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O GARANTISMO PENAL E O ADITAMENTO à DENÚNCIA

Paulo Rangel
Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro
Mestrando em Direito Processual Penal e Criminologia da Universidade Cândido Mendes
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Cândido Mendes,
da Escola da Magistratura e do CEPAD
Sumário: I ­ A função garantista do processo penal; II ­ Sistemas processuais penais; III
­ O ônus da prova no processo penal; IV ­ O princípio da congruência; V ­ A defesa
técnica efetiva; VI ­ A verdade real no processo; VII ­ O objeto do processo penal; VIII ­
A coisa julgada: conceito, fundamento, limites ­ ne bis in idem; IX ­ Os arts. 384,
parágrafo único, e 385, ambos do CPP; X ­ Casos concretos; XI ­ Conclusão.

I ­ A FUNÇÃO GARANTISTA DO PROCESSO PENAL


É cediço por todos que a função do processo penal é de assegurar ao indivíduo que o fato praticado por
ele e que lhe foi imputado se subsume ou não a determinado modelo descrito na lei e,
conseqüentemente, que a privação (ou não) de sua liberdade é consectário lógico da imposição
normativa proibitiva. Em outras palavras: na medida em que o indivíduo desafia o Estado com seu
comportamento violador de bens jurídicos penalmente tutelados, o processo penal surge a fim de
restabelecer a paz juridicamente perturbada. Nesse caso, como acentua Vázquez Rossi , dentro de um
moderno Estado de Direito Democrático, de base constitucional, onde o poder se encontra limitado por
sua mesma regulamentação e legitimado pelo respeito de direitos fundamentais, a finalidade do
ordenamento punitivo não pode ser outra se não a proteção dos direitos humanos e dos bens jurídicos
imprescindíveis a sua coexistência.
O devido processo penal justo é a garantia constitucional que todo e qualquer indivíduo, residente ou
não no País, nacional ou estrangeiro, tem de que, só em casos excepcionais, será privado de sua
liberdade de locomoção. O fracasso do Direito Penal, com suas normas proibitivas, de impedir a
agressão do indivíduo à sociedade, bem como a impossibilidade de o Estado­administrador de auto­
executar suas normas de conduta, exercendo seu poder de polícia, impedindo a lesão de bens jurídicos
penalmente protegidos, faz nascer a pretensão processual penal com o escopo não só de aplicar as
sanções descritas nas normas penais
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violadas, mas, primordialmente, assegurar ao indivíduo acusado os direitos previstos na Constituição


de seu país.
Destarte, há a necessidade de o Estado recompor a ordem jurídica violada, mas, ao mesmo tempo, o
dever de conceder ao agressor da norma os direitos previstos na Lei Fundamental, que lhe serve de
garantia contra os possíveis abusos do poder estatal.
Claus Roxin assevera que "com a aparição de um direito de persecução penal estatal, surgiu também, a
sua vez, a necessidade de erigir barreiras contra a possibilidade de abuso do poder estatal. O alcance
desses limites é, por certo, uma questão da respectiva Constituição do Estado".
O processo penal assim tem uma função garantista dada ao cidadão de que todos os direitos previstos
na Constituição lhe serão assegurados, pois de nada adianta, v.g., assegurar­lhe o direito de ampla
defesa com todos os meios e recursos a ela inerentes (cf. art. 5º, LV) se a sanção penal lhe foi aplicada
sem que pudesse se defender dos fatos que lhe foram imputados; se sequer foi citado para responder a
acusação; ou, por último, se foi condenado por fato diverso do que constava na denúncia.
Daríamos o direito, mas não garantiríamos seu exercício. De nada adiantaria uma Constituição assim.
Temos que tornar a Constituição escrita na Constituição real e efetiva, sob pena de a transformarmos
no que Ferdinand Lassalle chamava de uma simples "folha de papel". Deve haver uma perfeita
compatibilidade entre a Constituição real e a Constituição jurídica.
Dizia Lassalle:
Onde a Constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é
impossível evitar e no qual, mais dia, menos dia, a Constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá
necessariamente perante a Constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.
Nesse caso, como asseguram Amilton Bueno e Salo de Carvalho, "os direitos fundamentais ­ direitos
humanos constitucionalizados ­ adquirem, portanto, a função de estabelecer o objeto e os limites do
direito penal nas sociedades democráticas".

II ­ SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS


Não é nosso objetivo adentrar na análise profunda dos sistemas processuais penais, mas, sim,
estabelecer a principal diferença entre os existentes, hodiernamente, em especial no que toca ao direito
brasileiro, voltando sempre para o objeto deste trabalho.
A sociedade tem, hoje, a garantia de que o órgão que exerce a persecução penal é distinto do órgão que
irá julgar fazendo nascer a imparcialidade do órgão julgador. Não há mais espaço, dentro de um Estado
Constitucional Democrático de Direito, para a figura do juiz inquisidor, ou seja, aquele que ao mesmo
tempo
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que acusa também julga. Trata­se de uma garantia constitucional de todo e qualquer acusado ser
levado ao banco dos réus somente pelo Promotor natural, o que significa dizer: aquele, previamente,
com atribuição delimitada em lei e independente no exercício de suas funções e que goze do atributo
da inamovibilidade.
A separação das funções de acusar e julgar é vista por Luigi Ferrajoli como a mais importante do
modelo acusatório.
Diz Ferrajoli:
A separação de juiz e acusação é a mais importante de todos os elementos constitutivos do modelo
teórico acusatório, como pressuposto estrutural e lógico de todos os demais. (...) A garantia da
separação, assim entendida, representa, por uma parte, uma condição essencial da imparcialidade do
juiz em respeito às partes da causa.
Nesse caso, é vedado ao juiz agir ex officio sendo um postulado constitucional o axioma nullum
iudicium sine accusatione. A acusação penal é reservada ao Ministério Público, sendo vedado ao juiz
fazer qualquer acréscimo ao perímetro já traçado pelo órgão acusador e, antes de tudo, fiscal da lei, ao
objeto do processo. A acusação, formada pelo binômio imputação + pedido, traça a esfera dentro da
qual o órgão julgador irá decidir o conflito de interesses, sendo­lhe vedado julgar ultra, extra e citra
petita. Qualquer decisão judicial proferida fora dos limites, previamente delimitados pelo Ministério
Público, é nula de pleno direito, esteja ela aplicando sanção mais grave, menor ou igual à que se pediu.
É o fato que determina os limites da pena e não a sua qualificação jurídica. Neste caso, respeitaremos o
direito de defesa.
Frederico Isasca, analisando a questão à luz do direito português, perfeitamente aplicável ao nosso
direito, assim se manifesta:
O facto de a pena eventualmente aplicável poder ser menor não significa que possa e deva sempre
considerar­se como não substancial a alteração dos factos, visto que não só a imagem ou a valoração
sociais podem ser completamente diferentes, como comprometer seriamente a defesa.
O sistema processual penal acusatório vem assim ao encontro dos direitos de ampla defesa, do
contraditório, do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e da característica mor da
jurisdição que é a imparcialidade do órgão jurisdicional. Razão pela qual qualquer modificação,
substancial ou não, do fato, objeto do processo, deve ser acrescida pelo titular da ação penal, sob pena
de o réu não poder ser condenado por fato que não conste, por inteiro, da acusação.
Não aceitamos o entendimento de que a alteração tenha que ser só do fato­crime, em si, mas sim,
também, dos elementos agregadores desse mesmo fato, como nas palavras de Frederico Isasca, o
tempo, o lugar, o modo de execução, o nexo de causalidade, a forma de participação, o resultado, etc.
Tal acréscimo (aditamento) deve ser feito pelo titular da ação.
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III ­ O ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL


A Constituição da República Federativa do Brasil dispõe de forma clara que enquanto não houver
trânsito em julgado da sentença penal condenatória não pode o réu ser considerado culpado (cf. art. 5º,
LVII), significando a transferência do ônus da prova todo para a acusação, ou seja, o Ministério
Público assume o encargo de provar os fatos descritos na denúncia não sendo mais lícito ao Estado
exigir do réu a comprovação de sua inocência.
Desta forma, claro nos parece que, se o Ministério Público tem que narrar um fato criminoso com
todas as suas circunstâncias (cf. art. 41 do CPP), o ônus de provar que este fato é típico (encontra
perfeita adequação na lei penal, portanto, trata­se de uma conduta proibida); é ilícito (contrário ao
direito e que não está açambarcado por nenhuma excludente de ilicitude) e que seu autor é culpável, ou
seja, se possui as condições mínimas indispensáveis para atribuir­se­lhe esse fato, o que significa dizer
se está mentalmente são ou conhece a antijuridicidade do fato, pertence­lhe. Não há como entregar ao
réu, dentro de um Estado Constitucional dito Democrático de Direito e, que tem como fundamento a
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB), o ônus de provar sua inocência.
O juiz é um sujeito processual e não parte na relação jurídica. O Ministério Público é parte
instrumental, mas também fiscal da lei, pois uma posição não exclui a outra, mas se completam entre
si.
A imputação penal é que vai delimitar o espaço dentro do qual o réu irá exercer seu direito de ampla
defesa, pois é cediço que o mesmo defende­se dos fatos narrados na denúncia e não do artigo de lei
mencionado no pedido de condenação. A comprovação, in totum, desse fato compete, hodierna e
constitucionalmente, ao Ministério Público.
Se o Ministério Público imputa ao réu a prática do homicídio (qualificado ou não) e o réu alega
legítima defesa, é o Ministério Público que tem o ônus de provar que não houve agressão injusta,
muito menos uso moderado dos meios. Enfim, o ônus de provar a ausência da legítima defesa é do
Ministério Público. Não é o réu que tem que provar a excludente de ilicitude. Da mesma forma que se
o réu alega um álibi, ou seja, que não estava naquele lugar descrito na denúncia, naquele dia e hora
determinados, compete ao MP provar o que descreveu na denúncia e, conseqüentemente, que o álibi é
falso. Se não o fizer, o réu deve ser absolvido.
Do contrário, vamos sair de um Estado Constitucional Democrático de Direito para um Estado de
opressão, totalitário, em que o réu irá possuir o ônus de provar a sua inocência, o que, por si só,
constituiria um absurdo incomensurável.
A regra do art. 156 do CPP deve receber uma interpretação conforme a Constituição. Regra essa
inspirada pela Constituição do Estado Novo de Vargas (10 de novembro de 1937) que, segundo Boris
Fausto, foi o Estado que
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"concentrou a maior soma de poderes até aquele momento da história do Brasil independente. A
inclinação centralizadora, revelada desde os primeiros meses após a Revolução de 1930, realizou­se
plenamente (...). O Estado Novo perseguiu, prendeu, torturou, forçou ao exílio intelectuais e políticos,
sobretudo de esquerda e alguns liberais". Trata­se, assim, de dispositivo legal que não pode perdurar
nos dias de hoje frente à Constituição democrática que inspira os valores supremos fundamentais de
dignidade da pessoa humana. Do contrário, entender que o art. 156 do CPP está em perfeita harmonia
com a Constituição de 1988 é fazer irradiar, quase que repristinando, os ideais políticos, econômicos,
culturais e sociais da Era Vargas.
O aditamento à denúncia é uma medida imperiosa imposta pela Constituição, como consectário lógico
dos direitos nela previstos, garantindo ao Ministério Público o pleno exercício de suas funções
institucionais e, ao mesmo tempo, uma garantia dada ao acusado de que só haverá acréscimo do objeto
do processo se houver manifestação do titular da ação penal pública que carrega sozinho o ônus da
prova.

IV ­ O PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA
É cediço por todos que o juiz julgará a lide nos limites entre as quais foi proposta, sendo­lhe defeso
conhecer de questões não suscitadas as quais a lei exige iniciativa das partes, sendo­lhe vedado julgar
ultra, citra e extra petita.
É a correlação que deve existir entre o que se pediu e o que foi concedido. Trata­se de uma garantia
processual decorrente do princípio constitucional da ampla defesa visando a impedir surpresas
desagradáveis ao réu, comprometendo sua dignidade enquanto pessoa humana.
O princípio em epígrafe vem ao encontro dos direitos de ampla defesa, do contraditório e dos poderes
de cognição do juiz (limitado que é pelo objeto do processo). Nesse caso, todos os pedaços do fato que
não constam do objeto do processo, porém que mudam a acusação e dos quais o réu não se defendeu,
somente poderão ser conhecidos pelo juiz, em sua sentença, se houver o aditamento à denúncia e,
mesmo assim, se surgirem através de provas substancialmente novas, a fim de evitar o arquivamento
implícito do inquérito policial. Do contrário, a sentença será manifestamente nula.
O nosso Código de Processo Penal, sendo ele da Era Vargas, dispõe em seu art. 564, III, m, que
ocorrerá a nulidade por falta da sentença. Na verdade, não é a ausência da sentença que acarreta a
nulidade, pois sem ela não há a entrega da prestação jurisdicional, mas, sim, a ausência dos requisitos
que lhe são essenciais, bem como se o juiz julgar ultra, extra e citra petita. A sanção de nulidade é um
corolário lógico do respeito às garantias constitucionais dadas ao acusado, pois as normas jurídicas,
como expressão da vontade do Estado, devem ser utilizadas e aplicadas com o fim precípuo de se
atingir o bem comum. O bem de toda a coletividade com o conseqüente respeito à dignidade da pessoa
humana.
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Destarte, salienta o culto Dr. Marcelo Abelha, a quem devotamos grande carinho e admiração, que:
Este princípio (o princípio da inalterabilidade da demanda) vem limitar que o autor possa, uma vez
proposta a ação, alterar e modificar o seu pedido. Isso ocorre não só porque apenas sobre o que foi
pedido é que o juiz deve decidir a lide (art. 128 do CPC), mas também porque seria verdadeira ofensa
ao direito de defesa do réu que o autor pudesse, a seu bel­prazer, alterar o pedido por ele formulado
(...).

V ­ A DEFESA TÉCNICA EFETIVA


Não basta o acusado ter no processo a presença física de um defensor para postular em seu nome e
defender seus ideais de justiça. Mister se faz que a defesa seja, realmente, efetiva, o que significa
dizer: que o acusado possa utilizar todos os meios e recursos inerentes ao seu direito amplo de defesa.
Se o réu é acusado do crime X e se verifica, no curso da instrução, que na verdade, agregado a esse
fato, há o pedaço denominado x', tem o réu todo o direito de exigir do Estado que não conheça deste
fato, pois o mesmo não foi objeto do processo e dele o réu não se defendeu. "O objeto do processo
constitui uma verdadeira e mais importante garantia de defesa, visto que é ele que limita a extensão da
cognição e portanto os próprios limites da decisão."
A exigência é regra imperativa do disposto no art. 128 c.c.o art. 460, ambos do CPC e se a norma
(Código de Processo Civil) foi feita em harmonia com a Constituição, ela irradia os preceitos
constitucionais. Na verdade é a Constituição, vestida de lei ordinária, que impede o juiz conhecer de
fatos que não foram objeto do processo em respeito a sua própria ordem: todo acusado tem direito de
ampla defesa. A proibição do julgamento ultra, citra e extra petita decorre do direito de ampla defesa.
A efetividade da defesa é assim a sua realidade prática, sua aplicação cotidiana, o pleno exercício dos
direitos e garantias individuais com proibição, v. g., de o acusado preso ser requisitado e não citado
para ser interrogado; (proibição) de o juiz que indeferiu o pedido de arquivamento do inquérito
policial, sendo oferecida denúncia pelo Procurador­Geral de Justiça, funcionar no processo instaurado;
(proibição) do acusado que tendo respondido pelo fato X foi condenado pelo fato Y; e, por último,
(proibição) do não­conhecimento do recurso do defensor contra a vontade do réu. Nesses econômicos
exemplos, de nada vale dar­se ao réu a presença de um defensor se seus direitos constitucionais não
são respeitados. A defesa técnica efetiva é direito e garantia individual não só em decorrência da
própria Constituição, mas, principalmente, da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos
(Pacto de São José da Costa Rica), que foi ratificado pelo Brasil pelo Decreto Legislativo nº 27, de
25.09.92 e que tem patamar de norma constitucional (cf. art. 5º, § 2º, da CRFB).
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Qualquer decisão judicial que não respeite os direitos e garantias fundamentais, em especial o direito à
defesa efetiva, viola a Constituição e também o Pacto de São José da Costa Rica, tornando­se, assim,
eivada de error in procedendo.

VI ­ A VERDADE REAL NO PROCESSO


Descobrir a verdade real (ou material) é colher elementos probatórios necessários e lícitos para se
comprovar, com certeza absoluta (dentro dos autos), quem realmente enfrentou o comando normativo
penal e a maneira pela qual o fez.
A finalidade da prova é ajudar a formação do convencimento do juiz sobre a veracidade de uma
afirmação de fato alegada pelas partes em juízo.
O caráter instrumental do processo demonstra que ele (o processo) é meio para se aplicar o direito
objetivo (a norma penal incriminadora) atendendo ou não à pretensão do autor.
Entretanto, a incidência da norma penal sobre o indivíduo autor do fato, imputado como crime, (pelo
menos em tese) somente poderá se dar desde que todos os esforços e meios legais tenham sido
devidamente empregados.
A descoberta da verdade do fato praticado, através da instrução probatória, passa a ser, assim, uma
espécie de reconstituição simulada deste fato, permitindo ao juiz, no momento da sentença, aplicar a
lei penal ao caso concreto, extraindo a regra jurídica que lhe é própria. É como se o fato fosse
praticado naquele momento perante o juiz aplicador da norma.
Importante ressaltar que, não obstante chamarmos de verdade real, nem sempre ela condiz com a
realidade fática ocorrida no mundo físico.
O conceito de verdade, pensamos, é mais filosófico do que jurídico. O que pode ser verdade para uns
pode não ser para outros. Porém, em se tratando de verdade material a ser apurada nos autos de um
processo, há que se considerar a "concordância entre um fato real e a idéia que dele forma o espírito".
Ou seja, a adequação entre o fato objeto do processo e o fato ocorrido no mundo dos homens.
O desejo de se descobrir a verdade é o desejo de se realizar a justiça. Por isso, "a verdade e a justiça
são realidades e valores complementares".
Posto isto, claro nos parece que a necessidade de descoberta da verdade real é compatível com os
limites traçados pelo Ministério Público no objeto do processo, não sendo lícito ao juiz condenar o réu
por fato diverso do constante da denúncia com a alegação de que aquela era a verdade.
Se a verdade apurada não for compatível com os fatos descritos na denúncia, tem o acusado o direito
de ser absolvido e o Estado o dever de absolvê­lo.
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Uma coisa é haver dúvida no processo de que foi o réu quem cometeu o crime, pois, nesse caso, a
dúvida deverá ser resolvida em seu benefício (in dubio pro reo). Outra, bem diferente, é haver prova de
que o fato é diverso do que consta na denúncia, porém o fato é único, indivisível, concreto e real.
Nesta hipótese, se o fato naturalístico (aquele ocorrido no mundo dos homens) for um só, com
imputação diversa pelo Ministério Público, só poderá haver condenação se houver aditamento à
denúncia.
Ora, se o fato ocorrido no mundo dos homens é enquadrado no tipo descrito no art. 155 do CP, não
pode, ao mesmo tempo, estar enquadrado no art. 168 do mesmo diploma legal. O fato é um só. Não se
trata de fato igual, mas sim do mesmo fato; então, seu enquadramento pertence a um único tipo legal.
Pensar diferente é pensar que um latrocínio pode, ao mesmo tempo, ser um homicídio. Não pode.
Trata­se de fato único, descrito em um único tipo penal: art. 157, § 3º, do CP. Pode sim o réu ser
acusado de um homicídio e se descobrir que ele também praticou um latrocínio, mas, nesse caso, são
dois fatos, conexos ou não.
Exemplo:
Ticio é acusado da prática de latrocínio tentado (homicídio tentado e subtração patrimonial tentada).
Durante a instrução, prova­se, de forma clara, segura e inequívoca, o dolo de matar, a intenção de
atentar contra a vida da vítima e a ausência de dolo da subtração patrimonial.
Há dois aspectos: 1º) processual: incompetência do juízo; e 2º) material: homicídio tentado e não
latrocínio tentado.
Quanto ao 1º aspecto, o juiz deve reconhecer a violação ao princípio do juiz natural (e do Promotor
natural) e declarar nulo o processo ab initio, remetendo­o a uma das Varas privativas do Tribunal do
Júri.
Quanto ao 2º aspecto, a denúncia deverá ser retificada (aditamento impróprio de retificação), onde o
Ministério Público fará constar da denúncia a narrativa de um homicídio tentado, incluindo, aí, o dolo
de matar.
Verifica­se que nesse exemplo o rito processual muda por completo, sendo o rito do Tribunal do Júri
mais amplo, com mais oportunidade de defesa ao acusado.
A verdade, assim, estabelecida no processo, é referente ao mesmo fato ocorrido no mundo dos
homens, porém que recebeu uma má apreciação por parte do Estado, não sendo lícita a condenação do
acusado pelo latrocínio não praticado, muito menos a absolvição diante da impunidade que isso
geraria.
Pensamos que o entendimento de que ele deve ser absolvido (do latrocínio tentado) e ser instaurado
novo processo pelo mesmo fato, porém com o nomen iuris de homicídio tentado, é afrontar a coisa
julgada. Trata­se de um único fato ocorrido na vida e que já foi acobertado pela coisa julgada.
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O aditamento à denúncia, com a perfeita adequação jurídica do fato, é medida imperiosa de realização
da justiça tanto para com o acusado como para com a sociedade, estabelecendo plena igualdade de
condições.

VII ­ O OBJETO DO PROCESSO PENAL


Esta não é a sede adequada para nos aprofundarmos no estudo do objeto do processo, porém não
podemos deixar de abordar seu conceito (o que se entende por objeto do processo), seu fundamento e
suas funções.
O objeto do processo é um consectário lógico do sistema acusatório, pois se refere aos "fatos descritos
na acusação", os quais o juiz não poderia conhecer se não houvesse provocação da parte autora, no
nosso caso o Ministério Público.
A pretensão processual penal que serve de veículo para a imputação penal de fato definido como
infração penal é que traduz o objeto do processo. Nesse caso, o fato imputado é aquele ocorrido no
mundo dos homens, o fato humano da natureza, praticado de determinado modo em situação de tempo
e de lugar e que tem enquadramento em um tipo penal. Trata­se de um fato concreto, real, indivisível e
único.
O fato que serve como suporte do objeto do processo não pode ser confundido com artigo de lei, ou
seja, com um certo tipo legal de crime, mas sim como um acontecimento histórico da vida, como um
fato ocorrido no mundo dos homens que recebe ou não do ordenamento jurídico relevância penal.
Muita vez o fato narrado na denúncia, traduzido na pretensão processual penal, não constitui crime e
nem por isso deixou o processo de ter objeto. A afirmativa de que o objeto do processo é o fato­crime
definido como tal na lei penal é falsa, pois se ao final do processo se descobrir, através da verdade real,
que o fato não é crime, nem por isso deixou o processo de ter objeto. O objeto do processo é assim a
pretensão processual penal onde se traduz a acusação (imputação + pedido) de um fato da vida, um
pedaço do todo que deve ser individualizado na denúncia.
Isasca define o objeto do processo com as seguintes palavras:
"Objeto do processo penal será, assim, o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço unitário da vida
vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação
processual se pretende reconstruir o mais fielmente possível."
É exatamente esse fato da vida que tem que ser traduzido e transportado para o processo, através da
pretensão processual penal, a fim de circunscrever os limites do conhecimento do juiz dentro do qual
julgará a lide. Portanto, o objeto do processo tem três funções básicas que nos são apontadas pelo
jurista alemão Claus Roxin:
(...) designar o objeto da litispendência, demarcar os limites da investigação judicial e de obtenção da
sentença e definir a extensão da coisa julgada.
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Em resumo, podemos dizer que o objeto do processo é o tema proposto como res iudicanda e que sua
finalidade mais característica é a obtenção da res iudicata. O objeto resulta ser assim um assunto da
vida; a materialidade afirmada como penalmente relevante.
Ora, se o fato da vida, objeto do processo, já foi objeto da sentença que passou em julgado, não pode o
réu ser acusado, novamente, pelo mesmo fato, sob pena de haver violação da regra do no bis in idem,
verdadeira garantia penal de todo e qualquer acusado, em um processo penal justo e democrático. O
processo penal tem exatamente esse escopo: servir para abordar um fragmento da vida (criminal) em
sua totalidade. Trazer parte da vida praticada e vivida pelo homem para o processo a fim de que
possamos julgar se, efetivamente, aquele fato merece ou não uma resposta penal do Estado no sentido
de se aplicar a sanctio iuris cabível; ou de resgatar a dignidade da pessoa humana acusada do fato
veiculado na pretensão processual penal (objeto do processo), em face da impossibilidade de o
Ministério Público provar o que alegou em sua denúncia.
O objeto do processo delimita a prestação jurisdicional sob dois aspectos: subjetivo e objetivo. Quanto
ao aspecto subjetivo, o Judiciário não poderá emitir qualquer decisão que não seja sobre a pessoa do
acusado, fazendo com que a sentença, transitada em julgado, tenha força de lei entre as partes as quais
é dada (cf. art. 472 do CPC). Surgindo prova nova de que outro indivíduo também participou daquele
fato da vida junto com o acusado, em verdadeiro litisconsórcio, deve a denúncia ser aditada (acrescida)
para incluí­lo. Porém, jamais ser ele julgado sem constar formalmente da acusação veiculada na
pretensão processual penal.
O segundo aspecto (objetivo) impõe identidade do objeto durante todo o curso do processo a fim de
que o acusado possa, efetivamente, exercer sua ampla defesa dos fatos descritos na denúncia. Ser
acusado de um furto simples e resultar condenado em um roubo por ter sido comprovado, de forma
inequívoca, o uso de violência é fazer tábula rasa do objeto do processo, sem contar dos princípios da
ampla defesa, do contraditório, da correlação entre a acusação e a sentença e da verdade real.
Na doutrina alemã, Roxin assim se manifesta:
A identidade do objeto processual tem um componente pessoal e um material, é dizer, ela pressupõe: a
identidade da pessoa e a identidade do fato.
O juiz deve pronunciar­se sobre os fatos e sujeitos descritos na denúncia, respeitando o princípio da
correlação entre acusação e sentença.
Frederico Isasca, em sua excelente obra, assim se manifesta:
Uma vez tomado o acontecimento da vida como a base do processo, necessário será que este seja
suficientemente descrito, pois sem uma correcta e concreta individualização dos factos acusados, não é
possível ao agente defender­se convenientemente e poder afastar de si uma possível punição, nem
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ao tribunal é fornecida a base de confiança e de certeza necessárias para fundamentar e proferir uma
decisão, quer esta seja absolutória quer condenatória, e aplicar, de uma forma justa, a lei penal.
A perfeita delimitação do objeto do processo, portanto, não é mero deleite doutrinário muito menos
uma questão meramente teórica sem nenhuma repercussão na validade do processo em si. Trata­se da
necessidade de se identificar eventual litispendência, coisa julgada, modificação da ação ou sua
cumulação.

VIII ­ A COISA JULGADA: CONCEITO, FUNDAMENTO, LIMITES, NO BIS IN


IDEM
Conceito
O conceito de coisa julgada é polêmico e antigo no direito, sendo, inclusive, proveniente do direito
privado romano no qual a irrevogabilidade da sentença penal era desconhecida, diferente da sentença
civil.
Coisa julgada, na definição clara de Giovanni Leone, é a coisa sobre a qual haja recaído a decisão do
juiz; expressando uma entidade passada, fixa, firme no tempo. Significa decisão imutável e
irrevogável, a imutabilidade do mandato que nasce da sentença.
Mas foi Liebman quem tratou da matéria e melhor definiu coisa julgada como sendo "o comando
emergente de uma sentença. Não se identifica com a definitividade e intangibilidade do ato que
pronuncia o comando; e, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o
ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos,
quaisquer que sejam, do próprio ato".
A coisa julgada pode ser formal ou material. Formal, quando fica limitada ao processo que com ela se
encerra. Material, quando transcende nos seus efeitos para atingir processo posterior sobre o mesmo
litígio. Criam­se vínculos e limitações de natureza processual e material que impedem o bis in idem,
ou seja, o reexame do mérito da questão decidida em outro processo perante as mesmas partes.
Fundamento
O fundamento da coisa julgada repousa exatamente na necessidade que tem o Estado de garantir a
todos os indivíduos (partes ou não no processo) que os conflitos que foram objeto de julgamento e,
portanto, de apreciação pelo Estado terão um fim com a decisão judicial de forma a não mais se
admitir discussão.
Portanto, se pode dizer, com Manzini, que o fundamento do instituto da autoridade da coisa julgada
está na necessidade de aplicar e assegurar a ordem jurídica estabelecida pelas leis do Estado. Trata­se
de um garantismo penal do acusado de que as questões decididas pelo juiz, em sua sentença, não
poderão ser revistas, salvo se for em benefício do réu, através da revisão criminal.
Revista de Estudos Criminais 4 Doutrina ­ Página 66

O processo penal, dentro de um Estado Democrático de Direito, tem que dar as garantias necessárias
ao acusado de que as questões propostas, discutidas e decididas pelo Estado não poderão ser reabertas,
sob pena de se criar uma instabilidade social e um abalo aos pilares de sustentação do Estado justo de
direito.
No Brasil (diferente da Alemanha, Noruega, Portugal, Rússia e Suécia), não se admite a revisão
criminal pro societat, ou seja, a desconstituição de sentença absolutória mesmo que eivada de error in
iudicando ou error in procedendo. Nesse caso, a discussão da coisa julgada traz inúmeras questões
interessantes (cf. item X, infra) que merecem nossa análise a fim de enfrentarmos o no bis in idem.
Destarte, a coisa julgada é mais uma medida de segurança criada em favor do indivíduo do que,
propriamente, de um instituto meramente processual sem conseqüências práticas. É Claus Roxin quem
nos dá suporte para esta afirmativa. Diz o mestre alemão:
"A coisa julgada material serve de proteção do acusado. Com ela se reconhece jurídico­
fundamentalmente seu interesse em ser deixado em paz depois de ditada uma decisão de mérito que já
não mais é impugnável."
A coisa julgada impede, assim, que os fatos que foram objeto de julgamento possam ser investigados,
novamente, pelo Estado em face do mesmo réu, com a desculpa de melhor apurar os fatos e descobrir
situações que agregam o fato principal ou de circunstâncias que lhe pertencem, porém que não foram
objeto de julgamento.
Limites
Há limites objetivos e subjetivos na coisa julgada.
A eficácia, em si, da sentença atua em relação a todos os indivíduos, porém a res iudicata só tem
validade entre as partes as quais é dada. As partes suportam a sentença transitada em julgado. A
imutabilidade se dirige às partes. Assim, se Caio é absolvido da prática do crime de roubo e a sentença
transita em julgado, nada impede que Ticio seja processado, pelo mesmo fato, face ao concurso de
agentes descoberto após o trânsito em julgado. Nesse caso, dependendo do fundamento da sentença,
poderá Ticio ser trazido ao banco dos réus. O limite do caso julgado atinge apenas a Caio. Entretanto,
se Caio foi absolvido por ser o fato atípico, lógico que Ticio não poderá ser processado pelo mesmo
fato, pois se aplica o art. 580 do CPP analogicamente. A isso chamamos de limites subjetivos da coisa
julgada.
O fundamento político dos limites subjetivos da coisa julgada está no próprio direito de liberdade,
como acentua Ada Pellegrini Grinover
Revista de Estudos Criminais 4 Doutrina ­ Página 67

Os limites objetivos se referem aos fatos objeto de julgamento. Os fatos principais. Os pontos ou
questões litigiosas que foram decididos na sentença é que circunscrevem os limites objetivos da coisa
julgada.
O Código de Processo Penal é tímido quanto ao limites objetivos da coisa julgada referindo­se aos
mesmos no art. 110, § 2º, do CPP:
§ 2º. A exceção de coisa julgada somente poderá ser oposta em relação ao fato principal, que tiver sido
objeto da sentença (sem grifos no original).
Ora, o que entender por fato principal para acobertar­lhe com o manto da coisa julgada?
Entendemos que fato principal é aquele fato material ocorrido no mundo dos homens,
independentemente da qualificação jurídico­penal dada ao fato. É o fato, cometido pelo homem, em
sua integridade física. É o fato histórico ocorrido na vida.
Se Ticio subtraiu para si coisa móvel alheia mediante destruição de obstáculo com emprego de arma de
fogo (fato da vida, ocorrido no mundo dos homens), porém, o Ministério Público somente imputou a
ele a subtração para si de coisa móvel alheia mediante destruição de obstáculo (furto qualificado), não
pode o Estado, após o trânsito em julgado, mesmo com provas novas, instaurar processo pelo crime de
porte de arma. O fato principal é um só e já foi julgado. Entender diferente é estabelecer no
ordenamento jurídico brasileiro a revisão criminal pro societat, o que, por si só, é vedado.
Não pode o Estado continuar as investigações sobre o acusado que foi absolvido com trânsito em
julgado, alegando que o crime foi de roubo, porém não ficou demonstrada a grave ameaça exercida
com a arma de fogo. Assim, inadmissível será instauração de novo processo para apurar, agora, aquele
porte (ou utilização) de arma. A utilização da arma faz parte do fato principal (roubo) que já foi objeto
de julgamento e não admite reabertura da ferida cicatrizada com a res iudicata.
No mesmo sentido, se o acusado foi condenado no furto simples, não pode o Estado, agora, aceitar a
instauração de novo processo, contra o mesmo réu, pelo crime de dano, alegando ter havido destruição
de obstáculo à subtração da coisa, já objeto de julgamento trânsito em julgado.
O fato principal é um só e já foi objeto de julgamento.
E ainda: se absolvido do crime de furto, não pode o réu ser, agora, acusado pelo crime de
constrangimento ilegal (ou lesão corporal leve) contra mesma vítima, praticado no mesmo dia, hora e
local, provando­se, entretanto, com provas novas, que houve emprego de violência. O fato é um só. Já
operou o trânsito em julgado, nada mais se pode fazer, sob pena de não haver a segurança e a
estabilidade social que exige a coisa julgada.
A coisa julgada açambarca o fato sob todos os pontos de vista jurídicos. Se o réu foi absolvido (ou
condenado) pela prática do crime de latrocínio, não pode o
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Estado, agora, querer instaurar novo processo, pelo mesmo fato, contra o mesmo réu, pela prática do
crime de homicídio com a desculpa de que novas provas demonstram que nada foi subtraído e que sua
intenção era matar. O fato principal, sobre o qual recaiu a apreciação do Estado, já está protegido pelo
manto da res iudicata.
É bem verdade que o Código de Processo Penal é tímido na disciplina da coisa julgada, não havendo,
como deveria, um capítulo próprio da res iudicata. Entretanto, nada impede que se aplique não só o
disposto no § 2º do art. 110 CPP, mas também as regras insertas no Código de Processo Civil.
O no bis in idem tem a função garantidora, impedindo que o acusado, que já se submeteu à cerimônia
fúnebre que é o processo penal, venha novamente a ser processado pelo mesmo fato.

IX ­ OS ARTS. 384, PARÁGRAFO ÚNICO, E 385, AMBOS DO CPP


Art. 384. Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de
prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na
denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se
quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas.
Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena
mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a
queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo­se,
em seguida, o prazo de 3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três
testemunhas.
Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o
Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma
tenha sido alegada (no original sem grifos).
As regras legais acima merecem uma análise, mesmo que superficial, de suas implicações diante de
tudo que acima foi visto.
Em primeiro lugar, o caput do art. 384 fala em circunstância elementar, termo esse que é impróprio,
pois ou é circunstância e, portanto, está em volta de; ou é elementar e, nesse caso, está dentro. A
elementar mexe na estrutura do crime, ou seja, faz com que desapareça ou surja outro. A elementar
funcionário público se for retirada do delito do art. 319 do CP (prevaricação), o mesmo desaparece.
Entretanto, se for retirada do delito do art. 312 do CP (peculato) restará o tipo do art. 168 do CP
(apropriação indébita).
A circunstância aumenta ou diminui a pena, porém o tipo fundamental continua o mesmo. A violenta
emoção diminui a pena no homicídio, mas o tipo continua o mesmo (cf. art. 121, § 1º, do CP). No
furto, o repouso noturno aumenta a pena, porém se não existir, o tipo continua o mesmo.
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Não vemos razão para distinguir, como o Código faz (e a doutrina aceita), entre circunstância que
agrava a pena prevista na parte geral do Código Penal (o fato de o agente cometer o crime contra
ascendente: filho que mata o pai) e a prevista na sua parte especial, por exemplo, o repouso noturno
que aumenta a pena do furto. Entendemos que em ambos os casos deve ser aditada a denúncia sob
pena de afrontarmos os princípios da ampla defesa, do contraditório, da correlação entre acusação e
defesa, bem como o sistema acusatório adotado entre nós, pois neste caso o juiz estaria fazendo parte
da acusação quando condena com a circunstância que autoriza o aumento de pena sem que tal
circunstância conste da acusação feita pelo órgão do Ministério Público.
A idéia de que o art. 385 do CPP autoriza tal entendimento não pode vingar dentro de um processo
penal acusatório, justo, democrático de direito e livre dos ares autoritários da época em que foi
elaborado pelo regime de Vargas: 1940. Entender diferente é jogar por terra todo o sacrifício feito e
sofrido pela sociedade nos últimos 60 anos de vigência do Código de Processo Penal.
Destarte, seja uma circunstância ou uma elementar não contida, expressamente, na denúncia (pelo
órgão acusador), deve a denúncia ser aditada para incluí­la, sob pena de o juiz agir ex officio e o réu
ser surpreendido em sua defesa.
O difícil para determinados operadores jurídicos é trabalhar com a Constituição e não com a regras
vetustas dos arts. 384 e 385 do CPP. Nesse caso, a interpretação conforme a Constituição irá socorrê­
los.
Por último, o art. 384, caput, admite acusação implícita, ou seja, mesmo que não conste expressamente
na denúncia, porém surgindo nova definição jurídica do fato, deve ser dada vista à defesa para se
manifestar. Em outras palavras, o Código admite que se um homem for acusado do crime de estupro
por ter, como diz a denúncia, "mantido conjunção carnal com uma mulher, mediante violência,
alcançando o orgasmo satisfazendo, assim, sua libido", não poderá o juiz condená­lo pelo atentado
violento ao pudor se não ficar comprovada a conjunção carnal, mas sim, apenas, os atos libidinosos
diversos da conjunção. A idéia de que são implícitos os atos libidinosos para quem quer a prática da
conjunção carnal não pode admitir condenação do acusado se não constar da denúncia. Afronta o
princípio da ampla defesa e do contraditório. O réu não se defendeu da prática de atos libidinosos
diversos da conjunção carnal.
O parágrafo único do art. 384 impõe o aditamento à denúncia quando houver possibilidade de
aplicação de pena mais grave, deixando entender que só se adita se houver pena mais grave, porém se
a pena for igual ou menor não haverá aditamento.
Discordamos desse entendimento. Seja a pena menor, igual ou maior deve­se sempre aditar a denúncia,
sob pena de afrontarmos os princípios da correlação
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entre a acusação e a sentença, da ampla defesa, do contraditório e, principalmente, violar o sistema


acusatório, pois o juiz muda a acusação, ex officio.
Assim, tanto no caput do artigo 384 como no seu parágrafo único deve­se aditar a denúncia em
detrimento da prova nova surgida no curso da instrução. Se for um pedaço do fato e houver prova nova
de sua ocorrência, o aditamento é medida imperiosa. Se for outro fato conexo com o original,
descoberto através de prova nova, adita­se a denúncia, dando­se oportunidade ao réu de ser
interrogado sobre esse novo fato conexo e praticar todos os demais atos processuais inerentes a sua
defesa. Se for fato novo, porém sem conexão, instaura­se outra ação penal.
Nestes casos que estamos mencionando, o aditamento será próprio real, ou seja, o acréscimo será de
fatos ou de pedaços que lhe pertencem (elementares do tipo) e deverá, quanto à oportunidade, ser feito
espontaneamente (independentemente de provocação do juiz) pelo Ministério Público, face ao
princípio da obrigatoriedade da ação penal pública.
O aditamento provocado é exceção e, por isso, está no art. 384, parágrafo único, e no § 5º do art. 408,
ambos do CPP.

X ­ CASOS CONCRETOS
Imaginemos alguns casos concretos para entendermos tudo o que acima dissemos.
1º caso: Ticio é acusado da prática do crime de roubo simples. No curso da instrução, não se comprova
a elementar normativa do tipo grave ameaça (ou violência).
Pergunta­se: pode o juiz condená­lo pelo furto sem aditamento à denúncia?
Resposta:
A resposta é afirmativa. A subtração patrimonial de coisa móvel alheia está descrita na denúncia e,
nesse caso, não há surpresa para a defesa. Ela se defendeu dessa subtração patrimonial. Portanto,
autorizado está o juiz a condenar Ticio pelo crime de furto sem o aditamento à denúncia.
2º caso: Ticio é acusado da prática do crime de furto simples. No curso da instrução, descobre­se que
houve o emprego de arma de fogo e, portanto, trata­se de crime de roubo.
Pergunta­se: há necessidade de aditamento à denúncia para que seja condenado pelo crime de roubo
com emprego de arma de fogo?
Resposta:
A resposta é afirmativa. Ticio não se defendeu de ter empregado arma de fogo durante aquela
subtração patrimonial descrita na denúncia e, portanto, há, nesse caso, surpresa para a defesa. O
respeito ao contraditório e à ampla defesa e a proibição do julgamento ultra petita exigem o
aditamento.
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3º caso: Ticio é acusado da prática do crime de furto simples. Durante a instrução, demonstra­se de
forma cabal que, na verdade, naquele dia, hora e local, houve recusa em devolver o bem por parte de
Ticio e não subtração, e, portanto, tinha ele a precedente posse da res.
Pergunta­se: há necessidade de aditamento à denúncia para que possa ser condenado pelo crime de
apropriação indébita?
Resposta:
A resposta é afirmativa. Não obstante as penas serem iguais, Ticio não se defendeu de ter a precedente
posse da res e, portanto, deve tal elemento normativo do tipo (posse) constar da acusação. A posse de
Ticio é injusta, mas não por clandestinidade e sim por precariedade. Vejam que o fato é um só. Não há
dois fatos. Há dois tipos penais em discussão, porém uma única conduta. Nesse caso, o réu se defende
dos fatos narrados e não da tipificação penal dada ao fato. Admitir condenação porque a pena é a
mesma é admitir que o réu se defende da pena e não dos fatos. Assim, deve a denúncia ser aditada para
a caracterização perfeita dos fatos.
4º caso: Ticio é acusado de ter furtado do interior de uma fazenda três vacas leiteiras, colocando­as em
seu caminhão depois de ter derrubado a cerca de proteção da fazenda, no dia 15.01.00, às 20h.
No curso da instrução, descobre­se, com provas novas, que na verdade foram furtados três cavalos da
raça Mangalarga Marchador, e não três vacas.
Pergunta­se: há necessidade de se aditar a denúncia para que possa Ticio ser condenado pela prática do
crime de furto dos três cavalos ou é indiferente?
Resposta:
Há necessidade do aditamento, pois a res descrita não corresponde à do fato real ocorrido na vida. O
que significa dizer: furto de três vacas não houve. A repercussão, inclusive, de eventual sentença
condenatória pelo furto de três vacas no juízo cível é evidente, pois ao se fazer a liquidação de
sentença para se determinar o quantum debeatur terá que se fazer em cima do an debeatur determinado
na sentença e este menciona três vacas e não três cavalos.
Vejam que nesse caso não se trata de outro tipo penal, muito menos de fato diverso, mas sim do
mesmo fato, porém com identificação errônea da res, impedindo o réu de se defender do fato
verdadeiro e, portanto, do fato real. Há flagrante violação à ampla defesa e ao contraditório e sempre
que isso ocorrer o aditamento à denúncia é medida imperiosa.
5º caso: Ticio é acusado da prática do crime de homicídio qualificado por motivo fútil. Em seu
interrogatório, alega que na data do fato, 15.01.00, não se encontrava na cidade do Rio de Janeiro, mas
sim em viagem ao exterior, tendo retornado em 25.01.00.
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As testemunhas arroladas pelo Ministério Público corroboram os fatos descritos na denúncia, porém
discordam, com dados precisos, da data do fato, alegando que o mesmo ocorrera em 30.01.00 e não
15.01.00. Praticados os demais atos do processo e juntados documentos comprovadores de que o fato
ocorrera, realmente, em 30.01.00, pergunta­se: o juiz está autorizado a pronunciar o acusado pelo
crime descrito na denúncia sem que o Ministério Público adite a denúncia, alterando a data do fato?
Resposta:
A resposta só poderá ser negativa. O réu se defendeu, exercendo o contraditório, de fato ocorrido no
dia 15/01/00 e não de fato ocorrido na data de 30/01/00. Perceba o leitor que o álibi alegado vem de
encontro com a data descrita na denúncia e, portanto, se não houver o aditamento impróprio de
retificação à denúncia, não poderá Ticio ser pronunciado, pois naquela data (15/01/00), efetiva e
realmente, não se encontrava no local do crime. O fato é o mesmo e sob o ponto de vista penal
material a alteração da data é irrelevante, porém sob o ponto de vista penal processual há profunda
repercussão no direito de defesa.
Destarte, independentemente de haver alteração fática ou aumento de pena, sempre que a mudança for
de encontro ao direito de defesa deve a denúncia ser aditada.
6º caso: Tício é processado pela prática do crime de homicídio culposo, na direção de veículo
automotor (art. 302 da Lei 9.503/97), por ter, agindo imprudentemente, excedido a velocidade normal
(80km/h) estabelecida pelas regras de trânsito, naquela via pública descrita na denúncia. No curso da
instrução, descobre­se, através das provas carreadas para os autos, que Ticio deu causa ao resultado
morte porque ingressou, na mesma via pública, pela contramão de direção e não porque se excedeu na
velocidade.
Pergunta­se: pode o juiz condenar Ticio pelo crime do art. 302 do CTB sem que haja aditamento à
denúncia para descrever a conduta correta de Ticio?
Resposta:
A resposta é negativa. Sem o aditamento à denúncia, não pode o juiz condenar Ticio porque não houve
imprudência na modalidade descrita na denúncia (excesso de velocidade), mas sim por ter Ticio
ingressado na contramão de direção. Vejam que nesse caso há fragrante violação ao contraditório
exercido por Ticio, pois é cediço, e repetimos, que o réu se defende dos fatos descritos na denúncia e
não da capitulação penal dada ao fato. Ticio não está se defendendo do art. 302 do CTB, mas sim da
conduta descrita na denúncia que se amolda ou não ao tipo penal.
Assim, é imperativo garantidor da ampla defesa o aditamento à denúncia.
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7º caso: Ticio é processado e julgado pelo crime de roubo simples (art. 157, caput, do CP) sendo
absolvido. A sentença absolutória transita em julgado. A autoridade policial, através do depoimento de
várias pessoas que não o prestaram nos autos do inquérito e muito menos no processo, porém
compareceram à delegacia, espontaneamente, verifica que, na verdade, houve emprego de arma de
fogo por parte de Ticio, inclusive logrando êxito em localizar a arma que foi escondida por ele em um
terreno baldio. Diante dessas peças de informação, remete as mesmas para a vara criminal onde Ticio
foi julgado e o juiz dá vista ao Promotor de Justiça para que adote as providências que entender
cabíveis.
Pergunta­se: pode o Promotor de Justiça oferecer denúncia, pelo mesmo fato, em face de Ticio, porém
imputando o emprego de arma de fogo, ou seja, roubo com emprego de arma de fogo?
Resposta:
A resposta é negativa. Ticio já foi julgado por aquele fato ocorrido no mundo, por aquele pedaço da
vida, não podendo ser julgado, duas vezes, pelo mesmo fato, sob pena de afrontarmos a coisa julgada.
Não se pode confundir o tipo penal com o fato praticado que já foi objeto de julgamento. Se o
Ministério Público (Estado­administração) não apurou o fato com todos os seus elementos que lhe
integram, não faz sentido, agora, com o trânsito em julgado da decisão, chamar Ticio para responder
por um pedaço do fato. Muito menos por porte de arma, que foi absorvido pelo crime de roubo. O fato
é um só. Do contrário, se assim não pensarmos, não haverá a segurança jurídica necessária à
manutenção da paz e da segurança social.
Se é na sentença que o Estado, substituindo a vontade das partes, faz valer a lei e, portanto, tem força
de lei nos limites da lide e das questões decididas (cf. art. 468 do CPC), tal decisão tem proteção
constitucional nas cláusulas pétreas, pois "a lei não prejudicará ... a coisa julgada" (cf. art. 5º, XXXVI,
da CRFB).
Há nesse caso identidade da eadem causa petendi (a mesma causa de pedir); identidade sobre o fato,
sobre o que decide a sentença e aquele sobre o que se quisera acionar: eadem res (a mesma coisa) e,
por último, identidade também de pessoa: eadem persona (a mesma pessoa).
8º caso: Ticio, Caio e Mévio são processados e julgados pelo crime de latrocínio tentado (subtração
patrimonial tentada e homicídio tentado), sendo condenados no 1º grau de jurisdição. Apelam da
sentença, alegando, primeiro, inépcia da denúncia e, segundo, atipicidade do fato. O Tribunal de
Justiça, por maioria de votos, nega provimento ao recurso, porém um voto vencido dava provimento
para absolver os acusados.
A Defensoria Pública interpõe recurso de Embargos Infringentes com base no voto vencido e o Grupo
de Câmaras absolve os acusados alegando que o fato
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era atípico e determina a remessa dos autos à comarca de origem para que o Ministério Público ofereça
denúncia pelo crime de homicídio tentado que, na opinião do Tribunal, era o crime remanescente.
Pergunta­se: está correta a decisão do Tribunal em absolver pelo latrocínio tentado e entender que
havia crime de homicídio tentado determinando o oferecimento de denúncia em face dos acusados por
este crime?
Resposta:
A negativa se impõe. Quanto à absolvição pelo crime de latrocínio tentado, o Tribunal agiu dentro de
sua esfera de competência e a decisão deve ser (como foi) cumprida. Porém, determinar que se
instaure contra os réus processo por crime de homicídio tentado foi um equívoco, para não dizer um
error in iudicando. Até porque o recurso foi exclusivo dos réus, não sendo admissível uma reforma que
não seja aquela pedida. Ou dá o que os réus pediram ou deixa como está, porém, jamais piorar de
qualquer modo, sua situação jurídica (cf. art. 617 do CPP). Na medida em que dá provimento aos
embargos infringentes, porém manda processar os réus por outro crime, julga ultra petita.
Os réus já foram absolvidos pelo fato ocorrido na vida e que foi objeto do processo, fazendo operar,
assim, a coisa julgada. Dar uma nova roupagem jurídica ao fato é criar uma instabilidade social aos
acusados, agora absolvidos pelo Tribunal, deixando­os na eterna incerteza de quando aquele conflito
terá fim. No mesmo sentido, não cabe ao Judiciário determinar ao Ministério Público que ofereça
denúncia por esse ou aquele fato, em verdadeira afronta ao sistema acusatório e, principalmente, a
característica mor da jurisdição que é a imparcialidade do órgão jurisdicional. Na medida em que
assim age, compromete sua posição de sujeito processual imparcial.
9º caso: Ticio é processado e julgado pelo crime de roubo simples (art. 157, caput, do CP), sendo
absolvido. A sentença absolutória transita em julgado. A autoridade policial, através do depoimento de
várias pessoas que não o prestaram nos autos do inquérito e muito menos no processo, porém
compareceram à delegacia, espontaneamente, verifica que, na verdade, houve emprego de arma de
fogo por parte de Caio, que ameaçou a vítima enquanto Ticio subtraía a res, inclusive, logrando êxito
em localizar a arma na residência de Caio, sendo este reconhecido pelas testemunhas.
Diante dessas peças de informação, a autoridade policial remete as mesmas para a vara criminal onde
Ticio foi julgado e o juiz dá vista ao Promotor de Justiça para que adote as providências que entender
cabíveis.
Pergunta­se: pode o Promotor de Justiça oferecer denúncia, pelo mesmo fato, em face de Ticio e Caio,
porém imputando aos mesmos o crime de roubo com emprego de arma de fogo e mediante concurso
de agentes (art. 157, § 2º, I e II, do CP)?
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Resposta:
Quanto a Ticio, nada mais se pode fazer, já há o trânsito em julgado e não pode ser ele chamado para
responder pelo mesmo fato. O fato é um só. Se o Estado não identificou e apurou o fato corretamente,
estando a decisão acobertada pelo trânsito em julgado, Ticio está livre das garras da justiça. Do
contrário, seria estabelecermos o bis in idem.
Entretanto, quanto a Caio, nada impede que seja chamado para responder pelo crime de roubo com
emprego de arma de fogo e mediante concurso de agentes, na medida de sua culpabilidade. A sentença
fez coisa julgada entre as partes as quais foi dada, ou seja, o Estado­administração (Ministério Público)
e Ticio, mas não para Caio. Nesse caso, Caio teve o componente subjetivo necessário da co­autoria,
qual seja: a resolução comum de realizar o fato, o atuar de cooperação consciente e querida. Portanto,
deve responder na medida de sua culpabilidade. Entender que Caio não pode ser processado pelo
crime que cometeu é garantir sua impunidade, fim este não visado pela coisa julgada. A coisa julgada é
medida de garantia e não de impunidade àquele que não foi julgado (cf. nota nº 38, supra).
10º caso: Ticio é investigado em regular inquérito policial pela prática do crime de furto qualificado
mediante rompimento de obstáculo, porém não há o laudo de exame de corpo de delito, mas sim os
depoimentos do lesado e de três testemunhas comprovando o rompimento. Concluído o inquérito, o
Ministério Público denuncia Ticio pelo furto simples entendendo que o exame de corpo de delito,
comprovando o rompimento, era indispensável, e, portanto, nada menciona quanto à qualificadora. O
juiz recebe a denúncia e silencia quanto à qualificadora. No curso da instrução, o laudo chega aos
autos comprovando o rompimento de obstáculo.
Pergunta­se: pode o Ministério Público aditar a denúncia para incluir a qualificadora do rompimento
de obstáculo, considerando ser o laudo prova nova?
Resposta:
A resposta é negativa. Não há no processo penal hierarquia entre as provas, ou seja, uma prova não
vale mais do que a outra. O Ministério Público tinha em mãos provas que autorizavam o oferecimento
de denúncia pelo furto mediante rompimento de obstáculo e não as utilizou, acarretando, assim, o
arquivamento implícito objetivo do tipo derivado (rompimento de obstáculo) do inquérito policial. O
laudo, surgido no curso da instrução, não é considerado substancialmente prova nova, mas, sim,
formalmente, o que significa dizer: não altera o quadro probatório do processo a ponto de ser
considerado prova nova. A prova da qualificadora já constava do inquérito e não foi utilizada.
Revista de Estudos Criminais 4 Doutrina ­ Página 76

O princípio reitor para o Ministério Público oferecer denúncia é o do in dubio pro societat, ou seja, na
dúvida, diante das provas contidas no inquérito, deve resolvê­la em favor da sociedade, denunciando o
indiciado.
Assim, houve o arquivamento implícito objetivo do elemento derivado do tipo e o laudo constitui
prova nova formal e não substancial.
Do contrário, havendo prisão em flagrante delito pela prática do crime de homicídio e não havendo,
ainda, laudo nos autos do inquérito, não se poderia oferecer denúncia com base nos outros elementos
de prova constantes dos autos, o que constituiria verdadeiro absurdo.

XI ­ CONCLUSÃO
É chegada a hora de fazermos uma conclusão do trabalho apresentado com o escopo de sintetizarmos
nossa posição.
1 ­ O processo penal moderno tem uma função nitidamente garantista, visando a assegurar ao acusado
todos os direitos previstos na Constituição, não havendo mais espaço, dentro do Estado Democrático
de Direito, para o processo punitivo exclusivista, ou seja, aquele que a todo custo procurava um
culpado, fosse ele quem fosse, visando a segregar­lhe a liberdade sem assegurar­lhe os direitos
fundamentais.
2 ­ O sistema acusatório é a base de todo o sistema processual penal democrático, onde o juiz é
afastado da persecução penal, sendo­lhe vedado agir ex officio. Portanto, qualquer alteração na peça
exordial, seja de fato, do sujeito, ou de elementos agregadores do fato (tempo, lugar, horário, data),
somente poderá ser feita pelo titular privativo da ação penal pública: o Ministério Público. Trata­se de
uma garantia do acusado que visando a resguardar a imparcialidade do órgão julgador.
3 ­ O ônus da prova no processo penal, diante da regra inserta no art. 5º, LVII, da CRFB, é exclusivo
do Ministério Público, ou seja, o fato ocorrido no mundo dos homens deve ser trazido em sua
integralidade para o objeto do processo, sob pena de o réu, se absolvido for com trânsito em julgado,
não poder ser chamado novamente para responder pelo mesmo fato. Se algum pedaço do fato for
excluído na denúncia, somente poderá ser trazido para os autos mediante provas novas e o ônus é todo
do Ministério Público.
4 ­ O princípio da correlação entre a acusação e a sentença é regra que deve ser observada a fim de
impedir que o juiz julgue ultra, citra e extra petita, respeitando, assim, o direito ao contraditório e à
ampla defesa. O réu não pode ser surpreendido com condenação por fato diverso do que constar na
denúncia.
5 ­ O direito de defesa deve ser efetivo, ou seja, a defesa técnica é irrenunciável e isto significa que o
defensor não pode ser privado do exercício pleno dos direitos previstos na Constituição, assegurando
ao acusado que o juiz não conhecerá de fatos que não constem da peça exordial, pois se o réu não
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exerceu o contraditório sobre aqueles fatos discutidos na instrução, porém que não constam da
denúncia, o defensor deve impugnar o decisum através da medida judicial cabível, inclusive contra a
própria vontade do réu. O contraditório é sobre os fatos contidos na denúncia e não sobre os fatos
discutidos na instrução.
6 ­ O objeto do processo penal é a pretensão processual penal que veicula a acusação, traduzida esta na
imputação + pedido. O fato que serve de suporte a imputação, ou o fato que é imputado, é o fato da
vida, o acontecimento histórico e que deve estar devidamente individualizado na denúncia, sob pena
de não poder ser objeto da sentença sem o aditamento à denúncia.
7 ­ A coisa julgada é um instituto de garantia de todo e qualquer indivíduo processado de que, uma vez
decidido o litígio pelo Estado­juiz, o mesmo não poderá mais ser discutido, assegurando assim a paz e
a tranqüilidade social. O no bis in idem é medida de garantia do acusado.
8 ­ As regras previstas nos arts. 384 e seu parágrafo único e 385, ambos do CPP, são inconstitucionais,
pois permitem que haja acusação implícita e que o juiz conheça de circunstâncias que aumentam a
pena sem que constem da acusação.
Assim, havendo alteração fática em face da presença de elementos que integram o fato, porém que não
constam da denúncia, deverá a mesma ser aditada pelo órgão acusador, fique a pena menor, igual ou
maior. Não importa. O réu tem o direito de se defender dos fatos descritos na denúncia e não da
capitulação jurídico penal dada aos fatos.
Obs.: o trabalho acima apresentado está sujeito a alterações pelo simples fato de seu autor continuar
estudando a matéria e, principalmente, por estar aberto às críticas construtivas que possam ser feitas
pelos leitores.
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