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Abordagem Policial Tania Pinc

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Abordagem policial: um encontro (des)concertante entre a polcia e o pblico

Tnia Pinc
Tnia Pinc mestre e doutoranda em Cincia Poltica pela Universidade de So Paulo, pesquisadora do Ncleo em Polticas Pblicas da Universidade de So Paulo NUPPs/USP e 1 tenente da Polcia Militar do Estado de So Paulo. taniapinc@uol.com.br

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Resumo
Este artigo explora a relao entre a polcia e o pblico durante a abordagem policial, com o objetivo de oferecer maior transparncia a esse encontro, dando nfase conduta individual dos atores envolvidos.A anlise apresentada neste estudo baseada em uma amostra de 90 abordagens, realizada no perodo de dois meses do ano de 2006, na cidade de So Paulo. Os dados foram coletados por meio da tcnica da Observao Social Sistemtica, que consiste em um mtodo de observao direta, porm no participante. Esta tcnica permitiu observar o policial desempenhando suas atividades de policiamento sem que soubesse que estava sendo observado.

Palavras-Chave
Polcia. Abordagem policial. Uso da fora. Observao Social Sistemtica.

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De maneira geral, as pessoas ou j passaram por essa experincia, ou conhecem o relato de outros abordados, ou ainda tiveram contato com esse assunto pelos meios de comunicao. Em qualquer condio, as notcias e comentrios sobre a abordagem costumam dar maior nfase ao excesso da ao policial. O resultado disso tende a ser a construo do imaginrio comum em torno do fato de que esse procedimento policial , via de regra, violento. Diante da possibilidade de a abordagem policial causar um efeito to negativo, porque a instituio policial a mantm no rol das aes de seus agentes? A resposta simples: porque a abordagem policial necessria para manter a ordem pblica e controlar o crime. Da mesma forma que nem todos os remdios so amargos, nem todas as abordagens policiais so abusivas. Este artigo tem por objetivo: desconstruir alguns mitos sobre a abordagem policial; apontar caminhos que possam aprimorar o preparo profissional do policial durante

Abordagem policial: o que isso? Apresenta-se a seguinte definio para a abordagem policial: um encontro entre a polcia e o pblico cujos procedimentos adotados variam de acordo com as circunstncias e com a avaliao feita pelo policial sobre a pessoa com que interage, podendo estar relacionada ao crime ou no (PINC, 2006). Na relao cotidiana entre a polcia e o pblico, a abordagem policial um dos momentos mais comuns da interface entre esses dois atores. Qualquer pessoa, durante suas atividades de rotina, est sujeita a ser abordada por um policial na rua (RAMOS; MUSUMECI, 2005). Indicadores confirmam a alta freqncia com que o policial decide pela abordagem. Dados da Polcia Militar demonstram que, no Estado de So Paulo, 7.141.818 pessoas foram revistadas, durante 2006, o que representa 18% da populao paulista, estimada em 40 milhes pela Fundao Sistema Estadual de Anlise de Dados Seade. Nessa mesma direo aponta uma anlise feita com dados da pesquisa de vitimizao,1 no municpio de So Paulo (2003): selecionada a populao de homens jovens, na faixa de 16 a 29 anos, equivaAno 1 Edio 2 2007 | Revista Brasileira de Segurana Pblica

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abordagem uma ao policial que desagrada, se no todas, a grande parte das pessoas que passam por essa experincia. Parece impossvel imaginar algum agradecendo a um policial ao trmino de uma abordagem. Essa uma atitude compreensvel, porque ningum gosta de ter seus direitos cerceados e sua privacidade invadida, mesmo que seja por alguns minutos.

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a interao com o pblico; despertar o entendimento do cidado sobre os procedimentos adotados pelos policiais; e mostrar maneiras do pblico se comportar durante esse encontro.

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lente a 1.092 indivduos, o resultado mostra que 55,8% desses homens foram abordados pela polcia. No mesmo ano, no Rio de Janeiro, um survey2 foi aplicado a 2.250 pessoas, na faixa etria entre 15 e 65 anos, e indicou que pouco mais de um tero (37,8%) dos cariocas entrevistados tiveram alguma experincia de abordagem policial.
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Considerando que a abordagem policial um evento que qualquer pessoa est sujeita a ser submetida, um fato para o qual muitos no atentam, entre eles, pesquisadores, organizaes no-governamentais, meios de comunicao e, principalmente, o cidado, que em uma interao, em que se espera alcanar a congruncia na relao entre os atores, h regras que ambos devem seguir, principalmente se existe previso legal. No caso da abordagem policial, tambm h um comportamento esperado por parte da pessoa abordada. Para esclarecer essa idia, preciso destacar trs pontos. O primeiro que a abordagem policial compreende uma ao respaldada em lei,3 sendo que o policial tem o poder de iniciar e conduzir o encontro. O segundo que se trata de uma situao de risco para o policial, pois, se a pessoa abordada estiver armada, sua segurana fica exposta, sendo esta uma situao considerada em todas as circunstncias, ou seja, o policial sempre atuar ponderando sua conduta na possibilidade de a pessoa abordada reagir contra ele. Por fim, a pessoa abordada deve seguir todas as orientaes do policial, procurando manter a calma e realizando movimentos de forma lenta, enfim, cooperando com as instrues recebidas, por mais que isso a desagrade.

Se levarmos em considerao a concepo weberiana de Estado, que atribui polcia o monoplio da violncia legtima, o termo violncia adere fortemente imagem da instituio policial. Alguns estudiosos brasileiros contribuem com essa idia em seus trabalhos (PINHEIRO, 1991; ADORNO, 1993; ZALUAR, 1994; CALDEIRA, 2000). Ocorre que a violncia abrange atitudes e aes que podem resultar em leses e mortes de cidados. Por representar um resultado grave e indesejado, dificilmente alcanar o reconhecimento tcito, por parte dos no-policiais, de ser essa uma ao legtima. Por outro lado, o foco demasiado nessa idia contribui para formar a percepo de que a polcia sai s ruas usando apenas a fora fsica e a fora letal. Isso tende a reduzir a abordagem policial aos eventos que excedem o limite da ao legal, generalizando esse encontro a situaes em que o policial vitima o cidado com truculncia, infligindo um dano moral ou fsico. Dessa forma, a abordagem policial tende a ser percebida como violao dos direitos da pessoa humana. No se pode negar que aes abusivas compem o universo cotidiano do trabalho policial, mas trata-se de uma parte que no representa o todo. Para demonstrar a importncia da realizao dessa ao policial no contexto urbano, relevante mencionar que, de acordo com a Secretaria de Segurana Pblica SSP, em 2006, foram apreendidas em todo o Estado de So Paulo 32.493 armas de fogo. Grande parte dessas armas foi encontrada pelos

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policiais durante as abordagens. Retirar uma arma de fogo de circulao implica prender algum que cometeu, ou tem inteno de cometer um crime, impedindo que mais crimes ocorram. Prender criminosos e prevenir o crime papel da polcia e uma das formas mais eficientes para cumprir essa funo por meio da abordagem policial. Esse dado mostra a face dessa interao entre a polcia e o pblico, to pouco explorada a abordagem policial como um evento que pode contribuir para o controle do crime e da violncia, ou seja, um fator concertante, do ponto de vista da ordem pblica. Sendo assim, por mais desconcertante que seja o carter desse encontro, a pessoa abordada tem obrigaes a cumprir. Para deixar essa idia mais clara, apresentase a descrio de uma abordagem feita recentemente, em uma blitz: Numa noite de agosto de 2007, no distrito da Freguesia do , na cidade de So Paulo, foi abordado um veculo do tipo utilitrio em um bloqueio policial. Neste carro havia um casal, o motorista era o homem. Ele desembarcou logo aps a determinao do policial, enquanto ela recusou-se a descer. Sua atitude era de pura indignao, ela nunca havia sido abordada antes. Uma policial feminina se aproximou. Aps insistir, a mulher desceu com a bolsa e o celular na mo, mas no obedeceu quando a policial mandou colocar as mos sobre o carro, comeou a fazer uma ligao. Neste momento, outra policial se aproximou e explicou a ela, com firmeza, que se no obedecesse seria

Embora este no seja um estudo antropolgico, a descrio dessa abordagem ajudar a desenvolver o argumento. Um bloqueio policial realizado com aproximadamente 12 policiais e duas viaturas. O local sinalizado com o objetivo de os motoristas diminurem a velocidade do veculo para, entre outras coisas, no atropelarem os policiais e permitirem que o selecionador possa ver o interior do carro. O selecionador o policial que escolhe os carros para a abordagem. A deciso da abordagem sempre tomada em frao de segundos, por essa razo o selecionador ser um policial experiente, ou seja, o que tem mais tirocnio policial.5 Alguns critrios norteiam sua deciso: carros com pelcula nos vidros, cujo grau de transparncia impea ou prejudique enxergar o lado de dentro; trs ou mais ocupantes; alta velocidade ao se aproximar da rea do bloqueio; algum tipo de reao do motorista ou ocupantes que somente o olhar atento e treinado do policial pode detectar; entre outros. Um veculo ocupado por duas pessoas ser abordado por, ao menos, trs policiais, porque um dos princpios da abordagem a superioAno 1 Edio 2 2007 | Revista Brasileira de Segurana Pblica

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conduzida delegacia por desobedincia ordem legal. A policial realizou a revista pessoal e pediu que ela abrisse sua bolsa, ela titubeou, porm obedeceu. Foi possvel visualizar um suti rendado em seu interior, junto com os demais pertences. Nada foi encontrado com eles ou no carro que indicassem qualquer ligao com o crime. Ao final, foram liberados.4

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ridade numrica de policiais em relao ao de abordados. Os ocupantes do carro sero considerados suspeitos at o momento em que nada for constatado. Importante frisar que a desconfiana do policial, seja de algum em atitude suspeita seja de um infrator, no deve provocar qualquer conduta agressiva em relao pessoa abordada.
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considerar que est diante de um infrator e no mais de um suspeito, podendo avanar na escala contnua do uso da fora e conduzir a pessoa presa ao distrito policial, por exemplo. Uso da fora no-letal nas atividades de rotina Ao contrrio do que se pensa, so raras as oportunidades em que o policial se depara com situaes de risco em que deva fazer uso da fora letal, ou seja, da arma de fogo. Embora, no caso brasileiro, no tenha sido construdo um parmetro, vamos considerar o estudo de Klinger (2005), que aponta que a chance de um policial norte-americano fazer uso da arma de fogo em servio de 10 em um milho. Sendo assim, o grosso da atividade policial emprega o uso da fora no-letal; um objeto muito pouco explorado nos estudos sobre polcia no Brasil. Por fora no-letal pode-se considerar toda e qualquer ao policial que anteceda o uso da arma de fogo, durante os encontros com o pblico. Embora o interesse seja recente, pesquisadores norte-americanos tm avanado no estudo sobre o uso da fora pela polcia (ALPERT; DUNHAM, 2000; BAZLEY; LERSCH; MIECZKOWSKI, 2006; KLINGER, 2005; NATIONAL INSTITUTE OF JUSTICE, 1999; TERRILL; REISIG, 2003; TERRILL, ALPERT, DUNHAM; SMITH, 2003). Uma das contribuies mais importantes de Alpert e Dunham (2000), que apresentam a escala de fora contnua, que tem sido incorporada pelas instituies policiais, e est descrita no Quadro 1.

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Para eliminar a suspeita, ser necessrio realizar a busca pessoal e a revista no veculo, alm da consulta ao banco de dados de pessoas e veculos, feita ao Centro de Operaes pelo rdio da viatura, para certificar se as pessoas so ou no procuradas pela justia e se o veculo ou no furtado ou roubado. Para o policial, o tempo utilizado nesses procedimentos contabilizado como rotineiro, no entanto, para as pessoas abordadas isso pode ter outra dimenso. Deixar ver uma pea ntima, mesmo que no esteja em uso, pode representar algo constrangedor para uma mulher, porm, no obedecer s ordens de uma policial durante a abordagem, impedindo que ela realize a busca pessoal, por exemplo, pode aumentar a desconfiana ou confirmar a suspeita sob sua conduta. Nessa circunstncia, possvel entender que a pessoa esteja escondendo alguma coisa. Do ponto de vista policial, provvel a interpretao de que essa coisa seja uma arma de fogo ou droga, mas, pelo lado da pessoa abordada, pode ser apenas uma lingerie ou momentos de intimidade que se recusa a macular. Entretanto, o policial a autoridade que conduz o encontro e, em face da recusa do abordado em colaborar, ter subsdios para

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Quadro 1

de imobilizao);

5. Uso de agentes qumicos; 6. Tticas fsicas e uso de armas diferentes de substncia qumica e de
arma de fogo;

7. Uso de arma de fogo e da fora letal.

Fonte: Alpert e Dunham (2000).

No Brasil, as instituies policiais vm realizando grande esforo na padronizao de procedimentos operacionais, no entanto, ainda no foi implementada nenhuma estratgia que apresente de forma detalhada o escalonamento do uso da fora pela polcia. A escala do uso de fora contnua pela polcia, apresentada no Quadro 1, pode contribuir para esse debate, pois representa uma redefinio do papel da polcia em contraposio concepo do monoplio da violncia legtima. Na expresso uso da fora est implcita a existncia de graus diferentes de fora, aplicados a situaes especficas. O termo violncia, neste caso, traz em seu conceito uma legalidade relativa da ao, em outras palavras, a violncia ocorrer quando o policial exceder os limites do uso da fora. Essa nova abordagem foi preconizada anteriormente por Bittner (1990), que argumenta

que a capacidade do uso da fora tem funo central no papel da polcia. O autor acrescenta ainda que o policial, e apenas o policial, est equipado, autorizado e requisitado para lidar com qualquer exigncia para a qual a fora deva ser usada para cont-la. Mesmo quando no se usa a fora, ela est por trs de toda a interao que acontece (cf. BAYLEY, 1985, p. 20). Sendo assim, possvel compreender a razo pela qual a ao de presena do policial considerada demonstrao de fora. Essa escala ainda mostra que a interao entre o policial e o pblico ocorre, na maior parte do tempo, at o nvel 3, ou seja, por meio da presena do policial e da comunicao verbal. De acordo com os registros oficiais da Secretaria da Segurana Pblica,6 em 2006, em todo o Estado de So Paulo, foram abordadas 9.351.600 pessoas pela polcia, enquanto
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1. Nenhuma fora; 2. Ao de presena do policial uniformizado; 3. Comunicao verbal; 4. Conduo de preso (uso de algema e outras tcnicas

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Uso de fora contnua pela polcia

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124.594 foram presas em flagrante delito. Embora tenha sido ressaltado anteriormente que os registros de abordagem so subnotificados, esses dados sero considerados para a anlise. Sendo assim, tendo em vista que a revista pessoal, costumeiramente, antecede a priso em flagrante delito, pode-se inferir que so necessrias, em mdia, 133 abordagens para se efetuar uma priso. Em outras palavras, uma em cada 133 pessoas abordadas apresenta conduta relacionada ao crime, as demais no. Esse dado ainda demonstra que o policial, em 98,6% das abordagens, conduziu o grau de fora at o limite da comunicao verbal. Dados da Secretaria de Administrao Penitenciria do Estado de So Paulo mostram que, no final de 2006, a populao carcerria, no Estado, atingiu o patamar de 144.430 presos, enquanto a populao paulista estimada pelo Seade, para o perodo, de aproximadamente 41 milhes. Isso implica que a quantidade de pessoas presas no Estado de So Paulo, em 2006, equivalente a 0,35% de toda a populao estadual. A exposio desses dados feita com o intuito de demonstrar que o criminoso no apresenta uma conduta que possa ser identificada ou comprovada facilmente pelo policial. Alm disso, muito pequena a parcela da populao que tem relao com o crime. Sendo assim, na amostra selecionada para a abordagem, a proporo de cidados comuns muito alta.

O comportamento individual do policial, nessas circunstncias, est respaldado por um conjunto de regras e procedimentos, que o orientam na direo de uma conduta segura e legal, sem ferir sua discricionariedade. importante destacar que a polcia uma das instituies mais visveis do Estado, em razo da natureza particular do mandato que a autoriza a utilizar a fora com o objetivo de manter a ordem pblica, o que compreende fiscalizar, deter, prender e at mesmo, sob circunstncias justificveis, ferir ou matar (DELORD; SANDERS, 2006). No Brasil, o fundamento legal do uso da fora pela polcia no especifica as ocasies em que ela deva ser usada e tampouco o grau que deva ser aplicado. Uma das razes a incapacidade dos legisladores de preverem tais circunstncias. O grau de fora a ser utilizado ser determinado pelo policial no momento do encontro. Essa capacidade lhe foi atribuda tambm por lei o poder discricionrio, que o autoriza a escolher quando e como usar a fora. O resultado dessas escolhas tende a gerar discusses, principalmente quando os interessados pelo assunto no concordam com a conduta adotada pelo policial, ou quando h registro de leso ou morte, mesmo que tenha sido resultado de ao legal. Os trabalhos acadmicos que voltaram sua ateno para discutir o uso da fora restringemse produo de expresses como o uso da fora mnima necessria (BITTNER, 1990), que apresentam termos que tentam orientar o grau de fora a ser usado; ou ainda presunes

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Procedimento operacional padro A abordagem uma ao policial proativa,7 em que o policial inicia e conduz o encontro.

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razoveis de que uma infrao foi cometida (MONET, 1986), que se refere oportunidade em que a fora deva ser usada; entre outras que ficam muito distantes de um critrio que possa permitir o julgamento a respeito de ter sido necessria, desejvel ou apropriada alguma interveno que utilize a fora. Neste sentido, o papel da instituio policial determinante para facilitar a escolha do seu agente, pois tem condies de oferecer opes que descrevam e orientem a conduta adequada diante dos possveis eventos em que o policial poder se deparar durante o seu turno de servio. Essa maneira especfica de se comportar e conduzir uma dada interao com o pblico chamada de procedimento operacional. As instituies policiais tm atentado para a importncia dessa questo e investido na padronizao de procedimentos operacionais, como fonte de referncia para o trabalho policial, que em muitas ocasies obriga, em razo da imprevisibilidade do fato ameaador, que a resposta seja pautada em julgamento feito em frao de segundos. Identificar a ameaa, agir oportunamente e dosar a fora na medida certa so fatores determinantes para a segurana do policial e das pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, no encontro. O esforo da Polcia Militar de So Paulo em delimitar o uso da fora, criando procedimentos operacionais em concordncia com as normas legais, estabelece parmetros para propiciar que a deciso do policial seja discricionria e no arbitrria. Embora possa diminuir o campo de deciso do agente, o objetivo minimizar o risco de arbitrariedade.

No Brasil, a Polcia Militar de So Paulo foi pioneira na criao do Mtodo de Tiro Defensivo (PMESP, 1999) e do Guia de Procedimentos Operacionais Padro POP (PMESP, 2002). Por muitos anos, os exerccios de tiro posicionavam o policial a uma certa distncia de um alvo (silhueta de uma pessoa), em que ele disparava uma srie de tiros na tentativa de atingir uma regio considerada fatal, localizada prximo ao corao, denominada por 5X. Entretanto, este era um treinamento voltado apenas para aprimorar a pontaria e o manejo da arma de fogo e no capacitava o policial a enfrentar uma situao de risco. O novo mtodo de tiro defensivo, introduzido em 1999, que levou o nome de seu criador Mtodo Giraldi8 , visa condicionar o policial por meio de treinamentos prticos de tiro, a fim de que ele possa estar preparado para oferecer uma resposta racional, em uma circunstncia que envolve tenso e medo, e que sua conduta seja capaz de proteger sua vida e de terceiros, preservar a integridade da instituio policial, mantendo a coerncia com as normas e a ordem social (PMESP, 1999).
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A diferena entre essas condutas que, pela discricionariedade, o policial escolhe uma entre o conjunto de alternativas legais disponveis para uma dada circunstncia. J quando age pela arbitrariedade, ele adota um comportamento incongruente com a circunstncia, que pode estar previsto no conjunto de normas que orientam suas aes, ou mesmo em completo desacordo com qualquer dispositivo legal.

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Os treinamentos incluem a entrada do policial em locais de crime, em que so fixadas vrias silhuetas. Nesses exerccios de simulao, ele ou ela deve ingressar numa edificao fsica, que tanto pode ser uma casa ou um estabelecimento comercial, em que ir se deparar com alvos em que deve atirar e outros nos quais no deve atirar. Mesmo se tratando de um exerccio, a tenso muito alta e o medo se faz presente, pois o praticante no sabe qual a estrutura do ambiente e tampouco a localizao dos alvos. O mtodo prev inclusive a forma mais segura de o policial ingressar e avanar neste ambiente, a fim de que no se exponha na linha de tiro do agressor. Por exemplo, como passar por uma janela, como entrar pela porta, como caminhar pelo corredor e nos cmodos, onde se posicionar para fazer a segurana do parceiro, entre outros detalhes vitais. O policial deve atirar em uma nica circunstncia: quando o alvo tem uma arma de fogo na mo apontada em sua direo. Para aumentar o grau de dificuldade, so distribudos no ambiente outros alvos que tm outros objetos nas mos, como faca, telefone celular ou ainda esto com as mos escondidas. Estes so alvos em que no se deve atirar. Outro alvo que exige maior habilidade o que est armado, mas com refm. Nesta circunstncia o policial deve verbalizar e, diante da negativa do agressor em liberar o refm e se render (o instrutor do exerccio verbaliza como se fosse o agressor), deve acionar o Gate Grupo de Aes Tticas Especiais, que o grupo da Polcia Militar especializado em ocorrncias com refns.

O policial ganha pontos, a cada acerto, e perde, a cada erro. Perder pontos numa situao real pode significar morrer ou matar algum. O exerccio de simulao contribui para despertar esse alcance. Outro avano da Polcia Militar de So Paulo a padronizao dos procedimentos operacionais a serem adotados pelo policial durante a abordagem. Este guia confirma que a ao do policial est condicionada ao alcance de sua percepo, sobre a pessoa com quem interage. Neste sentido, a abordagem pode se desenvolver de trs diferentes maneiras: abordagem a pessoa sob fiscalizao de polcia; abordagem a pessoa em atitude sob fundada suspeita; e abordagem a pessoa infratora da lei (PMESP, 2006). Na abordagem a pessoa sob fiscalizao de polcia, o policial apenas identifica a pessoa, pedindo seus documentos, e explica o motivo pelo qual ela foi abordada e a libera em seguida; sua arma permanece no coldre o tempo todo. Na abordagem a pessoa em atitude sob fundada suspeita, o policial saca sua arma e a mantm na posio sul,9 apontando-a para o solo; determina que a pessoa se vire de costas, entrelace os dedos na nuca e afaste as pernas. Se a abordagem feita a uma pessoa, o procedimento padroniza que essa ao seja operacionalizada por dois policiais, ou seja, que sempre haja superioridade numrica de policiais em relao aos no-policiais. Aps posicionar a pessoa da forma descrita, um dos policiais recoloca sua arma no coldre, abotoa-o, e realiza a busca pessoal, enquanto o outro permanece com sua arma na posio sul fazendo a segurana.

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Por fim, na abordagem a pessoa infratora da lei, o policial usa sua arma na posio 3 olho,10 apontando-a para o infrator, e determina a posio em que deve ficar para iniciar a busca pessoal: de costas para o policial, dedos entrelaados na nuca e ajoelhado, para dificultar a reao dessa pessoa que, reconhecidamente, praticou um crime. Quando a pessoa est conduzindo um veculo, alm da busca pessoal, o policial tambm pode realizar a identificao do veculo, fiscalizando os documentos e/ou a vistoria externa e interna do automvel. A escolha do procedimento acompanha a mesma lgica da abordagem a pessoa a p e a vistoria, quando realizada, pretende alcanar o mesmo objetivo: localizao de armas, drogas e outros produtos de crime. O condutor ou o proprietrio deve acompanhar a vistoria. Portanto, a lei autoriza os policiais abordarem pessoas com o objetivo de identific-

Embora haja autorizao legal, no se pode dizer que esta seja uma situao agradvel, fato que gera muita discusso sobre ser este o procedimento mais apropriado. Por um lado, compreensvel que uma pessoa honesta sintase ofendida por ter tido sua conduta identificada como suspeita; por outro, o elevado aumento do crime e da violncia leva o policial a aumentar o seu grau de desconfiana nas pessoas e, conseqentemente, a realizar um maior nmero de abordagens. No entanto, no que se refere ao grau de risco, a mais crtica a abordagem ao infrator. Pessoas cometem crimes por no respeitarem as normas legais e provvel que ameacem a segurana de outras pessoas, inclusive a dos
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Na busca pessoal, por medida de segurana, o policial deve se posicionar de forma a manter sua arma o mais distante possvel do revistado e fixar uma base de apoio com os ps, caso a pessoa reaja. Deve ainda segurar com uma das mos os dedos entrelaados e deslizar a outra sobre o corpo da pessoa, apalpando os bolsos externamente; tudo isso com o objetivo de encontrar algum objeto ilcito com a pessoa, como arma ou droga. Se ainda restarem dvidas, o policial poder realizar a busca pessoal minuciosa, que uma revista mais detalhada e deve ser feita, preferencialmente, na presena de testemunhas e em local isolado do pblico, onde o revistado retira toda a roupa e os calados.

las, cuja ao pode ter relao com o fato de estarem transitando em local de risco, por exemplo. Tambm podem abordar aquelas que estejam se comportando de forma a despertar suspeita de vir a transgredir ou j ter transgredido alguma norma legal e ainda aquelas que, sabidamente, praticaram algum crime. A ao policial mais crtica, no que se refere relao entre a polcia e o pblico, aquela voltada para a pessoa em atitude suspeita e a que ocorre com maior freqncia. Como demonstrado anteriormente, o policial realiza em mdia11 133 abordagens para localizar um infrator. Isso significa que os que foram liberados so, na maior parte das vezes, pessoas comuns que jamais tiveram qualquer tipo de envolvimento com o crime, mas por algum motivo chamaram a ateno do policial. Esses cidados comuns so revistados, identificados e liberados.

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policiais, para no serem presas. Os procedimentos padronizados no POP de abordagem pessoa infratora da lei so operacionalizados em situaes de flagrncia, quando algum est cometendo ou acabou de cometer um crime, cuja probabilidade do uso da arma de fogo aumenta se o infrator tambm estiver armado e reagir contra as ordens do policial.
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As denncias representam uma forma de controle e so necessrias para que o Estado e a instituio policial possam acionar mecanismos que corrijam tais prticas. A aplicao de sano ao policial que excede importante como medida de punio, porm, as denncias tambm servem de subsdios para que a instituio aprimore o preparo profissional dos policiais. Preocupado com o exerccio da cidadania, o Centro de Direitos Humanos de Sapopemba CDHS desenvolveu a Cartilha de abordagem policial (CDHS, 2006), que apresenta o que o policial pode e o que no pode fazer durante uma abordagem. medida que o cidado conhece seus direitos, aumenta sua capacidade crtica para avaliar a conduta do policial e, conseqentemente, para buscar os rgos a que possa recorrer para preservar esses direitos, caso sejam violados. No entanto, essa cartilha no cumpre o objetivo ao qual se prope, pois seu contedo estigmatiza a abordagem policial, reduzindo esse contato a um evento em que os direitos humanos so violados. Deve-se lembrar que o policial quem inicia e conduz essa interao. Sua arma de fogo ser posicionada (coldre, posio sul ou posio terceiro olho) de acordo com a circunstncia (fiscalizao, pessoa em atitude suspeita ou infrator da lei). Alm disso, ele indicar verbalmente pessoa abordada como se portar. Por ser essa uma situao de risco para o policial, necessrio considerar a possibilidade de a pessoa abordada reagir ordem.

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Nesta situao, onde o risco elevado, mais provvel que o uso inadequado da fora (superior ou inferior ao grau necessrio) resulte em leso ou morte, inclusive do policial. O tempo para o policial realizar a escolha do nvel de fora a ser usada nesta circunstncia nfimo, porm sua escolha que determina o resultado.

Regras de conduta durante a abordagem policial: para quem servem? Os Procedimentos Operacionais Padro guiam a conduta individual do policial durante a abordagem, de forma a elevar o grau de segurana para os envolvidos e diminuir a probabilidade de prticas abusivas. Uma forma de medir os abusos cometidos pelos policiais durante a abordagem por meio das denncias. Dados da Ouvidoria da Polcia indicam que, em 2006, foram registradas, no Estado de So Paulo, 46 denncias contra policiais, por pessoas que sofreram abordagem com excesso. O acumulado do perodo, entre 1995 e 2006, de 124 denncias. Este um nmero muito baixo de denncias diante do volume de abordagens realizadas, o que pode indicar o medo que as pessoas tm de denunciar.

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Neste sentido, Alpert e Dunham (2000) apresentam a Escala de Resistncia pelo Uso da Fora Contnua e Nveis de Resposta (Quadro 2), que demonstra que a medida de fora usada pelo policial, diante da resistncia do suspeito, est diretamente relacionada reao ofensiva. Isso tambm quer dizer que, se o policial usar a

fora em grau inferior ao necessrio, aumenta a probabilidade de se tornar vtima. Sendo assim, se o abordado no seguir as orientaes do policial, ele dever elevar o grau de fora de acordo com a escala, a fim de manter a segurana individual e a dos demais envolvidos, fazendo valer a autoridade que lhe foi conferida.

Quadro 2

Resistncia pelo uso da fora contnua e nveis de resposta

Nvel de resistncia do suspeito


Presena do suspeito Resistncia passiva Resistncia fsica ativa Posio de abordagem Tcnicas de conduo de preso Tticas fsicas/outras armas

Nvel de controle da fora usada pelo policial


Resistncia verbal Resistncia defensiva Uso de arma de fogo e fora letal Comando verbal Agentes qumicos Uso de arma de fogo e fora letal

Fonte: Alpert e Dunham (2000).

Neste sentido, a Polcia Militar de So Paulo realiza algumas tentativas de orientar as pessoas na forma de se comportarem durante a abordagem. o caso do Alerta Geral: Abordagem Policial entenda a importncia e saiba como ajudar a polcia, que um informativo distribudo ao pblico em geral: ao se aproximar de um bloqueio, diminua a velocidade, use faris baixos e mantenha a tranqilidade; sempre respeite o bloqueio policial, pois a ao policial a sua segurana e a fuga do bloqueio pode ser mal interpretada e gerar graves conseqncias;
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ao parar o veculo, permanea sentado e aguarde orientaes. Se for noite, acenda as luzes internas do veculo. No desa do veculo sem orientao do policial, nem bruscamente; s saia do veculo mediante instruo do policial, mantendo as mos sempre visveis e sem quaisquer objetos. No se preocupe com documentos, pois sero solicitados oportunamente; quando houver duas ou mais pessoas no interior do veculo, elas devem aguardar orientao para sair, mantendo as mos sempre visveis;
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na abordagem, no se precipite em tirar do bolso a carteira de identidade. Aguarde orientao do policial; caso esteja portando arma legalmente ou ela esteja no interior do veculo, comunique ao policial na primeira oportunidade; no admita abusos ou maus tratos. Denuncie Corregedoria da Polcia Militar pelo fone: (0XX11) 3311-0077, ou pelo e-mail correg@polmil.sp.gov.br. As condutas descritas contribuem para evitar qualquer tipo de intercorrncia durante a abordagem. Alm dessas orientaes, o Alerta Geral explica porque a abordagem policial realizada, a previsibilidade legal, quando e onde ela ocorre, de que forma e o objetivo. Alm disso, orienta a pessoa como proceder no caso de ser desrespeitada, estimulando a denncia.

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o seu conhecimento (REISS, 1971; TERRILL; REISIG, 2003; WEIDNER; TERRILL, 2005). A observao direta consistiu em registrar em vdeo as aes policiais, desencadeadas em local e horrio previamente definidos, em que quatro policiais estacionavam duas viaturas e abordavam motos e carros. Observadores treinados antecipavam-se chegada dos policiais e filmavam a operao. Foram filmadas 19 operaes, realizadas entre segunda-feira e sexta-feira, por volta das 9 horas. A explicao para o horrio a pequena demanda de ocorrncias policiais que exigem o emprego de viatura. As reas onde foram realizadas as operaes abrangem, em sua maior extenso, bairros de periferia, incluindo favelas e terrenos invadidos e que tm ndices mais elevados de crimes, incluindo o homicdio.13 Ao final, a observao foi sistematizada, ou seja, os vdeos foram assistidos e as imagens codificadas por meio de um questionrio com 92 perguntas, cujas respostas formaram o banco de dados para a anlise, sendo essa a nica finalidade das imagens. Registros oficiais da Polcia Militar indicam que, na rea14 da cidade de So Paulo selecionada para a pesquisa, foram realizadas 12.812 abordagens em 2006, ou seja, em mdia, 35 por dia, ou quase uma abordagem e meia por hora. A unidade de anlise da pesquisa a abordagem por bloqueio. A amostra reuniu 90

Observao social sistemtica da abordagem policial Na tentativa de avaliar o desempenho operacional do policial militar durante a abordagem, foi selecionado um grupo de 24 policiais, que atuam na cidade de So Paulo.12 Estes policiais foram observados durante o trabalho, por meio da tcnica da Observao Social Sistemtica, que consiste em um mtodo de observao direta, porm no participante. Esta tcnica permitiu observar o fenmeno natural, ou seja, o policial desempenhando suas atividades de policiamento sem que soubesse que estava sendo observado. Tcnicas de observao social sistemtica tm sido testadas, internacionalmente, com o objetivo de observar o policial em suas atividades, sem

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abordagens a veculos, realizadas em 19 dias diferentes. Em cada dia foram abordados em mdia cinco veculos, num perodo aproximado de 40 minutos. Portanto, a amostra representativa do universo de abordagens realizadas naquela regio. No que se refere aos abusos policiais, a Ouvidoria de Polcia registrou, em 2006, 28 denncias contra policiais militares da capital, sob a acusao de terem realizado abordagem em excesso. A observao social sistemtica das 90 abordagens no constatou nenhuma prtica que pudesse ser considerada abusiva. Embora os registros oficiais referentes abordagem e denncia sejam subnotificados, este o parmetro disponvel para o estudo, razo pela qual considerado nessa anlise. Os resultados encontrados permitem identificar o perfil das pessoas abordadas, lembrandose que os ocupantes dos 90 veculos abordados totalizaram 115 pessoas: gnero h uma importante variao de gnero nessa experincia, pois os homens, que representam 47% da populao do distrito onde foram realizadas as operaes, so 91,3% dos abordados; idade16 as pessoas mais abordadas so os adultos (47,5%), que correspondem a 46,9% da populao do distrito pesquisado (de 25 a 59 anos), mostrando equivalncia entre a populao e a amostra. Entretanto, o segundo grupo apresenta tambm importante variao os jovens (de 18 a 24 anos) so 40% dos abordados e 12,3% da populao do distrito da capital. O fato de homens jovens constiturem o segmento populacional mais abordado
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A anlise demonstra que, quando o policial no observa as condutas previstas no POP de abordagem, muito mais provvel que sua prpria segurana seja colocada em risco. Alguns indicadores, entre outros, mostram isso: no manter distncia do veculo durante o desembarque das pessoas abordadas (78,9%) um pressuposto da abordagem sempre ponderar a possibilidade de reao. Quando o policial aproximase demais do veculo no momento em que as pessoas esto desembarcando, aumenta sua vulnerabilidade; posicionar-se incorretamente para fazer a segurana do parceiro que realiza a busca pessoal (73,3%) no caso de a pessoa abordada reagir e o policial que realiza a segurana tiver que usar a arma de fogo e no estiver posicionado corretamente, provavelmente, colocar seu parceiro na linha de tiro;
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est em consonncia com outras pesquisas, como a que foi realizada em Londres, no incio dos anos 80, que mostra que uma pessoa jovem incorre onze vezes em mais riscos de ser abordada pela polcia que uma pessoa de sessenta anos ou mais (cf. MONET, 1986, p. 233). Isso pode estar associado forte participao do homem jovem no crime. raa/cor em que pese o fato de a maior parte dos abordados ser formada por brancos (60%), eles equivalem parcela de homens brancos (67,1%) da Subprefeitura em que est inserida a rea onde foram realizadas as operaes. A amostra de abordados nobrancos (30,5%) tambm equivalente faixa populacional daquela regio (31,2%).

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aproximar a arma da pessoa abordada (47,8%) durante a busca pessoal o policial deve manter sua arma no coldre abotoado e mant-lo o mais afastado possvel da pessoa abordada, pois, no caso de uma possvel reao, o abordado poder sacar a arma do policial. Na amostra de 90 abordagens no foi registrado nenhum flagrante, ou seja, no foi encontrado nenhum objeto produto de crime. Esse indicador corrobora a relao de abordagem/flagrante descrita anteriormente. Alm disso, em nenhum desses encontros foi observada alguma prtica abusiva. Mesmo sendo uma amostra pequena, diante do universo de abordagens, esta a primeira vez em que se observa o encontro entre a polcia e o pblico, como um fenmeno natural, ou seja, por meio da observao direta e sem interveno, o que possibilitou criar uma medida da abordagem policial. A melhor maneira de aferir o uso da fora no-letal pela polcia por meio da observao direta da atividade policial, pois pesquisas realizadas com pessoas que tm contato com a polcia tendem a extrair a percepo do entrevistado somente no que se refere s prticas abusivas, ou seja, eles so instados a responderem s perguntas de forma a qualificar a atividade policial ou a polcia e no apenas descrever os procedimentos adotados pela polcia durante o encontro (IFB, 2003; RAMOS; MUSUMECI, 2005). Os resultados do teste emprico desta pesquisa demonstram a ausncia de indcios de
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violncia policial e que o foco da ao policial no foi direcionada contra as classes perigosas, entre elas os no-brancos.

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Consideraes finais Seja qual for a natureza, as pessoas no se sentem confortveis quando esto sendo fiscalizadas. No entanto, para efetivar o controle das relaes e de determinados comportamentos anti-sociais ou criminosos, papel que cabe ao Estado, necessria a implementao de algumas medidas que possam concertar ou harmonizar alguns pontos que esto em dissonncia com a ordem pblica. A abordagem policial uma dessas medidas concertantes. Porm, do ponto de vista da pessoa abordada, ela pode ser altamente desconcertante, em razo da exposio pblica e da percepo negativa da polcia. Este um ponto que requer ateno, pois determinante da relao entre a polcia e o pblico. Neste sentido, dois fatores podem contribuir para que a abordagem policial deixe de ser um encontro desconcertante: aumentar o preparo profissional do policial militar; e ampliar o conhecimento do cidado sobre esse encontro, tanto no que se refere s razes pelas quais ele ocorre, quanto sobre a maneira como deve se comportar durante a abordagem. Sendo assim, tanto a instituio policial quanto a sociedade civil organizada (pesquisadores, organizaes no-governamentais, meios de comunicao, entre outros) tm oportunidade de investimento. importante que todos atuem em conjunto e de forma

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horizontal, pois o objetivo nico: construir uma cultura de confiana numa polcia, com alto preparo profissional, para que as pessoas sintam segurana e no medo daqueles que devem proteg-la.

1. Pesquisa realizada pelo Instituto Futuro Brasil IFB, em que foi selecionada uma amostra de 5.000 domiclios, distribudos nos 96 distritos do municpio de So Paulo. 2. Essa pesquisa foi realizada pela Science Sociedade Cientfica da Escola Nacional de Cincias Estatsticas, com o objetivo de conhecer as experincias e percepes das pessoas a cerca das abordagens policiais na cidade, ver em Ramos e Musumeci (2005). 3. O poder de polcia garantido pelo artigo 78 do Cdigo Tributrio Nacional; enquanto a busca pessoal, cuja discricionariedade da escolha, da pessoa, local e hora, do policial, tem fundamento nos artigos 239 e 244 do Cdigo de Processo Penal. 4. Presenciei esta abordagem. 5. Tirocnio no dicionrio Houaiss significa : prtica, exerccio preliminar indispensvel ao desempenho de determinada profisso; experincia capacidade de discernimento. No meio policial entendido como a capacidade de identificar condutas que demonstrem relao com o crime. Alguns autores, como Bittner (1990) e Muniz (1999), chamam isso de arte ou craft. 6. Os dados da SSP/SP sobre pessoas presas e revistadas agregam as aes das polcias militar e civil. Ao nmero de pessoas presas em flagrante delito foi agregado o de infratores apreendidos em flagrante. 7. Sherman define que a relao direta entre o cidado e a polcia ocorre de duas maneiras: (1) ao policial reativa; quando a iniciativa do cidado as ligaes ao 190 so exemplo; e (2) ao policial proativa, quando a iniciativa da polcia como exemplo, a abordagem (cf. BAYLEY; 1985, p. 36). 8. O mtodo leva o nome de seu criador Coronel da Reserva da PMESP Nilson Giraldi. Em razo da parceria da Secretaria Nacional de Segurana Pblica Senasp com o Comit Internacional da Cruz Vermelha CICV, o mtodo Giraldi tem sido aplicado na capacitao de policiais militares e civis de outros Estados do Brasil e em outros pases da Amrica Latina. 9. Posio sul: arma empunhada pela mo forte, na altura do peito, posicionada com o cano perpendicularmente voltado para o solo, dedo fora do gatilho, cotovelo flexionado e projetado para cima, mo fraca estendida com a palma da mo voltada para o peito, podendo estar sob a arma (posio descoberta) ou sobre a arma (posio coberta), cotovelo flexionado prximo linha da cintura (PMESP, 2006). 10. Posio 3 olho: arma empunhada com as duas mos (dupla empunhadura), mo forte empurra a arma e a mo fraca puxa a arma, dedo fora do gatilho, erguida na altura dos olhos, abertos, braos semi-estendidos, posio do corpo frontal ou lateral, em p, ajoelhado, agachado ou deitado. A posio 3 olho tambm pode ser empregada com os cotovelos flexionados, quando o ambiente assim necessitar, o cano da arma sempre ser direcionado para o local onde se vistoria, a direo do cano acompanha o olhar (PMESP, 2006). 11. Muitos policiais tm desempenho acima da mdia, ou seja, realizam menor nmero de abordagens para localizar um infrator. Isso pode ter relao com a rea de atuao reas com elevado ndice criminal so mais provveis de se localizarem infratores da lei, ou ainda com a sua habilidade e o seu olhar mais apurado (tirocnio). 12. Para saber mais sobre essa pesquisa e seus antecedentes, ver Pinc (2006). 13. Para preservar a identidade dos policiais observados, no sero mencionados neste artigo os locais em que foram realizadas as OSS. 14. Esse dado equivalente rea da Companhia Policial Militar a que pertencem os policiais observados. 15. Para conhecer mais sobre os dados e anlise da pesquisa, ver Pinc (2006). 16. Esse dado foi aferido pela observao da aparncia da pessoa abordada e no pelo seu documento.

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SECRETARIA DE ADMINISTRAO PENITENCIRIA DO ESTADO DE SO PAULO www.sap.sp.gov.br/common/dti/estatisticas/ populacao.htm SECRETARIA DA SEGURANA PBLICA

FUNDAO SEADE www.seade.gov.br

DO ESTADO DE SO PAULO www.ssp.sp.gov.br/estatisticas

Data de recebimento: 23/09/07 Data de aprovao: 08/11/07

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