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Pratica Da Psicoterapia Junguiana

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PRÁTICA DA PSICOTERAPIA

JUNGUIANA
Elaboração

Adonai Anderson da Silva Melo

Produção

Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................................................................................................................................................... 5

ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA.................................................................................................. 6

INTRODUÇÃO.............................................................................................................................................................................................. 8

UNIDADE I
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA........................................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1
A ESCOLA CLÁSSICA........................................................................................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 2
A ESCOLA ARQUETÍPICA.................................................................................................................................................................................. 16

CAPÍTULO 3
A ESCOLA DESENVOLVIMENTISTA............................................................................................................................................................. 20

UNIDADE II
CONCEITOS BÁSICOS DA MATRIZ CONSTITUINTE DA ESTRUTURA PSÍQUICA JUNGUIANA............................................................ 31

CAPÍTULO 1
FUNDAMENTOS CONCEITUAIS ACERCA DOS CONCEITOS DE EGO (CONSCIÊNCIA), INCONSCIENTE PESSOAL,

INCONSCIENTE COLETIVO E ARQUÉTIPOS............................................................................................................................................. 32

CAPÍTULO 2
FUNDAMENTOS CONCEITUAIS ACERCA DOS CONCEITOS DE SOMBRA, ANIMA VERSUS ANIMUS E OS

COMPLEXOS.......................................................................................................................................................................................................... 45

CAPÍTULO 3
A ABORDAGEM JUNGUIANA DOS SONHOS NO PROCESSO ANALÍTICO................................................................................... 60

UNIDADE III
CONSIDERAÇÕES CONCEITUAIS SOBRE O PROCESSO ANALÍTICO........................................................................................................... 68

CAPÍTULO 1
O PROCESSO ANALÍTICO: ENCARANDO A SOMBRA.......................................................................................................................... 68

CAPÍTULO 2
O ENCONTRO ANALÍTICO: TRANSFERÊNCIA/CONTRATRANSFERÊNCIA, ANÁLISE DIDÁTICA E SUPERVISÃO..... 73

CAPÍTULO 3
OS HONORÁRIOS NO PROCESSO DE ANÁLISE E SUAS NUANCES COMPENSADORAS NO SETTING ANALÍTICO......... 83

UNIDADE IV
PRÁTICA DA PSICOTERAPIA JUNGUIANA – ANÁLISE CONSTRUTIVA DE CASOS CLÍNICOS............................................................. 90

CAPÍTULO 1
ANÁLISE DE CONSTRUÇÃO DE CASOS...................................................................................................................................................... 91

CAPÍTULO 2
FASES DO DESENVOLVIMENTO ANALÍTICO (CASO ANIMUS)........................................................................................................ 97
Sumário

CAPÍTULO 3
ANIMUS INCONSCIENTE: ESTUDO DE CASO CARLA......................................................................................................................... 102

PARA (NÃO) FINALIZAR...................................................................................................................................................................... 111

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................................................................ 112

4
APRESENTAÇÃO

Caro aluno

A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se


entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade.
Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como
pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia
da Educação a Distância – EaD.

Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos


conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos
da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional
que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-
tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.

Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo


a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na
profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira.

Conselho Editorial

5
ORGANIZAÇÃO DO CADERNO
DE ESTUDOS E PESQUISA

Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em


capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de
textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam
tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta
para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos
Cadernos de Estudos e Pesquisa.

Provocação
Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto
antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para
o autor conteudista.

Para refletir
Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma
pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em
seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas
experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para
a construção de suas conclusões.

Sugestão de estudo complementar


Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do
estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Atenção
Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam
para a síntese/conclusão do assunto abordado.

6
Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa

Saiba mais
Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/
conclusões sobre o assunto abordado.

Sintetizando
Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando
o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Para (não) finalizar


Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a
aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo
estudado.

7
INTRODUÇÃO

Entre vários escritos na corrente da psicanálise freudiana, temos um grande arcabouço


teórico hoje disponibilizado nos centros de graduação e pós-graduação. O rompimento
de relações entre Freud e Jung geralmente é apresentado em textos introdutórios e
até mesmo mais avançados, como produto de uma luta de poder entre pai e filho
e da incapacidade de Jung de aceitar tudo o que a psicossexual idade supunha.
No contexto do mito de Édipo, o complexo do filho em relação ao pai não é tão fácil de
ser tratado como o complexo do filho em relação ao pai. É tentador esquecer os impulsos
infanticidas de Laio e, por isso, não vemos muitas análises distanciadas dos motivos
de Freud. No entanto, cabe ressaltar que as ações e intenções de Freud para com Jung
desempenharam um papel no mínimo tão importante quanto as atitudes de Jung em
relação a Freud, culminando no rompimento de relações e, posteriormente, a rivalidade.
A prática da psicoterapia analítica (junguiana) é um conjunto de conhecimentos
(teoria) que procura investigar e explicar a estrutura e o funcionamento da psique
e uma categoria de psicoterapia (prática) formulada inicialmente pelo psiquiatra
e psicólogo suíço Carl Gustav Jung. Após sua morte, a psicologia analítica passa a
receber reformulações pelos neojunguianos. É uma teoria/prática psicodinâmica
(enfatiza os fatores internos da psique – inconsciente pessoal e coletivo). Nesse contexto
clínico-teórico, passaremos a efetuar reflexões acerca da conquista de uma perspectiva
ampla do pertencimento ao contexto pessoal, cultural e histórico. No arcabouço teórico
que será apresentado nas unidades de estudos, teremos a base conceitual a respeito dos
complexos pessoais e culturais, e imagens arquetípicas, conceitos estes que emergem
à superfície da consciência e se mesclam com a consciência egoica para formar uma
imagem de si que é muito mais ampla do que antes de a análise começar.

Objetivos
» Ter o conhecimento constitutivo da base da matriz que constitui o arcabouço
teórico da psicologia analítica: o inconsciente pessoal, inconsciente coletivo
e arquétipos.

» Ter a compreensão das fases constituintes do processo analítico na psicoterapia


de orientação junguiana.

» Ter a compreensão dos conceitos relacionados à transferência e


contratransferência à luz da psicologia analítica.

8
CONTEXTO HISTÓRICO
DA PSICOLOGIA UNIDADE I
ANALÍTICA
Esta unidade apresentará o contexto histórico da colaboração dos trabalhos de C.
G. Jung que implementou o desenvolvimento das escolas: clássica, arquetípica e
desenvolvimentista. Jung criou as suas teorias em um momento particular da história,
fazendo uma síntese de uma vasta gama de conteúdos psíquicos pelo filtro da sua
própria psicologia pessoal. Esta unidade tratará brevemente nos capítulos 1, 2 e 3 a
herança deixada pela psicologia analítica que até o presente momento corrobora com
a práxis de muitos analistas e psicoterapeutas de orientação junguiana.

CAPÍTULO 1
A escola clássica

Por que abrimos nosso capítulo com o estudo da “escola clássica”? De acordo com Hart
(2011), a experiência que o autor compartilha conosco corrobora com seu período de
residência no Instituto C. G. Jung, de Zurique, que começou em 1948. O autor ressalta
que praticamente todos os professores e analistas haviam estado, ou ainda estavam,
em análise com o próprio Jung, de maneira que as descobertas e reflexões do mestre
(Jung) chegavam até eles com uma autoridade convincente. Além disso, no método de
Jung, tal como uma atitude de respeito pelos residentes, existia uma grande afinidade
entre Jung e os analistas em processo de formação.

Infere-se, nesse cenário de residentes em processo de formação, que a escola ‘clássica’


seria uma forma de psicanálise junguiana que via o trabalho analítico como contínua
descoberta mútua que torna a vida inconsciente consciente e, aos poucos, liberta uma
pessoa da falta de sentido e das compulsões. A abordagem clássica baseia-se no espírito
de diálogo entre consciente e inconsciente. Ela também considera, portanto, o ego
consciente algo extremamente indispensável ao processo todo, ao contrário da escola
arquetípica, para qual o ego é uma de muitas entidades arquetípicas.

Por outro lado, em contraste com a escola desenvolvimentista, a escola clássica define
o desenvolvimento não tanto por anos de idade ou por estágios psicológicos, mas pela
conquista individual do self consciente que só cabe ao indivíduo realizar. Essa posição

9
Unidade I | CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

ficará mais clara ao longo deste capítulo, assim como ficarão claras também posições e
indagações que decorrem da teoria e da prática clássica, por assim dizer, na sua forma
mais pura.
De acordo com Hart (2011), ser um analista junguiano clássico não significa exatamente
seguir e repetir a terminologia de Jung, mas adotar o método geral de análise que Jung
apresentou. Isso supõe, sobretudo, respeito por aquilo que é encontrado, respeito
pelo desconhecido, pelo inesperado, por aquilo que nunca se viu ou sentiu. Quando
Jung (1967 apud HART, 2011) preveniu a si mesmo, antes de começar a refletir sobre
o sonho de um paciente, dizendo: “não tenho nenhuma ideia do que esse sonho é”,
estava limpando a sua mente de pressupostos e postulados que pudessem solapar esse
respeito essencial ao paciente.
A atitude de respeito supõe que o inconsciente, de onde os sonhos vêm, deve ser levado
a sério, e que devemos deixá-lo emergir como é. Assim o sonho não é, como defendia
Freud (1900 apud HART, 2011), uma capa para o desejo reprimido que se disfarça
para encontrar uma forma de expressar-se; é a afirmação de um fato, da maneira que
as coisas são no domínio da psique. A sua tendência é fornecer ao consciente uma
foto do estado psicológico negligenciado ou descartado, por isso é uma ferramenta
valiosíssima para compreensão e diagnóstico.
A perspectiva de Jung sobre a religião e a atitude religiosa revela uma posição
similar de respeito. A religião é vista como uma consideração cuidadosa de potências
superiores e, portanto, como uma aceitação e um respeito por aquilo que é espiritual
e psicologicamente dominante na consciência individual. Isso significa, sobretudo,
as faculdades dentro do inconsciente, relevadas e vivenciadas por meio dos sonhos,
da imaginação, dos sentimentos ou da intuição. É esse mundo interior que precisa
ser observado e respeitado a fim de que o indivíduo chegue a um desenvolvimento
psicológico são e seguro.
A razão para essa ênfase no mundo interior é o fato de ele ser o caminho para alcançar
ou realcançar a verdadeira natureza do ser humano. Apesar de parecer que os seres
humanos são em potencial governados por forças externas – a começar pelos nossos pais,
cujo domínio sobre o nosso desenvolvimento é obviamente enorme -, os verdadeiros
dominadores da nossa vida psicológica são os centros de energia e as imagens que agem
em nós a partir de dentro e que se projetam sobre o mundo ao nosso redor (HART,
2011, p.158).
De acordo com Hart (2011), o que realmente ocorre dentro da psique primeiramente,
encontra-se de modo projetado, como se de fato estivesse “no exterior”. A projeção nos
10
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA | Unidade I

remete ao mundo, de modo tão convincente que é fácil pensar que somos totalmente
moldados por esse mundo. Jung (1967 apud HART, 2011) assevera que não começamos
nossa vida como uma tábula rasa, uma lousa vazia sobre a qual será escrito o que está
fora de nós. Em vez disso, o neonato surge desde o início como uma personalidade
distinta e única com seus próprios modos definidos de ir ao encontro da experiência
e responder a ela. Essa concepção é corroborada pela teoria junguiana dos tipos
psicológicos.

Conforme salienta Hart (2011), a introversão e a extroversão são duas formas


radicalmente diferentes de arrostar e julgar a experiência – aquela com referência
primordial às reações e aos valores internos, e às reações e aos valores do mundo
externo – sendo, contudo, entendidas como direções inatas a cada indivíduo. Assim o
são as chamadas funções da consciência: o pensamento, contraposto ao sentimento
(funções do juízo); e a sensação contraposta à intuição (funções da percepção).
Essas atitudes e funções intrínsecas podem ser suprimidas e distorcidas em resposta
a pressões culturais e ambientais, mas o resultado é um nível menos satisfatório de
desenvolvimento e florescimento da verdadeira natureza do indivíduo. A verdadeira
natureza é um fator, dado um potencial definido desde o nascimento.

Inferimos que, a partir desse entendimento a respeito da personalidade, a atitude de


respeito pelo que aparece, como foi mencionado acima, deve ser aplicada a nosso trabalho
como analistas com pessoas em análise. Observamos durante as sessões de análise o
que aparece no cliente – quer em sonhos, comportamento ou mesmo sintomas – como
esforços dessa personalidade singular para realizar-se. Jung (1967 apud HART, 2011)
supõe a existência de um si-mesmo como base e sustentáculo desse processo, ou seja,
um todo unificado do qual o ego consciente é apenas uma parte essencial.

O restante dos elementos trazidos ao setting analítico é formado pelo inconsciente,


ilimitado e incognoscível por definição, o qual se faz “conhecido” de todas as formas –
por sonhos, palpites, comportamento, até mesmo acidentes e eventos sincronísticos.
Uma vez que a personalidade total está procurando chegar à realização e à consciência,
pode-se supor – o que muitas vezes é confirmado pela experiência – que o si-mesmo é o
grande regulador e promotor da integridade psicológica. Por exemplo, fica claro quando
se trabalha com sonhos que eles regularmente encontram um modo de proporcionar
equilíbrio, apoio e correção à determinada atitude consciente do sonhador. Essa função
“compensatória” inegável desempenhada pelo si-mesmo prova seu papel como força
orientadora central no anseio contínuo de realizar o potencial do indivíduo.

11
Unidade I | CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

Em sua explicação do processo de individuação, Jung (1967 apud HART, 2011) inicia
seu trabalho analítico com o paciente a partir do acolhimento do lado sombrio, ou
seja, na aceitação da sombra com seus conteúdos latentes aparentes no setting analítico.
Esse passo se dá como a base inicial na escola clássica. No entanto, o reconhecimento da
sombra deve ser um processo contínuo ao longo de toda vida. Isso não significa apenas
ajudar a garantir estabilidade e mesmo sanidade, mas, à medida que o trabalho avança,
elementos reprimidos ou renegados da sombra tendem a emergir cada vez mais, como
se fossem encorajados pela crescente atitude consciente de aceitação e honestidade.

É nas bases de uma relação saudável entre o ego e a sombra que as maiores profundezas
da psique podem ser exploradas com segurança. Embora na experiência típica a
sombra possua o mesmo sexo que a personalidade consciente, há um arquétipo
contrassexual em outro nível psíquico. Jung (1971 apud HART, 2011) chama esse
arquétipo contrassexual de anima (no homem) e animus (na mulher). Essas figuras
interiores têm uma vida e uma personalidade distinta própria, derivada, em parte,
do arquétipo do feminino ou do masculino e, em parte, da experiência de vida
individual com a mulher ou o homem, que começa respectivamente com a mãe e o
pai. Ambas habitam as profundezas do inconsciente e são uma compensação para
a atitude da consciência e uma maneira de contornar a sua experiência unilateral,
seja ela a de um homem ou a de uma mulher.

Na clínica, no setting analítico, de forma natural, deparamo-nos enquanto analistas com


o animus e a anima, a princípio, de forma projetada. A sua natureza arquetípica lhes dá
a qualidade numinosa e fatal responsável pela força poderosa e fatal que acompanha o
ato de se apaixonar. Por exemplo, um homem que se apaixone à primeira vista pode
vivenciar uma mulher real como um tipo de deusa e investi-la de poderes inumanos,
positivos ou negativos. Uma percepção consciente dessa força interior pode, muitas
vezes, ocorrer em paralelo a uma descoberta da própria imagem contrassexual.

Essa descoberta pode, muitas vezes, ocorrer durante o processo analítico, durante
as sessões de análise, às vezes, quando se recorre ao recurso da ‘imaginação ativa’,
método este de vivenciar o próprio inconsciente enquanto acordado. O indivíduo
deliberadamente baixa o seu nível de consciência, quase sempre se concentrando em
uma cena de um sonho recente, até que o inconsciente produza espontaneamente uma
fantasia – que pode ou não estar relacionada com o sonho em questão. Diferente do
sonhar acordado, atividade muitas vezes ditada pelo consciente no desejo de realizar os
desejos, a imaginação ativa é caracterizada por sua natureza completamente autônoma.
O contato na imaginação ativa, com a anima ou com o animus, no caso da mulher, é

12
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA | Unidade I

uma nota distintiva da terapia junguiana e de sua ênfase em descartar as projeções e


assumir a maior responsabilidade possível pela própria vida psíquica (HART, 2011).

De acordo com Hart (2011), essas personalidades internas não só costumam ser
projetadas nos outros, sejam esses ‘outros’ reais ou imaginários, como também podem
conquistar o indivíduo consciente, em especial nos momentos de desgaste. Por exemplo,
um homem possuído ou dominado por sua anima pode tornar-se, por assim dizer,
uma ‘mulher inferior’, isto é, temperamental, ressentido e irracional. Diante de tais
elementos trazidos em narrativas desses homens, feridos, machucados, magoados, é
que observamos de forma espontânea uma forte atuação inconsciente da anima no
homem. Vale ressaltar que estamos apresentando conceitos gerais em dados contexto
clínicos, o que não se pode determinar que poderá surgir em todos os contextos clínicos
em processos distintos de análise.

Da mesma forma e modo, uma mulher que padece de uma possessão pelo animus
pode comportar-se como um ‘homem inferior’, isto é, pode tornar-se enérgica,
teimosa, demasiadamente objetiva e lógica. Parece que a típica opinião junguiana
é que, em relação, a anima negativa do homem é trazida à tona por uma erupção
prévia do animus negativo na mulher, ainda que geralmente o conflito seja causado
pelo segundo (animus).

Jung (1971 apud HART, 2011) considera essas figuras vitais, anima e animus, como
mediadoras do mundo inconsciente. É, portanto, crucial entrar em harmonia com elas.
Porque, apesar de a anima poder nos enfeitiçar, enganar e frustrar; é ela que conduz
o homem à vida no seu sentido mais verdadeiro: à sua vida emotiva e apaixonada, à
autodescoberta genuína e, por fim, à experiência do self, que é o ‘sentido’ em meio à
aparente falta de sentido da sua influência que nos parece, muitas vezes, caprichosa.
Como em todo trabalho de individuação, a chave é travar uma relação consciente com
essa vida dentro da psique; não se trata de estar simplesmente à sua mercê, mas de vê-la
e reconhecê-la por aquilo que é e dar-lhe o que é de direito. Precisamos observar a
necessidade de respeitar as forças que operam dentro de nós.

Para Jung (1971 apud HART, 2011), o conflito não só é inerente à estrutura psicológica
humana, mas essencial para o crescimento psicológico. Dadas as tendências e inclinações
opostas que já consideramos nos parágrafos anteriores, é obvio que a tarefa de se tornar
consciente significará suportar o conflito. Um exemplo simples, mas importantíssimo,
é aquilo que muitas vezes vivenciamos como o conflito entre cabeça e coração, ou
entre pensar e sentir. Cada um desses polos (anima e animus) opostos pode ser válido,
e o conflito, ainda assim, pode parecer insolúvel. Em tal situação, a maneira de

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Unidade I | CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

verdadeiramente melhorar a vida é suportar, da forma mais consciente possível, a


tensão entre esses opostos, sem suprimir nenhum deles, deixando-os sem solução.

A reconciliação dos opostos e o poder transformativo do símbolo encontram os seus


análogos em outro campo, ou seja, o estudo da alquimia medieval. A essência do trabalho
da alquimia é a transformação das substâncias dentro de um vasilhame hermético, ou
fechado, pois, nesse trabalho, é a própria imagem do trazer à consciência os elementos
separados da psique que os mantém dentro de um reservatório psíquico, deixando o
calor dessa união dar origem a uma transformação simbólica.

Jung (1971 apud HART, 2011) considerava o trabalho dos alquimistas essencialmente
como uma imagem dos processos alquímicos que eles entendiam como materiais, ou
seja, como uma projeção desses processos internos na matéria. O vasilhame alquímico
tornar-se, pois, a estrutura psíquica interna que suporta a tensão entre os opostos
e vivencia a emergência de uma resolução inteiramente nova – isto é, simbólica –,
expressa na imagem de uma substância mais nobre e preciosa destilada do material
bruto caótico com que se começou o trabalho.

O fato de que o trabalho da completude está envolvido no simbolismo alquímico é


demonstrado pela conjunção constante dos opostos no seu imaginário: o casamento
do Sol e da Lua, do fogo e da água, do rei e da rainha. Esta última conjunção forma
a base do estudo de Jung sobre os processos internos de transferência, essa relação
misteriosa e única que dá sustentação ao trabalho de individuação como ele ocorre
na análise. A transferência, para Jung (1971 apud HART, 2011), não é uma questão
unilateral, tampouco é a mera projeção de imagens paternais do cliente no seu
analista. Pode ser considerada um evento verdadeiramente simbólico em que ambas
as pessoas mudam um casamento interior que conduz, como é de se esperar, a um
terceiro ser novo, que abarca ambos os indivíduos e ao mesmo tempo os transcende.

De maneira geral, o desenvolvimento integral da vida de um indivíduo pode ser


analisado como uma emergência gradual para fora dos valores meramente pessoais
e dentro do sentido do self – para fora dos valores meramente pessoais e dentro do
sentido mais impessoal e coletivo. A primeira parte da vida é geralmente voltada para
o estabelecimento de bases mais seguras no mundo, por exemplo, educação, profissão,
constituição de família e identidade pessoal (base estruturante do ego). Na crise da meia-
idade, com a sua ubiquidade e importância, que Jung (2013) ajudou a esclarecer aos olhos
da mente mais conscientizada, como ele percebeu durante seus atendimentos clínicos
com esses pacientes, já na segunda fase da vida, é, no fim das contas, uma crise espiritual,
o desafio de buscar e descobrir um sentido para a vida (busca de um sentido interior).

14
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA | Unidade I

A psique, com as suas próprias e poderosas exigências de realizar-se, continuará a


confrontar a consciência com novas e inéditas visões do sentido e das possibilidades
da vida. É neste ponto que Jung (2013) vê o verdadeiro trabalho de individuação
começar, pois é a partir dele que passa a depender do alargamento da nossa consciência.
Sem um verdadeiro sentido das consequências dessa mudança para a própria vida, e
sem a vontade de fazer a viagem de descoberta interior, é possível que se possa cair no
desespero e em uma existência repetitiva, uma existência que, na verdade, só contemplará
o passar das horas até o fim. O desafio da segunda metade da vida é preparar-se para
a morte de uma maneira questionadora, inquisitiva e consciente, que aceita tanto as
dores da desilusão quanto o fascínio do crescimento rumo a visões sempre novas da
realidade espiritual e psicológica.

O que é, então, esta integridade que é o objetivo do trabalho psicológico? É a


consciência mais plena possível de tudo o que forma nossa própria personalidade,
e ela é abordada na autodisciplina constante, honesta e exigente, que Jung chama
de processo de individuação. Como já dissemos, tudo que é inconsciente em nós
primeiramente encontra-se em projeção, o processo envolve a remoção da projeção
e a assimilação de seu conteúdo naquele ser consciente ao qual ele pertence –
nosso próprio ser. Isso envolve a admissão cada vez maior de quem realmente
somos. “Admissão” é uma palavra adequada, pois o que está envolvido são seus
dois significados: tanto “confessar” quanto “deixar entrar”. O que reconhecemos
no curso da individuação é primeiramente aquele aspecto indesejável de nossa
natureza que Jung chama de sombra –formada por todas as tendências, motivos e
características pessoais que excluímos da consciência, deliberadamente ou não.
É claro que ela é tipicamente projetada nas outras pessoas; mas, se olharmos e
ouvirmos honestamente, também aprenderemos sobre ela e, consequentemente,
sobre nós mesmos, com nossos sonhos, com nossa autorreflexão e, não menos
importante, com as respostas dos outros. A admissão da sombra é condição
indispensável da individuação. Ela forma a única base segura a partir da qual
o trabalho analítico pode prosseguir, pois a sombra é a base da realidade e o
contrapeso da ilusão e “inflação”. Isso se aplica especialmente à análise junguiana
devido à natureza poderosa e inegável das imagens que ela exige que o paciente
confronte. De fato, Jung considera a inflação –a “identificação” inconsciente com
uma imagem encontrada em nossos sonhos ou outros produtos inconscientes –uma
consequência inevitável da apreensão inicial da realidade do si-mesmo por parte
do ego consciente. Alternativamente, o oposto pode ocorrer. A menos que o ego
seja forte o suficiente para manter sua própria identidade em face da experiência
do si-mesmo, ele pode não apenas ser “tomado” pelo si-mesmo, mas dominado
por ele para sempre. Jung referia-se a esse fenômeno como “possessão”, ou seja,
quando o ego é, por assim dizer, invadido por uma figura arquetípica como o si-
mesmo. (HART, 2011).

15
CAPÍTULO 2
A escola arquetípica

Apesar de Jung ter chamado a sua escola de pensamento de psicologia analítica,


poderia também tê-la nominado de psicologia arquetípica. Nenhum outro termo é
tão fundamental para a análise junguiana como arquétipo, no entanto, nenhum outro
termo é fonte maior de confusões acerca de sua definição. Parte da razão é o fato de
Jung (2013) ter definido arquétipos de maneiras diferentes em diferentes momentos.
Algumas vezes, falou dos arquétipos, que seriam formas inconscientes carentes de
conteúdo específico, e imagens arquetípicas, os conteúdos conscientes dessas formas.
Segundo Adams (2011), tanto Freud como Jung reconheceram a existência de arquétipos.
Freud os chamou de esquemas filogenéticos, ou protótipos filogenéticos. Freud e
Jung, em termos filosóficos, eram estruturalistas neokantianos que acreditavam que as
categorias hereditárias da psique informavam imaginativamente a experiência humana
de maneiras típicas ou esquemáticas.
James Hillman e outros junguianos iniciaram e apresentaram ao público, o que hoje
conhecemos como “escola arquetípica”.Entre o fim da década de 1960 e começo dos
anos 1970 foram sendo intensificadas as bases constituintes dessa abordagem. A escola
arquetípica surgiu em reação àquilo que os fundadores consideravam pressupostos
metafísicos desnecessários de Jung, e também contra a aplicação complacente e maquinal
da doutrina junguiana. Hillman (1960 apud ADAMS, 2011) prefere tratar a psicologia
arquetípica não como uma escola, mas sim como uma orientação ou abordagem.
De acordo com Adams (2011), a psicologia arquetípica é uma psicologia pós-junguiana,
uma elaboração crítica da teoria e da prática junguiana depois de Jung. Ou seja, a
psicologia pós-junguiana tem sido levada a sério ao longo dos últimos 30 anos, em
consultórios clínicos de especialistas no campo da saúde mental, com base de orientação
junguiana. E tal credibilidade é hoje vista como intensamente marcante nas clínicas,
por causa do analista junguiano norte-americano James Hillman. Apesar de existirem
hoje muitos psicólogos arquetípicos, Hillman (1983) permanece o mais proeminente
entre eles.
A escola arquetípica rejeita o substantivo ‘arquétipo’, embora mantenha o uso do adjetivo
‘arquetípico’. Para Hillman (1983 apud ADAMS, 2011), a distinção entre arquétipos e
imagens arquetípicas – que Jung considera comparáveis, respectivamente, aos números
e fenômenos kantianos – é insustentável, pois as inferências captadas nos settings
analíticos têm hoje um olhar integrado aos fenômenos inconscientes trazidos de formas
distintas pelos pacientes em seus mais amplos processos de autodesenvolvimento e

16
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA | Unidade I

autoconhecimento. Segundo Hillman (1983 apud ADAMS, 2011), tudo com o que os
indivíduos se deparam psiquicamente são imagens, isto é, fenômenos.

O arquétipo não é uma categoria, mas uma consideração – uma operação em


perspectiva que o indivíduo pode realizar em qualquer imagem. Considerar uma
imagem arquetípica é vê-la como tal, a partir de determinada perspectiva, para dotá-la
operacionalmente de tipicidade. Em perspectiva, um indivíduo pode arquetipificar
qualquer imagem. Basta considerá-la assim e desta forma ela será. Com efeito, a
escola arquetípica abarca aquilo que Jung tenta evitar: o que se chama ‘concretismo
metafísico’. Jung (1967 apud ADAMS, 2011) diz que qualquer tentativa de descrição
gráfica de um arquétipo sucumbe inevitavelmente ao concretismo metafísico, até
certo ponto, porque o aspecto qualitativo no qual aparece prende-se a ele, de modo
que não pode haver nenhuma descrição, a menos que seja feita em termos de uma
fenomenologia específica.

De acordo com Adams (2011), Hillman usa a expressão psicologia imaginal como
sinônimo de realidade, ele prefere o termo imaginal a imaginário, que tem a conotação
pejorativa de irreal. Segundo Hillman (1983 apud ADAMS, 2011), o imaginal é tão
real quanto ou até mais real que qualquer realidade externa. Tal atitude é idêntica à
que Jung estipulou para a prática da imaginação ativa, ou seja, a indução deliberada da
atividade imaginativa ao inconsciente. Ativar a imaginação, imaginar ativamente, requer
do indivíduo a consideração de imagens que emergem como se fossem autônomas e
com o mesmo status ontológico da realidade externa. De acordo com Adams (2011),
Hillman aplica esse método a todas as imagens, não apenas àquelas que surgem durante
a imaginação ativa. A psicologia imaginal é baseada no que Adams (2011) chama de
‘princípio da fantasia’.

O que podemos inferir desde contexto imaginal é que esta não é uma psicologia das
relações entre objetos. Adams (2011) e Hillman (1983) r explanam que as imagens
não são, de modo algum, redutíveis a objetos da realidade externa. A imaginação não
é algo secundário e derivativo, mas primário e constitutivo. Uma imagem não deriva
necessariamente de um objeto da realidade externa, se refere a ele ou corresponde
precisa ou exaustivamente a ele (ao objeto).

De fato, pode haver ou não um objeto. De acordo com Berry (1982 apud ADAMS,
2011), para a imaginação, qualquer questão acerca de um objeto referente é irrelevante.
O imaginal é bastante real à sua maneira, mas nunca porque corresponde a algo exterior.
Para os psicólogos que abarcam essa abordagem imaginal, a discrepância entre imagem
e objeto é um fato que simplesmente não pode ser eliminado da existência humana.

17
Unidade I | CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

Jung (2013) defende uma posição parecida quando trata das imagens psíquicas, ou
imagos, e daquilo que chama de interpretação em nível subjetivo. Ontologicamente,
afirma que a imagem psíquica de um objeto nunca é exatamente igual ao objeto.
Epistemologicamente, argumenta que os fatores subjetivos condicionam a imagem e
tornam difícil o conhecimento correto do objeto. Por conseguinte, diz que é essencial
que a imago não seja presumida como idêntica ao objeto. Em vez disso, é sempre
recomendável considerá-la uma imagem da relação subjetiva com o objeto. Segundo ele,
o objeto serve apenas como um veículo conveniente para transmitir fatores subjetivos.

Vale ressaltar que a análise de orientação junguiana tem um interesse histórico e


especial pela mitologia, em contraste com a análise freudiana. A psicologia imaginal
não se serve de mitos para fins meramente confirmativos. De acordo com Kohut (1981
apud ADAMS, 2011), é a continuidade intergeracional entre pai e filho que é “normal
e humana”, e não a luta entre gerações e dos desejos mútuos de morte e destruição
– por mais frequentes e gerais que sejam os traços desses produtos patológicos de
desintegração, a ponto de a análise tradicional nos fazer pensar que são um estágio
normal do desenvolvimento, uma experiência normal para o desenvolvimento psíquico
da criança.

A crítica de Hillman (1989 apud ADAMS, 2011) a respeito do mito de Édipo na teoria
e na prática psicanalítica tradicional é muito mais radical que a de Kohut. Segundo
Adams (2011), o problema é que o mito de Édipo foi o mito único e exclusivo ou, pelo
menos, o mais importante a ser usado pelos analistas nas suas interpretações por um
longo período de tempo (exemplo, a partir do início século XX). Infere-se que o mito
demonstra que a cegueira (psíquica em nível de neuroses) resulta da busca literal da
introspecção.

Nesse sentido, pode-se verificar no contexto analítico que a análise é, pois, um


método no qual o cego guia o outro, ou seja, o analista que alcançou a introspecção
depois do cego imprime introspecção a um Édipo, o analisando, que então fica cego.
Cabe ressaltar que esse único método tradicional de análise, único mito (Édipo) levou
a análise apenas a um modo de investigação: o método da introspecção heroica que
conduz à cegueira. Hillman (1989 apud ADAMS, 2011) argumenta que, se a análise
fosse se valer de outros mitos, além do Édipo, muito diferentes mitos com motivos
distintos, que perpassam o modelo de análise tradicional, o que pode, dependendo
do contexto analítico, estagnar o processo, por exemplo, Eros e Psique (relação de
encontros e desencontros, amor impossível), Zeus e Hera (fertilidade, procriação,
matrimonio), Áries (combate, rivalidade, raiva, destruição); entre outros.

18
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA | Unidade I

A psicologia imaginal é uma psicologia da alma, em vez de ser uma psicologia do Ego.
Na psicologia imaginal, o termo alma possui uma série de conotações bastante específicas,
sendo as mais importantes, talvez, de vulnerabilidade, melancolia e profundidade.
A construção da alma no mundo pressupõe um aprofundamento da experiência, em
que o ego que desce às profundezas do inconsciente apenas para individuar-se com
relação ao self e então retornar à superfície, consciente.

A psicologia imaginal é uma escola pós-estruturalista e pós-modernista, ou seja, com


afinidades importantes tanto com a psicologia semiótica de Jacques Lacan quanto com
a filosofia desconstrutivista de Jacques Derrida. Segundo Adams (2011), os teóricos
citados neste parágrafo abominam a psicologia do ego, que é de fato uma teoria sem
articulações e preceitos clínicos validados, analisáveis no setting analítico.

Conclui-se a partir dos aportes apresentados neste capítulo que a psicologia arquetípica
existe há menos de meio século, mas já prestou grandes serviços de forma analítica a
muitas pessoas que procuraram por analistas dessa escola. Ofereceu uma perspectiva
crítica e revisionista da análise junguiana clássica. Talvez a contribuição mais significativa
da psicologia arquetípica seja a ênfase na imaginação, tanto do ponto de vista cultural
quanto clínico. Neste sentido, a psicologia arquetípica revisou a própria noção do
conceito de imagem da análise junguiana tradicional.

19
CAPÍTULO 3
A escola desenvolvimentista

A psicologia analítica elaborada por Jung (2013) e seus seguidores imediatos não se
detinha nos aspectos psicológicos profundos do desenvolvimento do ciclo inicial do
recém-nascido e da criança. Tampouco dava muita atenção à utilidade de compreender
as variedades do relacionamento que podem ocorrer no consultório entre paciente e
analista.

Enquanto Freud e seus seguidores começavam a dar o salto imaginativo necessário


para ligar as duas áreas de investigação – as primeiras etapas de desenvolvimento e
os estados da mente por um lado, e a natureza da transferência e contratransferência
por outro – e incluí-las na teoria psicanalítica, a psicologia analítica demorou a seguir
o exemplo a despeito da insistência inicial e constante de Jung na importância do
relacionamento entre analista e paciente (SOLOMON, 2011).

De acordo com Solomon (2011), a ausência de uma tradição clínica e teórica de


investigação nos campos dos estados mentais infantis iniciais e transferência e
contratransferência – com a resultante falta de interesse pela compreensão de seu
inter-relacionamento por meio da análise da transferência infantil, empobreceu a
psicologia analítica num aspecto importante. Isso precisaria ser corrigido para que a
psicologia analítica continuasse a se desenvolver como atividade profissional e clínica
digna de crédito.

As contribuições consideráveis de Jung ao entendimento do funcionamento prospectivo


da psique, incluindo o si-mesmo, com base numa concepção da dialética do crescimento
e da transformação, estavam em risco de tornarem-se limitadas por causa da falta de
uma fundamentação completa na compreensão histórica e genética da atividade mental
inicial. Nos parágrafos seguintes, observaremos o contexto histórico pelo qual foram
apresentadas formas amplificadas de manejo teórico-prático a partir dos objetos de
pesquisa apresentados inicialmente por Jung.

Embora Jung não tenha dirigido suas pesquisas ao entendimento detalhado dos estados
mentais infantis, um exame do modelo junguiano da psique demonstra que esta não é
uma representação justa de suas investigações nos fundamentos da atividade mental.
Jung (2013), em geral, não achava que a criança tem uma identidade separada do
inconsciente de seus pais. Além disso, ele não estava especialmente interessado em
estudar as manifestações das primeiras experiências na transferência do paciente para o
analista. Ele considerava estas um assunto adequado à abordagem redutiva da psicanálise,

20
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA | Unidade I

a serem usadas quando fosse apropriado localizar e abordar as origens do conflito e


dos sintomas neuróticos presentes de um paciente em seus conflitos infantis iniciais.

De acordo com Solomon (2011), Jung estava interessado em formular um modelo da


mente que se preocupasse com aqueles estados superiores de funcionamento mental que
incluíam o pensamento, a criatividade e a atitude simbólica, e focalizou grande parte
de sua investigação psicológica na segunda metade da vida, durante a qual, acreditava
ele, esses aspectos tinham maior probabilidade de se manifestar. Ele dedicou grande
parte de sua própria energia criativa à exploração de alguns dos empreendimentos
culturais e científicos mais desenvolvidos ao longo dos séculos. Sua ênfase nos mitos,
nos sonhos e nas criações artísticas, bem como seu profundo conhecimento dos
textos alquímicos, e seu interesse pela nova física parecem tê-lo afastado do estudo
do desenvolvimento infantil, que parecia encaixar-se mais no âmbito da psicanálise,
com sua ênfase no exame das origens da atividade mental.

Conforme explana Solomon (2011), era quase como se, como os papas antigos diante
do mundo de então, Freud e Jung houvessem dividido o mapa da psique humana:
Freud e seus seguidores concentraram-se em suas profundezas, na exploração das
primeiras fases de desenvolvimento do início da infância, enquanto Jung e seus
seguidores concentraram-se em suas alturas, no funcionamento dos estados mentais
mais maduros, incluindo os estados criativos e artísticos responsáveis pela invenção
dos melhores objetivos culturais, espirituais e científicos da humanidade, estados que
Jung estudou como aspectos e atividades do si-mesmo.

Ressalta-se que essa divisão teórica da psique em alturas e profundezas poderia ser
compreendida como decorrente das diferentes atitudes filosóficas que informavam as
abordagens de Freud e Jung da psique. A psicanálise de Freud baseava-se no método
redutivo que procurava fornecer uma descrição detalhada do desenvolvimento
da personalidade desde suas origens mais remotas na infância do indivíduo.
A compreensão psicanalítica do desenvolvimento inicial baseava-se na ideia de que
uma reconstrução da psique era possível pela decodificação cuidadosa dos conteúdos
manifestos do funcionamento psicológico, reconstituindo o conteúdo oculto ou latente.
(SOLOMON, 2011).

Infere-se que o conteúdo manifesto era compreendido como representando um


meio-termo entre pressões inconscientes oriundas, por um lado, de impulsos libidinais
reprimidos (de origem psicossexual) e, por outro, das demandas do superego parental
internalizado. O objetivo da psicanálise era decodificar as evidências do nível manifesto
para revelar os conteúdos latentes reprimidos e ocultos da psique inconsciente a fim

21
Unidade I | CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

de elucidá-la e trazê-la à consciência. A tarefa do psicanalista era desvelar, por meio


da interpretação, os reais motivos e intenções ocultas nas comunicações do indivíduo,
uma abordagem epistemológica.

Segundo Solomon (2011), em contraste, a abordagem filosófica de Jung baseava-se


numa compreensão teleológica da psique, mediante a qual se considera que todos os
eventos psicológicos, inclusive os sintomas mais graves, têm um propósito e significado.
Em vez de serem vistos apenas como material reprimido e disfarçado do conflito infantil
inconsciente, eles também poderiam ser o modo como a psique havia encontrado a
melhor solução até então para o problema que a havia confrontado. Ao mesmo tempo,
eles poderiam atuar como ponto de partida para o crescimento e o desenvolvimento
ulteriores.

Além disso, o significado de tais sintomas era acessível à consciência por meio
do método analítico de interpretação, associação e amplificação. A abordagem
de Jung incluía um entendimento da contribuição das primeiras experiências no
desenvolvimento da personalidade, com base no acúmulo histórico das experiências
conscientes e inconscientes, e na interação desta história pessoal com os conteúdos
arquetípicos do inconsciente coletivo. Ele estava interessado nos processos de
integração e síntese desses aspectos, por meio dos recursos inatos do indivíduo de
atividade criativa e simbólica. Foi especialmente o estudo dessas capacidades que
levou Jung a explorar os processos que estão associados com o desenvolvimento
mental inicial (JUNG, 2013).

Conforme explicita Solomon (2011) na exploração das bases da personalidade,


Jung utilizou uma tática diferente daquela seguida anteriormente por Freud em seu
entendimento das fases de desenvolvimento da personalidade. Embora Jung sempre
tenha reconhecido a importância da compreensão psicanalítica das primeiras fases do
desenvolvimento infantil, seu interesse não era analisá-las por meio da regressão do
paciente na presença do analista, como faziam muitos psicanalistas. Em vez disso, ele
desenvolveu uma compreensão das bases da personalidade humana por meio de sua
própria exploração das estruturas psicológicas profundas da psique, que ele entendia
como os arquétipos do inconsciente coletivo.

Jung (2013) via que os arquétipos se expressavam por meio de certas imagens e símbolos
universais. Ele achava que essas estruturas profundas, estabelecidas ao longo dos tempos
e presentes em cada indivíduo desde o nascimento, estavam diretamente relacionadas e
influenciavam as criações artísticas e culturais humanas mais desenvolvidas, sofisticadas
e evoluídas. Ao mesmo tempo, ele pensava nessas estruturas profundas como a fonte

22
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA | Unidade I

dos sentimentos e comportamentos mais cruéis, primitivos e violentos dos quais os


seres humanos eram capazes.

Jung (2013) selecionou as informações para sua investigação clínica central por meio
de seu principal grupo de pacientes, ou seja, pacientes adultos com doenças mentais
graves, incluindo pacientes em estados psicóticos, e de sua própria autoanálise.
Jung concentrou sua atenção em pacientes cujos sintomas e patologias originavam-se
dos níveis mais primitivos de funcionamento do sistema psique-soma combinado.
A análise de suas comunicações perturbadas comparava-se a uma investigação dos
primeiros transtornos da experiência, sentimento, pensamento e relacionamento.

Solomon (2011) ressalta que particularmente por meio de seu trabalho com pacientes
psiquiátricos mentalmente doentes, bem como de sua própria autoanálise dramática e
perturbadora, Jung estudou as fontes e raízes da personalidade por meio das diversas
psicopatologias, expressadas pelas imagens arquetípicas do inconsciente coletivo.
Essas primeiras perturbações são atualmente vistas como patologias do si-mesmo,
pertencendo ao núcleo da personalidade, situadas evolutivamente mais cedo do que os
transtornos neuróticos que Freud analisou quando deu início à investigação psicanalítica.

Assevera-se que, entre alguns clínicos e teóricos junguianos, surgiu cada vez mais
o reconhecimento de que os tratamentos de pacientes adultos e de crianças eram
prejudicados pela falta de uma tradição de compreensão e análise íntima da estrutura
e dinâmica dos estados mentais infantis e de como estes poderiam manifestar-se na
transferência e contratransferência. Havia uma inquietação pelo receio de que a ênfase
junguiana nos estados mentais mais desenvolvidos, diferenciados, criativos e simbólicos
evitava a exploração do material primitivo mais difícil que poderia emergir naqueles
estados de regressão confrontados tão amiúde no consultório. (SOLOMON, 2011).

Conforme aponta Solomon (2011), em algumas instituições de treinamento, a ausência


de um entendimento teórico coerente dos estados mentais iniciais, incluindo os estados
psicóticos e psicossexuais, era vista como uma desvantagem. Diversos clínicos sentiam
a necessidade urgente de desenvolver um entendimento desse tipo que também
fosse coerente com o opus junguiano mais amplo. Era natural que isso levasse alguns
junguianos a recorrerem à psicanálise para obter um quadro mais claro da mente
infantil. Jung sempre insistira na importância de localizar as raízes da libido nas
primeiras etapas psicossexuais.

Diversas(os) clínicas(os) e teóricas(os) importantes, incluindo Melanie Klein, Wilfred


Bion, Donald Winnicott e John Bowlby, estavam estabelecidos em Londres, publicando

23
Unidade I | CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

trabalhos importantes durante as décadas de 1940, 1950, 1960 e, posteriormente,


elas(es) tornaram-se figuras centrais da “escola de relações objetais” que se desenvolveu
dentro da Sociedade Psicanalítica Britânica durante aquelas décadas e continuou a se
desenvolver a partir de então. Existem diversas linhas teóricas distintas dentro da escola
de relações objetais, e muitas(os) outras(os) teóricas(os) e clínicas(os) dignas(os) de nota
subsequentemente fizeram importantes contribuições ao campo (SOLOMON, 2011).

Contudo a principal bifurcação teórica gira em torno de se o bebê ou a criança são levados
a gratificar impulsos instintivos básicos mentalmente representados por personificações
de partes corporais, ou se o bebê ou criança são essencialmente motivados a ir em busca
do outro, um(a) cuidador(a) no primeiro caso, para ter com ele(a) um relacionamento
a fim de satisfazerem suas necessidades básicas, inclusive a necessidade de ter contato
humano e comunicação para aprender e crescer, bem como serem protegidos e nutridos.

Independentemente das fontes de divergência, o principal credo compartilhado


pelas diversas linhas da escola de relações objetais é a concepção de que o bebê não
é primordialmente guiado pelos instintos, conforme a formulação original da teoria
econômica de Freud, uma espécie de “biologia científica da mente” (KOHON, 1986
apud SOLOMON, 2011), sendo, em vez disso, possuidor desde o nascimento de uma
capacidade básica de relacionar-se com seus responsáveis importantes ou objetos, como
estes eram chamados. O termo “objeto” é um termo técnico e foi usado originalmente
na psicanálise para denotar outra pessoa que fosse objeto de um impulso instintual.

Klein (1986 apud SOLOMON, 2011) achava que o bebê era propenso a atribuir ao
outro motivações que, na verdade, eram experimentadas internamente pelo bebê, como
expressões de impulsos instintuais. A questão de se a experiência do objeto deveria ser
vista como aquela com uma pessoa real na situação real com o(a) cuidador(a), ou se
deveria ser vista unicamente como uma representação interna do próprio repertório
instintual do bebê, tornou-se foco de debates e controvérsias teóricas acaloradas.

Ao mesmo tempo, em Londres, durante as décadas em que a teoria das relações


objetais estava sendo desenvolvida, o Dr. Michael Fordham e alguns de seus colegas
fizeram treinamento como analistas junguianos e fundaram a Sociedade de Psicologia
Analítica, na qual estabeleceram treinamento analítico para aqueles que trabalhavam
com adultos e, posteriormente, com crianças (SOLOMON, 2011).

De acordo com Solomon (2011), houve um grande interesse por analistas que trabalhavam
com crianças em lerem com atenção as contribuições psicanalíticas inovadoras.
Eles iniciaram pesquisas que procuravam elaborar uma teoria coerente do desenvolvimento

24
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA | Unidade I

infantil, compatível com a tradição junguiana, e que ao mesmo tempo pudesse


beneficiar-se com as novas descobertas e técnicas psicanalíticas pertinentes e, em certa
medida, as incorporassem, particularmente aquelas relacionadas ao desenvolvimento
inicial do bebê e à transferência e contratransferência. Um exame mais atento desses
desenvolvimentos teóricos permitirá uma maior compreensão de por que houve tanto
interesse entre certos junguianos nessas áreas de investigação psicanalítica.

Algumas(ns) clínicas(os) junguianos consideraram o desenvolvimento kleiniano a


mais acessível das investigações psicanalíticas da vida mental inicial. A concepção
de Klein do corpo ou das experiências de base instintiva como a raiz de todos os
conteúdos e processos psicológicos repercutiam as descobertas de Jung relativas à
existência de estruturas psicológicas profundas, as quais tinham por base as experiências
instintuais e eram representadas mentalmente por imagens arquetípicas. Desta forma,
as investigações de Jung poderiam ser ligadas à visão redutiva da psique, na medida em
que ele investigou, como Klein, as primeiras fases da vida mental desde suas próprias
raízes, as primeiras representações mentais das experiências instintuais. Estas imagens
mentais de experiências de base corporal eram chamadas de imagens arquetípicas por
Jung, ao passo que Klein as chamava de objetos parciais (SOLOMON, 2011).

Jung (2013), em seu trabalho com adultos psicóticos, e Klein (1990), em seu trabalho
com a criança pré-edipiana, investigaram essencialmente a área da psique que ainda
não havia chegado às etapas edipianas posteriores de desenvolvimento da primeira
infância, nas quais tanto os aspectos bons (protetor, favorável ou estimulante) quanto
ruins (frustrante, agressivo ou limitado) da mesma pessoa podem ser simultaneamente
mantidos na mente do bebê. Para indicar a conquista gradual da capacidade de relacionar-
se com o(a) cuidador(a), tanto em seus aspectos bons quanto ruins, a linguagem de
Jung usava termos como “integração e síntese dos opostos”.

A linguagem kleiniana criou o termo “objeto total” para expressar essa capacidade
de manter simultaneamente na mente tanto experiências positivas quanto negativas
e de ter conhecimento de sentimentos ambivalentes em relação ao(à) cuidador(a).
De acordo com Solomon (2011), tanto para Jung quanto para Klein, essa capacidade
não poderia estar invariavelmente disponível, e o indivíduo sempre vacilaria entre
maior ou menor capacidade nessas áreas.

Não importando a linguagem escolhida, tanto Jung quanto Klein sugeriram a existência
de estruturas mentais inatas profundas que se ligavam diretamente às primeiras
experiências biológicas e instintuais do bebê e lhes serviam de veículos, expressadas em
termos de figuras arquetípicas (Jung) ou partes de objetos (Klein). Ambos compreendiam

25
Unidade I | CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

que as experiências que surgem por meio dessas estruturas inatas profundas são
mediadas pelas experiências reais do ambiente real, pela qualidade do cuidado e da
criação disponibilizados pelas(os) cuidadoras(es) do ambiente. O atrativo particular
de Klein, principalmente para os junguianos londrinos que desejavam incorporar a
análise de material infantil em sua prática clínica, era a sólida fundação no trabalho
com crianças que ela aplicou ao entendimento da atividade dos estados mentais iniciais
nas experiências de pacientes adultos (SOLOMON, 2011).

Klein (1990) havia dado uma contribuição crítica à psicanálise por meio do desenvolvimento
de sua técnica lúdica, uma adaptação e aplicação da técnica psicanalítica tradicional ao
tratamento de crianças muito jovens. Tendo maior liberdade para desenvolver suas
ideias dentro do contexto psicanalítico de Londres do que quando estava em Viena ou
Berlim, Klein (1990) desenvolveu métodos de análise de crianças observando-as brincar,
o que lhe permitiu contribuir substancialmente para o entendimento psicanalítico dos
estados infantis iniciais da mente.

A partir de seu trabalho analítico com crianças, ela inferiu estados e processos
mediante os quais o bebê e a criança organizavam suas percepções e experiências,
tanto mentais quanto físicas, em termos de impulsos motivados envolvendo áreas
ou partes corporais localizadas internamente ou no(a) cuidador(a) (geralmente, a
princípio, a mãe).

Klein (1990) achava que o objetivo dessa organização mental inicial era proteger o
Si-mesmo emergente dos perigos criados pelos estados emocionais excessivos, tais
como raiva, ódio, ansiedade e outras formas de desintegração mental. Posteriormente,
Klein pensava que esses estados intensamente negativos seriam dirigidos de volta ao
Si-mesmo se as(os) cuidadoras(es) fossem incapazes ou inadequados para responder
a eles. Klein considerava esses impulsos destrutivos voltados contra o si-mesmo
expressões de um instinto de morte inato.

Para proteger a si mesma dos estragos decorrentes da experimentação de emoções


poderosas de ódio, agressão e inveja existentes dentro do si-mesmo, a criança ativaria
o que se chamou de defesas primitivas Klein (1946) apud Solomon (2011). Assim
como o bebê ou a criança pequena não são desenvolvidos fisicamente o suficiente para
executaremsozinhos atividades complexas, de integração e de adaptação ao nível físico,
sendo dependente para sua sobrevivência e proteção física das capacidades de cuidado
dos outros, também o aparelho mental do bebê não é suficientemente desenvolvido
para administrar sozinho as tarefas mentais de pensamento, percepção, filtragem e
seleção emocional adequadas para sua autoproteção, sem a ajuda de um(a) cuidador(a).

26
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA | Unidade I

Cabe ressaltar aqui que Klein (1990) entendia que, a fim de organizar estas impressões
mentais e físicas tão poderosas que poderiam ameaçar danificar ou destruir o senso de
si-mesmo, o bebê normalmente procuraria estabelecer sozinho uma organização mental
rudimentar, principalmente quando de modo geral não recebia cuidado adequado.
Os processos pelos quais essa organização ocorria incluíam atividades mentais tais
como cisão, idealização e identificação.

Klein (1990) desenvolveu o conceito de posição esquizoparanoide para descrever


o que acontece quando o bebê está sobrecarregado de sentimentos de uma possível
aniquilação da integridade do si-mesmo enquanto sistema psique/soma. A consequente
ansiedade de que o si-mesmo será invadido por emoções negativas resulta em impulsos
agressivos dirigidos à fonte do mau sentimento, onde quer que se sinta que ele está.
O instinto de morte foi assim entendido como a experiência dos impulsos agressivos
dirigidos para o interior. Os aspectos destrutivos e invejosos do si-mesmo poderiam
tornar-se desprendidos dos aspectos amorosos e zelosos do si-mesmo com o medo
resultante de que a fonte de bondade tivesse sido destruída. A defesa contra esta
experiência negativa esmagadora era a cisão do si-mesmo ou cisão do(a) cuidador(a)
em características apenas boas ou apenas ruins.

Klein descreveu uma fase de desenvolvimento subsequente, chamada de posição


depressiva, na qual o bebê poderia experimentar sentimentos de remorso e preocupação
com os efeitos de seus ataques agressivos à representação interna do(a) cuidador(a)
ou ao(à) cuidador(a) externo real. Isso ocorria quando o bebê compreendia que seu
amor e ódio eram dirigidos à mesma pessoa. Experimentar a pessoa como um todo
causava sentimentos inconscientes de ambivalência e um impulso de reparar o outro
danificado, com base na culpa inconsciente (KLEIN, 1990).

De acordo com Solomon (2011), a ênfase de Klein nos afetos experimentados em relação
às funções importantes das(os) cuidadoras(es), ou objetos, em relação ao si-mesmo
fez com que ela fosse considerada a fundadora da escola britânica de relações objetais.
Assim como a teoria de Jung entendia as imagens arquetípicas como figuras personificadas
inatas à psique, dando representação mental a experiências instintuais carregadas
de afeto, também Klein (1990) pensava a representação interna de cuidadoras(es)
importante, ou partes de seus corpos como, por exemplo, o seio, como a fonte dos
afetos.

Diante dos estudos acompanhados por Klein (1990),ela achava que as experiências das
crianças das(os) reais cuidadoras(es) eram secundárias às concepções e experiências
inatas que a criança tinha em relação àquele aspecto do(a) cuidador(a) com o qual a

27
Unidade I | CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

criança estava relacionando-se instintivamente em qualquer momento particular de


seu desenvolvimento. Por exemplo, se as necessidades orais fossem predominantes,
então a criança teria “phantasias” sobre o funcionamento do seio e da boca.

Apesar de Klein reconhecer a importância da qualidade da interação do bebê com


suas(seus) cuidadoras(es), sua ênfase nas bases instintuais das relações com os outros
fez com que ela nem sempre fosse incluída numa lista de teóricos das relações objetais,
uma vez que seu trabalho enfatizava mais a dinâmica do mundo interno do bebê do
que seus relacionamentos externos.

Um credo básico da abordagem teórica de Jung (2013) referia-se à importância da


qualidade da mediação ambiental da experiência inicial. Isso tinha um paralelo na
compreensão da importância da qualidade de interação entre paciente e analista no
consultório. Jung havia escrito extensamente sobre certos aspectos da transferência
e contratransferência, tanto no contexto clínico quanto no imaginário por meio do
exame da imagética alquímica.

Jung (2013) não havia estudado em profundidade o conteúdo infantil nas relações entre
paciente e analista. Muitos junguianos londrinos consideraram a abordagem clínica de
Winnicott do relacionamento complexo e sensível entre bebê e mãe, e entre paciente
e analista, particularmente compatível com sua própria prática analítica. A visão de
Winnicott (1964 apud SOLOMON, 2011) de um si-mesmo que se desenvolve em
relação a outro encontrou repercussões na concepção junguiana há muito existente de
que o desenvolvimento do si-mesmo e outros potenciais arquetípicos eram mediados
pela interação com fatores ambientais, inclusive as(os) outras(os) cuidadoras(es)
importantes, bem como com a(o) analista.

Winnicott (1964 apud SOLOMON, 2011) estava especialmente interessado no papel


crucial do brincar e da ilusão no desenvolvimento do si-mesmo e sua capacidade de
imaginação e criatividade. Ele achava que era pelos gestos espontâneos do brincar que o
senso de si-mesmo se desenvolvia em relação ao outro. Numa formulação tipicamente
paradoxal, Winnicott propôs a concepção de que o verdadeiro si-mesmo do indivíduo,
o sentimento de singularidade e de ser real, acontecia por meio de momentos de ilusão,
nos quais o mundo interior se encontrava e se envolvia como o mundo exterior, e os
limites entre os dois tornavam-se indistintos.

Winnicott (1964 apud SOLOMON, 2011) partilhava da visão teleológica de Jung da


natureza humana. Sua premissa básica era a de que, com um “ambiente suficientemente
bom”, o bebê e a criança teriam todas as chances de desenvolver-se, crescer e ser

28
CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA | Unidade I

criativo, a despeito das falhas e frustrações inevitáveis nas condições ambientais.


Essa concepção reconhecia que, em grande parte, a proteção física e psicológica do
bebê era dependente das capacidades de suas(seus) cuidadoras(es) de mediar estímulos
nocivos internos e externos.

Essas capacidades nas(os) cuidadoras(es) adultas(os) eram elas mesmas baseadas em


processos de identificação,contudo, com uma adequada capacidade de empatia que seria
ela mesmo produto de condições ambientais suficientemente boas, o(a) cuidador(a)
adulto(a) usaria estas técnicas sutis de compreensão de um modo que permitisse ao
bebê ou criança suportar frustrações inevitáveis em seu desenvolvimento e descobrir
soluções criativas para as tarefas maturativas que enfrentavam.

À medida que a teoria e a prática clínica desenvolviam-se e influenciavam uma à outra,


nos meados deste século, em Londres, o status de conceitos como objetos internos e
externos foi tornando-se cada vez mais crucial. Os trabalhos de Wilfred Bion eram de
particular interesse para certos junguianos londrinos que focalizavam grande parte de
sua atenção clínica nas questões referentes à intersubjetividade de paciente e analista
e aos fundamentos do pensamento e da geração de significado. Bion (2004 apud
SOLOMON, 2011) demonstrou como as primeiras formas de comunicação baseadas
na identificação projetiva poderiam ser compreendidas como formas normais de
processos empáticos entre bebê e cuidador(a).

Os trabalhos de Bion disponibilizaram novos modos de pensar sobre certos aspectos da


transferência e da contratransferência nos quais a(o) analista poderia experimentar a si
mesma(o), respondendo (à)ao paciente ou comportando-se com ela(e) de um modo que
refletisse o conteúdo projetado do seu mundo interior. Em formulações posteriores,
Bion (2004 apud SOLOMON, 2011) concebeu a identificação projetiva em termos
dinâmicos intrapsíquicos, em que partes do si-mesmo eram vistas comportando-se
de maneira autônoma. Por exemplo, aspectos indesejáveis do si-mesmo poderiam ser
projetados em objetos externos, depois identificados como agentes persecutórios ou
prejudiciais e reintrojetados (SOLOMON, 2011).

Este capítulo procurou oferecer uma compreensão do contexto histórico, perpassando


pela construção teórica e clínica da psicologia analítica na Inglaterra, e que deu origem
à chamada “escola desenvolvimentista londrina”. Trata-se inevitavelmente de um
apanhado geral que não incluiu os trabalhos de muitas(os) psicanalistas e psicólogas(os)
analíticas(os), tanto na Inglaterra quanto em outros países, que contribuíram com
avanços na teoria do desenvolvimento dos estados mentais infantis, e na teoria do
papel central da transferência e contratransferência na prática analítica.

29
Unidade I | CONTEXTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

Em Londres, nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, estavam


ocorrendo investigações psicanalíticas vigorosas, decorrentes das análises de
pacientes adultas(os)e de crianças muito jovens, bem como de conclusões extraídas
mediante uma tradição cada vez maior de observações meticulosas de bebês
conduzidas durante muitos anos, sobre o desenvolvimento dos primeiros estados
mentais do bebê e como estes poderiam ser identificados no relacionamento
analítico. Igualmente importantes foram as descobertas sobre o papel crucial da
responsividade interior da(o) analista às informações presentes nas comunicações
pré-verbais muitas vezes sutis e muitas vezes significativas da(o) paciente
(SOLOMON, 2011).

30
CONCEITOS
BÁSICOS DA MATRIZ
CONSTITUINTE DA UNIDADE II
ESTRUTURA PSÍQUICA
JUNGUIANA
Nesta unidade, apresentaremos um estudo sistemático acerca da base da matriz
constituinte da estrutura psíquica junguiana e aspectos que corroboram com a teoria
e prática da psicologia analítica. De um lado, uma apresentação teórica e vitalmente
necessária diante do fato de que muitas(os) analistas em formação, ou já formadas(os),
interessadas(os) enfrentam grandes dificuldades em apreciar o significado da contribuição
de Jung para o pensamento moderno. De outro lado, uma apresentação adequadamente
lógica e sistemática e quase impossível devido à natureza do assunto. A psique não
opera de acordo com as linhas da· nossa racionalidade costumeira,entretanto esse
paradoxo talvez seja apropriado, já que um dos grandes temas de Jung é o paradoxo
e sua reconciliação.

31
CAPÍTULO 1
Fundamentos conceituais acerca
dos conceitos de ego (consciência),
inconsciente pessoal, inconsciente
coletivo e arquétipos

O inconsciente não se resume apenas a conteúdos reprimidos, mas a todo material


psíquico que subjaz o limiar da consciência. Além do material reprimido, o inconsciente
contém todos aqueles componentes psíquicos subliminais, inclusive as percepções
do sentido. O inconsciente também inclui componentes que ainda não alcançaram
o limiar da consciência. O inconsciente não é apenas um repositório de recordações
pessoais reprimidas ou experiência esquecida.

Figura 1. Camadas do Inconsciente (psicologia analítica).

Ego
consciência

Inconsciente
pessoal
Inconsciente coletivo

Fonte: elaborada pelo autor.

Ego (Consciência)
Iniciamos nossos estudos acerca das bases constituintes da psicologia analítica ou
profunda, desenvolvida por C. G. Jung, o qual, embora estivesse mais interessado
em descobrir o que havia por baixo da consciência, nas regiões interiores da psique,
assumiu também a tarefa de descrever e explicar a consciência humana. Ele desejava
criar um mapa completo da psique, de modo que isso foi inevitável: a consciência do
32
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

ego é uma característica primordial do território que ele estava explorando. Segundo
Stein (2006), Jung não pode realmente ser qualificado como um psicólogo do ego,
mas, de fato, atribuiu um valor social ao ego, ofereceu uma descrição das funções do
ego e reconheceu a importância crítica de maior consciência para o futuro da vida
humana e para a cultura.

Cabe ressaltar que, além disso, Jung (2015) tinha uma noção perfeita de que a consciência
do ego é, per se, a condição prévia para a investigação psicológica. É a ferramenta.
O nosso conhecimento como seres humanos sobre qualquer coisa é condicionado
pelas capacidades e limitações da nossa consciência, portanto estudar a consciência é
dirigir a atenção para o instrumento que se está usando para a investigação e exploração
psicológicas.

De acordo com Stein (2006), Jung escreveu muito sobre consciência do ego em
grande parte de suas obras publicadas. Nestes próximos parágrafos, serão examinados
inicialmente o primeiro capítulo, intitulado “O Eu”, de um de seus últimos livros, “Aion
– Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo”, assim como alguns textos e passagens
afins. “Aion” pode ser lido em muitos níveis diferentes de aprofundamento da teoria
junguiana (JUNG, 2013). É uma obra dos últimos anos de Jung e reflete seu profundo
envolvimento com a história intelectual e religiosa ocidental e seu futuro, bem como
os seus mais detalhados pensamentos acerca do arquétipo do Si-mesmo. Os primeiros
quatro capítulos foram adicionados ao livro mais tarde, a fim de dotar o novo leitor
com uma introdução a sua teoria psicológica geral e oferecer um ponto de entrada no
vocabulário da psicologia analítica.

Jung (2013) define o “ego” nos seguintes termos: “entendemos por ego aquele fator
complexo com o qual todos os conteúdos conscientes se relacionam. É este fator que
constitui, por assim dizer, o centro do campo da consciência, [...], o ego é o sujeito
os atos pessoais de consciência”. A consciência é um campo e aquilo que ele chama
aqui de personalidade empírica é a nossa personalidade tal como a conhecemos e a
vivenciamos diretamente. O ego, como sujeito de todos os atos pessoais de consciência,
ocupa o centro desse campo. O termo ego se refere à experiência que a pessoa tem de
si mesma como um centro de vontade, desejo, reflexão e ação. Essa definição do ego
como centro da consciência se mantém constante do começo ao fim dos escritos de Jung.

Jung (2013, p. 13) dá prosseguimento a esse texto com um comentário sobre a função
do ego dentro da psique: “a relação de qualquer conteúdo psíquico com o ego funciona
como critério para se este último é consciente, pois não há conteúdo consciente que
não se tenha apresentado antes ao sujeito”. O ego é um “sujeito” a quem os conteúdos

33
Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

psíquicos são apresentados. É como um espelho. Além disso, a ligação com o ego é
a condição necessária para tornar qualquer coisa consciente – um sentimento, um
pensamento, uma percepção ou fantasia. O ego é uma espécie de espelho no qual a
psique pode se vê a si mesma e se tornar consciente. Quando um conteúdo psíquico
só é vago, ou marginalmente consciente, é porque não foi ainda captado e mantido
em seu lugar na superfície refletora do ego.

Observa-se que em seus escritos, Jung (2013) se refere frequentemente ao ego como
um “complexo”. Na passagem do “Aion”, ele o chama, entretanto, simplesmente de um
conteúdo específico da consciência, afirmando que a consciência é uma categoria mais
ampla do que o ego e contém mais do que somente o ego. O que é então a consciência,
esse campo onde o ego está localizado e cujo centro é por este último ocupado e definido?
A consciência é muito simplesmente o estado de conhecimento e entendimento de
eventos externos e internos. É o estar desperto e atento, observando e registrando o
que ocorre no mundo, em torno e dentro de cada um de nós.

Ressaltamos que o ego, assim como a consciência, também transcende e sobrevive


ao conteúdo específico que, em qualquer momento determinado, ocupa o quarto
da consciência. O ego é o ponto focal do interior da consciência, a sua característica
mais central e talvez mais permanente. Inferimos nesse momento que, sem um ego,
a própria consciência se torna discutível. É verdade que certas funções do ego podem
ser suspensas ou aparentemente obliteradas sem destruir a consciência por completo
e, assim, uma espécie de consciência sem ego, um tipo de consciência que apresenta
muito poucas provas evidentes de um centro obstinado, de um eu, é uma possibilidade
humana, pelo menos durante curtos períodos de tempo.

Inferimos que o ego não é fundamentalmente constituído e definido pelos conteúdos


adquiridos da consciência, tais como as identificações momentâneas ou mesmo crônicas.
Ressaltamos aqui que é algo como um espelho ou um imã, que seguram um conteúdo
num ponto focal da consciência, no entanto também quer e age. Como centro vital
da consciência, precede a aquisição da linguagem, a identidade pessoal e até mesmo
o reconhecimento do próprio rosto e nome, são conteúdos que se aglomeram em
torno desse centro de consciência e têm o efeito de definir o ego e ampliar a sua faixa
de comando executivo e autoconhecimento. Fundamentalmente, o ego é um centro
virtual de percepção consciente que existe, pelo menos, desde o nascimento.

De acordo com Stein (2006), o ego focaliza a consciência humana e confere a nossa
conduta consciente sua determinação e direção. Porque temos um ego, possuímos a
liberdade para fazer escolhas que desafiam os nossos instintos de autopreservação,

34
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

propagação e criatividade. O ego contém a nossa capacidade para dominar e manipular


vastas somas de material dentro da consciência. É um poderoso imã associativo e
um agente organizacional. Um ego forte é aquele que pode obter e movimentar de
forma deliberada grandes somas de conteúdo consciente. Um ego fraco não pode
fazer grande coisa desse gênero de trabalho e sucumbe mais facilmente a impulsos e
reações emocionais. Um ego fraco é facilmente distraído e, por consequência, carece
de foco e motivação consistente.

Observa-se que todo o território da psique é quase completamente coincidente com


a extensão potencial do ego. A psique, conforme Jung define nesta passagem, está
restringida por e limitada a, aonde o ego pode, em princípio, chegar. Ou seja, isto não
significa, entretanto, que a psique e o ego são idênticos, uma vez que a psique inclui o
inconsciente e o ego está mais ou menos limitado à consciência. Mas o inconsciente é
pelo menos potencialmente acessível ao ego, mesmo se o ego, na realidade, não tiver
muita experiência de contatos com ele.

Nos escritos das obras clássicas de Jung (2013), fica claro quando ele assevera o ego
sendo uma forma no centro crítico da consciência e, de fato, determina em grande
medida que conteúdos permanecem no domínio da consciência e quais se retiram,
pouco a pouco, para o inconsciente. O ego é responsável pela retenção de conteúdos
na consciência e também pode eliminar conteúdos, deixando de refleti-los, ou seja, o
ego pode reprimir conteúdos que não lhe agradam ou que considera intoleravelmente
penosos ou incompatíveis com outros conteúdos. Também pode recuperar conteúdos
da armazenagem no inconsciente (banco de memória) desde que não sejam bloqueados
por mecanismos de defesa, como a repressão, os quais mantêm os conflitos intoleráveis
fora de alcance e tenham uma ligação associativa suficientemente forte com o ego, isto
é, foram apreendidos com suficiente solidez.

Na sua obra “Aion”, Jung (2013) assevera que o ego se assenta em duas bases: uma
somática (corpórea) e uma psíquica. Cada uma dessas bases é constituída de múltiplas
camadas e existe parcialmente na consciência, mas, sobretudo, no inconsciente. Dizer
que o ego se assenta em ambas é dizer que as raízes do ego mergulham no inconsciente.
Em sua estrutura superior, o ego é racional, cognitivo e orientado para a realidade, mas
em suas camadas mais profundas e escondidas está sujeito ao fluxo da emoção, fantasia
e conflito, e às intrusões dos níveis físico e psíquico do inconsciente. O ego pode,
portanto, ser facilmente perturbado por problemas somáticos e por conflitos psíquicos.

Jung (2015) acentua que, além do material reprimido, o inconsciente contém todos
aqueles componentes psíquicos subliminais, inclusive as percepções subliminais

35
Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

dos sentidos. Além disso, tanto por uma farta experiência como por razões teóricas,
o inconsciente também inclui componentes que ainda não alcançaram o limiar
da consciência. Constituem, assim, as sementes de futuros conteúdos que virão à
consciência. Por meio dessa psicodinâmica, é possível verificar, no contexto clínico,
que há razões para supor que o inconsciente jamais se encontra em repouso pleno, no
sentido de permanecer inativo, mas será sempre empenhado em agrupar e reagrupar
seus conteúdos. Só em casos patológicos, tal atividade pode tornar-se completamente
autônoma; de um modo normal, ela é coordenada com a consciência, numa relação
compensadora.

O inconsciente pessoal
Há uma camada mais ou menos superficial do inconsciente que podemos entender,
neste primeiro momento, enquanto inconsciente pessoal. Este repousa, porém, sobre
uma camada mais profunda, que já não tem origem em experiências ou aquisições
pessoais, sendo inata. Os conteúdos dos inconscientes são de natureza pessoal quando
podemos reconhecer em nosso passado seus efeitos, sua manifestação parcial ou, ainda,
sua origem específica. Os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente os
complexos de tonalidade emocional, que constituem a intimidade pessoal da vida
anímica.

Jung (2013) chamou o inconsciente e os objetos com os quais primeiro nos deparamos
quando nos aventuramos nesse espaço de complexos. O inconsciente é povoado
por complexos. Foi esse o território que Jung explorou inicialmente em sua carreira
psiquiátrica. Depois Jung deu-lhe o nome de inconsciente pessoal e começou a mapear
essa área da psique mesmo antes de examinar minuciosamente o complexo do ego ou
a natureza do inconsciente.

São partes integrantes da personalidade, pertencem a seu inventário, e sua perda


produziria, na consciência, inferioridade. A natureza da inferioridade não seria orgânica,
como uma mutilação ou defeito de nascença, mas sim o de uma omissão que geraria
um ressentimento moral. Diante do que foi visto, podemos afirmar que o inconsciente
contém não somente componentes de ordem pessoal, mas também impessoal, coletiva,
sob a forma de categorias herdadas ou arquétipos (JUNG, 2015).

Segundo Jung (2015), os conteúdos são pessoais, na medida em que forem adquiridos
durante a existência do indivíduo. A experiência nos revela que isto só é possível
numa proporção muito limitada. No contexto clínico, no setting analítico, de forma

36
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

dialética, amplificamos esses contextos vivenciais com nossas(os) pacientes, a fim de


que possam reter e assimilar em seu plano de vida os conteúdos reprimidos que foram
de novo associados à consciência.

Um ponto importante a ser ressaltado é que, num processo de análise, trazer o


inconsciente pessoal à consciência, questões experenciadas pelo sujeito, em geral,
pode promover uma amplificação de consciência, pois a(o) paciente muitas vezes traz
elementos conflitantes de que já conhecia anteriormente nos outros, por exemplo, falhas
e defeitos, (motivo de conflito – neuroses), mas que não consegue até então identificar
em si. Tal percepção ou descoberta nem sempre é um mal, podendo conduzir ao lado
bom do processo analítico. Há pessoas que reprimem suas boas e más qualidades,
dando, conscientemente, livre curso a seus desejos infantis.

Vale ressaltar que tal processo, no entanto, como se verifica usualmente em nossas
sessões de análise, não exerce qualquer influência sobre o inconsciente; este continua a
produzir tranquilamente sonhos e fantasias, os quais, segundo a teoria original de Freud,
deveriam ser motivados por repressões de ordem pessoal. Em tais casos, se prosseguirmos
sistematicamente nossas observações, sem preconceitos, nós nos depararemos com um
material que, embora semelhante aos conteúdos pessoais anteriores, em seu aspecto
formal, parece conter indícios de algo que ultrapassa a esfera meramente pessoal.

O inconsciente não é um monstro demoníaco. Apenas uma entidade da natureza,


indiferente do ponto de vista moral e intelectual, que só se torna realmente perigosa
quando a nossa atitude consciente frente a ela for desesperadamente inadequada.
O perigo do inconsciente cresce na mesma proporção de sua repressão. No entanto,
no momento em que a(o) paciente começa a assimilar os conteúdos do inconsciente,
a sua periculosidade também diminui. À medida que a assimilação progride, também
vai sendo suprimida a dissociação da personalidade, a ansiedade da separação entre o
lado diurno e noturno. O receio de quem me crítica, de que o consciente seja absorvido
pelo inconsciente, torna-se real, justamente quando o inconsciente é impedido de
participar da vida devido à repressão, à interpretação errônea e a sua desvalorização.
(JUNG, 2012).

Pode-se inferir, nesse contexto, que o engano fundamental a respeito da natureza


do inconsciente é provavelmente a crença generalizada de que os seus conteúdos são
unívocos e providos de sinais imutáveis. A alma, por ser um sistema de autorregulação,
tal como o corpo, equilibra a vida. Todos os processos excessivos desencadeiam imediata
e obrigatoriamente suas compensações. Sem estas, não haveria nem metabolismos
nem psiques normais. É o que observamos nos contextos clínicos: narrativas de

37
Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

compensação trazidas pelas(os) pacientes em que o que falta, de um lado; do outro,


cria um excesso. Dessa mesma forma, a relação entre o consciente e inconsciente
também é compensatória. Esta é uma das regras operatórias mais bem comprovadas
na interpretação dos sonhos. Quando se interpreta clinicamente um sonho, é sempre
útil perguntar: que atitude consciente é compensada pelo sonho?

Segundo Jung (2014), a camada do inconsciente pessoal com as recordações infantis


mais remotas; o inconsciente coletivo contêm, todavia, o tempo pré-infantil, isto é, os
restos da vida dos antepassados. As imagens e recordações do inconsciente coletivo são
imagens não preenchidas por serem formas não vividas pessoalmente pelo indivíduo.
Quando, porém, a regressão da energia psíquica ultrapassa o próprio tempo da primeira
infância, penetrando nas pegadas ou na herança da vida ancestral, aí despertam os
quadros mitológicos conhecidos como arquétipos. Tal processo de análise é amplo e,
por vezes, aparecem conteúdos que talvez contrastem fortemente com as convicções
que até então eram nossas.

Os conteúdos inconscientes são de natureza pessoal quando podemos reconhecer em


nosso passado seus efeitos, sua manifestação parcial, ou ainda sua origem específica.
São partes integrantes da personalidade, pertencem a seu inventário e sua perda
produziria na consciência, de um modo ou de outro, uma inferioridade. A natureza
dessa inferioridade não seria psicológica, como no caso de uma mutilação orgânica ou
um defeito de nascença, mas o de uma omissão que geraria um ressentimento moral.
O sentimento de inferioridade moral indica sempre que o elemento ausente é algo
que não deveria faltar em relação ao sentimento ou, em outras palavras, representa
algo que deveria ser conscientizado se nos déssemos a esse trabalho (JUNG, 2015).

O processo de assimilação do inconsciente produz fenômenos dignos de nota:


algumas(ns) pacientes adquirem uma consciência de si mesmas(os) ou uma
autoconfiança exageradas e até mesmo desagradáveis; não há o que não saibam,
é como se estivessem a par de tudo que se relacione com o próprio inconsciente,
acreditando reconhecer tudo que dele emerge. A cada sessão aumenta seu
sentimento de superioridade em relação ao médico. Outros, pelo contrário, sentem-
se cada vez mais esmagados pelos conteúdos do inconsciente, perdem sua
dignidade própria, ou a consciência de si mesmos, aproximando-se de uma apatia
resignada diante das coisas extraordinárias que o inconsciente produz.

O inconsciente coletivo
O inconsciente coletivo é um constructo. É entendido como um fundamento genérico,
biológico e psíquico, de natureza transpessoal, existente em todo ser humano. Por essa
38
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

designação, entende-se um funcionamento psíquico inconsciente, presente em todo ser


humano, que motivou não apenas nossas modernas imagens simbolistas, mas também
todos os produtos semelhantes do passado da humanidade. Essas imagens surgem de
uma necessidade natural e a satisfazem. É como se, ao remontar ao estado primitivo,
a psique se exprimisse nessas imagens e obtivesse a possibilidade de funcionar com
nossa consciência, que lhe é estranha, cessando, ou seja, satisfazendo suas próprias
demandas, que perturbam a consciência.

Em sua obra “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo”, Jung (2014) apresenta a


definição e construção do conceito de inconsciente coletivo, o qual é uma parte da
psique que pode se distinguir de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve
sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal.
Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que
já foram conscientes e, no entanto, desapareceram da consciência por terem sido
esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram
na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua
existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em
sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído
essencialmente de arquétipos. Inferimos que o inconsciente coletivo não se desenvolve
individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes de arquétipos
que só secundariamente podem se tornar conscientes, conferindo uma forma definida
aos conteúdos da consciência.

De acordo com Kast (2019), o inconsciente coletivo pode ser acessado com base
em imagens arquetípicas. Arquétipos são entendidos como efeitos do inconsciente
coletivo, como padrões fundamentais da vida que atuam em todo indivíduo e por
ele são sonhados, descritos e moldados; são a pré-condição da história da civilização.
Destarte, todos os seres humanos têm emoções comparáveis que não precisam ser
evocadas de maneira consciente, elas surgem de maneira inconsciente em situações
determinadas e significativas do ponto de vista existencial: luto na separação ou perda;
alegria quando algo sai melhor do que o esperado; irritação quando alguém invade
nossos limites; sentimentos depressivos quando o sentido da vida se perde etc.

Segundo Kast (2019), o inconsciente coletivo também se mostra em imagens arquetípicas,


tal como no círculo, na esfera, na espiral, na criança divina, no velho sábio, no estranho
misterioso, em heróis e heroínas, mas também em animais, cores etc. O que Jung
entende por arquétipos são os conteúdos do inconsciente coletivo. Segundo Jung
(2015), a relação com o inconsciente coletivo é muito importante para a terapia; é

39
Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

importante que a(o) analisanda(o) avance na esfera do inconsciente coletivo, onde


primeiro descobre o tesouro das ideias coletivas e, depois, as próprias forças criativas.
É desse modo que sua ligação com toda a humanidade se mostra a ela(e). O material
do inconsciente coletivo é algo saudável, que ajudou a humanidade a sobreviver.

Como fundamento para a animação inconsciente do arquétipo, Jung (2015) considera


a unilateralidade, dessa vez não do indivíduo, mas da sociedade. A unilateralidade
é experimentada por artistas e indivíduos isolados e é compensada por sua psique.
A obra criativa provém da consternação pessoal, é formada com as próprias capacidades
e habilidades, mas também é expressão de um processo criativo impessoal que se impõe
no artista. Assim como Jung (2015) vê uma autorregulação no indivíduo, também a
enxerga no sentido de uma regulação mental na vida da sociedade.

E ao prosseguirmos os esclarecimentos acerca do conceito de inconsciente coletivo, vale


pontuar que a hipótese é a de algo tão ousado como a suposição de que existem instintos.
Pode-se admitir sem hesitação que a atividade humana é em grande escala influenciada
por instintos – abstração feita das motivações racionais da mente consciente, ou seja,
quando se afirma que nossa fantasia, percepção e pensamento são, do mesmo modo,
influenciados por elementos formais inatos e universalmente presentes. Ressalta-se que
o diagnóstico do inconsciente coletivo nem sempre é tarefa fácil, não basta ressaltar
a natureza arquetípica, muitas vezes óbvia, dos produtos inconscientes, pois estes
também podem provir de aquisições mediante a linguagem da educação.

De acordo com Jung (2014), é um engano acreditar que o inconsciente é inofensivo e pode
ser utilizado como objeto de jogos sociais. Não é em toda e qualquer circunstância que o
inconsciente se mostra perigoso, não resta dúvida, mas cada vez que se manifesta uma
possível neurose, é nesse momento que é preciso avaliar, pois há nesse momento da análise
um sinal de que existe no inconsciente um acúmulo especial de energia, uma espécie de
carga, que pode explodir. Sendo assim, qualquer tipo de cuidado no manejo clínico é pouco.

Podemos asseverar que ao iniciarmos uma análise de sonhos, ou seja, uma amplificação
dos sonhos no manejo clínico, não temos nenhuma certeza ou garantia de que tipo de
complexos estaremos acionando no mundo interior de nossas(os) pacientes. Algo de
invisível, de interior, pode ser acionado; algo que mais tarde, provavelmente, virá à tona,
de uma forma ou de outra, mas que talvez também nunca se manifeste. Podemos citar,
por exemplo, na perfuração de um poço artesiano, quando será possível corrermos o risco
de topar com rochas, entre outros elementos sensíveis de um possível solo contaminado
com algum tipo de química. Não há garantias e nenhuma segurança absoluta sobre o
solo que está sendo explorado com tanta profundidade num primeiro momento.

40
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

Segundo Jung (2015, p. 15):

1. O inconsciente coletivo é parte inconsciente da psique coletiva, a imago


do objeto inconsciente.

2. O inconsciente coletivo se compõe: a) primeiro, de percepções,


pensamentos e sentimentos subliminais que não são reprimidos devido
a sua incompatibilidade pessoal, mas à intensidade insuficiente do seu
estimulo ou pela falta do exercício da libido, ficando desde o início aquém
do limiar da consciência; b) segundo, de restos subliminais de funções
arcaicas, que existem a priori e que podem ser acionados a qualquer
momento por meio de um certo represamento da libido. Esses resíduos
não são apenas de natureza formal, mas também dinâmica (impulsos);
c) terceiro, de contribuições subliminais sob forma simbólica, que ainda
não estão aptas para serem conscientizadas.

3. Um conteúdo atual do inconsciente coletivo consistirá sempre num


amálgama dos três pontos já formulados; daí poder se interpretar a
expressão para diante ou para trás.

4. O inconsciente coletivo sempre aparece projetado num objeto consciente.

5. O inconsciente coletivo no indivíduo A se assemelha ao inconsciente


coletivo no indivíduo Z num grau muito maior do que teria conexão
recente de ideias conscientes nos entendimentos entre A e Z.

6. Ao que parece, os conteúdos mais importantes do inconsciente coletivo


são as imagens primordiais, isto é, as ideias coletivas inconscientes e
os impulsos vitais (vida e pensamento mítico).

Arquétipos
De acordo com Jung (2014), o conceito de arquétipo, que constitui um correlato
indispensável da ideia do inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas
formas na psique presentes em todo tempo e todo lugar. À diferença da natureza
pessoal da psique consciente, existe um segundo sistema psíquico, de caráter coletivo,
não pessoal, ao lado do nosso consciente, que, por sua vez, é de natureza inteiramente
psíquica e que – mesmo quando lhe acrescentem como apêndice o inconsciente pessoal,
ou seja, o conceito de arquétipo nada mais é do que uma expressão já existente na
Antiguidade, sinônimo de “ideia” no sentido platônico.

Segundo Kast (2019), na experiência prática, arquétipos são imagens e, ao mesmo


tempo, emoções. Imagens arquetípicas permitem compreender emoções em
uma dinâmica estrutural determinada, mostrando-se onde a fantasia atua. Os

41
Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

arquétipos também estão atrás dos complexos. O potencial de desenvolvimento


nos complexos é visível, sobretudo nas imagens arquetípicas que se apresentam
depois que aspectos importantes do complexo forem alçados à consciência, tornando
possível o acesso a padrões arquetípicos e a sua dinâmica, nos quais os complexos
se constroem.

O arquétipo difere sensivelmente da fórmula historicamente elaborada. Especialmente em


níveis mais altos dos ensinamentos secretos, os arquétipos aparecem sob uma
forma que revela seguramente a influência da elaboração consciente, a qual julga e
avalia. Sua manifestação imediata, como a encontramos em sonhos, é muito mais
individual, incompreensível e ingênua do que nos mitos, por exemplo. O arquétipo
representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica por meio
de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a
consciência individual na qual se manifesta (JUNG, 2015).

De acordo com Kast (2019), o arquétipo é uma espécie de disposição para reproduzir
sempre as mesmas representações míticas ou outras semelhantes. Os arquétipos, ao
que parece, não são apenas impressões de experiências típicas repetitivas, mas, ao
mesmo tempo, também se comportam empiricamente como forças ou tendências à
repetição das mesmas experiências. Aliás, sempre que um arquétipo aparece no sonho,
na fantasia ou na vida, ele traz uma influência especial ou uma força, em virtude da
qual ele causa um efeito numinoso, fascinante ou que impede à ação.

Conforme explicita em sua obra, Jung (2015) salienta que, o significado do termo
arquétipo fica sem dúvida mais claro quando se relaciona com o mito, o ensinamento
esotérico e o conto de fada. O assunto se complica, porém, se tentarmos fundamentá-lo
psicologicamente. Até hoje estudiosos da mitologia contentavam-se em recorrer a
ideias solares, lunares, meteorológicas, vegetais etc. O fato de que os mitos são, antes
de tudo, manifestações da essência da alma que foram negadas de modo absoluto até os
nossos dias atuais. O homem primitivo não se interessava pelas explicações objetivas
e óbvias, mas, por outro lado, teve uma necessidade imperativa, ou melhor, a sua
alma inconsciente era impelida irresistivelmente a assimilar toda experiência externa
sensorial a acontecimentos anímicos.

Ressalta-se que o conhecimento a respeito dos arquétipos significa um avanço


importante, pois o efeito mágico ou demoníaco sobre a pessoa do outro desaparece,
porque a sensação perturbadora é restituída a uma dimensão definitiva do inconsciente
coletivo. Em compensação, nos é proposta uma tarefa totalmente nova: a questão de
como e de que maneira o ‘eu’ deve lidar com esse ‘não eu’ psicológico. Vale refletir sobre

42
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

a indagação: será que basta constatar a existência atuante dos arquétipos, abandonando
o resto (aspectos relacionados ao desenvolvimento do sujeito) à própria sorte?

Os arquétipos são vivenciados na forma de representações ou imagens internas


arquetípicas. Entendidas por Jung (2015) como imagens internas que se mostram em
sonhos, fantasiais e mitos e, por sua vez, tanto trazem emoções sob determinadas formas
quanto tornam possível um novo comportamento para compensar o já conhecido.
Porém permitem apenas determinadas formas da fantasia e da emoção, portanto
compõem uma estrutura. Pertencem a nossa configuração biológica básica, mas também
são remodeladas do ponto de vista cultural.

De acordo com Jung (2014), os arquétipos quase sempre se apresentam em forma de


projeções, e quando estas são inconscientes, manifestam-se nas pessoas com quem
se convive, subestimando-as ou superestimando-as, provocando desentendimentos,
discórdias, fanatismos e loucuras de todo tipo. Não é outra a razão pela qual se diz:
“fulano endeusou sicrano’ ou “fulano de tal é chave de cadeira”. Esta é a origem dos mitos
modernos, em outras palavras, dos boatos fantásticos, das mil e uma desconfianças,
preconceitos e pré-julgamentos. Os arquétipos são, portanto, extremamente importantes,
de efeito considerável, e que merecem toda a nossa atenção. Não devem ser simplesmente
reprimidos, mas, devido ao perigo de contaminação psíquica, convém levá-los muito
a sério.

Os conceitos dos arquétipos e dos complexos estão ligados a fantasiais, imaginações


e, em última análise, ao estimulo à construção criativa. Não é de surpreender que,
para Jung (2015), o objetivo da terapia é adquirir uma atitude criativa. Segundo ele,
além da relação terapêutica e em conexão com ela, adquirir essa atitude no processo
terapêutico tem uma eficácia central no processo de individuação. Para Jung (2015),
há um princípio criativo que determina tudo o que existe no mundo. O indivíduo
precisa estar conectado a esse princípio, que também atua no físico e no emocional
do ser humano.

Segundo Jung (2014), há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis
repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de
imagens preenchidas de um conteúdo, mais precisamente em “formas sem conteúdo”,
representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação.
Quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo, este é ativado e surge
uma compulsão que se impõe ao modo de uma reação instintiva contra toda a razão
e vontade, ou produz um conflito de dimensões eventualmente patológicas, isto é,
uma neurose.

43
Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

Finalizamos este capítulo diante dos construtos relacionados ao inconsciente pessoal,


ao inconsciente coletivo, ao ego (consciência) e aos arquétipos. Fechamos essa base
teórica apresentando os principais aspectos relevantes sobre a construção teórica de
Jung em subsídios com suas principais obras escritas e deixadas como legado de estudos,
para suas(seus) analisandas(os) à época, e posteriormente reescritas em outros idiomas,
o que permite maior acesso a elas no intuito de aprimorar e assimilar o contexto
teórico-prático no manejo da prática de psicoterapia junguiana. No próximo capítulo,
serão apresentados os fundamentos conceituais acerca dos conceitos de sombra, anima
versus animus, complexos.

44
CAPÍTULO 2
Fundamentos conceituais acerca dos
conceitos de sombra, anima versus
animus e os complexos

Neste capítulo, abordaremos o construto do conceito de sombra, a noção de Jung sobre


esse arquétipo é uma importante contribuição à teoria e prática da psicologia profunda
e da psicanálise. O modo como a sombra tem sido compreendida tem se desenvolvido
naturalmente no contexto da orientação de cada autor dentro do campo de estudos da
psique, às vezes enfatizando seu lugar e significado clássico, desenvolvimentista e/ou
arquetípico dentro de uma concepção global da vida psíquica e da análise.

Ao nos defrontarmos como a natureza do ser humano, temos a consciência de que


toda alma tem seu lado escuro. Permitir-se conhecer a sombra, ou seja, vê-la em ação,
é o primeiro passo para uma vida mais equilibrada. Conviver com ela é o desafio
de uma vida inteira. Dentro de cada mulher e de cada homem, a caverna escura do
inconsciente é a guardiã de sentimentos proibidos, desejos secretos e anseios criativos.
Com o tempo, essas forças “escuras” adquirem vida própria e formam uma figura
intuitivamente reconhecível – a sombra.

É importante notar: quando a sombra age em público, é possível vermos os nossos


líderes como vilões incorrerem no escândalo e caírem em desgraça. Em nosso cotidiano,
podemos ser dominados pela raiva, obsessão e vergonha ou sucumbir a mentiras
autodestrutivas, vícios ou depressão. Essas aparições da sombra nos mostram o
Outro, uma força poderosa que desafia nossos melhores esforços para domesticá-lo
ou controlá-lo.

No fluxo do processo de desenvolvimento da personalidade, percebe-se que a sombra


pessoal se desenvolve naturalmente em todas as crianças. Ou seja, a medida que
nos identificamos com as características ideais de personalidade (tais como polidez
e generosidade) que são encorajadas pelo nosso ambiente. No entanto, ao mesmo
tempo, vamos enterrando na sombra aquelas qualidades que não são adequadas à nossa
autoimagem, como a rudeza e o egoísmo. O ego e a sombra, portanto, desenvolvem-se
aos pares, criando-se mutuamente a partir da mesma experiência de vida.

Ao iniciarmos nosso processo de desenvolvimento de forma mais ampla, dentro de outros


sistemas, ou seja, saindo do microssistema e ampliando para um macrossistema, muitas
forças estão em jogo na formação da nossa sombra e, em última análise, determinam
o que pode e o que não pode ser expresso. Mães, pais, irmãs(os), professoras(es),

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Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

clérigas(os) e amigas(os) criam um ambiente complexo no qual aprendemos aquilo que


representa comportamento gentil, conveniente e moral, e aquilo que é mesquinho,
vergonhoso e pecaminoso. Saímos de um sistema no qual, antes, tínhamos inicialmente
a base da sombra familiar para outros sistemas que irão abarcar a sombra cultural e/
ou coletiva.

Vale ressaltar que a sombra age como um sistema imunológico psíquico, definindo o
que é eu e o que é não eu, ou seja, pessoas diferentes, em diferentes famílias e culturas,
consideram de modos diversos aquilo que pertence ao ego e aquilo que pertence à
sombra. Por exemplo, alguns permitem a expressão da raiva ou da agressividade;
a maioria, não. Alguns permitem a sexualidade, a vulnerabilidade ou as emoções
fortes; muitos, não. Alguns permitem a ambição financeira, a expressão artística ou o
desenvolvimento intelectual; outros, não.

Jung (2013) apresenta as formulações teóricas acerca da sombra, a anima e o


animus. O autor assevera que, empiricamente, esses arquétipos se caracterizam
mais nitidamente por conseguirem influenciar intensamente a perturbação do “eu”.
A figura mais facilmente acessível à experiência do ego é a sombra, pois é possível
ter um conhecimento bastante aprofundado de sua natureza. Uma exceção a esta
regra é constituída apenas por aqueles casos, bastantes raros, em que as qualidades
da personalidade foram reprimidas e o ‘eu’, consequentemente, desempenha um
papel negativo, isto é, desfavorável.

De acordo com Jung (2013), a sombra constitui um problema de ordem moral que desafia
a personalidade do “eu” como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência
dessa realidade sem dispensar energias morais. Mas, nessa tomada de consciência da
sombra, trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade tais como existem
na realidade. Esse ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento
e, por isso, em geral, ele se defronta com considerável resistência. Enquanto, por um
lado, o autoconhecimento é um expediente terapêutico; por outro, implica, muitas
vezes, um trabalho árduo que pode se estender por um largo espaço de tempo.

É durante o processo de análise que é possível observar de forma mais categórica e


acurada os traços obscuros de caráter, isto é, das inferioridades da(o) paciente que
constituem a sombra, mostrando-nos que esses traços possuem uma natureza emocional,
uma certa autonomia e, consequentemente, são de tipo obsessivo, ou melhor, possessivo.
A emoção, com efeito, não é apenas uma atividade, mas um evento que sucede a um
indivíduo. Os efeitos, em geral, ocorrem sempre que os ajustamentos são mínimos
e revelam uma certa inferioridade e a existência de um nível baixo de personalidade.

46
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

Efetivando uma análise mais profunda em casos apresentados por analistas em formação,
durante suas sessões de análise, é perceptível que, com compreensão e boa vontade, a
sombra pode ser integrada de algum modo à personalidade, enquanto certos traços,
por meio de nossa experiência clínica, sabe-se, opõem obstinada resistência ao controle
moral, escapando, portanto, a qualquer influência. De modo geral, essas resistências
ligam-se a projeções que não podem ser reconhecidas como tais e cujo conhecimento
implica um esforço moral que ultrapassa os limites do indivíduo.

Segundo Jung (2013), os traços característicos da sombra podem ser reconhecidos,


sem maior dificuldade, como qualidades pertinentes à personalidade, mas tanto a
compreensão como a vontade falham, pois a causa da emoção parece provir, sem
dúvida alguma, de outra pessoa. Talvez o observador objetivo perceba claramente que
se trata de projeções. Mas há pouca esperança de que o sujeito delas tome consciência.
Deve admitir-se, porém, que às vezes é possível haver engano ao pretender-se separar
projeções de caráter nitidamente emocional do objeto.

O conceito de sombra é de grande importância para o convívio dos seres humanos,


pois possibilita aproximações e distanciamentos dos contextos que apresentam de
forma agradável, perfeita e combinatório, assim como daqueles que são inconvenientes,
repugnantes, impróprios e indesejáveis. Cabe ressaltar aqui que romancear a sombra
permite nos apropriarmos de reflexões mais amplas sobre ética e moral, para uma
possível compreensão de certas irritações e conflitos e, por fim, também para a empatia
e a reconciliação consigo mesmo. Assevera-se aqui que a reconciliação consigo mesmo
está, sobretudo, vinculada à integralização e suprime divisões, porém isso só é possível
se olharmos para nossa sombra e nos responsabilizarmos por ela.

De acordo com Kast (2019), o conceito de sombra parte do princípio de que nós, seres
humanos, gostamos de nos apresentar um pouco mais belos do que somos, de que,
em nossa apresentação de nós mesmos, queremos satisfazer nosso próprio ideal, mas
também aquele de nossos semelhantes. Isso significa que sempre temos aspectos que
não mostramos e que nós próprias(os) não queremos perceber. Todos aqueles aspectos
que não conseguimos aceitar em nós mesmas(os) porque não correspondem ao nosso
ideal de nós são chamados de partes da sombra.

Por exemplo, não se pode simplesmente dizer, ou buscar explicar em contextos isolados,
que a sombra não é determinada pelo conteúdo; não se pode, por exemplo, dizer que
ser invejoso é sempre um aspecto da sombra, embora muitos de nós possa parecer
assim, pois, para nós, não sentir inveja é um valor que queremos pôr em prática em
nossa vida. Mas também pode acontecer de a inveja ser um valor para alguém que a

47
Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

considere aceitável. Em termos de conteúdo, a sombra se revela somente em confronto


com o ideal e os valores que queremos realizar em nossa vida.

Cito um exemplo, de um excerto de atendimento clínico, em que uma mulher de


idade (65 anos à época do atendimento) gostava de se apresentar em suas relações
interpessoais de forma muito modesta e de ser sempre, independentemente do contexto
ao qual estava inserida. No entanto, se sentia culpada quando era flagrada exigindo
com arrogância alguma coisa de seus semelhantes – achava que se tratava de um
comportamento sombrio que, na verdade, não podia ser controlado por ela. Antes
de conseguir refletir a respeito, já havia agido de maneira hostil, arrogante e sem
modéstia, de forma ‘sombria’.

No entanto, depois de tal citação do excerto de atendimento clínico no parágrafo anterior


é que, enquanto analistas de orientação junguiana, se percebe que a sombra é algo que
nos incomoda muito. Em contrapartida, a sombra das outras pessoas ou aquilo que
consideramos sua sombra pode ser um objeto de projeção fascinante. Interessamo-nos
pelo comportamento sombrio de nossos semelhantes, que chega a ter algo vitalizante,
em especial quando se trata da sombra de pessoas das quais se espera que não tenham
sombras, como autoridades eclesiásticas, políticos, profissionais de saúde, educadores etc.

Verifica-se, em contextos clínicos vivenciados no setting analítico, que nossos aspectos


sombrios também costumam esconder lados vitais, que, um pouco domesticados, talvez
possam tornar nossa vida muito mais intensa. Muitas vezes, na sombra, se esconde o
que não estaríamos autorizados a viver, pois queremos ser um bom rapaz, uma boa
moça, um pai de família trabalhador e exemplar, uma dona de casa zelosa e amorosa.
Em todo caso, se a sombra nos pertence, faz parte da nossa construção arquetípica,
ela também é um aspecto de nossa personalidade, a princípio, um aspecto um pouco
mais difícil.

De acordo com Zweig (1994), todos os sentimentos e capacidades rejeitados pelo


ego e exilados na sombra contribuem para o poder oculto do lado escuro da natureza
humana. Nem todos eles são aquilo considerado traços negativos. Esse escuro tesouro
inclui a nossa porção infantil, nossos apegos emocionais e sintomas neuróticos, bem
como nossos talentos e dons não desenvolvidos. A sombra mantém contato com as
profundezas perdidas da alma, com a vida e a vitalidade – o superior, o universalmente
humano, sim, mesmo o criativo pode ser percebido ali.

Em narrativas acolhidas contidamente em nossos consultórios clínicos, ouvimos


nossas(os) pacientes relatarem que não se pode olhar diretamente para esse domínio

48
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

oculto, a sombra é, por natureza, difícil de ser apreendida. Ela é perigosa, desordenada
e eternamente oculta, como se a luz da consciência pudesse roubar-lhe a vida. Por essa
razão, em geral, vemos a sombra indiretamente, nos traços e ações desagradáveis das
outras pessoas, lá fora, onde é mais seguro observá-las.

Ressalta-se que quando reagimos de modo intenso a uma qualidade qualquer, por
exemplo, preguiça, estupidez, sensualidade, espiritualidade etc. de uma pessoa ou
grupo – e nos enchemos de grande aversão ou admiração –, essa reação talvez seja
a nossa sombra se revelando. Nós nos projetamos ao atribuir essa qualidade à outra
pessoa num esforço inconsciente de bani-la de nós mesmos, de evitar vê-la dentro
de nós. Cabe pontuar aqui que a sombra pessoal contém, portanto, todos os tipos de
potencialidades não desenvolvidas e não expressas. Ela é aquela parte do inconsciente
que complementa o ego e representa as características que a personalidade consciente
se recusa a admitir e, portanto, negligencia, esquece e enterra até redescobri-las em
confrontos desagradáveis com os outros.

De acordo com Zweig (1994), não podemos fitá-la diretamente, a sombra surge na vida
diária. Por exemplo, nós a encontramos em tiradas humorísticas (tais como piadas sujas
ou brincadeiras tolas) que expressam nossas emoções ocultas, inferiores ou temidas.
Analisando de perto aquilo que achamos engraçado (como alguém escorregando
numa casca de banana ou se referindo a uma parte “proibida” do corpo), descobrimos
que nossa sombra está ativa. É possível que as pessoas destituídas de senso de humor
tenham uma sombra muito reprimida.

Em geral, é a sombra que ri das piadas. Segundo Zweig (1994), a depressão também
pode representar uma confrontação paralisante com o lado escuro, um equivalente
moderno da “noite escura da alma” do místico. Nossa exigência interior para que
desçamos ao mundo subterrâneo pode ser suplantada por considerações de ordem
externa (como a necessidade de trabalhar por longas horas), pela interferência dos
outros ou por drogas antidepressivas que amortecem a nossa sensação de desespero.
Nesse caso, deixamos de apreender o propósito da nossa melancolia.

Agora avançamos com um aspecto mais profundo a respeito da concepção do


arquétipo da sombra: a sombra coletiva, ou seja, hoje em dia, defrontamo-nos com
o lado escuro da natureza humana toda vez que abrimos um jornal ou ouvimos o
noticiário em páginas online. Os efeitos mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis
na esmagadora mensagem diária dos meios de comunicação, transmitida em massa
para toda a nossa moderna aldeia global eletrônica. O mundo tornou-se um palco
para a sombra coletiva.

49
Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

Conforme assevera Zweig (1994), a sombra coletiva – a maldade humana – nos encara
de praticamente todas as partes: ela salta das manchetes dos jornais; vagueia pelas nossas
ruas e, sem lar, dorme no vão das portas; entoca-se nas chamativas sex shops das nossas
cidades; desvia o dinheiro do sistema de financiamento habitacional; corrompe os
políticos famintos de poder e perverte o sistema judiciário; conduz exércitos invasores
pelas densas florestas e áridos desertos; vende armamentos a líderes ensandecidos e
repassa os lucros a insurgentes reacionários; por canos ocultos, despeja a poluição em
nossos rios e oceanos; com invisíveis pesticidas, envenena o nosso alimento.

Tais inferências observadas no parágrafo acima são observações, não constituem


algum novo fundamentalismo a martelar uma versão bíblica da realidade. Nossa
época fez de todos nós testemunhas forçadas. O mundo todo observa. Não há como
evitar o assustador espectro de sombras satânicas mostrado por políticos coniventes,
os colarinhos-brancos criminosos e terroristas fanáticos. Nosso anseio interior por
integração – agora tornado manifesto na máquina de comunicação global – força-nos
a enfrentar a conflitante hipocrisia que hoje está em toda parte.

Faz-se necessário olharmos no contexto atual que vivenciamos alguns aspectos políticos
e culturais, pois enquanto a maioria das pessoas e grupos vive o lado socialmente
aceitável da vida, outras parecem viver as porções socialmente rejeitadas pela vida.
Quando essas últimas tornam-se objeto de projeções grupais negativas, a sombra coletiva
toma a forma de racismo, de busca de “bode expiatório” ou de criação do “inimigo”.

Um exemplo clássico que podemos elencar aqui é que para os americanos anticomunistas,
a antiga U.R.S.S. (hoje República da Rússia) era o Império do Mal. Para os muçulmanos,
os Estados Unidos da América são o Grande Satã. Para os nazistas, os judeus são
vermes bolcheviques. Para o monge asceta cristão, as bruxas têm parte com o diabo.
Para os sul-africanos defensores do apartheid e os americanos da Ku Klux Klan, os
negros são subumanos e não merecem ter os direitos e privilégios dos brancos. E o que
nós podemos inferir com tais contextos já experenciados em movimentos históricos
anteriores? Percebe-se que a experiência repassada hoje, em pleno século XXI, é a
mesma ou muito próxima de uma formulação de ódio e incompreensão com o “outro”,
não há lugar nem tempo para acolher o “diferente”.

Podemos conhecer esses aspectos apresentados no parágrafo acima, e nesse caso, eles
são desagradáveis, incômodos, constrangedores para nós (seres humanos); tentamos
controlá-los e reprimi-los. Em geral, rejeitamos a sombra, projetando-a em nossos
semelhantes. Eles são insensíveis, esbanjadores e invejosos – nós, não, nunca, de forma
alguma! Projetamos nossos lados sombrios na(o) parceira(o), de repente, já não sabemos

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Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

quem, na verdade, é mesquinho e destrutivo na dinâmica de um relacionamento.


E, algumas vezes, brigamos muito com nossa(o) parceira(o) e reclamamos uma mudança,
quando, na verdade, nós é que teríamos de mudar. Contudo, nessas situações, não
compreendemos isso de modo algum.

Ao longo da história, a sombra tem surgido (na imaginação humana) como um


monstro, um dragão, um Frankenstein, uma baleia branca, um extraterrestre ou um
homem tão vil que não podemos nos espelhar nele – ele está tão distante de nós quanto
uma górgona. Revelar o lado escuro da natureza humana tem sido um dos propósitos
básicos da arte e da literatura. Tipicamente, as crianças começam a aprender os assuntos
da sombra ao ouvir contos de fada que mostram a guerra entre as forças do bem e
do mal, fadas madrinhas e terríveis demônios. As crianças, como os adultos, também
sofrem simbolicamente as provações de seus heróis e heroínas e, assim, aprendem os
padrões universais do destino humano (ZWEIG, 1994).

Assim como a sociedade, cada família também constrói seus próprios tabus, suas áreas
proibidas, ou seja, a sombra familiar contém tudo o que é rejeitado pela percepção
consciente de uma família, aqueles sentimentos e ações considerados demasiado
ameaçadores à sua autoimagem. Numa honrada e conservadora família cristã, a ameaça
talvez seja embriagar-se ou desposar alguém de outra religião; numa família liberal
e ateia, talvez seja a opção pelos relacionamentos homossexuais. Na nossa sociedade,
espancamento da esposa e abuso dos filhos costumavam ficar ocultos na sombra
familiar, mas hoje emergem em proporções epidêmicas, à luz do dia.

Segundo Kast (2019), em situações de conflito, também se fala em sombra.


Se os envolvidos conseguem ver suas partes sombrias, é mais fácil compreender e
reconciliar. Se em uma situação alguém assume a culpa, pede compreensão, ajuda,
sente vergonha e assume a fraqueza de tal atitude e ação, a partir dessa amplificação
é que se tenta a possibilidade de reparar o prejuízo, a relação entre as pessoas pode
ser totalmente diferente do que quando alguém nunca tem culpa e faz dos outros
bodes expiatórios.

Se os aspectos sombrios puderem ser aceitos, as pessoas possuem forte potencial


para se tornarem mais humanas e amáveis, ou seja, nesse caso, a sombra pode ser
responsabilizada tanto quanto possível. Esse é um importante aspecto do ‘tornar-se
inteiro’, tal como a individuação também é chamada: o homem consiste não apenas
em aspectos claros, mas também naqueles escuros. Isso não significa que se deva deixar
o caminho livre para os aspectos obscuros. Jung (2013) considera a ocupação com a
sombra uma tarefa a ser realizada no início do processo de individuação.

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Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

Se soubermos que também temos lados escuros, considerar-nos-emos de maneira


mais realista, mas também as outras pessoas de maneira mais próxima da realidade.
Não ficaremos tão ofendidos se alguém, por algum motivo ou razão em nossa opinião, nos
tratar de modo sombrio, áspero, arrogante, entre outros, por exemplo, nos enganando
ou mesmo mentindo. Sabemos que poderiam surgir circunstâncias na vida em que
possivelmente faríamos a mesma coisa, assim, nos tornamos mais tolerantes ao lidar
com comportamentos problemáticos. Vale ressaltar que isso não significa que esses
possíveis comportamentos tenham de ser aceitos; muitas vezes nos comportamos como
uma atitude esperada pelo outro, no entanto, devemos nos lembrar da construção de
nossa subjetividade.

Conforme explana Kast (2019), se conseguirmos, em conflitos concretos, ver de que


maneira nossos próprios aspectos sombrios contribuíram inconscientemente para a
dinâmica do conflito, teremos como lidar com esses aspectos e já não será tão fácil
pensar que apenas uma pessoa seja a culpada e as outras, inocentes; ao contrário,
a colaboração de vários comportamentos problemáticos leva, por exemplo, a uma
escalada. Cada um pode assumir apenas a parte de responsabilidade que lhe cabe,
abrindo o caminho para a desculpa, a empatia, a compreensão e a reconciliação.
E por aqui finalizamos nossas arguições acerca do construto do arquétipo da sombra.
Nosso próximo tópico a ser discutido retrata o arquétipo anima e animus.

Os arquétipos anima e animus, bem como sua ligação como par, são importantes
elementos estruturais da psique. De acordo com Kast (2019), o conceito de anima e
animus, que ao longo dos anos foi discutido e alterado diversas vezes, acabou por se
popularizar, pois esclarece, por exemplo, por que nos apaixonamos. Não é raro que as
pessoas fiquem fascinadas por outras, mesmo que não haja uma relação satisfatória entre
elas. A razão disso é que projetamos no outro a anima, o animus ou o par anima – animus.
Nesse sentido, fica claro, sobretudo, como atua a projeção de imagens arquetípicas.

De acordo com Jung (2013), o fator determinante das projeções é a anima, isto é, o
inconsciente representando pela anima. Onde quer que se manifeste, nos sonhos,
nas relações objetais e fantasias, ela aparece personificada, ou seja, mostrando deste
modo que o fator subjacente a ela possui todas as qualidades características de um
ser feminino. Ressalta-se que não se trata de uma invenção da consciência; é uma
produção espontânea do inconsciente. Também não se trata de uma figura substitutiva
da mãe. Pelo contrário: temos a impressão de que as qualidades numinosas que tornam
a imagem materna tão poderosa originam-se do arquétipo coletivo de anima que se
integra de novo em cada criança do sexo masculino.

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Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

O conceito relacionado a anima esclarece também por que nos perdemos se – como
receptores de uma projeção da anima, por exemplo –, de repente, nos comportamos de
acordo com essa projeção e nos abandonamos. Por exemplo, uma mulher inteligente e
independente fica fascinada por um homem e se comporta como uma ouvinte admirada,
sem opinião própria. E isso, segundo a teoria, porque o homem projeta nela sua anima,
que deve ser justamente a de uma figura admirada. Isso significa que a mulher reage
em ressonância com uma imagem interna, ativada no homem nesse período.

De acordo com Kast (2019), o conceito de anima e animus se popularizou e, na maioria


das vezes, é entendido de forma reduzida, ou seja, a anima como o aspecto feminino no
homem, e o animus como o aspecto masculino na mulher. Assim começa a confusão de
compreensão dos conceitos apresentados na teoria junguiana, pois uma vez recaindo
no reducionismo e determinismo tais concepções caem no senso comum com maior
amplitude. É preciso conter as interpretações antecipadas diante uma teoria tão
complexa como é a teoria que abarca a psicologia profunda de Jung.

Vale ressaltar aqui que, do ponto de vista biológico, está fora de questão o fato de que
também temos em nós aspectos do sexo oposto. Porém, com essa redução corrente,
não se analisa o conceito de anima/animus de maneira adequada, pois ambos são
designados por Jung (2013) como imagens arquetípicas, ou seja, figuras oníricas,
presentes na imaginação, quer se trate de homem, quer de mulher, e precisam estar
ligados a uma elevada emocionalidade, sentirem-se significativos para poderem ser
qualificados de anima ou animus.

Quando Jung (2013) fala de anima ou animus em termos de conteúdo – por exemplo,
que a anima personifica o eros, e o animus, o logos –, isso pode levar facilmente a
conclusões específicas de gênero se não separarmos com precisão essas imagens
internas dos aspectos conscientes da personalidade. Nesse caso, as mulheres passariam
a corresponder ao princípio do eros; e os homens, ao princípio do logos. No entanto,
ambos precisariam dos dois, eros e logos. Essas também são as maiores alterações nesse
conceito que precisamos realizar hoje, as quais, nas obras escritas por Jung, não há
nenhuma ocasião específica em que ele mencione os arquétipos de gênero. Pode-se
supor que tanto a anima quanto o animus aparecem em ambos os sexos, muitas vezes
até como casal.

Vale pontuar neste momento que anima e animus são imagens arquetípicas que
regulam o relacionamento no sentido mais amplo: relação com um outro, relações
amorosas, eróticas e sexuais, mas também a relação com o mundo interno desconhecido.
Poderíamos designá-los como arquétipos do relacionamento e da união. Do ponto de

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Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

vista da psicologia do desenvolvimento, a princípio, anima e animus estão ligados ao


complexo materno ou paterno e também são matizados por eles. A dinâmica ligada
a anima e animus faz com que o complexo do ‘Eu’ possa se diferenciar cada vez mais
desses complexos parentais, pois o ‘Eu’ entraria mais em contato com o próprio centro,
com o si-mesmo.
De acordo com Jung (2015), do mesmo modo que a anima, o animus é um amante
ciumento, pronto para substituir um homem de carne e osso por uma opinião sobre
ele, opinião cujos fundamentos duvidosos nunca são submetidos à crítica. As opiniões
do animus são sempre coletivas e negligenciam os indivíduos e todos os julgamentos
individuais; dessa forma, o animus procede exatamente como a anima que se interpõe
entre marido e mulher, com suas predições e projeções afetivas.
Jung (2015) assevera que não espera que todos os leitores que estejam iniciando seus
estudos a respeito dos arquétipos da anima/animus possam ter uma compreensão de
imediato do que anima e animus significam. Ele confia apenas que os leitores não
tenham a impressão de tratar-se de algo ‘metafísico’; os fatos são empíricos e poderiam
ser vazados de igual modo em linguagem racional e abstrata. O autor evitou, de
propósito, usar uma linguagem deste tipo (racional e abstrata), porque tudo apresentado
neste tópico foi até agora um campo tão inacessível à experiência, que não conviria
apresentá-lo aos leitores numa formulação intelectual.
Jung (2015) considera muito mais importante proporcionar-lhes uma visão das
possibilidades de experiência, ou seja, ninguém compreenderia realmente esses fatos
se não os experimentar em si mesmo, por isso interessa a ele muito mais indicar as
pistas e possibilidades de experiências em lugar de estabelecer fórmulas intelectuais;
estas últimas não passariam de um emaranhado inútil de palavras, se precedessem as
experiências, que necessariamente implicam. Infelizmente já são muitos os que decoram
palavras e inventam experiências condizentes, abandonando-se depois, segundo o
temperamento, à credulidade ou à crítica.
Finalizamos por esse momento as arguições e explanações acerca dos arquétipos de
anima/ animus, ressaltando que as fontes de estudos não se esgotam por aqui, mas
nos possibilitam um campo amplo que, conforme indicação do autor no parágrafo
anterior, é preciso ter a experiência em si mesmo sobre os processos elencados.
O próximo tópico a ser apresentado será relacionado aos complexos em detrimentos
aos aspectos psíquicos.
A palavra complexo denota o elemento estrutural básico da psique objetiva, e o
elemento central do complexo e o arquétipo. Ao conteúdo inconsciente responsável pelas
54
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

perturbações da consciência, Jung (2013) deu o nome de complexos. Tendo estabelecido


que os complexos existem no inconsciente, Jung se interessou em examiná-los ainda.
Com instrumentos tais como Associação Verbal, pôde medi-los com um razoável
grau de precisão. A medição exata podia transformar vagas teorias especulativas em
dados e ciência, um fato muito agradável para o temperamento científico de Jung.
Ele concluiu que podia medir a carga emocional mantida num determinado complexo
se simplesmente somasse o número de indicadores de complexo que ele gerava e a
severidade dessas perturbações.

Vamos apresentar uma vinheta que facilitará o entendimento na abertura desse tópico.
Um rapaz procurou ajuda, auxílio psicoterápico por causa de dificuldades generalizadas
em relação às pessoas, ou melhor, a qualquer pessoa que desafiasse sua necessidade
compulsiva de dominar qualquer situação, especialmente, e claro, seus superiores
no trabalho. Sua ânsia de liderar e de dominar os outros funcionava relativamente
bem até que ele sentisse que sua liderança estava de algum modo sendo questionada.
Ele interpretava até mesmo a tentativa de alguém para conhecê-lo melhor como uma
ameaça a sua autoridade. Qualquer pessoa que tivesse uma aparência de autoridade
sobre ele parecia imediatamente insultá-Io, portanto ele constantemente achava
necessário mudar de emprego. Não havia sido capaz de terminar a faculdade porque
era intolerante com a disciplina exigida. Ele claramente tinha um problema em relação
à autoridade e à disciplina, e reagia violentamente a elas, no entanto tinha potencial
para tornar-se um excelente líder. Era muito sensível aos sentimentos e às necessidades
dos outros – apesar de que, a esta altura, sua sensibilidade trabalhava contra ele, já que
o tornava mais apto a retrair-se. A autoridade fascinava-o e repugnava-o ao mesmo
tempo; ele não conseguia nem aceitá-Ia nem exercê-Ia adequadamente. Em linguagem
psicológica simples, esse rapaz tinha um complexo de autoridade. Ele sempre estava
preso à autoridade. O rapaz ia direto a ela, ele a combatia e a desafiava, mas sempre se
sentia impelido a exercê-Ia. Era incapaz de enquadrar-se em qualquer situação comum
na qual o exercício da autoridade fosse apropriado, e mais ainda de encarar um desafio
real que o exigisse.

De acordo com Whitmont (1969), nesse tipo de situação, é como se uma personalidade
autoritária e dividida estivesse dirigindo e ridicularizando o indivíduo em questão,
levando-o a encontrar o problema da autoridade em toda parte, independentemente
de seu melhor juízo – ou seu “pior” juízo – e o que é mais importante, ele não sabia
que estava sendo dirigido. Qualquer coisa associada, mesmo que remotamente, com a
autoridade, sobretudo com a autoridade paterna, punha essa força em movimento e o
fazia de um modo bastante destrutivo porque, quer ele a encontrasse em outras pessoas,

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Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

quer ele próprio a exercesse, era certo que problemas surgiriam. Ele hostilizava as
pessoas ou era hostilizado por elas, e invariavelmente punha a culpa nos outros. Parecia
que sempre era a outra pessoa que não reconhecia o seu efeito benéfico, e era sempre
a outra pessoa que o isolava ou queria derrubá-Io, ou o desafiava ou o antagonizava.

Em linguagem psicológica, diríamos que esse indivíduo era idêntico ao seu impulso
autoritário. Era compulsivo em relação a ele, e projetava-o nos outros. Esta e a essência
de um complexo destruidor. E um conjunto autônomo de impulsos agrupados em
torno de certos tipos de ideias e emoções carregadas de energia; é expresso em
identidade, compulsão e primitividade, inflação e projeção, enquanto ele se
mantiver inconsciente. Um estado de identidade e uma ausência de diferenciação.
Em tal estado, o indivíduo não consegue se separar dos elementos impulsionadores,
visto que não é lhe e dada uma escolha consciente entre as motivações do ego e os
elementos impulsionadores.

Os resultados dos experimentos de Jung (2013) o convenceram de que há, de fato,


entidades psíquicas fora da consciência, as quais existem como objetos que, semelhantes
a satélites, gravitam em torno da consciência do ego, mas são capazes de causar
perturbações no ego de uma forma surpreendente e, por vezes, irresistível. São os
diabretes e demônios interiores que podem pegar uma pessoa de surpresa. As perturbações
causadas por complexos devem ser diferenciadas, compreensivelmente, das perturbações
provocadas por fatores estressantes oriundos do meio ambiente externo, embora
possam estar, e com frequência estejam, intimamente relacionadas umas com as outras.

Conforme explana Whitmont (1969), quando somos idênticos a um impulso, não há


diferença entre nossa capacidade de reação consciente e o impulso. Normalmente,
descobrimos mil razões que justificam por que tinha de ser daquele jeito e não poderia ser
de modo diferente; essas razões sempre parecem perfeitamente lógicas e convincentes –
e temos a certeza de que, na medida em que são razões sensatas e boas, elas obviamente
pertencem a nós, enquanto as razões negativas só poderiam pertencer a outra pessoa.
Como a identidade significa que o ego é idêntico ao impulso, identidade também
significa total desconhecimento da existência do impulso como algo separado da nossa
capacidade de raciocínio. Damo-nos conta do resultado depois do acontecimento.

O impulso ou complexo sempre se revela, no estágio primitivo (inconsciente), como


se viesse de outra pessoa, porque tudo aquilo com que nos identificamos é projetado.
Usamos a palavra projeção aqui num sentido diferente do que e usado comumente em
linguagem psicológica. Seu significado comum é aquele em que uma pessoa culpa outro
indivíduo pelo que ela está fazendo a fim de se defender. A projeção, da maneira como

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Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

Jung (2013) usa o termo, não é uma manobra defensiva deliberada, mas um estado
original que não oferece escolha, e é o caminho pelo qual o complexo inconsciente tenta
chegar ao nosso consciente. Isso tem a ver com o fato de que a orientação primária
fundamental e a diferenciação psicológica são conseguidas por meio das percepções
sensoriais, originadas a partir do mundo exterior.

Cabe ressaltar aqui que os complexos não são necessariamente apenas negativos; eles
causam atração assim como repulsão. Estamos envolvidos com uma projeção positiva
quando aquilo que nos irrita nos atrai, nos fascina, desperta nossa admiração, quando
nos apaixonamos por urna pessoa ou ideia. Toda vez que isso ocorre, encontramos um
potencial positivo nosso, ao qual somos idênticos (isto é, indiferenciados e inconscientes
dele), mesmo que esse potencial positivo esteja coberto por uma roupagem obviamente
negativa. Por exemplo, podemos ser atraídos por uma qualidade que, a um contato mais
próximo, verificamos ser totalmente destrutiva; no entanto, já que não conseguimos
desenvolver essa qualidade em nós mesmos, e já que ela está destinada a ser uma
capacidade vital e criativa quando utilizada construtivamente, ela nos atrairá mesmo
nessa forma inadequada, enquanto não tivermos consciência dela.

Os seres humanos são impelidos por forças psíquicas, motivados por pensamentos
que não se baseiam em processos racionais, e sujeitos a imagens e influências para
além daquelas que podem ser medidas no meio ambiente observável, ou seja, somos
criaturas impulsionadas por emoções e imagens, tanto quanto ponderamos, e sentimos
provavelmente muito mais do que pensamos. No mínimo, uma grande parcela de
pensamento é colorida e modelada por emoções, e a maioria dos nossos cálculos
racionais está sujeita às nossas paixões e medos. Foi o propósito de entender esse lado
menos racional da natureza humana que levou Jung (2013) a adotar as ferramentas
do método científico e a dedicar sua vida à investigação do que dá forma e motiva a
emoção, a fantasia e o comportamento humano.

De acordo com Stein (2006), o inconsciente é povoado por complexos. Algumas


palavras-estímulos ativam conteúdos inconscientes e estes, por sua vez, estão ainda
associados a outros conteúdos. Quando estimulada, essa rede de material associado –
formada por lembranças, fantasias, imagens, pensamentos – gera uma perturbação na
consciência. Os indicadores de complexo são os sinais de perturbação. Precisamente, o
que causa a perturbação ainda necessita ser desvendado, e isso é feito mediante novas
perguntas à(ao) paciente e, se necessidade houver, através de mais análise.

Agora apresentaremos mais um termo bastante conhecido dentro da psicoterapia


junguiana: a palavra constelação, esta aparece com frequente nos escritos de Jung e

57
Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

é importante no léxico junguiano. Refere-se usualmente à criação de um momento


psicologicamente carregado, um momento em que a consciência já está, ou está prestes
a ficar perturbada por um complexo. Esse termo exprime simplesmente o fato de que
a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e
na atualização de determinados conteúdos. A expressão “está constelado” indica que o
indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá
de forma inteiramente definida.

Pode-se verificar, por meio das vivencias pessoais, que todos nós sabemos o que significa
estar constelado. Isto ocorre num espectro que vai desde estar levemente ansioso
até ficar perdidamente angustiado e, transpondo todos os limites, cair na loucura.
Quando um complexo está constelado, a pessoa é ameaçada com a perda de controle
sobre suas emoções e, em certa medida, também sobre o seu comportamento. Ela reage
irracionalmente e, com frequência, lamenta-o, arrepende-se ou pensa melhor sobre
o que fazer na próxima oportunidade. Por exemplo, quando constelada, é como se a
pessoa estivesse em poder de um demônio, uma força muito superior à sua vontade.
Isso gera um sentimento de impotência.

Segundo Stein (2006), a energia do complexo refere-se à quantidade exata de potencial


requerido para o sentir e o agir contidos no núcleo, semelhante a um imã, do complexo.
Os complexos têm energia e manifestam uma espécie de rodopio eletrônico próprio
como os elétrons que rodeiam o núcleo de um átomo. Quando são estimulados por
uma situação ou evento, soltam uma rajada de energia e pulam sucessivos níveis
até chegarem à consciência. Essa energia penetra na concha da consciência do ego
e inunda-a, influenciando-o a rodopiar na mesma direção e descarregar parte da
energia emocional que foi liberada por essa colisão. Quando isso ocorre, o ego perde
por completo o controle da consciência ou do próprio corpo.

Em outras palavras, pode-se inferir que, quando uma pessoa mente ou tenta esconder
as provas de uma reação saturada de complexo, o ego pode ser capaz de engolir alguns
dos indicadores, mas ser-lhe-á muito mais difícil suprimir reações fisiológicas mais
sutis. Os egos da maioria das pessoas serão normalmente capazes de neutralizar em certa
medida os efeitos de complexos. Essa capacidade serve aos interesses da adaptação e até
da sobrevivência. Isso é semelhante à capacidade para dissociar, ou seja, se uma pessoa
não fosse capaz de fazer isso (dissociar), o ego tornar-se-ia disfuncional justamente no
momento de maior perigo, quando manter a cabeça fria é o mais urgentemente necessário.

Vale ressaltar aqui a ótica clínica de que os psicoterapeutas têm que ser capazes de colocar
em segundo plano suas próprias emoções e conflitos pessoais quando estão atendendo

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Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

a suas(seus) pacientes. Para que sua presença seja eficaz em face de um(a) paciente cuja
vida está em total desordem, o terapeuta deve manter-se calmo e frio, ainda que seja
um momento de caos na sua própria vida. Tal manejo requer a habilidade para anular
os efeitos de complexos sobre a consciência do ego em, pelo menos, um certo grau.
E como podemos a partir de agora entender de como são formados os complexos?

Segundo Stein (2006), os complexos são formados por imagens e muitas vezes
construções traumáticas. No entanto, cabe ressaltar que essa questão deve ser situada
num contexto social mais amplo. Alguns estudos de Jung (2013) sobre associação de
palavras abordaram a questão das influências da família sobre a formação do conteúdo
inconsciente em crianças, ou seja, por meio do experimento de associação verbal, ele
apurou fortes indícios de padrões de uma impressionante semelhança na formação
de complexos entre membros da família – entre mães e filhas, pais e filhos, e mães e
filhos, por exemplo. Dessas combinações, as mais próximas eram mães e filhas. Suas
respostas às palavras-estímulos revelaram ansiedades e conflitos quase idênticos.

Vale ressaltar que, no desenvolvimento de uma criança, essas estruturas psíquicas


iniciais são significativamente modificadas pela exposição à cultura mais amplificada.
A constante exposição da psique a estímulos culturais e sociais, desde meios de
comunicação televisionados, internet, a escola, torna-se um fator nas subsequentes
etapas da infância, e isto reduz a influência psicológica de culturas étnicas e familiares,
pelo menos em uma sociedade pluralista como o caso do Brasil. Quando o grupo de
iguais passa a ser central, ele gera novos e importantes elementos estruturais, muitos
deles baseados em padrões culturais comumente acessíveis. E, no entanto, os antigos
complexos induzidos pela família não desapareceram da psique. Os complexos materno
e paterno continuam a dominar a cena no inconsciente pessoal.

Filme Jornada da Alma (Soul Keeper) – Dublado. Disponível em: https://www.


youtube.com/watch?v=h-DSDQn11Sc.

Assista à indicação do filme para ter uma compreensão mais ampla a respeito
do experimento de associação verbal de palavras, o qual auxiliava Jung a ter uma
visão mais amplificada acerca dos complexos acessados durante os processos
de análise.

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CAPÍTULO 3
A abordagem junguiana dos sonhos
no processo analítico

Neste capítulo, abordaremos os pontos essenciais para compreensão necessária do


manejo clínico sobre as concepções do mundo onírico no processo analítico à luz da
psicologia profunda junguiana. O sonho como parte do processo analítico em sua
construção representa a realidade interior tal como ela é, e não uma suposição do
sujeito que pensa ser que é, ou seja, perpassa por uma construção que constitui um
fenômeno imaginativo, um produto da atividade imaginativa do inconsciente.

Conforme já apresentado no capítulo 1 desta unidade em estudo, o consciente e o


inconsciente não são considerados de maneira independente entre si. Eles articulam-se
e devem sempre serem considerados em uma relação de reciprocidade, ou seja, o que
se exprime através dos sonhos tem, entre outras, a função de compensar a atitude do
consciente. Ressalta-se, nesse sentido, que o sonho pode eventualmente ser a realidade
de um desejo reprimido, no entanto, na perspectiva junguiana, tem um outro alcance,
pois considera-se esse fenômeno essencialmente em sentido dinâmico, quer dizer, como
uma autorregulação natural do psiquismo. Na análise de sonhos à luz da psicologia
analítica, importa menos a causa do sonho do que seu objetivo; menos o que ele quer
dizer do que o que ele quer de nós neste exato momento.

A teoria proposta por Jung (2013) sobre amplificação dos sonhos tem sido estudada,
criticada e ampliada no decorrer do tempo. As descobertas, assim como os conceitos
por ele desenvolvidos, continuam vivos e férteis. Eles são continuamente atualizados
por meio de pesquisas empíricas, de estudos teóricos e da prática clínica. A abordagem
junguiana persiste como referência para os estudos interdisciplinares, além de ser
promotora de espaço para debates socioculturais.

Ressalta-se que os analistas junguianos, provavelmente mais do que qualquer outro


grupo de psicoterapeutas, estão envolvidos com os sonhos, os nossos e as(os) das(os)
nossas(os) analisandas(os). Para interpretar os sonhos, recorre-se à teoria abrangente
e flexível desenvolvida por C. G. Jung. Até agora, muitos anos depois da morte de
Jung, nenhuma fonte ofereceu uma concepção meticulosa e sistemática da abordagem
junguiana da interpretação dos sonhos.

Este capítulo tem a intenção de preencher essa lacuna (técnica de análise, interpretação
e amplificação dos sonhos) para os psicoterapeutas e, também, para o crescente número
de pessoas que estão interessados nos seus sonhos. Entre essas pessoas interessadas,

60
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

existem muitas que buscam um método intelectualmente satisfatório de interpretação


dos sonhos e, por conseguinte, precisam conhecer a teoria de Jung. É importante
ressaltar que as ideias de Jung sobre a interpretação dos sonhos constituem uma teoria,
no sentido de um corpo organizado de conceitos, baseados na experiência clínica, por
meio da qual os sonhos podem ser interpretados.

Jung (2013) desenvolveu a sua teoria de interpretação dos sonhos ao longo da sua
vida. Ele estava constantemente testando, modificando, elaborando e ilustrando-a, de
modo que declarações relevantes são encontradas praticamente em todos os volumes
das suas obras completas, em outras publicações, paralelas a esses acervos de escritos
conhecidos como obras completas, e em textos impressos privadamente (palestras
e seminários em universidades a sua época na Europa). Ele nunca se sentiu levado a
organizar formalmente o seu acervo de conceitos porque nunca considerou as suas
formulações como finais.

De acordo com Jung (2013 apud MATTOON, 2014), os sonhos às vezes têm um
efeito salutar, mesmo quando não são interpretados. O benefício dos sonhos não
interpretados é geralmente fraco e transitório; se a mensagem contida em um sonho
não for levada à consciência, ela “esmorece e volta ao caos [...] mas depois recomeça”,
ou seja, ela se repete em sonhos subsequentes até o sonhador “prestar atenção” nela.
Na psicoterapia, por exemplo, um tipo um tanto mais comum de sonho que carrega
um significado de vida ou morte é aquele que revela as ideias suicidas de um paciente
que foram ocultadas do terapeuta. Essa revelação pode ajudar a orientar a conduta da
terapia.

Conforme explana Mattoon (2014), os sonhos, como esses que revelam ideias suicidas, e
outros que conduzem informações menos dramáticas, que podem ser conscientemente
omitidas pela(o) paciente, demonstram que são fontes de informações específicas para
o terapeuta. Os sonhos propiciam o acesso aos diversos níveis da psique e à natureza,
e causas de problemas individuais.

Consequentemente, para Jung (2013), os sonhos eram fundamentais para o processo


psicoterapêutico, de tal modo que ele caracterizava a análise dos sonhos como uma
“obrigação profissional” do terapeuta, explanação esta apresentada na obra “A prática
da psicoterapia” (vol. 16/1). Ele considerava a análise uma ferramenta de diagnóstico,
especialmente para descobrir a etiologia da neurose de um(a) paciente. A interpretação
dos sonhos também promove a cura por complementar as experiências conscientes
do sonhador, liberando energias reprimidas e abrindo a mente consciente para o
conteúdo mental inconsciente.

61
Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

Em “O eu e o inconsciente” (vol. 7/2), Jung (2015) formulou a hipótese de que os


problemas psicológicos são atribuíveis a uma ruptura que separa a mente inconsciente
da mente consciente. Por conseguinte, para que a psicoterapia possa ser eficaz, o
tratamento precisa curar essa ruptura; a(o) paciente precisa saber o que está ocorrendo
no inconsciente e assimilar os conteúdos inconscientes. De acordo com o autor citado
acima, “Os sonhos desenvolvem os pontos essenciais, gradualmente, e com a escolha
mais apropriada” (JUNG, 2015, p. 33).

Segundo Mattoon (2014), uma pessoa que sofre de neurose ou de um complexo grave
vive excessivamente em um dos lados da personalidade. Jung (2015) recomendou
que uma pessoa assim deve procurar reconhecer essa unilateralidade e as atitudes
impraticáveis que resultam dela. Aprender a entender os próprios sonhos possibilita
que a pessoa enriqueça a mente consciente. Embora o conteúdo adicionado à
consciência possa ser desagradável, ele conduz, geralmente, a um autoconhecimento
mais profundo e a uma maior estabilidade mental. Ao formar uma conexão integral
entre o consciente e o inconsciente, a pessoa pode alcançar um horizonte mental
mais amplo, uma nova orientação com relação à vida e o ordenamento de um mundo
que estava muito confuso.

Ressaltamos que dentro do arcabouço teórico construído na psicologia junguiana, o


sonho é considerado um processo psíquico natural, regulador, análogo aos mecanismos
compensatórios do funcionamento corporal. Sendo assim, a percepção consciente
pela qual o ego se orienta constitui apenas, inevitavelmente, uma visão parcial, pois
muita coisa fica sempre fora da esfera do ego. Reforçamos que o inconsciente contém
material esquecido, além de material como os arquétipos, que não podem, em princípio,
ser conscientes, embora mudanças na consciência possam assinalar a existência deles.
Mesmo dentro do campo da consciência, alguns conteúdos estão em foco, enquanto
outros, embora indispensáveis à manutenção da percepção focal, não estejam.

Segundo Hall (2007), existem três maneiras possíveis de se ver o sonho como atividade
compensatória, sendo todas importantes para a compreensão do clínico. Em primeiro
lugar, o sonho pode compensar distorções temporárias na estrutura do ego, dirigindo
o indivíduo a um entendimento mais abrangente das atitudes e ações. Por exemplo,
alguém que está furioso com um amigo, mas descobre que a fúria se dissipa com rapidez,
poderá sonhar que investe furiosamente contra o amigo. O sonho recordado devolve
para nova atenção uma quantidade de fúria que havia sido reprimida, talvez por razões
neuróticas. Também pode ser importante para o indivíduo que sonha perceber que
complexo foi constelado (ativado) na situação.

62
Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

Um segundo e mais profundo modo de compensação é aquele em que sonho, como


autorrepresentação da psique, pode colocar uma estrutura do ego em funcionamento face
a face com a necessidade de uma adaptação mais rigorosa ao processo de individuação.
Isso em geral ocorre quando o indivíduo pessoalmente se desvia do caminho de um
ajustamento às condições existentes; por mais adequado que tal ajustamento pareça,
uma tarefa adicional está sempre à espera (em última instancia, a tarefa de enfrentar
a morte como um evento individual).

Um exemplo desse segundo tipo de compensação é o sonho de uma pessoa que estava
muito bem adaptada socialmente, nas áreas da vida comunitária, familiar e de trabalho.
Ela sonhou que uma voz impressionante dizia: “Não estás levando a tua verdadeira
vida!”. A força dessa declaração, que a despertou em sobressalto, durou por muitos
anos e influenciou um movimento na direção de horizontes que não estavam claros
na época do sonho (HALL, 2007).

Essas duas formas de compensação – o sonho como “mensagem” para o ego e como
autorrepresentação da psique – contêm a ideia junguiana clássica da função compensatória
dos sonhos, substancialmente diferente da tradicional concepção freudiana, que via os
sonhos como descarga de tensão psíquica e realização de desejos ou como protetores
do sono. Agora veremos que há um terceiro processo mais misterioso e sutil, pelo qual
os sonhos são compensatórios. O núcleo arquetípico do ego constitui a base duradoura
do ‘eu’, mas pode ser identificado com muitas personas ou identidades do ego. O sonho
pode ser visto como uma tentativa para alterar diretamente a estrutura de complexos
sobre os quais o ego arquetípico se apoia para a identidade em níveis mais conscientes.

Embora Jung (2013) considerasse a interpretação dos sonhos essencial para a psicoterapia,
ele também a julgava um aprendizado valioso para pessoas que não faziam psicoterapia.
Para essas pessoas, a expansão da consciência resultante da incorporação de conteúdos
inconscientes por meio da análise dos sonhos intensifica o desenvolvimento da sua
personalidade.

Algumas evidências dessa declaração são encontradas na “maturidade emocional


fenomenal” dos Temiar, uma tribo do povo senoi da Malásia, conhecidos pela sua
atenção aos sonhos na vida do dia a dia. A compreensão dos sonhos pode ajudar
uma pessoa a entender o comportamento humano, inclusive o próprio, e viver mais
produtivamente. Com frequência, encontramos um maior sentido de significado na
vida ao incorporar uma dimensão que tem sido desconsiderada por muitas pessoas, a
“esfera da experiência irracional” (JUNG, 2013).

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Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

Conforme assevera Mattoon (2014), reconhecidamente, poucas evidências empíricas


estão disponíveis para verificar interpretações específicas de sonhos e menos ainda
para apoiar um sistema teórico para a interpretação de sonhos. Por conseguinte, não se
pode demonstrar inequivocamente que qualquer teoria seja preferível a outras teorias.
O próprio Jung (2013) defendia uma exaustiva pesquisa para chegar à verdade, e ele
contribuiu para a pesquisa no seu trabalho clínico ao analisar cerca de 2 mil sonhos por
ano durante muitos anos. No entanto, uma pesquisa mais sistemática se faz necessária,
inclusive a testagem de hipóteses junguianas específicas.

Embora poucos teóricos não junguianos reconheçam explicitamente as contribuições


de Jung (2013) para a interpretação dos sonhos, muitos implicitamente aceitam o
trabalho dele ao rejeitar o conceito freudiano de que o sonho manifesto é um disfarce
para o conteúdo latente do sonho, e adotam uma abordagem que está mais próxima
da ideia junguiana de que o sonho diz aquilo que significa.

Além disso, muitos psicoterapeutas copiaram Jung ao considerar mais útil extrair dos
sonhos de pacientes comentários sobre o significado dos complexos do que meramente
se concentrar, como Freud, no que são os complexos. Além disso, quando os sonhos são
interpretados como construtivos e também como causais, como na teoria junguiana,
o(a) sonhador(a) pode ser ajudado(a) a enxergar possibilidades para o crescimento em
vez de apenas examinar o passado, de onde vieram os problemas.

Conforme explicita Mattoon (2014), a linguagem dos sonhos, de acordo com Jung
(2013), é pelo menos tão complexa e variada quanto a linguagem da consciência.
A linguagem dos sonhos é formada, em grande medida, por imagens não verbais
que variam mais acentuadamente em complexidade e nitidez do que experiências
correspondentes do estado desperto.Em um nível relativamente simples, a linguagem
dos sonhos é frequentemente figurativa, ou seja, semelhante a figuras de linguagem.
Por exemplo, nas conversas do dia a dia, podemos caracterizar uma pessoa como uma
“cobra”, “porca” ou “fofa”, querendo dizer que ela é traiçoeira, desleixada ou delicada.

De acordo com Mattoon (2014), outra característica da linguagem dos sonhos é o


exagero: as imagens de objetos ou pessoas comuns podem se mostrar fascinantes ou
ameaçadoras, e situações da vida real podem assumir proporções exageradas ou diferir
em outros aspectos das situações efetivas. Outra característica ainda é o iconoclasmo:
os sonhos desafiam convicções e valores estimados.

Frequentemente surge a questão de se alguns sonhos são típicos, ou se, pelo menos,
alguns temas são típicos. (Um tema é uma imagem ou ideia repetida; por conseguinte,

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Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

um sonho pode ter vários temas.) Grupos idênticos ou até mesmo pares de sonhos
são raros. No entanto, uma determinada imagem pode se repetir frequentemente nos
sonhos de uma pessoa, e alguma semelhança pode ser encontrada entre os temas dos
sonhos de uma pessoa e/ou de outras. Exemplos são temas de cair, voar, ser ameaçado
por animais perigosos e correr muito, mas não chegar a lugar nenhum. (MATTOON,
2014).

Embora Jung (2015, p. 56) afirmasse que “o sonho não segue leis claramente determinadas
ou modos regulares de comportamento”, ele reconhecia que existem mecanismos que
ajudam a formar a linguagem dos sonhos. Entretanto, ele atribuía uma ênfase muito
menor a eles do que à teoria freudiana, que encarava os mecanismos como essenciais
para o trabalho com o sonho por meio do qual o conteúdo latente do sonho é traduzido
para o sonho manifesto.

Vale pontuar aqui que muitos sonhos não são compreensíveis para a pessoa que
está tentando interpretá-los. Jung (2013) argumentou que o problema é semelhante
ao de qualquer cientista envolvido com a investigação de fenômenos naturais: ele
precisa partir do princípio de que o fenômeno que está sendo investigado encerra
significado antes que possa tentar compreender os fatos. Essa suposição tem como
respaldo a experiência clínica. Ao analisar dezenas de milhares de sonhos, Jung (2013)
constatou que alguma mensagem pode ser colhida praticamente de todos os sonhos,
e frequentemente, a mensagem é mais significativa do que uma avaliação superficial
poderia prever.

De acordo com aporte teórico apresentado por Mattoon (2014), um sonho que
inicialmente parece tolo, absurdo ou apenas ininteligível conduz, às vezes, a importantes
revelações a respeito do sonhador. Além da experiência clínica, outros respaldos
podem ser citados para a ideia de que os sonhos encerram significado. Um deles é a
presença de temas repetidos em uma série de sonhos de um(a) sonhador(a); a repetição
dá a impressão de que os temas, sejam eles compostos de imagens conhecidas ou
desconhecidas, estão exigindo atenção para algo específico na vida do sonhador.

Segundo Hall (2007), no curso atual da análise junguiana, os sonhos são frequentemente
usados como ponto de referência para a interação no processo analítico. Analista e
analisanda(o) são aliados na tentativa de compreender a mensagem do sonho em
relação ao ego da(o) analisanda(o). Por vezes, os sonhos indicam que a atenção deve ser
dirigida para a transferência-contratransferência, a constelação típica da interação na
situação analítica. Como não existe uma posição privilegiada da qual se possa conhecer
a verdade da psique de uma outra pessoa, analista e analisanda(o) estão empenhados

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Unidade II | Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana

num empreendimento exploratório que envolve uma confiança básica entre eles. Se
um sonho se concentra nessa relação, ela deverá ser examinada analiticamente ao
longo do processo.

Vale ressaltar que, na clínica junguiana, a amplificação dos sonhos é uma ferramenta
de fundamental importância, pois cabe mensurar o construto a fim de não pensar
que o sonho nunca se esgotará, ou seja, na melhor das hipóteses, pode-se encontrar
um significado útil e coerente para o sonho, mas até mesmo tal significado pode ser
alterado à luz dos sonhos subsequentes que podem surgir ao longo do desenvolvimento
do processo analítico.

Pode-se inferir que dentro de uma interpretação de sonhos há um potencial construto


que envolve um diálogo contínuo entre o ego e o inconsciente, um diálogo que
se estende indefinidamente e cujo tema pode mudar tanto de foco quanto de
nível de referência. Um benefício adicional da amplificação dos sonhos é o fato
de o ego reter na memória consciente um resíduo do sonho que permite à pessoa
identificar motivos semelhantes na vida cotidiana e assumir uma atitude ou ação
apropriadas, resultando em menor necessidade de compreensão inconsciente dessa área
problemática específica.

Com relação ao uso não interpretativo dos sonhos, Hall (2007) explicita que as
personificações em sonhos, incluindo imagens de cenas e objetos inanimados, refletem
a estrutura de complexos psicológicos no inconsciente pessoal, que se assentam todos
em núcleos arquetípicos na psique objetiva e estão submetidos à força centralizadora
e individuante do si-mesmo ou do arquétipo central. Esses complexos objetivados e
simbolicamente representados em sonho, incluindo a constelação particular do ego
onírico, refletem a atividade autônoma do si-mesmo em relação ao ego, tanto o ego
vígil quanto o ego onírico. Por conseguinte, é possível discernir, mesmo tenuemente,
o que o si-mesmo está fazendo com os complexos que englobam o ego e outros
conteúdos da psique.

Ressalta-se que os motivos de um sonho podem se referir ao presente ou ao passado


e indicar pessoas reais, vivas ou mortas, ou figuras totalmente desconhecidas na
vida vígil. As pessoas não conhecidas na vida vígil provavelmente constituem partes
personificadas da própria psique do indivíduo que com elas sonhou. Pela cuidadosa
atenção a esses detalhes, é possível inferir que partes da psique e partes da experiência
passada do ego estão consteladas na mente por ocasião do sonho. A atenção analítica a
essas áreas, mesmo sem uma amplificação formal do sonho, pode conduzir o processo
psicoterapêutico na mesma direção do fluxo natural da individuação.

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Conceitos básicos da matriz constituinte da estrutura psíquica junguiana | Unidade II

Pode-se observar que, quando os complexos são representados, em suas distintas imagens
e configurações subjetivas, a energia psíquica adicional focaliza neles o resultado mais
provável: um recrudescimento da percepção consciente. Quando um(a) clínico(a) mais
experiente, que adquiriu proficiência no uso da interpretação dos sonhos, estes podem
servir como fator adicional na avaliação diagnóstica e prognóstica, e sutil indicador
quanto à oportunidade de instituir ou alterar medicação, considerar hospitalização e
variar a frequência das sessões psicoterapêuticas. Cabendo ressaltar que tais observações
se tornam mais evidentes quando observadas e acompanhadas em casos de pacientes
em estados neuróticos.

Mattoon (2014) assevera que a busca de significado nos sonhos está radicada, sem dúvida,
no assombro dos seres humanos com o funcionamento da mente. A mente continua a
funcionar de alguma forma durante o sonho, como é evidenciado pela constatação de
que, quando as pessoas que estão dormindo são acordadas, seja durante o sono REM
ou no NREM, elas quase sempre relatam que alguma coisa estava acontecendo na sua
mente. Com o nosso conhecimento atual limitado da mente e do seu funcionamento,
certamente é prematuro descartar suas atividades durante o sono como desprovidas
de significado. Mais exatamente, a probabilidade de conhecermos melhor a mente por
meio do estudo dos sonhos e do ato de sonhar parece muito elevada. E finalizamos
o capítulo apresentando os possíveis caminhos para um manejo clínico de análise
dos sonhos em conformidade com os elementos apresentados no setting analítico e
o acolhimento permitido da(o) analista na terapêutica de suas(seus) analisandas(os).

67
CONSIDERAÇÕES
CONCEITUAIS
SOBRE O PROCESSO UNIDADE III
ANALÍTICO
Nesta unidade, abordaremos alguns aspectos correlacionados ao processo analítico à
luz da psicologia analítica de Jung, conhecida também como psicoterapia junguiana
nas bases de construção inicial, que no presente contexto contemporâneo ganha
uma nova amplificação conhecida como “psicanálise junguiana”. Os psicanalistas
junguianos são ativos hoje em todos os países da Europa Ocidental e agora também em
muitos países do Leste Europeu, bem como na Austrália, Ásia, África e no continente
americano. No presente momento, eles desempenham um papel significativo nas
profissões de saúde mental mundo afora e cada vez mais ensinam em instituições
acadêmicas. Além do mais, junguianos têm demonstrado extensa consideração pelos
desenvolvimentos modernos em outras escolas psicanalíticas e pesquisa cientifica
de ponta.

CAPÍTULO 1
O processo analítico:
encarando a sombra

O processo analítico na abordagem junguiana por muito tempo ficou distante dos
manejos clínicos psicoterapêuticos aplicados nas escolas-clínicas do Brasil de modo
geral, em especial nas universidades do centro-sul e norte do país, cabendo ressaltar
que alguns centros de estudos na região de São Paulo possuem em seu eixo ementário
dos programas de graduação em Psicologia um arcabouço teórico-prático à luz da
psicologia junguiana.

Para ter um aprofundamento sobre o paradigma qualitativo a respeito da teoria


da psicologia analítica, confira apontamentos no artigo disponível em:https://
www.scielo.br/j/pusp/a/TNM3RqWw3krC4NhQSKV3cWC/?lang=pt.

O artigo discute o paradigma junguiano e suas interfaces com a metodologia


qualitativa de pesquisa e a ciência pós-moderna. Assim como você encontrará
aspectos relevantes e atuais sobre os desdobramentos da teoria desenvolvida por
C. G. Jung e demais colaboradores considerados pós-junguianos ou neojunguianos.

68
Considerações conceituais sobre o processo analítico | Unidade III

Ao iniciarmos os desdobramentos acerca do desenvolvimento da psicologia analítica,


cabe ressaltar dois fatores que, a partir da incursão de Jung em papeis de liderança
em organizações profissionais psicanalíticas e psicoterapêuticas, como presidente da
IPA e da Sociedade de Psicoterapia Médica Internacional, foram negativos para ele
pessoalmente e para seus seguidores profissionalmente. Após esses esforços, ele não
dava muito valor à vida organizacional, e por isso associações profissionais foram lentas
em se desenvolver em torno dele, mesmo quando a necessidade e a demanda ficaram
grandes. Outro fator importante foi que o conflito de Freud/Jung predispôs muitos
psicoterapeutas contra Jung, especialmente enquanto o modelo freudiano desfrutou
de tanta influência no mundo profissional (STEIN, 2019).

Ao efetivarmos um panorama geral a respeito da teoria junguiana, cabe ressaltar que


a “psicanálise junguiana” é o nome contemporâneo da aplicação clínica da psicologia
analítica. A intuição seminal de Jung (2013) da psique se desenvolvendo, mudando,
buscando um objetivo – ou seja, se individuando – permanece uma percepção fulcral
em torno da qual tudo é mais construído. De acordo com Stein (2019), essas ideias
continuam a guiar recentes contribuições ao pensamento psicanalítico junguiano,
tanto quanto o fizeram nas duas primeiras gerações de junguianos.

Cabe ressaltar que a visão de Jung (2013) da psique é que ela não é fundamentalmente
defeituosa e patológica, ou seja, destinada a representar uma história invariavelmente
trágica, mas sim orientada rumo ao desenvolvimento ao longo da vida que pode ou
não ser apenas parcial ou relativamente realizado por completo. Ressaltando ainda
que, de modo algum, isso significa que a psicopatologia seja ignorada. A patologia
sem dúvida corrompe e interrompe os processos de individuação em todos os
estágios da vida, mas a psique procura superar sua enfermidade de vários modos, e
este si-mesmo em individuação é o que a psicanálise junguiana busca, é com ele que
ela se alia e o usa para fomentar e encorajar os processos de mudança e crescimento
na consciência.

É importante está atento a este ponto (possibilidade do crescimento da consciência),


pois a(o) analista na medida do possível busca possibilidades de acompanhar e facilitar
uma emergência natural do si-mesmo na psique, em vez de impor um programa de
aprimoramento do funcionamento do ego ou do que seja compreensível a partir de
manejos investigativos e amplificados pra possível remoção cirúrgica de estruturas
patológicas por meio de interpretações incisivas. Em geral, a psicanálise junguiana é
vista como um esforço colaborativo de reflexão, e o diálogo, ao invés da interpretação
dogmática unilateral, é a regra.

69
Unidade III | Considerações conceituais sobre o processo analítico

Conforme explicita Stein (2019), a(o) analista junguiano almeja o desenvolvimento na


pessoa da capacidade de ver por detrás, por assim dizer, a se ouvir ‘por acaso’ como se
fosse um interlocutor de si mesmo, e a oferecer uma mão acolhedora a novas ideias,
imagens e autorrepresentações, quaisquer que elas sejam, conforme emergem no curso
da análise. Na psicanálise junguiana, essa exploração tem lugar no espaço criado entre
duas pessoas dedicadas à exploração da realidade psíquica. A(O) analista deve seguir
várias vias de mergulho no mundo oculto do inconsciente (por exemplo, nos sonhos,
nas fantasias, na imaginação ativa, nas descargas de complexos, na transferência) e, além
disso, vários métodos para reunir esses insights e fixá-los na memória e na consciência
(interpretação, sandplay, arte, movimento corporal). A intenção é construir uma
identidade baseada no si-mesmo total.

Vale lançar um questionamento acerca do manejo clínico no processo analítico


na psicanálise junguiana: e como é em relação à infância, adolescência, juventude?
Os analistas freudianos tradicionalmente enfatizaram esses primeiros estágios da vida,
enquanto que os analistas junguianos ficaram mais conhecidos por visarem questões
relativas à segunda metade da vida. Como vimos na unidade I, no capítulo 3 em especial,
dentro do contexto da escola desenvolvimentista, os psicanalistas junguianos hoje
em dia prestam atenção em grau surpreendente também ao desenvolvimento inicial
do sujeito.

Segundo Stein (2019), de uma perspectiva junguiana, os primeiros estágios são


preparatórios para os posteriores, e uma razão principal para trabalhar analítica e
terapeuticamente com crianças, adolescentes e jovens adultos é maximizar as chances
de eles adquirirem maturidade mais tarde. As patologias engendradas pelo trauma
precoce, por uma ligação e apego insuficiente, e pelo fracasso da separação dos pais
e família de origem levam a uma segunda metade de vida estagnante, defensiva e
ameaçada pelo declínio contínuo da desenvoltura, resiliência e criatividade. Se os
frutos da maturidade e da individuação são uma maior consciência e uma compaixão
mais profunda por si mesmos e pelos outros – em suma, sabedoria e transcendência –,
o fracasso de se individuar resulta em ressentimento, isolamento e pobreza espiritual.

É comum ouvirmos, no contexto acadêmico, ou mesmo sermos questionadas(os) sobre


a seguinte indagação: quais são os objetivos finais do processo analítico junguiano?
Cabe ressaltar a dificuldade de falar sobre os objetivos de um modo geral e abrangente,
pois cada caso é diferente e convoca a considerações específicas, manejos acolhidos
e amplificados conforme a natureza psíquica que cada sujeito traz na construção de
suas narrativas. Ressaltando que o manejo clínico no processo analítico junguiano

70
Considerações conceituais sobre o processo analítico | Unidade III

está além de apenas apresentar a “cura”, a mudança de comportamento e adequação a


padrões estipulados pela sociedade.

Murray Stein (2019) assevera de forma explicita e articulada que a(o) psicanalista
junguiana(o) é treinada(o) (dentro do seu processo de formação, análise individual e
supervisionada) a olhar para cada analisanda(o) como um indivíduo com uma história
única e desafios muito específicos, ou seja, o resultado da análise é diferente em
cada caso, e o tratamento (manejo clínico analítico) deve ser adaptado ao indivíduo.
Um manejo clínico vivenciado com um(a) paciente em situação de ansiedade, não
servirá para outra(o) paciente que esteja passando por um quadro de ansiedade, ou
seja, um modelo de manejo não serve para todos!

Vale ressaltar a importância da aplicação e articulação adequada à demanda apresentada


pela(o) paciente no processo analítico. Em “A prática da psicoterapia” (vol. 16/1), Jung
(2013) esboça quatro estágios do tratamento psicoterapêutico: confissão, elucidação
e transformação. Neste capítulo, iremos esboçar nesta etapa inicial – confissão – os
aspectos relevantes acerca do enfrentamento da sombra, arquétipo este apresentado na
unidade II, capítulo 2, de fundamental importância para nossa compreensão a partir
de então. Ao encarar a sombra, toma-se o primeiro desses estágios e se desenvolve o
conceito de confissão como uma questão de trazer as figuras e energias sombrias da
psique para consciência e integrá-las.

Vale explanar que a noção de sombra para Jung (2013) traz uma importante contribuição
à teoria e prática da psicologia profunda e da psicanálise, pois o modo como a sombra
tem sido compreendida tem se desenvolvido naturalmente no contexto da orientação
de cada autor dentro do campo analítico, às vezes enfatizando seu lugar e significado
clássico, desenvolvimentista e/ou arquetípico dentro de uma concepção global da vida
psíquica e da análise. A importância dessa etapa inicial é ter a compreensão e o um
olhar para a sombra como um fenômeno psicológico vivo que continua a ter muito a
nos ensinar sobre a psique.

Conforme afirma Stein (2019), encarar a sombra é um dos mais importantes objetivos
da psicanálise junguiana, pois implica, dentro do cenário investigativo, que a(o) analista
terá como metas e objetivos da análise junguiana dar conta do inconsciente. Encarar a
sombra é um aspecto-chave deste trabalho global. O autor nota que dar conta da sombra
significa colocar em questões de autoilusões mais caras a que a(o) paciente se agarra,
e que têm sido usadas para sustentar a autoestima e manter um senso de identidade
pessoal. Vale ressaltar que encarar a sombra e confrontar nossas ilusões são momentos
compreensivelmente dolorosos na análise.

71
Unidade III | Considerações conceituais sobre o processo analítico

Pode-se inferir que, de forma geral e mais ampla, a definição do conceito de sombra
seria como referir-se à escuridão do inconsciente, ao que é rejeitado pela consciência,
conteúdos positivos e negativos, bem como o que não se tornou ainda, ou talvez
nunca se torne, consciente. Voltar-se para a escuridão significa por assim dizer que é
encarar as partes inaceitáveis, indesejáveis ou subdesenvolvidas de nós mesmos, por
exemplo, o aleijado, o cego, o cruel, o feio, o inferior, o pervertido, o inflacionado e
por vezes vil, bem como descobrir os potenciais de desenvolvimento dos quais estamos
inconscientes.

Na sua asseveração, Jung (2013) explicita que nossa tentativa de nos encaixar em
nossas famílias e nos valores históricos e culturais resultam no desenvolvimento, pela
personalidade, do que ele chamou de uma persona, uma máscara por meio da qual a
adaptação é facilitada, mas que é uma estrutura necessária de relacionamento. Em nome
da adaptação, aqueles aspectos da personalidade mais ampla julgados inaceitáveis são
frequentemente negados, reprimidos e cindidos da personalidade em desenvolvimento.
Como consequência, eles podem se torturados, feridos, mutilados e podem recuar
para a escuridão onde, por fim, podem ser mortos e enterrados. Outros potenciais do
si-mesmo que nunca foram conscientes podem, do mesmo modo, sofrer resistência e
jamais enfrentarem um relacionamento consciente com a personalidade.

72
CAPÍTULO 2
O encontro analítico:
transferência/contratransferência,
análise didática e supervisão

Observe a Figura 2 para começarmos a ter uma compreensão mais precisa acerca do
conjunto de ações necessárias no processo de formação da(o) analista:

Figura 2 – Formação do analista.

Formação teórica

Supervisão Análise
técnica/didática individual

Fonte: Elaborada pelo autor.

Temos um tripé com bases sólidas no processo de formação de um(a) analista, pois
a formação teórica ao longo dos estudos reforça o arcabouço e aportes teóricos
que subsidiarão o teor referencial que a(o) analista terá como suporte, no entanto,
esse construto se dá de forma concomitante com o início de sua análise individual
e, posteriormente, a supervisão com analista didata responsável pela supervisão
dos acompanhamentos e discussões de casos clínicos trazidos ao setting analítico.
A importância de ter uma formação pautada nesse tripé analítico se deve a possíveis
diagnósticos, assim como as interpretações e avaliações do material da(o) paciente são
baseadas nos sentimentos percepções da(o) analista.

A percepção de Jung (2015) com relação ao problema de a(o) analista não se encontrar
em processo de análise foi uma das principais razões que o levaram a exigir que a(o)
analista fizesse uma análise completa. De acordo com Jacoby (2015), teoricamente,
a análise didática reduz os riscos de projeções infundadas por parte da(o) analista,
porque, por meio dela, ela(e) se torna mais consciente do que se passa com ela(e).
Uma maior consciência de seus complexos, suas fraquezas, seus princípios de avaliação
73
Unidade III | Considerações conceituais sobre o processo analítico

e seu ponto de vista pessoal tem importância vital para esse trabalho, pois pode haver
resultados desastrosos caso ela(e) os projete na(o) paciente. Observe a Figura 3 para
termos uma compreensão dos movimentos que ocorrem num processo de análise na
psicoterapia de orientação junguiana.

Figura 3. Transferência e contratransferência no processo de análise.

Linguagem verbal e comportamento consciente (CS).

Analista Paciente

Sonhos, fantasias e projeções (ICS)


Analista Paciente
Entrave no canal de
comunicação
Contratransferência

Fonte: Elaborada pelo autor.

O diagrama representado na Figura 2 mostra a complexidade do que ocorre entre


duas pessoas na relação analítica junguiana. É uma variação do desenho de Jung
(2012) em “A psicologia da transferência”, inspirado pelo que ele chama de quatérnio
do matrimônio, que ele usou para ilustrar as várias relações entre um homem e uma
mulher ou paciente e analista. No entanto, essa figura apresenta algumas adequações
realizadas pelo autor do conteúdo, com intuito de servir como modelo para os tipos
de configurações de transferência entre analistas e pacientes do mesmo sexo ou do
sexo oposto.

Segundo Jacoby (2015), a transferência é, na verdade, uma forma de projeção; de fato


o termo transferenceé é apenas a tradução do termo projetio em latim, ou ‘projeção’.
Enquanto analistas junguianas(os), utilizamos a palavra transferência como um
termo técnico para as projeções que ocorrem na relação paciente-analista(Figura 3).
De acordo com Jung (2015), fala-se de projeção quando conteúdos psíquicos pertencentes
a experiências subjetivas e intrapsíquicas são vivenciados no mundo externo em relação
a outras pessoas ou objetos. Isto significa que não estamos conscientes de que esses
conteúdos façam realmente parte de nossa própria estrutura psíquica.

Pode-se observar nos consultórios clínicos que, algumas(ns) pacientes, por exemplo,
dizem-nos frequentemente algo do tipo: “sei exatamente o que você pensa agora, posso
senti-lo – você pensa que eu não presto, sou um lixo de pessoa por pensar isso [...]”.
Esse tipo de autocrítica é um problema básico para essas(es) pacientes. Elas(es) não
74
Considerações conceituais sobre o processo analítico | Unidade III

estão cientes de que esses julgamentos ocorrem dentro delas(es), e que a autocrítica
negativa é projetada no mundo exterior e, é claro, na(o) analista, conforme a interação
entre analista-paciente, situando os elementos advindos do inconsciente (projeções).
Ressalta-se que as(os) pacientes muitas vezes creem que a(o) analista tem certamente
maus pensamentos em relação a elas(es), embora não possa admiti-lo – o tratamento
requer muitos truques psicológicos e outras coisas afins.

Pode-se considerar em determinados contextos que a observação de quais conteúdos são


projetados dá dicas importantes à(ao) analista, mostrando em que áreas um aumento
de consciência é de necessidade vital para a(o) paciente. Os conteúdos projetados
não são apenas repetições que revelam material reprimido. Novos conteúdos da
psique criativa podem surgir e são vivenciados, primeiramente, nas projeções. Assim
sendo, o processo interno de autorrealização, o processo que Jung (2015) chamou
de individuação, está frequentemente ativo por trás das cores, conteúdos e formas
específicas evidenciados pela transferência. A(O) analista junguiana(o) se defronta,
frequentemente, com situações de transferência difíceis e delicadas, mas, ao mesmo
tempo, muitas vezes, recompensadoras.

Vale ressaltar que sempre haverá pontos cegos e áreas inconscientes enquanto vivermos,
e daí a contratransferência, a inevitável projeção eventual dos conteúdos inconscientes
da(o) analista na(o) paciente! Frequentemente os comentários da(o) paciente, ou seu
comportamento, tocarão num ponto fraco ou sensível da(o) analista; por vezes, o
paciente compartilha do mesmo complexo central que o analista, porém, com algum
esforço e honestidade, elas(es) ainda poderão trabalhar bem juntos para benefício de
ambos. Talvez a qualidade mais importante que o analista possa ter é sua prontidão
para questionar seu ponto de vista, suas reações, sentimentos, emoções e pensamentos
repetidamente em novas situações, sem perder a espontaneidade.

Se o paciente sonha com o analista, deve-se considerar que o sonho possa refletir não
somente as projeções da(o) paciente em relação à(ao) analista, como também, por
vezes, a atitude verdadeira da(o) analista na situação analítica. Um sonho criticando o
analista deve ser levado a sério no sentido em que o analista deve se perguntar se essa
crítica está dizendo algo sobre sua própria atitude e seus pontos cegos.

Na relação analítica, o processo analítico envolve, efetivamente, tanto analista quanto


paciente.A(O) analista tem que estar consciente de seus impulsos de poder, ou de suas
necessidades de ser pai ou mãe, de forma a mantê-las sob um certo controle, e não
buscar satisfazê-las inconscientemente pela relação analítica.
75
Unidade III | Considerações conceituais sobre o processo analítico

Observação e análise de um exemplo


de caso supervisionado
Paciente: uma mulher de 23 anos, extremamente inibida, introspectiva, insegura.
Chegou ao consultório por indicação de outras pessoas que tinham iniciado seus
atendimentos psicoterápicos.Os bons resultados e acolhimentos de seus sonhos basearam
que a abordagem psicodinâmica seria o melhor contexto para ela naquele momento
em que se encontrava. A paciente trouxe o seguinte sonho inicial, depois da primeira
sessão analítica:
Estou em uma casa. Há um homem velho que quer me matar e ele corta as
minhas artérias, eu grito por socorro e tento enfaixar as feridas eu mesma.
Então consigo escapar e procuro um médico que enfaixa os ferimentos.
(Relato do sonho elaborado pela paciente, com adaptações).

Pôde-se inferir, a partir de suas associações, que ficou claro que esse perseguidor
assassino representava uma atitude que havia vivenciado com sua mãe e se tornou
destrutivamente eficaz e poderosa dentro dela mesma. De acordo com essa descrição,
sua mãe era uma mulher dominadora e uma religiosa fervorosa do catolicismo, tentara
desde cedo transmitir aos filhos que uma vida correta significava rezar e cumprir
as obrigações. Ela sofria de uma condição cardíaca de origem nervosa e usava essa
condição como fonte de poder. Caso seus filhos ou seu marido resistissem, ela adoecia
e sentimentos de culpa se constelavam neles.

A paciente, que apresentava bastante sensibilidade, se encontrava em estado de depressão


e apresentava muitos destes sintomas que usualmente surgem de uma relação primária
conturbada e da falta de confiança primária. Seu comportamento em relação a sua mãe
foi, desde cedo, rebelde, essencialmente saudável. Mas sua rebeldia era, invariavelmente,
seguida de sentimentos de culpa e remorso. Ela tinha, então, que se desculpar para
a mãe que a perdoava generosamente. Rebeldia era um pecado que tinha que ser
perdoado pela mãe e depois pelo padre confessor na igreja. A paciente não conseguia
ver a suma importância de seus impulsos rebeldes, é claro, e, assim, não conseguia
confiar em seus sentimentos. Ela foi se tornando cada vez mais desconectada de sua
própria natureza e cada vez mais dependente da mãe.

Jürg Willi (1960 apud JACOBY, 2015), psicanalista suíço, diz que a criança de uma mãe
que sofre de um distúrbio narcísico tem de viver desde cedo com o seguinte paradoxo:
eu sou eu mesmo apenas se cumpro as expectativas que minha mãe tem de mim. Se caso
contrário, sou como eu sinto, então não sou eu mesmo. Continuando com a análise do
caso, o sentimento inconsciente da paciente de que não tinha direito de viver sua vida
76
Considerações conceituais sobre o processo analítico | Unidade III

de acordo com sua própria natureza fora expresso em seu sonho inicial por meio do
corte nas artérias. Nos termos do modelo junguiano, o velho representaria o animus
negativo da mãe, agora internalizado.

A paciente foi ao médico, com esse problema, presumivelmente uma reação saudável
a sua incapacidade de ajudar a si mesma. Após a primeira sessão, parecia que ela
achava que o analista havia tratado sua “ferida” de maneira adequada. Logo se
desenvolveu uma transferência muito intensa e complexa, caracterizada por um
incidente particularmente importante: um dia ela trouxe um sonho no qual o analista
havia dado a ela o livro de Jung sobre a criança divina. Depois que ela narrou o sonho,
o analista foi até sua estante e deu o livro para ela ler. Foi uma reação espontânea
do analista, um impulso ao qual o analista cedeu e que pareceu certo no momento.
Certamente essa reação pode ser questionada em sessões de supervisão pela(o)
analista didata.

Pode-se inferir que algumas(ns) analistas poderiam ter preterido adentrar suas fantasias
relacionada à criança divina. O analista escolheu espontaneamente a concretização
– a atuação, por assim dizer – da fantasia do sonho. O analista ficou imaginando,
naturalmente, como a paciente iria reagir àquilo e pensou que haveria tempo de entrar
em suas fantasias na sessão seguinte.

Na semana seguinte, a paciente veio a segunda sessão e desculpou angustiadamente


por simplesmente não ter conseguido ler o livro, que ela detestara desde o primeiro
parágrafo. Ela ainda disse que era certamente burra demais para compreendê-lo e, de
novo, desculpou-se. O analista sentiu uma reação misturada nele mesmo. Ele notou, com
certeza, um sentimento de desapontamento pelo fato de o livro não ter tido um efeito
melhor sobre a paciente e que ela tivesse que rejeitar algo que o analista considerava
valioso e significante do ponto de vista terapêutico. Analista chegou até a sentir um
impulso de raiva. Ao mesmo tempo, a reação interior dele de desapontamento e raiva
foi suavizada por suas desculpas e sua autodesvalorização.

O analista pensou, novamente, no sonho inicial da paciente, no qual o velho a segue


até o consultório médico. De um lado, um importante processo havia começado em
seu inconsciente, um processo ao qual o simbolismo significativo da criança divina
se referia – como o analista pode ver também nos sonhos seguintes da paciente.
De outro lado, ficava evidente também que a paciente havia começado a repetir com o
analista o padrão de rebeldia e perdão que ela havia vivenciado com a mãe. Parecia que
o analista recebia não só a projeção do médico que ajudava como também a do
animus assassino.

77
Unidade III | Considerações conceituais sobre o processo analítico

Vale considerar um elemento importante nesse momento em que as coisas estavam


se complicando consideravelmente, pois a paciente sonhara que o analista havia lhe
dado aquele livro importante. Esse desejo estava certamente direcionado ao médico
e tinha um significado profundo em relação ao seu desenvolvimento interno. Mas o
fato de o analista lhe dar o livro significava, ao mesmo tempo, que ele estava dizendo:
“Olhei aqui, isto é o que você deveria ler, isto deveria ser de teu interesse e não outra
coisa, este é o modo com o qual você deveria lidar com sua criança interior” – tudo na
linguagem crítica que é típica do animus negativo. Era muito importante para ela se
rebelar contra aquela figura interna que havia sido transferida para o analista.

No entanto, cabe ressaltar que a rebelião constelou sentimentos de culpa intensos e,


consequentemente, a paciente teve que se desculpar repetidamente. Permitir-se aquela
rebelião era verdadeiramente, de certo ponto de vista, mais importante do que ler o
livro e, portanto, o analista não entrou na resistência ao sonho, mas interpretou seu
comportamento como uma repetição de seu padrão de rebelião e reparo. O analista
também reparou que a rebelião de sua paciente era saudável e representava sua tendência
à independência. O analista percebeu que esta interpretação foi um grande alívio para
sua paciente.

Cabe ressaltar também aqui que, no final das contas, a paciente realmente havia
sonhado que o analista havia lhe dado o livro, e ele também queria conversar com ela
sobre isso. Visto no contexto de seu sonho, tudo parecia diferente de novo. A paciente
admitiu, a princípio, que ficara muito satisfeita quando o analista lhe deu o livro.
Aquilo significara que ele estava levando seus sonhos muito a sério, como se fossem
uma parte importante dela mesma. A paciente também vivenciou a crença do analista
de que ela seria capaz de ler o tal livro como uma grande afirmação. Desde o início da
infância, a paciente tivera fantasiais sobre um homem letrado, com experiência de vida
e com um entendimento total de seus tumultos interiores. Ela disse que quando veio
à primeira sessão de análise, ela soube que o analista era o homem de suas fantasias.

É de suma importância verificar como o animus destrutivo entrou em ação novamente


como uma resistência ao médico e às tendências curadoras dela mesma ao dizer: “[...]
E, de qualquer modo, sou burra demais para ler este livro”. Na realidade, sua mãe
sempre chamara a atenção da paciente por viver nas nuvens e exagerar tudo e lhe
dissera que já era hora de se tornar razoável, com alguma utilidade! Nessa situação,
pode-se verificar que o analista representava, de um lado, o homem letrado da fantasia
da paciente, que entendia e apoiava sua vida interior – exatamente em contraste com
a sua mãe. De outro lado, a paciente tinha sempre medo de que o analista a criticasse

78
Considerações conceituais sobre o processo analítico | Unidade III

ou ridicularizasse caso ela se expusesse, que o analista esperava que ela fosse razoável
– assim como a sua mãe pensava.

Compreender a complexidade de tal transferência não significa necessariamente


que é mais fácil chegar a uma resposta terapêutica adequada. Conforme mencionado
anteriormente, o analista interpretou a transferência do animus negativo da mãe de um
modo assim chamado redutivo, especialmente para fazê-la se conectar com memórias
de interações similares que evocassem também emoções similares. Mas e a constelação
do arquétipo do curador na transferência? Sua necessidade vital de ser compreendida e
levada a sério criou aparentemente essa figura-fantasia arquetípica numa idade bastante
jovem. A paciente era, na realidade, do tipo sentimento-introvertido.

Cabe pontuar aqui que, por trás da fachada da timidez, inibição e aparente falta de contato,
a psique da paciente estava intensamente viva e ela estava cheia de perguntas sobre
o significado da vida. A conexão dela com esse seu lado essencial era constantemente
interrompida pela voz do animus destrutivo que dizia a ela que era ridículo tomar a
sério tais ideias irreais. No entanto, o homem sábio, com sua experiência de vida,
compreendeu tudo aquilo que era de importância vital para sua alma. Tal fantasia era
decisiva, pois a ajudava a crer em seus valores internos e permitir suas manifestações.

Aqui vale ressaltar que a decepcionante tomada de consciência de que o analista é


apenas um ser humano comum deve vir gradualmente não por via de um choque
traumático. Deve-se permitir o lento processo de retirar as projeções: o conteúdo
projetado pode então ser reconhecido pela(o) analisanda(o) como intrapsíquico e
pode ser parcialmente integrado. No sonho dessa paciente, parecia que o analista, na
figura do curador sábio, queria ajudá-la a se conectar com a criança divina, ou seja, a
criança em si própria, com todo o seu múltiplo simbolismo. Certamente, isto tinha
a ver com o estabelecimento de contato com memórias e fantasias de sua infância,
quando a manifestação espontânea de sua verdadeira natureza havia sido inibida.

Conforme explicita Jacoby (2015), qualquer analista junguiano sabe que não é seu
trabalho curar. A ajuda só pode vir pela transformação da atitude do paciente, do
encontro de uma relação acertada com seu inconsciente. Uma vez que o analista é
tomado inconscientemente pelo arquétipo do curador, esse conhecimento pode ser
usado de forma exageradamente zelosa e prematura. A necessidade emocional de
ajudar quer um escape.

Jacoby (2015) compartilha em suas arguições e contribuições clínica o arquétipo do


curador. Na mitologia, esse arquétipo é retratado na imagem de Asclépios e, muitas

79
Unidade III | Considerações conceituais sobre o processo analítico

vezes, também na de seu pai, Apolo, que está associado às musas, à criatividade espiritual
e artística, ao oráculo; no entanto, ele é também o atirador de flechas. Suas flechas
podem curar, mas elas também podem ferir ou matar. Depois dessa reflexão, cabe
mensurar que o excesso de atividade do analista, quando ele é tomado pelo arquétipo
do curador, pode nos lembrar, por vezes, as flechas de Apolo.

Ele tem que atirar interpretações, sugestões e conselhos na direção da(o) paciente para
preencher sua própria necessidade de ajudar e curar. No entanto, o resultado não pode
ser previsto. Para a(o) paciente, pode parecer que seu pedido de ajuda é recebido por
demandas da(o) analista – ela(e) deveria fazer isto e aquilo para se sentir melhor. Porém
essas flechadas em sua ferida podem resolver a questão. A energia do arquétipo do curador
pode induzi-la(o) a satisfazer essas demandas; ela(e) poderá sentir alguns resultados
iniciais, pode começar um processo frutífero. As demandas poderão, no entanto, tocar
em um difícil complexo paterno inconsciente. Então a(o) paciente sente apenas sua
inabilidade em satisfazer as demandas e conselhos da(o) analista. Isto pode colocá-la(o) em
desespero consigo mesma(o) ou levar a uma grande resistência em relação à(ao) analista.

Nesse contexto, vale ressaltar a importância da análise entre paciente-analista, na qual


há um desespero mútuo – a(o) paciente sente que não consegue ajuda, e a(o) analista
sente não pode ajudá-la(o). Ás vezes, há sonhos que podem ajudar em situações
como esta, mas não é sempre o caso, especialmente se a(o) paciente é resistente.
O problema pode ser que a(o) analista esteja inconsciente do impacto que o seu
entusiasmo terapêutico tem na(o) paciente,por isso é importante, em geral, prestar
atenção em como as “demandas” da análise junguiana clássica – anotar sonhos, manter
um diário, pintar etc. – são vivenciadas pela(o) analisanda(o).

Conforme aponta Crowther (2019), tornar-se um(a) analista é essencialmente um longo


período de aprendizado e de interiorização de nossos mentores, com toda a ambivalência
que isso envolve. As várias escolas de formação junguiana diferem na importância que
dão à erudição intelectual e ao aprendizado da teoria, mas todas concordam que uma
grande ênfase deve ser dada à capacitação e avaliação da prontidão e autoconsciência
pessoais da(o) analista em formação, ou seja, significa a capacidade de experimentar
profunda e honestamente nossos processos mentais interiores em relação aos outros.

Na prática, como esse desenvolvimento é alcançado? A análise pessoal claramente tem


isso como um objetivo primordial, mas talvez a segunda influência mais potente sobre
a(o) analista em formação é a supervisão. A função do(a) supervisor(a) é oferecer uma
arena que ajudará no processo de integração/reintegração que formará uma identidade
profissional com um(a) analista.

80
Considerações conceituais sobre o processo analítico | Unidade III

A supervisão ajuda a juntar e tornar operacional no consultório toda a experiência


de vida acumulada, conhecimento teórico, instinto, empatia, intuição e autenticidade
das(os) noviças(os) em seus encontros com seus próprios processos inconscientes e com
os de suas(seus) pacientes, bem como no ressoar das imagens coletivas arquetípicas de
cada paciente individual. Os analistas retêm ao longo de sua vida profissional fortes
transferências com as figuras de supervisoras(es) significativas(os) e são frequentemente
vistos como pertencendo a uma linhagem de supervisores dentro de uma instituição
de formação.

Uma análise didática é o coração e a alma da formação analítica, pois uma análise
suficientemente boa é essencial para o futuro analista descobrir uma identidade pessoal
e modo de trabalho analítico únicos, um relacionamento saudável e realista com a
comunidade junguiana de analistas, e um compromisso permanente de autoexame
e de consulta ao enfrentar os muitos desafios de uma prática analítica. Jung (2015)
foi o primeiro a reconhecer a necessidade de uma análise didática, embora haja uma
escassez de artigos analíticos sobre este tema, sem dúvida pode ser delicado escrever
sobre o trabalho analítico na mesma e pequena comunidade analítica, mesmo com a
permissão sendo garantida.

Artigo Reflexões sobre a prática da supervisão na formação profissional:


uma perspectiva junguiana,disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0103-08252018000100005.

O artigo aponta elementos de reflexão e aprofundamento para análise da questão


acima mensurada relativa à supervisão didática da(o) analista junguiano em
formação.

Segundo Sherwood (2019), a importância de fazer terapia como uma parte da


formação dos profissionais da psicoterapia não é a regra nos Estados Unidos, em que
predomina o tratamento focado nos sintomas, usando abordagens farmacológicas e
cógnito-comportamentais. Em contraste a esta, as escolas psicanalíticas veem os sintomas
como uma comunicação inconsciente e reconhecem o papel central da transferência.
Muito da literatura analítica aborda o poder da transferência e contratransferência,
especialmente os modos pelos quais a(o) analista pode conceitualizar e trabalhar com
esses fenômenos imbricados. As(Os) junguianos também enfatizam a importância da
função simbólica como uma ponte entre o consciente e o inconsciente.

Desde já agradeço e quero declarar meu prazer em supervisionar e ser supervisionado.


Não obstante a importante consideração da posição do supervisor de relativo poder e
autoridade, o propósito criativo da supervisão é promover a curiosidade mútua sobre

81
Unidade III | Considerações conceituais sobre o processo analítico

os relacionamentos, abrir acesso a experiências mentais e emocionais com vistas a


explorar quaisquer que sejam as camadas geológicas de significado inconsciente que
podem ser extraídas da psique pessoal e coletiva. Esse é um trabalho interessante e
estimulante, às vezes dolorosamente honesto, outras vezes, frustrantemente incerto
e, ainda outras vezes, agradavelmente revelador.

82
CAPÍTULO 3
os honorários no processo de análise
e suas nuances compensadoras
no setting analítico

Este capítulo apresentará de forma objetiva e aplicada as formulações contratuais


relacionadas aos honorários estabelecidos pelo analista-paciente no processo de
análise e suas nuances compensadoras no setting analítico. Normalmente, a(o) analista
profissional precisa de pacientes por razões puramente práticas – para sobreviver.
No início de seus atendimentos, após estarem recém-formados, os analistas de modo
geral ficam frequentemente ansiosos para obter pacientes e, uma vez que conseguem
alguns, temem perdê-los. Essa ansiedade pode estimular o analista a fazer o melhor
que pode pelo bem do paciente. Porém como ele é, muitas vezes, financeiramente
dependente da continuidade da análise com as(os) pacientes, ele poderá, também, se
tornar dependente demais em relação as suas demandas.

Vamos refletir um pouco mais!Por exemplo, a(o) analista pode se sentir livre o suficiente
para permitir frustrações inevitáveis ou arriscar assumir uma linha dura, se necessário.
A própria ansiedade subjacente de que a(o) paciente não retornará pode inibir a sua
liberdade de relacionar-se com o analisando conforme a situação exija. Ele pode tentar
ser agradável ou compreensivo demais. E pode também tentar construir, o mais
rápido possível, e por vezes de maneira forçada, uma relação de transferência positiva
no intuito de sentir-se mais seguro quanto à continuidade da(o) paciente na análise.
Caso isso aconteça, a(o) analista estaria clinicando, em grande parte, em proveito
próprio. Diversos temores podem surgir dessa situação, como o medo de que a(o)
paciente fique decepcionada(o) caso não compreenda bem seus sonhos ou não tenha
insight brilhante a cada sessão. A(O) paciente poderá, desta forma, se tornar também
um objeto do próprio medo da(o) analista.

Conforme assevera Jacoby (2015), a fonte dessa ansiedade não é sempre reconhecida
suficientemente bem, ou seja, todo o comportamento de uma pessoa pode ser racionalizado
ao se dizer que é extremamente importante para a(o) paciente permanecer na análise
e, consequentemente, deve-se fazer todo o possível para mantê-la(o) ali. Pode até ser
este o caso, porém a necessidade legítima do analista de sobreviver financeiramente
deve estar consciente para que possa distinguir o que é o quê. Também é importante
estar completamente ciente da possível necessidade de vivenciar a própria identidade
por meio da análise de pacientes.
83
Unidade III | Considerações conceituais sobre o processo analítico

É importante frisar aqui que, naturalmente, não se trata de uma situação muito
proveitosa quando a(o) analista depende de apenas alguns poucos pacientes para se
sustentar, ou seja, na ausência de recursos privados, seria aconselhável ter um emprego
de meio período também para que se sinta mais seguro financeiramente. Caso isso não
seja possível, deve-se estar o mais consciente possível sobre os perigos da situação,
sofrendo os riscos e consequências de ser pobre por algum tempo, mas manter-se fiel
às necessidades da análise.

Os elementos do recriar-se enquanto profissional de análise tem tomado diferentes


perspectivas durante o momento de pandemia ao redor de todo o mundo! Cabe-
nos refletir sobre as variáveis que sopram de forma favorável ao encontro das
novas modalidades de atendimento online em processo de psicoterapia e análise.

É um fato da realidade a(o) analista precisar dos honorários das sessões de análise para
se sustentar. Admitir honestamente para si mesma(o) é importante. No entanto, em
geral, não é favorável à terapia que a(o) paciente saiba que o analista depende dele
financeiramente, uma vez que esse conhecimento pode ser usado inconscientemente
para manipulações de poder. A(O) analista deve ter uma posição que seja o mais
independente possível para poder construir uma relação com a(o) analisanda(o) que
seja válida do ponto de vista terapêutico. Desde o início, ela(e) tem que acreditar que
as(o)s pacientes virão e permanecerão se ele trabalhar bem e com honestidade, de
acordo com a verdade interior de cada situação analítica.

Observa-se, de modo geral, que a(o) analista iniciante geralmente aceitará qualquer
um que apareça, pois ainda não pode escolher quem será adequado para análise em
geral, e, em particular, para trabalhar com ele. Deixando de lado suas necessidades
financeiras e a ansiedade para obter pacientes, isso pode ter a ver também com sua falta
de experiência, todavia, normalmente, a experiência só pode ser ganha por conclusões
dolorosas de que a análise não é para todas as pessoas, e que ela(e) mesma(o) poderá
não ser um(a) bom(boa) analista para todos. Esse tipo de experiência provavelmente
não pode ser evitado, mesmo quando não é sempre em benefício da(o) paciente.

Segundo Jacoby (2015), todo esse assunto de honorários é uma questão efetivamente
delicada e consteladora de complexos para muitos analistas. Alguns creem que é uma
parte importante da terapia, outros duvidam disto. Jung nada teve a dizer sobre o
assunto, mas Freud (1924 apud JACOBY, 2015) acreditava ser essencial que a(o)
paciente pagasse os honorários. Hoje podemos observar que, diante do cenário de
pandemia, muitos institutos tradicionais de análise ofereceram e ainda estão oferecendo
atendimentos analíticos online gratuitos!

84
Considerações conceituais sobre o processo analítico | Unidade III

Vale ressaltar que a crença de que é importante para a(o) paciente pagar honorários
pode ser uma racionalização para o fato de que a(o) analista precisa dos honorários
da(o) paciente. Essa necessidade pode levantar alguns sentimentos de culpa – afinal
de contas, que tipo de relação eu/você (paciente/analista) é esta, se uma das partes
quer ser remunerada por ela? Entretanto, a(o) analista também tem que viver, ter o
seu ganha-pão de cada dia, assim como os demais prestadores de serviços na área de
saúde. Vale ressaltar também que a formação da(o) analista foi custosa e ela(e) pode
ter acumulado dívidas; ela(e) pode ter uma casa, um financiamento imobiliário, uma
família para sustentar, além de precisa suprir suas necessidades básicas de alimentação
e segurança.

A questão do valor dos honorários a serem cobrados pode ser por si só uma questão
para uma busca interior. Qual é o valor adequado? O que é apropriado? Um analista
cobra aquilo que o mercado pode suportar; outro, aquilo que ele acredita que seja o
valor de sua própria energia; um terceiro, aquilo que o paciente pode pagar. Há analistas
que dizem simplesmente que suas energias para a análise não são consteladas se eles
não recebem um valor substancial como honorário.

É fundamental avaliarmos de forma mais ampla que se os honorários forem muito


baixos, ou até mesmo nada, isto pode significar para a(o) paciente que a(o) analista
é de fato uma boa mãe, ou alguém a quem tenha que ser grata(o). Pode até haver
ressentimento por ter que ser grato, mas terá que ser suprimido – afinal de contas
não se pode ser agressivo com alguém tão bacana que está tentando fazer tudo
bem. Naturalmente, isso poderá também inibir a possibilidade de uma relação
analista/paciente honesta. Tais fantasias podem aparecer de qualquer maneira que
a(o) paciente pague os honorários ou não.

É importante pontuar aqui, que neste caso, no entanto, poderão ser interpretadas
como fenômenos de transferência distintos da realidade externa. O dinheiro pode
simbolizar muitas coisas, mas é, acima de tudo, um fator das nossas vidas diárias.
Se um paciente não paga ou paga muito pouco, ele realmente se sente mais dependente
do seu analista e vivencia a si mesmo numa situação relacional de infância.

Conforme aponta Jacoby (2015), especialmente no início do trabalho clínico, um(a)


analista pode ter problemas em relação a honorários. Ela(e) tem, frequentemente, a
necessidade de ser amada(o) por seus pacientes para se sentir segura(o) em seu trabalho
e à vontade consigo mesma(o), e os honorários podem representar um obstáculo
quanto a isso. Ela(e) poderá pensar: “quanto menos eu cobrar, menos a(o) paciente
terá ressentimentos contra mim. Ela(e) confiará mais em mim, pois verá que não

85
Unidade III | Considerações conceituais sobre o processo analítico

estou interessada(o) em seu dinheiro, mais sim nele como ser humano”. Observa-se
que essas são reações de contratransferência, que muitas vezes têm pouco a ver com
a realidade da(o) paciente.

Vamos refletir, agora, sobre o dinheiro como símbolo de valor na análise? Se um(a)
analista cobra muito pouco, a(o) paciente pode ter a sensação de que sua análise
tem pouco valor, ou que há algo de errado com o status da(o) analista. Conforme
foi mensurado anteriormente, a(o) paciente poderá ter um sentimento de gratidão
por tal generosidade, mas também terá ressentimento de ter que sentir gratidão.
Esse ressentimento pode ser defendido com o pensamento de: “a análise não vale
muito – que uso poderá ter?”. Dinheiro como símbolo de valor também pode ter um
impacto na(o) analista. Ela(e) pode se perguntar: “será que as horas que eu dedico
valem o dinheiro que a(o) paciente tem que pagar? Qual é meu valor como analista?”.

O assunto dos honorários tem, frequentemente, algo a ver com autoavaliação consciente
ou inconsciente do analista, ou seja, no início, as(os) analistas se sentem tipicamente
mais inseguras(os) e têm, portanto, uma tendência a cobrar muito pouco. Por vezes,
entretanto, também podem cobrar demais como uma supercompensação por sua
insegurança. Porém, é fato, também, que pacientes que pagam honorários altos são
muitas vezes vivenciados pela(o) analista como uma ameaça maior do que aqueles
que pagam menos. De alguma maneira, ela(e) pode imaginar que as(os) pacientes que
pagam mais têm uma expectativa muito maior dele.

Um ponto importante a ser ressaltado é que o ideal de ego ou analista ideal interior
o ameaça com o medo de ser inadequada(o) e não valer todo aquele dinheiro; e esse
medo interior pode ser projetado na(o) paciente ou pode ocorrer contratransferência.
É muitas vezes verdade que pessoas ricas, que podem pagar honorários altos, esperam
tudo que o dinheiro pode comprar de melhor e podem, certamente, transferir essas
expectativas para a(o) analista juntamente com seu direito à crítica. Aqui, no entanto, é
exatamente o lugar para a(o) analista intervir, mostrando que saúde psíquica não pode
ser comprada com tanta facilidade, e que a realidade da psique tem valores diferentes,
em vez de cair na armadilha inconscientemente. Na verdade, ele provavelmente terá
que tomar essa linha de todo modo, mesmo que seja apenas como autodefesa.

Conforme aponta Jacoby (2015), não é preciso dizer que os honorários têm que ser
flexíveis para acomodarem a verdadeira situação da(o) paciente. Cabe aqui ressaltar
que é importante ter um preço padrão de acordo com costumes gerais e com a própria
autoavaliação, o próprio padrão como analista. A partir daí se pode adaptar o padrão para
necessidades individuais. Como exemplo, normalmente eu digo às(aos)minhas(meus)

86
Considerações conceituais sobre o processo analítico | Unidade III

pacientes meu valor padrão nas entrevistas iniciais, e caso eles possam pagá-los,
partimos para o contrato da aliança terapêutica, e sendo assim, eu lhes digo em que
bases legais eu os aceitarei para o processo de análise, assim como em quais bases eu
não posso aceitá-los.

Cito um exemplo diante de alguns processos, casos e situações distintas:pude vivenciar


como podemos ter um papel na análise com um paciente, um compulsivo severo cuja
agressão era bastante inibida. Não era possível chegar perto dele, e ele tinha sonhos
horríveis que demonstravam que suas defesas tinham razão de ser. Quase nada se
movimentou por um longo tempo, e eu me senti bastante exaurido com o caso. Eu não
podia terminar a análise, pois aquilo o teria levado a um perigoso grau de ansiedade.
Decidi aumentar o preço para o valor padrão – ele vinha pagando o valor abaixo do
padrão – e simplesmente coloquei o valor mais alto na conta e lhe enviei, sem discutir
o assunto na sessão. Se ele não viesse mais, pensei tanto melhor para ele e para mim.
Ele poderia culpar-me por aquilo, e o estrago seria muito menor do que se eu tivesse
que lhe dizer para parar de vir. Sendo compulsivo, ele tinha o costume de pagar as
contas em dia, mas dessa vez ele não pagou e não telefonou, nem enviou e-mail para
marcar outra sessão.

Vale ressaltar aqui que, para pessoas compulsivas, já é uma conquista se ele conseguir
superar sua culpa por não pagar as contas imediatamente. Ele pagou a conta por ordem
de pagamento mais de um mês depois e, passando mais algum tempo, telefonou para
marcar mais sessões. Na terceira sessão, ele finalmente pode falar de sua raiva em
relação a mim por eu ter aumentado o preço da sessão; ele precisou de todo esse tempo
para reunir coragem. Então, ele foi capaz de extravasar mais agressão, dizendo que ele
não se incomodava em pagar um valor mais alto se as coisas estivessem se movendo
– isto é, se eu fosse um melhor analista. Isso foi, efetivamente, uma grande conquista.
Agora sim, eu poderia discutir com ele, por que eu acreditava que ele se beneficiaria
mais da análise com uma analista mulher. Eu o recomendei e ele realmente teve a
coragem de telefonar e ir vê-la.

Por haver uma outra necessidade da(o) analista, ela(e), às vezes, deseja inconscientemente
que a(o) paciente a satisfaça. Trata-se da necessidade de obter sucesso terapêutico, isto
é, uma melhora substancial na saúde psíquica da(o) paciente. Em geral, os analistas
podem temer por sua reputação se tratam pessoas sem obter sucesso. Dessa maneira,
a(o) paciente torna-se um objeto para o aprimoramento da reputação do analista.

Cabe ressaltar um ponto importante: não existe nada contra o sucesso terapêutico
– afinal de contas, a(o) paciente quer melhorar e, normalmente, a(o) analista deseja

87
Unidade III | Considerações conceituais sobre o processo analítico

a mesma coisa para sua(seu) paciente, de maneira legitima. A melhora por meio da
análise é uma satisfação legítima para ambas as partes e é, certamente, o alvo da análise
como uma forma de psicoterapia. Em outras palavras, se um(a) analista se dá conta
de ressentimento em relação a um(a) paciente que não parece estar melhorando,
é importante refletir sobre esses sentimentos como sinais de contratransferência.
Sua própria necessidade frustrada de provar-se como um analista bem-sucedida(o) ou
seus próprios sentimentos de culpa podem estar envolvidos.

Conforme aponta Jacoby (2015), além da necessidade de sucesso terapêutico, existem,


na(o) analista, muitas outras necessidades humanas gerais que buscam preenchimento
por meio de sua vida profissional. Se ela(e) não lhes der constante atenção, elas(es)
podem entrar na contratransferência pela porta de trás do inconsciente. Também pode
ocorrer o inverso: ser sensível às possíveis reações de contratransferência pode revelar
suas próprias tendências não reconhecidas. As(Os) pacientes têm frequentemente
uma tendência a se tornarem dependentes de seus analistas e, consequentemente, de
projetar muito poder neles.

Cabe mensurar aqui a importância de observar a possessividade inconsciente, pois ela


poderá se mostrar em sentimentos de ciúmes por parte do analista: “ela(e)é minha(meu)
analisanda(o), eu quero tratá-la(o) e formá-la(o) – e ninguém pode interferir nisto”.
Pode-se chamar isso de complexo de pigmalião ou de salvador. Esses sentimentos
também podem ser racionalizados ao empurrarmos para o primeiro plano a necessidade
da(o) paciente pela terapia.

Outro ponto a refletir diz respeito ao potencial de ressentimento da(o) analista caso
ela(e) descubra que a(o) paciente não lhe revela tudo. Ela(e) pode contar coisas para
outras pessoas e não para sua(seu) analista, que então se sente magoada(o) por essa
aparente falta de confiança; a necessidade da(o) analista de ser totalmente digna(o)
de confiança é frustrada pela(o) paciente. Ela(e) poderá, então, repreender a(o)
paciente em vez de encarar o fato como um sintoma de transferência a ser analisado.
Algumas palavras podem ser ditas a respeito da curiosidade da(o) analista. Faz parte
da natureza do seu trabalho cotidiano ouvir detalhes sobre intimidades do paciente,
sua vida sexual e envolvimento com outras pessoas que a(o) analista pode conhecer,
inteirar-se de muitas coisas sobre pessoas que de outro modo ele não ficaria sabendo.
Assim sendo, ele pode usar suas(seus) pacientes para receber notícias íntimas do mundo.

Ressalta-se que essa forma de terapia pode ser efetivamente uma recompensa de seu
trabalho, afinal, quem não é curioso? O perigo seria usar o tempo da(o) paciente para
obter informações que não sejam efetivamente pertinentes à análise. Isto, porém,

88
Considerações conceituais sobre o processo analítico | Unidade III

talvez cause fundamentalmente menos danos do que a repressão da curiosidade.


Se a curiosidade for reprimida como sendo baixa e antiética para um analista, poderá
ocasionar falsas inibições. Toda vez que a curiosidade do analista aparecer, ele poderá
ficar receoso de que a(o) paciente pense que ela(e) é indiscreta(o). O medo de sua
própria curiosidade pode ser contratransferido para a(o) paciente.

De acordo com Jacoby (2015), outro perigo contratransferencial pode ser a necessidade
não reconhecida da(o) analista de viver, por intermédio das(os) pacientes, aqueles lados
da vida que ela(e) mesma(o) não vive ou não pode viver. As(Os) pacientes podem ser
uma fonte de informação e de relacionamento, podem trazer cor à vida, dor e sofrimento
para a vida da(o) analista, fazendo com que se sinta importante, útil e viva(o). Para o
analista, isso pode se tornar um substituto para viver sua própria vida. Certamente,
as(os) analisandas(os) pertencem à vida de um(a) analista.

É importante observar que para podermos concluir este capítulo, tendo em vista um
trabalho extremamente complexo e sutil que um(a) analista tem de fazer, nunca se pode
enfatizar o suficiente a importância de se manter honestamente em contato consigo
mesma(o). Isso implica também que o analista deve levar uma vida tão completa quanto
gratificante para sua personalidade como um todo, ou seja, buscar de forma ativa
outros hobbies, fazer trabalho científico ou artístico que a(o) interesse, se relacionar
com amigos e com a natureza, ter uma vida sexual satisfatória, tirar férias e, no geral,
se divertir – tudo isso pode tirar tempo e energia do trabalho com pacientes, mas, no
longo prazo, contribuirá para sua eficiência como analista. Afinal de contas, se não se
sabe viver, como se poderá ajudar constelar esse conhecimento com as(os)suas(seus)
pacientes? Em relação a este tópico, finalizamos nossa unidade de estudos.

89
PRÁTICA DA
PSICOTERAPIA
JUNGUIANA – ANÁLISE UNIDADE IV
CONSTRUTIVA DE
CASOS CLÍNICOS
Nesta unidade, observaremos a análise de alguns casos clínicos que foram supervisionados,
apresentando as fases da psicoterapia junguiana da obra de Jung (vol. 16/1), com aplicação
prática a ser observada no manejo clínico com pacientes. Os nomes apresentados durante
a leitura dos casos são fictícios no intuito de preservar a identidade das(os) pacientes
atendidas(os) conforme normativa ética de psicoterapia. Alguns processos diante ao
cenário da COVID-19, com os devidos protocolos relativos ao sigilo e à proteção de
informações dos atendimentos clínicos em psicoterapia, foram realizados via plataformas
digitais online. Os casos apresentados mantiveram a narrativa das(os) pacientes de
acordo com o relatado pelas(os) psicoterapeutas responsáveis pelo atendimento,
sendo assim, não serão realizados cortes ou correções, cada análise de caso foi uma
construção supervisionada pelo analista responsável técnico, efetivando o relato dos
devidos protocolos legais.

90
CAPÍTULO 1
Análise de construção de casos

Análise de caso Carla

Considerações clínicas

Carla, 32 anos, casada há sete anos, não tem filhos, ocupa o cargo de técnico administrativo
em seu trabalho e cursa Psicologia. Os pais são casados e tiveram três filhos. Convive
quinzenalmente com a enteada (menor de idade), já com o enteado (maior de idade)
os encontros são esporádicos. Procurou atendimento terapêutico em virtude de
fortes sintomas de ansiedade e de angústia; por apresentar conflitos na relação com
a mãe, a favor da compreensão acerca do contexto marido e ex-esposa, por causa do
descontentamento e da frustração com a função que exerce no trabalho e pela busca
em descobrir o real sentido e propósito de sua existência. Descreveu a ansiedade e a
angústia como “fora do comum”, trazendo à tona questões pessoais perturbadoras e que
causam sofrimentos psíquicos, com os seguintes subsequentes desdobramentos físicos:
boca seca, choro excessivo, desespero (o que vai fazer da vida), dores no peito, sensação
de que tudo faz mal, insônia, pressão baixa, não sente vontade em realizar atividades,
e sim, o desejo de não fazer nada. Não saía de casa havia uma semana. Informou que
se submeteu a acompanhamento psicoterapêutico, junto a uma profissional com
formação em Psicanálise, acumulando sete meses de tratamento. Não procurou ajuda
psiquiátrica – afirmou não descartar essa possibilidade. Na época que procurou auxílio
de um psicólogo sentia angústia, choro corriqueiro, desespero, peito apertado, tendo
como ponto central a incompreensão de quem ela realmente é.

Demanda da paciente
» Abandono paterno (inconsciente).

» Baixa autoestima.

» Depressão.

» Ansiedade.

» Sente que precisa ser validada no trabalho mesmo sabendo que fez bem feito.

Aporte teórico

No decorrer do processo analítico, foram adotadas as instruções pertinentes ao volume


da obra de C. G. Jung (2013),“A prática da psicoterapia” (vol. 16/1), com articulação
91
Unidade IV | Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos

de outros referencias bibliográficos que permitiram à paciente o resgate de memórias


e relatos sobre sua vida. Para Ana,foram trabalhadas a associação livre, a atuação dos
arquétipos na psique (criança interior e a fábula o cavalheiro na armadura), neste sentido,
Jung (2013) propõe um método didático com quatro fases para o desenvolvimento
terapêutico da psicologia analítica:

1. Confissão.

2. Esclarecimento.

3. Educação.

4. Transformação.

Fases do manejo clínico

1. Confissão: paciente tem o seu espaço respeitado para a revelação de sua


angústia, possibilita a liberação dos afetos contidos, emoções reprimidas,
trazendo para o setting analítico tudo o que está causando perturbação,
desconforto e sofrimento.

2. Esclarecimento (elucidação): é o momento em que a paciente passa pela


percepção e pelo reconhecimento de seu sofrimento interno. Por meio
do entendimento de suas angústias, ela percebe a sua força real, criando
novas possibilidades de lidar com suas questões emocionais. Ao superar
o papel social que constitui a persona, que cumpre a função de um sistema
de defesa, o indivíduo se defronta com o lado obscuro da psique humana:
a sombra.

3. Educação (psicoeducação): nesta etapa, a paciente já começa a partir para


a ação. O consciente se prepara para assumir uma nova postura perante os
sofrimentos. A sombra é parte integrante da personalidade e se diferencia do
inconsciente coletivo, que possui elementos de ordem impessoal, coletiva,
formado por “categorias herdadas” ou “arquétipos”.

4. Transformação: nesta etapa, o ego muda de atitude em relação ao


inconsciente. Trata-se do ponto crucial do confronto, no entanto, para que
ele aconteça, é preciso que todas as outras etapas sejam realizadas, afinal,
uma etapa depende da outra. É um ciclo, uma jornada dolorosa, porém
transformadora, é onde o paciente começa a elaborar os seus conflitos e
caminhar para a sua individuação.

92
Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos | Unidade IV

Depois de ter visto uma proposta de modelo de análise de caso realizada dentro das
fases da psicoterapia junguiana, observe um caso abaixo e busque efetivar os aportes
teóricos de acordo com o modelo apresentado no caso Carla.
Aponte: a demanda do paciente, e como você poderia efetivar um manejo inicial de
atendimento psicoterapêutico a partir dos dados apresentados na queixa inicial de
acordo com as fases: confissão, elucidação, psicoeducação e transformação.

Caso Animus

Considerações clínicas

Animus., 28 anos, solteiro, advogado, namora uma advogada. Convive com a mãe e
dois irmãos – ocupa a condição de primogênito no sistema familiar. Apresentou como
queixa inicial forte ansiedade – acentuada em virtude da ausência de demanda de
trabalho, originada pelo atual contexto pandêmico. Em seguida, relatou dificuldades
em se relacionar com o pai e no contexto amoroso, e dilemas angustiantes com
relação à profissão. Foi diagnosticado com transtorno de ansiedade generalizada
(TAG) e síndrome do pânico, fez uso do medicamento Espran – interrompeu o uso
do psicofármaco por temer dependência e efeitos indesejáveis (diminuição do desejo
sexual e aumento da sensação de fome). A medicação foi prescrita paralela à indicação
de psicoterapia – processo familiar ao analisando. Animus também passou por cuidados
de um neurologista. Informou que a ansiedade é uma “velha conhecida”, e que foi
acometido por uma grave crise no mesmo ano que concluiu o curso de bacharel em direito,
em 2017, com registro de desmaio. O analisando trouxe à memória que próximo ao
término da graduação, os tremores no corpo eram assustadores. A ocorrência da ansiedade
se intensificava quando estava na faculdade, mas obtinha melhoras ao retornar para
casa – período em que houve o único registro de desmaio. Hoje os sintomas recorrentes
da ansiedade são: dores de cabeça e de barriga, sensação de tremor em várias partes do
corpo, rói unhas compulsivamente, perna trêmula, tosse sem cessar. Atualmente, busca
controlar a ansiedade com a assertiva de que é psicológico, que vai passar; se esforça
para esquecer, muda os pensamentos, busca controlar a tosse, se empenha em concluir
tarefas que precisam ser executadas mesmo diante dos sintomas. Procura não dar muito
“crédito” à ansiedade, esquivando-se de abalos emocionais, pois é advogado. Por conta
da ansiedade, quase foi reprovado na faculdade, mas, hoje, na condição de advogado,
afirma não se deixar intimidar pelo TAG e pela síndrome do pânico.
Família – classificou a relação com a mãe de normal, busca estar ao lado dela sempre
em todas as situações. Descreveu a relação com os irmãos também de normal, pois

93
Unidade IV | Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos

todos se ajudam e tomam decisões juntos. As finanças da casa são administradas


pelo irmão do meio (26 anos), que trabalha com contabilidade. Declarou ter vários
problemas em gestar suas próprias finanças. O orçamento familiar também conta
com a pensão do pai. Os pais se separaram no início da fase da adolescência de J. R.,
momento em que foi “obrigado” a assumir a figura masculina da casa. O pai é policial
civil aposentado, gosta de jogar, é ambicioso por dinheiro, apresenta dificuldades em
gerenciar suas próprias finanças, constituiu outra família (não casou), tendo como fruto
dessa relação uma filha, mas o referido contexto conjugal também se desfez. O pai já
morou com a filha e, atualmente, reside com a mãe (avó do analisando). Não possui
a convicção de que o pai se encontra em um novo relacionamento, mas para os filhos
ele fala que não está envolvido em nenhuma relação amorosa. O analisando acredita
que o pai evita comentários a respeito do assunto, visando se esquivar de conflitos com
a sua ex-esposa (mãe de Animus). Esporadicamente, visita o pai, preferindo contato
via WhatsApp e, sempre que necessário, ajudando-o mediante dicas e informações
jurídicas. O pai frequenta a casa de Animus. Enquanto estavam casados, os pais brigavam
corriqueiramente (discussões verbais), ele e os irmãos sempre apoiavam a mãe. O pai
tinha vontade de sair para jogar baralho e outros tipos de entretenimento relacionados
a “jogos de azar”, a mãe de Animus não aceitava, pois tal fato comprometia as finanças
da casa. Mesmo assim, o pai saía. Ele e os irmãos já estavam acostumados com essa
realidade. Na última discussão entre os pais, o pai levantou a mão para bater na
mãe – momento em que os filhos intervieram, evitando uma tragédia, mandando-o
baixar a “crista” e sair de casa. Então, o pai saiu de casa e a mãe não quis saber de outro
relacionamento, dedicando-se exclusivamente aos filhos. De acordo com Animus, as
pessoas falam pai e mãe, mas, se for colocar na balança, a mãe sempre fica em primeiro
lugar. Ele afirmou que o pai era muito autoritário, se a situação fosse “a”, o pai falava
que era “b” e acabou, ponto final; “xingava”, brigava, era cabeça dura, não aceitava
quando estava errado, impediu a mãe de J.R. de estudar e trabalhar. O pai demorou a
compreender que as coisas não eram como ele queria. Hoje, aposentado, o pai adotou
conduta mais maleável, escuta mais e briga menos.
Trabalho – até hoje não sabe se a profissão que exerce é o que ele deseja para a vida.
Advoga, mas não sabe se gosta do que faz. Vive o seguinte dilema: parar de trabalhar
ou estudar para concurso. Ganha dinheiro, anima-se; tem chateação com clientes, fica
desanimado. Considera a profissão um turbilhão de emoções, pois lidar com gente é
complicado. Exemplificou que no serviço público a pessoa faz o seu trabalho e não tem
que dar satisfação para ninguém. Cada cliente na advocacia é visto como um patrão
diferente, que pensa diferente, dizendo até como ele deve trabalhar. A namorada
sempre conversa com ele acerca de qual área do direito ele gosta, mas Animus não

94
Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos | Unidade IV

sabe responder. Aceita o trabalho que surge porque tem que se manter. É bom no
que faz, resolve o problema, mas essa conduta apresenta foco no dinheiro que lhe é
pago. Enfatizou que se sente angustiado por não saber dar respostas para a namorada,
tampouco para ele mesmo acerca da profissão. A indecisão vem desde muito tempo,
precisamente desde a escolha do curso de graduação (direito). Recordou-se que a
seleção do curso se deu via desejo e pressão da família.
O quarto – discutiu com a mãe, pois ela não aceita a permanência prolongada dele
no quarto, alegando que ele está com depressão. Ela o chama de vagabundo, pois ele
não trabalha, classificando-o como preguiçoso. Esse contexto o aborrece, pois não se
considera depressivo e nem vagabundo, todavia foi bastante enfático ao afirmar que
deseja ficar no quarto. Expressou mais de uma vez que não considera o fato de estar
no quarto sinônimo de depressão, explica que não há outra coisa para fazer no atual
contexto de pandemia. Descreveu o que faz no quarto: participa das reuniões online
da OAB, realiza atendimentos aos clientes (via telefone, videoconferência) e elabora
processos judiciais eletrônicos. Disse que é normal a execução dessas tarefas no quarto.
Narrou que, anterior ao contexto pandêmico, saía e se divertia com a namorada, ambos
gostavam bastante de cinema. Mas o seu desejo é permanecer no quarto. No atual
cenário (quarentena), a namorada passa o fim de semana em sua casa, tendo como
lugar preferido o quarto.
Amigos – classificou a relação com os amigos como boa, pois sempre encontra apoio
neles quando precisa. Gosta de estar na companhia deles para sair (barzinho) ou visitá-
los. Em virtude da quarentena, houve pausa nos encontros com os amigos, mas sabe
que pode contar com eles, e vice-versa. Quando resolveu procurar o psiquiatra, estava
estudando e precisando de dinheiro para a psicoterapia, os amigos se prontificaram
em ajudá-lo financeiramente. Classifica-se como sortudo por possuir bons amigos.
Dinheiro – declarou que não há como viver sem dinheiro, que fica chateado quando
deseja fazer alguma coisa, como, por exemplo, viajar, e não pode por falta de dinheiro.
Considera a profissão de autônomo difícil, relembrou do contexto de serviço público
em que tudo é mais fácil, o salário está na conta todos os meses – ao contrário do
ofício da advocacia, pois o salário varia consideravelmente em todos os aspectos.
A namorada se prontificou em ajudá-lo financeiramente, caso ele opte por se preparar
para concurso. É péssimo em administrar e guardar dinheiro, se ganha R$10.000,00
gasta tudo muito rápido, não sabendo como resolver os problemas financeiros do
próximo mês. O irmão do meio está administrando o dinheiro dele, evitando gastar
com o que é supérfluo. Não consegue distinguir o que é preciso (necessário) com o
que não é na hora de gastar, se está com vontade de gastar, vai e gasta.

95
Unidade IV | Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos

Espiritualidade – não possui uma religião definida, frequentou cultos evangélicos


e missas.

Demanda do paciente

Fases do manejo clínico:

1. Confissão.

2. Elucidação (esclarecimento).

3. Psicoeducação (educação).

4. Transformação.

96
CAPÍTULO 2
Fases do desenvolvimento analítico
(caso Animus)

Os conteúdos psíquicos expostos nas cinco sessões iniciais foram compreendidos com
base na fase confissão do processo de desenvolvimento analítico proposto por Jung,
mediante uso das ferramentas associação livre e atenção flutuante e dos seguintes
elementos teóricos junguianos: consciente, ego, inconsciente pessoal e complexos.
Com exceção da entrevista, na periodicidade das sessões em questão, Animus impôs
limitações acerca da sua visibilidade física, com exposição somente do nariz, dos olhos,
da testa e do cabelo. Sublinhamos que o analisando apresentava-se ao setting analítico
deitado em sua cama, com o cabelo bastante desgrenhado, bocejando e, quase sempre,
declarando cansaço. Passava boa parte da madrugada em claro, buscando compensar
a insônia com filmes ou jogando videogame. Conseguia dormir apenas na manhã do
outro dia e, muitas vezes, acordava restando poucos minutos para iniciar a sessão de
análise.

No decurso das cinco sessões iniciais, configurou-se a exposição de materiais constituintes


do território da consciência (situações, contextos, fatos, acontecimentos e personagens).
Numa descrição concreta desse cenário, elencamos os seguintes materiais psíquicos:
ansiedade acentuada em virtude da ausência de demanda de trabalho; separação dos
pais; condição de homem da casa que foi obrigado a assumir na adolescência; conflito
com o pai; embates ocorridos entre a figura materna e paterna; dúvidas e desalento com
relação à profissão; relacionamentos amorosos marcados por desavenças; dificuldades
em expressar sentimentos; sensação de ser incompreendido; ausência de controle
financeiro; envolvimento, na fase da adolescência, com situações que colocaram em
risco sua vida, trazendo preocupações à família – fato que o fez residir com os avós
paternos, mediante decisão adotada pelos pais.

As experiências pessoais ao longo da vida foram fluindo numa conjuntura de


imagens e de lembranças, fornecendo panorama inicial das práticas responsáveis
pelas perturbações do consciente. Evidenciamos que a etapa confissão abre caminhos
para a recondução de conteúdos ao ego, via construção existencial da liberação de
sentimentos e de emoções, bem como de suas representações, preparando veredas
para experiências simbólicas com o material inconsciente. Ressaltamos que a confissão
promove construtivamente o desvencilhar de componentes ainda não acessados pela
consciência, num alinhamento de vivências mais intensas que estão por vir na segunda
etapa do processo de desenvolvimento da personalidade. Estamos diante do alvorecer

97
Unidade IV | Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos

de conteúdos inconscientes pessoais encarregados pelas perturbações da consciência,


ou seja, os complexos.

Adentramos na fase de esclarecimento do processo de desenvolvimento analítico


concebido por Jung, mediante uso da associação livre, da atenção flutuante e dos
elementos teóricos junguianos: inconsciente pessoal, inconsciente coletivo, arquétipos,
sombra e persona. Ingressamos na etapa de compreensão das demandas relacionadas
à constelação dos complexos. Consideramos pertinente registrar que na sexta sessão,
Animus participou do setting analítico sentado em uma cadeira e com o cabelo cortado,
permitindo ampla visibilidade física e do ambiente que permanecia boa parte do tempo:
o quarto.

No decurso das sessões, presenciamos um ego acessando profundamente imagens


associadas a memórias congeladas de momentos configurados como traumáticos, com o
auxílio de uma experiência simbólica do material inconsciente. Isso implica a ampliação
da consciência do cenário de vivências, não somente restrita a fatores externos, assim
como de fontes internas, a partir da (re)elaboração e da (re)integração de conteúdos,
supostamente inexistentes e ocasionalmente imperceptíveis via campo e domínio da
consciência. A depuração desse cenário decorreu com base em passos dados rumo à
expansão integrativa entre inconsciente pessoal e inconsciente coletivo.

Por meio da revelação de conteúdos habitados no inconsciente coletivo, Animus detectou


equivalências comportamentais com a figura paterna no tocante ao descontrole e,
ao mesmo tempo, à ganância financeira, bem como nos relacionamentos amorosos
conflitivos marcados por condutas controladoras e repressivas – igualmente, identificadas
na relação conjugal entre pai e mãe, bem como entre avó e avô paternos. Inferimos
que tais fatos e acontecimentos não se originaram de vivências pessoais, e sim, de
experimentos da história da ancestralidade familiar do analisando, reforçando a
premissa de não se tratar de uma aquisição pessoal – cenário categorizado por Jung
como inconsciente coletivo, trazendo em sua composição os arquétipos.

O processo de ventilação dos fatores instigadores da constelação dos complexos


prosseguiu com a identificação de imagens associadas e de lembranças, de memórias
traumáticas, expondo esse material à reflexão consciente do ego a partir da projeção
conectiva e, ao mesmo tempo, do confronto com a composição negativa da personalidade,
das imperfeições, de propriedades ocultas e desfavoráveis de Animus, assim como de
posturas e de condutas adotadas em suas relações sociais marcadas pela preocupação
excessiva com a imagem profissional e o compromisso com o social, sobrepondo-se
a si mesmo.
98
Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos | Unidade IV

Houve o contato do analisando com os arquétipos sombra e persona, num desenvolvimento


de sua consciência via associações constituintes de elementos arquetípicos, além das
imagens psíquicas dos traumas existentes, mediante acesso e exposição de fatos refutados,
negligenciados e, em alguns momentos, desconhecidos e inerentes da consciência em
nome, muitas vezes, de identidades psicossociais assumidas (herói e advogado).

Ainda sobre os desdobramentos da fase esclarecimento, frente a outros fatores,


consideramos de relevância pontuar a ampliação da compreensão consciente do quadro
de ansiedade o qual ele se encontrava – circunstância antes negligenciada pelo sentimento
de vergonha e, ao mesmo tempo, de proteção da identidade psicossocial assumida
de advogado e de herói; da aceitação da existência e da nocividade dos pensamentos
negativos que comprometiam sua jornada de vida; do medo e da insegurança com
relação ao desconhecido; do repúdio pungente diante de mentiras oriundas de suas
namoradas – recusa comportamental identificada por animus em sua mãe, perante
as farsas do pai; do despertar para a autorresponsabilidade, buscando desvincular-se
do modelo de convivência conflituosa entre pai e mãe, bem como entre avô e avó
paternos, marcado por cobranças, controles excessivos e condutas abusivas; e do
contexto danoso em permanecer no quarto, aguardando por mudanças advindas de
outrem – conjuntura perniciosa extensiva também a sua profissão.

Ingressamos na fase correspondente à aplicação da terceira etapa do desenvolvimento


analítico de Jung nominada educação, com o auxílio das técnicas associação livre
e atenção flutuante. Se comunicar com a gênese de experiências traumáticas que
culminaram em sofrimento e adoecimento da alma, não é tarefa fácil. Trata-se do
desvendar de uma rede existente de influências substanciadas por propriedades e
funções negativas, pertencentes à personalidade do sujeito, tendo como um dos seus
guardiões a identidade psicossocial assumida. Uma vez lograda à assimilação de como
atuam os conteúdos inconscientes indutores de perturbação do consciente, ou seja, os
complexos, pairando sobre o ego a sensação de impotência, assim como o elucidar do
que desencadeava as constelações dos complexos, Animus imergiu em vivências de uma
educação construtiva voltada para o autodesenvolvimento a partir da percepção funda
do seu mundo interior, do que se encontra nos bastidores da sua estrutura consciente,
sem se tornar algoz de si mesmo e, simultaneamente, sem negligenciar o território
inconsciente; deparou-se com o universo de possibilidades ligado ao gerenciamento
dos conteúdos inconscientes, via ego fortalecido.

Na descrição do cenário supracitado, elencamos os esforços empreendidos por Animus


junto ao pai, buscando compreender e evitar conflitos com a figura paterna; às novas

99
Unidade IV | Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos

perspectivas acerca de sua profissão, tornando-se membro de uma sociedade de


advogados; ao vislumbrar a edificação de futuras vivências afetivas despolarizadas de
cobranças e de condutas abusivas; em direcionar esforços na elaboração de percepções
e de comportamentos que evitem a intermitente repetição de complexos; ao encarar de
forma menos vulnerável as exigências e intempéries do seu mundo interno e externo.
Na décima quinta sessão, Animus declarou que se despiu da condição de herói imposta
pela família durante a adolescência.

Ingressamos na quarta fase do processo de desenvolvimento analítico de Jung: a


transformação. Isso implica uma jornada psicológica de construção contínua, com vistas
ao acesso e à busca permanente em tornar conscientes os conteúdos que integram a
camada psíquica inconsciente. Representa seguir o curso da vida, possibilitando que
consciente e inconsciente migrem para o campo da totalidade; despolarizar o ideal
destruidor e nocivo daquilo que se apresenta como e, ao mesmo, do que se revela por
trás dos sintomas físicos e mentais. Significa aprender com as falhas, com as fraquezas,
com o passado e com a representação do tempo vigente, além de estabelecer novas
narrativas para o amanhã. Simboliza a busca de vivências mais harmônicas com a
vida, o desenvolvimento de um ego menos vulnerável mediante as adversidades do
ambiente externo e interno, de um estado de consciência tendo como meta maior o
próprio self. A periodicidade das sessões de J.R. migrou para o contexto quinzenal.

Considerações finais do caso


A teoria e a prática da psicanálise fomentam o encontro da(o) analista com a(o)
analisanda(o), entre duas faces e uma moeda. As faces são almas com gêneses diferentes
e com funções dispares no setting analítico; a moeda, os complexos. Dessa forma,
configurou-se a psicanálise clínica nas primeiras vivências com a prática. No decorrer
das sessões, se clarificaram facetas, experiências e, ao mesmo tempo, aprendizados
de um processo inalcançável, em se tratado da tão desejada vontade finalista e, ao
mesmo, fatalista, quanto à contenção definitiva dos complexos em nome da factual
cura; interpretável em sua completude por teorias até então elaboradas; inesgotável
quanto ao desvendar e, ao mesmo tempo, ao compreender o desconhecido universo
da psique.

Todavia, emergiu-se uma realidade intrínseca ao processo analítico. Explanando


uma das mais populares citações associadas a Carl Gustav Jung, relato que ao tocar na
imprevisível, na instável, na anônima, enfim, na infinita alma do outro, não seremos
senão outrem – vulnerável e indefeso em sua existência histórica e condição psíquica,

100
Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos | Unidade IV

com complexos congelados, aguardando ressurreição e (re)validação de sua imortalidade.


Na condição de analista, aferi que inexistem experiências na psicanálise clínica isentas
da estrutura arquetípica do(a) curador(a)-ferido(a). Em algum momento, o paradigma
do arquétipo referenciado pela mitologia grega sobre Quíron, que ensinava medicina e
mostrava-se incapaz de curar a si mesmo, embora diante do fato de ser imortal, poderá
emergir das profundezas as quais habitam os complexos. Ao mesmo tempo, quão vital
é para a(o) analista (re)conhecer seus dramas e mazelas pessoais, suas feridas psíquicas,
os complexos que se eternizaram em sua alma, cônscia(o) de que os referidos podem
surgir no cenário analítico mediante a exposição e a conexão com os complexos da(o)
analisanda(o). Igualmente, ao deparar-se projetivamente com a sombra, a persona
e as personalidades subjetivas anima e animus que, por sua vez, compõem o elenco
atuante do palco psíquico da(o) analisanda(o). A análise é constituída de uma relação
bilateral de inconscientes entre analista e analisanda(o).
[...] mesmo quando não é tão provável um caso trazer à tona um certo
complexo do analista, eu, por mim, naturalmente tenho certeza de que
em pouquíssimo tempo cada um de nós cai nessa cilada. Isso precisa ser
assim, realmente; trata-se do contato humano básico e, se agirmos da forma
correta, constitui o mais poderoso método de análise. Mas, quando agimos
da forma errada, a análise é interrompida, tudo que foi construído explode.
Desse modo, o analista é fadado a conhecer os seus próprios complexos.
Deve temê-los para que seja capaz de admitir o seu ponto fraco quando o
paciente tocar neste (JUNG, 2014, p. 49).

Onde há vida, a psicologia analítica deve estar! A proposta da psicoterapia junguiana


possui caráter transcendente, essência universal, pois a clínica junguiana também é
a clínica da escuta das cidades marcadas por relações sociais que constituem o sujeito
que se apresenta na transferência. O saber psicoterapêutico junguiano contém sentido
e meta capazes de trabalhar a lógica do mundo, da dialética da agulha com o mar, de
desbravar o suposto desconhecido nascedouro das águas da castração que, por sua vez,
percorrem caminhos e deságuam turbulenta e vorazmente nos mares da neurose, da
psicose e da perversão. O conhecimento psicanalítico permite a visibilidade dos fios
tênues que se entrelaçam e se convergem na relação consciente, inconsciente, sujeito
e vida.

101
CAPÍTULO 3
Animus inconsciente:
estudo de caso Carla

O desenvolvimento do presente relatório tencionou descrever o atendimento terapêutico


de Carla, pelo professor, supervisor e analista junguiano Adonai Melo. De junho a
dezembro de 2020, o atendimento transcorreu na modalidade online, via plataforma
Google Meet, em virtude do cumprimento de isolamento social oriundo do contexto
de pandemia. O referencial teórico baseou-se em elementos conceituais da psicologia
analítica de Carl Gustav Jung, especificamente em se tratando da psique, do ego,
da consciência, do inconsciente pessoal, dos complexos, do inconsciente coletivo,
dos arquétipos sombra, persona e animus, do self, da individuação e da transferência,
juntamente com a estrutura didática de tratamento terapêutico: confissão, esclarecimento,
educação e transformação.

A concepção de psique conforme Jung (2013, p. 25) “abrange todos os pensamentos,


sentimentos e comportamentos, tanto os conscientes como os inconscientes. Funciona
como um guia que regula e adapta o indivíduo ao meio ambiente social e físico”. O ego
se configura como o centro da consciência, como “o sujeito de todos os atos conscientes
da pessoa...refere-se à experiência que a pessoa tem de si mesma como um centro de
vontade, de desejo, de reflexão e ação” (STEIN, 2006, p. 23). A consciência para Jung
(2014, p. 48) “[...] é, sobretudo, o produto da percepção e orientação no mundo externo”.
Em se tratando do inconsciente pessoal, nele se encontram “[...] componentes que
ainda não alcançaram o limiar da consciência. Constituem eles as sementes de futuros
conteúdos conscientes” (JUNG, 2015, p. 17), trazendo em sua existência os complexos.

De acordo com Stein (2006, p. 25), “ao conteúdo inconsciente responsável pelas
perturbações da consciência deu Jung o nome de complexos”.

Jung (2015, p. 98) declarou que o inconsciente coletivo é comum a todos, “[...] pode
distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência
à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal, ... é constituído
essencialmente de arquétipos”. A título de explanação, “[...] o conceito de arquétipo,
que constitui o correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo”.

Unidade constituinte do contexto arquetípico, a sombra “[...] é a parte negativa da


personalidade, isto é, a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções mal
desenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal” (JUNG, 2014, p. 65). No caso
da persona, estamos diante de uma “[…] máscara que aparenta uma individualidade,

102
Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos | Unidade IV

procurando convencer aos outros e a si mesma que é individual, quando na realidade


não passa de um papel ou desempenho através do qual fala a psique coletiva” (JUNG,
2015, p. 89). Para a compreensão do arquétipo animus, Jung (2013) instituiu que se
trata de estrutura ligada à personalidade interior e está para a consciência feminina.

Ocupando-se das fases de compreensão do desenvolvimento terapêutico de Jung


(2014), encontramos a confissão, envolvendo a exposição de fatos e de afetos contidos,
o liberar de sentimentos e de emoções perturbadores que passam a ser conhecidos
pelo território da consciência; o esclarecimento, ocorrendo o elucidar de conteúdos
desconhecidos, sombrios, via elaboração e integração dos referidos; a educação se
corporificando como uma vereda instrutiva para o ser social, rumo à normalidade
de uma existência em transição e, por último, a transformação que, essencialmente,
representa a individuação, num caráter contínuo de temporalidade.

Estrutura da prática clínica junguiana


A periodicidade do atendimento abrangeu os meses de junho a dezembro de 2020, com
frequência semanal, precisamente às segundas-feiras, e enquadramento de horário das
18h às 18h50. A condução do processo terapêutico deu-se via técnicas de associação
livre e de atenção flutuante. Salientamos que os registros em relatórios concernentes às
oscilações no horário inicialmente acordado, sucederam-se recepcionando necessidades,
limitações e entrega da analisanda ao atendimento clínico. Ressaltamos que I. M.
não se contrapôs ao acolhimento online, uma vez que foram adotados os devidos
cuidados para que as sessões ocorressem em ambiente virtual favorável, composto por
espaço físico visualmente acolhedor, reservado, sem a influência de barulho externo,
iluminação adequada, sigilo da conversa; utilização do mesmo ambiente desde o início
do atendimento, cenário de fundo neutro, dentre outros.

Estrutura do manejo clínico: atendimento analítico


junguiano

Entrevista inicial

Carla, 32 anos, casada há sete anos, não tem filhos, ocupa o cargo de técnico
administrativo em seu trabalho e cursa Psicologia. Os pais são casados e tiveram três filhos.
Convive quinzenalmente com a enteada (menor de idade), já com o enteado (maior
de idade) os encontros são esporádicos. Procurou atendimento terapêutico em virtude
de fortes sintomas de ansiedade e de angústia; por apresentar conflitos na relação com

103
Unidade IV | Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos

a mãe, a favor da compreensão acerca do contexto marido e ex-esposa, por causa do


descontentamento e da frustração com a função que exerce no trabalho e pela busca
em descobrir o real sentido e propósito de sua existência. Descreveu a ansiedade e a
angústia como “fora do comum”, trazendo à tona questões pessoais perturbadoras e que
causam sofrimentos psíquicos, com os seguintes subsequentes desdobramentos físicos:
boca seca, choro excessivo, desespero (o que vai fazer da vida), dores no peito, sensação
de que tudo faz mal, insônia, pressão baixa, não sente vontade em realizar atividades,
e sim, o desejo de não fazer nada. Não saía de casa havia uma semana. Informou que
se submeteu a acompanhamento psicoterapêutico, junto a uma profissional com
formação em Psicanálise, acumulando sete meses de tratamento. Não procurou ajuda
psiquiátrica – afirmou não descartar essa possibilidade. Na época que procurou auxílio
de um psicólogo sentia angústia, choro corriqueiro, desespero, peito apertado, tendo
como ponto central a incompreensão de quem ela realmente é.Hoje, os sintomas
pungentes são: dor no peito, pressão baixa, bolo no estômago (fica enjoada), insônia,
descrevendo-os como perturbadores. Acrescentou que acordou bem, mas ao falar com a
mãe muitos sintomas (mente e corpo) apareceram. Pessoas a indagam constantemente
sobre o que está acontecendo, pois seu comportamento se encontra bastante diferente,
em algumas vezes, agressivo. Enfatizou que sente vontade de não fazer nada.

Relação com a mãe – acumulou problemas de relacionamento com a mãe, os quais


geraram traumas. Define a mãe como dominadora, controladora e manipuladora.
Atualmente, diz ter uma relação minimamente boa com a mãe, acredita está encontrando
o seu lugar no vínculo mãe e filha, porém qualquer coisa “sai faísca” entre as duas.
Começou a analisar o contexto da relação com a figura materna e percebeu desdobramentos
comprometedores nas áreas pessoal e profissional. Trouxe à memória o aniversário
da mãe, precisamente quando não conseguiu escrever nada para ela, sequer declarar.
Quando há afeto na relação com a mãe, sente que é falso, não por parte dela, e sim,
unicamente por parte da mãe.

Se a mãe liga e pergunta se ela está bem, tal abordagem soa como mentira, sente muito
forte isso, pois a mãe sempre fala coisas pesadas para magoá-la. Conseguiu identificar
na psicoterapia que uma é o reflexo da outra, por exemplo, quando precisa da mãe
e não consegue a atenção materna, adota a mesma postura quando a mãe precisa de
sua atenção; “vira e mexe” as duas discutem. Decidiu se afastar da mãe como forma
de impor limites, mas sofre muito com isso. Às vezes, deseja falar ou visitar a mãe,
porém resolve não ir ao encontro dela – esse contexto a faz sofrer. Considera o pai
omisso, passivo, sem voz ativa, de comando, de controle em casa, mas consegue ter
diálogo saudável com ele.

104
Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos | Unidade IV

O trabalho – encontra-se descontente com a função que ocupa e o trabalho que realiza,
se considera totalmente desnecessária no que faz, mas não pode deixar de trabalhar.
Possui várias ideias e projetos, mas não consegue colocá-los em prática, sente-se
paralisada, ao invés de se posicionar e abraçar as intenções que surgem. Descreve esse
cenário como padrão. Enfatizou que a procrastinação é um grande problema em sua
vida. Declarou apresentar dificuldades em finalizar tarefas, projetos. Sentar-se para
trabalhar é sinônimo de agonia, de sentimento ruim. Essa realidade vem se intensificando
pelo fato de que precisa trabalhar, mesmo sentindo algo ruim.
Carla, esposo e ex-cônjuge dele – relatou que se depara sempre com muitos problemas
entre o marido e a ex-cônjuge dele. Definiu a relação com os enteados como boa,
acumula sentimento de mágoa pela ex-esposa do marido – embora não tenha tido um
problema direto com ela. Tentou mudar esse sentimento, mas ainda não conseguiu
gestar a situação. Fez declarações positivas com relação ao esposo, pois o considera um
excelente marido e pai. Diz que pega as dores das pessoas para si, mas considera ter
obtido evolução nesse contexto. Faz indagações a si mesmo sobre o quanto acha legal
ou não quando a ex-cônjuge do marido deixa transparecer nas redes sociais que possui
uma vida perfeita, bem como por meio do que os filhos falam dela. Informou que se
acostumou “mais ou menos” com essa realidade, se esforçando saber menos sobre a
vida da ex-cônjuge do marido. Reforçou que é a mesma coisa de todos viverem mal,
e ela viver sempre bem. Mas, ao mesmo tempo, informou que hoje consegue separar
um pouco as coisas.
Espiritualidade – professou por muito tempo a fé católica, é simpatizante da doutrina
espírita e de cultos evangélicos.

Fases do desenvolvimento analítico


As ocorrências no campo psíquico identificadas durante as cinco sessões iniciais
foram compreendidas com base na fase confissão do processo de desenvolvimento
terapêutico de Jung, mediante uso das ferramentas associação livre e atenção flutuante,
e dos seguintes elementos teóricos: consciente, ego, inconsciente pessoal e complexos.
No decurso das cinco sessões iniciais, elencamos os seguintes materiais psíquicos
constituintes conscientes: ansiedade e angústia acentuadas; busca incessante de sentindo
para a vida; conflitos, embates, bate-boca, divergências, mágoas, raivas com relação à
figura materna; autossabotagem, procrastinação, ausência de autorresponsabilidade e
dificuldades com o autodesenvolvimento; obsessão e aversão com relação à ex-cônjuge
do marido; ingerência financeira; dificuldades em assumir rotinas ligadas a atividades
da própria casa, insatisfação mediante o serviço prestado pela cunhada em prol da

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Unidade IV | Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos

organização do espaço físico do seu lar; dissabor e repulsa do trabalho; incompreensão


e ausência de aceitação mediante personalidade passiva do pai; preocupação com a
não finalização da graduação em administração e com impasses acerca do curso de
psicologia, pois se considera incapaz de cuidar e promover a saúde mental de outrem,
além de outros conteúdos psíquicos.

As experiências pessoais ao longo da vida foram fluindo numa conjuntura de imagens


e de lembranças, fornecendo um panorama inicial das práticas responsáveis pelas
perturbações do consciente. Vivências no campo confissão abrem caminhos para a
recondução de conteúdos ao ego, via construção existencial de liberação de sentimentos
e de emoções, bem como de suas representações, preparando-se para experiências
simbólicas com o material inconsciente. Numa escala construtiva, essas experiências
promovem o desvencilhar de componentes que, ainda não acessados pela consciência,
deliberam intensamente os conteúdos inconscientes pessoais encarregados pelas
perturbações da consciência, ou seja, os complexos.

Adentramos na fase de esclarecimento do processo de desenvolvimento terapêutico


de Jung, mediante uso das associações livres e da atenção flutuante, bem como das
unidades teóricas: inconsciente pessoal, inconsciente coletivo, arquétipos sombra,
persona e animus. Ingressamos na etapa de compreensão das demandas relacionadas à
constelação dos complexos. No decurso das sessões, presenciamos um ego acessando
profundamente imagens associadas a memórias congeladas de momentos configurados
como traumáticos, com o auxílio de uma experiência simbólica do material inconsciente.
Isso significa a ampliação da consciência do cenário de vivências, não somente restrita
a fatores externos, assim como de fontes internas, a partir da (re)elaboração e da (re)
integração de conteúdos, supostamente inexistentes e ocasionalmente imperceptíveis
via campo e domínio da consciência.

A depuração do cenário supracitado decorreu com base em passos dados rumo à


continuidade de ampliação integrativa entre inconsciente pessoal e inconsciente coletivo.
Exemplifiquemos essa realidade por meio da revelação de conteúdos habitados no
inconsciente coletivo, em se tratando de elementos como pensamentos, comportamentos
e sentimentos inerentes à figura materna, também integrantes/reproduzidos por Carla
como o descontrole financeiro e o perfil dominador e combativo, ambos característicos
da figura materna; do predomínio da personificação de uma mulher detentora de
espírito corajoso, obstinado, resolutivo, possuidor da verdade, explosivo, buscando
se sobressair à figura masculina do sistema familiar, espírito de herói e nobre por
ser representante legítimo do “sangue das mulheres da família”. Quanto ao referido

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Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos | Unidade IV

contexto, podemos identificar elementos circundantes do arquétipo animus numa


versão negativa, paralisadora do crescimento da condição da Carla enquanto mulher,
de experiências com o seu conteúdo e enredo feminino.

O processo de ventilação dos fatores instigadores da constelação dos complexos


prosseguiu, via identificação de imagens associadas e de lembranças, de memórias
traumáticas, expondo esse material à reflexão consciente do ego a partir da projeção
conectiva e, ao mesmo tempo, do confronto com a composição negativa da personalidade,
como, por exemplo, imperfeições, propriedades ocultas e desfavoráveis, resultando
no encontro de Carla com os arquétipos sombra e persona.

Com vistas à pormenorização da conjuntura acima, Carla discerniu acerca da projeção


da figura paterna em seu esposo, visando suprir lacunas afetivas de sua relação com
o pai; o sentimento de inveja; por apresentar o mesmo perfil manipulador da figura
materna; da busca em sustentar e ostentar imagens e papéis sociais assumidos, com
vistas à aceitação por parte do outro, do meio social o qual pertence; refutava arrogar
responsabilidades com o que é dela, se esquivando e, ao mesmo tempo, temendo
assumir a condição de sujeito na construção de sua própria existência, dentre outros
entendimentos.

Assistimos ao processo de ampliação de consciência via associações constituintes de


elementos arquetípicos, de imagens psíquicas de traumas existentes, mediante acesso
e exposição de fatos refutados, negligenciados e, em alguns momentos, desconhecidos
e inerentes, em nome, muitas vezes, de uma identidade psicossocial assumida.

Ingressamos na fase correspondente à etapa educação, com o auxílio das técnicas


associação livre e atenção flutuante. Salientamos que se comunicar com a gênese de
experiências traumáticas que culminaram em sofrimento e adoecimento da alma não
é tarefa fácil. Similarmente, mediante o desvelar de uma rede existente de influências
substanciadas por propriedades e funções negativas pertencentes à personalidade do
sujeito, tendo como um dos seus guardiões a identidade psicossocial assumida.

Uma vez lograda a assimilação de como atua os conteúdos inconscientes induzidores de


perturbações do consciente, ou seja, os complexos, pairando sobre o ego a sensação de
impotência, assim como o elucidar do que desencadeava as constelações dos complexos,
Carla se permitiu imergir em vivências de uma educação construtiva a partir da percepção
funda do seu mundo interior, do que se encontra nos bastidores de sua estrutura
consciente, deparando-se com o universo de possibilidades ligado ao gerenciamento
dos conteúdos inconscientes, via ego mais fortalecido.

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Unidade IV | Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos

A correspondência desse cenário com a vida cotidiana de Carla se configurou mediante


o despertar de novas perspectivas e narrativas para a vida, a começar mediante sua
relação com a figura materna, centralizando esforços destinados à compreensão acerca
da personalidade da mãe, assim como do histórico afetivo da referida com seus pais
(avós de Carla), visando à construção de um “olhar” desprovido de competição, de
acusação e de mágoa. Carla decidiu se organizar para a conclusão da graduação em
bacharel em administração; atenuar e gestar o sentimento de inveja; cobrar menos
e compreender mais a figura paterna; construir uma nova relação com o esposo e
seus enteados.

O despertamento de Carla abrangeu ampliar o leque de cuidados especializados com a


ansiedade e a angústia, com o conjunto corpo e alma; o uso de fármaco devidamente
prescrito à base de ansiolítico, praticar atividade física, adotar alimentação mais
saudável; voltar-se para a relevância de vivências próprias desvinculadas do padrão
de vida dos outros, precisamente dos moldes impostos pela figura materna; acatou
responsabilidades com aquilo que lhe pertence, com o que é dela.

Identificamos o ingresso de Carla numa educação psíquica para o processo gradativo


e contínuo de gestão do formato opressor do animus inconsciente, do atroz e déspota
arquétipo animus em sua versão negativa, da escassez da autoconvicção e da constância
da autonegligência.

Ingressamos na quarta fase do processo de desenvolvimento terapêutico de Jung: a


transformação. Isso implica uma jornada psicológica de construção contínua, com
vistas ao acesso e à busca permanente de tornarem-se conscientes os conteúdos que
integram a camada psíquica inconsciente.

Representa seguir o curso da vida, possibilitando que consciente e inconsciente


migrem para o campo da totalidade; despolarizar o ideal destruidor e nocivo daquilo
que se apresenta como e, ao mesmo, do que se revela por trás dos sintomas físicos e
psíquicos. Significa aprender com as falhas, com as fraquezas, com o passado e com a
representação do tempo vigente, além de estabelecer novas narrativas para o amanhã.
Simboliza a busca de vivências mais harmônicas com a vida, do desenvolvimento de
um ego menos vulnerável mediante adversidades do ambiente externo e interno,
de um estado de consciência, tendo como meta maior o próprio self.

Carla segue numa entrega empreendedora junto ao processo de desconstrução e


construção do elemento condutor de sua consciência feminina, via equilíbrio entre
animus e anima, enfim, ao autoconhecimento e ao autodesenvolvimento.

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Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos | Unidade IV

Considerações finais
A teoria e a prática da psicologia analítica fomentam o encontro da(o) analista com
a(o) analisanda(o), entre duas faces e uma moeda. As faces são almas com gêneses
diferentes e funções dispares no setting analítico junguiano; a moeda, os complexos.
Dessa forma, se configurou a psicologia analítica clínica nas primeiras vivências com
a prática.

No decorrer das sessões, foram se clarificando facetas, experiências e, ao mesmo tempo,


aprendizados de um processo inalcançável, em se tratando da tão desejada vontade
finalista e fatalista, quanto à contenção definitiva dos complexos em nome da factual
cura; interpretável em sua completude por teorias até então elaboradas; inesgotável
quanto ao desvendar e, ao mesmo tempo, ao compreender o desconhecido universo
da psique.

Emergiu, todavia, uma realidade intrínseca do processo analítico. Explanando uma


das mais populares citações associadas a Carl Gustav Jung, relato que ao tocar na
imprevisível, na instável, na anônima, enfim, na infinita alma do outro, não seremos
senão outrem – vulnerável e indefeso em sua existência histórica e condição psíquica,
com complexos congelados, aguardando ressurreição e (re)validação de sua imortalidade.

Durante o processo de capacitação e qualificação em psicologia analítica, precisamente


no setting analítico, aferi que inexistem experiências isentas da estrutura arquetípica
do(a) curador(a)-ferido(a). Em algum momento, o paradigma do arquétipo referenciado
pela mitologia grega sobre Quíron, que ensinava medicina e mostrava-se incapaz de
curar a si mesmo, embora diante do fato de ser imortal, poderá emergir das profundezas
as quais habitam os complexos.

Ao mesmo tempo, quão vital é para a(o) analista (re)conhecer seus dramas e mazelas
pessoais, suas feridas psíquicas, os complexos que se eternizaram em sua alma, cônscia(o)
de que os referidos podem surgir no cenário analítico mediante a exposição e a conexão
com os complexos da(o) analisanda(o). Igualmente, ao deparar-se projetivamente
com a sombra, a persona e as personalidades subjetivas anima e animus que, por sua
vez, compõem o elenco atuante do palco psíquico da(o) analisanda(o). A análise é
constituída por uma relação bilateral de inconscientes entre analista e analisanda(o).

Onde há vida, a psicologia analítica deve estar. A proposta de Jung possui caráter
transcendente, essência universal, pois a clínica junguiana também é a clínica da escuta
das cidades marcadas por relações sociais que constituem o sujeito que se apresenta
na transferência. A psicologia analítica contém sentido e meta que se propõem a
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Unidade IV | Prática da psicoterapia junguiana – análise construtiva de casos clínicos

trabalhar a lógica do mundo, da dialética da agulha com o mar, em desbravar o suposto


desconhecido nascedouro das águas da castração que, por sua vez, percorrem caminhos
e deságuam turbulenta e vorazmente nos mares da neurose, da psicose e da perversão.

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PARA (NÃO) FINALIZAR

A disciplina Prática da Psicoterapia buscou apresentar os elementos conceituais essenciais


básicos para um bom manejo clínico à luz da psicologia analítica ou psicologia profunda
de Jung. Iniciamos os estudos na Unidade I com aportes teóricos referendados às escolas
da psicologia analítica: escolas clássica, arquetípica e desenvolvimentista. Todas estas
apresentando seus referenciais e suas construções teóricas de acordo com seu contexto
cultural e histórico. Na unidade II, reportamos os conceitos básicos da matriz constituinte
da estrutura psíquica junguiana e apresentamos os fundamentos conceituais acerca dos
conceitos de inconsciente pessoal, inconsciente coletivo e arquétipos, os fundamentos
acerca dos conceitos de sombra, anima versus animus e os complexos, e finalizamos
com a abordagem junguiana dos sonhos no processo analítico. Todo esse construto
contribuiu para elucidação e amplificação de bases conceituais importantes na formação
da(o) analista de orientação junguiana. Na unidade III, foram elencadas as considerações
conceituais sobre o processo analítico, a discussão do processo analítico: encarando a
sombra, aspectos constituintes e relevantes sobre o encontro analítico: transferência,
análise didática e supervisão, e finalizamos a discussão a respeito dos honorários no
processo de análise e suas nuances compensadoras no setting analítico. Na unidade
IV, discutimos aspectos objetivos sobre a prática da psicoterapia junguiana – análises
construtivas de casos clínicos, análise de construção de casos, as fases do desenvolvimento
analítico (caso Animus) e encerramos com a análise de um estudo de caso supervisionado
a respeito do Animus inconsciente: estudo de caso (I.M.). Vale pontuar a riqueza de
construtos que esse módulo de estudos, a partir de agora, irá fazer parte de suas práxis
e de seu manejo clínico de orientação junguiana. Espero que possam aproveitar toda
essa construção ao longo das quatro semanas de estudo. E efetivando a citação de Jung:
“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao lidar com uma
alma humana, seja apenas outra alma humana”.

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REFERÊNCIAS

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Cambridge sobre Jung. São Paulo: Madras, 2011. p. 171-192.
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Referências

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ZWEIG, C. Ao encontro da Sombra. O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São
Paulo, SP: Cultrix, 1994.

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