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COMUNIDADE DO HORTO FLORESTAL: Memória e luta por permanência como parte do direito à moradia. Leslie Loreto Mora Gonzalez Amanda Loureiro Lopes Laís Bon Fernandes Villaça Moraes Heloisa da Silva Agapito 1. INTRODUÇÃO 1.1. CONTEXTUALIZAÇÃO HOJE A Comunidade do Horto Florestal está localizada no bairro Jardim Botânico, da região administrativa da Lagoa, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, que conforme afirma Rafael da Mota Mendonça (sem data), em artigo, em 2017 figurava como o bairro cujo valor do solo é o quinto maior do país. É formada por 11 setores habitacionais, composto de 621 famílias, distribuídas ao longo da Av. Pacheco Leão e da entrada próxima à R. Major Rubens Vaz do que hoje reconhecemos com o Jardim Botânico da Cidade do Rio de Janeiro, conforme a foto aérea abaixo, SETORES DA COMUNIDADE DO HORTO FLORESTAL LEGENDA 0 100 200 SETORES COMUNIDADE HORTO Fonte: Leslie Loreto, a partir de ortofoto da PCRJ, 2013 Conforme Laura Olivieri Souza (2012) e Mendonça (sem data) a Comunidade do Horto Florestal remete a uma ocupação de mais de 200 anos de história. A caracterização adotada pela proposta do Projeto de Regularização Cadastral e Fundiária realizada pelo UFRJ/LabHab, aponta que as famílias totalizam cerca de 2000 moradores, configurando um território consolidado "física e funcionalmente integrado ao contexto urbano local" (Projeto de Regularização Cadastral e Fundiária, 2011). Também segundo Mendonça a população é composta em sua maioria de pessoas idosas e de baixa renda (Mendonça, sem data, p. 14). Abaixo podemos ver mapa que indica os 11 setores, definidos a partir de planta cadastral da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ) de 2013. Esse mapa de setores foi realizado tomando como base a divisão territorial proposta pelo Projeto de Regularização Cadastral e Fundiária realizada pelo UFRJ/LabHab, no entanto, considerando pequenas alterações entre a base cadastral antiga de 2011 e a atual, de 2013. Os nomes de cada setor são os mesmos utilizados no Projeto de Regularização. 6 6 6 1 5 5 5 7 3 2 2 2 9 8 3 3 3 4 10 11 MAPA DOS SETORES DA COMUNIDADE DO HORTO FLORESTAL LEGENDA SETORES COMUNIDADE HORTO 0 1 DONA CASTORINA 4 GROTAO II 7 GROTAO I 2 PACHECO LEAO I 5 PACHECO LEAO II, III, IV 8 MORRO DAS MARGARIDAS 11 VILA DO MAJOR 3 SOLAR IMPERATRIZ 6 PACHECO LEAO V 9 CAXINGUELE 100 200 10 VILA 64 Fonte: Laís Bon e Leslie Loreto, a partir de cadastral da PCRJ-2013 e Projeto de Regularização Cadastral e Fundiária, UFRJ/LabHab, 2011 Recentemente, a partir da luta dos seus moradores e da pressão na Câmara de Vereadores da Cidade do Rio de Janeiro, a Comunidade Horto Florestal conseguiu a implementação de uma AEIS (Área de Especial Interesse Social) para os 11 setores, aprovando a Lei Municipal 7184/2021, configurando assim um importante passo para o reconhecimento e legitimação da sua ocupação histórica. A seguir o mapa da AEIS aprovada, a partir de dados constantes no site DATARio, com informações fornecidas pela SMPU (Secretaria Municipal de Planejamento Urbano). Neste mapa é possível ver pequenas diferenças no limite dos núcleos, já que a base do polígono para a Lei de AEIS foi a planta do ITERJ – Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro, de 2009. Ficaram de fora da AEIS algumas casas nos setores Pacheco Leão e no Solar da Imperatriz. Os nomes dos núcleos diferem um pouco dos adotados no mapa do Projeto de Regularização da UFRJ. Dona Castorina Pacheco Leão II Solar da Imperatriz I Solar da Imperatriz V Estrada do Grotão I Pacheco Leão III Solar da Imperatriz II Major Rubens Vaz nº122 Estrada do Grotão II Pacheco Leão IV Solar da Imperatriz III Major Rubens Vaz nº64 e Jardim Botanico nº1024 Pacheco Leão I Pacheco Leão V Solar da Imperatriz IV Estrada do Grotão, Caximguele e Morro das Margaridas Fonte: Diogo Lage, a partir da Lei 7184/2021, PCRJ-2013 1.2. HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO DA COMUNIDADE HORTO FLORESTAL Conforme Mendonça (sem data), que em seu artigo estabelece uma cronologia da ocupação do Horto Florestal, os primeiros registros estão relacionados a Fazenda Nossa Senhora da Conceição da Lagoa Rodrigo de Freitas, em torno da lagoa de mesmo nome, sendo de propriedade real nesse momento. Com a doação da fazenda pela coroa, esta acaba chegando nas mãos de Diogo de Amorim Soares, que constrói um engenho no local. Já segundo Souza (2012) a área abrigava o Engenho del Rey, fundado em 1575, que posteriormente foi renomeado para Engenho Nossa Senhora Conceição da Lagoa (SOUZA, 2012, p. 28) por Diego de Amorim Soares. Souza (2012) relata que na região existiu também outro engenho, a Fazenda Real, cuja sede era no Solar da Imperatriz, fundado em 1750. Segundo Mendonça o último proprietário da fazenda, que era apontado nos registros por volta de 1660, teria sido Rodrigo de Freitas Mello e Castro, que manteve o engenho em funcionamento por um bom tempo. Plano da Lagoa do Rodrigo de Freitas, de 1809, para desapropriação, mostrando os nomes dos proprietários da área, onde constavam os engenhos, conforme verbete explicativo do site. Fonte: http://historia.jbrj.gov.br/original/foto0019original.jpg, acessado em 21/jun/2022 Souza (2012) defende a hipótese de que fidalgos do Engenho Del Rey teriam abandonado uma construção no Morro das Margaridas - um dos setores da Comunidade do Horto hoje – que deu lugar ao Mocambo1 Morro das Margaridas que gradativamente tornou-se um lugar de resistência negra (SOUZA, 2012, p. 31), após a transferência do engenho por Digo de Amorim Soares para o local onde é hoje a EMBRAPA. Essas ruinas existem até hoje no Morro das Margaridas e corroboram com a hipótese dessa porção da comunidade ser uma das mais antigas. A autora relata que os próprios moradores nomeiam a construção histórica de "Ruina da Senzala" (SOUZA, 2012, p. 71). A hipótese fundamentada de Souza é que, a partir da análise mais detalhada da ruina, sua estrutura, forma, adornos e materiais empregados, remetem 1 Mocambo, segundo definição da própria Laura Olivieri Souza, seria uma "moradia de negros aquilombados que lutavam na resistência do escravismo colonial" (SOUZA, 2012, p. 75) que ali ter sido uma construção de um binômio Casa Grande – Senzala (SOUZA, 2012, p. 72). Morro da Margarida – Rota de fuga para quilombolas. Imagem mostrada por Laura Olivieri para validar a tese de que o Morro das Margaridas é integrante das relações entre os escravizados. Fonte: SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura: uma investigação de história cultural . São Paulo: Cia das Letras, 2003. Mas é em 1808 que a Fazenda é desapropriada, conforme Mendonça, para fazer parte dos bens nacionais e abrigar a construção da Fábrica Real de Pólvora. Naquele momento, a Fazenda era constituída de inúmeras chácaras, com moradias. Com a desapropriação, D. João VI destinou as moradias existentes para os operários da fábrica. É um pouco depois desse momento, em 1811, que nasce também o que foi chamado de "jardim de aclimatação" no local, lugar de cultivo de espécies não nativas. Esse local, que passou a ter diversos nomes como Horto Real, Real Jardim Botânico, Imperial Jardim Botânico e por fim Jardim Botânico, é aberto ao público em 1821. Ele assume o nome Instituto de Pesquisas Jardim Botânico (IPJB), que tem até hoje, em 1998. Em 1826 a fábrica de pólvora2 foi fechada e as residências remanescentes passaram a ser destinadas aos trabalhadores do Real Jardim Botânico e depois aos da indústria 2 Segundo a pesquisadora Cristina Grafanassi Tranjan, uma das prováveis áreas onde se instalou a Real Fábrica de Pólvora seria o que hoje se conhece como Casa dos Pilões, dentro do Jardim Botânico. Ver o artigo: https://revistas.ufrj.br/index.php/interfaces/article/view/30122/17030, acessado em 22/jun/2022. têxtil, conforme aponta Mendonça. A essa altura, a localidade chamava-se Freguesia da Gávea. Fábrica de Pólvora, que provavelmente foi instalada onde hoje é o Instituto Jardim Botânico, no que é chamado de Centro de Visitantes. Também existem no IJB as ruinas da Casa dos Pilões da fábrica. Podemos ver como era alagadiça a área da fábrica. Fonte: http://historia.jbrj.gov.br/original/foto0032original.jpg, acessado em 21/jun/2022. A partir de 1860 a industrialização cresce na região, principalmente através das fábricas de tecido que se instalam ali. Segundo Mariana Costa3 é em meados da década de 1880 que a região passa a receber as principais fábricas do bairro Jardim Botânico: a Fábrica de Fiação e Tecelagem Corcovado, na Rua do Jardim Botânico, próximo à R. Faro; e a Companhia de Fiação e Tecelagem Carioca, na rua Pacheco Leão, (naquela época chamada Estrada da Dona Castorina). A elas se seguiu a construção da Companhia de Fiação e Tecelagem São Felix, na R. Marques de São Vicente, conforme Costa, (2014). As fábricas começam a construir diversas vilas operárias na Estrada da D. Castorina, como a Vila Bocayuva, a Vila Arthur Sauer e diversos outros pequenos núcleos, inclusive na rua Lopes Quintas, transformando o bairro de características rurais 3 Mariana Costa é historiadora, formada pela PUC-Rio, cuja dissertação de mestrado estuda os processos recreativos e de lazer dos operários moradores do bairro Jardim Botânico. Ver o artigo intitulado Lugares de Memória dos Trabalhadores #48: Vilas Operárias do Horto, Rio de Janeiro (RJ) – Mariana Costa, disponível em https://lehmt.org/lugares-de-memoria-dos-trabalhadores-48-vilas-operariasdo-horto-rio-de-janeiro-rj-mariana-costa/, acessado em 20/jun/2022. até então em um bairro operário, no início do século XX. Atraindo para a região uma intensa vida de operários dessas fábricas. Planta da Cidade do Rio de Janeiro - 1928 - Diretoria Geral de Obras e Viação. No canto superior esquerdo podemos identificar o Jardim Botânico e as duas fábricas de tecido na época, assim como a Estrada D. Castorina e o reservatório dos Macacos. Fonte: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart175364/cart175364.html acessado em 21/jun/2022. É a partir da década de 1930 que as mudanças econômicas e a especulação imobiliária fazem as fábricas fecharem, lotearem seus terrenos na proximidade e venderem as vilas operárias. Mariana Costa (2014) afirma que em 1960 a última fábrica é fechada e com a demolição, uma classe média em ascensão compra os terrenos, incluindo nos compradores a Rede Globo. Tanto para Mendonça, quanto para Costa (2014) as tensões em função da luta pela permanência da Comunidade do Horto hoje no bairro vêm de outras épocas. Em sua dissertação a autora relata que as classes médias em ascensão da Gávea, ainda no final do século XIX, reclamavam à imprensa da presença operária nos bairros e pediam que o bonde, já implantado parcialmente, fosse até os moradores que podiam pagar. A autora revela que a atitude "mostrava a própria tensão social que passava a se estabelecer naquele espaço através da convivência de diferentes grupos sociais nessas regiões" (COSTA, 2014, p. 43). Para Mendonça a tensão se confunde a partir do próprio conflito de estratificação espacial característico da urbanização da cidade do Rio de Janeiro: a dicotomia entre zonal sul x subúrbio. Mendonça afirma que a formação da zona sul carioca provém do desmembramento da Fazenda Nacional progressivamente nos séculos XVIII, XIX e início do século XX, originando principalmente os bairros do Leblon, Gávea, Ipanema, Jardim Botânico e Lagoa. Em 1968 a SERPRO constrói o Conjunto Habitacional Dona Castorina – conhecido também como O Balança – para remanejar as famílias desalojadas da Favela do Pinto, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Conforme Mendonça é importante entendermos que nos registros cartoriais sempre houve uma distinção entre a área do Instituto de Pesquisa Jardim Botânico (IPJB) e a área do Horto Florestal, cuja função principal é conter o arboreto (local de cultivo de árvores, arbustos e plantas herbáceas para fins científicos e/ou exibição ao público). Mapa com a ocupação do Jardim Botânico em 1929 e em 2009, em vermelho, os setores da Comunidade Horto Florestal. Fonte: Leslie Loreto, sobre ortofoto PCRJ e Planta de Regularização do ITERJ. Esse histórico de ocupação que pesquisamos ajuda a elucidar o que Laura Olivieri Souza chama de ondas de ocupação do Jardim Botânico, em artigo pulicado em 201x, caracterizando distinguir 4 ondas de ocupação do território com seu respectivo grupo sócio-espacial, sendo: 1. Primeira onda: ocupação em torno da Fazenda Nossa Senhora da Conceição da Lagoa Rodrigo de Freitas, por volta de 1575 – composta (provavelmente) por indígenas escravizados, cultivo da cana. 2. Segunda onda: ocupação em torno do Engenho del Rei, por volta de 1600 – composta por negros escravizados, cultivo do café. Posteriormente, se desdobra na ocupação do Mocambo do Morro das Margaridas e também na ocupação em torno do Solar da Imperatriz, outro engenho do local. 3. Terceira onda: ocupação em torno da Fábrica de Pólvora, a partir de 1808. Essa terceira ocupação se desdobra, após a criação do Real Jardim Botânico e fechamento da fábrica, por volta de 1826, passando a ser composta por trabalhadores do próprio Real Horto Botânico. 4. Quarta Onda: Ocupação em torno das fábricas têxteis do final do século XIX e começo do XX, a partir de 1890, de operários fabris, alguns imigrantes. Criação de vilas operárias e núcleos de casas na R. Pacheco Leão e R. Lopes Quintas. A seguir mapas elaborados para compreensão das ondas a partir dos elementos históricos da ocupação. As informações foram retiradas a partir das pesquisas dos autores Souza (2012), Macedo e o livro 200 anos de Jardim Botânico (2008) ELEMENTOS HISTÓRICOS DA OCUPAÇÃO NO TERRITÓRIO LEGENDA DE ELEMENTOS HISTÓRICOS FÁBRICA DE TECIDO CORCOVADO TOALHEIRO BRASIL SOLAR DA IMPERATRIZ FÁBRICA DE TECIDO CARIOCA RUINA DO ENGENHO PROVAVEL LUGAR DA FÁBRICA DE PÓLVORA CONHECIDO COMO CASA DOS PILÕES VILA OPERÁRIA ARTHUR SAUER PROVÁVEL SEDE ENGENHO E PRIMEIRA SEDE DO IJB FÁBRICA SÃO FELIX 0 100 200 Mapa com os elementos históricos. Fonte: Leslie Loreto e Heloisa Agapito, sobre ortofoto PCRJ e mapas históricos ONDAS DE OCUPAÇÃO LEGENDA DE ONDAS DE OCUPAÇÃO 2a. ONDA DE OCUPAÇÃO 3a. ONDA DE OCUPAÇÃO 4a. ONDA DE OCUPAÇÃO LEGENDA DE ELEMENTOS HISTÓRICOS FÁBRICA DE TECIDO CORCOVADO TOALHEIRO BRASIL SOLAR DA IMPERATRIZ FÁBRICA DE TECIDO CARIOCA RUINA DO ENGENHO PROVAVEL LUGAR DA FÁBRICA DE PÓLVORA CONHECIDO COMO CASA DOS PILÕES FÁBRICA SÃO FELIX VILA OPERÁRIA ARTHUR SAUER PROVÁVEL SEDE ENGENHO E PRIMEIRA SEDE DO IJB 0 100 200 Mapa com as ondas de ocupação. Fonte: Leslie Loreto e Amanda Loureiro, sobre ortofoto PCRJ e mapas históricos, através da hipótese de Laura Olivieri Souza. 2. ASSESSORIA TÉCNICA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA Ermínia Maricato (2003) aponta que a partir da década de 80, os centros metropolitanos no Brasil viveram uma explosão urbana nunca antes vista, ocasionando a “primeira vez na história do país registram-se extensas áreas de concentração de pobreza, a qual se apresentava relativamente esparsa nas zonas rurais antes do processo de urbanização” (MARICATO, 2003, p. 52). Essa explosão de urbanização das cidades brasileiras resultou em habitações precárias sem acesso à saneamento e abastecimento de água, assentamentos espontâneos densos e ocupações irregulares na periferia dos centros urbanos. Um grande número trabalhadores sem acesso á moradia, vivendo de aluguel ou em coabitação e aos quais lhe restava apenas a autoconstrução. A gênese das assessorias técnicas no Brasil inicia-se como uma tentativa de dar respostas e soluções a essa situação. Conforme Lopes (2011) e Cardoso (2021) dentre essas experiências, que surgem antes mesmo da década de explosão urbana à qual se refere Maricato, podemos destacar o MUD (Movimento Universitário pelo Desfavelamento) que atuou na remoção das favelas no Canindé e Vergueiro, na década de 60 em São Paulo; a ação das SAGMACs (Sociedade para Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais) entre 50 e 60 no Brasil em várias cidades do país; a experiência de Cajueiro Seco, Pernambuco, tendo a frente o arquiteto Acácio Gil Borsoi, entre 1960-64 e a reurbanização da favela de Brás de Pina, no Rio de Janeiro, entre 1964 e 1969, realizada pelo grupo Quadra, tendo participado o arquiteto Carlos Nelson dos Santos. Esta última é considerada uma das primeiras experiências que mais se aproxima do que hoje conhecemos como assessoria técnica e assistência técnica em habitação de interesse social. Em meados da década de 70, os sindicatos de arquitetura e urbanismo entram nesse debate e pautam de maneira mais contundente a necessidade da arquitetura e urbanismo olhar para a realidade de nossas cidades. Segundo Cardoso (2021), se destaca a atuação do Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul (SAERGS) e da figura de Clovis Ilgenfritz. A partir dele uma equipe de arquitetos e urbanistas montou uma proposta denominada Programa de Assistência Técnica para Moradia Econômica (ATME), apresentada ao Conselho Regional de Engenharia, Agronomia e Arquitetura do Rio Grande do Sul (CREA/RS) em 1977, uma espécie de embrião da Lei de Assistência Técnica, mais conhecida como Lei de ATHIS. Mais tarde, O deputado federal Zezeu Ribeiro, oriundo também da luta dentro do sindicato de arquitetura e urbanismo, leva adiante a proposta de transformar em lei federal o texto da ATME e com isso em 2008, com o apoio dos movimentos sociais e dos militantes em torno da Reforma Urbana, aprova-se a Lei de Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social - 11.888/2008, mais conhecida com Lei de ATHIS Na sequência desse período, a década de 80 trás à tona uma geração de assessorias técnicas que atua de maneira mais coesa na cidade de São Paulo. Fruto da combinação do surgimento de diversos laboratórios de habitação que existiam nas faculdades de arquitetura e da implantação do FUNAPS Comunitário - política habitacional do município de São Paulo que garantia aos movimentos de moradia o acesso aos recursos do Fundo Municipal de Habitação para construção de moradias através do regime de mutirão (ajuda-mútua) - inúmeros escritórios, ONGs, coletivos e cooperativas de arquitetos e urbanistas – muitas vezes de equipes multidisciplinares - surgiram no início da década de 90, sendo assessores dos movimentos e se posicionavam como aliados destes. Muito influenciados pelo movimento de cooperativas habitacionais da FUCVAM (Federacíon de Coperativas de Vivienda por Ayuda Mutua) no Uruguai, conforme Baravelli (2006), essa geração reconhece e difunde o termo assessoria técnica aos movimentos de moradia no fluxo dos movimentos sociais organizados em São Paulo que emergem desde a década de 70. Importante destacar que o papel da assessoria e assistência técnica hoje, após a instituição da Lei assume diversas facetas, ampliando o debate histórico e das experiências realizadas anteriormente. Há dois conceitos importantes nesse debate: o do arquiteto como catalisador de processos sociais, como aponta Santos (1981) e o de grupo sócio-espacial de Kapp (2018). Carlos Nelson dos Santos aponta que os arquitetos podem ser um elemento catalisador, uma espécie de intermediação entre os envolvidos (população-estado) que teria capacidade de transitar entre os dois e acelerar ou intensificar processos latentes. (Santos, 1981). Para Santos esse elemento era por essência ambíguo, mas ao mesmo tempo possuía uma capacidade de realizar a crítica constante da ação junto aos movimentos sociais urbanos. A assessoria técnica em arquitetura e urbanismo, conforme afirma Kapp (2018) deve ser relacionada ao conceito de grupo sócio-espacial, “grupo de pessoas que se relacionam entre si num espaço, sendo este espaço constitutivo do grupo e, inversamente, constituído por ele" (KAPP, 2018, p. 223), implicando, com isso, que a prática não é necessariamente um meio de realizar ou fomentar projetos de arquitetura ou de urbanismo, mas sim uma ação que tem como elemento definidor a colaboração junto a grupos que são agentes políticos, a ponto de trazer alternativas, negociações, prover informações técnicas, troca de saberes e de “criar interfaces para que o grupo continue produzindo o espaço que o constitui como grupo e para que seja capaz de fazer isso melhor que antes" (KAPP, 2018, p. 233). Seria então, uma prática que torna possível que tais grupos submetam suas ações à crítica e decidam, por si mesmos, no exercício de sua autonomia, os rumos que querem dar à produção de seu espaço e de sua realidade. A assessoria técnica a partir da extensão universitária dá outros matizes ao conceito proposto por Kapp e Santos, pois é também uma prática de formação do profissional arquiteto e urbanista, realizada no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão. Ao retomarmos algumas das experiências emblemáticas das assessorias técnicas percebemos que, em São Paulo e no Rio de Janeiro, uma parte delas surge a partir de Laboratórios de Habitação dentro das universidades de arquitetura e urbanismo, na década de 80 e 90, conforme aponta Lopes (2011) e Bonduki (1992). Dentre esses laboratórios podemos citar o LabHab da Belas Artes – SP, o Laboratório de Habitação da Unicamp-SP, o Projetos Comunitários da UFF-RJ e o Núcleo ARCO – Arquitetura e Comunidade, da Santa Úrsula - RJ. Esses laboratórios eram um embrião do que hoje conhecemos como extensão universitária e assessoria técnica e desempenharam experiências das mais variadas dentro da universidade: desde assessorar cooperativas habitacionais na construção de moradias até realizar pinturas e grafite em uma das áreas femininas do antigo presídio do Carandiru em São Paulo. O objetivo da disciplina Práticas de Interesse Social é garantir um nivelamento de conhecimentos básicos interdisciplinares relativos às favelas e demais assentamentos precários da cidade do Rio de Janeiro, fazer o reconhecimento sobre a realidade complexa específica do território eleito como estudo de caso, e eleger, a partir de um processo colaborativo que envolve a comunidade acadêmica, moradores e os coletivos locais, linhas prioritárias para o desenvolvimento de ações de assessoria técnica voltadas ao território e seus moradores, conforme ementa. Nesse sentido, a proposta de aliar extensão universitária e a prática da assessoria técnica, através de uma disciplina transdisciplinar que envolve tanto a graduação quanto a pós-graduação, torna-se um desafio para o curso de Arquitetura e Urbanismo e para a formação de seus estudantes. Além de ser mais um elemento na rede da luta por permanência da Comunidade do Horto Florestal, assim como outras ações da própria PUC Rio, de outros docentes e disciplinas em relação à comunidade, o envolvimento do Departamento de Arquitetura e Urbanismo trás a discussão do grupo sócio-espacial que é a Comunidade do Horto para dentro da formação em arquitetura e urbanismo: de que maneira estudantes, docentes e pós-graduandos podem contribuir para os rumos que esse grupo sócio-espacial quer dar à produção do seu espaço? Que trocas, informações técnicas, alternativas podem ser trocadas entre os envolvidos? Por outro lado, a capacidade de poder ser uma espécie de catalisadores de processos em andamento da própria Comunidade do Horto, como afirma Santos, nos coloca numa posição de darmos saltos qualitativos na formação do futuro profissional de arquitetura e urbanismo. As perguntas que surgirem nesse processo, que não estão totalmente respondidas, são intrínsecas ao processo da disciplina, que além dos desafios naturais que envolvem o assessoramento técnico, terá de lidar com o seu desenvolvimento ao longo de alguns semestres, passando o seu legado e acúmulo de um semestre para o outro, de um grupo de alunos para outro, construindo assim através do tempo essas respostas. BIBLIOGRAFIA BIZZO, Maria Nilda et al. Cacos de memórias. Experiências e desejos na (re)construção do lugar: O Horto Florestal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquimedes, 2005. CHAGAS, M.; ASSUNÇAO, P; GLAS, T. Museologia Social em Movimento. Anais... XV Conferência Internacional do MINOM. 2013. 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