Lara e Maranhão - Fundamentos Do Trabalho, "Questão Social" e Serviço Social
Lara e Maranhão - Fundamentos Do Trabalho, "Questão Social" e Serviço Social
Lara e Maranhão - Fundamentos Do Trabalho, "Questão Social" e Serviço Social
Ricardo Lara1
Cézar Maranhão2
LARA, R.; MARANHÃO, C. Fundamentos do trabalho, ―questão social‖ e serviço social. In:
SOUZA, E. A.; SILVA, M. L. O. Trabalho, questão social e serviço social: a autofagia do capital.
São Paulo: Cortez, 2019.
Introdução
É conveniente destacar e reconhecer no atual cenário das ciências sociais e humanas que a
produção do Serviço Social, com elaborações teóricas consistentes, realizou fundamentadas críticas
às concepções que se esforçavam em deslocar o debate da chamada ―questão social‖ das
contradições inerentes às relações sociais capitalistas e da luta de classes. Nas últimas décadas, o
desenvolvimento histórico da nossa categoria profissional permitiu a construção de exitosas
formulações teóricas que analisaram a ―questão social‖ e se propuseram a explicar fenômenos como
o desemprego, a crescente precarização do trabalho, a regressão dos direitos sociais, o crescimento
da miséria através de uma teoria social que não se resume a explicação apologética da ―pobreza e
das desigualdades sociais‖ existentes, mas pelo contrário, buscam um método de apreensão de suas
determinações sociais concretas, para com isso historicizar as relações sociais tratando-as no solo
das vivas disputas de projetos societários.
Evidente que não podemos deixar de reconhecer que, mesmo com todos os avanços da
produção teórica do Serviço Social, ainda existem no interior da profissão muitas assimilações e
estudos que não apreendem o debate das expressões da ―questão social‖ como resultado da
dinâmica de acumulação capitalista. Diante da concepção lógico-formal e pouco reveladora
presente no conceito de ―questão social‖, inúmeras análises se perdem na multiplicidade e
complexidade de mediações envolvidas nesse processo ou mesmo não atribuem as devidas atenções
às determinações sócio-históricas das ―desigualdades sociais‖ e das manifestações da pobreza e da
miséria.
Para não incorrermos no caminho de abstrações teóricas, que mais ocultam do que revelam o
movimento concreto do objeto, pensamos que uma análise que se inicie pelos aspectos mais simples
dos processos sociais e construa mediações teóricas até atingir categorias mais complexas da vida
1
Professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutor em Serviço
Social pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Pós-Doutor em História pela Universidade Nova de Lisboa
(UNL). E-mail: ricardolarauf@gmail.com
2
Professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Serviço Social
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: cezarmaranhao@gmail.com
social torna-se um pressuposto essencial para uma análise teórica sobre o caleidoscópio de situações
que compõem a ―questão social‖. Para isso, é necessário que o pensamento teórico que busca a raiz
concreta das determinações leve em consideração o conhecimento rigoroso do processo de
produção capitalista como caminho necessário para apreender com precisão a dinâmica da ―questão
social‖ e realizar as mediações necessárias para reproduzir fielmente seus múltiplos fenômenos
contemporâneos.
Diante dessas constatações, compreendemos a necessidade atual de reafirmarmos que a justa
análise da ―questão social‖ só é possível tomando como base a teoria marxiana sobre a lei geral da
acumulação capitalista. Tal teoria é um marco teórico e político que possibilita estabelecermos
mediações que decifram os fios invisíveis dos múltiplos fenômenos que compõem a ―questão
social‖. Sem ela praticamente cancelamos a possibilidade de apreendermos essa verdadeira esfinge
denominada ―questão social‖.
Desde a crítica da economia política, elaborada por Marx, sabemos que fenômenos como o
desemprego, a desigualdade, o pauperismo, entre outras expressões da ―questão social‖, não são
estranhos nem novos para um modo de produção que se baseia na exploração do trabalho e na
apropriação privada da riqueza socialmente produzida, deixando aos trabalhadores a venda da força
de trabalho como possibilidade única de obter sua reprodução física e espiritual. Esta é uma chave
heurística essencial para o começo de qualquer investigação concreta que pretenda avançar nos
estudos sobre as situações históricas particulares da ―questão social‖.
É certo como afirma importante produção teórica do Serviço Social, embasada na tradição
marxista, que a ―questão social‖ é fruto da acumulação capitalista, mais precisamente das relações
sociais de classes do modo de produção que se reproduz de forma ampliada realizando
incessantemente os ciclos do capital e a simbiose entre o capital constante e o capital variável, pois
relativamente neste modo de produção a riqueza avança nas mesmas proporções da miséria. Em um
escrito de juventude Marx ressalta esse caráter da sociedade burguesa definindo o caminho
contraditório que o desenvolvimento das forças produtivas atinge sob a égide do capital.
O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais sua produção aumenta em
poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria mais barata, quanto maior número de bens produz.
Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos
homens. (MARX, 2002, p. 111)
3
Apresentamos essa extensa citação da obra de Marx por considerar que, historicamente, é com esse segmento da
classe trabalhadora que recai boa parte da intervenção profissional do Serviço Social na execução de algumas politicas
sociais.
que os trabalhadores se autopoliciem e trabalhem com mais constância. Além disso, o papel da
superpopulação relativa na regulação e flutuação do preço da força de trabalho a transforma em um
instrumento eficaz e necessário de ampliação da extração de mais-valia e na contenção dos efeitos
da lei da queda tendencial da taxa de lucros. No livro III de O Capital, Marx, ao esclarecer as
consequências da passagem de um período de prosperidade a um período de recessão e crise,
afirma:
[...] com a paralisação causada na produção é colocada parte da classe trabalhadora em alqueive, deixando,
desse modo, a parte ocupada numa situação em que teria de aceitar uma redução do salário, mesmo abaixo da
média; uma operação que, para o capital, tem o mesmo efeito que se, com salário médio, tivesse sido elevada a
mais-valia relativa ou absoluta. [...] A queda do preço e a luta pela concorrência teriam, por outro lado,
estimulado cada capitalista a reduzir o valor individual de seu produto global — mediante utilização de
máquinas novas, métodos novos e aperfeiçoados de trabalho, novas combinações — abaixo do seu valor geral,
ou seja, a elevar a força produtiva de dado quantum de trabalho, a reduzir a proporção do capital variável em
relação ao constante e, com isso, a liberar trabalhadores, em suma, a criar uma superpopulação artificial.
(MARX, 1986, p. 192, grifos nossos)
Porém, quando analisamos esse processo histórico tendo como marco territorial a América
Latina, salta no horizonte novas inquietações e é possível notar que o movimento propulsor das
revoluções técnico-científicas na Europa, simultaneamente, promoveu a expropriação e
concentração das riquezas na América Latina.
Eric Willians, ao realizar estudo singular do papel da escravidão negra e do tráfico negreiro
como fornecedores do capital que financiou a Revolução Industrial, destaca com precisão a
importância da ―descoberta‖ da América para o impulso necessário ao capitalismo europeu.
Willians cita em sua obra uma interessante passagem de Adam Smith em que o pensador escocês
afirma serem a descoberta da América e a rota do cabo da Boa Esperança até as Índias ―os dois
acontecimentos de maior grandeza e importância registrada na história da humanidade‖. (SMITH
apud WILLIANS, 2012, p. 89). A importância da exploração do continente americano pelos
europeus não estava nos metais preciosos aqui encontrados, mas no novo e inesgotável mercado que
se abria aos produtos europeus e, por conseguinte, os efeitos de elevar o sistema mercantil a um
grau de esplendor que jamais teria conquistado de outra maneira, com o enorme incremento do
comércio mundial4. Os séculos XVII e XVIII foram os do comércio:
No comércio marítimo triangular, a Inglaterra – bem como a França e a América colonial – fornecia os navios
e os produtos de exportação; a África, mercadoria humana; as fazendas, as matérias-primas coloniais. O navio
negreiro saía da metrópole com uma carga de artigos manufaturados. Estes eram trocados com lucros por
negros na costa da África, os quais eram vendidos nas fazendas com mais lucro, em troca de uma carga de
produtos coloniais que seriam levados de volta ao país de partida. Aumentando o volume do tráfico, o
comércio triangular foi suplementado, mas nunca suplantado, por um comércio direto entre a Inglaterra e as
Índias Ocidentais, no qual as manufaturas de produção interna eram trocadas diretamente por produtos
coloniais. (WILLIANS, 2012, p. 90).
Esse processo que foi produzido durante séculos teve uma unidade dual, na Europa os
camponeses foram expulsos das terras e obrigados a migrarem para as cidades e tornaram-se
trabalhadores assalariados, fontes inesgotáveis de produção de riqueza para a grande indústria.
4
Marx e Engels (1998, p. 5) identificam pioneiramente esse processo da seguinte maneira: ―O descobrimento da
América, a circunavegação da África criaram um novo campo de ação para a burguesia em ascenso. Os mercados das
Índias Orientais e da China, a colonização da América, o comércio com as colônias, a multiplicação dos meios de troca
e das mercadorias em geral deram ao comércio, à navegação e à indústria um impulso até então desconhecido e, com
ele, um rápido desenvolvimento ao elemento revolucionário na sociedade feudal em desintegração.‖
Enquanto que na América Latina, inicialmente, ocorreu a expropriação brutal dos territórios e
extermínio dos povos originários e suas culturas, e, no segundo momento, foi o tráfico de forças de
trabalho da África e seu sistemático processo de escravização. De acordo com Willians (2012, p.
33):
Quando se adota a escravidão, não se trata de uma escolha em detrimento do trabalho livre; simplesmente não
há escolha. As razões da escravidão, escreveu Gibbon Wakefield, ―são condições não morais, e sim
econômicas; dizem respeito não ao vício e à virtude, e sim à produção‖. Com a população reduzida da Europa
no século XVI, não haveria como prover a quantidade necessária de trabalhadores livres para uma produção
em grande escala de cana-de-açucar, tabaco e algodão no Novo Mundo. Por isso foi necessário a escravidão; e,
para conseguir escravos, os europeus recorreram primeiro as aborígines e depois à África.
A América Latina teve um papel decisivo e bem definido ao constituir-se como uma
economia colonial em grande escala, que complementava as necessidades do capitalismo que estava
em plena ascensão nas metrópoles capitalistas da Europa durante o processo de acumulação
primitiva.
Sabemos que não existe uma relação mecânica e unívoca entre economia e política, muito
menos ainda quando tratamos da vida social e das mais diversas formas de ―desigualdades sociais‖
oriundas da sociedade de classes. Por isso, quando afirmamos que a herança colonial oferece a raiz
da ―questão social‖ na América Latina e, em especial no Brasil, colocamos em evidência a
particularidade da integração do Brasil na divisão internacional do trabalho, como também das mais
diversas expressões da ―questão social‖.
A herança de mais de três séculos de trabalho escravo no Brasil gerou uma sociedade com
intensas e explosivas contradições históricas. Gorender (2016, p. 221) afirma com precisão que o
―racismo antinegro‖ no Brasil tem suas raízes fincadas na exploração dos escravos na era colonial.
Para ele o racismo é um marco histórico que domina o Brasil. Fernandes (2008, p. 369) também
considera que a revolução burguesa no Brasil não apresentou as rupturas necessárias com a velha
ordem escravista, pois a antiga classe dominante sobreviveu com sua ideologia aristocrática de
senhorio rural. O empresário industrial também absorveu esta ideologia, mesmo quando nascido em
família de origem imigrante. O racismo é um dos valores do passado escravista e colonial que se
conserva na situação do Brasil e que produziu uma espécie de ―sociedade burguesa incompleta‖.
Moura (1994, p. 2), ao analisar o racismo integrado a luta de classes, enfatiza que o racismo
tem, em última instância, um conteúdo de dominação, não apenas étnico, mas também ideológico e
político. Para ele:
O racismo é um multiplicador ideológico que se nutre das ambições políticas e expansionistas das nações
dominadoras e serve-lhe como arma de combate e de justificativa para os crimes cometidos em nome do direito
biológico, psicológico e cultural de ―raças eleitas‖. Há também o racismo interno em várias nações,
especialmente nas que fizeram parte do sistema colonial, através do qual suas classes dominantes mantêm o
sistema de exploração das camadas trabalhadoras negras e mestiças. Com a montagem do antigo sistema
colonial e a expansão das metrópoles colonizadoras, esse racismo se desenvolveu como arma justificadora da
invasão e do domínio das áreas consideradas ―bárbaras‖, ―inferiores‖, ―selvagens‖ que, por isso mesmo, seriam
beneficiadas com a ocupação de seus territórios e a destruição de suas populações pelas nações ―civilizadas‖.
Ordenado o colonialismo através do racismo, as nações dominantes sentiram-se à vontade para o saque às
colônias e para as razias mais odiosas nas regiões da Ásia, América Latina, África e Oceania e para agir contra
todos os que compunham as multidões de desamparados e anônimos da história. Não só roubaram-lhes as
riquezas, mas suas culturas, crenças, costumes, língua, religião, sistemas de parentesco e tudo o que durante
milênios esses povos constituíram, estruturaram e dinamizaram. (MOURA, 1994, p. 2 - 4)
No Brasil a ―questão social‖ é alimentada pela herança colonial e escravista, o que gera a
classificação e o preconceito racial. A revolução burguesa e a democracia vivida no Brasil,
infelizmente, não aniquilaram as desigualdades oriundas das diferenças raciais. Gorender (2016, p.
223) ao analisar o mercado de trabalho e o exército de reserva de trabalhadores no Brasil apresenta
importante síntese:
A relação intrínseca entre racismo atual e capitalismo é uma tese que traz importantes esclarecimentos. Os
capitalistas agrários e industriais, em nosso país, criaram o exército de reserva às custas da imigração europeia
e asiática nas regiões de forte dinamismo econômico e fizeram dos negros o que, a meu ver, constitui uma
reserva da reserva. Classificar as pessoas segundo cor tem sido vantajoso ao funcionamento do capitalismo,
pois mantém a reserva de segunda linha dos discriminados, sempre disponível para o trabalho em troca de
salários rebaixados.
Quando escreveu O Capital, Marx demonstrou que a livre concorrência gera a concentração
da produção, e que esta, num certo grau de desenvolvimento, conduz a um processo de monopólio.
Em fins do século XIX e início do XX essa assertiva marxiana se transforma na forma dominante
de expansão do sistema produtivo. O modo capitalista de produção, até então construído sob a
lógica da livre concorrência, passa a adotar gradualmente formas concentradas e centralizadas de
atuação. Essas modificações atingem o núcleo do desenvolvimento capitalista e configuram novas
determinações aos processos de reprodução do capital. As transformações apontadas primeiramente
por Hilferding, em seu livro O Capital financeiro (1985), e analisadas posteriormente por Lênin no
célebre ensaio sobre o Imperialismo (1982), permitem afirmarmos que a fase imperialista recoloca
em patamar superior todas as contradições presentes na dinâmica do capital.
Na fase imperialista, com a ampliação das sociedades anônimas, a crescente monopolização
das empresas de vários ramos e a fusão entre o capital bancário e o capital industrial, cria-se
condições para que o comércio de dinheiro na forma D — D’ expanda-se e ganhe relativa
independência. Segundo Lênin (1982), é próprio do sistema capitalista separar a propriedade do
capital da sua aplicação na produção, separar o capital-monetário do industrial e criar a figura do
rentista, que agora vive apenas dos rendimentos provenientes do capital-monetário investido à custa
dos que participam diretamente da gestão do capital na produção. Assim, tomar dinheiro
emprestado e emprestá-lo (seja na forma monetária, de ações ou títulos) torna-se, cada vez mais, um
negócio lucrativo para os grandes detentores de capital-monetário (bancos ou outras instituições). É
importante afirmar que a lógica do capital financeiro não contrapõe ou muito menos antagoniza
banqueiros e industriais; pelo contrário, realiza uma associação hierarquizada entre ambos em que o
capital-bancário subordina o capital-industrial aos seus interesses. A partir dessa fase, o sonho de
qualquer industrial é tornar-se um financista. A função de extrair mais-valia antes controlada
exclusivamente pelo capitalista industrial é complexificada e subordinada a nova força social das
grandes massas concentradas de capital. Nasce uma nova fração da classe capitalista, a ―oligarquia
financeira‖ (LÊNIN, 1982), composta por poucos grupos de ―rentistas‖ que, concentrando grandes
somas de crédito, subordinam seus mutuários (industriais, governos, empresários comerciais etc.) e,
através da participação nos diversos conselhos administrativos, orientam as escolhas estratégicas de
diversas áreas do sistema capitalista.
Nesse quadro, que se origina no início do século XX, o capital ganha uma força expansiva e
expropriadora sem precedentes. Gigantescas somas de capital estão agora disponíveis para os
grandes monopólios financeiros e industriais expandirem seus negócios por áreas anteriormente
intocadas. Se o comércio internacional inaugurou a exportação de mercadorias, a fase imperialista
abriu as portas para a exportação de capitais. Isso permitiu que a ―oligarquia financeira‖
internacional, à procura de novos mercados, proporcionasse uma verdadeira ―partilha do mundo‖,
ampliando seus investimentos industriais para os países periféricos e elevando a subordinação
desses países que passam de antigas colônias a credores do sistema mundial de comércio de
capitais.
Com o imperialismo, o capital atinge uma etapa superior em que amplia seu potencial de
expropriação e expansão transformando, cada vez mais, os produtos da ação humana em
mercadorias vendáveis. Contudo, a fase imperialista do capitalismo, além de proporcionar o
aumento da acumulação de capital, também desenvolve e hiperdimensiona as antigas contradições
presentes no sistema. Com a mudança do capitalismo da concorrência para o capitalismo do
monopólio, as crises tornam-se mais intensas e a dinâmica de ampliação e retração da
superpopulação relativa alarga sua importância para a reprodução ampliada do capital.
O gradativo acúmulo de capital nas mãos dos bancos e instituições financeiras permitiu a
ampliação dos investimentos em máquinas e tecnologias poupadoras de trabalho. Surgem os
grandes investimentos em pesquisa e desenvolvimento, descobertas revolucionárias na ciência dos
materiais e os primeiros passos no desenvolvimento das telecomunicações, entre outras formas de
contração do espaço e do tempo de circulação das mercadorias e do capital. Estes investimentos
oferecem um renovado impulso à composição orgânica do capital e permitem uma redução sem
precedentes de seu tempo de rotação, ampliando, por sua vez, a lei tendencial capitalista de tornar o
trabalho vivo relativamente supérfluo para as demandas de acumulação. Um paradoxo torna-se
evidente com a fase imperialista: ao lado da grande soma de dinheiro e capitais, sempre disponíveis
para os investimentos lucrativos, acumula-se também uma massa de trabalhadores sem emprego e
―livres‖ para serem incorporados pelo capital.
Não obstante a fase imperialista complexificar e intensificar as determinações da lei geral de
acumulação capitalista, cabe aqui uma observação importante para não cairmos em imputações
vulgares ao real. Como diz Marx, ―Esta é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista.‖, no
entanto, continua ele ―[...] como todas as outras leis, é modificada em seu funcionamento por muitas
circunstâncias [...]‖ (MARX, 1999, p. 748). Assim, apesar da imensa utilidade que tem a
superpopulação relativa para o funcionamento capitalista, ela possui particularidades históricas e o
grau de variação da parcela populacional que a compõe é condicionada por várias determinações
sociais e políticas. Estas não podem ser compreendidas sob a forma de uma lei absoluta, linear e
inevitável. Ou seja, a dinâmica da lei geral da acumulação, núcleo irradiador das mais diversas
expressões da ―questão social‖, tem entre seus determinantes principais a correlação de forças entre
as classes sociais.
Assim, em alguns períodos de prosperidade, em que a luta dos trabalhadores encontra-se em
ascensão, a ―população trabalhadora supérflua‖ pode eventualmente ser absorvida em grandes
quantidades. Para Mandel (1982), é claramente observável, em uma suposta e pouco desenvolvida
teoria marxiana da população, que a relação de forças dos combatentes é um dos determinantes
principais da distribuição do valor recém-criado entre capital e trabalho, condicionando, na mesma
medida, a taxa de mais-valia a ser produzida. Isso quer dizer que a luta travada entre, de um lado, os
capitalistas, objetivando o aumento indiscriminado da taxa de lucros e, de outro, os trabalhadores
lutando por melhores condições de vida e trabalho, em conjunturas de alto crescimento produtivo,
podem desempenhar uma determinação essencial na distribuição do excedente gerado,
incorporando novas necessidades e elevando o padrão de vida dos trabalhadores.
Isso ajuda a entender o que aconteceu em alguns momentos na história quando a dinâmica
de criação da força de trabalho excedente é amenizada e os trabalhadores conquistam alguns ganhos
relativos, como aconteceu, por exemplo, com vários países da Europa Ocidental (principalmente
nórdica) no pós-segunda guerra. Nesse período, os mecanismos exteriores de controle político
estatal, exercidos nesses países, quando não atingiram seu objetivo de estabelecer um pleno
emprego da força de trabalho, conseguiram fazer com que os efeitos perversos da lei geral de
acumulação capitalista permanecessem apenas de uma forma latente e controlada, transferindo para
os países periféricos o ímpeto do capital financeiro por uma extração de mais-valia acelerada e
intensa.
Algo mudou na suposta ―face humana‖ do capital, que tanto seduziu os revisionistas e
reformistas da esquerda trabalhista europeia durante a fase áurea de crescimento e pujança. A
dinâmica de integração/expulsão da força de trabalho, a partir das décadas de 1980/1990, volta a
criar, continuamente, e em grande escala — mesmo nos países de capitalismo avançado e com uma
força ainda maior na periferia capitalista — uma massa populacional de desocupados e
trabalhadores instáveis e precarizados intensificando e amplificando as múltiplas expressões da
―questão social‖ no cenário contemporâneo.
Sem a presença incômoda da União Soviética e através da vitória eleitoral de vários
governos neoliberais, as diversas ―personificações do capital‖ conseguiram consolidar a hegemonia
dos modelos econômicos de livre mercado, empreendendo a sua direção política na condução dos
ajustes imperativos para a retomada dos lucros capitalistas. Os chamados ajustes estruturais
neoliberais retiraram grande parte dos mecanismos regulatórios das economias nacionais e criaram
o ambiente necessário à integração internacional dos mercados financeiros.
Entramos numa nova fase predatória em que as classes capitalistas para continuarem
acumulando devem construir permanentemente mecanismos de expansão financeira e de
expropriação do trabalho e dos bens públicos. A hegemonia do capital financeiro mundializado
desenvolve transformações tão intensas e avanços tão violentos sobre o trabalho que alguns autores
têm comparado o período atual com a etapa da acumulação primitiva ou originária. O que tem
ocorrido nos últimos tempos é que o complexo sistema de reprodução ampliada do capital assimilou
uma estratégia renovada de expropriação, desenvolvendo-a em escala mundial e com mais vigor nos
países periféricos. O principal veículo dessa expropriação ampliada foi a constituição, sob liderança
dos EUA, de um sistema financeiro internacional capaz de desencadear sucessivos surtos de
desvalorização em certos setores ou mesmo em territórios inteiros. Através de uma hegemonia
político-econômica da oligarquia financeira, o capital tem criado, nas últimas décadas, mecanismos
artificiais para gerar crises financeiras controladas e forçar a transferência de fundos públicos ou
domésticos para as mãos das empresas transnacionais. A cada nova crise financeira, o receituário
liberal do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial é empreendido pelos Estados
nacionais com maior energia, liberalizando a economia dos países, reforçando a dependência
financeira através da dívida interna e externa (com a ajuda de juros extorsivos), limitando os
investimentos governamentais no serviço público, privatizando os bens, serviços e fundos públicos,
desenvolvendo novas formas de investimentos externos diretos e concentrando nas mãos das
transnacionais uma grande quantidade de capital que antes era de domínio coletivo.
Os serviços públicos – direitos sociais (saúde, educação, previdência, assistência social)
conquistados historicamente pelos trabalhadores – transformam-se em ―novas mercadorias‖ e
ingressam nos processos de valorização. Para os direitos sociais entrarem na relação social
especificamente capitalista de valorização são necessárias as privatizações dos serviços públicos ou
simplesmente a sua extinção, com isso os direitos sociais tornam-se mercadorias e são adquiridos
no mercado como as demais mercadorias que satisfazem necessidades humanas. Por isso que, as
privatizações, as contrarreformas nas políticas sociais são fenômenos de um mesmo processo
socioeconômico que demonstra a crise generalizada e duradoura da produção e reprodução social
capitalista, seja em sua particularidade europeia ou latino-americana.
Mas, toda essa expropriação empreendida pelo capital financeiro internacional não só
liberou os fundos públicos para serem reinvestidos no circuito privado de mercadorias. No interior
desse processo também foram desenvolvidos mecanismos que possibilitaram a liberação, a baixo
custo, da mercadoria mais importante para o processo de valorização do capital: a força de trabalho.
Com o intuito de criar uma economia mundializada baseada na intensificação dos regimes de
extração da mais-valia e de barateamento da força de trabalho, o capital financeiro mundializado
tem desenvolvido e comandado mecanismos de desvalorização dos salários com o intuito de atingir
superlucros.
Enquanto rapidamente foram criadas as condições que possibilitaram tornar excedentes e
supérfluos uma parcela considerável de trabalhadores, lentamente o capital tem forçado e expandido
as condições políticas e econômicas para utilizar-se dessa massa de trabalhadores ociosos e
aumentar seus superlucros.
Ao transnacionalizar as novas formas ―flexíveis‖ de produção (e circulação) de mercadorias
e mundializar as diretrizes político-econômicas liberais, o capital gerou uma superoferta de força de
trabalho que, por sua vez, fez o preço dessa mercadoria cair drasticamente em vários lugares do
planeta. A partir daí, foram dadas as condições para que se erguesse uma nova divisão internacional
do trabalho e uma economia mundial baseada na exploração da força de trabalho barata advinda de
regiões no interior de cada país ou, muitas vezes, exportadas dos países dependentes. Paralelo à
expansão global do capital financeiro ocorre uma, não menos importante, mundialização da
superpopulação relativa, que possibilita uma lei tendencial extremamente necessária ao capitalismo
contemporâneo. A queda das barreiras comerciais e a mundialização do capital produzem uma
espécie de lei da equalização por baixo da taxa diferencial de exploração (MÉSZÁROS, 2007),
fazendo com que o preço da força de trabalho, em qualquer lugar do mundo, seja comparado com
os preços praticados em países como a Índia e a China. Devido à internacionalização econômica,
essa comparação realizada pelas grandes transnacionais força o rebaixamento do preço da
mercadoria força de trabalho mesmo nos países centrais.
Ao se considerar a importância dos baixos salários para a configuração da economia
mundial — e como vimos o mecanismo mais eficaz de baratear o preço da força de trabalho é a
criação sistemática de uma superpopulação relativa — podemos concluir que a imensa quantidade
de trabalhadores excedentes é uma condição sine qua non para possibilitar a reprodução atual do
capital. Nessa dinâmica, os países dependentes têm se transformado em imensos reservatórios de
força de trabalho barata e precária para as megacorporações transnacionais. Com a ampliação da
liberdade do capital restringem-se as possibilidades de escolha do trabalhador.
Toda essa configuração da nova economia mundializada que parece constituir-se em um
círculo perfeito de reprodução gera também suas contradições explosivas acirrando ainda mais as
expressões da ―questão social‖ contemporânea. Se, por um lado, o padrão de acumulação atual
necessita cada vez mais da força de trabalho barata e superexplorada e, por isso, deve criar as
condições para continuar gerando desemprego e pobreza em larga escala, por outro, essas condições
realizam uma grande retração do mercado consumidor. Isso quer dizer que o capitalismo
contemporâneo é caracterizado por uma ilimitada capacidade de produzir, mas, o próprio ato de
expandir a produção — transferindo indústrias de economias de ―altos salários‖ para economias de
―baixos salários‖ — contribui para a retração do consumo o que, por sua vez, ocasiona um ciclo
vicioso que envereda a economia mundial para o caminho da crise e da estagnação.
Claro que a economia capitalista madura, seu moderno sistema de crédito e seu conhecido
departamento de consumo de bens de produção, possuem os mecanismos para superar a onda de
estagnação causada pela queda do consumo. No entanto, a relativa queda dos consumidores de bens
de consumo produz impactos negativos na economia, retraindo ainda mais os níveis de emprego e
ampliando o empobrecimento de grande parte da população. Assim, o crescimento de uma camada
da população trabalhadora que sofre com a precarização do trabalho, o pauperismo e a miséria
extrema é uma determinação cada vez mais presente na dinâmica do capitalismo contemporâneo.
As consequências bárbaras dessa dinâmica, que emana da raiz dos processos de acumulação
de capital, podem ser observadas nas mais variadas formas e expressões fenomênicas da ―questão
social‖, que vão desde a piora na qualidade de vida (moradia, transportes, alimentação, etc...) dos
trabalhadores, proporcionada pelo crescimento desordenado das cidades, passando pelas múltiplas
formas de alienação ideológica e preconceito que se ocupam de taxar das mais variadas formas
essas populações de trabalhadores como ―potencialmente perigosas‖, até as intervenções violentas e
brutais do Estado que sob a justificativa de controle e garantia da ordem tem promovido o
extermínio da superpopulação de trabalhadores pobres que habitam as favelas e periferias dos
grandes centros urbanos.
Todas as evidências até agora explicitadas parecem corroborar para a tese de que em meio
ao processo de consolidação da mundialização financeira capitalista e das diversas transformações
que a acompanham se verificou uma verdadeira reorganização do mercado da força de trabalho no
mundo. Em outras palavras, paralelo ao processo de mundialização e reestruturação do capital deu-
se um processo de expansão mundial da superpopulação relativa que tem permitido aos diversos
capitalistas garantirem seus ―superlucros‖ devido aos salários baixos proporcionados pela imensa
massa de trabalhadores disponíveis no mercado mundial.
Nessas condições, a dinâmica articulada de reprodução do capital social total se revela como
um metabolismo que se reproduz independente de qualquer preceito moral ou racional.
Contrariando a teoria ética de Adam Smith, a ânsia de cada capitalista individual em procurar o
maior lucro possível redunda em um sistema irracional, gerador de crises contínuas e que torna
descartáveis uma soma considerável de trabalhadores, condenando-os ao pauperismo e à miséria.
Em suma, amplificando e tornando cada vez mais bárbaras as expressões da chamada ―questão
social‖.
REFERÊNCIAS
_____. A integração do negro na sociedade de classes no limiar de uma nova era. São Paulo:
Globo, 2008.
LÊNIN, V. I. O Imperialismo: fase superior do capitalismo (ensaio popular). In: Lenine: obras
escolhidas. vol. I, p. 569 - 671, Lisboa: Alfa-Omega, 1982.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.
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Brasileira, 1999.
______. O Capital: crítica da economia política. Livro III. Tomo IV. São Paulo: Nova Cultural,
1986.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Cortez, 1998.
WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.