COMUNIDADE DO HORTO FLORESTAL: Memória e luta por
permanência como parte do direito à moradia.
Leslie Loreto Mora Gonzalez
Amanda Loureiro Lopes
Laís Bon Fernandes Villaça Moraes
Heloisa da Silva Agapito
1. INTRODUÇÃO
1.1. CONTEXTUALIZAÇÃO HOJE
A Comunidade do Horto Florestal está localizada no bairro Jardim Botânico, da região
administrativa da Lagoa, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, que conforme afirma
Rafael da Mota Mendonça (sem data), em artigo, em 2017 figurava como o bairro cujo
valor do solo é o quinto maior do país. É formada por 11 setores habitacionais, composto
de 621 famílias, distribuídas ao longo da Av. Pacheco Leão e da entrada próxima à R.
Major Rubens Vaz do que hoje reconhecemos com o Jardim Botânico da Cidade do Rio
de Janeiro, conforme a foto aérea abaixo,
SETORES DA COMUNIDADE DO HORTO FLORESTAL
LEGENDA
0
100
200
SETORES COMUNIDADE HORTO
Fonte: Leslie Loreto, a partir de ortofoto da PCRJ, 2013
Conforme Laura Olivieri Souza (2012) e Mendonça (sem data) a Comunidade do Horto
Florestal remete a uma ocupação de mais de 200 anos de história. A caracterização
adotada pela proposta do Projeto de Regularização Cadastral e Fundiária realizada pelo
UFRJ/LabHab, aponta que as famílias totalizam cerca de 2000 moradores, configurando
um território consolidado "física e funcionalmente integrado ao contexto urbano local"
(Projeto de Regularização Cadastral e Fundiária, 2011). Também segundo Mendonça a
população é composta em sua maioria de pessoas idosas e de baixa renda (Mendonça,
sem data, p. 14).
Abaixo podemos ver mapa que indica os 11 setores, definidos a partir de planta
cadastral da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ) de 2013. Esse mapa de
setores foi realizado tomando como base a divisão territorial proposta pelo Projeto de
Regularização Cadastral e Fundiária realizada pelo UFRJ/LabHab, no entanto,
considerando pequenas alterações entre a base cadastral antiga de 2011 e a atual, de
2013. Os nomes de cada setor são os mesmos utilizados no Projeto de Regularização.
6
6
6
1
5
5
5
7
3
2
2
2
9
8
3
3
3
4
10
11
MAPA DOS SETORES DA COMUNIDADE DO HORTO FLORESTAL
LEGENDA
SETORES COMUNIDADE HORTO
0
1
DONA CASTORINA
4
GROTAO II
7
GROTAO I
2
PACHECO LEAO I
5
PACHECO LEAO II, III, IV
8
MORRO DAS MARGARIDAS 11 VILA DO MAJOR
3
SOLAR IMPERATRIZ
6
PACHECO LEAO V
9
CAXINGUELE
100
200
10 VILA 64
Fonte: Laís Bon e Leslie Loreto, a partir de cadastral da PCRJ-2013 e Projeto de Regularização
Cadastral e Fundiária, UFRJ/LabHab, 2011
Recentemente, a partir da luta dos seus moradores e da pressão na Câmara de
Vereadores da Cidade do Rio de Janeiro, a Comunidade Horto Florestal conseguiu a
implementação de uma AEIS (Área de Especial Interesse Social) para os 11 setores,
aprovando a Lei Municipal 7184/2021, configurando assim um importante passo para o
reconhecimento e legitimação da sua ocupação histórica. A seguir o mapa da AEIS
aprovada, a partir de dados constantes no site DATARio, com informações fornecidas
pela SMPU (Secretaria Municipal de Planejamento Urbano). Neste mapa é possível ver
pequenas diferenças no limite dos núcleos, já que a base do polígono para a Lei de
AEIS foi a planta do ITERJ – Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de
Janeiro, de 2009. Ficaram de fora da AEIS algumas casas nos setores Pacheco Leão e
no Solar da Imperatriz. Os nomes dos núcleos diferem um pouco dos adotados no mapa
do Projeto de Regularização da UFRJ.
Dona Castorina
Pacheco Leão II
Solar da Imperatriz I
Solar da Imperatriz V
Estrada do Grotão I
Pacheco Leão III
Solar da Imperatriz II
Major Rubens Vaz nº122
Estrada do Grotão II
Pacheco Leão IV
Solar da Imperatriz III
Major Rubens Vaz nº64 e Jardim Botanico nº1024
Pacheco Leão I
Pacheco Leão V
Solar da Imperatriz IV
Estrada do Grotão, Caximguele e Morro das Margaridas
Fonte: Diogo Lage, a partir da Lei 7184/2021, PCRJ-2013
1.2. HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO DA COMUNIDADE HORTO FLORESTAL
Conforme Mendonça (sem data), que em seu artigo estabelece uma cronologia da
ocupação do Horto Florestal, os primeiros registros estão relacionados a Fazenda
Nossa Senhora da Conceição da Lagoa Rodrigo de Freitas, em torno da lagoa de
mesmo nome, sendo de propriedade real nesse momento. Com a doação da fazenda
pela coroa, esta acaba chegando nas mãos de Diogo de Amorim Soares, que constrói
um engenho no local. Já segundo Souza (2012) a área abrigava o Engenho del Rey,
fundado em 1575, que posteriormente foi renomeado para Engenho Nossa Senhora
Conceição da Lagoa (SOUZA, 2012, p. 28) por Diego de Amorim Soares. Souza (2012)
relata que na região existiu também outro engenho, a Fazenda Real, cuja sede era no
Solar da Imperatriz, fundado em 1750. Segundo Mendonça o último proprietário da
fazenda, que era apontado nos registros por volta de 1660, teria sido Rodrigo de Freitas
Mello e Castro, que manteve o engenho em funcionamento por um bom tempo.
Plano da Lagoa do Rodrigo de Freitas, de 1809, para desapropriação, mostrando os nomes dos
proprietários da área, onde constavam os engenhos, conforme verbete explicativo do site. Fonte:
http://historia.jbrj.gov.br/original/foto0019original.jpg, acessado em 21/jun/2022
Souza (2012) defende a hipótese de que fidalgos do Engenho Del Rey teriam
abandonado uma construção no Morro das Margaridas - um dos setores da
Comunidade do Horto hoje – que deu lugar ao Mocambo1 Morro das Margaridas que
gradativamente tornou-se um lugar de resistência negra (SOUZA, 2012, p. 31), após a
transferência do engenho por Digo de Amorim Soares para o local onde é hoje a
EMBRAPA. Essas ruinas existem até hoje no Morro das Margaridas e corroboram com
a hipótese dessa porção da comunidade ser uma das mais antigas. A autora relata que
os próprios moradores nomeiam a construção histórica de "Ruina da Senzala" (SOUZA,
2012, p. 71). A hipótese fundamentada de Souza é que, a partir da análise mais
detalhada da ruina, sua estrutura, forma, adornos e materiais empregados, remetem
1
Mocambo, segundo definição da própria Laura Olivieri Souza, seria uma "moradia de negros
aquilombados que lutavam na resistência do escravismo colonial" (SOUZA, 2012, p. 75)
que ali ter sido uma construção de um binômio Casa Grande – Senzala (SOUZA, 2012,
p. 72).
Morro da Margarida – Rota de fuga para quilombolas. Imagem mostrada por Laura Olivieri para validar
a tese de que o Morro das Margaridas é integrante das relações entre os escravizados. Fonte: SILVA,
Eduardo. As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura: uma investigação de história cultural .
São Paulo: Cia das Letras, 2003.
Mas é em 1808 que a Fazenda é desapropriada, conforme Mendonça, para fazer parte
dos bens nacionais e abrigar a construção da Fábrica Real de Pólvora. Naquele
momento, a Fazenda era constituída de inúmeras chácaras, com moradias. Com a
desapropriação, D. João VI destinou as moradias existentes para os operários da
fábrica. É um pouco depois desse momento, em 1811, que nasce também o que foi
chamado de "jardim de aclimatação" no local, lugar de cultivo de espécies não nativas.
Esse local, que passou a ter diversos nomes como Horto Real, Real Jardim Botânico,
Imperial Jardim Botânico e por fim Jardim Botânico, é aberto ao público em 1821. Ele
assume o nome Instituto de Pesquisas Jardim Botânico (IPJB), que tem até hoje, em
1998.
Em 1826 a fábrica de pólvora2 foi fechada e as residências remanescentes passaram a
ser destinadas aos trabalhadores do Real Jardim Botânico e depois aos da indústria
2
Segundo a pesquisadora Cristina Grafanassi Tranjan, uma das prováveis áreas onde se instalou a Real
Fábrica de Pólvora seria o que hoje se conhece como Casa dos Pilões, dentro do Jardim Botânico. Ver o
artigo: https://revistas.ufrj.br/index.php/interfaces/article/view/30122/17030, acessado em 22/jun/2022.
têxtil, conforme aponta Mendonça. A essa altura, a localidade chamava-se Freguesia
da Gávea.
Fábrica de Pólvora, que provavelmente foi instalada onde hoje é o Instituto Jardim Botânico, no que é
chamado de Centro de Visitantes. Também existem no IJB as ruinas da Casa dos Pilões da fábrica.
Podemos ver como era alagadiça a área da fábrica. Fonte:
http://historia.jbrj.gov.br/original/foto0032original.jpg, acessado em 21/jun/2022.
A partir de 1860 a industrialização cresce na região, principalmente através das fábricas
de tecido que se instalam ali. Segundo Mariana Costa3 é em meados da década de 1880
que a região passa a receber as principais fábricas do bairro Jardim Botânico: a Fábrica
de Fiação e Tecelagem Corcovado, na Rua do Jardim Botânico, próximo à R. Faro; e
a Companhia de Fiação e Tecelagem Carioca, na rua Pacheco Leão, (naquela época
chamada Estrada da Dona Castorina). A elas se seguiu a construção da Companhia
de Fiação e Tecelagem São Felix, na R. Marques de São Vicente, conforme Costa,
(2014). As fábricas começam a construir diversas vilas operárias na Estrada da D.
Castorina, como a Vila Bocayuva, a Vila Arthur Sauer e diversos outros pequenos
núcleos, inclusive na rua Lopes Quintas, transformando o bairro de características rurais
3 Mariana Costa é historiadora, formada pela PUC-Rio, cuja dissertação de mestrado estuda os
processos recreativos e de lazer dos operários moradores do bairro Jardim Botânico. Ver o artigo
intitulado Lugares de Memória dos Trabalhadores #48: Vilas Operárias do Horto, Rio de Janeiro (RJ) –
Mariana Costa, disponível em https://lehmt.org/lugares-de-memoria-dos-trabalhadores-48-vilas-operariasdo-horto-rio-de-janeiro-rj-mariana-costa/, acessado em 20/jun/2022.
até então em um bairro operário, no início do século XX. Atraindo para a região uma
intensa vida de operários dessas fábricas.
Planta da Cidade do Rio de Janeiro - 1928 - Diretoria Geral de Obras e Viação. No canto superior
esquerdo podemos identificar o Jardim Botânico e as duas fábricas de tecido na época, assim como a
Estrada D. Castorina e o reservatório dos Macacos. Fonte:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart175364/cart175364.html
acessado em 21/jun/2022.
É a partir da década de 1930 que as mudanças econômicas e a especulação imobiliária
fazem as fábricas fecharem, lotearem seus terrenos na proximidade e venderem as vilas
operárias. Mariana Costa (2014) afirma que em 1960 a última fábrica é fechada e com
a demolição, uma classe média em ascensão compra os terrenos, incluindo nos
compradores a Rede Globo.
Tanto para Mendonça, quanto para Costa (2014) as tensões em função da luta pela
permanência da Comunidade do Horto hoje no bairro vêm de outras épocas. Em sua
dissertação a autora relata que as classes médias em ascensão da Gávea, ainda no
final do século XIX, reclamavam à imprensa da presença operária nos bairros e pediam
que o bonde, já implantado parcialmente, fosse até os moradores que podiam pagar. A
autora revela que a atitude "mostrava a própria tensão social que passava a se
estabelecer naquele espaço através da convivência de diferentes grupos sociais nessas
regiões" (COSTA, 2014, p. 43). Para Mendonça a tensão se confunde a partir do próprio
conflito de estratificação espacial característico da urbanização da cidade do Rio de
Janeiro: a dicotomia entre zonal sul x subúrbio.
Mendonça afirma que a formação da zona sul carioca provém do desmembramento da
Fazenda Nacional progressivamente nos séculos XVIII, XIX e início do século XX,
originando principalmente os bairros do Leblon, Gávea, Ipanema, Jardim Botânico e
Lagoa.
Em 1968 a SERPRO constrói o Conjunto Habitacional Dona Castorina – conhecido
também como O Balança – para remanejar as famílias desalojadas da Favela do Pinto,
na Lagoa Rodrigo de Freitas.
Conforme Mendonça é importante entendermos que nos registros cartoriais sempre
houve uma distinção entre a área do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico (IPJB) e a
área do Horto Florestal, cuja função principal é conter o arboreto (local de cultivo de
árvores, arbustos e plantas herbáceas para fins científicos e/ou exibição ao público).
Mapa com a ocupação do Jardim Botânico em 1929 e em 2009, em vermelho, os setores da
Comunidade Horto Florestal. Fonte: Leslie Loreto, sobre ortofoto PCRJ e Planta de Regularização do
ITERJ.
Esse histórico de ocupação que pesquisamos ajuda a elucidar o que Laura Olivieri
Souza chama de ondas de ocupação do Jardim Botânico, em artigo pulicado em
201x, caracterizando distinguir 4 ondas de ocupação do território com seu respectivo
grupo sócio-espacial, sendo:
1. Primeira onda: ocupação em torno da Fazenda Nossa Senhora da Conceição
da Lagoa Rodrigo de Freitas, por volta de 1575 – composta (provavelmente) por
indígenas escravizados, cultivo da cana.
2. Segunda onda: ocupação em torno do Engenho del Rei, por volta de 1600 –
composta por negros escravizados, cultivo do café. Posteriormente, se desdobra
na ocupação do Mocambo do Morro das Margaridas e também na ocupação em
torno do Solar da Imperatriz, outro engenho do local.
3. Terceira onda: ocupação em torno da Fábrica de Pólvora, a partir de 1808. Essa
terceira ocupação se desdobra, após a criação do Real Jardim Botânico e
fechamento da fábrica, por volta de 1826, passando a ser composta por
trabalhadores do próprio Real Horto Botânico.
4. Quarta Onda: Ocupação em torno das fábricas têxteis do final do século XIX e
começo do XX, a partir de 1890, de operários fabris, alguns imigrantes. Criação
de vilas operárias e núcleos de casas na R. Pacheco Leão e R. Lopes Quintas.
A seguir mapas elaborados para compreensão das ondas a partir dos elementos
históricos da ocupação. As informações foram retiradas a partir das pesquisas dos
autores Souza (2012), Macedo e o livro 200 anos de Jardim Botânico (2008)
ELEMENTOS HISTÓRICOS DA OCUPAÇÃO NO TERRITÓRIO
LEGENDA DE ELEMENTOS HISTÓRICOS
FÁBRICA DE TECIDO CORCOVADO
TOALHEIRO BRASIL
SOLAR DA IMPERATRIZ
FÁBRICA DE TECIDO CARIOCA
RUINA DO ENGENHO
PROVAVEL LUGAR DA FÁBRICA DE PÓLVORA
CONHECIDO COMO CASA DOS PILÕES
VILA OPERÁRIA ARTHUR SAUER
PROVÁVEL SEDE ENGENHO E PRIMEIRA SEDE DO IJB
FÁBRICA SÃO FELIX
0
100
200
Mapa com os elementos históricos. Fonte: Leslie Loreto e Heloisa Agapito, sobre ortofoto PCRJ e
mapas históricos
ONDAS DE OCUPAÇÃO
LEGENDA DE ONDAS DE OCUPAÇÃO
2a. ONDA DE OCUPAÇÃO
3a. ONDA DE OCUPAÇÃO
4a. ONDA DE OCUPAÇÃO
LEGENDA DE ELEMENTOS HISTÓRICOS
FÁBRICA DE TECIDO CORCOVADO
TOALHEIRO BRASIL
SOLAR DA IMPERATRIZ
FÁBRICA DE TECIDO CARIOCA
RUINA DO ENGENHO
PROVAVEL LUGAR DA FÁBRICA DE PÓLVORA
CONHECIDO COMO CASA DOS PILÕES
FÁBRICA SÃO FELIX
VILA OPERÁRIA ARTHUR SAUER
PROVÁVEL SEDE ENGENHO E PRIMEIRA SEDE DO IJB
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Mapa com as ondas de ocupação. Fonte: Leslie Loreto e Amanda Loureiro, sobre ortofoto PCRJ e
mapas históricos, através da hipótese de Laura Olivieri Souza.
2. ASSESSORIA TÉCNICA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
Ermínia Maricato (2003) aponta que a partir da década de 80, os centros metropolitanos
no Brasil viveram uma explosão urbana nunca antes vista, ocasionando a “primeira vez
na história do país registram-se extensas áreas de concentração de pobreza, a qual se
apresentava relativamente esparsa nas zonas rurais antes do processo de urbanização”
(MARICATO, 2003, p. 52). Essa explosão de urbanização das cidades brasileiras
resultou em habitações precárias sem acesso à saneamento e abastecimento de água,
assentamentos espontâneos densos e ocupações irregulares na periferia dos centros
urbanos. Um grande número trabalhadores sem acesso á moradia, vivendo de aluguel
ou em coabitação e aos quais lhe restava apenas a autoconstrução. A gênese das
assessorias técnicas no Brasil inicia-se como uma tentativa de dar respostas e soluções
a essa situação. Conforme Lopes (2011) e Cardoso (2021) dentre essas experiências,
que surgem antes mesmo da década de explosão urbana à qual se refere Maricato,
podemos destacar o MUD (Movimento Universitário pelo Desfavelamento) que atuou na
remoção das favelas no Canindé e Vergueiro, na década de 60 em São Paulo; a ação
das SAGMACs (Sociedade para Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos
Complexos Sociais) entre 50 e 60 no Brasil em várias cidades do país; a experiência de
Cajueiro Seco, Pernambuco, tendo a frente o arquiteto Acácio Gil Borsoi, entre 1960-64
e a reurbanização da favela de Brás de Pina, no Rio de Janeiro, entre 1964 e 1969,
realizada pelo grupo Quadra, tendo participado o arquiteto Carlos Nelson dos Santos.
Esta última é considerada uma das primeiras experiências que mais se aproxima do que
hoje conhecemos como assessoria técnica e assistência técnica em habitação de
interesse social.
Em meados da década de 70, os sindicatos de arquitetura e urbanismo entram nesse
debate e pautam de maneira mais contundente a necessidade da arquitetura e
urbanismo olhar para a realidade de nossas cidades. Segundo Cardoso (2021), se
destaca a atuação do Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul
(SAERGS) e da figura de Clovis Ilgenfritz. A partir dele uma equipe de arquitetos e
urbanistas montou uma proposta denominada Programa de Assistência Técnica para
Moradia Econômica (ATME), apresentada ao Conselho Regional de Engenharia,
Agronomia e Arquitetura do Rio Grande do Sul (CREA/RS) em 1977, uma espécie de
embrião da Lei de Assistência Técnica, mais conhecida como Lei de ATHIS. Mais tarde,
O deputado federal Zezeu Ribeiro, oriundo também da luta dentro do sindicato de
arquitetura e urbanismo, leva adiante a proposta de transformar em lei federal o texto
da ATME e com isso em 2008, com o apoio dos movimentos sociais e dos militantes em
torno da Reforma Urbana, aprova-se a Lei de Assistência Técnica de Habitação de
Interesse Social - 11.888/2008, mais conhecida com Lei de ATHIS
Na sequência desse período, a década de 80 trás à tona uma geração de assessorias
técnicas que atua de maneira mais coesa na cidade de São Paulo. Fruto da combinação
do surgimento de diversos laboratórios de habitação que existiam nas faculdades de
arquitetura e da implantação do FUNAPS Comunitário - política habitacional do
município de São Paulo que garantia aos movimentos de moradia o acesso aos recursos
do Fundo Municipal de Habitação para construção de moradias através do regime de
mutirão (ajuda-mútua) - inúmeros escritórios, ONGs, coletivos e cooperativas de
arquitetos e urbanistas – muitas vezes de equipes multidisciplinares - surgiram no início
da década de 90, sendo assessores dos movimentos e se posicionavam como aliados
destes. Muito influenciados pelo movimento de cooperativas habitacionais da FUCVAM
(Federacíon de Coperativas de Vivienda por Ayuda Mutua) no Uruguai, conforme
Baravelli (2006), essa geração reconhece e difunde o termo assessoria técnica aos
movimentos de moradia no fluxo dos movimentos sociais organizados em São Paulo
que emergem desde a década de 70.
Importante destacar que o papel da assessoria e assistência técnica hoje, após a
instituição da Lei assume diversas facetas, ampliando o debate histórico e das
experiências realizadas anteriormente. Há dois conceitos importantes nesse debate: o
do arquiteto como catalisador de processos sociais, como aponta Santos (1981) e o de
grupo sócio-espacial de Kapp (2018).
Carlos Nelson dos Santos aponta que os arquitetos podem ser um elemento catalisador,
uma espécie de intermediação entre os envolvidos (população-estado) que teria
capacidade de transitar entre os dois e acelerar ou intensificar processos latentes.
(Santos, 1981). Para Santos esse elemento era por essência ambíguo, mas ao mesmo
tempo possuía uma capacidade de realizar a crítica constante da ação junto aos
movimentos sociais urbanos.
A assessoria técnica em arquitetura e urbanismo, conforme afirma Kapp (2018) deve
ser relacionada ao conceito de grupo sócio-espacial, “grupo de pessoas que se
relacionam entre si num espaço, sendo este espaço constitutivo do grupo e,
inversamente, constituído por ele" (KAPP, 2018, p. 223), implicando, com isso, que a
prática não é necessariamente um meio de realizar ou fomentar projetos de arquitetura
ou de urbanismo, mas sim uma ação que tem como elemento definidor a colaboração
junto a grupos que são agentes políticos, a ponto de trazer alternativas, negociações,
prover informações técnicas, troca de saberes e de “criar interfaces para que o grupo
continue produzindo o espaço que o constitui como grupo e para que seja capaz de
fazer isso melhor que antes" (KAPP, 2018, p. 233). Seria então, uma prática que torna
possível que tais grupos submetam suas ações à crítica e decidam, por si mesmos, no
exercício de sua autonomia, os rumos que querem dar à produção de seu espaço e de
sua realidade.
A assessoria técnica a partir da extensão universitária dá outros matizes ao conceito
proposto por Kapp e Santos, pois é também uma prática de formação do profissional
arquiteto e urbanista, realizada no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão. Ao
retomarmos algumas das experiências emblemáticas das assessorias técnicas
percebemos que, em São Paulo e no Rio de Janeiro, uma parte delas surge a partir de
Laboratórios de Habitação dentro das universidades de arquitetura e urbanismo, na
década de 80 e 90, conforme aponta Lopes (2011) e Bonduki (1992). Dentre esses
laboratórios podemos citar o LabHab da Belas Artes – SP, o Laboratório de Habitação
da Unicamp-SP, o Projetos Comunitários da UFF-RJ e o Núcleo ARCO – Arquitetura e
Comunidade, da Santa Úrsula - RJ. Esses laboratórios eram um embrião do que hoje
conhecemos como extensão universitária e assessoria técnica e desempenharam
experiências das mais variadas dentro da universidade: desde assessorar cooperativas
habitacionais na construção de moradias até realizar pinturas e grafite em uma das
áreas femininas do antigo presídio do Carandiru em São Paulo.
O objetivo da disciplina Práticas de Interesse Social é garantir um nivelamento de
conhecimentos básicos interdisciplinares relativos às favelas e demais assentamentos
precários da cidade do Rio de Janeiro, fazer o reconhecimento sobre a realidade
complexa específica do território eleito como estudo de caso, e eleger, a partir de um
processo colaborativo que envolve a comunidade acadêmica, moradores e os coletivos
locais, linhas prioritárias para o desenvolvimento de ações de assessoria técnica
voltadas ao território e seus moradores, conforme ementa.
Nesse sentido, a proposta de aliar extensão universitária e a prática da assessoria
técnica, através de uma disciplina transdisciplinar que envolve tanto a graduação quanto
a pós-graduação, torna-se um desafio para o curso de Arquitetura e Urbanismo e para
a formação de seus estudantes. Além de ser mais um elemento na rede da luta por
permanência da Comunidade do Horto Florestal, assim como outras ações da própria
PUC Rio, de outros docentes e disciplinas em relação à comunidade, o envolvimento
do Departamento de Arquitetura e Urbanismo trás a discussão do grupo sócio-espacial
que é a Comunidade do Horto para dentro da formação em arquitetura e urbanismo: de
que maneira estudantes, docentes e pós-graduandos podem contribuir para os rumos
que esse grupo sócio-espacial quer dar à produção do seu espaço? Que trocas,
informações técnicas, alternativas podem ser trocadas entre os envolvidos?
Por outro lado, a capacidade de poder ser uma espécie de catalisadores de processos
em andamento da própria Comunidade do Horto, como afirma Santos, nos coloca numa
posição de darmos saltos qualitativos na formação do futuro profissional de arquitetura
e urbanismo. As perguntas que surgirem nesse processo, que não estão totalmente
respondidas, são intrínsecas ao processo da disciplina, que além dos desafios naturais
que envolvem o assessoramento técnico, terá de lidar com o seu desenvolvimento ao
longo de alguns semestres, passando o seu legado e acúmulo de um semestre para o
outro, de um grupo de alunos para outro, construindo assim através do tempo essas
respostas.
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