A Celebração, Epifania Da Liturgia
A Celebração, Epifania Da Liturgia
A Celebração, Epifania Da Liturgia
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munhão com o Senhor quando estamos numa atitude de isola- for tudo em todos os homens daquele lugar. Por isso, cada cel-
mento e de ruptura com Ele? Como ir até ao Pai se desprezamos ebração deve ser, em verdade, a da Igreja local, mas é pela sua ce-
o único caminho que Ele abriu, no qual nos procura e onde en- lebração da liturgia que esta Igreja se toma cada vez mais local.
contra a nossa condição humana integral, o Corpo do seu Filho? Por outro lado, quando determinada Igreja celebra a liturgia
O espiritualismo desencarnado engana-se sobre o homem e so- segundo as características peculiares do seu lugar, não celebra a
bre Deus, porque desconhece a humanidade de Cristo. A huma- sua liturgia como se esta fosse diferente da de outras Igrejas lo-
nidade real do Senhor, após a sua Ressurreição, é a de Jesus e cais. A diferença está na expressão, não no mistério: por toda a
dos seus membros: um único Corpo no mesmo Espírito. «Aban- parte e sempre, é a mesma e única liturgia celeste que todas as
donar a assembleia» que celebra o fia do Senhor (Hb 10, 25) é Igrejas locais celebram. Por ser participação na liturgia eterna,
não ter ainda «discernido o Corpo de Cristo»; é até dividi-lo (1). toda a celebração manifesta e realiza a catolicidade da Igreja.
Isso aparece de modo eminente na celebração da liturgia euca-
A celebração, lugar da liturgia rística. Assim como cada fiel que comunga o Corpo e o Sangue
de Cristo não comunga uma parte de Cristo, mas Cristo total,
Em nome deste mesmo realismo, uma celebração aparece co- assim também a celebração de uma Igreja local não fracciona a
mo o momento em que uma Igreja participa da liturgia celeste. liturgia celeste, mas dela participa plenamente. A celebração é
Nesse momento intenso, o Senhor vem à sua Igreja que está assim não só o momento, mas também o local onde a liturgia faz
aqui, neste lugar. Essa participação local na única liturgia reve- viver a Igreja em todo o seu mistério.
la-nos dois outros aspectos da celebração. É por isso que todas as Igrejas locais manifestam, realizam e
Com efeito, se por um lado é a Igreja que celebra, só pode ser comunicam a sua unidade na catolicidade: elas participam da
a Igreja que está em Corinto, em Éfeso, em Lisboa, etc. Também mesma e única liturgia eterna. A esta luz podemos compreender
a Igreja ou é local ou não existe. Se o Espírito é difundido numa quanto a evidência do mistério da Igreja - enquanto liturgia eter-
comunidade habitada pela Palavra para a transformar em Corpo na no centro da história - é primordial para viver em verdade as
de Cristo e irradiar por meio dela a sua comunhão, só pode ser relações na Igreja, desde a pastoral até ao ecumenismo. Esta Luz
num lugar; caso contrário, seria uma abstracção. Antes de ser um permite purificar as tentações periódicas que agitam as Igrejas, ora
quadro administrativo ou pastoral, a noção de «lugar» que acom- para o corporativismo espiritual, ora para o juridismo administra-
panha sempre a Igreja exprime o conjunto dos aspectos que tivo. Na verdade, tudo é fundamentalmente liturgia na Igreja: a
constituem e estruturam sacramentalmente uma Igreja particular: unidade na fé e a comunhão na caridade, os ministérios e a missão,
os baptizados-confirmados e os seus ministros ordenados, a lín- a oração e os sagrados cânones. A liturgia é a fonte.
gua e a cultura, a tradição viva, em suma, tudo quanto faz de
uma Igreja o lar da epiclese que transforma uma comunidade hu- A celebração, núcleo da liturgia
mana em Corpo de Cristo. Neste sentido, qualquer celebração é
escatológica, porque tende para a sua consumação, como a Igre- Momento e lugar da liturgia celeste, a celebração eclesial é
ja que celebra a liturgia. Uma Igreja não é local de maneira ime- também o núcleo a partir do qual a luz do mistério se difunde
diata; toma-se tal e não o será em plenitude enquanto Cristo não através do mundo dos últimos tempos. Ela «centraliza» as ener-
gias da Transfiguração para as aplicar a determinada situação hu-
(') O velho slogan «sou católico mas não praticante» exige também um discernimen-
mana, aqui e agora. Esse núcleo é o ponto de encontro entre a li-
to. Pastoralmente estamos diante ou de um baptizado «prematuro», isto é, de um catecú- turgia, vitalidade profunda da Igreja, e a condição encarnada de
meno, ou de um penitente que não se reconhece como tal. As assembleias primitivas co- cada Igreja. Ora é digno de nota que todas as celebrações ecle-
nheciam essas duas categorias e faziam-nas participar gradualmente da liturgia
eucarística. Cf. as sucessivas despedidas dos catecúmenos e dos penitentes antes da aná-
siais possuem constantes, sejam quais forem as tradições parti-
fora. culares próprias de cada Igreja. Das origens até aos nossos dias,
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a celebração, no seu núcleo sacramental, é estruturada por ele- la Palavra, faz com que eles «se lembrem» dela para lhes fazer
mentos constitutivos permanentes. Quer se trate de um ofício de viver o acontecimento e «leva-os à plenitude da verdade». Uma
vigília ou da Reconciliação penitencial, da Unção de um enfer- celebração não é, porém, um curso de Bíblia nem o pôr em co-
mo ou da Eucaristia, uma espécie de morfologia comum parece mum das impressões de cada um. Acontecimento de Cristo que
desprender-se de todas as celebrações eclesiais (2). se toma o da Igreja, ela é um momento da tradição santa e viva:
Para começar, há uma assembleia de baptizados-confirma- o coração de Jerusalém é fecundado pelo rio de vida, os famintos
dos, por mais pequena que seja; caso contrário, o Corpo de recebem o pão da Palavra pelos apóstolos que lho distribuem.
Cristo não seria significado e a celebração não seria a da liturgia. Nesse núcleo da celebração, a palavra de Deus deve encontrar
Há também ministros, entre os quais pelo menos um deve ser or- eco no Corpo para se tomar palavra da Igreja. Não as minhas
denado para este serviço; caso contrário, o Espírito e a esposa palavras subjectivas, seja eu membro da assembleia ou mesmo
não seriam significados, Cristo não seria servidor do seu Corpo, ministro da Palavra, mas o Verbo de vida cujo Corpo é a Igreja.
a assembleia realizaria um culto religioso, mas não celebraria a Fora desse corpo pode haver muitos espíritos, mas não o Espírito
liturgia. Adivinhamos o motivo: a comunhão da Trindade Santís- de Cristo que fala pelos profetas.
sima, que é a última energia da liturgia, não a tomamos por nós Há ainda, e é urgente lembrá-lo hoje a um certo tipo de ho-
mesmos, recebemo-la. Não nos damos a paz na celebração, por mem mais cerebral do que humano, acções simbólicas. Para que
mais que pensemos que á assim: acolhemo-la d' Aquele que é a a celebração seja transfiguração do Corpo de Cristo, é preciso
nossa única paz e que a dá em seu Corpo, através dos membros que todo o homem que é «corpo» aí esteja comprometido. Se a
ordenados para tal ministério (3). Na celebração, o homem se- luz do Tabor atinge primeiramente o homem ao nível do cora-
dento aproxima-se e «recebe» a água da vida, «gratuitamente» e ção, nesse reduto de liberdade que superou as estruturas, é para
não por suas próprias forças. No mais profundo da questão dos que todo o seu ser seja iluminado e divinizado. Uma celebração
ministérios, encontramos o mistério, tão desconhecido do ho- cerebral compraz-se fatalmente na auto-satisfação intelectual ou
mem carnal, da sinergia do Espírito e da esposa, do realismo emocional. A celebração integral da liturgia leva, pelo contrário,
encarnado do Corpo de Cristo e da gratuidade da salvação. Não ao núcleo da fé e difunde-se em comunhão, a da pessoa e a da
basta que «dois ou três estejam reunidos em seu nome» para que comunidade. O acontecimento de Cristo só se toma o da sua
Cristo viva com eles a celebração da liturgia (4). Igreja se for realizado, e não apenas pensado ou sentido. O pen-
Há também a palavra de Deus, proclamada por um ministro samento e o sentimento criam ídolos, só o símbolo em acção faz
e escutada pela assembleia, meditada por todos e guardada no penetrar no mistério. Esta participação no mistério é então expres-
coração. É neste sentido que uma celebração é um novo Pente- sa pela fé da assembleia, e é este o sentido do canto: não a jus-
costes: o Espírito difunde-Se sobre aqueles que sã9 habitados pe- taposição desagradável de palavras ditas, mas uma unidade de fé,
de intercessão e de doxologia, na harmonia. Trata-se de um outro
registo da palavra da Igreja, mas que significa, desta vez, par-
(') Dizemos com razão «eclesiais», para as distinguir dás reuniões cultuais não litúr- ticipação efectiva no acontecimento de Cristo e a comunhão na fé.
gicas.
(') Não nos cabe a nós entrar em pormenores nesta questão tão actual dos ministé- Há, enfim, como elementos estruturais da celebração, um cer-
rios. Para ir ao essencial, digamos que a tradição das Igrejas apostólicas vê a especifici- to espaço e um certo tempo (5). Pensamos imediatamente e com
dade do ministério ordenado no serviço da epiclese sacramental: é o critério das suas ou- razão, no aspecto funcional de ambos, mas o seu significado vai
tras funções e das suas diferenças em relação às funções análogas do sacerdócio real,
como a de anunciar a palavra. muito mais longe. Com efeito, aquilo que tenta passar, através do
(') Mt 18, 19s. O Senhor está no meio deles. Se estão unidos - mas sabem eles se o núcleo da celebração, não é mais do que a novidade de Cristo
estão?-, o Pai atende o seu pedido. Todavia, não é ainda a Igreja, mas uma comunidade ressuscitado. «As portas fechadas» já não são obstáculos à sua
de crentes que espera o pentecostes. Sobretudo, não é uma celebração, porque o corpo de
Cristo é orgânico, não anárquico; o Espírito incorpora-nos nele, não somos nós que o
construímos. Cf. 1Cor 12, 12-14. (') Cf abaixo, capítulos XIII e XIV.
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presença e o tempo já não é absorvido no passado, uma vez que é por isso que eles fazem entrar na liturgia. Caso contrário, esta-
Jesus é pessoalmente o nosso «hoje». Se a liturgia eterna se ma- ríamos ainda totalmente mergulhados no ritual sacro das reli-
nifesta no nosso mundo e no nosso tempo como a Ascensão do giões naturais ou das ideologias.
Senhor, isso deve ser também significado no núcleo da celebra-
ção. Não se trata, de modo nenhum, de um condicionamento alu- As celebrações da liturgia
cinante ou de um teatro ilusionista. Mas no realismo sacramental
do Corpo de Cristo, o espaço e o tempo devem ser expressos co- Momento, lugar e núcleo da liturgia, a celebração é ainda a
mo se estivessem transfigurados. Nas nossas celebrações huma- sua epifania porque ela a difunde em energias diversas. Se todas
nas de aniversário ou de vitória, inventamos espontaneamente as celebrações revelam uma semelhança fundamental nos sinais
certos símbolos pelos quais o espaço e o tempo participam no que manifestam o mistério, diferem e muito nas energias do Es-
acontecimento celebrado: porquê descurar essa dimensão encar- pírito Santo que realizam e comunicam esse mistério. Todas ce-
nada e tão humana na celebração da liturgia, esse acontecimento lebram a vinda do Senhor, mas nem todas com o mesmo poder.
que traz tudo consigo e tudo transfigura? Evidentemente, aqui, a A energia transformante desenvolvida pelo Espírito através dos
luz vem de dentro; caso contrário, cairíamos no folclore cultuai. sinais estruturais comuns varia segundo as celebrações. Pelo fac-
Ao longo de toda a história da Igreja, as Igrejas particulares di- to de haver um único sacramento, o Corpo de Cristo que é a Igre-
vergiram muito nessa expressão, sem dúvida porque esses dois ja, toda a celebração nele participa e nele faz participar; mas por-
últimos elementos da celebração são os mais ligados às culturas que há uma diversidade de energias do Espírito Santo, em razão
contingentes; mas, na mutação actual das civilizações, não pode- das necessidades do homem a divinizar, há diversidade de cele-
mos esquecê-los sem obscurecer esse núcleo através do qual a li- brações.
turgia se desenvolve na Igreja e irradia sobre o mundo. Em resumo, a tradição viva das Igrejas apostólicas propõe-
Esses oito elementos - aos quais podem ser acrescentados nos que vivamos a liturgia em primeiro lugar através da celebra-
outros segundo as tradições próprias das Igrejas - estruturam ca- ção do grande sacramento - a divina liturgia por excelência, a
da celebração. Eles não são deduzidos de uma lógica ritual, mas Eucaristia - que não pode ser enumerada ao lado de nenhuma
simplesmente constatados e induzidos da prática universal das outra celebração porque contém em si mesma todo o mistério.
Igrejas. Na verdade, eles estão de acordo com a condição sacra- .Ela é o «momento» total da Igreja local e da comunhão das Igre-
mental da liturgia nos últimos tempos. Neles encontramos, com jas. Depois, através dos sacramentos maiores: Baptismo e Con-
efeito, as primeiras coordenadas de toda a comunicação entre firmação, Reconciliação dos penitentes e Unção dos enfermos,
pessoas: o grupo, a palavra, o gesto, o espaço e o tempo. Mas Matrimónio e Ordem dos ministérios. Mas no interior dessas
aqui, tais coordenadas são assumidas por Cristo Se!1hor, a fim de Energias sacramentais existem outros «sinais» onde o Senhor
fazer passar através delas o fluxo do seu Espírito. E que a assun- manifesta e comunica a sua glória, em particular a Bíblia e o íco-
ção do humano pelo Verbo é toda orientada para esse pentecostes ne, (6) o dia do Senhor e os outros «momentos» do tempo trans-
que a epiclese realiza na celebração. Assim sendo, esses elemen- figurado.
tos trazem em si uma significação bem diferente da de uma
Merece resposta aqui uma pergunta aparentemente ingénua.
assembleia de tipo sociológico. Não só aí encontramos dois ele-
Ela é feita com frequência por aqueles que começam a encon-
mentos originais e irredutíveis - a palavra de Deus através da es-
trar-se com Cristo ressuscitado: porquê esta diversidade de cele-
critura e a sua proclamação, e os ministérios como energias do
brações litúrgicas? Uma vez que Cristo está no meio de nós, qual
Espírito Santo - mas esses dois sinais e os seis outros seriam to-
talmente sem significação na liturgia, se os reduzíssemos àquele
sentido que os participantes insistem em lhes conferir. Eles são (') A complementaridade da Bíblia e do ícone como expressão da única economia da
sinais apenas porque o mistério os transfigura a partir de dentro; salvação foi definida no Vil Concílio ecuménico (II de Niceia, em 787).
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a razão da energia do seu Espírito não se manifestar por um úni- a sua epiclese consumante, mas para ela prepara; e quando a Re-
co sinal? Poderá colocar-se um mais ou um menos na acção vivi- conciliação é vivida na liturgia eucarística, a energia da comu-
ficante de Cristo ressuscitado? nhão vai ainda mais longe, pressupondo a conversão. Vemos
A primeira resposta está contida num facto: a Eucaristia e os que, se o discernimento do Corpo de Cristo é anterior a qualquer
sacramentos maiores vêm-nos de Cristo e da primeira comuni- celebração, cada celebração, na sua originalidade pedagógica,
dade apostólica. São factos da tradição: nós não fabricamos a li- nos p_ermite discernir a «multiforme sabedoria» (Ef 3, 10) do
turgia, começamos por acolhê-la. Esses grandes sacramentos são Espínto do Senhor. As suas energias são multiformes e os sacra-
<<sinais de aliança», marcas de fidelidade, «momentos» de união mentos que as celebram são «para os homens». Toda a economia
que o Senhor dá e confia à sua esposa no seu Espírito. As outras da salvação que conflui na liturgia é um desígnio de «condescen-
formas de celebrações são contingentes, embora todas as Igrejas dência» porque a sabedoria se habituou a conversar com os ho-
locais as tenham adaptado pouco a pouco, ao longo da história; a mens(').
nossa exigência crítica - ela própria alvo de crítica - dificilmente
as pode rejeitar em bloco. Na liturgia, a criatividade é também A celebração, festa da liturgia
uma energia do Espírito no coração da Igreja, e é autêntica desde
que a pedra de toque seja o mistério de Cristo. Uma palavra pode resumir o mistério da celebração como
A segunda resposta é também um facto da tradição e inspi- ep~fania da ~iturgia: a festa._ O termo «celebrar», que acabou por
ra-se na continuidade entre a economia e a liturgia. Antes da sua se impor hoJe em vez do «dizeD> ou do «fazeD> dos séculos deca-
Ressurreição, Cristo comportava-se diante dos homens com a dentes, orienta já, por si mesmo, para essa experiência da festa.
simplicidade e a verdade de uma pessoa viva. Com muito mais Não para «fazeD> de novo a festa, ou «dizer» as nossas agitações
razão agora, «tendo passado para os seus mistérios», Cristo, nos- inconscientes, mas para participar da festa da liturgia eterna. An-
so Deus, é ainda mais «humano» do que durante a sua vida mor- tes de puxar os cordões dos cenários que poderiam condicionar
tal. Na comunicação humana, a presença traduz-se através de um ambiente de festa, é este o momento decisivo de voltar à fon-
uma variedade de expressões: a palavra, o gesto, o silêncio, o te, ou nunca mais voltaremos. Celebrar a liturgia é entrar na ale-
olhar, a escrita ... Em cada um desses registos, somos nós mes- gria do Pai, a única que nos fará vibrar de júbilo com Cristo, no
mos que nos comunicamos, mas não com a mesma «presença» Espírito Santo (Lc 10, 21). Se a festa brota de um acontecimen-
em todos, indistintamente. Na relação de Jesus com a sua Igreja to feliz, será que percebemos que a Boa Nova consiste neste
e com cada um dos membros do seu Corpo, o dom da sua pre- momento, para nós, em sermos crucificados com Jesus para res-
sença possui uma gama de expressões ainda mais matizada. A suscitar com Ele? Uma festa celebra um encontro; mas para
começar pelo sacramento do seu Corpo, onde a sua presença é quem conduz o Espírito a esposa na celebração? Comemorar um
total, porque a sua Páscoa tudo contém, os outros sacramentos, acontecimento é fazer com que outros participem da nossa ale-
ou melhor, energias sacramentais, correspondem, com uma ver- gria; ora, em que é que uma celebração como a da unção de um
dade impressionante, à nossa sede de criatura humana e a todas doente ou do perdão dos meus pecados, vem a ser verdadeira-
as formas do desejo de Deus no homem. ment_e essa partilha que antecipa o reino? Cada um poderia pros-
No fundo, há uma grande diversidade de celebrações porque seg~lf essas perguntas para mergulhar de novo na inesgotável
a liturgia é tão pedagógica como a economia que ela realiza. novidade da festa que é oferecida em qualquer celebração.
Nesse mistério de aliança, a esposa não está sempre acordada e
presente como o esperaria «Aquele que Se entregou por nós». Os (') A «condescendência» (em grego synkatabasis) não tem, na Bíblia e nos Padres da
sons do registo sacramental revelam a secreta pedagogia do Es- Igreja, a tonalidade descolorida da linguagem moderna: ela evoca a ternura do Pai que se
debruça sobre os seus filhos para estar com eles e traduz o primeiro movimento da Pás-
pírito. Assim, uma celebração penitencial do tipo «liturgia da Pa- coa (sendo o segundo a Ascensão) que a efusão do Espírito Santo prossegue daí por dian-
lavra» ainda não é a celebração do sacramento da conversão com te. Sobre a Sabedoria, cf. Br 3, 38; Pr 8, 31; Jo J, 14.
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À luz do mistério da liturgia celeste, (8) duas condições são
exigidas pelas nossas celebrações festivas. Se, com efeito, uma
celebração é um momento intenso da vinda do Senhor, a primei-
ra exigência é a da fé e da conversão. Os dois planos de que nos
fala o Apocalipse - o drama da história e a sua liturgia eterna -
estão claramente presentes na celebração. Isso deveria ser uma
evidência deslumbrante para a nossa fé, mesmo que tudo em nós,
excepto o coração, estivesse na obscuridade. As nossas mãos to-
cam as chagas do Servo Crucificado e os nossos corações reco-
nhecem-no como o Senhor nosso Deus. Não se chega, porém, a
essa simplicidade da fé unicamente pelo facto de entrar numa
igreja e dar início a uma celebração. Ainda aqui é preciso per-
correr um caminho. Por esse motivo, a pedagogia da tradição li-
túrgica faz-nos sempre começar pela adoração e pelo reconheci-
mento do nosso pecado, antes de escutar o Verbo e de participar
no seu acontecimento salvador. Só pode aproximar-se da sarça
ardente na liturgia quem depuser as suas sandálias e se prostrar.
A segunda exigência remete-nos para a autenticidade da vida.
Como exultar de admiração e de acção de graças nas nossas ce-
lebrações - incluindo as dos defuntos - se o poder da Ressurrei-
ção não penetrar, dia após dia, o mais profundo do nosso pecado e
da nossa morte? Como participar da alegria do Pai, se não estiver-
mos continuamente impregnados da sua espantosa misericórdia?
Como cantar o cântico do Cordeiro, o do sangue dos mártires e o
da perseverança dos santos, se não rezarmos pelos nossos opres-
sores? E, já que não existe alegria, a não ser a pascal, na vida que
jorra da vitória sobre a morte, como celebrar a festa que é a litur-
gia, se não tivermos aprendido nas coisas pequenas do dia-a-dia
«a alegrarmo-nos nas angústias sofridas por amor de Cristo»
(2Cor 12, 10), como o Pai Se alegra no seu Filho muito amado?
(Mt 17, 5). Numa palavra, como poderemos celebrar a liturgia, se
não a vivermos? E o inverso também é vérdade: não podemos
vivê-la, se não a celebramos, como veremos na terceira parte.
Neste fluxo e refluxo do rio de vida que jorra do Pai e a Ele
volta em Cristo, os «momentos» das nossas celebrações são, por-
tanto, as manifestações da liturgia. São jorros sempre novos, em
nós e connosco.
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