As autoridades tradicionais angolanas e o paradigma jurídico ocidental
Angolan traditional authorities and the western legal standards
Comunicação realizada em 12 set. 2014 no IX Congresso
Ibérico de Estudos Africanos (CIEA9), ocorrido de 11 a 13 set.
2014, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra.1
Alain Souto Rémy2
SUMÁRIO
1.
Introdução
2.
O paradigma jurídico ocidental
3.
As manifestações jurídicas das autoridades tradicionais angolanas
4.
Retroalimentação entre objetos e critérios de avaliação
RESUMO
O artigo problematiza a integração das ‘autoridades tradicionais’ angolanas em relação ao
paradigma jurídico-institucional ocidental, cuja adoção Angola constitucionalmente renovou em
2010. Por um lado, analisa dois casos extremos ligados a acusações de feitiçaria, em que ficam
evidentes violações a garantias individuais, ao Estado de Direito ( rule of law) e à separação de
poderes. Por outro, apresenta o fenômeno do direito proverbial no contexto Ovimbundu, que
demonstra grande correspondência entre ordens normativas de naturezas tradicional e estatal.
Esboça, por fim, hipóteses e meta-hipóteses a serem utilizadas na pesquisa em andamento.
PALAVRAS-CHAVE: autoridades tradicionais; Angola; Estado de Direito; feitiçaria; direito proverbial.
ABSTRACT
The paper discusses the integration of Angolan ‘traditional authorities’ regarding Western
legal and institutional standards, which Angola renewed by means of it's constitution in 2010. On
the one hand, it analyses two extreme cases of witchcraft-based trials, which clearly show violations
of individual rights, the rule of law and the separation of powers. On the other hand, it presents the
phenomenon of proverbial law in the Ovimbundu context, which shows great matching between
State and traditional legal orders. Last, it outlines hypotheses and meta-hypotheses to be used in the
1
2
Este trabalho reflete o estágio inicial de investigação de doutoramento realizada sob a orientação do Professor
Armando Marques Guedes, a quem agradeço pelas críticas. Falhas e insistências permanecem sob minha exclusiva
responsabilidade.
Professor no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira (UNILAB, Brasil). Doutorando na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (UNL,
Portugal). Mestre pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil).
Contato: <alain.remy@unilab.edu.br>.
1
ongoing research.
KEYWORDS: traditional authorities; Angola; rule of law; sorcery; proverbial law.
1. Introdução
Este trabalho objetiva problematizar a integração das (assim chamadas modernamente)
‘autoridades tradicionais’ – ou simplesmente ‘chefes locais’ ou ‘chefatura’ no seu conjunto – na
ordem jurídica estatal de Angola, questão que se repete noutros países em África, e mesmo noutros
continentes, que passaram pelo duplo processo de colonização e descolonização. As sociedades
angolanas tiveram suas estruturas políticas locais submetidas a uma “superestrutura” europeia que
efetivamente validava ou rejeitava suas práticas jurídico-culturais locais. Posteriormente libertada
dessa dominação, ficou com uma complexa contradição de valores e princípios por resolver, do que
é um sintoma a observação de estruturas jurídicas internas interagindo sem harmonia, na produção e
na aplicação do Direito. De um lado, um poder “central” (Estado); do outro, um “social” (chefes).
Considerando que abundam manifestações jurídicas incompatíveis por partes desses atores, e que
Angola renovou em 2010 a adoção de um paradigma jurídico-institucional ocidental, mas também
que essa nova Constituição não regulou a questão como devia ou poderia (cf. Constituição da
República de Angola, 2010: arts. 224º-225º), cumpre explicitar as principais dificuldades que
caracterizam essa incongruência.
Primeiro, deixamos claro o que tomamos por paradigma jurídico ocidental. Em seguida,
apresentamos dois casos extremos de manifestação do direito tradicional, ambos ligados a
acusações de feitiçaria, coletados em campo por Marques Guedes (2007); e abordamos a dimensão
proverbial do direito tradicional, questão carecedora de melhor atenção pela academia. Teremos
feito, assim, referência a duas das facetas do fenômeno jurídico tradicional em Angola. Ao final, em
vez de conclusões ou respostas, teremos apenas mais perguntas, desejáveis, aliás, considerando o
estágio da presente investigação em curso.
2. O paradigma jurídico ocidental
Seria plenamente possível incluir no conceito de paradigma jurídico ocidental todo um vasto
universo de princípios, mas, além de incontáveis, cada um deles estaria também sujeito a variações,
na medida em que adquire diferentes formulações, a depender do local, do momento e mesmo dos
autores específicos a que se recorra para compreendê-los. Não obstante, parece existir um conjunto
historicamente assentado de padrões institucionais encontrados ou defendidos com alguma
consistência e abrangência. Esses elementos compõem o princípio nuclear do Estado de Direito,
bem entendido como regulação do funcionamento da sociedade de uma forma geral, não apenas da
máquina administrativa.
2
Como estratégia para definir o que seria o Estado de Direito, Canotilho (1999) parte da
identificação dos limites do seu oposto, o “Estado de não Direito”, sendo assim qualificado um
Estado que impõe normas arbitrárias, cruéis ou desumanas; no qual o Direito se identifica com a
“razão do Estado”, definida e imposta por líderes na forma de expressões como o “bem da nação”,
os “imperativos da revolução” ou os “interesses superiores do Estado”; e pautado por uma injusta
desigualdade na aplicação do Direito, com frequentes tratamentos com “dois pesos e duas medidas”
consoante as pessoas ou interesses em causa. Certamente trata-se de um padrão institucional que
comunga da origem histórica do Estado liberal ou, dito de outro modo, “[f]oi no ‘meio ambiente
natural’ do Ocidente o local da forja de uma arquitectónica de Estado baseada no consenso sobre
princípios e valores que, no seu conjunto, formam a chamada juridicidade estatal” (Canotilho,
1999).
Sem adentrarmos a longa cadeia histórica de contribuições que constituíram a atual noção de
Estado de Direito, formado especialmente no contexto das revoluções burguesas e dos conflitos
ocorridos no século XX, e utilizando-se os termos empregados pelo Secretariado-Geral das Nações
Unidas (em tradução livre), o princípio do Estado de Direito pode ser compreendido como:
[U]m princípio de governança segundo o qual todas as pessoas, instituições e
entidades, públicas e privadas, incluído o próprio Estado, respondem a leis que são
promulgadas publicamente, cujo cumprimento é isonomicamente exigido,
aplicadas com independência e que são compatíveis com as normas e padrões
internacionais de direitos humanos. Exige, ainda, que sejam adotadas medidas para
garantir o respeito aos princípios de primazia da lei, igualdade perante a lei,
responsabilidade perante a lei, justiça na aplicação da lei, separação de poderes,
participação na tomada de decisões, segurança jurídica, vedação ao arbítrio, e
transparência procedimental e legal. (ONU, 2004: 4)
Na expressão inglesa rule of law, utilizada para denotar o mesmo conceito, o termo rule
significa não “regra”, mas “domínio”, “império”, “governo”: trata-se do governo das leis, por
contraposição ao governo de homens. A essa noção foram sucessivamente agregadas exigências
formais e materiais por força de circunstâncias históricas e desenvolvimentos teóricos, passando a
exigir-se (1) leis gerais e racionais (o que implica a atração dos princípios da igualdade e da
razoabilidade); (2) emitidas e aplicadas por autoridades distintas (i.e., com separação dos poderes);
(3) as quais devem agir em nome de interesses públicos, 3 não privados (aqui previsto o princípio
republicano); (4) com independência e imparcialidade (especialmente aquelas autoridades
judiciais); (5) num contexto de pluralismo político (o que traduz um princípio democrático,
3
Interesses públicos “primários”, para utilizar a distinção entre primários (aqueles diretamente relacionados com os
destinatários finais da atuação do Estado, i.e., interesses-fim) e secundários (aqueles que atendem diretamente à
máquina administrativa e apenas indiretamente, e eventualmente, ao povo governado; interesses-meio).
3
permitindo-nos falar em Estado democrático de Direito); (6) em que o poder estatal seja exercido
com fundamento, instrumentos e limites instituídos constitucionalmente (o que significa reconhecer
na constituição nacional o instrumento jurídico-político básico); em que se incluem (7) direitos,
liberdades e garantias de proteção ao indivíduo, isolada e coletivamente e, ainda, (8) a plena
responsabilização de agentes públicos e do próprio Estado por atos contrários ao Direito. Como se
vê, em vez de se isolar desses princípios conexos, o Estado de Direito antes abrange-os, assim
formando um conjunto coeso de standards institucionais.
Em função da origem histórica ocidental-liberal desses postulados, é pertinente o
questionamento quanto a se o Estado de Direito deveria ser considerado um modelo institucional
com valor político universal, questão que conta com abundantes respostas em diversas direções
(especialmente quando a controvérsia toca no sensível tema dos direitos humanos). Contudo, dado
que a atividade de pesquisa consiste sobretudo do desafio de identificar e selecionar informações
relevantes e irrelevantes para o esclarecimento acerca de um determinado objeto ou realidade – o
que implica dizer que se trata de uma atividade de inclusão e exclusão por excelência,
metodologicamente falando –, essa indagação parece de fato não ser relevante nos contextos de
Angola e mesmo de outros países africanos, lusófonos ou não. E isto não porque alguma das
respostas seja preferível às demais, mas simplesmente porque, ainda que nalguns casos apenas
retoricamente, esses países adotaram expressamente o Estado de Direito – seja como for
(retoricamente ou não), eles efetivamente se autoimpuseram as correspondentes cargas de
expectativa de comportamento.
3. As manifestações jurídicas das autoridades tradicionais angolanas
Em contraste com esse paradigma, temos um fenômeno extremamente complexo. Um
primeiro caso (Marques Guedes, 2007) ocorreu em novembro de 2002, num conjunto de aldeias na
Comuna do Sambo, no Planalto Central angolano. Um residente foi acusado de feitiçaria, agredido,
e provavelmente viria a ser morto se não tivesse havido uma intervenção pelo soma4 local, com a
consciente intenção de evitar a eventual qualificação daquele ato como homicídio e consequente
condenação dos envolvidos. O “acusado” foi, então, levado ao Administrador da Comuna, que, no
entanto, se declarou “incompetente” para analisar um crime não tipificado pela lei angolana
(estatal). Por outro lado, tampouco encerrou o assunto, não mandou socorrerem o agredido, enfim,
nada fez: não quis “enviar ao povo o sinal errado”. Andando mais alguns dias, o grupo levou
consigo o suposto bruxo para ser apresentado ao Rei do Sambo, o grande soma inene da região, mas
este, também cauteloso, declarou-se “territorialmente” incompetente: o acusado era nativo de outro
Reino. Nova procissão aconteceu e, afinal, o acusado foi condenado ao degredo pelo Rei do
4
Termo que denota a autoridade local de maior grau hierárquico (literalmente: “rei”).
4
Huambo, que baniu-o para a Comuna do Chipeio, um lugar extremamente remoto.
O segundo teve lugar no final de agosto do mesmo ano, na Província de Kuando-Kubango,
conhecida como “Terras do Fim do Mundo” na época colonial. Alguns chefes locais, liderados pelo
“Rei” Bingo-Bingo, pediram para serem recebidos pelo Governador, Fernando Biwango, na capital
da Província. Traziam oito outros sobas, a quem acusavam de feitiçaria e que vinham amarrados e
visivelmente agredidos com violência. O grupo pedia que fossem presos e enviados para o campo
prisional de Bentiaba, isolado no norte do deserto do Kalahari. Havia numerosas supostas
testemunhas de que o assassinato de pessoas era prática comum dos oito homens, que
posteriormente usavam os espíritos de suas vítimas como “escravos” em suas próprias atividades
agrícolas ou de pesca, de forma que estariam a prosperar às custas dos demais da região. Como
tanto a prática quanto sua consequência eram inaceitáveis, pediam que aqueles homens fossem
removidos da região de uma vez por todas. O Governador, alegando “inconformidade das acusações
com a lei em vigor” e a impossibilidade de atender a esse pedido, mas declarando “compreender” a
questão e o seu alcance e implicações, decidiu criar uma “comissão”, que incluía alguns dos
próprios sobas denunciantes e um representante de seu próprio Governo Provincial, dentre outros
membros. Essa comissão julgou os oito homens e condenou-os à morte por fuzilamento.
Determinou, ainda, que seus corpos fossem lançados ao rio, de modo a garantir que seus espíritos,
considerados malévolos e perigosos, não continuariam a assombrar os habitantes da região. E assim
foi feito, não sem antes serem exibidos em comícios pelo Governador, interessado em extrair
benefícios políticos da ocasião. Os fatos se tornaram conhecidos em Luanda e a resposta do Estado
foi rápida: os membros da dita comissão e os representantes do Governo Provincial envolvidos,
incluindo militares, foram julgados e majoritariamente condenados, com penas chegando a 20 anos
de prisão. O Governador e o Vice-Governador foram julgados pelo Tribunal Supremo, órgão
constitucionalmente competente para tanto, que condenou-os, em fevereiro de 2005, a 12 anos de
cadeia (Marques Guedes, 2007).
A questão da feitiçaria é especialmente sensível nesse contexto, e isto ocorre porque é uma
questão sensível para as comunidades angolanas. Voltaremos a este ponto. Mas, do ponto de vista
do Estado de Direito, os dois casos revelam práticas inaceitáveis. Analisemos cada um deles.
No primeiro caso, o acusado foi inicialmente agredido e corria risco de ser morto por
indivíduos que praticavam justiça privada, fato que se contrapõe à pressuposição do monopólio
(ainda que regulado) do uso da força pelo Estado. Além disso, a autoridade estatal a quem foi
solicitada uma decisão se omitiu indevida e deliberadamente. Com efeito, mesmo tendo
manifestado expressamente que o fato atribuído ao acusado era atípico, o que faria com que a
simples restrição à liberdade de locomoção imposta pelo grupo ao suposto feiticeiro passasse a
configurar um crime em pleno flagrante diante de si (sem contar as agressões sofridas
5
anteriormente), o Administrador não tomou nenhuma providência para dissipar a violação a direitos
fundamentais que presenciava. Essa omissão permitiu, ainda, que o sujeito fosse afinal condenado a
uma restrição definitiva no seu direito de livre locomoção, que, em última análise, constitui uma
sanção não prevista em lei, aplicada por uma autoridade sem competência, por um fato não
tipificado como crime, sem direito à ampla defesa, aí incluído um advogado e a possibilidade de
contraditar as alegações e provas. Em verdade, parece não ter sido concedido direito a defesa
alguma. E, além de não previstas em lei, a qualificação do fato como criminoso e a sanção resultam
de uma definição efetuada pela mesma instituição que as aplica.
O segundo caso é similar, mas ainda mais grave. Os acusados foram também indevidamente
conduzidos à força, no que caracteriza exercício de justiça privada, e a autoridade estatal igualmente
chegou a reconhecer a falta de base legal para a acusação. Contudo, foi além: criou uma espécie de
tribunal de exceção ao constituir a “comissão” destinada ao julgamento, que, para piorar, incluía
alguns daqueles que se apresentaram como acusadores com juízo formado acerca do fato, restando
violados os princípios do juiz natural e imparcial. Como resultado, foi novamente aplicada sanção
em razão de tipicidade previstas não em lei senão em costume reproduzido (e produzido) por
membros do próprio órgão processante, que não possuía competência legal, sem o devido processo,
havendo ainda abuso de poder no momento em que a administração da justiça foi deturpada por
interesses particulares, especialmente no momento da exibição dos acusados em comícios pelo
Governador.
Há, porém, outras dimensões envolvidas no fenômeno da juridicidade tradicional, e uma
particularmente interessante está no chamado direito proverbial. Os provérbios, que chegam a
funcionar como fonte (até certo ponto formal) desse direito, são invocados como argumentos de
autoridade na definição de critérios de avaliação das condutas dos envolvidos em conflitos.
Nas deliberações, os olossekulu (homens que assessoram o soma), os olossoma (plural de
soma) e os anciões em geral não só ouvem invocações de provérbios a eles dirigidas como eles
próprios os invocam. São frases, fórmulas ou ditos conhecidos, que, principalmente nessas
situações, refletem crenças normativas, mais que meramente convenções sociais, denotando
obrigações de feição jurídica aos olhos da comunidade. Mbambi (2007) refere que existem
inúmeros tipos, mas constata-se sempre a manifestação de algum padrão decorrente de experiência
de vida, no sentido de os mesmos resultados costumarem ocorrer quando verificadas condições
semelhantes:
[A]s condutas prescritas na linguagem proverbial servem para mostrar ao homem o
caminho certo para evitar males, problemas, infortúnios e, acima de tudo, castigos!
Daí o seu necessário acatamento por toda a gente. E os provérbios que encerram
comandos jurídicos formam o que chamamos direito proverbial. (Mbambi,
6
2007: 2)
Esse direito não é criado por um órgão determinado ou um grupo específico. É objeto de
tradição oral, transmitido às novas gerações pelas anteriores, especialmente na situação em que são
empregados com maior solenidade, o ekanga, julgamento participativo realizado para resolver
conflitos, presidido pelo soma. Dentre os olossekulu, que assessoram o soma, há os olongandji, que
têm plena familiaridade com o direito proverbial entre o povo Ovimbundu, sendo por isso
chamados a cooperar com o soma nos julgamentos e na solução de outras questões relevantes no
contexto tradicional.
Numa demanda relativa ao pagamento de alguém a outrem que lhe tenha prestado certo
serviço, por exemplo, o ongandji (advogado) da acusação, terminará suas alegações dizendo ao
tribunal: “Não satisfazer o pedido do meu cliente é uma injustiça que brada aos céus, e o douto
Tribunal deve condenar o réu no pagamento da importância devida ao Autor, porque essalamihõ liú
lume haliendanda ngó posi!”, ditado que pode ser traduzido literalmente como “suor de homem não
verte em vão” e que significa que todo trabalho deve ser remunerado. Da mesma forma, quando um
acusado de agressão pretenda alegar legítima defesa nesse contexto, seu advogado deve afirmar “O
meu cliente deve ser absolvido! Se ele agrediu o queixoso, fê-lo em resposta à agressão dele, pois
todos nós sabemos que luwawa kanehã, omuele wosenga!”. A explicação vem do fato de que
luwawa é o nome de uma planta que liberta um cheiro desagradável quando é sacudida, mas que
não tem nenhum cheiro se não o for. Ora, se a planta usa esse cheiro como uma arma para se
defender de agressores, o que mostra que até as plantas se defendem quando agredidas, com muito
mais razão deve-se reconhecer que o próprio homem também há de legitimamente se defender
quando agredido. O provérbio consagra, em suma, o direito à legítima defesa (Mbambi, 2007). Os
exemplos acima referem-se especificamente à cultura Ovimbundu, sendo certo que há variações –
inclusive linguísticas – em função da região de Angola estudada e, obviamente, mais ainda quando
passa-se a contextos em outros países.
De todo modo, como se pode observar, os provérbios, ao menos nos exemplos citados,
parecem não criar normas muito diferentes daquelas normalmente encontradas em Estados de
Direito. Não obstante, persiste o problema da autodeterminação jurídica e da suscetibilidade a
juízos de conduta imprevisíveis pelos sujeitos jurídicos no cenário angolano e, de fato, parece ser
esse o problema em contextos de pluralismo jurídico. Ainda que do ponto de vista das estruturas
políticas da sociedade pareça benéfico manter múltiplas dimensões de efetiva juridicidade, um
problema bastante básico se mostra inexorável: é preciso que todo agente jurídico – aqui
especialmente o indivíduo – possa saber qual é a qualificação (permitida, proibida ou obrigatória)
conferida a uma conduta qualquer. Para isto ocorrer, a combinação das várias ordens atuantes
precisa realmente gerar um único resultado. Do contrário, determinada conduta pode ser qualificada
7
contraditoriamente – e, neste caso, qual das fontes de regulação deverá prevalecer? Nenhuma delas
deseja espontaneamente ceder mais espaço à outra, o que caracteriza desde logo um problema
político, ligado à distribuição e exercício do poder, o que é uma das dimensões do problema.
Juridicamente, porém, é preciso conceber uma solução, o que parece ter lugar através da
delimitação de espaços e, especialmente, da instituição de metarregras que orientem a harmonização
de duas ordens em uma. Porém, não se trata de algo para o qual se possa apresentar um modelo
simplório de forma precipitada.
4. Retroalimentação entre objetos e critérios de avaliação
Nossa investigação parte, portanto, de um complexo fenômeno factual e um conjunto de
parâmetros de validade jurídica, que não guardam plena compatibilidade entre si. Sendo o desafio
promover a congruência entre esses mundos, seria fácil afirmarmos que é o critério de validade que
condiciona o objeto avaliado, não o contrário, mas isto desprezaria muitas dimensões – política,
social, cultural, histórica – envolvidas na vida de qualquer povo.
Considerando que dois elementos quaisquer se aproximam de maneira mais eficiente quando
ambos se movem em direção ao outro, não é de todo irrazoável cogitar a possibilidade de o próprio
critério de validade estar sujeito a avaliação e eventual revisão. Essa hipótese está inclusive em
conformidade com o que sucede desde sempre na evolução do conhecimento científico: os modelos
que dão conta de determinada parcela da realidade (de forma descritiva ou, particularmente no
Direito, prescritiva) têm seu lugar plenamente garantido até que sejam aprimorados ou
simplesmente substituídos por outros que incorporem aspectos até então não considerados ou
deliberadamente desprezados.
Uma possível fixação ocidental por regras, por exemplo, é uma das hipóteses a serem
examinadas. Com efeito, apesar de o Estado não enxergar na feitiçaria uma questão jurídica, isto
não exclui de imediato que o povo angolano não a veja (ou não possa vê-la) dessa forma, e parece
ser este precisamente o caso: estaria construída em torno disso uma regra de reconhecimento
comunitária e constitutiva (Hart, 1986), de natureza proibitiva, destinada a regular um aspecto
coletivamente sensível da vida social. Américo Kwonokoka relata que, no encontro ocorrido em
Angola em 2007 sobre as autoridades tradicionais, uma destas chegou a desabafar, diante de juízes,
advogados e outros presentes, que:
[O] governo deve resolver as questões gerais prescritas na lei, deixando para as
autoridades tradicionais aquelas questões de feitiçaria, de magia e de certas crenças
religiosas, porque o governo não as entende. E se recebe emolumentos judiciais em
dinheiro, porque motivo se intromete na gestão da justiça tradicional quando esta
pede galinha, cabrito ou boi como multa/emolumento? (Kwonokoka, 2012: 323)
8
Ao mesmo tempo, direitos e garantias fundamentais só são realmente fundamentais se elas
têm eficácia oponível a todos, quer no âmbito estatal, quer no contexto tradicional. Isto implica,
porém, algumas perplexidades e, possivelmente, algumas respostas desconfortáveis ou indesejadas.
Por exemplo, haveria a feitiçaria de ser, então, devidamente tipificada legalmente, atribuindo-se às
autoridades tradicionais a competência para o julgamento, também por lei formal? Por outro lado,
fazê-lo não significaria (da parte das autoridades tradicionais) abdicar de sua autonomia e, portanto,
de parte de seu poder, reconhecimento e legitimidade sociais? Estas são apenas perguntas, para as
quais não há respostas prontas e talvez sequer haja respostas “certas”, mas são exatamente as que
condicionam a direção da investigação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Gradiva; Fundação Mário Soares.
Constituição da República de Angola (2010). Consultada em 12.05.2014, em
<http://imgs.sapo.pt/jornaldeangola/content/pdf/CONSTITUICAO-APROVADA_4.2.2010RUI-FINALISSIMA.pdf>.
Hart, Herbert Lionel Adolphus (1986), O conceito de Direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
Kwonokoka, Américo (2012), “Autoridade Tradicional e as Questões da Etnicidade em Angola”, in
Santos, Boaventura de Sousa; Van Dúnen, José Octávio Serra (orgs.), Sociedade e Estado em
construção: desafios do direito e da democracia em Angola nas multinacionais (Luanda e
justiça: pluralismo jurídico numa sociedade em transformação, v. 1), Coimbra: Almedina, p.
315-339.
Marques Guedes, Armando (2007), “The State and ‘Traditional Authorities’ in Angola. Mapping
issues”, in Marques Guedes, Armando; Lopes, Maria José. State and Traditional Law in
Angola and Mozambique. Lisboa: Almedina, 2007; Leiden: Leiden University, p.15-67.
Mbambi, Moisés (2007), “O Direito Proverbial entre os Ovimbundu” (anexo), O casamento ao
longo dos tempos, Tese de Mestrado em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de
Lisboa.
Consultado
em
20.08.2014,
em
<http://www.fd.ulisboa.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/MbambiMoises.pdf>.
ONU (2004), The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict societies: Report
of the Secretary-General (S/2004/616). Relatório do Secretariado-Geral da Organização das
Nações
Unidas.
Consultado
em
17.08.2014,
em
<http://www.unrol.org/files/2004%20report.pdf>.
ORIGINAIS DAS TRADUÇÕES LIVRES REALIZADAS
ONU, 2004: 4: “[…] a principle of governance in which all persons, institutions and entities, public
and private, including the State itself, are accountable to laws that are publicly promulgated,
equally enforced and independently adjudicated, and which are consistent with international
9
human rights norms and standards. It requires, as well, measures to ensure adherence to the
principles of supremacy of law, equality before the law, accountability to the law, fairness in
the application of the law, separation of powers, participation in decision-making, legal
certainty, avoidance of arbitrariness and procedural and legal transparency.”
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