão compor
esse texto. Vejo, visitando os museus dedicados aos nativos originais, os
discursos expositivos trazerem as diversas etnias como “bom selvagem”, desse
modo, é produzido um deslocamento temporal-histórico, que fixa a diversidade
como “primitiva” (classificar a diversidade étnica pelo epiteto “índio” é o mais
forte sinal). Assim, das quatro exposições de longa duração em exibição nos
principais museus de Goiânia – Museu Antropológico da Universidade Federal
de Goiás (MA-UFG); Museu Zoroastro Artiaga da Secretaria Estadual de
Educação Cultura e Esporte de Goiás (SEDUCE-GO); Memorial do Cerrado,
Museu da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e Centro Cultural Jesco
Puttkamer (os três ligados à PUC-GO), os nativos nunca são apresentados
portando ou utilizando tecnologias ocidentais contemporâneas. Embora a
16

cidade de Goiânia sedie o maior número de museus dedicados a essas etnias


no estado de Goiás, as discussões são estanques e não pretendem inscrever
esses sujeitos na contemporaneidade. Representados como “naturalmente
integrados a natureza”, como se essa integração com a natureza fosse
incompatível com as relações com o estado ocidental de cultura. Esse recorte
nega direitos, vontades, autonomia e identidades culturais diversificadas. Para
os mais de duzentos grupos étnicos sobreviventes no território nacional,
somente um recorte identitário é passível de ser mostrado.
O caso dos negros e negras é grave. Se por um lado, temos diversas
ações museológicas (ainda que restritivas) criando narrativas sobre os “índios”
nacionais, não há nenhuma na capital goiana dedicadas, mesmo que
equivocada, aos negros e negras nacionais. Isso, a meu ver produz
dissociação completa, física – porque relega o discurso expositivo para
espaços inacessíveis e ou subalternos no contexto do museu. Um exemplo
preciso é o do Museu das Bandeiras relacionado ao Instituto Brasileiro de
Museus (MuBAN-IBRAM). Lá, as referências que ilustram a presença desse
recorte, figurava sob uma escada, espremidas – lugar de passagem (A
ressignificação proposta por uma museóloga negra e diretora da instituição há
alguns anos para trabalhar a questão, lhe custou o cargo). Outras exposições
colocam os negros e negras ainda como escravos em deslocamento temporal
– um tempo que nunca passa, sendo que os instrumentos de tortura (do
período colonial) são elevados a marcadores definitivos nesse lugares da
modernidade para os descendentes dos escravizados. Todos os museus
nacionalistas trazem essa narrativa única e “estereotipante”. Junta-se a isso o
agravamento da ausência total da especificidade do corporeidade negra
feminina.
Por leitura concedida de “O Espetáculo do „Outro‟” (HALL, 2016),
entendemos o funcionamento da narrativa representada pela folclorização
compulsória à identidade, ou “identidades” como quer alguns, no discurso
expositivo. Na investigação que Stuart Hall faz para entender tal
espetacularização do outro acabando por mostrar o funcionamento da narrativa
enquanto “estereotipagem”, processo pelo qual a cultura visual popular e de
massa se utiliza de estereótipos datados do período da escravidão ou do
imperialismo (HALL, 2016, pp. 139-140). Para efeito dessa pesquisa, a
17

folclorização é a “figura” ou rótulos indenitários empregados no discurso


expositivo para a representação compulsória da identidade (ou no máximo
“identidades” no plural como querem alguns na museologia).
As mulheres nessa hierarquia estão em estado de coadjuvantes. São
mostradas como suporte ao discurso heteronormativo e de classe.
Sexualidades, gênero e seus testemunhos desviantes estão vedados à
manifestação, como pretende demostrar essa dissertação.
Pelo dito, questões de gênero, sexualidade, raça ou etnia serão
abordadas nesse estudo sob a perspectiva da interseccionalidade. Os conflitos
decorrentes da dificuldade de representação de grupos desviantes (como, por
exemplo, o caso LGBTTQ+) empenhados na reivindicação representacional em
museus apresentam, por ora, como problema pouco enfrentado pelo campo da
Museologia a partir da perspectiva interseccional ou da consubstancialidade.
Porém, cada vez mais, é recorrente nos museus movimentações no sentido de
legitimar determinadas identidades e patrimônios de grupos que,
historicamente, estiveram excluídos do fazer museológico. Contraditoriamente,
tal movimento data de algumas décadas, porém, o campo museal ainda é
rarefeito no que diz respeito ao interesse por dialogar com tais grupos. Assim,
boa parte das unidades museais continuam a reproduzir um fazer que não é
sensível a questões inclusivas, realizando ações meramente compensatórias
em decorrência da perda de direitos.
Perpassam o trabalho reflexões de autoras e autores tais como: Gayatri
Spivak, Judith Butler e Stuart Hall, para pensar o lugar do discurso,
acompanhar os meandros das expressões e refletir sobre a formação das
identidades por meio das coisas que lhe dão sentido.
Diante da violência epistêmica decorrente da força colonial que nos
tenciona, preferi a companhia dos negros, mulheres e desviados que pensam
os comportamentos divergentes, as identidades e os discursos. O Novo, o
Velho e os Mundos apartados contribuem com pensadores que, na
intersecção, geram reflexões produtivas para o entendimento de como são
construídas as identidades, a partir daqueles que das identidades se servem.
Dessa forma, a pesquisa busca contribuir com as reflexões sobre a captura de
grupos desviantes por museus.
18

Começo apresentando a crítica e teórica, Gayatri Chakravorty Spivak,


indiana nascida em 24 de fevereiro de 1942 em Calcutá, atuante como
professora na Universidade de Columbia. Como palestrante e escritora pelo
mundo, seu livro “Pode o subalterno falar” é seminal para o pensamento pós-
colonial analisar a posição que o sujeito subalterno ocupa nos discursos.
Spivak inseminou meu pensamento com as primeiras ferramentas teóricas que
pude manejar em um campo marcado pela colonialidade como a Museologia, e
dele extrair percepções organizadas. Até então, o que era suspeita tomou
corpo. O conceito que traz de representação tem sido essencial para o
entendimento, posterior, de representação como colocado por Hall, e
estranhado por Butler.
A par das contradições de um sujeito outro essencializado, Spivak
(2015), distingue “falar por” (vertretung) de “re-presentação” (darstellung), um é
a outorga do direto de fala em favor do representante ou instituição política e o
segundo diz respeito à dimensão estética e de encenação. Para o momento, as
questões dessa outorga em forma de discurso autorizado é o que será
analisado de maneira caracterizada como discurso expositivo. Quem são esses
sujeitos que são representados, sub-representados, ou “capturados” pelo
espectro político do discurso autorizado? Existe alguma possibilidade real de
auto representação, já que o subalterno está condicionado ao silêncio? Suas
colocações são pertinentes como pano de fundo às complexidades, inversões
de posições e estranhamentos que os estudos Queer provocam.
Stuart Hall foi um dos fundadores do Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos da Universidade de Birmingham em 1964, que dirigiu de 1968
a 1979, se aposentando na Open University em 1997. Veio a falecer no dia 10
de fevereiro de 2014, aos 82 anos. Hall é exemplo de que representação
importa. Para responder sobre como a representação é construída, Hall parte
da noção de que cultura é um sistema de “significados compartilhados” entre
pessoas. E a linguagem, um “repositório-chave” de valores com significados
culturais. Como ato criativo, por meio da linguagem, damos sentido as coisas,
nisso a própria cultura é também, modulada, descontruída ou apropriada. A
linguagem exterioriza o pensamento e o sentir, eles mesmos “sistemas de
representação” animando o interior do sujeito ou fora no mundo. Portanto, é o
discurso autorizado – o aspecto político da linguagem, que operando em
19

sucessivos níveis de profundidade nos sistemas de representação – sendo a


exposição, nosso objeto, um deles - estabelecem o modelo de identidade
autorizada.
Produtiva autora, Judith Butler, nascida em 24 de fevereiro de 1956 em
Cleveland, atua na universidade da Califórnia em Berkeley. Butler nos
acompanhará nos meandros da performatividade, colocando as questões de
gênero em dimensões que possamos manejar em campo, onde as
representações e identidades voláteis se sobrepõem, não raro, se contradizem.
Filosofa pós-estruturalista, teoriza sobre o feminismo, teoria queer, filosofia
política e Ética.
Para nosso interesse, a discussão levantada pela autora de que sexo e
gênero são igualmente construções discursivas e culturais coloca-se como
especialmente interessante. A dualidade defendida pelo feminismo até então,
sexo/natural versus gênero/construção, foi vista como mais uma maneira de
atualizar a essencialização de uma categoria. Como crítica dessa dicotomia,
Butler contribui para a desconstrução de um sujeito unitário, sendo gênero um
efeito dentre outros mais. Ou seja, sexo, gênero e sexualidade, em suma, são
expressões de uma identidade performática.
Tanto Butler quanto Hall reconhece o poder da linguagem como
elemento estruturante na enunciação de identidades. Spivak acena com a
impossibilidade de essas identidades protagonizarem a linguagem do poder.
Por serem furtivas, as identidades são borradas, restando performar discursos
incompletos e insatisfatórios. Os estudos queer parecem sugerir inverter as
categorias da linguagem para o sujeito poder exercer a representação
identitária.
***

Nem sempre o campo foi um problema de primeira grandeza na


antropologia. Grosso modo, são identificados três momentos que marcam a
posição antropológica e ajudam a organizar o pensamento acerca do
cruzamento da museologia com a antropologia para a realização desse
deslocamento, há outros e podem ser acessados pela ordem temporal ou
histórica, por exemplo. Para as preliminares ficou assim:
20

a) como curiosidade - a princípio, o „antropólogo‟ interpretava e


comparava a partir dos relatos colhidos por outros. Pelos Impérios e mais tarde
pelos Estados nacionais, quando militares em campanha relatavam as
curiosidades, ou pela Igreja, por meio dos missionários maravilhados com os
inúmeros pecados colecionados em suas missões entre “os selvagens”. O
deslumbramento com o diferente produz consideráveis distorções que sem
demora foram identificadas pelos primeiros antropólogos (RIBEIRO, 2017;
CLIFFORD, 2008; GEERTZ, 2005; VASCONCELLOS, 2011; ABREU, 2005;
LOPES, 1997).
b) observação etnográfica - logo, o campo passou a ser um problema a
ser enfrentado. Ir a campo equivale à presença física in situ, “estar lá” -
relacionada com a ideia de colher em primeira mão, testemunhar os fatos e
com isso inaugurou-se a primazia desse olhar na antropologia. Ver, recolher e
registrar. A classificação ao que parece foi tônica nesses processos,
subsidiando extensas coleções etnográficas e documentais (MALINOWSKY,
1976; GREENWOOD, 2000; STRATHERN, 2006; ORTNER, 2011; GEERTZ,
1998; PEIRANO, 1995; FERREIRA LIMA, 2017; CUNHA, 2012).
c) diluição do campo - o ponto fixo que permitia ao antropólogo transitar
por entre fronteiras, em que atingido o ponto limite é sem retorno (a presença
física no campo) – exceto pela reelaboração textual (o retorno ao campo se
dava no momento da escrita ou redesenho, isso muitas vezes aconteci anos
após os fatos serem examinados in loco), não deixou de existir como na
Antropologia clássica, porém, não se configura mais como fronteira geográfica.
O ponto fixo – se existe, é o olhar estruturado antropologicamente (CALDEIRA,
1988; ALBERT, 2014; OLIVEIRA, 1998; MENDES JÚNIO & DIAS, 2016;
GEERTZ, 1998; CLIFFORD, 2016) em qualquer tempo, ou lugar.
Com a diluição do campo, a possibilidade de “escutar” e “ver” se
expandiram. Com a emergência da ceara virtual, o uso intensivo de arquivos
virtuais e da imagem, são potencialidades a serem exploradas. Agora é o olhar
estruturado do flâner que (des)orienta e desloca espaço e instantes. O olhar é
transposto para novas ambiências. Exercitar a acuidade analítica do “olhar
vago” proposto por José Ribeiro (2017), assim, colecionar diferentes fontes,
materiais e suportes para recolher indícios, intenções dos receptáculos digitais,
21

mnemônicos e, principalmente, mantendo-se disponível aos eventos. A postura


é a mesma, os campos é que se circunvoluncionam.
Uma ampla revisão bibliográfica acerca da temática é necessária,
visando aproximar os estudos de museus e a antropologia para a compreensão
de discursos expográficos cujas bases são elaborações locais da teoria queer.
Autores que trabalham dentro de um dos três eixos propostos serão revisados
durante o percurso, visando articular o entendimento.
As exposições em tela já ocorreram. Então, centraremos nosso estudo
em uma abordagem antropológica dos vestígios documentais existentes acerca
dessas exposições por meio de arquivos digitais. Assim, o foco estará nos
rastros deixados nas mídias impressas e digitais, redes sociais e catálogos
produzidos pelos discursos autorizados das instituições e representantes.
Concomitantemente, foi realizada entrevista com a na época, diretora do
Museu Antropológico – MA/UFG, Nei Clara Lima e no decorrer do ano de 2018,
mantive conversações com o Curador que permitiu ampliar o Fundo da Homo
(queer remixed). Mantive, no mesmo período, conversas informais com
participantes ou visitantes que testemunharam a mostra.
Conversações aconteceram no decurso de quatro meses enquanto
frequentei regularmente o MA/UFG. Organizadores e participantes do Coletivo
Colcha de Retalhos, por exemplo, tiravam momentos para relembrar do 5º
ENUDS. Funcionários da instituição às vezes se posicionaram a respeito do
evento, totalizando cinco pessoas. Esses encontros não formais permitiram
olhar a mostra sob outros aspectos. Tal proximidade, não aconteceu em
relação à QueerMuseu. As seguidas correspondências - via e-mails, para a
instituição Santander ou ao Curador Fidelis, pouco agregou a esse estudo. No
que se refere à abordagem da mostra em Porto Alegre – RS, as informações
que figuram aqui foram todas colhidas em mídias on-line em versões digitais,
salvo o catálogo da versão da mostra (2018) na Escola de Artes Visuais do
Parque Lage – RJ e gentilmente cedido pela orientadora Profa. Camila Moraes
Wichers.
***

A essa altura a receita para o construto da dissertação é assim esquematizada:


no Capítulo 1 - Antropologizando o museu – musealizando o devir, coloco
22

o problema da representação de grupos subalternos em museus que motivou a


investigação sendo desenvolvida em três eixos: 1) Antropologia e Museus:
reviso, dentro das possibilidades, dada a extensão dos campos e
temporalidades elásticas, o posicionamento de alguns antropólogos e
museólogos, ou antropólogos/museólogos, acerca da gênese do museu e da
disciplina Antropologia, assim como seus cruzamentos; 2) Interseccionalidade:
cruzo a teia entre marcadores sociais da diferença e museu. Nesse eixo,
discuto alguns aspectos, categorias e marcadores que tendem a influir no
discurso museológico. O problema central desse painel é a necessidade de
pensar o discurso museológico de maneira interseccional; 3) Representação:
trago a questão de representatividade dos grupos desviantes para o debate,
tendo em vista o horizonte museológico.
No Capítulo 2 - Exposições Queer: ou é patrimônio, ou é
esquecimento, os dois não dá, faço um mapeamento das duas exposições
intituladas como queer (o queer no presente trabalho é sinônimo de categoria
nativa, o termo está embutido nas denominações para cada mostra),
recompondo memórias por meio de "traços", restos e vestígios separados por
um lapso temporal de dez anos entre a primeira e a segunda exposição.
Recupero, em certa medida, coisas que são dotadas de agência para
testemunharem os acontecimentos. Faço uso intensivo dos arquivos pessoais,
memórias, fontes virtuais, internet, arquivos eletrônicos e produções em meio
eletrônico. A colaboração dos envolvidos é importante para nos conduzir nos
meandros de coisas e pessoas.
Divido esse capitulo, por sua vez, em duas partes. A primeira parte, em
Goiânia, com a produção da exposição “Homo (queer remixed)” no Museu
Antropológico da UFG, em 2007. Levanto atores, agências e fluxos e, com isso,
procuro estabelecer uma genealogia expositiva com seus encontros,
dispersões e conflitos. Proponho aos envolvidos uma reflexão sobre esses
conflitos, impactos e a reprodução, dez anos depois, dos mesmos, com outra
magnitude, na exposição analisada na segunda parte. Temo que tais reflexões
não apareçam frisadas nesse capitulo. Curiosamente, o que me foi dado a
perceber é que duas pessoas (um produtor que expos na mostra em 2007 e o
Curador) não relacionam de maneira taxativa os eventos, quer como
antecedente quer como episódio polêmico passível de censura.
23

Depois transponho para Porto Alegre no Centro Cultural Santander em


2017, a exposição “QueerMuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira”,
essa exposição é tema da segunda parte do capítulo. A mostra teve grande
impacto na opinião pública brasileira e com alcance internacional envolvendo o
campo cultural e os diversos meios de comunicação, tanto nas mídias, quanto
dos meios tradicionais. Acesso os discursos presentes em dois dos vídeos
veiculados a época – um dos quais instaura o conflito no ambiente virtual e
experimento fazer uma descrição desses vídeos.
Adianto que, no decorrer do capitulo 2, as obras que são “epicentros”
dos conflitos ou gatilhos mnemônicos são mostradas, descritas e acessadas,
segundo a proposta de redesenhar tecido perpassado por várias narrativas em
que uma das quais, sou mero mediador. Logo o acervo disponível quer seja da
Homo (queer remixed) quer seja da QueerMuseu - Cartografias da diferença na
arte brasileira não são analisados em sua totalidade. Isso se deve a dificuldade
de acessar a tempo catálogos (a Homo não editou catálogo, por exemplo, só
muito depois recebi um formidável arquivo digital com muitos gigabits de
material bruto. O catálogo da QueerMuseu consultado, não é o originalmente
editado em 2017).
Já no Capítulo 3 – Desvios do olhar antropologizado lanço um olhar
reflexivo sobre alguns dos diversos discursos produzidos, tendo em mente os
filtros teóricos selecionados para o presente trabalho, visando, se não desatar,
pelo menos caracterizar os nós e nódulos deixados no tropo do fato expositivo
ensejado pela tentativa de captura do Queer nesses museus.
24

CAPÍTULO I
Antropologizando museus -
Musealizando devir
25

1.1. Museus e Antropologia


1.1.1 Museus

Esse texto explora alguns temas que são indissociáveis para estudar as
questões convergentes abordadas por esse trabalho, tais como: origens da
ideia de museu, as relações entre públicos e museus, assim como a inserção
da antropologia nos museus. Abordo, também, os casos de Sarah "Saartjie"
Baartman, sul-africana, e do grupo familiar Kaliña de Galibi, indígenas sul-
americanos levados à Europa para serem estudados e exibidos nas
"exposições etnográficas" daquele continente. Por fim, proponho uma
separação estratégica e provisória entre o museu antigo - museion, gabinetes
de estudo e o museu moderno, por entender que cada categoria engendra a
outra, mas principalmente, assinalam uma mentalidade específica para
solucionar a relação do público com um patrimônio de conformação do outro
sob uma ótica eurocentrada. Contudo, dada à celeridade dessa reflexão,
muitos aspectos podem quedar pouco iluminados afinal.
Um dos braços pouco explorados que ainda não chegamos a beber da
fonte originaria, é o da origem mesma do Museu. É certo que a iridescência
fugidia de aspectos sagrados do museu ainda hoje nos toca (SCHAER, 2007;
SCHEINER, 1998; CHOAY, 2001). Contudo a delimitação original, em geral
recebe poucas linhas em qualquer estudo sobre os antecedentes do museu
ocidental. Precisaríamos proceder com uma divisão temporal entre museu
antigo, museu de transição ou gabinetes de estudo e museu moderno para
entender como o museu procede hoje em relação a vontade de colecionar
determinadas coisas em detrimento de outras. Concordo com Bruno Brulon
(2012, p. 59) a respeito da necessidade de compreensão do surgimento da
instituição moderna, sem o qual não é possível entender a diversidade
tipológica das instituições e a difícil tarefa de definição do que seja Museu.
O museu antigo – museion, centrado nas sociedades gregas antigas, é
um dos aspectos da história museológica, envolvido nas brumas míticas. Só
aspectos do sagrado do museu, seu fascínio, e a gana em acumular são
cultuados em nossos dias. Outros aspectos como "pesquisa e docência" dos
museus antigos são ligeiramente pontuados pelos autores consultados da área
museológica. Sob esse envolvimento dos museus com pesquisa e docência,
26

dois dos exemplares são reconhecidos: a Academia e o Museion de


Alexandria, estudados, mas pouco caracterizados, à primeira vista, como
museu.
Embora contassem com despojos, a historiadora e cientista política
Letícia Julião conta que esses museus eram locais reservados à contemplação
e aos estudos científicos, literários e artísticos. Não serviam para o
colecionismo e fruição ociosa (JULIÃO, 2006). O que vale dizer que a
"contemplação" aqui, tem outro estatuto.
O gabinete de estudo está na gênese da disciplina antropologia. A
definição que a história da museologia traz para o embrião do museu do
Estado emergente é gabinete de “curiosidade”, nada mais inapropriado. Pois,
os gabinetes organizados com coleções de artefatos colhidos nos séculos XV a
XVI, municiavam estudiosos com relatos e objetos reunidos em expedições e
pilhagens. Esses relatos e objetos foram tomados como documentos
comprobatórios da presença do militar, missionário, explorador ou viajante nos
lugares descritos nesses textos. Esse período é o divisor de uma ideia antiga e
não de todo esclarecida de museu é um dos lugares formadores da disciplina
antropologia com a profissionalização.
Curioso que desponta aqui a agência individual (o amador) para a
formação de um público consumidor da ideia de Outro, do diferente. Pessoas
que tomam a iniciativa em recolher e colecionar, suprindo coleções reais e
particulares europeias, desde a Ásia, Américas e a cornucópia Africana, com
objetos exóticos e singulares. Quem não podia obter um artefato desses, podia
consumir relatos de viagens, gravuras ou fotografias ilustrativas de costumes,
coisas, pessoas e lugares distantes, ou ainda visitar os zoológicos humanos.
Esse período, que vem dos quinhentos ao presente, é na verdade o leito
ao quais diversas tradições ocidentalizadas convergem. Desse grosso caudal,
a ideia de museu moderno com toda a sua diversidade conservadora emerge –
qual ninfa sob o iluminismo crepuscular, distendendo suas longas asas
iridescentes sobre a contemporaneidade. A emergência luminosa das águas
turvas da memória histórica é resultado, penso, das reformas e das convulsões
sociais que movimentavam as sociedades europeias nos séculos XVIII e XIX, a
criação dos estados nacionais, as revoluções industriais e científicas e a
popularização da imprensa.
27

As coleções particulares, eclesiásticas e imperiais – por vezes


transformadas em republicanas, junto com as feiras mundiais, são elementos
propulsores para difundir o maravilhoso e exótico para a recreação do público
europeu, reservados a um seleto grupo de pessoas até o século XVIII. Com a
Revolução Francesa, a ascensão da burguesia e a necessidade de
preservação, os depósitos públicos passam a receber cada vez mais visitantes,
consolidando no século XIX políticas públicas voltadas ao patrimônio nacional.
(CANCLINI, 1994; RANGEL & NASCIMENTO JÚNIOR, 2015).
No Brasil, os mais antigos e principais museus são criados nesse
ambiente. Foi criado o Museu Real em 1818 e atual Museu Nacional. Dois
museus etnográficos de pretensões enciclopédicas são alinhados com outros
de mesmo modelo pelo mundo, o Museu Paraense Emílio Goeldi (1866) e o
Museu Paulista conhecido por sua vez como Museu do Ipiranga (1894). Juntos,
propunham uma análise dos tipos nativos por meio de critérios naturalistas,
contribuindo para a difusão de teorias racistas (JULIÃO, 2006, p. 1).
Na museologia, a discussão visando o alargamento conceitual do museu
vem de diversas fontes, sempre incorporando aspectos internacionalizantes.
Para a América Latina, convergiram diferentes interesses que transbordaram
no encontro da Mesa Redonda de Santiago no Chile 5. O movimento que viria a
ser denominado como Nova Museologia representaria, na verdade,
um projeto que não representa um potencial de transformação da ordem social
em uma perspectiva Libertadora, Emancipatória e Desalienante, mas sim de
manutenção e sofisticação da ordem vigente, a qual se constrói sobre forte
influência Liberal. Mais ainda, que os discursos e estratégias utilizados em
meio ao fazer museológico se fundamentam em uma apropriação de conceitos,
ideias e proposições que possuem sua gênese em projetos progressistas, mas
que, por meio de uma operação de ressignificação, ganharam um sentido
instrumental e despolitizante (LIMA, 2014, p. 88).

A diversificação tipológica, entretanto, não supera a prática museológica


tradicional de classificar hierarquicamente. Daí que não é comum a gestão de
museus por povos nativos ou tradicionais no território nacional brasileiro, bem
como políticas consistentes de reparação ou devolução dos bens materiais
espoliados ou colhidos ao longo dos séculos por museus nacionais ou

5
A Carta é resultado da Conferência de Santiago patrocinada pelo ICOM e realizada no Chile
de maio de 1972. Após algumas dificuldades em reunir os delegados, a mesa propôs
recomendações não atendidas integralmente e ainda atuais.
28

estrangeiros. Como resultado, no discurso museológico 6 ser natural grupos


subalternos aparecerem em representações folclorizadas e estereotipadas,
com os sujeitos deslocados ou representados sob o jugo da escravização,
quando não, completamente ignorados, como os membros das comunidades
LGBTTQ+.
Continuando, isso parece ser em decorrência do que o professor
Alexandro de Jesus, chama de "peculiaridades" do campo museal brasileiro,
que impedem o esclarecimento do termo “museu inclusivo” a partir do
pensamento local A falta de clareza, chamada por Jesus (2013), como
"embaraços quando se trata de pensá-lo" sobre o que seja o museu inclusivo e
mais, o quê e quem deve ser incorporados institucionalmente. Ainda, explicitar
quem e o quê foram incorporados ao longo do passado e que hoje serve de
norma e parâmetros para novas inclusões, suscita afirmações e definições
formais de identidade, ou no máximo identidades, querendo reafirmar no cerne,
o modelo clássico de representação essencializantes.
O museu público – no Brasil trata-se de uma maioria esmagadora. Em si
desde sua invenção moderna, propõe inclusão. Dado que é redundância
querer museu público como museu inclusivo. Continuando a esse propósito,
Jesus anuncia:
Eis aí, nessa produção do senso comum (e da hegemonia), produção que não
pode prescindir de um ato de força e de um mascaramento, a inclusão que hoje
e desde o Setecentos qualifica o museu. Disto, quem diz museu inclusivo
comete sempre redundância (JESUS, 2013, p 145).

Desde 2015, me pergunto onde estou eu nessa vitrine museológica


(NUNES, 2015). Uma vez constatada a qualificação do museu moderno pela
inclusão, quem está sendo incluído nesse processo, me pergunto. Trata-se de
uma questão de qualificação de público, de coleções, desejo comum de
arquivo, ou de uma operação acerca de quais coleções são tidas como
suficientemente dignas de figurar em um discurso museológico e de quais
grupos são elegíveis a públicos de museu.
Na indagação acima, estão prefigurados dois grupos de públicos e duas
percepções de patrimônio que trataremos no decorrer dessa dissertação. Um
6
Exposições de longa ou curta duração, mostras, catálogos, museus virtuais, o emprego das
novas mídias, toda e qualquer publicação, assim como veículos empregados pelo museu para
se expressar junto à comunidade e seus públicos, são entendidos aqui como sendo discurso
museológico.
29

público desejável – razão da sedução da museologia, e um público marginal, o


qual chamarei de desviante. O colecionismo, chave para público desejável,
apresenta o patrimônio oficioso. As coleções reunidas sob esse epíteto,
normalmente são patrimonializadas quase por inércia, decorrendo da coleta, da
documentação e guarda em arquivos (reserva técnica permanente).
Quero acreditar que o museu, em qualquer uma dessas fases propostas
aqui, traz sempre uma motivação social. Entretanto, essas motivações mudam
como mudam o tempo, pessoas e intenções. As relações travadas entre museu
e pessoas são principalmente, de interesse público. O conceito de público
surge na antiguidade grega (ANTUNES, 2008).
São dados dois sentidos para a palavra público, segundo Marco
Antunes7. No primeiro sentido, a noção de público está centrada na ideia de
acessibilidade. No outro sentido, a ideia de bem comum ou interesse comum,
predomina. Interessa essa questão dos públicos em decorrência da polarização
que iremos observar nos conflitos de determinados discursos expositivos em
estudo, como veremos mais adiante, sobretudo quando observamos a
"existência de um fenômeno supra-individual intrinsecamente colectivo, que,
todavia, se realizava através de agentes críticos empenhados na afirmação da
sua racionalidade", como nos conta Antunes (p.2). O "agente crítico" do século
XIX, era o fio condutor. Hoje essa disposição crítica é retomada, porem afetada
pelas alterações tecnológicas, pois os meios estão dados. Já não há “novas”
mídias, ou novas tecnologias, elas já caducaram. Contudo, o agente crítico
ressurge nesse ambiente reelaborando por meio de áudio e vídeo a
racionalidade tal qual seu predecessor.
Para efeito desse estudo, Museu é categoria de pensamento
(GONÇALVES, 2007) que articula complexidades, permeado por relações de
memória, poder e afetos entre sujeitos e sujeitos, sujeitos e lugares, sujeitos e
culturas e entre culturas, sujeitos e poderes estatais econômicos e coercitivos,
tendo como produto, sentidos extraídos, ou silenciados das coisas que orbitam
seu patrimônio e o patrimônio dos outros. Museu pode ser o lugar ou estado
em que as coisas são admitidas no fluxo do modo de apreensão de sentidos do

7
Marco António Antunes, ao fazer comentários e críticas ao texto de Gabriel Tarde: Le public et
la foule in Lópinion et la foule de 1901, conta que nos finais do século XIX e começo do século
XX, foram constatados esse fenômeno (2008).
30

ser ocidental. Essa admissão nunca é pacífica, envolve doses variáveis de


força, sendo sempre violenta. Ainda assim, parcelas de grupos subalternos
aspiram museus, querendo, com isso, obter visibilidade (LIMA, 2014; NUNES,
2015).

1.1.2. Antropologia

A intimidade da disciplina Antropologia com o museu nasce com o


colecionismo e eclosão do positivismo, o alastramento da teoria evolucionista e
com o financiamento firme dos estados colonialistas. O rigor científico em certo
momento exigiu a saída dos estudiosos dos seus gabinetes rumo a expedições
comprobatórias. Embora Marcel Mauss, ressaltasse os registros "admiráveis"
levados a cabo em seu tempo por etnógrafos franceses, observou os "fatos
etnográficos” como cercados de “descrédito".
Aqui, meus senhores, enfrentaremos preconceitos arraigados, invencíveis, não
apenas do público em geral, mas, até mesmo, entre os cientistas mais
experientes. Os fatos etnográficos são cercados de descrédito. Vocês
afirmarão que este fato nunca passou de uma desconfiança infundada.
(MAUSS, 2010, p. 1046).

Penso que esse posicionamento crítico contribuiu impulsionando a ida a


campo do etnógrafo. Cabe aludir que o colecionamento frequente de coisas
nas estadias de campo, com intuito de formar coleções arqueológicas e
etnográficas, parte de um conjunto específico de metas políticas e pedagógicas
sendo aspectos a se considerar na história da antropologia (APPADURAI &
BRECKENRIDGE, 2007; LIMA FILHO, 2018). Essa prática e intuitos
abarrotaram extensas reservas técnicas nos porões de museus pelo mundo,
principalmente europeus e estadunidenses.
O professor e antropólogo Anthony Alan Shelton8 em Museums and
Museum Displays (2006) pretende revisar o percurso das contribuições da
antropologia ao tema museu, incorporando a questão da responsabilidade da
gestão de museus e coleções por grupos de nativos como algo novo.
Já as contribuições de Arjun Appadurai e Carol Breckenridge para o
tema situam o antropólogo em outro cenário museológico pouco familiar a

8
Anthony Shelton é Professor de Antropologia na University of British Columbia Vancouver,
director do Museum of Anthropology (UBC MOA), e director do MOA Centre for Cultural
Research no Canadá.
31

porção ocidental, mas também traduz em linha geral o posicionamento do


campo antropológico frente ao museu. Ressaltando que:
Há na antropologia um interesse renovado em objetos, consumo e coleções de
modo mais geral. O que se evidencia a partir da literatura referente a esse
tema é: que os objetos nas coleções criam um diálogo complexo entre os
interesses classificatórios dos especialistas e as políticas auto-reflexivas das
comunidades (APPADURAI & BRECKENRIDGE, 2007, p.11).

Se antes a prática antropológica nos museus estava centrada em


fornecer e acumular coisas, agora os antropólogos se aplicam a estudar as
relações entre coisas, pessoas e coleções. Porém, não foi sempre assim, e
esse interesse crescente contrasta com o cenário construído no início da
disciplina e sua relação com as coisas, pessoas e coleções no decorrer do
século XX.
Nesse cenário, a articulação entre espaço e coleção foi enfatizada pela
antropologia, por meio do emigrante Franz Boas, europeu e antropólogo
formador que atuou nos Estados Unidos da América do Norte, chamando a
atenção para afinidades entre os campos. Boas, discutiu, ensinando ainda no
século XIX, métodos de representar etnias de modo científico nas exposições9.
Nessa altura, os museus etnográficos, arqueológicos ou antropológicos pelo
mundo exibem as coleções classificando os artefatos no intuito de evidenciar, a
partir da teoria evolucionista, os estágios pelos quais se presumiu terem
passado as sociedades não europeias, classificação crescente da primitiva até
a mais evoluída.
Desses tempos são os casos, dentre outros, da exposição Universal de
Paris em 1889 que comercializavam fotografias com pessoas ou famílias
inteiras expostas nos zoológicos humanos, Thalita Cavalcante mostra alguns
registros fotográficos que perduram em fotografia de Pierre Petit um grupo
familiar de nativos da América do Sul, os Kaliña de Galibi no Oiapoque, são
retratados em 1892 no Jardin Zoologique D’Acclimatation, em Paris antes de
desaparecerem. Um homem, duas mulheres e três crianças. É o caso também,
de Sara "Saartije" Baartman10, conhecida como vênus hotentote. Sua história

9
Escreve “Os princípios da classificação etnológica” (BOAS, 2004), ocasião em que aproveita
para debater com Otis T. Mason discordando da ideia de classificar as invenções e fenômenos
etnológicos como se espécimes biológicos fossem.
10
Sara junto com Strinée, mulheres do povo Khoisa, da porção sul da África foram
comercializadas e exibidas largamente na Europa.
32

foi explorada por Jay Gould (1980). Sara "Saartije" Baartman, da etnia Khoisa,
foi transformada em „espécime‟ por volta de 1810 a 1815, passando por
intensivo processo documental. Medida, fotografada e exibida, mesmo depois
de falecida o escrutínio dos homens brancos continuou. As ditas "exposições
etnológicas"11, com a presença de grupos étnicos, arregimentavam multidões
nessas feiras que cristalizaram em certa medida, os preceitos racializantes que
perduram. Em 2014, o Musée du Quai Branly reuniu, em uma exposição, mais
de 600 itens entre fotografias, filmes e cartazes para mostrar como isso
acontecia (CALVALCANTE, 2013).
Nessas populares "exposições etnográficas", não são somente as
coisas, com o sentido que damos hoje aos objetos, que eram musealizadas,
mas pessoas e famílias inteiras eram processadas, tal como são classificados
hoje os objetos, e postas em exibição em feiras multinacionais, como a
Exposição Universal de Paris de 1889 que marcou a inauguração da Torre
Eiffel. Descrita na reportagem “Exposição relembra shows étnicos com
humanos 'exóticos' na Europa” BBC-Brasil (2011) essas mostras entrou o
século XX e temos uma referencia regional dessas feiras na “encenação” anual
no Memorial do Cerrado da Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC.
As teorias culturais hierarquizantes pautadas na ciência evolucionista,
que perpassavam o mundo ocidental, organizavam da mesma forma as
exposições nos museus. No século XX, o antropólogo Franz Boas polemiza no
texto Raça, Linguagem e Cultura, ao perceber que artefatos diversos eram
exibidos tendo como princípio corroborar que a sociedade ocidental era o ápice
da evolução, mais desenvolvida e civilizada. As outras culturas, por sua vez,
eram demonstradas como primitivas, de tecnologia rudimentar e bárbara. A
proposta de Boas consiste em entender que o conjunto de seres humanos não
é redutível a sua dimensão biológica. As pessoas como as culturas são
moldadas por vários fatores (BOAS, 1940).
De mesmo modo Sally Price, antropóloga estadunidense, faz leituras
refinadas sobre o manejo das coleções em uma instituição museal do porte do
Quai Branly12 (2016), demostrando que o tema é dos mais atuais. Entretanto, o

12
Museu francês que é recorrente como tema de pesquisas para antropólogos que desejam
explorar relações de coisas ou patrimônio.
33

que esses antropólogos estão problematizando são como “invenções


humanas”, os objetos, as coisas podem falar – em um dado espaço, o museu,
desde que contextualizadas, permitindo aos públicos experimentar a
singularidade do diferente e que a classificação em hierarquias não é suficiente
para explicitar positivamente as diferenças entre culturas. O diferente não é
necessariamente o inferior.
Em Goiás, o museu que traz a antropologia em seu nome está vinculado
a Universidade Federal de Goiás: o Museu Antropológico é o epicentro do qual
funda nossa questão central: qual a possibilidade de uma instituição
museológica permitir a representação de grupos desviantes em sua vitrine? O
MA-UFG tem triplo caráter: é antropológico, museológico e universitário.
Parece obviedade assinalar isso, mas nem tanto. Parte considerável dos seus
cinquenta anos de existência, a despeito dos embates que a
multidisciplinaridade marca, o MA-UFG vive mais na tensão de profissionais e
coisas que afluem a suas reservas, do que como museu propriamente.
Compreendo que como desaguadouro e centro promotor de pesquisas e
ensino, outros aspectos como a salvaguarda e, sobretudo, a comunicação,
eixos característicos estruturantes de uma instituição museológica fiquem
relegados a segundo plano, contribuindo para as tensões onipresentes.
As exposições permanentes (em desuso), longa duração e curta
duração são um pequeno espectro das atividades museológicas em qualquer
museu sendo em sua maioria a face de contato com os diversos públicos. A
galeria – local onde são montadas e exibidas exposições e mostras, por si só
não caracterizam uma instituição como museu. O museu transcende a galeria,
entretanto, é aí que a conexão entre os públicos e a instituição é produzida. É
aí que desemboca o discurso autorizado finamente produzido por entre tensões
e conflitos, mediados por questões essencializadas e a resistência produzida
por aqueles que aspiram ocupar esses espaços.
O público é um vasto e matizado contingente continuamente estimulado
pelas instituições a sustentar relações com um patrimônio. Se discute na esfera
pública, o público, desde cerca de 300 anos na Europa segundo Appadurai &
Breckenridge (2007). A museologia, no entanto, carece beber das noções da
especificidade histórica e culturais dos diferentes públicos aos quais os museus
podem vir a servir. Quando emergem conflitos em seu discurso autorizado, o
34

museu rechaça um e elege um novo público preferencial, testando aquele que


lhe responda de maneira mais adequada. Podem ser efetivados sucessivos
recortes de públicos e filtragens dos bens patrimonializados em exibição
visando corresponderem ao modelo canônico.
Ou seja, para cada público histórico, corresponde um museu para sua
satisfação. A propósito disso, qual o público ideal para o museu “moderno”?
Bem a calhar, Paul Preciado circunscreve a pornografia como amplo
“dispositivo biopolítico de controle e privatização da sexualidade” no mundo
moderno (PRECIADO, 2018, p. 1). O teor pornográfico, mais de uma vez no
museu tem papel crucial no estabelecimento dos sentidos contemporâneos do
termo, na construção de subjetividades, bem como na caracterização do perfil
do público ideal. Mesmo dispositivo intervinha para filtrar gênero (mulheres),
idade (crianças) e os desprivilegiados, segundo Walter Kendrick (1995).
Museu, pornografia e vontade pública circunscrevem as diversas interdições e
limites impostos nessa relação. O proibido/interdições, as reservas técnicas, os
distanciamentos, censuras e os limites entre espaço público e espaço privado
já estão equacionados no bojo do Museo Borbónico - o Museu Secreto,
de acuerdo con el cual un caballero de buenas maneras (y dinero en efectivo
para el vigilante) sería admitido en la cámara prohibida en la que yacían
ocultos aquellos objetos tan controvertidos; los demás, las mujeres, los niños y
las personas menos pudientes, fueron excluidos. De manera improvisada en un
comienzo, este sistema de segregación funcionó lo suficientemente bien como
para aplicarse más adelante al lupanaria, esto es, a los burdeles que se iban
descubriendo de vez en cuando y a medida que la excavación progresaba
(KENDRICK, 1995, p. 22).

A relação entre público e museu é uma relação instável, porém. Por ter
aspirações negadas, parte desse público produz resistências elegendo o
museu como uma das últimas fronteiras a serem ocupadas. Vejam, na
progressão público/museu, primeiro a mulher adulta e branca foi incluída e só
depois a criança (não todas as crianças). No momento, penso os
desprivilegiados, os desviantes e subalternos pleiteiam a indulgência. Com
isso, a sacra blindagem de séculos de autoridade inquestionável, atritada,
origina fendas pelas quais, eventualmente, o dissenso, o desviante, o queer, a
mulher, o negro, o sertão, outros patrimônios e outras epistemes, penetram o
museu.
35

1.1.3. Cruzando a teia

Assim, antropólogos se encontram envolvidos em discutir o status das


coisas na esfera museal, optando ora pelo distanciamento aos sujeitos, ora
pela aproximação. Por outro lado a problemática da representação política
desses grupos nos museus ainda é pouco difundida na Museologia. Haja vista
que, a inclusão envolve outros sentidos, que ao serem levantados expõe a
fragilidade e as limitações do que isso representa.
Na museologia, a discussão vem de diversas fontes, sempre
incorporando aspectos internacionalizantes. Torna nítida a instrumentalização
de conceitos que resultam mais precisamente na diversificação tipológica e
instrumental das instituições museais sem a necessária sensibilização dos
públicos sobre os problemas que lhes afetam no fluxo da vida. No Brasil, a não
superação da prática da hierarquia classificatória impede a gestão de museus
por representantes nativos ou tradicionais, além de atrasar Políticas Públicas
de Estado para reparação ou devolução dos bens materiais espoliados ao
longo dos séculos por museus nacionais ou internacionais.
Contudo, esse texto não é uma apologia sobre a dependência da
disciplina museologia de outros campos do conhecimento. Mas, um alerta para
a direção política de hierarquização, que oblitera outras possibilidades de
museus. Em um estudo mais amplo, que esse texto é fração, demonstra que
retirar as bases antropológicas do museu resultou em historicização e
folclorização de seu discurso expositivo - que me deterei nos próximos
capítulos.

1.2. Interseccionalidade e museu


1.2.1. Interseccionalidade

A presente elaboração pressupõe uma rede de sobreposições e


entrelaçamentos deveras complexa, tanto espacialmente, quanto
temporalmente. A adoção do conceito de interseccionalidade vem no sentido
de organizar as várias camadas para o entendimento da complexidade
36

identitária e da desigualdade social, devido à larga adoção no território


acadêmico brasileiro. Porém, cabe colocar o que se segue:
A categoria interseccionalidade foi pensada pela jurista estadunidense
Kimberlé Crenshaw (1989) para planificar as convergências das múltiplas
discriminações que mulheres negras sofrem ao pleitear determinadas posições
no mercado de trabalho estadunidense. Á aquela altura, tal modelo explicitava
a indefinição do corpo negro feminino tanto para o posto de trabalho em uma
multinacional, quanto para a magistratura. Não era questão de marca, tal corpo
é corpo em devir. Contudo, esse modelo planificante é criticado pela socióloga
francesa Danièle Kergoat, pelo lado da sociologia que, ao discutir a articulação
entre sexo, classe social e raça cunha o conceito de consubstancialidade e
coextensividade nas décadas de 1970 e 1980 (KERGOAT, 2010). Kergoat
defende uma aproximação, assim como dinâmicas “orgânicas”, apontando que
as múltiplas discriminações acontecem o tempo todo, de maneiras diferentes e
nem sempre explícitas, mas elípticas.
Nesse meio tempo, entre Kergoat e Crenshaw, temos a brasileira Lélia
Gonzalez, antropóloga e intelectual, analisando nas décadas finais de 1970
para 1980, o “duplo fenômeno do racismo e sexismo“ e que a “articulação”
desse duplo fenômeno violenta a mulher negra em “particular” caracterizando a
“neurose cultural brasileira” (p. 224). Lélia Gonzalez escreve:
Conseqüentemente, o lugar de onde falaremos põe um outro, aquele é que
habitualmente nós vínhamos colocando em textos anteriores. E a mudança foi
se dando a partir de certas noções que, forçando sua emergência em nosso
discurso, nos levaram a retornar a questão da mulher negra numa outra
perspectiva. Trata-se das noções de mulata, doméstica e mãe preta
(GONZALEZ, 1980, p. 224).

Nesse sentido, alinha ao lado do sexo e raça, o componente trabalho em


suas análises. Convergem, assim, nas reflexões de Gonzalez triplos pontos de
fugas caracterizados nas noções de mulata, da doméstica e da mãe preta, de
forma consubstancializada, desafiando a seu turno, as redutivas explicações
socioeconômicas de então (GONZALEZ, 1980, p. 225).
37

Assim, mais do que a disputa por primazia sobre categorias discursivas


oriundas do norte, há uma maneira nativa de entendimento das relações
afetadas por múltiplas violências devido a marcadores das diferenças. Tal
disputa igualmente é observada para o termo “Queer”. Ainda agora, dizem, tal
categoria é imprestável para tradução a termos nativos, embora já se saiba que
o português tem ampla terminologia para rotular, detratar e violentar corpos
não submissos aos códigos sexuais heteronormatizados. Fechando esse
apontamento, nota-se, mesmo entre os corpos subalternizados, a produção de
hierarquias, tangendo epistemias e experiências do sul para as periferias.
Sobre essa problemática e do queer como categoria êmica nesse texto, retomo
no subtítulo 1.3 Teoria Queer (p.42), e mais no Capítulo II (p.46) em diante.
No intuito de superar esse enredamento que a construção do sujeito e
identidade fazem perceber, é que ao lançarmos mão da sugestão da feminista
e professora Ina Kerner ao se perguntar-se: Tudo é interseccional? Na
provocação, a autora desenha categorizações para as relações entre etnia e
sexualidade no cruzamento com gênero. Kerner propõe quatro modos de
relação entre racismo e sexismo que pressupõem diferenciações prévias. A
primeira estabelece formas de racismo e sexismo. A segunda, as diferenças
entre ambos. A terceira, os acoplamentos e a quarta, os cruzamentos,
entrelaçamentos e intersecções (KERNER, 2012, p.48). Para nosso interesse
nos deteremos na quarta categoria, que trata das relações de cruzamento e
entrelaçamentos, produzindo intersecções.
O termo intersecção permite uma gama ampla de combinações e
entrelaçamentos de poderes acionados por categorias de diferença, reunindo
etnia, gênero, sexualidade, classe e eventualmente, religião, idade e
deficiência. O termo foi introduzido por uma jurista estadunidense 13 para
demarcar que no caso de mulheres negras as experiências vividas de
discriminação nem sempre eram visíveis e separáveis, a discriminação sexista
e discriminação racial se interseccionavam (KERNER, p. 55).
A presente pesquisa, ao invés de ser um estudo que trate unicamente da
necessidade de obtenção de visibilidade para determinados grupos, se
interessa, contudo, pelos problemas, contradições e conflitos inerentes aos

13
Kimberlé Crenshaw em Demarginalizing the intersection of race and sex. 1989.
38

projetos de inclusão dos desviantes em conformidade aos marcadores sociais


da diferença em museus, pelo viés da interseccionalidade. Mas,
tradicionalmente, segundo Gilberto Velho, a perspectiva médica está
preocupada em discernir o “são”, do “não são” quando se tratando do desviado.
Pois o desviado é aquele que foge a expectativa da norma e padrões para um
grupo social, já que toda sociedade ofereceria “objetivos e meios” legítimos
para proceder com a integração de seus membros. Contudo o termo traz
problemas, critica, porque pressupõe um “comportamento “médio” ou “ideal””
(p.42) do qual alguns indivíduos desviam. Sem querer explicar a capacidade ou
incapacidade dos indivíduos de adaptarem ao “temperamento” social vigente,
ou temperamentos. Velho então pensa o “inadaptado” ou “desviado” como
aquele que vê significações “diferentes” do captado pelos “ajustados”. Para nos
contempla em certa medida, já que como vemos a teóricos Queer, que por
hora me apoio, rechaça a ideia de individuo, mas incorpora o caráter
multifacetado, o dinâmico e ambiguidade das relações na vida (VELHO, 2013).
Há uma multiplicidade de frentes sendo formadas por grupos e pessoas
na empreitada de obtenção de visibilidade para grupos que elaboram e se
relacionam com o mundo de maneira diferenciada. Isso acontece há algum
tempo, nos meios acadêmicos, entre ativistas, militantes e organismos
internacionais, bem como o Estado, por meio de políticas públicas voltadas
para minorias. A chegada dessas frentes ao baluarte museológico é vista como
problema de investigação aqui. Contudo, as investidas são oleadas de
contradições e conflitos próprios aos projetos de inclusão de marginalizados.
As questões de gênero – tema atualíssimo, etnia e raça – nunca
superadas e sempre atualizadas, bem como sexualidades, transbordam o cubo
branco museológico. E trazer à discussão esses temas de maneira conjunta é
uma tentativa abertamente "ousada, porém, oportuna e necessária", como diz
Sergio Carrara (2006). É igualmente necessário discutir a misoginia, a
homofobia e o racismo institucionalizados quando essas categorias travestidas
reforçam essencialismos e naturalizam hierarquias.
Durante os enfrentamentos por liberdades civis na década de 1960
(GROSSI, 2012; MOUTINHO, 2014; ZAMBONI, 2014), os movimentos sociais
veem demandas feministas, gays e lésbicas tomarem corpo e ousar questionar
os papeis sexuais e afetivos para além do ambiente privado. Essa organização
39

perpassa o movimento negro, por meio das feministas negras, que em


determinado momento abrem uma frente reflexiva no seio do movimento
feminista branco. Essa onda reflexiva lançou luzes sobre diversas
estratificações no seio dos grupos militantes.
Ao que parece, o reflexo é de que mesmo o movimento feminista,
reproduz a aquela altura, determinadas características que são antes de tudo,
reproduções naturalizantes do ser mulher. Fica colocado que análises
homogeneizantes são excludentes, não bastando falar em mulher, mas,
sobretudo, localizar essa mulher. É aqui que os marcadores sociais da
diferença, passam a obter papel moderador para equalizar as relações
intragrupo e extra grupais, posto que, uma feminista latino-americana ocupa
uma posição periférica em relação a uma feminista anglo-saxã.
A mesma feminista anglo-saxã, caso se reconheça lésbica, é sempre
desequilibrada silenciosamente em direção as margens. Porém, caso a mulher
lésbica seja negra e latino-americana, esse desequilíbrio em direção as
margens é sublinhado. Essas assimetrias tornaram-se eloquentes quando dos
contatos entre movimentos, revelando uma das fragilidades da militância
especializada. Em um dado corpo coexistem várias identidades. Em um corpo
militante algumas das várias identidades são postas às margens em favor de
uma identidade específica. Ainda, em determinado corpo militante, a identidade
privilegiada é neutralizada em parte, por um ou vários dos marcadores sociais.
Marcadores sociais da diferença são exógenos. Segundo o antropólogo
Marcio Zamboni14, “sistemas de classificação que organizam a experiência ao
identificar certos indivíduos com determinadas categorias sociais” (ZAMBONI,
2014, p. 1). Esses sistemas imputam a determinadas pessoas categorias
preestabelecidas. Compulsoriamente, independentemente da aceitação ou
auto identificação da pessoa.
Essa forma de análise pode ser aplicada no museu. Contudo,
observamos que no museu é sublinhada uma representação em especial em
detrimento de várias outras representações possíveis. Entretanto, o modelo
representacional privilegiado permite, por sua vez, outras possibilidades de

14
Zamboni é colaborador do NUMAS (Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença
do Departamento de Antropologia da FFLCH/USP).
40

leituras, que não a preconizada o que ocasiona diversas fraturas e brechas


pelas quais possiblidades, afetos, memórias, dejetos, blasfêmias, desejos
dissonantes se infiltram matizando o discurso representacional autorizado.
O corpo enquanto consenso é uma unidade composta de órgãos
internos e externos, dotado de sensibilidade ao meio. Entretanto, essa
definição não leva em consideração a subjetividade que amplia a complexidade
de alcançar a compreensão de algo que está longe de ser uma "unidade"
(COSTA, 1998; GROSSI, 2012). Caso avancemos em direção as discussões
sobre intersubjetividade, a complexidade se desdobra em diferentes níveis e
direções de complexidade. Por isso, no que diz respeito às questões de
gênero, irei me ater basicamente, aos aspectos morfológicos dessa definição
de corpo “normal” acima. Aos órgãos externos que personificam, de maneira
essencial para alguns, o que é Ser mulher e o que é Ser homem para endosso
do senso comum. É sobre e entre esse corpo, que se inscreve a norma e
também o desvio (LIMA, 2014; BUTLER, 2003).
Como ensina Miriam Pillar Grossi, estudiosa que encabeça várias
pesquisas sobre gênero e sexualidade, a anatomia sexual já foi uma categoria
acionada que permitiu fixar a diferenciação entre macho / fêmea (construção
biológica), a "morfologia" confundida com o "papel" homem / mulher
(construção social) (pp. 3-4). Ademais, Grossi explica que,
O conceito de gênero está colado, no Ocidente, ao de sexualidade, o que
promove uma imensa dificuldade no senso comum – que se reflete nas
preocupações da teoria feminista – de separar a problemática da identidade de
gênero e a sexualidade, esta marcada pela escolha do objeto de desejo.
(GROSSI, 2012, p. 4).

Esse binarismo foi acentuado nas incursões feministas sobre o sistema


sexo/gênero, foi uma divisão de certas correntes do feminismo, segundo
Claudia Costa (1998).
Finalmente, em ataque fulminante ao marco binário do gênero (e a qualquer
noção rubiana de sistema de sexo/gênero), há aquelas outras que, seguindo os
passos de Judith Butler através de intrincada – e penosa – topografia filosófica
e lingüística, declaram que a categoria sexo foi gênero (entendido como um
conjunto de práticas discursivas) desde o princípio, com isso demonstrando
que a heterossexualidade é apenas uma “opção” dentre muitas outras
manifestações do desejo. (COSTA, 1998, p. 128).

A visão pautada em um marco binário, contudo, sofre ataque fulminante


ao se constatar que, o órgão sexual externo, como a vagina em um corpo,
41

desencadeia nesse corpo e na reação com os demais corpos uma série de


relações causais, subjetivas e extrasubjetivas, cujos efeitos moldam essa base
biológica mediada discursivamente. A presença aparente de pênis em outro
corpo desencadeia iguais causas e efeitos em decorrência da construção
discursiva que opera nessa base. Esse entendimento é próximo de outras
correntes do feminismo encabeçadas por Judith Butler, segundo Costa (1998).
Por esse entendimento, o órgão sexual biológico é um empreendimento
cultural, porque específico de uma coletividade, dentre várias outras tradições
coletivas possíveis que desenvolveram técnicas corporais funcionais para os
gêneros. Dessa constatação emerge o conceito de gênero como mais uma
possibilidade, dentro dessa tradição na qual me situo, de entender os reflexos
dessas complexidades que matizam os corpos que por ora me sirvo.
A tradição que permite a pessoa desenvolver essa escrita lhe deixa
observar de maneira privilegiada, mas não menos dolorida, que essa descrição
acima, ainda que deseje distender o painel de maneira suficiente para
compreender esse fenômeno, ainda é incompleta. Também, é histórica e
localizada evidenciando uma lógica relativa. A antropologia, parte importante
dessa tradição, tem colecionado relatos consistentes de que essa relação com
o corpo é diversa, como são diversos os grupos humanos ao longo dos
tempos. A especialização dos sexos e suas funções podem ser tomadas como
necessidade local ocasionada por demandas específicas.
Gênero é um conceito que explicita que os papeis sexuais de
masculinidade e feminilidade são construções coletivas. Sexualidade é um
conceito contemporâneo para se referir ao campo das práticas e sentimentos
ligados à atividade sexual dos indivíduos (GROSSI, 2012). Já Butler pensa em
termos de categoria social. A sociedade ocidental deseja uma correspondência
total entre sexo biológico e a identidade sexual, quando isso não acontece há
um "desvio", diz Daniela Rendón (2008).
Vale ressaltar que esses temas: gênero, sexualidade, raça/etnia, por
meio das coisas que lhes dão sentido - nesse deslocamento, estão sempre
presentes desde a gênese dos museus modernos. Entretanto, essas coisas
são vigorosamente esvaziadas dos contextos ou higienizadas para se tornarem
dóceis às diversas interpretações dos curadores submetidos à agência do
estado nação.
42

A essa altura vale apontar que se essas categorias - gênero, raça/ etnia
e classe - estando animando as representações museais desde o princípio é se
entendermos que os museus e seus discursos,
em sua maioria (e desde sua „invenção‟) são espaços de poder a serviço do
patriarcado. Muito já foi dito sobre os museus como locais de celebração da
memória do poder, que representam determinados interesses políticos de
indivíduos e/ou grupos sociais, étnicos, religiosos ou econômicos privilegiados.
(MAUÉS, 2015, p. 1).

As leituras possíveis dessas coisas nas vitrines museológicas podem


estar também, equivocadas.
Sally Price (PRICE, 2012) nos dá uma mostra disso em seu estudo
sobre o Quai Branly, a partir da antropologia. Na arqueologia feminista já se
desconfiam que os artefatos possam não ser androcêntricos, mas pensados
androcentricamente. A professora e arqueóloga Camila Wichers, ao deslocar
do “cidadão pleno” a perspectiva de leitura dos artefatos, coloca essa
suspeição sob "rasura" (WICHERS, 2017).

1.3. Teoria Queer

“Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico,


raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma
pejorativa com que são designados homens e mulheres
homossexuais (...). Esse termo, com toda a sua carga de estranheza
e deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos
homossexuais, precisamente para caracterizar sua perspectiva de
oposição e contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se
contra a normalização – venha ela de onde vier” (LOURO, 2016, p.
39)

O termo queer, insulto aos desviantes foi ressignificado na luta,


tornando-se autodenominação, em um momento de intensa luta pelos direitos
civis dos homossexuais, no início da década de 1980, em decorrência do
avanço da AIDS nos Estados Unidos da América do Norte. Da política o termo
passou a denominar uma teoria, que se expandiu na década de 1990
(MORAES WICHERS, 2019).
A instituição dos cursos de museologia15 no território nacional impulsionará o
acúmulo, em futuro próximo, de reflexões sobre os modos de representação

15
Temos cerca de 14 cursos universitários de museologia criados, Unirio (1932) e
Universidade Federal da Bahia - UFBA (1969) os mais antigos, Centro Universitário Barriga
43

dos diversos sujeitos no discurso expográfico 16, permitindo ampliar a


investigação de como se dá o apagamento simbólico da cor, do gênero e
sexualidades nos museus brasileiros. Tal qual a arqueologia feminista, poderá
surgir uma museologia queer, quiçá, feminista.
O pesquisador Renato Pinto, ao investigar as dificuldades interpostas na
exibição de acervos eróticos ou associados a comunidade LGBTTQ17, constata
que as exposições são valiosas ferramentas de aproximação para com os
públicos. Com isso, Pinto tece relações entre arqueologia, Teoria Queer e
museus, querendo demostrar as potencialidades do museu na inclusão social
de grupos subalternos já que na instituição a materialidade em exibição
legitima identidades (PINTO, 2012).
Corrente pós-estruturalista que derivou a partir dos Estudos Culturais
estadunidenses ganhando o mundo, a Teoria Queer ganhou notoriedade como
contraponto crítico aos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e à política
identitária dos movimentos sociais (MISKOLCI, 2009).
O fortalecimento dos movimentos sociais, no Brasil, ocorrido a partir da
segunda metade do século XX, conta-nos a socióloga Maria da Glória Gohn,
trouxe consigo reflexões a respeito da representação e do agenciamento de
sujeitos que reclamam aceitação e visibilidade (GOHN, 2010). Entretanto, na
Europa, onde as discussões avançam nos mais diferentes campos, as mostras
sobre sexualidade ou sobre grupos divergentes ainda são raras, dificultando o
debate para além dos muros de poucos museus e grupos acadêmicos e
concentrando as discussões em áreas restritas do museu. Com isso, persiste o
estranhamento sobre a diversidade sexual e de gênero interpondo dificuldades
à compreensão sobre as diferenças entre “desejo de ser” e “desejo de ter”
(PINTO, 2012).

Verde - Unibave (2004), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB (2006),


Universidade Federal de Pelotas - UFPEL (2006), Universidade Federal de Sergipe - UFS
(2007), Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP (2007), Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - UFRGS (2008), Universidade Federal do Pará - UFPA (2009), Universidade
Federal de Pernambuco - UFPE (2009), Universidade de Brasília - UNB (2009), Universidade
Federal de Goiás - UFG (2010), Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2010),
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (2010).
16
Diferente do discurso museológico o discurso expográfico limita-se a disposição das coisas,
é a exibição e é o projeto de um discurso museológico que uma vez feito é materializado.
17
O “Q” diz respeito ao queer na sigla.
44

A sexualidade como foco privilegiado de estudo, explica a educadora


Guacira Lopes Louro, desafia muitos tabus. Porém, ao lado dos tradicionais
centros de regulação, educação e normatização dos desvios sexuais (escola,
Estado), podemos acrescentar a instituição museal como mais um interessado
no policiamento do transgressivo. Então, quanto mais visibilidade os grupos
compromissados com as pautas progressistas reivindicam, mais tencionam os
grupos e crenças hegemônicas (LOURO, 2001). Assim, podemos aguardar um
recrudescimento de um posicionamento seletivo com feição conservadora
operando nessas instituições.
Em Louro, percebemos categorias tais como homossexualidade e o
homossexual como invenções do século XIX, a categoria heterossexual
também é uma prescrição médica (AMBROSINO, 2017). A homossexualidade
como desvio/doença, é ancora para a normalidade/saúde caracterizada como
heterossexualidade. Parte da aceitação irrestrita da naturalidade dessas duas
últimas categorias como naturais e atemporais se deve às elaborações no
locus museu.

1.2.3. Museus e Representação

A questão da identidade está sendo discutida extensamente na teoria


social, segundo Stuart Hall. Haja vista que, o sujeito até então visto como
unificado se encontra fragmentado e com isso as referências sociais
tradicionais que lhe dava suporte estão em declínio (HALL, 2006). A
museologia, apostando em uma identidade única pede por uma “mutação do
museu” na América Latina, considerando que a humanidade está em crise,
ainda que persista a ilusão de um sujeito unificado.
Nessa esteira o sociólogo, teólogo e psicólogo Pedrinho Guareschi,
escreve que é na multiplicidade das dimensões simbólicas e sociais que as
representações têm exibição. Sendo que o conceito de representação por um
tempo ficou toldado em decorrência do filtro cartesiano interposto para a leitura
de mundo. Com isso, foi desenvolvida a ideia de separação entre sujeito que
conhece do objeto conhecido (2010, p.79). Essa ilusão de separação, no
museu, ocorre de duas maneiras: uma, dividindo o campo entre
Museologia/Teoria e Museografia/Prática e a outra, é a classificação e
45

isolamento das coisas do seu contexto/fluxo e o empréstimo de novos


significados.
A interpretação de Guareschi acerca da representação como série de
fenômenos interligados e carregados de subjetividades, intersubjetividades e
objetivos, ao mesmo tempo epistêmico, social e pessoal, se aproxima bastante
de uma ideia de museu que se representa não uma cópia do mundo, mas
reconstrói simbolicamente o mundo. Continua o psicólogo, representar é o
mesmo que construir, reconstruir e dar sentidos a realidade material
(GUARESCHI, 2010).
Nesse sentido Hall explica que a linguagem é uma “pratica significante”,
de mesmo modo a coisa fotografada é um “sistema representacional”. De
mesmo modo, exposições quer sejam em museus, quer sejam em galerias, são
tidas como uma “linguagem”. É por meio da cultura e da linguagem que a
elaboração e circulação dos significados se dão (HALL, 2016, pp. 24-25).
Sendo assim, as “formações discursivas” são maneiras de
Se referir a um determinado tópico da prática ou sobre ele construir
conhecimento: um conjunto (ou constituição) de ideias, imagens e práticas que
suscitam variedades no falar, formas de conhecimento e condutas relacionadas
a um tema particular, atividade social ou lugar institucional na sociedade
(HALL, 2016, p. 26).

A representação enquanto prática de produção de significados deixa


entrever “operações” conceituais e condutas estruturantes. Sexualidade, raça,
gênero e cor, como marcadores da diferença, sofrem sobreposições nas
leituras feitas, sendo anulados, ressaltados ou sobrepostos. Para Hall,
representação é uma questão de linguagem. Por esse prisma, ele considera
quatro abordagens teóricas que se debruçam sobre a questão da diferença. A
primeira abordagem é da linguística, a segunda compreensão é encabeçada
por Mikhail Bakhtin, a terceira abordagem é antropológica e o quarto tipo é o
psicanalítico (HALL, 2016).
A abordagem antropológica nos interessa sobremaneira devido as
potencialidades de tricotar teorias e discursos. A classificação tão cara para os
grupos sociais, vertida para o sistema hierarquizante ocidental sofre importante
distorção. Significados são perdidos e agencias são transferidas à medida que
as coisas são incorporadas ao sistema classificatório Ocidental.
46

Desconfio que devido a operação imposta pelo museu, com suas


necessidades particulares e comunicacionais, não possibilita a dimensão
proposta pelo linguista e critico russo Mikhail Bakhtin, citado por Hall (p.155):
para ele o “significado é sustentado no diálogo entre dois ou mais falantes”. As
necessidades prioritárias do museu como emissor autorizado de qualquer
discurso expográfico, nega a dialogia necessária para sustentação de uma
representação adequada dos grupos ou pessoas desviantes.
Então, fui atropelado pela polêmica do Santander Cultural.
47

CAPÍTULO II
Exposições Queer: ou é patrimônio, ou é
esquecimento, os dois não dá
48

Antes de entrar na caracterização do discurso expográfico, personificado


nas exposições “Homo (queer remixed)” – 2007 e “QueerMuseu - Cartografias
da diferença na arte brasileira” – 2017, cumpre esclarecer que, no âmbito da
museologia, quando algo ou coleção atravessa as portas museológicas, tais
como relatos de vidas, coisas, textos e documentos, tornam-se patrimônio, na
maioria das vezes, não consensualmente, mas compulsoriamente. Isso se dá,
quer por força da aura do lugar, quer pelo processo que demanda uma
documentação museológica exaustiva. Nesse sentido, o esquecimento (às
vezes salutar) não se constitui como opção, por isso a razão do título desse
capítulo.
No começo dos anos 2000, na Universidade, eu já não era o primeiro da
família expandida a ser admitido no ensino superior. Mas, a todos que
pretendiam o acesso o deslocamento geográfico era uma imposição da qual
não podíamos fugir. O “Boom” da expansão universitária18 possibilitou um
cenário inconcebível em momentos anteriores.
O período de exceção19 que permitiu alterar o cenário da educação
superior, entre outros movimentos, está, para nosso interesse, delimitado pelos
anos de 2003 a 2016, tendo início com os governos Lula e sendo interrompido
pelo golpe ao governo Dilma. Não só bloqueou uma Era como expôs as
contradições de uma gente, também, as fragilidades e a potência do Programa
de Estado no período. O modelo: período conservador (longa duração) –
período de exceção (curta duração) - período conservador (reiniciado), parece
ser familiar para os propósitos dessa dissertação. Trânsito igual percebemos
nessa pesquisa. Longos períodos de conservadorismos nos museus, um curto
espaço de intervenções propositivas e uma nova interrupção que reconduziu o
campo à apatia e invisibilidade.

18
Resultado do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais Brasileiras (Reuni), do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), do
Programa Universidade para Todos (ProUni) e do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies),
assim como o Ciências sem Fronteiras e as Cotas Sociais.
19
A exceção aludida diz respeito ao avanço democrático que acompanhado de políticas
públicas de redistribuição de renda, conjugadas com demais Políticas de Estado de Inclusão
Social, permitiu ao país experimentar um ciclo de desenvolvimento sem paralelo. A proposta foi
proceder uma inversão simbólica no uso do termo exceção – utilizado correntemente para
períodos não democráticos, para contrastar com demais períodos. No Brasil, a exceção é a
democracia e a igualdade de direitos.
49

Para a Universidade Federal de Goiás (UFG), o período de exceção


estimulou a expansão da Universidade, a criação de novos cursos e o “sair do
armário”. É na UFG que se constituiu o “Grupo Colcha de Retalhos - A UFG
Saindo do Armário”, formado por um coletivo de “meninas e meninos” em
busca de cidadania por meio da militância dentro da instituição. Esse grupo foi
propulsor para a primeira exposição denominada como Queer no Centro-oeste.
Seu histórico de atuação também é um histórico de interrupções. Começa por
volta de 2003, sendo retomado em 2005, com um ciclo rico e atuante. O Colcha
de Retalhos atuou contra a institucionalização do Coletivo e rechaçou as
estruturas hierarquizantes dentro do coletivo. Pretendendo com isso, fomentar
relações de “gênero igualitárias”, enfatizando a autogestão na organização
interna. Essa caracterização do coletivo, feita por Davi dos Santos Nascimento
(2007), traduz, em certa medida, o momento privilegiado que outras formas de
gestão e organização tiveram oportunidade de experimentar naquele momento,
quer seja no âmbito da institucionalidade, quer na relação com outras
organizações congêneres.
Esse modo deslizante de atuar por dentro e por fora das estruturas
concebidas como rígidas é muito próximo das concepções “Queer” de atuação
no mundo, pois, atribuições de gênero e sexualidades, experiências e
identidades são categorias a serem desafiadas.
Entre todas estas pessoas estão gays, lésbicas, bissexuais, heterossexuais,
travestis, transexuais, transgêneros, pessoas que não se identificam com
qualquer rótulo e quem se identifica com mais de uma categoria citada. As
reuniões são abertas, todas e todos podem participar sem qualquer tipo de
diferenciação ou segregação (NASCIMENTO, 2007, p. 30).

Assim, foram constituídas no coletivo, as condições para incorporação


de uma estética orientada por uma Teoria Queer.
Nesse sentido, dentre as várias ações desenvolvidas pelo grupo esteve
a realização do V Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual
(ENUDES), ocorrido em outubro de 2007, em Goiânia. Nascimento coloca que
a realização do ENUDS, o quinto encontro no Brasil, congregou estudantes,
acadêmicos e simpatizantes de todo o país.
de Retalhos e ocorreu de 11 a 14 de outubro de 2007, em Goiânia, nas
Faculdades de Educação e Direito da Universidade Federal de Goiás. Com o
tema “Militância e Academia: ressignificando práticas e conceitos para a
subversão da heteronormatividade”, o encontro manteve três grandes troncos
de discussão: gênero, raça e classe (NASCIMENTO, 2007, p. 41).
50

Como demonstra Nascimento (2007), “ressignificar práticas” e conceitos,


assim como “subverter” a normatização do gênero, são eixos manejados no
léxico de uma teoria que vai ao encontro de uma interseccionalidade de raça,
classe e gênero. Nas Socializations20, PreParadas21, palestras, conferências,
mesas redondas e atos públicos, com espaços abertos para intervenções de
toda sorte, comemorava-se o orgulho do ser gay, lésbica, bissexual,
heterossexual, travesti, transgênero, ou a liberdade de dispor dos rótulos
segundo a vontade.
Entretanto, Nascimento encerra sua abordagem acerca da atuação do
Grupo Colcha de Retalhos, sem mencionar aquela que foi a primeira exposição
com essa envergadura no centro-oeste cuja orientação demarca uma estética
“Queer”, tão cara ao grupo por trazer à materialidade conceitos, desejos e
intensões do coletivo, manifestadas muitas vezes na apropriação da
representação estética contida nos filmes exibidos em encontros, visitas a
exposições, piqueniques e performances encenadas pelos membros e
simpatizantes.
Assinalamos, ainda, que tal como o Passagem do Meio, Desencuca e
outros coletivos goianos, o Colcha de Retalhos encontrou abrigo no Museu
Antropológico para viabilizar atividades cujas memórias merecem recuperação,
tendo em vista a importância e o alcance das ações desenvolvidas por esses
coletivos para alterar a paisagem da Universidade, qualificar o museu como
vivo e demonstrar a profundidade de seu comprometimento com as pautas
inclusivas.

2.1. Homo (queer remixed)

No cenário aqui esboçado, a convergência dos que pretendiam inclusão


e visibilidade encontrou eco no ambiente acadêmico, em uma aparente
tolerância a essa diversidade.

20
Socializations são encontros festivos com teor político e grupo de apoio. Momentos de apoio
mútuo e para reforçar laços. Todavia, se constitui, principalmente, como espaço de intervenção
(NASCIMENTO, 2007).
21
PreParadas são eventos realizados no âmbito da UFG pelo Colcha de Retalhos durante o
período anterior a realização da Parada do Orgulho LGBT em Goiânia juntamente com a
Semana da Diversidade Sexual, visando o debate e discussão dos temas (NASCIMENTO,
2007).
51

O Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás (MA-UFG) se


beneficiou do Reuni e daquele momento de otimismo. A instituição acabava de
realizar uma bem sucedida intervenção discursiva – a exposição de longa-
duração Lavras e Louvores, locus de intensa disputa com a parcela
conservadora da instituição museal. Essa disputa deixou sequelas e fraturas
sentidas ainda hoje.
O discurso de Lavra e Louvores pretende deslocar uma interpretação
unívoca de Sertão. É um experimento de exposição não linear, que produz um
recorte antropológico de um mundo imaginário. Em certo sentido, é um
contraponto para o discurso expográfico do Memorial do Cerrado da Pontifícia
Universidade Católica de Goiás (PUC). Porque as instituições pretendem traçar
painéis do Sertão. Igualmente, desejam traçar uma feição das gentes que
existem nesses territórios. Os dois projetos pretendem um museu vivo e atual.
Contudo, o Memorial tende para os exemplos de zoológicos humanos do
século XIX e XX. O outro propõe uma ideia de sertão que não pode estar em
lugar algum (SENA, 2011). Na metrópole goiana, território sertanejo por
excelência coexiste dois retratos de Sertão em oposição, diversificando o
imaginário sobre centralidade e periferia.
Não obstante, Lavras e Louvores, apesar dos avanços, não fez com que
o Museu Antropológico estivesse pronto para abarcar a diversidade sob o
prisma político que se apresentava em seus espaços. O descompasso se
caracteriza a cada vez que se pretende incluir no museu sujeitos ou
identidades periféricas ou marginais, independentemente de escolhas ou
decisões pessoais. Instituição normatizadora, disciplinadora e comprometida (é
estruturante) com a Ordem e com o Estado (NUNES, 2015, p. 8), a instituição
museal fica, muitas vezes, entre uma atuação conservadora e o ativismo de
grupos aspirantes à institucionalidade, resultando em atritos difíceis de
contornar.
Logo, o discurso expositivo Homo (queer remixed) visibilizou uma
situação a qual ninguém se furta escapar. Enquanto tema de debate em
palestras, seminários e rodas de conversas, gênero, sexualidades, raça e etnia
são curiosidades acadêmicas que mostram aquilo que não queremos ver. Uma
vez traduzidas em experiência estética, tornam-se representação estética.
Contra essa experiência – inversão do lugar de fala, os profissionais de
52

museus não têm defesa. São postos face-a-face com outras possibilidades de
existir.
Pois bem, o referido museu, cenário dessa experiência estética, está
estendido à meia quadra, defronte à Praça universitária (Praça Honestino
Guimarães), palco ela mesma de vivências marcantes para a capital do Estado
de Goiás, ponto de socialização e manifestações sociais em diversas épocas.
Em outro tempo, a sociedade goianiense vinha passear e aproveitar o
belvedere, as fontes, o passeio de final de tarde e a intensa atividade política e
estudantil nos nossos tempos. De desenho invulgar a Praça Universitária
abriga edificação projetada para o primeiro museu de arte do centro oeste (ali
jaz o corpo do prédio que foi construído para abrigar coleções de arte de
Goiânia e Goiás nas décadas de 1970) e é fagocitado pela Biblioteca Pública
Municipal Marieta Telles Machado. De lá, cruzamos os exóticos anéis
dextrogiros em direção ao Sul.
Após cruzarmos os anéis temos acesso aos pavimentos do museu,
depois de atravessar um estacionamento. Há canteiros arborizados. O Museu
Antropológico da Universidade Federal de Goiás (MA-UFG) divide com outros
órgãos da Universidade o prédio e a quadra. Edificação em “T” posicionado
norte-sul, cuja morfologia estreita, coloca dificuldades para as atividades
museais, exigindo adaptações sucessivas e restringindo ambições expositivas
e técnicas. Modificações ao longo dos anos descaracterizaram o perfil quando
particularidades arquitetônicas como janelas, paredes, elevador, rampas
exteriores e colunas foram vedadas, demolidas ou acrescentadas. Outrora
havia, sob o vão, onde é hoje a biblioteca setorial, uma rampa helicoidal em
balanço que dava acesso ao primeiro pavimento.
Com a demolição desse apêndice, pérola da engenharia, parte do vão
foi suprimido, a rampa deslocada para o acesso leste com outra inclinação, a
vista seccionada pela torre de elevador e o vão restante, ocupado por mesas e
bancos de cimento.
O acesso durante algum tempo se deu apenas por uma íngreme
escadaria com dezenove degraus. Está ali irredutível, a lembrar que aquele
lugar não é para todos. Contudo não é prerrogativa desse museu esse
obstáculo inicial. Todos os vetustos museus do mundo possuem escadarias
frontais. Rampas e elevadores são concessões à inclusão física muito recente.
53

Vencidos os degraus, sob uma marquise a mais de três metros de altura, duas
portas de folhas duplas abrem-se de par em par.
Orientado para o sul, no hall, do lado esquerdo, uma porta corta fogo dá
acesso à exposição Lavras e Louvores, no lado direito, uma porta feita por
caixilhos regulares em metal e vidro dá acesso à sala de exposições
temporárias, a seu lado outra porta dá acesso para a área administrativa e
salas de aula do MA-UFG. Completa a disposição, as escadarias que dão
acesso aos pavimentos superiores. Em 2007, a edificação não contava com
elevador, todos que desenvolviam atividades naquele prédio acessavam os
diversos departamentos e atividades distribuídos pelo prédio por meio dessas
escadarias e, então, qualquer que fosse seu envolvimento com o prédio, os
passantes teriam que necessariamente se ater com os discursos expositivos
presentes ali. Qual susto da servidora, terceirizados e visitantes ao chegarem
nesse hall, para acessar por meio das escadas os pisos superiores, quando
dão de cara com uma caixa de luz impressa com nu feminino (fig. 9) nada
convencional.
“- Tira a bunda do caminho!”22
Está estabelecido o conflito.

2.1.1. “Preliminares”: biografia de um discurso expositivo

De maneira afetiva, o curador da exposição Hugo Siqueira no projeto


enviado aos diversos parceiros, entrega o filho parido ao escrutínio diverso e
divergente.
Um projeto é como um filho, às vezes. Dedicamos a ele nossos esforços e o
preparamos para a vida. Colocamos nele o melhor de nós, nosso trabalho e
amor, mas nunca nos parece suficiente. Como um filho, é nosso, mas
também do mundo. Tem vida própria, cresce, cria novos laços. Só nos cabe
torcer para que o trabalho de formação tenha sido bem feito, que os novos
galhos frutifiquem e floresçam (SIQUEIRA, 2007, p.1).

Filho no qual deposita bastante confiança na certeza de ter empregado


as melhores esperanças. Nesse sentido a exposição é projetada para

22
Relato da entrevistada Nei Clara de Lima sobre a censura à obra na exposição Homo (queer
remixed). Essa censura foi ocasionada pelo “susto” de uma servidora ao se deparar com a
obra, por ela considerada inadequada para aquele espaço. Esse ato resultou na retirada da
obra do local. Entrevista realizada em 18/04/2018. Possivelmente é a imagem da fig. 10,
página 70.
54

itinerância e para a internet. Em dois módulos, o primeiro chamado de


“Preliminares” e o segundo de “Atos”, a narrativa expositiva é uma maneira
curiosa e avançada de se pensar uma plataforma não somente vertical, mas
horizontal com vários pontos de acesso, inclusive simultâneos. As
complexidades expostas pela plataforma desafiam o espaço dessa
dissertação.

Por isso, lanço mão de esquemas visuais para esboçar uma


visualização de ações que se interpenetram, deslocam e distendem quer no
espaço físico, quer na virtualidade, na intersecção de mídias, linguagens
estéticas e produções diversas.

Figura 1 - cartografia do movimento dispersivo geográfico e virtual.

Fonte: Samarone Nunes (2019).

A exposição, misto de sonoridade, performance e emprego de novas


mídias, foi formatada para diversas plataformas de maneira simultânea.
Arquitetada em Brasília – DF (Fig. 1), de maneira colaborativa, transbordou
em montagens físicas e virtuais sucessivas. Depois de Brasília - DF, foi
montada em Goiânia – GO por ocasião do 5º ENUDS, disponibilizada na
internet e posteriormente circulou pelo Sudeste: Niterói – RJ, Belo Horizonte –
MG e São Paulo – SP.

O termo “queer” presente no título do discurso expositivo em tela, na sua


língua original tem conotações depreciativas para quem rotula. O precursor
Cristopher Isherwood, citado pelo curador Hugo Siqueira (2007, p.1) para
55

fundamentar o texto do projeto da exposição, chega ao termo “queer” por


eliminação. A palavra homossexual é demasiada “dura”, e “gay”, inapropriada
para um meio caminho entre a sisudez médica e o contra movimento.
Isherwood ao apropriar-se da conotação depreciativa desestabiliza a ofensiva
do esquema heteronormativo. O esquema, confrontado de outro lugar, lugar
esse o qual não está habituado, é esvaziado.
O agente insultador, em seu papel ativo é relocado por meio da “atitude
de ativa contestação” pelo paciente insultado. É realizada uma inversão de
papéis aqui. De ativo, o agente é feito passivo ao ser destituído da posição
privilegiada de determinar rótulo ao Outro, de insultá-lo. Destituído do poder de
fala, o agressor surge tão impotente quanto o vitimado pela reação de que é
objeto.
Cabe um parêntese aqui, antes de continuarmos. Tem-se
convencionado, no Brasil, a ideia de que o termo é intraduzível, assim como
surgem questionamentos quanto ao seu emprego em outros contextos tão
matizados e plenos de marcadores como a América Latina, notadamente o
Brasil. Glauco Ferreira (2016) provoca ao afirmar que ressignificações pontuais
e apressadas carregariam o Queer com novos significados. Como se em
português corrente não houvesse termos com iguais conotações e intensões
ofensivas, dessa forma
toda uma discussão se desenrola a respeito da pertinência de utilizarmos os
estudos queer em contexto sul-americano ou mesmo de utilizarmos um
enquadre teórico e analítico inspirado em teorias e debates queer em qualquer
outro contexto no qual queer não se trate, digamos assim, de uma categoria
„nativa‟, provinda e elaborada a partir de debates a acúmulos políticos e
identitários que partem de movimentos sociais locais. (FERREIRA, 2016, p.
213).

Pode-se mencionar, por exemplo, a atitude de converter um termo


pejorativo como “bicha” em algo especial no trato com os seus. Recorrendo a
Ariel Silva (2016), Ferreira lembra que Silva propõe o termo “bicha” enquanto
“identidade de gênero”. Há pessoas que se tratam por meio de “bicha!” quando
se referem aos pares, o termo “bicha” é quase sinônimo carinhoso para “viado”
e mais comum que gay em rodas daqueles que praticam os afetos que não
ousam dizer o nome, com variadas inflexões, quase interjeição. Continuando...
a novidade do “queer”: para além de definir uma identidade, o termo implica um
questionamento da norma e do normal, uma atitude de ativa contestação. É
impossível traduzir “queer” por equivalentes diretos: é necessária longa
56

paráfrase para contextualizar a carga negativa original e o significado político


de sua recente apropriação (SIQUEIRA, 2007, p.3).

A citação acima traz duas ideias para possíveis entendimentos de


exposições com essa temática. Uma primeira ideia para a compreensão da
representação estética do que seria uma produção com viés “queer” fundando
no questionamento à normalidade. O curador parece ter tido dificuldade em
encontrar no sistema de arte brasileiro artistas com produção
predominantemente queer com tais características ativadas e, por isso,
Siqueira (2007) avisa que optou por produtores contemporâneos que
“transitariam” (na falta de garantias) por esse universo. Todos necessariamente
têm que ser LGBTTQ+? O regime de produção contemporânea, ao que parece,
permite aos sujeitos câmbios entre expressões e áreas. Contudo, é provocativo
para questionamentos mais amplos tais como existência da militância de arte
feminista, arte indígena, por exemplo, enquanto lugar de fala.
A posição política de ativa contestação é uma segunda ideia que
possibilita formarmos um corpo para aplicação em posterior crítica a discursos
expositivos que aleguem originar, transitar ou atuar nesse “universo” queer. Por
outro lado, permite lançar um olhar penetrante sobre a produção mais vasta
oriunda do sistema de arte brasileiro ao denunciar a atitude dos produtores de
arte nacional23.
É sobre esse substrato que tencionamos balizar os discursos
expositivos. Adiante, o curador explica as filiações teóricas do termo situando-
o, de maneira ampla, nos Estudos Culturais.
o termo “queer” é ainda utilizado sobretudo no meio acadêmico, normalmente
associado aos “estudos queer”, que se poderia traduzir de forma imperfeita por
“estudos sobre a homossexualidade”. Como disciplina, os “queer studies” estão
associados ao debate sobre gênero e, de modo mais amplo, aos estudos
culturais. A “teoria queer” surge no ambiente intelectual de língua inglesa,
apoiando-se, porém na teoria pós-estruturalista francesa, em particular no
desconstrutivismo de Jacques Derrida e nas obras sobre sexualidade de Michel
Foucault. Para os teóricos “queer”, interessa questionar e desestabilizar a falsa
dicotomia heterossexualidade/homossexualidade, que define – opondo e
hierarquizando – sujeitos e relações sociais na sociedade contemporânea
(SIQUEIRA, 2007, p.3).

23
Para responder essas indagações, a sexualidade como critério provisório parece ser
assumida pelo curador como baliza na escolha dos produtos expositivos ao mesmo tempo em
que, ao optar por agentes próximos e de longa data, pretende suprimir a falta de
fundamentação da condição crítica e militante de parcela dos produtores de arte no fluxo do
sistema de arte nacional, como veremos a seguir nos registros do curador Siqueira.
57

Do ódio inicial, o “queer” expropriado é manejado no sentido de ativar a


representação política que deu ao movimento performatividade. Mas essa
apropriação pela curadoria informa Siqueira, teve alguns critérios norteadores:
A) não existiam critérios formais. Como curador, procurei elencar alguns
artistas que considerava estar dentro do universo queer que me circulava,
tendo alguns pontos de convergência tanto nas obras como na atitude dos
mesmos:
- caráter contestador e muitas vezes “agressivo” das obras ou
posicionamentos;
- crítica/ desprezo ao status quo vigente, principalmente entidades
conservadoras como Igreja, Estado, família tradicional, heteronormatividade;
- serem iniciantes em sua maioria, estando à margem do mercado de arte
estabelecido;
- facilidade de acesso ao acervo (além de eu possuir trabalhos de diversos
deles, por ter um convívio próximo, era possível o empréstimo/criação de obras
que enriqueceriam a curadoria); (SIQUEIRA, 2018)24.

2.1.2. Leituras possíveis

A Mostra Virtual

A mostra virtual foi composta por vídeos, disponíveis nas redes de


relacionamento, blogs e sites onde produtores e produto são apresentados. O
vídeo “Homo (queer remixed) Módulo II – ato Circular | Arte Hoje”25 (Fig. 2)
trata da apresentação geral da exposição montada na Galeria Circular | Arte
Hoje em Brasília – DF. Nesse vídeo a câmera passeia entre o público,
mostrando a produção e algumas intervenções feitas pelos visitantes. Algumas
obras, ao que parece, convidam à interação. Há obras tridimensionais: figuras
retratando Bondage [Disciplina, Dominação e Submissão, Sadismo e
Masoquismo – BDSM (FACCHINI, 2008)], velas aludindo a ex-votos
falocêntricos. Obras bidimensionais: desenhos, pinturas, fotografias e
intervenções na parede. O vídeo mostra uma performance em que uma mulher

24
Informações prestadas pelo Curador Hugo Siqueira.
25
É posterior a exposição e aparece como desdobramento da “Preliminares” e “Ato”. Mais
vídeos do Coletivo Circular:
58

veste uma saia com tecido colorido na forma de pênis e instalações com
vídeos. A temática geral é homoerótica.

Figura 2 – Frame do vídeo que apresenta performance no espaço Circular.

Fonte: Samarone Nunes (2019).

O corpo aparentemente masculino, as práticas sexuais e sexualidades


oriundas desse corpo, bem como a identidade são objeto de intenso escrutínio.
A palavra cobre parede e corpos, nesse sentido o espaço arquitetônico é tido
como corpo.
A dor, o prazer e a religião parecem como temas transversais.
As velas, que podem ser ex-votos enquanto objetos da crença cristã,
passam a instrumento de tortura ou prazer nas práticas BDSM. O vídeo
instaura o prazer de olhar (voyeurismo), o prazer do flâneur por entre os
presentes, olhando as peças, sem ser notado.
Curiosamente, um dos colaboradores dessa pesquisa 26 contou que ao
se dirigir para ver a exibição no MA-UFG foi constrangido por colaboradoras
terceirizadas se ele ia “mesmo” entrar na exposição, nesses termos. Logo, o
“sem ser notado” empregado no parágrafo anterior é contradito pelo registro da
câmera e pela censura humana. Como já dito, sublinho. Em um museu, tudo é
registrado.
Os Postais
Cerca de cinco postais foram documentados como sendo produzidos
para essa exposição, recebidos no encontro-entrevista de cerca de duas horas

26
O principal colaborador dessa pesquisa é o Curador Hugo Siqueira que por meio de
conversas via Whatsapp possibilitando um canal de diálogo. Tive cerca de três conversas
informais com pessoas que estiveram na exposição no MA-UFG, ou participaram do processo
e com mais dois produtores/expositores via facebook. Dessa forma, no total de seis pessoas
colaboraram com a pesquisa.
59

entre o pesquisador, a orientadora e a diretora do MA-UFG à época da


exposição, Nei Clara Lima. Esse encontro-entrevista27 bastante frutífero deu
margens a se pensar a pesquisa enquanto gatilho para ativar memórias.
Delineou-se ali a possibilidade de se utilizar o recurso como metodologia para
acessar informações que de outra maneira não teríamos. Diante da dificuldade
em se estabelecer canais e retroagir a um momento que já não está mais dado,
foi perguntado “qual a obra mais lhe impactou?”, a resposta dada foi: “Os
terços em formato de pênis nos vidros da porta da exposição”. Recorri a tal
gatilho para ajustar a temporalidades, o presente ao passado das pessoas com
quem tive interlocução.
Seguindo, os postais. Na verdade, a “arte” já que não são as contra
partes físicas. No geral, composições soltas, a nanquim, ou aguada de
nanquim em preto e branco resultado e intervenções digitais. Uma única
imagem é colorida (Fig. 7). As cinco imagens são figurativas e uma das
imagens incorpora texto (Fig. 3). A tensão (Fig. 3), a narrativa do sexo explícito
(Fig. 4 e 5) e a religiosidade (São Jorge - fig. 7), são elementos recorrentes,
quer nas imagens de divulgação, quer nas exposições virtuais ou físicas.

Figura 3 – Desenho (imagem com texto - Carrossel) Fernando Cardoso - Postais.

Fonte: Hugo Siqueira (2007).

O conteúdo simbólico atravessa essas imagens. Se a princípio parecem


cruas, logo são desfocadas do realismo por uma composição interrompida. A
narrativa é a narrativa do deslocamento e da fragmentação. O espaço infantil
do carrossel (Fig. 3) é reconfigurado para opor a identidade, estabelecendo

27
Estavam presentes além da Nei Clara, o entrevistador e mais três pessoas.
60

uma tensão entre as figuras. Podemos especular que o produtor esteja se


referindo a uma pulsão sexual infantil.
Na imagem (Fig. 4), os desenhos vão da direita para a esquerda, o nu
da figura feminina é despersonalizado pelo corte que extrai a cabeça, como
consequência perde a particularidade da identificação (a associação com o
óleo sobre tela, hoje clássico, L’Origine du monde, de Gustav Coubert – 1866,
é imediata). Elementos infantis, “bonecos”, “reis”, situam o conjunto, como na
Figura 3, em um tempo infantil. Contudo não é uma situação idílica. A
onipresente Górgona Medusa – figura mitológica que traz serpentes na cabeça
em lugar de cabelos adiciona perversão ao conjunto. É da cabeça do adulto
que as coisas saem.

Figura 4 – Sem título 1, 2, 3, 4 e Passatempo 1, 2, 3, 4, Leopoldo Wolf 2003/2004. Desenho


em papel (Acervo Bangalo) - Postal.

Fonte: Hugo Siqueira (2007).

Produtores diferentes, produtos similares. A imagem (Fig. 5) tem uma


construção similar à imagem examinada anteriormente, cenas de sexo – homo
e hétero, e elemento antropozoomórfico que parece cumprir o papel que a
rpresentação de umas das Górgonas desempenha na prancha anterior – a
figura masculina porta uma cabeça de cervídeo. Possivelmente uma chave de
tradução para o termo em português (aludindo ao queer-viado). A referência é
reforçada devido à distribuição das figuras no plano, a figura mitológica da
Fig.4 e o antropozoomorfo na Fig.5, estando dispostos no terceiro terço dos
quadros, olham diretamente para o observador. Isso inverte a posição de
quem, afinal, é observado.
61

Figura 5 – O pornógrafo – Eu comigo I (nanio) e O pornógrafo – Eu comigo II (veado) , Lincoln


2004. Desenho nanquim sobre papel - Postal.

Fonte: Hugo Siqueira (2007).

As marcações que as figuras trazem nas costas e ombros, aludindo a


prática de modificação corporal (tatuagem) aparecem também indicadas na
Fig.4, onde vemos um diamante em uma testa. É indicio de uma marcação
social do qual a persona não pode esconder (“está muito na cara”, como se
diz). Também, ao comparar com outros registros – inclusive fotográficos, do
arquivo pessoal do curador, deu para associar que esse postal em especial,
retrata um evento real, ou pelo menos reelaboração de um evento com
pessoas reais (as tatuagens realmente existem fora do contexto estético).
Nesse sentido, o valor de documento da produção em seu âmbito, reafirma a
presença do sujeito queer em processos.
Com isso, abre-se um leque para pensar os conjuntos “postais” em
associação com o conceito de postal fotográfico, em voga em outros tempos,
como relato e “documento”.
62

Figura 6 – Série: Marcelo 2007 – Marcelo Henrique 2007. Desenho/pintura em papel - Postais.

Fonte: Hugo Siqueira (2007).

A imagem acima (Fig. 6) e a seguinte (Fig.7) introduz outra categoria


cara para o movimento: o sagrado. A composição em três níveis elaborada por
Marcelo Henrique (2007) denota a ordem simbólica manejada por Gonçalves,
se referindo aos três mundos, o inferior, a terra e o supra (para a teoria
aristotélica, sublunar, Terra e supralunar). Podemos pensar também, em
termos de Terra, inferno e Paraiso caso escolha a chave cristã. São Jorge
(Fig.7) é pintado segundo o que a iconografia preconiza, no momento de
subjugar o “inimigo” que jaz prostrado e inferiorizado. A campanha do santo
guerreiro, solitariamente dia-após-dia, vence um dragão (remissão à missão
impossível do demiurgo Prometeu impulsionador da vontade, figura do
otimismo trágico), do alto de sua situação vencedora e impassível.
O produtor Marcelo foi contatado na esperança que pudesse ajudar a
entender se sua produção (Fig. 6) teria a característica de registro documental
como posto na análise anterior, mesmo que não de fatos, mas de registros
subjetivos e no que se ancoram, contudo até o fechamento desse texto esses
outros aspectos permanecem em aberto.
63

Figura 7 – São Jorge I (Série Santo Luxo), Ronan Gonçalves 2007. Desenho - Postais.

Fonte: Hugo Siqueira (2007).

É recorrente nessas imagens, portanto, o hibridismo (compósito homem-


animal, homem-ser mitológico, corpo-texto), o imaginário infantil, o imaginário
sacro-cristão e a sexualidade inscrita nas práticas dissidentes.

2.1.3. Produtos e produtores

Nem todos os produtores relacionados aqui estiveram com obras na


exposição do MA-UFG, durante o período de 10 a 31 de outubro de 2007, uma
vez que o discurso expositivo teve diversos níveis de desdobramento e
deslocamento, a Homo (queer remixed) foi um movimento aberto,
caracterizado pela formação do coletivo Circular Hoje, que teve por objetivo
ser,
um grupo de artistas e conhecidos para viabilizar tanto a exposição quanto a
experiência de criá-la a partir dessas novas perspectivas: não há
classificações, não há regras, nos sentimos “na borda”, mas esse é o lugar que
nos colocaram, onde estamos e que agora ressignificamos (SIQUEIRA, 2018,
p.3).
64

A composição do Coletivo Circular Hoje é flutuante. Levantei cerca de


setenta integrantes reunidos para compor as exposições físicas e virtuais. Na
tabela abaixo consta lista com alguns dos produtores que participaram do
Coletivo. Em verde estão realçados alguns dos participantes que foram
identificados e relacionados à mostra no MA-UFG Essa identificação foi feita
por meio de verificação de imagens produzidas na ocasião da abertura da
exposição em 2007, daí resultando um mapa (p.68). A seguir, demonstro
graficamente a distribuição por região geográfica (Gráfico 1) e perscruto a
representação por “gênero”, utilizando, para isso, o nome artístico – social
apenas como indício (Gráfico 2), sendo que alguns artistas adotam nomes
gerais que tornam essa suposição mais como alegórica que declaração
explícita. Um exemplo é Gazzeli, qual gênero esse performer se identificaria?,
Outro exemplo é do produtor Hugo Siqueira. Dependendo do “gênero artístico”
esteja performando, encontramos assinalado na produção como Tsi Frombrasil
ou Hugo Siqueira.
A região Centro Oeste com trinta produtores lidera em quantidade de
representantes. A região sudeste com quinze e a região norte tem um
representante. Nas listas que tive acesso havia lacunas sobre a origem e uma
parcela (duas pessoas), tinha um acréscimo assinalando trânsito internacional.
Esse quantitativo importa no sentido de caracterizar deslocamentos dos eixos
Centro/periferia. Contudo é notável a ausência do Nordeste.

Tabela 1 - Coletivo Circular com presença na Homo (queer remixed) MA-UFG e por Estado.

01 Adrian e Fernando Guimarães DF


02 – DF Aoki
Akio SP
03 Alex Cerveny SP
04 Alisson Gothz
05 Ana Cândida DF
06 Andréa Faria
07 Antônio DF
08 Antônio Elias DF
09 Astronauta Mecânico MA
10 (Veruscka Girio
Beto Messias - MA) VJ DF
11 Carlos Caser DF
12 Celmir DF
13 Cláudio Holanda DF
14 X Clóvis Masson
15 X Chikim Lopes
65

16 Eris Correia DF
17 X Estevão (Movimento Colcha GO
18 X de Retalhos UFG)
Eskar
19 Ezio Evy – SP DF
20 Fábio Costa DF
21 Felipe Vernon SP
22 X Fernando Cardoso MG
23 X Fernando Carpaneda
24 X Florian Raiss RJ
25 Frederico Barbosa DF
26 X Geraldo - videosNeto – MG
Gazzele Lemos
27 Giovanna Ditscheiner GO
28 X Glenda
29 Guilherme Filho DF
30 Guilherme Machado MG
31 Hélio Veiga GO
32 Hércules Barros DF
33 X Hugo Sirqueira – MG/GO SP
34 Hugo Lima DF
35 Junin DF
36 Kênia Ribeiro DF
37 Layo Barros GO
38 Léo Bahia MG
39 Leonardo Pinto Silva SP
40 X Leopoldo Wolf
41 X Lincoln DF
42 Luiz Morando MG
43 Marcelo Manzan– MG/SP
Marcelo Gabriel DF
44 Márcia Rocha DF
45 Márcio Segundo RJ
46 Marco Antônio Vieira DF
47 X Marcelo Henrique GO
48 X Marcelo Solá GO
49 Marcos Hill MG
50 Marcos Paulo Cipriano DF
51 Siqueira - DF
Marcos Queyroz GO
56 Marilia Panitz DF
57 X Nazareno SP
58 Nivas Gallo DF
59 Pedro Tapajós (The Six) DF
60 Rafael Reche DF
61 Railda DF
62 X Ronan Gonçalves RJ
63 Ricardo Gomes – pinturas
64 (realismo)
Ricardo França DF
65 Ricardo Lucas DF
66 Saulo Ceolin – DF/Itália IT
67 Sérgio Bacelar DF
68 Sílvio Garcia DF
66

69 Thales Sabino
70 Tainá Frota DF
71 Tatiana Ornelas DF
72 X Zello Visconti RJ
Fonte: Samarone Nunes (2019).

Regiões

Centro Oeste
Norte
Sudeste
Outros

Gráfico 1 - Quantitativo por regiões dos produtores.

Fonte: Samarone Nunes (2019).

"Gênero"

Homens
Mulheres
Outros

Gráfico 2 – Amostra por gênero.

Fonte: Samarone Nunes (2019).


67

Nos vídeos abaixo relacionados, podemos assistir apresentações das


obras e artistas do Coletivo Circular em atuação em 2007.

Quadro 1 - Vídeos de apresentação de produtores do Coletivo Circular.

Vídeo https://www.youtube.com/user/hugosiq/videos
Vídeo 1 https://www.youtube.com/watch?v=7G7MCOZxXP4
Vídeo 2 https://www.youtube.com/watch?v=RN2UhhtfG8s&t=77s
Vídeo 3 https://www.youtube.com/watch?v=Y234OXqB1yo
Vídeo 4 https://www.youtube.com/watch?v=-UBZaGUlNOQ
Vídeo 5 https://www.youtube.com/watch?v=N9yUe3HIY44
Fonte: Samarone Nunes – compilação (2019).

2.1.4. Recriação

Esse espaço de recriação pretende recompor memórias sobre a


exposição por meio do afeto, empregando como gatilho mnemônico a pergunta
“Qual obra mais lhe impactou?”. A pergunta serviu como fio condutor para a
recomposição vivida daquele momento. Aplicar a pergunta para o expositor,
para duas das pessoas que fizeram a produção do 5 ENUDS e 2 pessoas do
público visitante em 2007, ajudou no acesso a um cenário não mais presente.
Como base, a planta (fig. 8, p.67) da mostra, executada na sala de exposições
temporárias do MA-UFG, amplia o entendimento e a visualização do discurso.
A arquitetura da exposição permite imaginar o conceito do projeto, as
limitações, soluções e visualidades encontradas para traduzir a concepção no
espaço.
Em 2007, as aberturas dessa sala de exposições temporárias de
formato retangular ainda não haviam sido vedadas e por isso as paredes com
janelas do lado sul não foram ocupadas, também não foram revestidas, ficando
à mostra paredes e janelas. A solução foi criar uma parede suspensa dividindo
a sala. Entre uma e outra, cubos negros suportavam a produção tridimensional
de Chikim Lopes e Fernando Carpaneda. A cobertura da sala tinha outro
desenho do que vemos hoje. Foram eleitas duas cores – ou não cor,
dependendo do filtro empregado, o preto e o branco para revestir o espaço.
68

Cerca de 3/6 do espaço foi “cortado” por uma linha de painéis


suspensos, quatro seções, dupla face, para aproveitar circulação e paredes.
1/6 corresponde ao vão da entrada, outros 2/6 a parede falsa ao fundo
dividindo o retângulo e criando um recuo para receber os vídeos em um
monitor de televisão. O espaço criado pelo recuo e revestido de preto dialoga
diretamente com o espaço de circulação do hall do museu, igualmente
revestido de um tom marrom denso institucional. Por essa via de uma
arquitetura simbólica, podemos pensar da seguinte forma: o sisudo espaço
institucional, a área altamente iluminada da mostra e o espaço recôndito das
projeções. Sombra-luz-sombra. Materialidade e técnicas, Fora-bi/dentro-
tridimensionais-novas mídias, ou ainda como vazamentos ou subversões,
som/imagem-imagem-som/imagens.
Justaponho a esse esquema algumas informações recuperadas e que
enriquecem a visão daquela montagem física. Relaciono o nome e a figura da
produção que estiveram presentes à mostra no MA-UFG. É um embrião de
inventário visual para cartografar produtos e produtores nesse espaço ainda
que virtual. Nesse sentido, ainda está em construção (Fig. 9).
69

Figura 8 – Planta baixa e perspectiva Homo (queer remixed) - Daniel Almeida. Fonte: Hugo Siqueira (2007).
70

Figura 9 – Planta baixa assinalando produtores e obras identificadas em exposição Homo (queer remixed). Fonte: Samarone Nunes (2019).
71

O sentimento de se estar “na borda”, na periferia, não é uma aquisição


auto imposta, “é um lugar que nos colocaram” e para estar desejável,
confortável, é preciso ressignificar (SIQUEIRA, 2007, p.3). O corpo desviante é
um corpo periférico empurrado para lugares sempre as margens impostas por
técnicas corporais nem sempre próprias, tomadas. Mas sempre ressignificadas.
Esse estado provisório e nômade pelas imposições centrais morais,
deslocadas desses tempos e lugares desconfortáveis, aparecem na exposição
na estrutura arquitetônica por meio da ambivalência das cores (ou não cor), e
pelas paredes suspensas. A precariedade da solidez das paredes é vazada,
corta o espaço e corpos, com o sólido na altura do rosto e vazio na altura dos
membros inferiores.
Podemos remeter ainda sobre a parte clara/visível – parte
escura/invisível de muitas condições do ser. Isso porque as paredes e seções
pintadas na frente e verso são também base (esteio) para suportar a produção
queer. Também, como ferramentas de faces contínuas, ditadas pelas
condições ambivalentes em passagens que o projeto impõe aos públicos ao
disciplinar o trajeto e a condução do olhar. Ou seja, foi criada uma arquitetura
simbólica das condições indenitárias em processo. Essa ideia de vazamento,
contudo, lembra-nos que o queer confronta dicotomias e polarizações,
sugerindo passagens e transbordamentos, reforçados pela imagem (fig. 10) e
memórias a ela associadas, tornando-se estopim de um dos conflitos
recuperados por essa pesquisa.
O discurso sólido e fluído vaza ao contêiner reservado para a exposição
no hall. A obra censurada “MANIFESTE-SE” de Glenda, cuja retirada do lugar
privilegiado no hall foi exigida antes da inauguração, retorna ao lugar na
referida inauguração na mostra. Mesmo que timidamente e ao rés do chão
transborda ao ato. Ainda nesse local, o balcão da recepção é revestido com
impressão (fotografia digital manipulada) de Ronan Gonçalves e Clóvis Masson
que ilustra também, a identidade da Homo (queer remixed). Outro elemento
difícil de conter é a música que, presente no espaço de transição, perfura
suscetibilidades.
72

Figura 10 – Produção “MANIFESTE-SE” – Glenda.

Fonte: Hugo Siqueira (2007).

A produção “desagravo a Marcia X” (plotagem em papel adesivo) (Fig.


11) de Tsi frombrasil na porta de entrada revestia os caixilhos. “é de uma
delicadeza, pena, que não fiquei com nada para lembrar” nos conta Nei Clara.
Essa apropriação “desagravo a Marcia X” é a maneira de responder a censura
que a produtora Marcia X (1959 – 2005), foi objeto por problematizar por meio
da produção contemporânea a religião. Nessa produção a luz vaza o desenho
desde o espaço contido até o fora opressivo, a economia do traço é potente o
suficiente para, não obstante o “nada para lembrar”, fazer com que desenho
em especial seja rememorado.

Figura 11 – Produção “desagravo a Marcia X” – Tsi frombrasil.

Fonte: Hugo Siqueira (2007).


73

Para fechar esse momento, a produção que mais dialoga com categorias
tais como “borda” “periferia” e “sertão” e que por isso catalisará as reações
mais incisivas, está montada diretamente para a entrada em um altar sobre um
praticável encimado por uma bandeira votiva estampada com um anjo (Fig. 12).
O conjunto é composto de imagens representando São Sebastião, velas
coloridas em formato de pénis, colares indígenas e terços.

Figura 12 – Montagem do altar – Hugo Siqueira.

Fonte: Hugo Siqueira (2007).

Tal disposição explicita a relação construtiva que iremos reconhecer na


composição em outra sala próxima, na exposição de longa-duração Lavras e
Louvores. No módulo “Louvores”, os elementos populares e sincréticos são
redimensionados para ilustrar uma ideia de apropriação popular das crenças. O
discurso expositivo faz isso com um mix de recortes de materiais, devoções,
construção temática e cromática que se conecta com quem vê, por meio de
elementos afetivos pessoais, assim como territorialidades afetivas. A aguda
relação é mais próxima na instalação “altar” (fig. 13) ao fundo no módulo
“Louvores”.
74

Figura 13 – Módulo “Louvores” (altar) Exposição Lavras e Louvores – MA-UFG.

Fonte: Hugo Siqueira (2007).

Decerto que o museu não abarca a totalidade e por isso vive de


recortes, hierarquias e clichês produtores nos diversos públicos por meio da
recepção mais ou menos legível de uma mensagem. O Queer com seu “caráter
contestador” e “agressivo” dos posicionamentos irá, por sua vez, criticar
entidades conservadoras. Contudo, há um quê de devoção na serialização da
imaginária representando São Sebastião (adotado como padroeiro pelos
LGBTQ+), a associação das velas fálicas e a ressignificação de elementos
exóticos diz muito sobre o tempo e dedicação que só o devoto se dispõe a dar.
Sobretudo, sobre o invisível e a necessidade de materialização.
Os ex-votos, sinal de compromisso, compromete o devoto a dar o
retorno, a pagar a benção adquirida por meio do intercessor São Sebastião.
Nesse sentido, a religiosidade, longe de ser execrada, é reelaborada dentro de
matrizes seculares para dar conta da necessidade paradoxal, mas necessária
para soldar, mesmo que precariamente, crenças sob rasuras.
A relação sexo, gozo e devoção, na religiosidade, assim como na
musealização é tida como êxtase, a melhor materialização dessa categoria
podemos ver no “Êxtase de Santa Thereza” de Bernini, exposta no Vaticano
75

em Roma. A fria pedra exala o gozo do corpo perpassado pelo amor divino,
tanto isso é mais aquecido, quanto mais lemos os poemas dedicados pela
retratada – irmã Thereza, a suas visões do Bem Amado.
O amor torturante também estará mal resolvido (incompreendido,
talvez?) no próximo painel, quando trataremos da leitura da produção
Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, de Fernando Baril (Fig. 22, p.86)
alvo de censura e acionado com interesses nada devocionais na mostra
QueerMuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira.

2.3. QueerMuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira – 2017

Abro esse painel com o posicionamento de primeira hora do programa


educativo publicado pelo Santander Cultural voltado para a exposição
QueerMuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira inaugurada em 2017.
A exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira,
apresentada no Santander Cultural, está ancorada em um conceito no qual
realmente acreditamos: a diversidade observada sob aspectos da variedade,
da pluralidade e da diferença. O que é diverso e tem multiplicidade, seja na
área cultural ou étnica, na crença ou na linguística, ganha cada vez mais
atenção por parte da nossa organização. Diferentes ângulos de visão e
abordagens são fundamentais e extrapolam questões institucionais ou
relacionadas ao politicamente correto. Trata-se de um valor para nossa
empresa, pois acreditamos que a diversidade é a impulsora da criatividade e da
eficiência. Essa mostra inédita é composta por cerca de 270 obras – oriundas
de coleções tanto públicas quanto privadas – que percorrem o período histórico
de meados do século XX até os dias de hoje, promovendo o questionamento
entre a realidade das obras e do mundo atual em questões de gênero e suas
nuances. Com curadoria de Gaudêncio Fidelis, a exposição é um espaço no
qual a inclusão é exercida para além dos parâmetros restritivos, por meio de
um diálogo do histórico com o contemporâneo. Esta é a primeira exposição já
realizada no Brasil com a referida abordagem, além de ser a primeira com tal
envergadura na América Latina, o que insere plenamente o Santander em um
contexto global. Queremos cultivar a diversidade em uma organização
contemporânea, plural, criativa e madura. Aqui você pode ser quem você é!
Desejamos a todos uma ótima visita!
Sérgio Rial Presidente Santander Cultural (SANTANDER, 2017, p.1).

Com duzentas e sessenta e quatro obras expostas (264) perfazendo um


arco temporal elástico, centrada na pintura e escultura, a exposição dialoga
com a sexualidade e o gênero apresentados de maneira “embaraçosa”,
segundo Tiago Sant‟Ana:
Queermuseu traz em seu contexto obras que possuem temáticas
relacionadas ao gênero e à sexualidade, mas a representatividade da
exposição é embaraçosa – já que a maioria das pessoas artistas sequer são
LGBT ou, se são, muitas estão emaranhadas nos próprios sistemas da arte
e do capital. Até mesmo no episódio da censura, o que se anuncia é que
76

obras de Portinari, Volpi, Lygia Clark e Adriana Varejão – nomes


consagrados no cenário artístico e de mercado brasileiro – não foram
permitidas de serem mostradas e não o conteúdo da mostra e o discurso de
ódio anti-LGBT que recai sobre a mostra. Ao ver as entrevistas do curador
da mostra Gaudêncio Fidélis, além de todo material institucional divulgado, a
mostra tinha uma visão muito simplista e integracionista sobre a estranheza
queer, higienizando uma pauta que se insurgiu aos próprios modelos sociais
e também de produção artística. (SANT‟ANA, 2017, p. 1).

A diluição do propósito queer, denunciado por essa matéria Sant‟ana


no veículo Le Monde (2017), é emblemática dos procedimentos para capturar
complexidades que, na arena de embate, os diversos grupos divergentes, na
peleja que lhes caracterizam, pouco acionariam.
Assim, dois mil e dezessete foi o ano que contradisse o entendimento de
que o “museu está em crise” e que essas vetustas instituições estariam em vias
de desaparecer em decorrência da irrelevância. Após dez anos da Homo
(queer remixed) – logo, a exposição censurada do Santander Cultural não foi a
primeira, para o bem ou para o mal - a vitalidade das polarizações sugere que
o museu está tão vivo como sempre esteve. Malgrado os prognósticos, os
debates se multiplicaram, acionando um contingente de público não só de
especialistas, mas de pessoas e clientes da instituição mantenedora, Banco
Santander - Porto Alegre, observadores internacionais e robôs (fig.14). Na
próxima figura, a massa vermelha e azul aglomera intervenções pró e contra a
mostra. Os pontos verdes e rosas indicam origem repetitiva e contas
automatizadas.
77

Figura 14 - Grupos em oposição no debate (Grafo).

Fonte: FGV DAPP.

Em decorrência da guerrilha em que robôs (boots) foram usados,


declinei de analisar os comentários nas postagens. Primeira intenção superada
na pesquisa de cartografar as exposições queer em tela, o emprego da
cibernética pode dificultar a análise dos comentários uma vez que não
dispunha de ferramentas que possibilitassem dissociar manifestação genuína
do público artificial. Isso, contudo não invalida a pesquisa antropológica, mas
acentua a profundidade e diversidades de abordagens que esse estudo aponta.
A exposição aguçou a percepção de que há de fundo, uma operação
que visa capturar o sistema cultural brasileiro, protagonizada por forças
“censuradoras” manifestadas em “azul” no Grafo da FGV DAPP. Assim posso
dizer, essa disputa foi acionada de fora do sistema de arte e se constitui em
apenas um dos aspetos de vários, como o ataque coordenado contra a
educação superior, os movimentos sociais e a ciência.
78

Figura 15 – Fluxo gráfico dos movimentos conservadores, influência da opinião virtual nos
deslocamentos da exposição e MP-RS.

Fonte: Samarone Nunes (2019).

O discurso expositivo no qual nos detemos foi inaugurado em 14 de


agosto de 2017, sendo encerrado prematuramente no dia 9 de setembro do
mesmo ano. Na figura 15, busco demostrar como as reverberações
comprimem o discurso, ao mesmo tempo reações são influem na trajetória da
exposição, culminando na versão exposta na Escola do Parque Lage como
reação a “onda conservadora” que tem início no Centro Cultural Santander.
Ainda que o Ministério Público do Rio Grande do Sul tenha se pronunciado
esclarecendo que as “denúncias” não tinham solidez e atuado no sentido de
obrigar a reabertura da exposição, ela seguiu fechada.

2.3.1. Recriação

Uma instituição financeira transnacional - Banco Santander, cria em


Porto Alegre, Rio Grande do Sul (RS), o Santander Cultural. As instituições
financeiras lograram, durante o Período de Exceção, patrocinar uma série de
espaços voltados à cultura pelo Brasil, beneficiando-se da vitalidade do
momento. Cultura tem sido um bom negócio.
Após o golpe, as instituições financeiras preservadas dos escândalos,
prosseguem patrocinando megaexposições dentro do preceito diversidade,
inclusão e abordagens antropológicas das discussões sobre gênero,
identidades e sexualidades dissidentes.
79

Pelo visto, o tempo mudou e as instituições não perceberam que o


Golpe não era algo localizado, tendo consequências e reverberações
importantes, inclusive no sistema de arte brasileiro que mantem relações
complexas com o sistema financeiro e político local, que as ações de marketing
empresarial não conseguem bloquear.
A exposição em tela levou cerca de dois anos da concepção à abertura
em Porto Alegre, sendo fechada após 26 dias. Em vídeo de cobertura por
jornal28 local percebemos o espaço e disposição das produções. O
comentarista foca em algumas obras contextualiza autores e entrevista o
curador e o editor de cultura do Jornal do Comércio (JC). Antes da
polemização, tal registro do curador Gaudêncio Fidelis traz a preocupação com
o cenário do momento e menciona como o discurso estético exposto poderia
ser afetado.

Figura 16 – Frame do vídeo de divulgação da coluna Olha Só!.

Fonte: Jornal do Comércio (JC).

Esse registro importa, pois, na falta do catálogo institucional 29, podemos


passear pela exposição recuperando a estratégia de montagem, os textos e
fragmentos de falas do curador, bem como comparar com a versão impressa
do catálogo da QueerMuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira,
28
Coluna Olha Só! do Jornal Comércio – versão on-line. Tempo 00.06.08‟. 2017.
29
Durante o tempo dessa pesquisa foram feitos vários contatos por vias institucionais e físicas,
envio de e-mails e telefonemas para o Centro Cultural Santander, contatos em Porto Alegre e
órgãos, mas não logramos obter catálogos da exposição ou outras informações impressas para
documentação dessa plataforma. Contudo, obtivemos o catálogo da versão da Escola Parque
Lage que traz imagens panorâmicas da exposição (figs. 17, 18 e 19).
80

montada no Parque Lage, no Rio de Janeiro, cujo catálogo, editado em 2018,


tivemos acesso.

Figura 17, 18 e 19 - Panorâmicas da QueerMuseu no Santander Cultural Porto Alegre.

Fonte: Samarone Nunes - tratamento gráfico (2019).


81

O colunista Ivan Mattos abre o vídeo apresentando o catálogo da


exposição em close. O título do vídeo é Queermuseu_arte de gays, lésbicas,
bissexuais e transgêneros30. A coluna Olha Só! Informa que a exposição é “a
primeira a retratar o universo da arte de gays, lésbicas, bissexuais e
transgêneros”, para quem gosta de arte e de cultura no “momento certo”. O
Centro Cultural Santander está localizando a Rua Sete de setembro, número
1028 no Centro Histórico de Porto Alegre31. Por falta de planta sigo a descrição
fornecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae-
RS), como uma
...linguagem arquitetônica e eclética, com predominância de
elementos neoclássicos. De planta retangular, possui três pavimentos, com a
parte central iluminada por grandes vitrais no teto, importados da França, bem
como os pisos, vidros, portas e revestimentos. As fachadas imponentes
possuem base de granito e são revestidas por cirex (massa raspada, mica),
apresentando molduras com elementos escultóricos e decorativos, e colunas
lisas em ordem colossal com capitéis coríntios.O acesso ao prédio é feito por
escadas externas nas entradas das ruas Sete de Setembro (hoje incorporada
pela praça da Alfândega) e Siqueira Campos (IPHAE – RS, 2019)32.

A estrutura bancária segue impoluta. Os vãos entre colunas em alguns


momentos foram unidos por paredes acima do guarda corpo. Tais paredes
estão pintadas de branco, bem como os praticáveis que recebem os
tridimensionais. A cor local bege dos mármores e ladrilhos hidráulicos junto a

30
Disponível aqui:

31
Construído a partir de 1927 e concluído em 1931 para sediar a matriz do Banco Meridional,
exemplar de arquitetura eclética foi tombado em 1987 (portaria 07/87 de 10.03.87).
32
Disponível aqui:
82

arquitetura adaptada cria um cenário sem integração entre o vão classicizante


e competitivo do lugar, “não é um museu” diz Mattos (2017).
A enorme abertura do vão do piso em que está a exposição achata a
montagem, sobra espaço acima das paredes móveis. O vazado aéreo mantém
ao rés do chão, mesmo produções de grandes dimensões. Parte do acervo
exposto é sobre papel, há objetos mistos, óleos e acrílicos. A “densidade
artística”, por isso, espalha-se entre os vãos no ambiente.
A arquitetura da exposição está sujeita à simbologia do espaço
arquitetônico local. Enquanto edifício o Centro Cultural Santander está
vinculado intimamente com uma ideia de patrimônio “o padrão de significados e
concepções herdadas, realçando por meio de um processo de metonímia
simbólica um dado aspecto da dimensão cultural” (TAMASO, 2015, p. 158),
integrado ao fazer bancário do século XX, de uma instituição financeira local
atrelada ao sistema financeiro geral em que o “valor primário” do Patrimônio
equivale ao valor “econômico” como entendido por Choay (2001, p. 98).
Na paisagem descortinada por Mattos, o cenário, a despeito das figuras
passeando por entre a mostra, é uma paisagem ainda em construção. Vemos
figuras com escadas verificando os últimos detalhes e fotógrafos ao fundo. Isso
nos coloca na mesma posição dos privilegiados que puderam ter acesso à
mostra em primeira mão. As produções expostas que mais chamam a atenção
nesse vídeo são devido ao destaque dado, ou por serem alvos de comentários
do apresentador, ou ainda pelas reiteradas vezes em que são enfocados na
edição final de Patrícia Comunello.
Um dos trabalhos expostos ao lado de Ilhas de Ianês, ficou por
identificar. Na sequência: Sem Título de Dudi Maia Rosa, Cena de Interior de
Adriana Varejão, Butcher IV e Hércules Possesso 2 da série Mestres
açougueiros e seus aprendizes de Odires Mlászho, “FUCK” de Danillo Villa,
AVAF (ASSUME VIVID ASTRO FOCUS) de Eli Sudbrack, “Sem título” de Mário
Röhnelt, Mulher tomando chimarrão de Guttmann Bicho, Bestiairemagenta de
Rodolpho Parigi, Série Linha d’Água de Gilberto Perin, Boyfriend de Érika
Verzutti, Tirésias Revela a vinda de São Sebastião de Thiago Martins de Melo,
Batman, Madonna e Mulher Maravilha de Romanita Disconzi, Cruzando Jesus
Cristo com Deusa Schiva, de Fernando Baril, Experiência nº 3 - New Look - Traje
do "Noivo Homem dos Trópicos" de Flávio de Carvalho, Ney Matogrosso, séries
83

do Pantanal e da Figueira de Luiz Fernando Borges da Fonseca, Série Corpo


24, 01, 10 e 20 de Ana Norogrando, Queres Ser uma Rainha? Meta a cara e
fotografe de Fernando Baril, Halterofilista de Fernando Baril, Retrato de Rodolfo
Jozetti de Cândido Portinari e Ilhas de Maurício Ianês.

Figura 18 – Frame do vídeo que deu partida no ambiente virtual à denúncia associando o
discurso expositivo de “pedofilia”, zoofilia e desrespeito a símbolos de culto religiosos.

Fonte: Samarone Nunes (2019).

O vídeo em tela foi o gatilho e expressão daquilo que desencadeou a


censura pela Santander Cultural, nódulo de uma situação intensa, profunda e
pouco entendida em seus diversos aspectos do contexto que permeia o atual
cenário brasileiro por envolver boots (robôs), fakenews, manipulação de
imagens e firehosing33.
A acolchoada produção “FUCK” (frame da fig. 18) desfocada e vibrante
nas cores quentes dá passagem para o enquadramento do blogueiro Felipe
Diehl. É o “recado” entregue do Centro Cultural Santander e do curador para o

33
Lei a reportagem aqui:
84

“povo gaúcho”, diz no vídeo Exposição Criminosa no Santander (2017,


06:05”)34. O blogueiro afirma que nos próximos segundos mostrará “só putaria,
só sacanagem” alerta. A imagem desfocada, em tomada de baixo para cima
aponta para Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, de Fernando Baril.
“Presta atenção nas obras”. Continua. Sem Título de Nuno Cais é passada
rapidamente. O Gilberto Perim fim de Jogo (Série camisa brasileira) abaixo das
fotografias de Alair Gomes, From Opus Three e Beach Triptych n°10 e 25,
servem como mote para interagir com a audiência: “Veja só, se isso aqui é
arte?”.
Feito o “pause” defronte de Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva,
passa adiante para a Nelson Boeira Fäedrich, Exu Elegbara do Álbum Deuses
do panteão africano: a representação estética de um Orixá é renomeada como
“satanás”. Travesti da Lambada e Deusa das Águas e Adriano Bafônica da
série Criança Viada de Bia Leite são apresentadas como pedofilia. GAY !
VOTA de Rogério Nazari do Projeto MailArt que sofre intervenções de diversos
artistas tais como: Hudinilson Jr e Milton Kurtz, são alvo. Cena de interior II de
Adriana Varejão é exemplo de zoofilia.
Segue um percurso livre deparando com representação das “hóstias
língua, vulva, cu, vagina” da produção Et Verbum de Fernando Obá, lembrando
que “87% da população brasileira se diz cristã”. Reconduz o expectador às
produções Projeto MailArt, frisando estar “pior que veado, tô mostrando só
pinto”. De Sandro Ka, O peso das coisas e Despertar dimensiona o peso das
palavras. O blogueiro aponta que “pornografia, a ideologia de gênero, putaria,
sacanagem, perversão. Logo, logo, estaremos com zoofilia”.
De João Faria Vianna, fica sob escrutínio. Bestiairemagenta dá lugar ao
Mulher tomando chimarrão que coloca o self gaúcho em cena. Ensaiando
passos nervosos busca o quê mais pode ver. Curiosamente encontra Tirésias
Revela a vinda de São Sebastião, Tirésias foi um profeta cego tebano que a
tudo vê. O riso nervoso do produtor/realizador sela a fatalidade do encontro.

34
Assista ao video aqui:
85

A produção Boyfriend não poderia ser mais clara na analogia do momento


de fechar o vídeo, “engraçado” caso não “fosse trágico”, emudece Diehl.
Dando as costas, a produção chamada Sem Título de Angelina Agostini,
encerrar o vídeo.

2.3.2. Leituras possíveis

Essa sessão permite uma leitura das principais obras que foram
capturadas a serviço da posterior censura. As produções a seguir foram as
mais acionadas nesse sentido. Procurarei digerir os mecanismos de edição
postos em curso para cumprir determinados efeitos que os agentes pretendem
potencializar em cada edição. Cabe lembrar que a edição “seca”
descontextualiza a imagem editada e “abre” mais do que o necessário e
prudente, permitindo o vazamento de significados e significantes. Correndo
risco de esvaziar – por transbordar as intenções primeiras, nas dialogias
descontroladas das interações comunicacionais. Até por que, as imagens na
íntegra foram veiculadas e comentadas por especialistas logo após os
argumentos virem a público, assim evidenciando a seletividade das edições e
cortes.
Assim, a imagem da figura 19 faz parte da série Criança Viada,
composta pelos trabalhos Adriano Bafônica, Luiz França de She-há, Travesti
da Lambada e Deusa das Águas de Bia Leite (2013).

Figura 19 - Travesti da Lambada e Deusa das Águas.


Fonte: Tadeu Vilani/Agência RBS.
86

Outra obra acionada no contexto foi Cena de interior II, de Adriana


Varejão (1994), o trabalho foi truncado (Fig. 20) para divulgação no ambiente
virtual para “provar” que a exposição em tela, tratava-se de apologia à zoofilia.
Por meio desse concatenado plano de ataque, foram escolhidas obras
específicas que, tratadas como puras imagens, foram editadas,
descontextualizadas e disseminadas pelas redes sociais. Essas imagens, já
que não podemos falar em obras nesse caso, mesmo porque muitas delas
foram recortadas em detalhes, tais como as obras de Antônio Obá, Adriana
Varejão e Bia Leite, agora são vistas não só como obras, mas como
dispositivos capazes de praticar pedofilia, incitar vilipêndio ou transformar-se
em outra natureza que não corresponde mais à sua, tais como a pornografia
(FIDELIS, 2018, p. 419).

A cena de sexo entre figuras de homens brancos e um homem negro é


maximizada na evidenciação e corte da imagem, sendo o contexto suprimido
da cena. A obra completa (Fig. 21) traz um conjunto de práticas sexuais. A
cena de lesbianismo – um gênero artístico na cultura japonesa “chungas”. A
cena também foi omitida com o corte, já que ampliava o fundo interpretativo.

Figura 20 - Cena de interior II - recorte.

Fonte: Divulgação/Agência RBS.

Proceder com o isolamento (corte) de “certos” aspectos, que no geral


são laterais na categoria, eleva o recorte e o promove à categoria dominante.
Assim, o peso dado ao recorte propicia a abertura de interpretações dirigidas,
porém limitadas. A cena lésbica, suprimida, no contexto ocidental é fetiche
acalentado pela norma. O potencial ameaçador, no entanto, é reservado às
práticas entre homens, por desestabilizar o papel e hierarquia plenipotenciária
do sujeito heteronormatizado, como marcado no imaginário machista ocidental.
87

Figura 21 - Cena de interior II – obra completa.

Fonte: Tadeu Vilani/Agência RBS.

Por último, o trabalho Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, de


Fernando Bari (1996), representa mescla de elementos “pop” tanto do panteão
religioso cristão/hindu, quanto do imaginário ocidental da história da arte.
88

Figura 22 - Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, de Fernando Baril.

Fonte: Tadeu Vilani/Agência RBS.

A interação do público com o discurso expositivo poderia ser gatilho para


discutir hibridismos, sincretismos religiosos e até a violência que foi
estabelecida contra as crenças de matriz africana, como visto no vídeo de Diehl
onde a obra Exu Elegbara do Álbum Deuses do panteão africano: Orixás é
automaticamente satanizada como entidade judaico-cristã. No Brasil, contudo,
a dialogia é toldada e a força restabelece a matriz ocidental de crenças.
Para o curador Gaudêncio Fidélis, a plataforma QueerMuseu pretende
desafiar também os cânones que em latência espreitam as investidas de um
museu desviante, ainda que como “ficção”.
Ela [A plataforma Queermuseu] se adiantou enormemente a uma mudança que
já vem se configurando como uma necessidade para representar os
pressupostos institucionais de colecionismo, restruturação do cânone da
história da arte e o estabelecimento de uma nova epistemologia (FIDÉLIS,
2018, p. 11).

A multidão queer foi digerida pelo sistema de arte local e econômico, no


caso, a o Centro Cultural do Banco Santander foi infiel ao compromisso queer
de não-normatização, sendo flagrante seu descomprometimento com a
89

diversidade firmada no texto da ação educativa da instituição bancária


(SANTANDER, 2017).
A produção de arte foi “invertida”, tendo seus significados amputados
para aparecer como imagem pornográfica a serviço de ação política de grupos
reacionários. As disputas e discussões sobre representações estéticas são
cirurgicamente afastadas para alimentar o jogo das paixões pré-selecionadas
no público alvo, tendo como objetivo o fechamento da exposição cerceando o
direito ao contraditório e a livre fruição. Pornografia, pedofilia e zoofilia são as
acusações montadas como discurso útil para o alcance da meta.
Tem, nesse universo, importância singular a estética em fase de
consolidação, evidenciada nos cortes, montagem e atmosfera intimista, direta,
que cria uma artificial aproximação como se vê no Vídeo 2 (fig. 18). Há um
precedente na produção cinematográfica com o A Bruxa de Blair35.
Felipe da Silva Polydoro expôs como a busca pela verdade pelo
emprego da historicidade para angaria efeitos de realidade selecionada, é
exemplificada com o caso Zapruder (filmagem do assassinato do presidente
estadunidense Kennedy), para estabelecer marcos no mainstream. Já Ilana
Feldman persegue o “apelo realista” vazado nas produções documentais,
trazendo outros exemplos. Contudo quero enfatizar que os exemplares
estudados pelos dois autores Polydoro e Feldman, ainda estão vinculados a
outro regime (mainstream) de realização e divulgações. Os exemplos que
trago, por sua vez, está articulando processos jamais vistos e como pretendo
mostrar mais adiante no capitulo 3.
A Bruxa de Blair, por sua vez como marco, é produto de baixo
orçamento para os padrões centrais, a pretexto de documentar um evento e
ancorada em um marketing que hoje chamaríamos fake alinhava estratagemas
técnicos para aproximar o público dos “fatos” tidos como reais em 1999. Na
ocasião, a narrativa da “descoberta” de uma câmera com conteúdo (registro
fílmico) “intacto”, permitiu sustentar, sem necessidade de referencias ou
provas, a existência de crime, levando multidões aos cinemas. A produção
bateu recordes de bilheteria. A grande indústria do entretenimento tem
problema de lidar com a produção horizontal de conteúdos por essa ser

35
Direção de Daniel Myrick e Eduardo Sanchez (1999).
90

altamente refratária às técnicas de capturas tradicionais. Qualquer um ou uma


hoje pode ser alçado ao status de superstar sem necessidade de submissão
aos canais tradicionais de produção e promoção. O Brasil tem três modelos em
desenvolvimento testados com a operação da grande indústria no sentido de
capturar essa estética rizomática inclassificável pelos métodos tradicionais: a
Pablo Vittar, MC Fioti e Anitta.
A Pablo Vittar por meio de produção caseira e precária unida a estética
drag amplamente difundida no meio LGBTTQ+ furou a bolha e tomou o mundo
de assalto. Atrás dessa figura ambígua há um batalhão de outras drags, trans,
travestis produzindo e realizando por fora do sistema. Nos país que mais mata
LGBTTs, tais fenômenos só se sustentam na horizontalidade que o sistema
tradicional não comporta e elas/eles “vazam”.
MC Fioti compôs Flauta Envolvente (2017) que explodiu no mundo
inteiro com uma base centrada em uma composição para flauta de Bach
usando um celular e um computador pessoal. O mainstream ao tentar emular
tal performance percebeu que era virtualmente impossível replicar com
sucesso o modo de operação, restituindo a composição á produção local do
MC36.
Anitta por sua vez, é apresentada com um meio termo, é liquida.
Superproduções são realizadas sob uma estética amadora. As “imperfeições”
físicas retocadas em outras condições, nela são superexpostas. Os
marcadores sociais são selecionados e editados para os diversos nichos. Para
cada grupo, uma Anitta customizada. Dos três é a que está mais integrada aos
processos de transição, a versão Beta de uma geração de produtores
refratários, mas capturados.
Tal quais as criteriosas edições nas imagens, a construção cirúrgica
para aproximar intersubjetividades por meio de elementos audiovisuais como
som, luz e enquadramentos têm surtido efeitos inesperados. O mainstream já
percebeu tal filão embora não consiga controlar de tudo os efeitos desejados. A

36
Ler a materia aqui:
91

emergência de uma nova moralidade e apreensão dos significados,


fragmentação da informação diluída e repetitiva da fala por diversos canais
encontrou um solo fértil nas redes sociais com capacidade de conformar
plasticamente o público sensível a seus efeitos. Quando a produção periférica
brasileira não faz conta dos limites centrais é hora do uso da força.
Juntamente com os Boots, as técnicas de captura, edição de vídeos,
imagens e a difusão pelo método FireHoose (firehosing) tornaram perceptíveis
procedimentos dos agentes envolvidos na disseminação das denúncias que
provocaram a censura da QueerMuseu: cartografias da diferença na arte
brasileira.
92

CAPÍTULO III
Desvios do olhar antropologizado
93

3.1. A virtualidade como campo em que se dão as disputas

Chamo a atenção nesse capítulo para o que se segue: os dois discursos


expositivos, Homo (queer remixed) em (2007) e QueerMuseu: cartografias da
diferença na arte brasileira (2017), de maneira e profundidades diferentes,
estiveram articulados com os novos meios e tecnologias. No primeiro caso, de
forma intrínseca – com imagens digitais ou virtuais manipuladas e vídeos arte,
e no segundo caso de maneira extrínseca – produção de vídeos e
manipulação/edição de imagens. Contudo, as disputas nas quais se veem
envolvida não são engendradas dentro do discurso expositivo. Antes, a
QueerMuseu é matéria motivacional para atuação e interface com os públicos e
as várias correntes que se manifestam sobre. O vídeo que catalisa isso não é
uma peça de cinema mainstream produzida para estabelecer o dissenso, mas
são os usos dados ao cinema (ainda podemos chamar assim?) e ao
documentário produzido, juntamente com a inserção inteiramente nova dos
fazedores/realizadores e públicos com a realidade para além do contentor
museu que irá fazer desse discurso, um discurso polêmico.
A matéria artística, as poéticas nas edições “amadoras” nas mãos dos
fazedores/realizadores na produção do audiovisual se realizam como
documentário de uma perspectiva subjetiva, passando ao compartilhamento
direto com os diversos públicos adiante, que por sua vez, têm a possibilidade
de interagir com as novas formas de uma realidade customizada. Felipe
Polydoro (2016) e Ilana Feldeman (2008) perseguem o entendimento de como
o cinema se reinventa na emulação do desejo do real pelas massas. Penso
ligeiramente diferente, as massas já estão de posse dos meios técnicos de
realização e difusão de uma realidade pessoal sem o concurso da indústria
cinematográfica. Polydoro lida com isso na tese de doutoramento para
estabelecer o estatuto dos processos de documentação do vídeo amador.
O instante singular do “flagrante”, o “momento decisivo” importante para
“atestar e documentar”, contudo, não está presente nos meus objetos de
estudo. Vemos as produções e manipulações digitais (Glenda, Siqueira,
Masson e Gonçalves) e nos vídeos arte (Astronauta Mecânico) na Homo
(queer remixed) apontarem para uma tessitura da apropriação. Na
QueerMuseu, embora tenha vídeo arte (Maurício Ianês), não é tônica para
94

desencadear ações ou edições, mas a produção de realizadores/fazedores


(Diehl) externos, como arquitetos de uma “verdade” customizada para a guerra
cultural que desencadeiam e polemiza a exposição. Dessa perspectiva, penso
que os dispositivos são meios pelos quais os agentes determinam certos
efeitos em um público.
A produção audiovisual e o concurso de novos meios e mídias sociais
tem uma importância que não podemos nos furtar a acentuar, mesmo que
ligeiramente na Homo (queer remixed) e na QueerMuseu: cartografia da
diferença na arte brasileira.
Primeiro, se o discurso expositivo elaborado pelo curador da Homo
(queer remixed), em 2007, inaugura a aproximação da plataforma expositiva
dos novos meios, propondo relações intrincadas entre o analógico-físico e o
virtual, torna perceptível que adensa uma percepção inédita de contato entre
museus, públicos e demais segmentos produtores do sistema de arte e a
academia. Por outro lado, os agentes conflitivos, é de se notar, a aquela altura,
ou não manejavam ferramentas (edição), ou não estavam inseridos
completamente no ambiente virtual, a ponto de manejar essas novas
ferramentas em favor da polemização ou debates nos ambientes virtuais. Ou
seja, não havia uma equiparação entre públicos e novas mídias
suficientemente maturada para que irrompesse o cenário vivenciado dez anos
depois.

Figura 23 - Comparativo dos desdobramentos dos discursos expositivos Homo (queer


remixed).

Fonte: Samarone Nunes (2019).


95

Embora a curadoria interaja intensamente com os diversos produtores,


apoiadores e produtos com ferramentas virtuais disponíveis, os desejos e
afetos dos públicos não acompanham essa inserção no caso da Homo (queer
remixed). O exame da figura 10, deflagradora de uma das tensões
evidenciadas, mostra que o conflito se dá principalmente nas relações
imediatas das relações corporificadas. É o colaborador terceirizado que se
recusa a higienizar o espaço expográfico. É a servidora que contesta a
presença da obra no hall (“tira essa bunda daí”). Partilhar mesmo espaço que a
produção material é tabu pela proximidade com a coisa. A profissional do
museu recusa terminantemente, até contra seu estatuto de servidora pública,
ficar sob a influência presentificada das coisas. É a Instituição que usa o poder
para exigir a retirada de um trabalho da exposição, ou não enfatiza a
importância da tolerância em outros momentos. Nesse sentido, fechada a
exposição na data prevista, cessam os conflitos em torno da diferença.
Continuando no empreendimento de 2007, pensando em categorizar o
uso ou inserção dos novos meios na plataforma expositiva, o campo virtual é,
em primeiro momento, meio de divulgação. Funcionando enquanto plataforma
experimental para o discurso expositivo Queer. Em um segundo momento, é de
onde são extraídas e produzidas obras – imagens audiovisuais e áudios
“construídos” por meio de ferramentas virtuais. São produtos digitais. Um
terceiro ponto a ser observado, em razão do momento, ou por incorporar
muitas informações, nessa plataforma, o discurso de intolerância não logrou
espaço. Podemos imaginar que em 2007 a performagem do duplo subjetivados
no ambiente virtual, redes sociais e congêneres não são ainda tão
disseminados para além dos produtos e produtores envolvidos imediatamente
com a exposição.
Por sua vez, o discurso expositivo da QueerMuseu, em 2017, com
horizonte novo, passa necessariamente por essa paisagem diversificada com
inteirações digitais complexificadas. A análise da FGV-DAPP (Fig.14),
demostra que as ferramentas de atuação estão se sofisticando e com uso
massivo, bem como se tornou perceptível o uso consciente e direcionado para
provocar determinados efeitos nos públicos atingidos. A interação em rede das
relações intersubjetivas e a expressão da subjetividade particulares estão
96

matizadas pelo emprego de robôs (boots), as técnicas de captura, edição de


audiovisuais e a difusão pelo método FireHoose (firehosing) nas redes sociais.
Quero crer que a complexificação decorre da configuração como “feixe
de processos sociais/individuais de produção, circulação, consumo e
regulação”, tal como explica Ilana Feldeman, no artigo Apelo Realista (2008).
Se em um momento a conjunção de feixes tornam as coisas propensas a
“indiscernibilidades” (FELDMAN, 2008, p.61), por outro lado, a clivagem é
suficientemente violenta para apontar que algo novo está em operação.
Se em uma, a materialidade é necessária para afetar o público, na outra
nem tanto. A produção pivô do dissenso é tornada imagem, mediada por um
discurso, que nem é um discurso de connosseur, de especialista, mas
apropriação de códigos pré-existentes.
as já naturalizadas convenções realistas do momento, codificadoras de nossa
apreensão do mundo, oferecem-nos, além de um vocabulário estético-narrativo
de reconhecimento e legitimidade consensual, uma organização intensiva da
realidade e da experiência, face ao fluxo naturalmente disperso, fragmentário e
amorfo da vida cotidiana (FELDMAN, 2008, p. 63).

A discussão passa também, pela produção de meias verdades e


informações editadas (compósito de representação estética realista mais leitura
descontextualizada da produção em exposição). A materialidade é ancora para
vincular comprometimentos virtuais. Feldman faz essa discussão tendo em
mente a produção industrial. Eu estou pensando no contingente de produtores
“amadores” operando esses códigos no dia-a-dia e onde o maistream ainda se
testa.
A disputa se dá pelo conteúdo afetivo contido no público situado além
das fronteiras geográficas e temporais do Centro Cultural Santander. Nem
mesmo a instituição financeira habituada com a moeda simbólica foi capaz de
operar, em casa, esse capital. Além dessa operação constitutiva híbrida que
denota passagem do analógico para atuação virtual, esses discursos denotam
um corpo social cada vez mais conectado e descontinuado nas potencialidades
que se descortinam. Sobretudo permite pensar em performances digitais com
coisas analógicas ou, performagens digitais em ambientes com ferramentas
virtuais.
97

A Homo (queer remixed) por outro lado, almeja, produz, relaciona e


transita nesse novo campo (pensando na continuidade das ações no meio
virtual ainda acessível). Quase pretexto que há obras físicas, com presença
massiva de trabalhos em suporte papel. A adesão ao papel subverte em parte
a normalidade e hierarquia de valores no sistema de arte brasileiro para o
bidimensional. Nessa valoração estabelecida desde os quatrocentos, está no
topo produções realizada sobre tela e executadas a tinta óleo e na base
desenhos sobre papel. Um discurso que minimiza essa hierarquização e elege
novos suportes – imagens digitais manipuladas, vídeos arte e vídeo clipes,
estão desafiando cânones vetustos.

Figura 24 – Comparativo dos desdobramentos dos discursos expositivos QueerMuseu.

Fonte: Samarone Nunes (2019).

Na figura 24, procuro demostrar como a exposição física ganha certa


autonomia no meio virtual principalmente pela alavancagem das discussões
travadas nesse meio. A QueerMuseu: cartografias da diferença na arte
brasileira, inaugurada com sucesso de público, reservas da crítica e imprensa
especializada, foi abortada. Quero chamar atenção para não vocação da
plataforma para os novos meios e tecnologias diversamente da Homo (queer
remixed). A QueerMuseu enquanto exposição física foi abalroada pelas
relações intersubjetivas matizadas por robôs e a estética do desejo do real que
matura no meio virtual.
98

Assim, essa plataforma ganhou sobrevida principalmente, nesse


ambiente de disputa em que as elaborações queer encontram resistência, mas
também defesa. As reverberações das produções físicas adquirem eco nas
simulações e dissimulações que as edições nesse ambiente permitem.
Tanto o MA-UFG, quanto o Santander Cultural, não manejaram o capital
simbólico inaugurado por esses discursos no território museológico, para
produzir uma sensibilização entre os seus públicos, tendo em vista,
problematizar o lugar de onde procedem as cargas que inviabilizam a
incorporação do desviado, do diferente e do Outro no espaço musealizado.
Sem a sensibilidade, o passo seguinte foi negação e apagamento da
representação do desviado, do diferente e do Outro nesses espaços por meio
da violência (Em Porto Alegre foram usadas as tropas militares para conter os
protestos pró-QueerMuseu). As fontes documentais e registros sobre a Homo
(queer remixed) inexistem nos departamentos do MA-UFG, sugerem
apagamento gradual e orgânico, no sentido que, estando retido apenas na
memória individual, está sujeito a dissolução pelo tempo. No Santander a
ruptura se dá pelo corte seco do fechamento da exposição principalmente.
Acontece também na recusa em reconhecer a responsabilidade em reter na
memória institucional a existência da QueerMuseu. Isso fica claro na recusa da
instituição bancária disponibilizar exemplares do catálogo da mostra para
consulta na biblioteca do Centro Cultural Santander, por exemplo.

3.2. Preliminares: engenharia do Devir

As plataformas expositivas gozam - ainda que estejam separadas no


tempo e não demostram serem referências uma para outra, semelhanças
existem e dizem respeito aos aspectos físicos e materiais da exposição.
Somente o projeto gráfico do catálogo da QueerMuseu se compara em
densidade com a arquitetura da exposição de 2007 (discorri sobre o partido
simbólico da arquitetura no capítulo 2) em Homo (queer remixed). No quadro
1(Processo) selecionei alguns significantes que emergem para que possamos
compreender nesses discursos, as implicações da recorrência de “categorias”,
modos de proceder os “apagamentos” ou silenciamento. A importância dada à
99

legitimação. Ocupar o território do museu é objeto de desejo para esses


expositores e acervos. Por último, chamo de “restauração” a volta a
“normalidade” das condições pré-estabelecidas e perturbadas pelo acolhimento
do Queer nesses espaços privilegiados do MA-UFG e Centro Cultural
Santander.

Quadro 2 - Seleção de significados.

PROCESSO
Seleção de significados
DISCURSO CATEGORIAS APAGAMENTOS LEGITIMAÇÃO RESTAURAÇÃO
EXPOSITIVO
Homo SEMELHANÇAS DIFERENÇAS TRAUMA OMISSÃO Legitimação Após o
O LÚDICO E A
(queer da autoridade enceramento
RELIGIOSIDADE
remixed) institucional, das
Violência, exposições,
- O - narrativa em - Estado elementar, - Sincretismo
violência retorno a um
imaginário primeira Irresolução e secular da
epistêmica, estágio
infantil nos pessoa. infantilização. religiosidade
atos censura. anterior a
postais (fig. Autobiográfica. Leitura da judaico-
quebra da
3 e 4), - Sincronia. produção de cristã e
“normalidade”.
Ursinho maneira primária e Hindu.
- retorno ao
Pooh, descontextualizada. - Bricolagem
fluxo normal.
Carrossel. dos ícones
- cessa o
- converte uma religiosos
conflito.
possibilidade ocidental.
positiva de vivencia -
e relacionamento combinação
com o “divergente” iconográfica.
em relação
negativa com o - Não há
diferente. negociação
- O curadorial
imaginário - Censura. entre
religioso produtores,
nos postais ou
(fig. 6 e 7), movimentos
Querubim, “queer”.
São Jorge. Sant’ana
sintetiza a
QueerMuseu - O - crítica na
imaginário Anacronismos. reportagem
infantil nas - relações e depois
produções estreitas com o vemos na
(fig. 21), sistema de versão da
- O arte. QueerMuseu
imaginário (2018),com a
religioso inclusão da
nas monitoria
produções Trans e
(fig. 23), Travesti na
Crucifixo. ação
cultural.
Fonte: Samarone Nunes (2019).
100

As semelhanças dos discursos expositivos se dão quando acionam


igualmente o imaginário presente nas conformações sobre a categoria infantil,
do lúdico, do perverso, da religiosidade e das sexualidades. Ao introduzir esses
conceitos no ambiente sacralizado do museu, as exposições são vistas cada
uma, como blasfêmia, muito do interesse de um público conservador, ávido por
simulações de realidades para justificar interdições nos discursos expositivos.
Nos discursos artístico-expositivos, uma pintura ou escultura
representando uma criança, não é uma criança. O mesmo se dá com
esculturas e pinturas que remetem a seres de determinadas crenças. Cenas de
sexo, não são atos sexuais. A representação estética muda significados não se
configurando como linguagem metonímica (René Magritte 37, que o diga). Os
novos sentidos valem para os contextos da cartografia ou remixagem
pleiteadas. O silenciamento impostos a essas plataformas denotam, a meu ver,
insegurança em manejar os códigos das sexualidades e religiosidades, códigos
estéticos diversos, de maneira simultânea pela institucionalidade.
A negociação entre curador e produtores na Homo (queer remixed) dá
liga e equilíbrio, bem como camadas em se tratando das categorias
trabalhadas. Por outro lado, o fraco nexo da QueerMuseu possivelmente se dá
em razão da não negociação entre curadoria e produtores e com razão, pelos
anacronismos que se constitui como diferença particular.
O desejo de apreensão do real exercitado longamente pelas artes
transbordou borrando fronteiras. Os sujeitos tratam plasticamente, não só as
coisas em redor, mas os fatos, editando-os com novas tecnologias e
dispersando em redes virtuais elaborações da realidade pessoal. Saliento que
esse tratamento já era dado as coisas em museus. O emprego da seletividade
é ação para produção de apagamentos. Tal higienização conta com o concurso
de agentes que mesmo em condições de frustrar o processo de amnésia
institucional em curso, não fazem por que é norma nas instituições.
O que fica é o trauma de tratar o diferente como igual. Deixando a
temática da equidade em estado de irresolução. As plataformas podem ser

37
René François Ghislain Magritte (1898 – 1967), pintor belga surrealista, com traços realista
mais do que onirico. Penso na tela La trahison des images (1920). Magritte discursa ao
relacionar imagem e texto pintando uma figura de cachimbo e abaixo escreve “Leci n’est pas
une pipe” – Isto não é um cachimbo.
101

momentos de discussão das categorias, respeito às diferenças, pensando nas


questões do sincretismo histórico do cristianismo e matizamentos iconográficos
com outras crenças, diversidade das sexualidades e precariedade das
categorias fixas, por exemplo. Essas provocações evidenciam as omissões das
instituições museológicas. Em um choque de mundos, as instituições
conservam os cânones convencionais eurocêntricos, heteronormativos e
centralizantes.
A tutelagem decorrente dos cânones estéticos convencionais mantém a
subalternização da estética queer, o bloqueio da “fala” e a perpetuação das
instâncias de poder pela na disputa do imaginário. Penso que para restauração
dos cânones convencionais é imperativo o bloqueio e fechamento da
plataforma expositiva, “garantindo” retorno a um estágio anterior à quebra da
“normalidade” que a Homo (queer remixed) completou com dificuldade e a
QueerMuseu: cartografias da diferença na arte brasileira encerrada
prematuramente.
As narrativas queer, por seu forte conteúdo político, permitem relacionar
um sem número de categorias. Por não serem “exposições didáticas”,
possivelmente questões prementes tenham sido pouco tratadas ou ignoradas.
O que é ser queer? Ou melhor, o que é estar queer? Decerto que essa
resposta não seria dada pelo enunciado em 2017 no Santander Cultural em
Porto Alegre e não foi respondida pela exposição arquitetada a partir do
ENUDS em 2007, em Goiânia. Se para os sujeitos, rótulos são buscados, para
as coisas, categorias determinantes parecem afetá-las diferentemente. Como
as narrativas queer deslocam sujeitos e coisas? Qual o gênero de um objeto
material? O objeto de forma fálica pode ser uma vela, pode ser objeto de culto,
ou instrumento sexual. Ou pode ser tudo ao mesmo tempo. E nada disso, só
pura representação.
A categoria interseccional38 (CRENSHAW, 2002), importante para esse
estudo, é pouco visível nos exemplos observados, enquanto reação as

38
Para Kimberlé Crenshaw sistemas complexos de subordinação têm sidos descritos de várias
formas: “discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou tripla discriminação”.
Crenshaw ensina que a conceituação de interseccionalidade deve-se ao problema que “busca
capturar as conseqüencias estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a
opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que
estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a
102

“consequências estruturais” que submetem o Queer. A linearidade histórica


acionada para demarcar a autoridade em QueerMuseu juntou militantes e não
militantes em um cadinho desconfortável para muitas biografias (tal licença não
foi utilizada na Homo (queer remixed)). Tal anacronia permite licenças que em
outros momentos pouco importariam. Por outro lado, os aspectos políticos
saem prejudicados abrindo flanco para a censura e silenciamento dos
discursos. No âmbito do sistema de arte, mulheres, mulheres negras, homens
negros, trans, gays, feministas, travestis dentre outras categorias, são
produtores, justificando “presença” pela necessidade de reinventar para um
público sedento de “lançamentos” produções autenticadas pelo desempenho
enquanto militantes.
Não são visíveis negros ou negras nas duas mostras. É um debate em
aberto. Será mulher branca, Adriana Varejão, porém que irá elaborar o “estar”
da raça subalternizada naquele ambiente por meio da obra Cena de interior II
(fig. 22a). Não escapa que os eixos estruturantes de poder, raça, etnia, gênero
e classe constituem as bases para os terrenos sociais, econômicos e políticos
(CRENSHAW, 2002, p. 177), que o sistema de arte de qualquer maneira não
dá conta nessa elaboração. Em um sistema escravista e abissalmente
desigual, contestar a norma e o cânone, ainda que do sistema de arte, é incluir
a categoria raça, a imaginária e estética (negra com reservas) no discurso
expositivo.
Crenshaw ao definir o dinamismo com que a discriminação tornou
aparente a partir da critica feminista me levou a perceber que dois eixos estão
operando nesse estudo, eventualmente de perspectivas diferentes. Qual sejam
“ações” e “políticas”. Não me resta dúvidas que determinadas “ações” de
funcionários graduados da Universidade federal de Goiás e demais
colaboradores foram contra uma política de tolerância e inclusão da mesma
Universidade. Igualmente, pessoas e mais tarde grupos reacionários
perpetraram ações, que culminaram na censura da QueerMuseu, também a
despeito da política da Instituição financeira Santander para o momento.

interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que
fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do
desempoderamento” (2002, p. 177).
103

Ao que parece, a principal diferença do cenário que permitiu a gradativa


censura ou silenciamento entre os dois painéis é que em um as ações foram
pontuais, na outra foi ampla e difusa, abarcando diversos segmentos da
sociedade. No primeiro, em 2007, não invalidou a exposição como um todo (a
mostra prosseguiu segundo o cronograma e utilizando estratégias de
adaptação e reação). A censura é manifestada de maneira pontual, localizada,
envolvendo poucos sujeitos, porém não menos nociva. No exemplo de Porto
Alegre, no entanto, as ações foram suficientes para solapar a continuidade da
mostra. Contudo, ações de contrarreação à censura generalizada foram
igualmente ou mais, articuladas e fortes, permitindo reeditar a exposição no Rio
de Janeiro na Escola de Artes Visuais Parque Lage39, meses depois,
subvertendo a lógica rentista por meio do financiamento popular.

3.3. Ato I - diferença como tônica da representação

O direito à diferença marca a necessidade contemporânea de sujeitos e


coletivos, em contraponto à indiferenciação compulsória tão recorrente nas
narrativas institucionais, em especial, nas museológicas. Quanto mais os
teóricos queer pontuam a defasagem do modelo de sujeito homogêneo, mais
recrudescem as escoras nas brechas do modelo hegemônico de sujeito. A
força e quantidade de violência empregada – inclusive com uso de força policial
em Porto Alegre para reprimir manifestações pró-exposição equivale ao uso
dos poderes institucionais para esmaecer a mostra em Goiânia. Nesses
contextos a violência institucional se fez presente para obliterar a emergência
no campo das disputas do imaginário e o debate sobre as diferenças.
Nessa pesquisa duas categorias insistiam, a cada passo, em se
confrontar: performance como ato estético e performatividade. Autores que
transitam pelo sistema de arte, têm a performance como categoria datada. O
historiador Michael Archer conta que a performance tem raízes no Pop,
Minimalismo e no novo realismo. Desenvolvida durante as décadas de 1960 e
70 nos Estados Unidos da América do Norte, decorrendo da facilitação dos

39
A EAV do Parque Lage, ligada ao Estado e instalada em um palacete em uma grande área verde
do bairro Jardim Botânico, na capital fluminense – RJ abrigou a versão da exposição a partir de 18
de Agosto 2018 após campanha bem sucedida financiada coletivamente por meio do crowdfunding.
104

meios técnicos para comunicação e registro. Com isso, houve um


afrouxamento das áreas expressivas na arte. É na interseção entre artes
plásticas, teatro, dança, musica e fotografia que a performance se constitui. A
arte de então é tida como apresentação (ARCHER, 2001). Para a antropóloga
da performance Paula Godinho, performance é definida como a relação entre a
ação, a atuação e a encenação (GODINHO, 2014). É deixar aparente a
interpretação. A antropóloga Fernanda Lima, por seu turno, entende a
performance enquanto gesto. Assim, a performance arte tem caráter limiar
(LIMA, 2013).
Performatividade, por outro lado, É a sensação de coerência interna
idealizada por meio de atos, gestos, atuações e desejos performativos que,
para Butler, “produzem o efeito de um núcleo ou substância interna, mas o
produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de ausências significantes,
que sugerem, mas nunca revelam, o principio organizador da identidade como
causa”. Resultando que a essência ou identidade desejada para expressão
são, “fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros
meios discursivos” (BUTLER, 2003, p.194). Isso me sugere que
performatividade é dispositivo de constituição de gênero passível de
reprodução intencional, ainda que transitória para a identidade. É razoável
tomar que a explicação não satisfaz de tudo, mesmo que a sujeito em processo
supere a ideia persistente de sujeito preexistente.
Penso que a diferença reside fundamentalmente nos campos de atuação
da externalização de uma narrativa para fruição com conotações lúdicas ou
irônicas. A performance é uma categoria de expressão artística naturalizada no
Sistema de arte mundial que o produtor encena diferentes papeis,
documentado os atos e descartando-os após a produção. A performatividade,
por outro lado, constituindo “sujeitos”, requer um investimento em ações
contínuas sustentadas por uma vigilância cerrada sob o risco de não alcançar o
desempenho desejado.
O sujeito artista é fortemente homogêneo 40. No sentido de que
invisibiliza raça, gênero, exclui territórios e subalterniza modos de produção de

40
O projeto desenvolvido na UNICAMP pretendeu dimensionar a exclusão por raça e gênero,
entre outras categorias em livros de História da Arte. Do recorte com onze livros editados em
105

arte. Tal identidade torna análogos gêneros e sexualidades dissidentes frente


ao sistema de arte. A categoria sexualidades na Homo (queer remixed) foi
substancialmente desejada. As produções giram em torno das pulsões e
sentidos que a sexualidades podem se expressar com acento para as práticas
não heteronormativas. Contudo, no todo, expressam forte conteúdo
falocêntrico.
Talvez por isso, a questão da interseccionalidade não apareça bem
marcada nessas plataformas expositivas. O negro aparece representado na
produção, mas não como produtor de arte. O corpo devir feminino negro
cumpre ausência. O fato de ter mulheres brancas produtoras nas mostra não
basta para contemplar todas as mulheres – razão demarcada no discurso
jurídico de Crenshaw. De qualquer maneira, a tessitura consubstancializada é
revestida de outras e profundas sutilezas, possibilitando um olhar amplificador
e integrado entre diferentes eixos de opressão na ausência do corpo negro
feminino, quer como tema, quer como produtora de arte.
Em QueerMuseu, o falocentrismo está igualmente presente, como se a
arte Queer fosse uma questão cômoda nas relações de gênero com as
identidades sexuais. O falo como pano de fundo para a discussão empreendida
pelo curador ainda que tonalizada pela abstração profunda engessa a
expressão dos/as não binários e sexualidades não centradas no falo. Os
matizamentos que a cultura ocidental produziu, visando encobrir a relação
institucional com as hierarquias formadas a partir da “economia do falo” é
emblematicamente recuperada com a obra de Baril, reeditando o sincretismo
religioso nas divindades Shiva e Jesus Cristo. Unificados sob o cânone Pop
pretende tergiversar sobre o sacrifício ritual. Se para o imaginário ocidental a
deidade Cristo é fruto de uma elaboração visando não autorizar o aparecimento

português as informações tabuladas dão conta que: “de um total de 2.443 artistas, apenas 215
(8,8%) são mulheres, 22 (0,9%) são negras/negros e 645 (26,3%) são não europeus. Dos 645
não europeus, apenas 246 são não estadunidenses”. Daí que a história da Arte constrói
narrativas por meio de coisas e experiências, em sua maioria constituída, por “homens
brancos, europeus, estadunidenses e pintores” (MORESCHI, SANTOS & PEREIRA, 2016).
Disponivel em: https://historiada-rte.org/
106

de aspectos sexuais em sua biografia e iconografia, por outro lado, na Índia,


outra representação autorizada de Schiva é o Lingam.
Curioso que o produtor/realizador do vídeo aparentemente homem
cisgênero conservador parece repudiar com veemência as representações
fálicas na exposição que são em última análise, suporte imagético da condição
heteronormatizada. O produtor do vídeo “DENÚNCIA: Pedofilia, zoofilia,
pornografia e profanação sendo promovidos pelo Ministério da Cultura aos
olhos de crianças!” (DIEHL, 2017), estranha a presença da moeda biológica, o
pênis e sua representação de masculinidade, o falo, que garante – penso em
garantias provisórias, seu lugar na Hierarquia. “a operação da repulsa pode
consolidar “identidades” baseadas na instituição do “outro”, ou de um conjunto
de outros, por meio da exclusão e da dominação” (BUTLER, 2003, p.191).
A queerness “Pedofilia, zoofilia, pornografia e profanação” é acionada
reiterada vezes, porque é o que permite ao sujeito necessitado de uma
identidade coesa performar o “sexo forte”. Logo, o vídeo, parece um monólogo
remissivo para imprimir ao “ideal regulador” a certeza do ser constituinte. O
produtor reitera para si a condição cis do sujeito heteronormatizado temendo a
desagregação da “ficção reguladora da coerência heterossexual”. “Deseja” o
Poder, negando o falo que, por sua vez, fundamenta a categoria
heteronormativa. Atos ritualizados diante da câmara (confessionário?) parece
ser efeito do desejo de identidade por meio do jogo de “ausências significantes”
(p. 194). Butler diz que isso acontece na superfície do corpo (p. 194). O que
vem a superfície é a aparência juntamente com os meios/ação de gravar e
distribuir. Superfície técnica – se estivéssemos falando em arte, chamaríamos
de “plano de gravação” filme. E a aparência espelha a imagem desejada. Para
nós isso esses atos, gestos diante da câmera constitui a identidade hibrida
inscrita na filmagem e mediada pela tecnologia.
Nesse sentido, no quadro 2, busco entender como as ações, desejos e
afetos se ligam em dispositivo para o episódio da QueerMuseu já que não
performa gênero (rigorosamente) em seu discurso expositivo. É estática, com
discurso fechado. A figura 25 – O crescendo do Caos (p.104), visualização do
encadeamento das ações por meio dos fatos ao longo de cinco dias de outra
perspectiva. Então, a performatividade, se acontece, acontece na dialogia
tumultuada das inconsistências de gênero (cisgênero) dos debatedores
107

externos na figura primeira do catalizador (Diehl) que espelha ânsias do público


fascista. O encadeamento prossegue na recepção (segunda coluna) nos
públicos que “respondem” segundo a perspectiva heteronormativa para as
categorias da pornografia: a queerness “blasfêmia, bestialismos e pedofilia”.
Como resultado, a instituição cultural, sob a tutela bancária, temendo as
reverberações financeiras, censura outras possibilidades de representações
por meio do ato de encerramento da mostra. Têm-se como consequência nos
públicos, retroalimentados por robôs, “reações conservadoras” duras contra o
diferente. Como resultado final o estabelecimento do “Nós contra os Outros”
por afinidade aos estímulos selecionados no imaginário difuso comum. Ocorre
que estou pensando ser necessário genuíno desejo por uma identidade coesa
e de um corpo a fim de ser presa da subjetividade por meio de atos, como quer
Butler, para a constituição do Outro. É frustrante e cansativo.

Quadro 3 - Performação em escala.

PERFORMAÇÃO DA ESCALADA DO CAOS


PRODUTOR/REALIZADOR RECEPÇÃO REVERBERAÇÃO CONSEQUÊNCIA RESULTADO
(DIFUSO)
Emissão de estímulos Seleção da Outras Independentemente Criação do
selecionados (duro) resposta possibilidades de do nível de diferente
INÌCIO - 06 a 08/09/2017 segundo a identidade são formação, classe,
“norma” censuradas gênero, há uma
(maleável) (internamente) contaminação
Fonte: Samarone Nunes (2019).

Como veremos o processo tem começo, porém não tem termino. O


contexto será atravessado constantemente, daí para frente, vagas de reações
e contrarreações reverberam. O “Outro” se consolida satisfazendo o ideal de
identidade do Nos.
108

Figura 25 – O crescendo no Caos.

Fonte: Revista Época.


109

3.4. Ato II - adiantando considerações

O emaranhado que dá uma tessitura que aproxima os dois discursos


aparece na recorrência das categorias sexualidades (Quadro 3) segunda
coluna, embora semanticamente diversas, são esteticamente similares. O
Sincretismo/hibridismo e práticas sexuais. O sincretismo/hibridismo está
caracterizado nas imagens já comentadas no Capítulo 2. Essas obras estão
mais confortáveis nessas categorias. A mesma tessitura com tons
diferenciados solapa, por isso, o ideal de transgressão da norma ou do cânone
como quer o Curador Fidelis para a QueerMuseu. Antes, reitera o compromisso
com o sistema que deseja confrontar.
O discurso acessado para as falas do Curador vão contra a norma e o
cânone. É o que ele se propõe. Contudo, a forma, com autonomia “escapa” aos
seus desejos.
Quadro 4 - Deslocamento e disputa

PROCESSO
Deslocamentos/disputas
DISCURSO CATEGORIAS FOLCLORIZAÇÃO LEGITIMAÇÃO RESTAURAÇÃO
EXPOSITIVO Sexualidades
Homo (queer Sincretismo/hibridismo Estado elementar, Reatualiza a Retorno ao gosto
remixed) Práticas sexuais Irresolução e dicotomia padrão.
infantilização. natureza x -
Fig. 4 – Desenho PRIMITIVISMO cultura. restabelecimento
(górgona Medusa). - fortalecimento - cultura da hierarquia.
Fig. 5 – Desenho (queer- de hierarquias. popular x alta - obtura
viado). CULTURA cultura; assimetrias.
QueerMuseu Sincretismo/hibridismo - é arte x não é - anula a
Práticas sexuais arte. regeneração

Fig. 10 - Travesti da positiva das


Lambada e Deusa das representações
Águas.
Fig. 11 e 11b - Cena de
interior II
Fig. 12 - Cruzando Jesus
Cristo com Deusa Schiva.
Fonte: Samarone Nunes (2019).
110

O hibridismo e o sincretismo são recorrentes nas produções mostradas


tanto em 2007 quanto em 2017. A ambiguidade da performance estética
folcloriza questões próprias da produção estética. A redução que a
folclorização produz está sendo discutida de outra maneira em Hall (2006) e
exposta em Nunes (2015). A “indiscernibilidade” de que fala Feldeman, parece
muito próxima das certezas provisórias dos teóricos queer para os problemas
que gênero suscita e explica, em parte, a busca subalterna por acomodação
dos sujeitos à Hierarquia universalizante do mundo ocidental.
Doutra maneira, também legitimação necessária para figurar no espaço
midiático e sacralizado do museu requer que o discurso reedite dicotomias
como Natureza/ Cultura e Cultura popular/ Cultura erudita, Arte/ não-arte,
Clássico/ Contemporâneo e Patrimônio/ pornografia. Verdadeiramente, os
produtores/realizadores queer desejam romper dicotomias. Parece-me que a
grande dicotomia não está no produto de arte realizado, o qual é efeito.
Sendo efeito, assim é que podemos rastrear filiações teóricas
especificadas ou sugeridas nas mostras. Em Homo (queer remixed) é
explicitada de duas maneiras: na presença teórica de Cristopher Isherwood
entre outros (SIQUEIRA, 2007) fazendo espinha que sustentará as escolhas de
produtores e obras e a arquitetura simbólica afinada com a escolha teórica que
conforma o espaço. Na QueerMuseu, o filósofo Bolívar Echeverría (1997),
aparece (elejo dois momentos), na paridade entre Baril e Portinari, e quando
Fidelis (2018) trata a obras e produções com autonomia. O discurso
desconstrutivista da imagem de Baril e o “maneirismo” de Portinari são tidos
como feminilização do homem.
Enviados de esa nueva "naturalidad" o "normalidad", en la que la androginia y
todas la "identidades" sexuales imaginables, el cuerpo compartido con los
otros, la "razón sensual", la "productividad sin productivismo", etcétera, estarían
a su anchas, los queer harían el anuncio de ella en medio de la "naturalidad" o
"normalidad" dominante en la que vivimos (ECHEVERRÍA, 1997, p. 4).

A androginia em Portinari e todas as identidades possíveis de se


registrar em uma pintura bidimensional produzida por Baril, lado a lado,
pretende naturalizar a queerness. Isso deu azo às pessoas questionarem o
estatuto da arte nas mostras por não ser “natural”. Echeverría, em carta a
revista Debate Feminista discute a propósito do barroco e maneirismo, qual
desses capítulos da arte ocidental é mais “queer” o “artificial” versus “natural” é
111

tomado como medida. O público questiona, assim, inclusive, o espaço


museológico e o financiamento privado, ou estatal, nunca, porém, as questões
de gênero, ou a norma, ou o cânone.
Por último, de qualquer modo, a violência epistêmica perpetrada contra
as exposições – porque impede às pessoas acesso para averiguar por si o que
tem de arte ou de queer, A voz pública é sequestrada. Atos violentos
pretendem dobrar o imaginário desviante ao “padrão” heteronormativo, à
normalidade capitalista e ao cânone tradicional travestido de contemporâneo,
assim, aprofundando assimetrias para realimentar o consenso e cessar a
regeneração positiva das representações diversas dissonantes.
Contudo, não se pode prever onde as fissuras serão produzidas nesse
processo, já que as plataformas discursivas se projetam para além da
capacidade do sistema em negá-las (tanto a exposição de 2007, quanto de
2017 se desdobram em novas edições e de uma forma ou de outra deixam
“rastros” – nós, nódulos que permitem refazer as narrativas). E as significações
escapam por entre as dialogias dos produtores/realizadores, o sistema de arte
e os diversos públicos que cabem nessa esfera. Nesse istmo inaugurado,
emerge novos significados e releituras outras. Tanto quem captura como os
capturados estão sujeitos às transformações decorrentes do processo, abrindo
espaço para processos e sistemas inéditos.
A reação violenta das instituições museais envolvidas nesse estudo,
ainda que com graus diferenciados, passa da reação à aversão (Butler explica!)
aos processos e sistemas inéditos que “arranham” os sistemas tradicionais ao
quais estão assentadas. Incapacitando a captura, optam pelo silenciamento
obsequioso e o expurgo dos fatos, a exclusão do acervo queer. Porém, as
brechas abertas consolidam outras possíveis expressões divergentes, que
costumo chamar de “nós”, que de maneira tácita permanecem no sistema
como ecos de possibilidades não plenamente realizadas.
São nas operações dos processos de captura dos desviantes que o
sistema se reinventa. Mostrei aqui dois exemplos, extraídos do sistema de arte
brasileira que se deram no campo museal, como parte do patrimônio que irá se
configurar como queer. Patrimônio esse constituído muito mais pelas
plataformas que lhe comportaram do que pelas coisas que verdadeiramente
lhes deram sentidos.
112

4. Conclusão

Mostras, festivais, exposições e intervenções polêmicas têm chamado a


atenção nos últimos anos. No teatro em Pernambuco, na Parada LGBT em São
Paulo, no cinema e nos museus, produtores trans, travestis, feministas, gays e
lésbicas, negras e negros em nada deixam a dever em qualidade discursiva ao
cis-artista branco e ao sistema de arte local. Contudo, as dificuldades e
violências que esses produtores sofrem por utilizarem os mesmos meio de
“expressão” que o cis-artista, ultrapassa a dor simbólica ou agressão virtual: é
dor real.
Não é o abaixar das cortinas e a catarse desejável. É morte de fato. Por
isso mesmo essa pesquisa expõe as vísceras dos que ousam divergir da
norma, já que a disputa da narrativa sobre esses corpos e seus desejos e a
construção desse sujeito pelos museus corta feito navalha amputando a carne.
No texto em voga: Nós museológicos: os discursos queer nas
exposições Homo (queer remixed) (2007) e QueerMuseu: cartografias da
diferença na arte brasileira (2017), procurei caracterizar os discursos
expográficos personificados nas exposições “Homo (queer remixed)” – 2007 e
“QueerMuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira” – 2017, por meio
de documentação de arquivo digital, intervenções mnemônicas, acessos a
entrevistas virtuais, vídeos e depoimentos, usando os meios e mídias
eletrônicos e virtuais. Os usos e abusos da informação, por isso, são elementos
com os quais me esbarrei muitas vezes e que tive que superar. O tempo em
que a veleidade dos novos tempos impõe se constituiu um problema à parte.
Na passagem dos dez anos entre um discurso e outro, as políticas
públicas da paisagem cultural brasileira, após alcançar um patamar sem
precedentes, declina. A euforia de 2007 para a militância LGBTTQ+ deu
espaço – não sem resistência, devo dizer, ao “ninguém larga a mão de
ninguém” de 2018. A moral que um lado agarra para justificar intervenções e
perda de direitos fundamentais carece de ética e arroja ao lixo da história a
narrativa de país republicano como escrita menor.
Entre meios, estava eu pesquisando, por meio dos corpos insubmissos e
corpo devir, a queerness nos espaços sagrados dos museus, para
compreender como esse discurso se estrutura ou venha a se estruturar dentro
113

desses espaços. O questionamento da normalidade da sexualidade, do sexo,


da estética, da religiosidade, do museu e raça, por que não? O desconforto
com a normalidade, nesse caso, o desconforto com o cânone, liberou a
produção do produtor. Fica patente isso na análise da QueerMuseu. Por um
lado esgarçou o papel do artista militante, quer seja feminista, indígena, ou
corpo devir da negra. Pelo seguinte motivo: o queer libera o produtor da
necessidade de pretender ser um sujeito homogêneo e essencial. Qualquer
um, qualquer uma, qualquer ente, qualquer ser, em qualquer lugar e tempo
pode reivindicar a expressão estética como propõe a Homo (queer remixed). A
estética Trans está liberada para acontecer.
As diversas subjetividades, liberadas para expressão estão colocando
em cheque as normas vigentes. Eurocentrismo, heteronormatividade e
sistemas diversos, para ficarmos em alguns, estão sendo arranhados pelos
atritos entre as intersubjetividades. As pessoas estão montando sua própria
realidade por meio das redes sociais, ferramentas comunicacionais virtuais,
meios novos. E os museus que são uns dos espaços privilegiados de
construção de realidade por meio de narrativas, se veem no centro das
rivalidades da guerra cultural em curso.
Parto da compreensão de que em parte o silenciamento da Homo (queer
remixed) no âmbito da institucionalidade e no panorama nacional, se deve ao
fato de que discurso foi encenado na periferia, nas bordas. Goiás é tida como
essa “última” fronteira que nunca se esgota totalmente. As narrativas de
modernidade construídas para circunscrever o que o território demandava,
situa o sertão imaginário para além das bordas do próprio território. Junto a
isso, a novidade dos novos meios e a incipiência das mídias sociais teve seu
peso para que a exposição ficasse circunscrita a um recorte „periférico‟ – ainda
que tenha transitado por outros espaços. Não obstante, comparativamente, a
mostra encravada no Sertão, menos comprometida com o mercado e plena de
fluxos, parece subverter a „ordem‟. O Sertão torna-se queer. O contraponto
está, em 2018, na QueerMuseu no Rio de Janeiro, território que ocupa, ao lado
de São Paulo, o centro imaginário. Foi, então, possível arregimentar por meio
de dispositivos virtuais as condições necessárias para remontar a mostra que
em Porto Alegre se fundava no concurso do sistema financeiro particular e no
apoio estatal. Por seu turno, em QueerMuseu as obras estão mais
114

comprometidas com o mercado da arte, fato silenciado quando uma política de


coalizações entre coletivos diversos ganha lugar, visando possibilitar a
remontagem da mostra e a resistência à censura.
Nesse sentido, Porto Alegre (mesmo como centro periférico) esteve sob
a sombra de um sistema que determinou o que, como e até quando, devem ser
realizadas as narrativas dissonantes. Não é temerário afirmar que o capital
transnacional não se importa com a militância ou conceitos de equidade,
diversidade, ou Pink Money (Pink Money é queerness!). São índices alocáveis
motivados por ações no sentido da lucratividade ou permanência em alta na
bolsa de mercadorias. Tal comportamento – censura em solo brasileiro,
possivelmente seria impraticável na sede da instituição financeira na Espanha.
A assimilação do queer é um empreendimento em curso, mas não
natural. Por isso, as incursões dos sistemas de arte e financeiro sobre a
agência queer para proceder com a tal captura. Nem sempre agem com
sucesso. Os exemplos do passado, saques, roubos e expatriamentos de
pessoas, acervos culturais e patrimônios, no contexto do imperialismo e
formação dos estados nacionais são referências de assimilação exitosas.
O contrário, maravilha, é quando o periférico faz a incursão inversa –
como propõe o queer: sai das bordas e subtrai à centralidade. É o exemplo de
captura inversa da narrativa. Tem potência simbólica o que MC Fioti faz ao
realizar uma incursão ao Centro. Os novos meios permitem excursões de
qualquer ponto a qualquer ponto, a “rede” permite pensar em centralidades a
partir do “sujeito”. A captura de uma joia “Partita em Lá Menor” do alemão
Johann Sebastian Bach (1723), cara aos centrais, por meio de ferramentas
queerness, a flauta erudita passa a seu repertório/acervo perifa. Blasfêmia!
Por isso, estranhar a expressão queer, a teoria e inclusive meu lugar é
fundamental. Perceber que o pensamento do qual verteu esse texto é um
pensamento colonizado e binário é inaugurar resistência contra a normalidade
e desconfiar das minhas próprias ações e conclusões. O queer, assim, pode ter
circunstâncias das quais são possíveis traçar novas rotas.
A dicotomia Centro/periferia não explica de todo os processos de
esquecimento e censura dos discursos queer. A contradição inerente entre a
inclusão compulsória/mecânica versus a incontinência queer à incorporação ou
inclusão, pode ser outro aspecto digno de nota. A inclusão
115

compulsória/mecânica determinada pelas proposituras políticas do campo


museal - ferem o zelo nativo de autoafirmação, devido a higienização dos
elementos queerness dos locais sacralizado pela aura museológica. De outra
forma, as associações subjetivas em processo queer são refratárias a
incorporação, porem querem transitar, se assim for de vontade, na
institucionalidade.
Paralelamente, as memórias pessoais prenhes de afetos se encarregam
de “fixar” e produzir fissuras nas narrativas oficiosas. Permitindo, assim, a
emergência de “sujeitos necessários” na paisagem cultural, na qual o queer
artista, o queer pesquisador, o queer museu, o queer acervo, o queer arquivo e
o queer público possam performar.
Operam aqui dois eixos nesse estudo, eventualmente de perspectivas
diferentes. Qual sejam: “ações” e “políticas”. Não me resta dúvidas que
determinadas “ações” de funcionários e colaboradores da Universidade Federal
de Goiás, foram contra uma política da diferença. Igualmente pessoas, mais
tarde grupos reacionários perpetraram ações, que culminaram na censura da
QueerMuseu, a despeito da política da instituição financeira no momento.
Entre 2007 a 2016, na vigência do contrato social de 1988, a diversidade
e a tolerância, respeitando diferenças deram o colorido necessário para que
ações afirmativas no âmbito das politicas públicas puderam ser firmadas.
Deriva daí as politicas institucionais que permitiram certo nível de tolerância
aproveitada pelo Coletivo Colcha e pelos curadores Siqueira e Fidélis, para
colocarem em marcha ações reais e transformadoras. As mostras em tela, por
sua vez comprovam que ações verticais (do tipo top down), desvinculadas,
tendem a não permanência e em si não são transformadoras das narrativas
que permeiam o tecido social, haja vista, a ausência do corpo devir feminino
negro transpassado por sucessivas “dororidade” (PIEDADE, 2017), que mesmo
compondo a base da pirâmide social brasileira são mantidas, ostensivamente
ausente, nesses discursos mesmo pretendendo captura. O sistema de arte
brasileiro não está equipado com lentes para ver esse corpo-mulher negra-
devir produtora de arte em específico.
Intervenções nas marés entre intersubjetividades – são onde as coisas
realmente acontecem. Na micropolítica, os poderes são exercitados
mutualmente e em frenético e silenciosos avanços e recuos. O confronto tende
116

a ser público quando subjetividades fazem frente à macro política de


conformação do diferente.
Esse texto representa um esforço em trazer para a discussão sobre
museus e patrimônios culturais a partir da perspectiva queer (mais
precisamente, o acervo queer), sem me deter apenas às questões das
sexualidades, embora esses marcadores sejam muitas vezes destacados nas
produções, outros também se fazem presentes, ou ausentes. Sou forçado a
reconhecer a sexualidade hipotética do museu enquanto heteronormativo,
porque sobre base heteronormativa é que as narrativas, ali, são encenadas, e
por isso, a disputa por um museu queer como não eurocentrado, não misógino,
diverso e feminista negro feminista.
Uma abordagem queer aconteceu em Goiânia (GO) em 2007, o ato de
realização da diversidade se dá com a responsabilidade de agir onde a disputa
por narrativas fundantes se dão, isto é, no Museu. Porém, o queer está mais
no ato de realização da ação do discurso expositivo do que propriamente no
acervo mostrado. Por isso é capital preservar a memória dos discursos
divergentes inaugurados pelas exposições polemizadas descritas acima.
117

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