Ensaio de metafísica nos
princípios de Spinoza
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eManuel angelo da roCHa Fragoso
João eMiliano Fortaleza de aquino
Ensaio de metafísica nos
princípios de Spinoza
Henri
de
Boulainvilliers
Tradução de
Gionatan Carlos Pacheco
1ª edição
Fortaleza - 2024
ensaio de metaFísica nos princípios de spinoza
© 2024 copyright by Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, João Emiliano
Fortaleza de Aquino e Gionatan Carlos Pacheco.
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eManuel angelo da roCHa Fragoso
estabeleCimento do texto, tradUção e revisão da tradUção
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revisão de texto
eManuel angelo da roCHa Fragoso
Gionatan Carlos Pacheco
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PUbliCação (CiP)
Ensaios de metafísica nos princípios de Spinoza: Henry de
Boulainvilliers/ Tradução de Gionatan Carlos Pacheco.
Organizadores: Emanuel Angelo da Rocha Fragoso
e João Emiliano Fortaleza de Aquino. – Fortaleza:
EdUECE, 2024.
E-book. 278 p.: (Coleção Argentum Nostrum)
ISBN: 978-85-7826-911-1
1. Filosofia holandesa. 2. Ética. I. Fragoso, Emanuel
Angelo da Rocha II. Aquino, João Emiliano Fortaleza
de.
CDD 110
elaborada
Por
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Filiada à
Sumário
Boulainvilliers e seu ensaio
Gionatan Carlos Pacheco
p. 7
ensaio de metaFísica nos princípios de spinoza
Henri de Boulainvilliers
advertência
p. 77
primeira parte
Do Ser em geral e em particular
p. 81
segunda parte
Das paixões
p. 163
apêndice
nota explicativa soBre o conto
“o jantar do conde de Boulainvilliers”
Gionatan Carlos Pacheco
p. 243
o jantar do conde de Boulainvilliers
Voltaire
p. 245
5
Boulainvilliers e seu Ensaio
H
enri de Boulainvilliers (1658-1722), conde de SaintSaire, foi um intelectual que produziu uma vasta obra,
mas sobre quem nos resta parcas informações biográficas. Ao
levantamento das informações disponíveis e relevantes que
faremos a seguir, adicionaremos uma contextualização histórica
que nos auxiliará a situar a personagem e sua obra: primeiro,
uma contextualização mais geral em comparação com Spinoza,
depois mais especificamente a relação de Boulainvilliers e sua
obra com a corte de Luís XIV. Nas duas últimas partes dessa
apresentação, primeiro, descreveremos a obra de Boulainvilliers
em linhas gerais e, por fim, abordaremos particularmente o
Ensaio de Metafísica nos princípios de Spinoza.
Sabemos que Boulainvilliers ingressou como aluno no
“custoso e aristocrático” (ELLIS, 1986, p. 421) Oratório de Juilly
aos 11 de idade (1669), lá sendo bem-sucedido e permanecendo
até 1674 (MORERI, 1995, p. 132). Informação relevante, pois
trata-se de um dos colégios franceses mais avançados da época1,
onde se ensinava e discutia o cartesianismo, desde 1662 até a
proibição real em 1675, a despeito dos jesuítas contrafeitos que
1 “Nenhuma sociedade religiosa jamais reconheceu no mesmo grau o valor
da ciência, nenhuma teve pelo pensamento o mesmo respeito, o mesmo
entusiasmo. A atividade intelectual do Oratório não é apenas atestada pelos
nomes gloriosos de Malebranche e Richard Simon; ela é especialmente
demonstrada pelas incessantes perseguições a que foram expostos os
mestres do Oratório. A censura da heterodoxia lhes era incessantemente
dirigida. Eles foram acusados de defender o jansenismo. Quando o
cartesianismo foi proscrito, foi nos colégios do Oratório que encontrou
seus defensores mais firmes” (D’ISTRIA, 1907, p. x). Ver também: FURET,
1986, pp. 117-8. Todos os textos citados cuja fonte referida está em idioma
estrangeiro, salvo indicação expressa, são traduções nossas.
7
Boulainvilliers e seu Ensaio
protestavam desde 1663. Ali, informa Louis Moreri (1643-1680),
também havia um mestre muito hábil em história, “principalmente
na dos soberanos da Europa”2, sendo provavelmente onde o
jovem Henri tomou gosto por este tipo de estudo. É provável
que lá tenha tido por mestre de oratória Richard Simon (16381712) que, junto a Spinoza, nas palavras de Ernest Renan, foi
o fundador “da exegese bíblica do Antigo Testamento” (2020,
p. 25). É atraente a hipótese de Simon ter aberto o caminho
da heterodoxia para Boulainvilliers – atraente, porém, hipótese
(cf. WADE, 1967, p. 97). O mais importante dessa formação é
a novidade da inclusão da história no currículo, em especial a
história nacional, ponto ao qual retornaremos ao comentarmos
a produção de Boulainvilliers sobre essa área.
Boulainvilliers entrou para a carreira de militar em 1679,
integrando o primeiro corpo de mosqueteiros até 1688. Tudo
indica que o abandono desta carreira teve por motivo complicações
no seio familiar, que o fizeram assumir os negócios da família
(MORERI, 1995, p. 132; ELLIS, 1986, p. 420). Há registro dele
ter viajado para Alemanha e Inglaterra nos últimos anos, ou logo
após o término, de sua carreira militar3. Seu primeiro casamento
data de 1689, no qual teve dois casais de filhos. Complicações no
parto de seu último filho o deixam viúvo, quando o mais velho
deles conta apenas 6 anos de idade. Consta que Boulainvilliers
se aplicou na educação de seus filhos, tendo mesmo escrito obras
destinadas a tal, como teria sido o caso de sua História Universal
[Histoire Universelle] (MORERI, 1995, p. 133; cf. ELLIS, 1986).
Em 1709, morrem seus dois filhos homens. Casa-se novamente
em 1710, não tendo filhos neste último casamento. Sua morte se
deu em Paris, no ano de 1722, aos 74 anos de idade.
Para além das viagens supramencionadas, só podemos
afirmar que Boulainvilliers passou sua vida principalmente
em Saint-Saire, com intervalos de estadias em Paris que foram
2 MORERI, p. 132. D’Istria especula que o professor “ao qual seu biógrafo
Moreri alude e não ousa nomear” (1907, p. xi) seja o próprio Richard Simon,
a quem nos referimos na sequência do texto. Tholozan (1999, §§9-10)
menciona cursos de história que eram ministrados extracurricularmente
para os alunos que eram pensionários, o que era o caso do jovem Henri.
3 THOLOZAN, 1999, §11. Ver também ali a nota de rodapé 43.
8
Gionatan Carlos PaCheCo
mais frequentes em seus últimos 20 anos de vida (VENTURINO,
2019, p. 566). Sabe-se de sua relação clientelista com o duque
de Noailles (1651-1729), a qual dá azo a especulações sobre a
participação de Boulainvilliers em uma espécie de sociedade
intelectual que orbitava o duque. Segundo Saint-Simon (16751755), havia uma forte ligação entre os dois, tendo sido o
duque a lhe apresentar Boulainvilliers (SAINT-SIMON, 1914,
p. 245). As sociedades intelectuais eram comuns na época
e tomavam como modelo as Academias4. Teria sido nessa
sociedade que Freret (1688-1749) ingressou aos dezenove
anos em 1707 (cf. WALCKENAER, 1850, p. 276)5 e, por meio
dela, que “apesar da diferença de idade” travou amizade
com Boulainvilliers “que, desde então, espantado com sua
erudição, previu que ele seria um dos homens mais eruditos
de seu século” (BOUGAINVILLE, 1756, p. 316).
A ausência de uma correspondência ou de diários torna
desafiador entender o ambiente intelectual que Boulainvilliers
frequentava e o público que seus manuscritos visavam. Torna
difícil, por exemplo, apoiarmos a hipótese de Ira Owen Wade,
em seus estudos pioneiros sobre os manuscritos clandestinos
do início do século XVIII, de uma “coterie Boulainvilliers”, na
qual ele seria “o verdadeiro centro de uma atividade que até
então se pensava ter existido apenas após 1770”6. Não obstante
4 “O gosto pelas conferências Literárias era então mais comum do que é hoje.
O estabelecimento das Academias fez sentir as vantagens do comércio entre
as mentes; e em toda parte se viu o nascimento de Sociedades particulares
que as tomaram como modelos” (BOUGAINVILLE, 1756, p. 315).
5 Ver também o verbete “Fréret” em Nouvelle Biographie générale (JOUBERT,
1858).
6 WADE, 1967, p. 101; “Boulainvilliers, Fréret, Dumarsais, Lévesque de
Burigny e Mirabaud exemplificam a tendência oposta [oposta à tendência
individual e independente de publicações]. Muitos são os indícios de que, nas
atividades e obras desses autores, há uma tentativa definida de organização
para atingir um fim comum. Uma consideração das relações entre eles trará à
tona as principais linhas de sua cooperação. Boulainvilliers, o espírito movedor
do grupo, reuniu avidamente as obras liberais de outros, e sendo amigo de
D’Argenson, chegou a fornecer secretamente algumas delas àquele ministro.
Ele estava alerta, interessado, ansioso. A certa altura conheceu os escritos
de Spinoza e ficou fascinado por eles, embora a obscuridade da filosofia de
Spinoza não escapasse à sua inteligência aguçada. Ele conversou sobre essas
obscuridades com seu amigo Fréret, membro da Académie des Inscriptions
9
Boulainvilliers e seu Ensaio
certos envolvimentos, Boulainvilliers levou uma vida discreta,
na qual produziu uma vasta obra que, tudo leva a crer, nunca
teve a intenção de publicar. É difícil falar da circulação de seus
et Belles lettres, e escritor de tratados bem documentados sobre problemas
de cronologia para a Academia. Enquanto Boulainvilliers era um admirador
entusiástico de Spinoza, Fréret era um fervoroso devoto de Bayle, e até
ganhou a invejável reputação de ter devorado todo o Dictionnaire historique
et critique durante um curto confinamento na Bastilha. Ele e Boulainvilliers
eram visitantes frequentes na casa do duque de Noailles, um notório centro
de livre-pensamento. Provavelmente foi lá que conheceram Dumarsais,
amigo e admirador de Fontenelle, interessado em problemas de cronologia
e inimigo inveterado da superstição. Boulainvilliers estava em termos de
intimidade com Mirabaud, Secrétaire perpétuel de l’Académie des Inscriptions.
Ele reuniu as obras de Mirabaud, colocou uma delas em suas Lectures, ou
mandou fazer cópias para D’Argenson. Dumarsais, também, conhecia bem
Mirabaud, e por ele se interessou a ponto de publicar suas obras por volta
de 1751, apesar do protesto brando deste. Eles tinham entre outras coisas
em comum uma admiração por Fontenelle. Fréret era íntimo de Lévesque
de Burigny, com quem tinha interesses semelhantes e cujas ideias utilizava
sem escrúpulos. Não há dúvida de que existia uma relação bastante próxima
entre Boulainvilliers, Fréret, Dumarsais, Mirabaud e Burigny. Também não há
dúvida de que as ideias de cada um inspiraram os outros. Cada um também
imbuiu os outros com um sentido mais completo do significado de seu
próprio autor favorito: Boulainvilliers trouxe Spinoza, Fréret contribuiu com
as ideias diretrizes de Bayle, Dumarsais e Mirabaud enfatizaram ideias que
vieram de Fontenelle, Burigny introduziu a audácia de Orobio. Eles tinham
vários centros nos quais trocavam opiniões: o de D’Argenson, o do duque de
Noailles, a Académie des Inscriptions e os cafés. Eles escreveram seus tratados
e os distribuíram, discutindo-os tão profundamente que cada tratado perdeu
a marca da personalidade do autor e conservou a marca do grupo. Até hoje
é impossível dizer quem escreveu alguns desses ensaios, tão completamente
o anonimato do autor é ocultado por esta marca. A fortuna do grupo foi
determinada por um único evento, a morte em 1722 de Boulainvilliers,
espírito movedor da organização. Após a morte do conde, o círculo se desfez
e seguiu-se um período de organização mais solta e flexível. Alguns membros,
nomeadamente Fréret e Dumarsais e Lévesque de Burigny, continuaram a
escrever na década de trinta. Mirabaud ocupou-se depois com outros tipos
de escrita. Mas antes que o círculo fosse finalmente dissolvido, havia sido
composto o Examen de la religion, o Doutes sur la religion, o Religion chrétienne
analysée, o Essay de métaphysique, o Traité des trois imposteurs, a Lettre de
Thrasybule a Leucippe, o Analyse du traité de la théologie politique de Spinosa, o
Examen critique des apologistes de la religion chrétienne, o Opinion des anciens
sur la nature de l’âme, Opinion des anciens sur les juifs, o Examen critique du
Nouveau Testament, o Theophrastus redivivus, os Sentiments des philosophes
sur la nature de l’âme, Abrégé de l’histoire ancienne, e o Israël vengé, quinze
dos dezoito tratados mais importantes e influentes dos 102. Esses ensaios,
distribuídos judiciosamente entre os leitores agora preparados para receber
suas ideias, criaram o estímulo necessário para a composição, circulação e
absorção de ensaios de natureza semelhante” (Ibidem, pp. 267-8).
10
Gionatan Carlos PaCheCo
manuscritos durante sua vida, senão que ela ocorria7. Depois
de sua morte, veremos adiante, a publicação de seus escritos
fizeram considerável barulho.
uma
contextualização ampla com comparações sumárias
Boulainvilliers foi ainda mais discreto que Spinoza na
publicação de seus escritos. Ao longo de sua vida, seu nome não
assina nenhuma obra impressa, ao contrário de Spinoza que
publicou os Princípios da Filosofia Cartesiana (PPC) em 1663.
Também não publicou nenhum livro anonimamente, como é o
caso do Tratado Teológico-Político (TTP) de 1670. Caute [cautela]
era o lema de Spinoza, mas Boulainvilliers sem dúvida o superou
no emprego dessa divisa. Talvez por ter visto a forma como o nome
de seu antecessor estava entrando para a história. A juventude
de Boulainvilliers se passou enquanto a obra de Spinoza era o
Judas a ser malhado, a filosofia spinozana era como que uma
doença, um mal a ser combatido e spinozismo era usado como
um adjetivo de xingamento tão ou mais comprometedor do
que ímpio ou herege. Porém, isso explica muito pouco, se é que
explica algo, sobre o apagamento voluntário de Boulainvilliers
enquanto intelectual público de seu tempo.
A carência de fontes torna temerário especular motivos
pessoais e subjetivos dessa superioridade de Boulainvilliers
em termos de caute. Por outro lado, mesmo o esboço precário
que oferecemos a seguir, sobre a distinção das conjunturas
políticas e histórico-sociais em que eles se encontravam,
revela-nos razões objetivas suficientes.
o
noBre franco e o pleBeu Batavo
Praticamente contemporâneos, Boulainvilliers tinha
19 anos quando Spinoza, aos seus 44, morreu em 1677
e então se iniciou a edição de suas Obras Póstumas. Isso
abre a possibilidade de um contato muito precoce com TTP
(1670) e com os PPC (1663)8, nos tempos em que o conde
7 Cf. MARAIS, 1864, t. 2, pp. 212-4, 348; 1868, pp. 137, 360-1.
8 Essas duas obras constam em seus extratos de leitura (NAF 11072), ver
WADE, 1967, pp. 98-9.
11
Boulainvilliers e seu Ensaio
ainda frequentava o colégio de Juilly (1669-1674). Se
temporalmente há proximidade, política e socialmente um
abismo se abre.
Spinoza era de uma família de judeus portugueses,
refugiados nos Países Baixos. O negócio familiar era ligado
ao comércio marítimo e veio à bancarrota depois que Spinoza
e seus irmãos o herdaram. Depois disso, nosso filósofo se
proletarizou. Boulainvilliers, por sua vez, julgava que sua
família estava ligada a terra que ocupava desde o século XIII. E
se, com o restante da nobreza de espada, sua família estava em
decadência, contudo não se aburguesou (ELLIS, 1986, p. 431).
Naqueles tempos os Países Baixos eram uma espécie de
ilha de liberdade religiosa e de pensamento em comparação a
seus vizinhos. Sua independência foi declarada em 1581, e já
representava a ascensão de uma camada burguesa, no seio da
qual se destacou os protestantes calvinistas, cujos interesses se
chocavam “com os interesses dinásticos e religiosos medievais da
Coroa espanhola, do Sacro Império e do Papado” (CARNEIRO,
2006, p. 170). Durante a vida de Spinoza, Amsterdã superou a
Veneza renascentista como o principal centro de produção de
publicações, contando com mais “de 270 livreiros e impressores
[que] atuaram na cidade nos 25 anos entre 1675 e 1699”9.
Por outro lado, a França de Luís XIV era a origem de vários
exilados, como foi o caso mesmo de Descartes, Pierre Bayle,
Saint-Evremond: “Em 1701 havia apenas 51 gráficas em Paris,
em contraste com 75 em 1644 e 181 em 1500” (BURKE, 2003,
p. 131).
O caso é que o Grande Século, a despeito das revoluções
britânicas, assistiu a ascensão e consolidação do absolutismo,
não somente na França, como também na Prússia, Áustria e
Rússia (cf. THOLOZAN, 1999). Podemos dizer que o contexto
sócio-político que Spinoza viveu em termos de liberdade de
pensamento – pelo menos até o assassinato do grão-pensionário
9 BURKE, 2003, p. 148. “No século XVII, a República Holandesa substituiu
Veneza como ilha de relativa tolerância da diversidade religiosa e também
como principal centro e mercado da informação, o “magasin général” como
a chamou Bayle em 1686” (Ibidem).
12
Gionatan Carlos PaCheCo
Johan de Witt (1672), pois não devemos esquecer que o TTP
“foi banido pelos estados-gerais em 1674” (BURKE, 2003, p. 131,
grifo nosso) –, não voltou a se repetir tão cedo (cf. ROWEN,
1986). Com isso em mente, atenuamos o impacto provocado
pelas novas pesquisas sobre as correntes mais radicais do
Iluminismo, que apontam o pensamento de Spinoza como um
centro de gravidade e coesão de toda uma literatura clandestina
e marginal que, por vezes, saía da pena de um nobre, como a
que saiu da do conde de Boulainvilliers (cf. ISRAEL, 2009).
Para Spinoza, seus escritos publicados poderiam ser uma
forma de renda, ou mesmo de comprovação de capacidade,
pois os PPC, além de terem sido solicitados por amigos,
sabemos também que foram resultado de um curso dado ao
seu aluno Caesarius. E, se este foi o caso, foi bem sucedido,
dado o convite que recebeu da Universidade de Heidelberg
em 1673 (SPINOZA, 2014, p. 216). Nada mais distante do
caso do conde de Boulainvilliers que, enquanto nobre, deveria
viver de sua nobreza, isto é, de seus rendimentos.
o mosquete, a corte e o novo mundo
O mosquete é a imagem concreta que resume uma
condição material de profundas mudanças que repercutiram
no momento histórico que nossos pensadores viviam. Numa
breve passada de olhos pelo quadro de Pieter Frits (16271708), de título “O assassinato dos irmãos De Witt” [Moord
op de gebroeders De Witt], contamos facilmente uma dúzia
deles. A chamada “revolução militar” começou na academia
militar de Maurício de Nassau (1604-1679), fundada em 1618,
caracterizando-se como:
[...] a adoção de métodos racionalizados de combate, com
tropas altamente treinadas em exercícios complexos com
novos tipos de arma (mosquetões, canhões móveis), novos
tipos de soldado (em fileiras menos compactas e mais ágeis,
treinadas na “ordem unida” que coordenava salvas de tiros).
(CARNEIRO, 2006, p. 181).
A revolução militar é um de tantos fatores que fizeram
o momento de hegemonia comercial dos Países-Baixos.
13
Boulainvilliers e seu Ensaio
Segundo um levantamento francês, a frota neerlandesa não
só superava em qualidade a dos outros países como em
número ela igualava todas as demais frotas europeias somadas
(cf. BRAUDEL, 2009, pp. 172-sqq). A expansão da rede de
influência econômica e política dos batavos foi tamanha no
século XVII, é bom lembrar, que sobrou até pra nós (cf., p. ex.:
WATJEN, 1938; MELLO, 2010).
É certo que o mosquete abriu fogo contra a nobreza que
fez fortuna de a cavalo e pela ponta da espada. Mas nos serve
apenas como símbolo que sintetiza mudanças que já vinham
ocorrendo. É preciso lembrar que o sucesso dos romances de
cavalaria no século XVI respondia, em alguma medida, a uma
demanda do que já era um saudosismo da nobreza.
Durante o feudalismo, eram os senhores feudais que
arcavam com os custos de guerra, bem como eram eles que
faziam fortuna com os despojos dos inimigos. O tempo passou
e os serviços militares foram cada vez mais monetarizados: não
mais se ganhava terras, mas, sim, soldo – o “termo ‘soldado’
evoca essa fase do desenvolvimento social”, lembra Norbert
Elias (2001, p. 168). A guerra foi se profissionalizando e os
contingentes cada vez maiores demandavam uma organização
que frustrava as chances de fortuna em aventuras bélicas. O
que Dom Quixote (1605), a suprema sátira dessa decadência,
temia ou perseguia era um inimigo de outrora, os mouros,
e tal qual o Quixote, a nobreza encantada, no caso com o
próprio passado, não entendeu o impacto da descoberta do
Novo Mundo em sua própria condição.
A tradição aristocrática francesa se distingue pela
continuidade. Ela “atravessou toda a Idade Média, até a
época moderna, sem uma ruptura verdadeira” (ELIAS, 2001,
p. 161), de modo que o rei francês estava mais ligado aos
costumes corteses do que os reis de outros países, nos quais
a passagem para modernidade, ligada às reformas religiosas
e ao renascimento, representou um “fosso profundo […], ou
onde a cultura aristocrática não era tão rica nem constituída
de modo tão característico” (ibidem). Ao mesmo tempo que
14
Gionatan Carlos PaCheCo
havia uma mútua dependência entre o rei e seu entorno social,
havia uma luta intestina sempre em aberto, não tanto “com
a nobreza em geral, pois uma parte significativa dela havia
sempre lutado ao lado dos reis, mas com a alta nobreza e
seus partidários” (ibid.). Isso vai mudar com o absolutismo
monárquico instaurado durante o reinado de Luís XIV, sendo
então uma mudança interna a essa camada social, na qual
encontraremos nosso Boulainvilliers. A balança do poder, então,
pende determinantemente para o lado do rei em detrimento da
nobreza, tanto da alta quanto da baixa. A longeva continuidade
muda de caráter entre o último rei cavaleiro, Henrique IV
(1553-1610), e o primeiro rei aristocrata de corte, Luís XIV
(1638-1715), o rei sol (cf. ibid., pp. 162-sqq).
O afluxo da prata de Potosí e do nosso ouro dos Gerais
tem um dedo nesse pendor da balança. A base da economia
mudou. Enquanto uma burguesia ascendia sabendo se
aproveitar do momento, a nobreza estava estagnada nos
rendimentos fixos de suas posses. A inflação simplesmente
explodiu, tais posses e rendimentos passaram a significar uma
parcela do que valiam outrora:
[…] para uma grande parte dos nobres franceses a inflação
significou um profundo abalo, ou até mesmo uma destruição
dos fundamentos econômicos de sua existência. […]. A
maioria dos membros da nobreza estava mergulhada em
dívidas após o término das guerras religiosas; em muitos
casos, os credores tomaram posse de suas terras. A maior
parte das propriedades trocou de dono nesse período.
(ELIAS, 2001, p. 165).
O rei foi o único nobre fortalecido em sua base econômica.
Anteriormente, a corte do rei era uma entre tantas, “era apenas
a primeira, e nem sempre a mais rica, brilhante e significativa”
(ibidem, 171). Mais tarde, o rei dependia da nobreza como seu
meio social e como um modo de se distanciar tanto da burguesia,
quanto da plebe. Porém, a dependência da nobreza para com a
realeza se tornou total. Ela não era mais a protagonista guerreira,
nem havia mais proezas a serem recompensadas basicamente
com terras, nas quais cada senhor feudal era uma espécie de
15
Boulainvilliers e seu Ensaio
rei. Visto que “passou-se gradativamente de uma realeza em
que o rei possui e distribui terras para uma realeza em que o rei
possui e distribui dinheiro” (ibid., p. 166), de cima do trono, mas
também em cima do cofre, o rei deixou de ser mero primus inter
pares. Agora, para repreender a nobreza o rei precisava apenas
fechar a mão: “Era muito mais fácil e rápido abolir uma pensão
de alguém que retomar uma terra, ou as fontes de renda naturais
que se encontravam em algum lugar distante da residência do
rei” (ibid., p. 169). Mas a ligação entre rei e nobreza permanece
a despeito de já instalada essa supremacia, “o dever tradicional
que o rei tinha de sustentar os nobres, assim como o dever dos
nobres de servir ao rei – nada disso desapareceu” (ibid., p. 170).
Tanto a República das Províncias Unidas dos Países
Baixos quanto a França saíram por cima no final da Guerra
dos Trinta Anos (1618-1648). A primeira se estabeleceu como
a potência emergente, que depois de algumas décadas foi
paulatinamente superada pela França e pela Inglaterra. A
França se manteve oficialmente neutra no conflito até 1635,
com a intenção “de criar um ‘terceiro pólo’ entre a aliança
espanhola-imperial e o bloco dos protestantes alemães,
suecos e holandeses” (CARNEIRO, 2006, p. 167). Sendo um
Estado católico, ao se somar as fileiras protestantes esvaziou
o caráter supostamente “religioso” do conflito. Os Tratados
de Westfália, que encerraram o confronto, foi a pá de cal no
espírito de cruzado medieval e podem ser “vistos como o marco
na construção da ordem europeia moderna em que a ‘razão
de Estado’ sobrepõe-se aos princípios religiosos medievais da
soberania universal do Papado, que haviam sido a base das
grandes monarquias nacionais” (ibidem, p. 166).
Estes tópicos mereceriam um tratamento mais amplo
e aprofundado. Porém, esse esboço nos serve, em alguma
medida, para situarmos historicamente nossos autores. Não é
difícil de ver, por exemplo, o quanto esses fatos se relacionam
à temática teológico-política em Spinoza e da emergência do
conceito de nação, que constitui objeto central das análises de
Boulainvilliers.
16
Gionatan Carlos PaCheCo
Boulainvilliers
e a corte: órBita sem muita gravidade
Boulainvilliers viveu no “Século de Luís XIV”, para nos
valermos de um título de Voltaire. O término das guerras
religiosas, ao invés de removerem a aura sagrada da coroa,
abriu caminho para a “monarquia absoluta”10. Foi nesse
momento que, para o bem ou para o mal, o complexo jogo de
forças no seio da elite francesa atingiu um equilíbrio, é claro,
no rei.
Antes de Luís XIV atingir a maioridade, as tensões no
seio da elite francesa se expressaram na revolta da Fronda
(1648-1653). Neste conflito, em torno de Luís II (Príncipe de
Condé, 1621-1686), a alta nobreza, o parlamento e a burguesia
se uniram no anseio comum de diminuir o poderio do rei. Não
obstante, por óbvio, nenhuma dessas frentes se interessava
por uma quebra radical do status quo, já que isso poderia bem
ser um tiro no pé, arriscando assim seus atuais privilégios. Ao
mesmo tempo, a mútua desconfiança desses grupos entre si
permitiu ao rei, neste caso o ministro Mazarin (1602-1661),
amplo espaço de manobra. Segue-se um quadro característico:
“grupos se aliam contra o ministro, o representante da rainha;
parte dos aliados faz um acordo com o ministro; abandona
a aliança; enfrenta aqueles que estavam a seu lado; e acaba
retomando, em parte, a aliança com estes”11. Quando Luís
XIV assume o poder em 1661, o destino da nobreza já está
decidido, e tanto ela quanto a burguesia dependem do rei
quando seus interesses conflitam.
10 “Existiu um mito de Luís XIV no sentido de que ele era apresentado
onisciente [informé de tout], invencível, divino, e assim por diante. Era
o príncipe perfeito, associado ao retorno da idade de ouro. Poetas e
historiadores qualificaram o rei como “herói” e seu reinado como “uma série
ininterrupta de maravilhas”, para usar as palavras de Racine. Sua imagem
pública não era simplesmente favorável: tinha uma qualidade sagrada.
(BURKE, 2009, p. 18). “Luís tomava também o lugar de Deus, como foi
assinalado pelo pregador da corte Jacques-Bénigne Bossuet e outros
teóricos políticos. Os soberanos eram “imagens vivas” [images vivantes]
de Deus, “os representantes da majestade divina” [les représentants de la
majesté divine]” (ibidem, p. 21).
11 ELIAS, 2009, p. 184. Ver: MAQUIAVEL, 1994, liv. III, cap. 11, pp. 341-sqq.
17
Boulainvilliers e seu Ensaio
A França, bem como outros impérios que se impunham
na modernidade, teve que implementar mudanças significativas
na burocracia estatal com a finalidade de centralizar e organizar
seus recursos e informações. Este imprescindível funcionalismo
estatal foi parar na mão de burgueses, ao passo que “afastou
a nobreza de quase todos os cargos elevados do judiciário e
da administração. Desse modo surgiu a poderosa camada
da noblesse de robe, que se equiparava à nobreza em poder,
e às vezes até em prestígio social” (ELIAS, 2001, pp. 188-9).
Assim, a nobreza tradicional, em contraposição a de robe, ficou
conhecida como nobreza de espada [noblesse d’épée]. A maior
parte dela “foi lançada de volta às suas funções de cavaleiros e
proprietários de terra” (ibidem, p. 189) durante o século XVI.
Houve assim um afastamento da nobreza em geral da corte
do rei, sendo cada mais difícil para a nobreza provinciana, já
sem poder ou função política, integrar-se a esta. Boulainvilliers
pertenceu justamente a essa nobreza provinciana.
Boulainvilliers, seguindo uma tradição familiar, fez
carreira militar. Há indícios de que, paralelamente aos percalços
em seu seio familiar, teve de abandoná-la por esta ser muito
custosa, de modo que não tinha rendimentos suficientes para
se sustentar em um cargo condigno ao seu estatuto de nobre. A
venalidade de cargos públicos, inclusive de comandos militares,
foi um “dos aspectos característicos da função pública no
Ancien Régime” (ibid., p. 197) e estava consolidada no tempo
de Henrique IV. Era um golpe na antiga aristocracia, ao passo
que atendia os interesses da burguesia endinheirada, ao mesmo
tempo que era mais um vetor de arrecadação para o trono.
Por mais difícil que seja conceber, a nobreza não
tinha nenhuma função para o Estado. Porém, tinha
função para o rei. Luís XIV nunca viu como opção deixar
essa nobreza simplesmente se esgotar e desaparecer. Tal
desaparecimento acarretaria o aburguesamento da nobreza (e,
consequentemente, do próprio rei), o que de certo romperia
o equilíbrio cujo centro de gravidade era o rei, tornando ele
dependente dessa burguesia ampliada.
18
Gionatan Carlos PaCheCo
A corte que tinha um caráter peripatético, com Luís XIV
se fixa, sem concorrentes, no Palácio de Versailles (1682)12. A
dominância da coroa sobre essa alta nobreza era tanta que o
único movimento de resistência possível era a aproximação com
seu provável próximo dono. Quanto mais poderosa e próxima da
linha de sucessão, mais perigos a nobreza representava. Por conta
disso, Versailles servia para o exercício da necessária vigilância.
As Memórias do duque Saint-Simon são particularmente
reveladoras sobre esta resistência cortesã e jogam um pouco de
luz sobre o distante personagem de Boulainvilliers.
Ao contrário de Boulainvilliers, Saint-Simon pertencia
a alta nobreza e o apoio de seus antepassados à coroa ainda
o favorecia diante do rei, de sorte que gozava de uma
“independência” singular em comparação com os demais
cortesãos. Era um dos membros mais ricos da nobreza de espada,
de modo que sua descrição de Boulainvilliers como “muito
pobre”, que caracterizou historicamente o suposto ressentimento
de nosso filósofo, precisa levar em conta essa perspectiva13.
12 ELIAS, 2009, pp. 173-sqq. Foi neste palácio em que foi assinado o
contrato do segundo casamento de Boulainvilliers em 1710, um evento
custoso, sendo este um dos fatos documentados que desbancam a atribuição
de pauperismo por vezes dirigida a Boulainvilliers (ELLIS, 1986, p. 422).
13 SAINT-SIMON, 1928, p. 240. Harold A. Ellis fez estudos importantes sobre
o “caráter”, digamos assim, de Boulainvilliers, nos quais quebra a imagem
simplória de um nobre despossuído, ressentido a ponto de defender uma
espécie de “racismo filosófico”. A problemática releitura de Boulainvilliers como
um teórico do conflito racial foi substancialmente desacreditada, em favor da
caracterização como um teórico de classe, e remonta à Augustin Thierry; ela foi
incensada principalmente por André Devyer (1973), e segue sendo citada de
passagem como um lugar-comum (e.g. ISAAC, 2004, p. 10n17); a encontramos
mesmo em Foucault, de cuja exposição nos valeremos adiante, sem nos
determos nessa tentativa de associação de Boulainvilliers à direita francesa
racista, e notando aqui que a exposição de Foucault não é de todo original,
devendo em grande medida a de Thierry (ver BERNASCONI, 2003, pp. 5778). Ellis analisa o uso dos conceitos de raça e genealogia em Boulainvilliers,
demonstrando que “ele nunca elaborou explicitamente uma teoria da
excelência nobre descrevendo a linhagem como o transmissor biológico por
‘semente’ ou ‘sangue’ — de qualidades pessoais. […]. Para Boulainvilliers, a
própria hereditariedade era algo habitual, inculcado pela educação familiar. A
linhagem, como Boulainvilliers a entendia, era um fato cultural, não biológico.
Boulainvilliers não era racista.” (ELLIS, 1986, p. 423). Ainda, sobre as posses de
Boulainvilliers, bem como sua proximidade da corte, ver: ELLIS, 1986.
19
Boulainvilliers e seu Ensaio
Saint-Simon nos conta sobre sua aproximação ao
duque de Borgonha (1682-1712) que, após a morte do
pai Luís (Grande Delfim de França, 1661-1711), tornouse o novo delfim. Neste relato vemos como Saint-Simon
habilmente sonda o delfim sobre a situação da alta nobreza
e do que ele vê como usurpação do poder por parte dos
magistrados, da nobreza de robe, bem como o desprezo
desta pelos pares do príncipe. Um tópico dessa conversa que
deve nos ser interessante é a educação do rei. “Esta corda,
tocada assim levemente, de pronto devolveu um grande som”
(SAINT-SIMON, 1840, p. 6). Enfim, parece que Saint-Simon
encontrou naquele momento um aliado contra os ministros.
Não obstante, voltemos nossa atenção sobre a educação do
próprio príncipe, o duque de Borgonha.
Havia um círculo de pessoas em torno do duque de
Borgonha que “era constituído de todo um núcleo da oposição
nobiliária” (FOUCAULT, 1999, p. 152). No centro dele estava o
arcebispo Fénelon (1651-1715), nomeado preceptor do duque
de Borgonha em 168914. Antes, mencionamos a burocratização
do Estado, que foi uma resposta a necessidade de centralizar
as informações15. Fénelon, por exemplo, perguntava: “o que
diríamos de um pastor que não soubesse a quantidade de
suas ovelhas?” (apud BURKE, 2003, p. 127). Assim, em 1697,
inspirado no trabalho dos levantamentos [enquêtes] que Colbert
(1619-1683) realizava através dos intendentes das províncias,
Fénelon elabora um questionário de 19 pontos, que “foi enviado
aos intendentes para que fornecessem informações para a
14 SÉE, 1923, p. 209. Henry Sée nos diz que Fénelon: “é verdadeiramente
o centro daquela pequena sociedade de descontentes e reformadores
que se agruparam em torno do duque de Borgonha e que contam com o
futuro reinado para fazer triunfar suas ideias; é o círculo de Chevreuse e
Beauvilliers, um círculo ao qual o próprio Saint-Simon teve a honra de
pertencer” (1923, p. 210, traduções nossas).
15 “Na França, o século XVII foi o período da organização dos arquivos,
primeiro pelo estudioso Théodore Godefroy (1615), depois por Richelieu
e, mais tarde, por Colbert. [...]. Quando Luís XIV chegou ao poder,
nenhuma repartição do Estado possuía arquivo, mas quando ele morreu
todas depositavam seus registros em lugares fixos” (BURKE, 2003, p. 129).
20
Gionatan Carlos PaCheCo
educação política do duque”16. Coube a Boulainvilliers resumir
e analisar os memorandos (mémoires) para serem apresentados
ao duque. Por certo, foi uma escolha politicamente interessada
(cf. THIERRY, 1842, p. 83). Estes memorandos “talvez sejam o
documento mais conhecido e utilizado do reino de Luís XIV”
(ESMONIN, 1964, p. 113). As análises de Boulainvilliers sobre
eles estão reunidas em sua obra Estado da França [Etat de la
France], impressa póstuma e desajeitadamente17.
No mesmo capítulo de suas Memórias, Saint-Simon nos
relata outra conversa sua com o delfim. Nesta surge como
assunto outro tópico (SAINT-SIMON, 1840, pp. 14-sqq), que
também diz respeito a Boulainvilliers. Trata-se da questão
sobre os príncipes de sangue e os príncipes legítimos. Um
assunto que viria a calhar para uma possível conspiração de
Saint-Simon, se pouco tempo depois (1712) o duque não
tivesse falecido. Em seguida (1715), é a vez da morte de Luís
XIV. Então, essa questão se tornará uma querela, e ganhará
forma impressa18. Os únicos textos de Boulainvilliers que
sabemos com certeza terem sido impressos durante sua vida,
mais precisamente em 1717, ainda que sem seu nome, foram
justamente sobre a questão dos príncipes legítimos e figuram
numa espécie de compêndio, publicado no auge da querela
dos príncipes legítimos e de sangue19.
16 BURKE, 2003, pp. 126-7; “Este grande homem [Fénelon] acreditava
igualmente nos direitos naturais dos povos e no poder da história. No plano
de um vasto levantamento do estado da França, concebido por ele para
a instrução do duque de Borgonha, teve o cuidado de incluir o passado
bem como o presente, os velhos costumes, as velhas instituições, como o
novo progresso da indústria e da riqueza nacional. Ele requer, em nome do
príncipe, a todos os intendentes do reino, informações detalhadas sobre
as antiguidades de cada província, sobre os antigos costumes e as antigas
formas de governo dos países reunidos à coroa” (THIERRY, 1842, p. 82).
17 “A obra teve três edições: 1727 (3 vol. in-fo), 1737 (6 vol. in-12) e 1752 (8
vol. in-12). A última é a menos incorreta” (ESMONIN, 1964, p. 101, n. 162).
18 “Quando o rei morre, uma querela começa entre os príncipes de sangue
e os legítimos. Dará origem a uma importante troca de calúnias de 1716
a 1717 que se encerra com o Edito de Fontainebleau em julho de 1717”
(CAUSIN, 2020, p. 17).
19 Recueil général des pièces touchant l’affaire des princes légitimes et légitimés,
mises en ordre, Rotterdam, s. n., 1717, 4 vol., in-12. Ver CAUSIN, 2020.
21
Boulainvilliers e seu Ensaio
Pelo que foi dito, podemos concluir que Boulainvilliers,
por mais distante da corte que se encontrasse, ou por mais
desvinculados com ela que sejam diversos de seus interesses,
ela pautou consideravelmente sua produção intelectual. Com
efeito, é hora de falarmos da obra de Boulainvilliers.
a
oBra de
Boulainvilliers
Podemos dizer que toda a obra de Boulainvilliers
foi impressa postumamente, se desconsiderarmos sua
participação na querela dos príncipes legítimos e um opúsculo
de título Carta de Hipócrates a Damageto [Lettre d’Hippocrate à
Damagète], cuja autoria é contestada (BROGI, 1993, p. 16, n.
4) e, no caso de ser dele, talvez tenha sido impresso sem seu
conhecimento (SIMON, 1973, p. v).
O grosso de sua obra é histórica e política e teve
publicação em um volume considerável entre 1727 e 1788
(ibidem). Diversas fontes nos permitem afirmar que o “sistema”
– caracterização dada por Montesquieu – que Boulainvilliers
erigiu nelas foi um marco na historiografia francesa.
Seus demais escritos tiveram publicação mais recente,
alguns manuscritos seguem inéditos e há até a possibilidade
de outros ainda serem descobertos. Sua tradução da Ética de
Spinoza, a primeira tradução francesa dessa obra, por exemplo, foi
publicada apenas 190720. Seus escritos especificamente filosóficos,
como seu Ideia de um sistema geral da Natureza [Idée d’un système
général de la Nature], foram editados ainda mais tardiamente, na
década de 1970 (BOULAINVILLIERS, 1973 e 1975).
Talvez a única das obras filosóficas de Boulainvilliers
que veio ao lume logo depois de sua morte, que circulava em
forma manuscrita durante sua vida, seja o Ensaio de metafísica
nos princípios de Spinoza [Essai de métaphysique dans les
principes de B. de S.], publicado em 1731. Esta certamente
contribuiu para que, ao lado da conta de historiador,
Boulainvilliers fosse tido também na de livre-pensador, ou
20 BOULAINVILLIERS, 1907. Não obstante, em um artigo ao qual
infelizmente não conseguimos acesso, Gianluca Mori (1994) questiona a
autenticidade da atribuição da tradução a Boulainvilliers.
22
Gionatan Carlos PaCheCo
libertino, ao longo do século XVIII. A celebridade de seu nome
fez com que esse fosse tomado de empréstimo para assinar
diversos escritos espúrios. Além disso, há o fato de que os
manuscritos legitimamente atribuídos disponíveis tampouco
são autógrafos, o que acrescenta dificuldade em estabelecer
uma bibliografia definitiva.
Das vicissitudes que rondam a publicação da obra
de Boulainvilliers, podemos dizer que houve a recepção de
parte dela no século XVIII, seguida de uma fase de relativo
ostracismo, particularmente após Revolução francesa (1789)
e, por fim, uma redescoberta mais recente, muito devida aos
esforços de Renée Simon21, que se desenvolve dos anos 1970
até os dias de hoje.
puBlicista
de classe
Boulainvilliers se insere na “República das letras”
como um historiador político da aristocracia antiabsolutista.
A chamada reação aristocrática do final do reinado de Luís
XIV já foi um lugar-comum, um consenso entre os estudiosos
(cf. ELLIS, 1986, 416). Se bem que suas ideias foram de todo
ofuscadas pelo brilho da Revolução Francesa (1789). Não
obstante, desde o século passado, uma retomada dos estudos
dessa corrente intelectual a revela muito mais ambígua e
controversa do que supúnhamos. Assim, tal categorização
não nos diz muito além de um certo grupo de escritores
com uma certa proximidade social e intelectual. Em suma, a
ambiguidade e a dificuldade que encontramos em categorizar
autores como Fénelon, Saint-Simon e Boulainvilliers é efetiva,
mas não nos impede de traçarmos uma precária “unidade por
analogia”.
Segundo Henry Sée, as ideias de Boulainvilliers “apresentam
uma notável analogia com as concepções de Fénelon e do duque
21 Além das Œuvres philosophiques de Boulainvilliers, Simon publicou
três estudos sobre Boulainvilliers: “A la recherche d’un homme et d’un
auteur (Paris, 1941); Henry de Boulainviller, historien, politique, philosophe,
astrologue, 1658-1722 (Paris, 1941); Un révolté du grand siècle (Garches,
1948)” (BURANELLI, p. 475, n. 2).
23
Boulainvilliers e seu Ensaio
de Saint-Simon”, sendo mais marcadamente contrárias ao
absolutismo que as deles. Uma pauta comum é o restabelecimento
dos Estados Gerais, que devolveria uma influência política à
classe a que os três pertenciam. Boulainvilliers, porém, “menos
aristocrático que Saint-Simon, mais favorável que Fénelon às
liberdades políticas, foi um dos primeiros escritores preocupados
com a condição das classes populares” (SÉE, 1924, p. 272).
História filosófico-política
Se o que podemos chamar de reação aristocrática
antimonárquica envolve certo nível de imprecisão, a ponto
de sua própria existência ser questionada (cf. DOYLE,
1972), a própria função de historiador, na época em que
Boulainvilliers escreve, ainda não está claramente definida.
Até o século XVII a História não era uma disciplina em si
mesma. Era vista mais como um ramo ou um auxiliar da
Retórica, e se dividia em história sagrada, a da Igreja, e
história profana, a dos antigos. Podemos dizer também
que estava “dividida em duas atividades intelectuais que
se ignoram quase sempre ou se desprezam: a erudição e a
filosofia” (FURET, 1986, p. 109). A erudição histórica estava
nas mãos dos “antiquários: ou seja, especialistas do antigo,
e naturalmente da Antiguidade, escondidos por detrás de
conhecimentos estreitos, esotéricos, eruditos, e manejando
línguas desaparecidas” (ibidem).
A atividade do antiquário nos trouxe a noção de fato
histórico, isto é o “material constitutivo da história”, mas “não a
história, como a entende o século XIX” (ibid.), pois era acrítica
e preocupada em não ameaçar os textos sagrados. A cronologia
profana embaraçava a bíblica, constituindo assim um campo
minado: “Bossuet [1627-1704] ainda escreve uma História
Universal, mas teve uma certa dificuldade em fazer entrar na
cronologia sagrada a história profana dos povos antigos da
qual as descobertas dos ‘antiquários’ alargam doravante os
limites” (ibid., p. 110). Não é à toa que a publicação, em 1678,
da História Crítica do Antigo Testamento, custa a Richard Simon
sua expulsão da ordem dos oratorianos.
24
Gionatan Carlos PaCheCo
No século XVII, o colégio do oratório de Juilly – onde
Simon ensinava quando Boulainvilliers era aluno – é o melhor
e mais precoce exemplo da inclusão da história no currículo
como disciplina independente, além disso, cujos conteúdos
envolviam a história nacional, ou seja, “emancipados da
relação exclusiva que mantinham com a Antiguidade” (ibid., p.
117). Por outro lado, este também é o século do racionalismo
individualista, de reedições do ceticismo de Montaigne,
enfim, dos precursores dos libertinos. Estes são muito bem
representados em Pierre Bayle (1647-1706), que afirmava ler
livros de história para descobrir os preconceitos dos autores,
não podendo se fiar nos fatos relatados. Tal “derrotismo
histórico”, segundo Furet, está muito ligado à obsessão pelo
presente, visto como produto melhor acabado de uma linha
temporal que se sucede desde a antiguidade, em suma, com a
ideia de progresso.
O que o século XVIII trará de novo, segundo Furet, é
o que podemos chamar de história filosófica. Não se trata tão
somente de narrar os fatos sucessivos, “a história filosófica
tem outro pólo conceptual para além dos progressos da
civilização: é a origem da nação. Os franceses do século XVIII
procuram na sua história nacional simultaneamente a fonte
do seu ‘contrato’ com o rei e a legitimidade da nobreza” (ibid.,
p. 114)22. Aqui que inserimos Boulainvilliers, um historiador
filósofo-político.
um
marco da Historiografia francesa
Boulainvilliers foi um marco na historiografia francesa.
Afirmamos isso com base no testemunho de várias autoridades
de períodos históricos distintos.
Por exemplo, Augustin Thierry (1795-1856), que
é tido como um dos primeiros historiadores a se valer de
22 Mesmo quando, mais adiante no século XIX, a história passa a ser posta
como ciência no mesmo sentido das ciências naturais, para estabelecer
um consenso provisório sobre o sentido de história, “Lavisse e Seignobos
retomam os dois temas da história filosófica desde o século XVIII: a história
é a nação; a história é a civilização” (FURET, 1986, p. 133).
25
Boulainvilliers e seu Ensaio
fontes originais em seus estudos. Apesar da antipatia para
com Boulainvilliers e suas teses23, ao compará-lo com a
teoria de François Hotman (1524-1590) – esta escolha
de comparação distante parece acentuar a má vontade
em dizer o que diz –, não deixa de afirmar que sua obra
“marcou um verdadeiro progresso pelo talento de análise,
pela profundidade, pela faculdade de discernir os problemas
fundamentais e os pontos delicados de nossa história” (cf.
THIERRY, 1842, pp. 89-90). Thierry caracteriza as Cartas
sobre os antigos parlamentos da França [Lettres sur les anciens
Parlements de France] como um trabalho “inteiramente novo
para a época, que desde então serviu como base ou tema
para muitos ensaios do mesmo gênero; ele jamais foi refeito
sobre as fontes com um desempenho comparável” (ibidem,
p. 91). No momento em que Thierry escreve, Boulainvilliers
é “mais conhecido de nome que por suas obras” (ibid., p.
83), “seu renome de publicista se estabeleceu à parte de seu
sistema” (ibid., p. 91), e resume a descrição de suas obras da
seguinte forma:
Suas conclusões, um tanto parciais, suas interpretações, um
tanto errôneas, abriram o caminho que levaria à verdade. Foi
uma revolta contra o curso das coisas, um protesto impotente
contra as tendências sociais da civilização moderna; mas
essas tendências estavam lá, pela primeira vez, claramente
reconhecidas e apontadas. (THIERRY, 1842, pp. 90-1).
De fato, a obra de Boulainvilliers suscitou um extenso
debate que se arrastou até as portas da Revolução. Porém,
tornou-se um lugar-comum, no qual não era necessário
se deter. O abade Dubos (1670-1742), que tomou parte na
discussão propondo uma inversão do sistema de Boulainvilliers,
segundo Montesquieu, incidiu em grandes erros, “porque teve
mais tempo sob os olhos o conde de Boulainvilliers do que seu
assunto” (2000, p. 659). Segundo Montesquieu, ambos eram
23 Esta atitude, porém, de forma alguma é nova. “Quando, no século
XIX, os historiadores começaram a descrever Boulainvilliers como um
aristocrata reacionário, estavam efetivamente seguindo uma tradição
inaugurada por seus críticos do século XVIII” (ELLIS, 1986, p. 418).
26
Gionatan Carlos PaCheCo
extremos a serem evitados, opinião que, justa ou não, mostra
a influência incontornável da obra de Boulainvilliers24.
História
e legitimação social
A seguir faremos uma exposição sumária do conteúdo
das obras históricas e políticas de Boulainvilliers. As obras
políticas de Boulainvilliers não são nosso foco na presente
publicação, e uma análise satisfatória delas extrapolam o
objetivo deste ensaio introdutório, e mesmo as nossas atuais
possibilidades. Assim, a base da exposição que se segue, por
sua vez, já é um resumo. Nomeadamente, faremos o resumo
do que Foucault resume da obra de Boulainvilliers em seus
cursos de 1975-1976, publicados em 1997 no livro que leva o
título: Em defesa da sociedade (FOUCAULT, 1999). Muitos dos
fatos discutidos fazem parte do currículo escolar francês, ao
passo que nos são praticamente alheios, o que, acreditamos,
aumenta a utilidade da contextualização a seguir.
Lembremos, antes de tudo, que a obra de Boulainvilliers
sobre a história da França, inicialmente, fez parte de um
levantamento de informações realizado pelos intendentes
das províncias. Levantamentos desse jaez constituíram uma
base quantitativa de fontes comuns para os estudiosos, de
sorte que fizeram o século XVIII especialmente propício para
a afirmação da história, não somente como disciplina, mas
como campo de disputa da legitimidade política. Substituindo
o direito divino dos príncipes, a história “tornou-se depositária
do contrato original, dos direitos dos Franceses e dos segredos
do pacto social” (FURET, 1986, p. 177).
A finalidade deste levantamento era dar conta da
situação atual da França, de suas instituições e economia,
24 “O conde de Boulainvilliers e o abade Dubos elaboraram cada um
um sistema, o primeiro dos quais parece ser uma conjuração contra o
terceiro estado e o outro uma conjuração contra a nobreza. Quando o Sol
deu a Faeton seu carro para conduzir, lhe disse: ‘Se subires alto demais,
queimarás a morada celeste; se desceres baixo demais, reduzirás a terra
a cinzas. Não vá por demais à direita, cairás na constelação da Serpente;
não vás por demais à esquerda, cairás na do Altar: conserva-te entre as
duas’” (MONTESQUIEU, 2000, p. 624).
27
Boulainvilliers e seu Ensaio
bem como dos costumes da população, servindo assim
para a instrução do duque de Borgonha. A apresentação de
Boulainvilliers, a “depuração daqueles enormes relatórios”,
é complementada por “reflexões críticas e com um discurso:
o acompanhamento necessário, pois, daquele enorme
trabalho administrativo de descrição e de análise do Estado”
(FOUCAULT, 1999, p. 152). Foucault caracteriza esse
discurso como “assaz curioso, uma vez que se trata, para
esclarecer o estado atual da França, de um ensaio sobre o
antigo governo da França, até Hugo Capeto” (ibidem, pp.
152-3). Segundo Foucault, ali o objetivo de Boulainvilliers é
“valorizar as teses favoráveis à nobreza” (ibid.). Entre essas
teses, aponta os seguintes objetivos: contra a venalidade dos
cargos, a favor do direito de jurisdição e de um lugar para a
nobreza no Conselho do rei.
Porém, para Foucault, o que se sobressai como
objetivo do discurso é um protesto contra a influência da
máquina administrativa, criada pelo rei, no “saber dado ao
rei, e depois ao príncipe” (ibid., pp. 153-4). Esse alvo, “o
mecanismo de saber-poder” (ibid., p. 155), é generalizado a
“todos esses historiadores ligados à reação nobiliária”, pois
se trata de vincular o aparato burocrático ao absolutismo
– o que faz sentido, uma vez que a entrega de funções de
estado a uma elite plebeia é de fato um golpe proposital na
potencial ameaça que era a alta nobreza. O que é um tanto
paradoxal é uma tese que ataca a burocratização da educação
do príncipe ser veiculada justamente numa exposição da
facção antiburocrática para a educação do príncipe. Isso
parece configurar uma crítica à educação do rei atual para
o rei que está por vir. Neste caso, remete a conversa que
mencionamos anteriormente entre Saint-Simon e o duque
de Borgonha, na qual lamentavam a educação do rei. Em
suma, o paradoxal expressa a complexidade das tensões
entre frações da elite francesa do final do século XVII,
sobre a qual não é necessário nos deter e excedem nossas
pretensões aqui.
28
Gionatan Carlos PaCheCo
a
nação tenciona a História
Estamos falando de uma explosão do “próprio
funcionamento do saber histórico” (ibid., p. 159). Esta
especulação ligeira e interessante de Foucault parece exagero,
bem como parece não nos dizer muito. Por um lado, podemos
pensar na pobre história do saber histórico em comparação
com a existência de humanos em relações de poder entre si;
por outro, nas condições materiais que permitiram, talvez
pela primeira vez, uma elite decadente e impotente imprimir
sua própria versão da história. Porém, enfim, é fato que essa
nobreza se opunha ao que o “Estado” pensava sobre si próprio
e, se (e somente se) concedermos a premissa foucaultiana de
que “a história sempre fora apenas a história que o poder
contava sobre si mesmo” (ibid.), precisamos concordar em ver
na obra de Boulainvilliers uma explosão da história.
Lembremos, a história passa a ser a fonte de legitimidade
do “contrato social”. Foucault coloca o direito como centro
gravitacional desse confronto interno da elite. Porém, ele traz
essa noção com certa ambiguidade.
Por um lado, o direito, ou o saber jurídico, é “o saber
que é preciso descartar” (ibid., p. 156) segundo a antiga
nobreza. Entendemos com isso que a educação do rei, voltada
ao saber que vai ao do tribunal ao do escrivão, tornaria o rei
um par inter pares, não com a corte, mas com os burocratas
e a nobreza de robe. Este ponto ganha peso ao considerarmos
uma das peculiaridades desta aristocracia francesa, a saber,
que ao longo de “toda a história moderna da França quase
nunca nos deparamos com nomes de juristas pertencentes à
noblesse d’épée” (ELIAS, 2001, p. 197).
Por outro lado, este “discurso da nobreza reacionária do
final do século XVII” (FOUCAULT, 1999, p. 160), representada
pela obra de Boulainvilliers, vai além de sua necessidade
pedagógica do direito e de seu funcionalismo institucional.
Trata-se principalmente da relação do direito com o próprio
fundamento do Estado e do exercício do poder; do direito,
não enquanto conjunto de convenções e procedimentos
29
Boulainvilliers e seu Ensaio
regulados, mas como expressão superficial do jogo de forças
sociais latentes. Esta configuração ambígua ou dupla da
noção de direito na exposição de Foucault, não obstante, não
nos impede de reconhecer que com este discurso “aparece um
novo sujeito da história” (ibidem).
O novo sujeito histórico que emerge a partir do discurso
de Boulainvilliers é aquilo:
[...] que um historiador daquela época denomina uma
“sociedade”: uma sociedade, mas entendida como associação,
grupo, conjunto de indivíduos reunidos por um estatuto; uma
sociedade, composta de certo número de indivíduos, que tem
seus costumes, seus usos e até sua lei particular. Essa alguma
coisa que fala doravante na história, que toma a palavra na
história e da qual vai se falar na história, é o que o vocabulário
da época designa com a palavra “nação”. (ibid.).
O direito toma parte na própria constituição da categoria
de nação, porém tido “muito mais como regularidade estatutária
do que como lei estatal” (ibid., p. 161). Nesse sentido, a nação
integra o estado, mas não se define por ele nem a ele se limita
institucional ou territorialmente. Assim como, mais tarde na
França, a revolução burguesa tomará as bandeiras de liberdade,
igualdade, fraternidade como invólucro dos interesses por
privilégios de uma determinada camada social, assim também
a reação da antiga aristocracia ao absolutismo real se vestirá de
nação, mas “é uma nação em face de muitas outras nações que
circulam no Estado e se opõem umas às outras” (ibid.). Talvez
com algum exagero, Foucault vê nisso o germe de diversos
conceitos fundamentais para o desenrolar histórico e político
dos séculos vindouros, entre eles o do nacionalismo do século
XIX, o de raça e, por fim, o de classe.
O saber histórico que emerge deste discurso, então,
é tomado como “instrumento de luta – no poder e contra o
poder” (ibid., p. 162), do qual se valerá tanto o pensamento
que chamamos de direita quanto o de esquerda (ibid., p.
163). Mais tarde, também o poder régio apropria-se desse
discurso, de modo que “a partir de 1760, vemos esboçar-se
instituições que seriam, grosso modo, uma espécie de Ministério
30
Gionatan Carlos PaCheCo
da História” (ibid., p. 164, grifo do autor)25. Não por acaso,
ao consultarmos o verbete nação da Enciclopédia, vemos
uma definição cujos critérios – principalmente a delimitação
territorial e centralização jurídico-governamental – são de todo
contrários àquela que nos referimos antes; trata-se, pois, nas
palavras de Foucault, de uma “definição estatal”.
a constituição do feudalismo franco
Boulainvilliers, em seu Estado da França, mais do
que relatar a situação atual do país a partir dos documentos
produzidos pelos intendentes das províncias, faz uma análise
histórica que remete às origens deste país. Em sua exposição,
Foucault separa três temas ou momentos históricos sobre os
quais a análise de Boulainvilliers se detém. Em primeiro lugar,
a invasão franca da Gália e/ou decadência da dominação
romana. Em segundo, quem eram esses invasores francos. Por
último, a decadência dos próprios francos.
Antes de tudo, entra a caracterização da Gália de
quando o invasor a encontrou. Aqui trata-se de desfazer “a
velha narrativa histórico-lendária do século XVII, segundo
a qual os francos, gauleses que haviam deixado a pátria,
teriam almejado em dado momento voltar para ela” (ibid.,
pp. 171-2). Contrariando o mito da Gália feliz, esquecida das
violências da dominação romana e herdeira do direito romano,
Boulainvilliers a descreve como uma “terra de conquista”
na qual “o absolutismo romano, o direito régio ou imperial
instaurado pelos romanos, não era de modo algum, nessa
25 Eis a sequência do parágrafo: “Primeiro, por volta de 1760, criação de
uma Biblioteca das Finanças que deve fornecer a todos os ministros de Sua
Majestade os memoriais, informações e esclarecimentos necessários; em
1763, criação de um Arquivo de Documentos para aqueles que quisessem
estudar a história e o direito público na França. Enfim, essas duas instituições
são reunidas, em 1781, numa Biblioteca de Legislação – notem bem os termos
–, de Administração, História e Direito Público. E um texto um pouco posterior
diz que essa biblioteca é destinada aos ministros de Sua Majestade, àqueles
que são encarregados de alguma parte da administração pública geral, e a
eruditos e jurisconsultos que, encarregados pelo Chanceler ou pelo Ministro
da Justiça de trabalhos e de obras úteis à legislação, à história e ao público,
serão pagos à custa de Sua Majestade” (ibidem).
31
Boulainvilliers e seu Ensaio
Gália, um direito aclimatado, aceito, acatado, que formava
um só corpo com a terra e o povo” (ibid., p. 172). Ou seja,
não se tratava de uma soberania, nem de absorção cultural:
o direito romano era, isso sim, “um fato de dominação”, e
apenas notado na medida em que esta se impunha.
Tratava-se, pois, de uma Gália submetida ao jugo
externo. Antes, a única força de resistência gaulesa aos
romanos foi a aristocracia guerreira. Esta, então, foi
desarmada e rebaixada econômica e politicamente. Outra
medida foi “uma elevação artificial da ralé, a quem lisonjeiam,
diz Boulainvilliers, com a ideia de igualdade” (ibid., p. 173).
Tais medidas se completam em um mecanismo social, usual
e desenvolvido “na república romana desde Mário até César”,
onde a igualdade se torna igualdade de impotência frente
ao governo despótico. A conclusão desta primeira fase de
dominação se dá “sob Calígula, com o massacre sistemático
dos antigos nobres gauleses que resistiam tanto aos romanos
quanto a esse rebaixamento que caracterizava a política deles”
(ibid., p. 172-3).
Em seguida, trata-se de erigir uma nova nobreza, desta
vez romana. Essa nobreza não é militar, mas administrativa – o
que, é claro, dá azo a um paralelo com a ascensão da nobreza
de robe na era moderna. Essa nobreza romana é caracterizada
pela aplicação do direito e da língua romana. Tal descrição
serve para caracterizar o absolutismo romano como alienígena
e violento frente a Gália, de sorte a não servir de precedente,
menos ainda de fundamento, para o absolutismo francês do
final do século XVII.
Descrita essa nobreza romana desmilitarizada,
Boulainvilliers aponta para ela como causa de sua própria
derrocada. Desprovida de meios próprios para sua defesa,
esta nobreza se viu obrigada a recorrer a tropas mercenárias
– os paralelos continuam: da mesma forma que a França se
viu obrigada a lançar mão desse recurso durante a recente
Guerra dos Trinta Anos. Assim, o aumento dos impostos
em moeda para pagar essas tropas, seguido tanto de uma
32
Gionatan Carlos PaCheCo
desvalorização quanto escassez da própria moeda, resulta em
“um empobrecimento geral” (ibid., p. 174).
A primeira questão da análise de Boulainvilliers,
destacada por Foucault, é encontrar as causas internas da
derrota romana. Não se trata de avaliar a legitimidade do
regime. Assim, a análise da clássica questão histórica e política
sobre a prosperidade e a decadência do Império Romano é,
“pela primeira vez, uma análise de tipo econômico-político,
[…]. É aí que o problema das causas da decadência dos
romanos se torna o modelo mesmo de um novo tipo de análise
histórica” (ibid., p. 175).
A segunda questão é caracterizar a força deste invasor,
que menos instruído e numeroso logrou derrotar o maior dos
impérios até então. Tal força dos francos é apontada como o
exato oposto da fraqueza dos romanos, a saber, a “existência
de uma aristocracia guerreira” (ibid., p. 176). Neste passo a
figura de Clóvis é importante, pois ele “era a um só tempo
o árbitro civil, o magistrado civil escolhido para solucionar
as contendas, e depois também o chefe de guerra” (ibid.).
Este rei, chefe de guerra, porém, não se tornou o proprietário
das terras, que foram divididas entre os guerreiros a título
individual.
Então, o regime franco se consolida. Desarma os gauleses
e forma uma aristocracia “que é uma casta inteiramente
germânica” (ibid. p. 180). A ocupação efetiva de suas terras
é deixada aos gauleses, “já que, precisamente, os germanos
ou os francos não vão ter outra ocupação além de guerrear”
(ibid.). O imposto deixa de ser cobrado em moeda e passa
a ser cobrado em espécie, o que faz essa divisão social – “o
franco com o engenho do gaulês e este com a segurança que
o primeiro lhe proporcionava” (ibid.) – prosperar melhor do
que quando do regime romano.
Temos aí o núcleo daquilo que Boulainvilliers, como
vocês sabem, inventou: isto é, o feudalismo como sistema
histórico-jurídico que caracteriza a sociedade, as sociedades
europeias, desde os séculos VI, VII, VIII até o século XV
aproximadamente. Esse sistema do feudalismo não havia
33
Boulainvilliers e seu Ensaio
sido isolado nem pelos historiadores nem pelos juristas,
antes das análises de Boulainvilliers. É essa felicidade de
uma casta militar sustentada e mantida por uma população
camponesa que lhe paga tributos em produtos agrícolas que
é, de certo modo, o clima dessa unidade jurídico-política do
feudalismo. (Ibid., pp. 180-1).
liBerdade,
igualdade e feudalismo
Um problema deveras complexo, que emerge do
discurso de Boulainvilliers, é um paradoxo que se reedita até
os dias de hoje no seio das elites. Talvez se resuma como o
“problema da igualdade e da desigualdade”. Tal paradoxo
é, por um lado, o de quererem, contra o povo em geral,
manter sua distância e direitos ilimitados e, por outro lado,
contra o poder político central, a necessária valorização das
“liberdades fundamentais” (ibid. p. 170). “Daí a complexidade
do problema e daí, acho eu, o caráter infinitamente mais
elaborado da análise que vocês encontram em Boulainvilliers,
se comparada com aquela que encontrávamos várias
décadas antes” (ibid. p. 171). Contudo, ressalta-se que esse
protagonismo de Boulainvilliers não deve ser exagerado,
e o devemos tomar, com Foucault, apenas como “ponto de
referência e de perfil geral válido provisoriamente” (ibid.)
para toda uma constelação de historiadores de seu naipe.
A aristocracia franca possuía as terras não apenas como
proprietários, mas também como soberanos em seus limites.
Ali, sua vontade era a lei. Assim, tal posse territorial era o
fundamento da igualdade entre o rei e os seus pares, bem
como da desigualdade entre a classe nobre e a plebe. Remota
e resumidamente, esta seria a origem do feudalismo. Trata-se,
então, de “uma sociedade em que o poder é mínimo, ao menos
em tempo de paz, e por conseguinte, a liberdade máxima”
(ibid., p. 177).
Essa liberdade, longe de ser a liberdade da igualdade,
é uma liberdade da dominação, “do egoísmo, da avidez, do
gosto pela conquista e pela rapina”, em suma: “é uma liberdade
da ferocidade” (ibid.). Neste ponto Foucault se refere a
34
Gionatan Carlos PaCheCo
etimologia da palavra “franco”, feita por Freret, caracterizado
por ele como “um dos sucessores de Boulainvilliers” (ibid.).
Segundo Freret, longe do atual significado de “livre”, “franco”
etimologicamente remete a feroz, “tendo exatamente as
mesmas conotações que a palavra latina ferox, tem todos os
sentidos dela, diz Freret, favoráveis e desfavoráveis” (ibid.).
Dotado de um amor à liberdade, tão valente quanto infiel em
sua avidez, impaciente e inquieto: “são esses os epítetos que
Boulainvilliers e seus sucessores utilizam para descrever esse
novo grande bárbaro louro, que faz assim, através de seus
textos, sua entrada solene na história europeia, quero dizer
na historiografia europeia” (ibid., p. 178).
o vaso de soissons e o nascimento do monarca aBsoluto
A terceira questão, da análise de Boulainvilliers
destacada por Foucault, é as causas da decadência desses
senhores feudais. A ascensão e a queda desta aristocracia
franca é ilustrada pela história do vaso de Soissons. Esta
história é um lugar comum “de discussões históricas infinitas”,
a qual Foucault dá por certo que seus alunos “aprenderam
em seus livros escolares”. Trata-se de uma história pinçada
em Grégoire de Tours (538-594), e seria “uma invenção de
Boulainvilliers, de seus predecessores e de seus sucessores”
(ibid., p. 179). Em resumo, ela conta o seguinte:
Depois de uma batalha, Clóvis, na qualidade de
magistrado civil, organiza a divisão do butim. Ele vê um certo
vaso de seu gosto e diz que o queria. Um guerreiro protesta,
Clóvis não teria direito a nenhuma preeminência, mesmo
sendo o rei: “não tens nenhum direito de posse primeira e
absoluta sobre o que foi ganho na guerra” (ibid.).
Esta parte da história ilustra a fase de consolidação
do regime feudal, no qual o rei é chefe de guerra e goza
de poder absoluto enquanto ela dura. Finda a guerra, o rei
passa a ser tão somente um magistrado civil que precisava
ser eleito sem ter direito de sucessão. O caso é que se trata
de uma ocupação, a qual justificadamente requer continuada
35
Boulainvilliers e seu Ensaio
mobilização militar. Em tal período o rei acumula ambas as
funções, de magistrado civil e de chefe de guerra. Esse estado
de coisas, porém, prolonga-se, “mas não sem problemas,
não sem dificuldades, não sem revoltas de parte justamente
dos francos, dos guerreiros francos, que não aceitam que a
ditadura militar se prolongue de certo modo até na paz” (ibid.,
p. 182). Para manter seu poder, o rei recorre a mercenários
“que ele vai arrebanhar precisamente nesse povo gaulês que
deveria ter deixado desarmado, ou ainda no exterior” (ibid.).
Isso resulta em uma pressão sobre a aristocracia guerreira que
é ilustrada pela sequência da história do vaso de Soissons: o
ressentido Clóvis está passando em revista suas tropas quando
reconhece o guerreiro que lhe impediu a posse do tal vaso
de Soissons: “pegando seu grande machado, o bom Clóvis
racha o crânio do guerreiro, dizendo-lhe: ‘Lembra-te do vaso
de Soissons’” (ibid.). Ou seja, servindo de seu posto militar,
resolve um “problema civil. O monarca absoluto nasce, pois,
no momento em que a forma militar do poder e da disciplina
começa a organizar o direito civil” (ibid.).
do
BárBaro ao cruzado
Essa conjuntura ganha maior contorno ao analisarmos o
papel de outra fração social, aqueles que efetivamente saíram
perdendo com a ocupação franca: a antiga aristocracia gaulesa.
Com o fim do Estado romano, destituída de suas terras, ela
“tinha um único abrigo, que era a Igreja” (ibid., p. 183). Mais
do que se refugiar, ela “desenvolveu o aparelho da Igreja”,
“aprofundou, estendeu sua influência sobre o povo”, ao mesmo
tempo que cultivou “seus conhecimentos de latim” e do “direito
romano, que era um direito de forma absolutista” (ibid.). Por
outro lado, a nobreza franca, que falava línguas germânicas
e tinha como única função a militar, ignorava o latim “no
momento em que todo o novo sistema de direito estava sendo
implantado por ordenações em latim” (ibid., p. 184).
Segundo Foucault, “Boulainvilliers faz toda uma
história da educação da nobreza” (ibid.), mostrando como
36
Gionatan Carlos PaCheCo
essa se deixou levar pela influência da Igreja – ela aos poucos
foi deixando de ser aqueles grandes guerreiros ávidos por
conquistar pela força tudo o que a terra tinha para lhes
oferecer, para se tornar cavaleiros preocupados com o alémmundo:
As Cruzadas, como grande caminhada para o além, são para
Boulainvilliers a expressão, a manifestação do que se passava
quando essa nobreza ficou inteiramente voltada para o
mundo do além, enquanto no lado de cá, ou seja, em suas
próprias terras, no momento em que estavam em Jerusalém,
que é que se passava? O rei, a Igreja, a antiga aristocracia
gaulesa manipulavam as leis em latim que deviam espoliálos de suas terras e de seus direitos. (Ibid., p. 184).
Este, então, é o resumo, do resumo de Foucault, da
história contada por Boulainvilliers. Vemos nele as sementes
de uma defesa da existência de uma aristocracia guerreira,
de uma crítica ao absolutismo monárquico e, por fim, de uma
proposta para a própria nobreza a respeito de sua educação
e de como ela deve se apropriar do próprio passado. No
entanto, não é a narrativa de Boulainvilliers sobre os eventos
e suas causas que o permitem constituir “um campo históricopolítico”, mas suas ferramentas analíticas.
a
guerra como cHave de leitura do social
Antes vimos que seu discurso é o primeiro discurso do
súdito sobre o poder, emergindo desse movimento a noção
de sociedade ou nação como sujeito histórico. É preciso, antes
de mudarmos de assunto, descrever a chave interpretativa de
Boulainvilliers.
A chave de inteligibilidade do discurso históricopolítico de Boulainvilliers é a guerra. Todo o corpo social ou
está em uma guerra, ou estruturado segundo o resultado
de uma. Antes de Boulainvilliers, a guerra não passava de
um episódio violento que interrompia o funcionamento do
direito, muitas vezes sendo o caminho pelo qual se vai de
um sistema de direito para outro. Agora, ao invés de uma
ruptura no direito, a guerra o envolve por completo. O corpo
37
Boulainvilliers e seu Ensaio
social é um permanente jogo de forças interessadas, e só pode
ser entendida por meio de elementos que o traduzem em seu
funcionamento, isto é, em termos de guerra. Não há espaço
para se falar em indivíduo ou em direito natural, entidades de
todo tipo fictícias frente ao corpo social: o indivíduo só é algo
em relação a um grupo ou corpo político; o direito natural
não é historicamente localizável. Assim, também a guerra
generalizada de Boulainvilliers se distingue da hipotética
guerra hobbesiana de todos contra todos, na medida “que vai
percorrer tanto todo o corpo social quanto toda a história do
corpo social; mas não, é evidente, como guerra dos indivíduos
contra os indivíduos, mas como guerra de grupos contra
grupos. E é essa generalização da guerra que é”, segundo
Foucault, “característica do pensamento de Boulainvilliers”
(1999, p. 194). Ainda segundo Foucault, a guerra, não como
uma anomalia do social, mas seu princípio de inteligibilidade,
está presente pela primeira vez em Boulainvilliers e, “a partir
daí, em todo o discurso histórico” (ibidem, p. 195), de sorte
que:
[...] se Clausewitz pôde um dia dizer, um século depois de
Boulainvilliers e por conseguinte dois séculos depois dos
historiadores ingleses, que a guerra era a política continuada
por outros meios, é porque houve alguém que, no século
XVII, na virada do século XVII para o XVIII, pôde analisar,
expor e mostrar a política como sendo a guerra continuada
por outros meios. (Ibid., p. 198).
Foucault afirma que tanto o cálculo político quanto a
narrativa história, em Boulainvilliers, apesar de não terem
a mesma finalidade, possuem um mesmo objeto, a saber, as
relações de força constitutivas do jogo do poder: “Logo, temos
em Boulainvilliers, creio eu, pela primeira vez, um contínuo
histórico-político” (ibid., p. 202). Esta continuidade históricopolítica “vai fazer com que, daí em diante, falar da história e
analisar a gestão do Estado poderá se fazer segundo o mesmo
vocabulário e segundo o mesmo gabarito de inteligibilidade
ou de cálculo” (ibid., p. 204).
38
Gionatan Carlos PaCheCo
História
cíclica: contra o natural aBstrato
Foucault, entre as ideias de Boulainvilliers que ele vê
como inéditas até então, cita “a ideia de uma história cíclica”
(ibid., p. 230). Um exemplo disso são as causas da formação
do Estado francês, causas de decadência e de ascensão, que
são apontadas em seu potencial de repetição. A ideia de
história cíclica, contudo, não seria algo de novo no sentido de
recorrer à história como fonte de exemplos, isto é, ao passado
para entender o presente e o que pode ser o futuro. Sua
novidade, digamos assim, está nas implicações de sua visão da
constituição do tecido social, suas revoluções e reconstituições,
como cíclica. Mais do que ser uma crítica avant la letre de um
positivismo histórico, ou de uma dialética teleológica, é uma
crítica, em primeiro lugar, é claro, à linearidade da sucessão
cronológica teológica (criação, queda, apocalipse); mas,
muito mais do que isso, é uma base crítica às noções de estado
natural, do homem natural, as quais serão fundamentais nas
teorias do direito no século XVIII.
O homem natural é o selvagem pré-social e abstrato
que descobre em si a potencialidade de trocar com outros
selvagens, abrindo assim uma picada para fora de sua
selvageria. “No fundo, esse selvagem, nesse pensamento
jurídico do século XVIII, bem como no pensamento
antropológico dos séculos XIX e XX, é essencialmente o
homem da troca; é o trocador, o trocador dos direitos ou o
trocador dos bens” (ibid., p. 232).
A este “selvagem teórico-jurídico”, Boulainvilliers
contrapõem o bárbaro histórico-político26. Ao passo que o
selvagem tem por pano de fundo uma natureza à qual pertence,
natureza esta tão abstrata quanto ele próprio, o bárbaro “só
surge contra um pano de fundo de civilização, contra o qual
vem se chocar” (FOUCAULT, 1999, p. 233). O selvagem é
vetor de trocas, o bárbaro de dominação. O selvagem goza
de uma liberdade absoluta, e é cedendo (trocando) ela que
26 Sobre a distinção bárbaro-selvagem no pensamento francês do século
XVIII, ver FURET, 1986, pp. 201-sqq.
39
Boulainvilliers e seu Ensaio
busca segurança. Por outro lado, o bárbaro nunca cede a sua
liberdade, a qual ele mede por sua própria força e “quando se
atribui um poder, quando se atribui um rei, quando elege um
chefe, ele o faz não, em absoluto, para diminuir sua própria
parte de direitos, mas, ao contrário, para multiplicar sua
força” (ibidem, p. 234).
Assim, concluímos nosso resumo da exposição de Foucault
das ideias de Boulainvilliers. Recomendamos a sequência do
curso de Foucault para os interessados nas repercussões da
obra de Boulainvilliers na historiografia subsequente (ibid., pp.
236-sqq. Ver também: FURET, 1986, pp. 175-sqq).
a filosofia política spinozana em Boulainvilliers
A influência de Spinoza sobre as ideias políticas de
Boulainvilliers ainda se apresenta como um campo de estudos
em aberto. Remetemos, a este propósito, o leitor ao texto
seminal, “Boulainvilliers leitor de Spinoza” [Boulainvilliers lector
de Spinoza] (2007), de Laurent Bove. Trata-se, nas palavras
de Bove, “de um rápido estudo comparativo das abordagens e
textos de Boulainvilliers e Spinoza” (BOVE, 2007, p. 376). Neste
“rápido estudo” há comparações contundentes de algumas
noções, bem como de uma série de trechos textuais. A despeito
da brevidade, a conclusão geral é ousada: “O que Spinoza fez
em filosofia política (a saber, uma leitura ontológica e criativa
do pensamento de Maquiavel contra a teoria hobbesiana da
soberania) Boulainvilliers o fez no domínio da história” (ibidem,
p. 375). A metafísica que Boulainvilliers expõe em seu Ensaio
“organiza a reflexão política” implicitamente. Por outro lado,
Bove aponta como “o limite do ‘spinozismo’ de Boulainvilliers”
(ibid., pp. 382-3) o seu posicionamento individual no interior
do imaginário do corpo social que sua obra descreve.
Aos estudos feitos sobre o pensamento político de
Boulainvilliers, a influência de Spinoza passa despercebida,
ignorada, como no caso de Foucault, ou mesmo recusada, no
que nos parece um sinal de incompreensão, desculpável em todo
caso, do pensamento político spinozano. Porém, não passou
batida pelas análises de François Furet, quando ele comenta
40
Gionatan Carlos PaCheCo
o surpreendente que é vermos uma concepção de direito tão
desencantada como a vemos em Boulainvilliers. Vale citá-lo:
Para atenuar a surpresa que se sente ao encontrar num homem
tão representativo das ‘primeiras luzes’ uma identificação
tão tranquila do direito ao fato, é preciso lembrarmo-nos das
leituras assíduas que ele fez de Spinoza. A frequentação de
um sistema em que o direito de Deus se identifica com o seu
poder e em que cada indivíduo goza de direitos exactamente
proporcionais à sua força predispõe seguramente para que
não se coloque o direito no plano dos fins ideais. Tal como a
urbe spinozista, a sociedade de Boulainvilliers é a resultante
de uma pura relação de forças. A descrição histórica é para
ele apenas a tradução de uma situação empírica e deixa de
fora qualquer axiologia. (FURET, 1986, pp. 182-3).
a
vida de
MaoMé:
uma oBra teológico-política
Mathieu Marais (1665-1735), em seus Diários e Memórias
(1864, 1868), conta que conheceu Boulainvilliers muito bem
e que este lhe emprestou seus cadernos sobre a história de
Maomé. Na quarta-feira, dia 21 de janeiro de 1722, o conde
pediu seus manuscritos de volta. Na quinta-feira, ao recebê-los,
Boulainvilliers teria dito “eu mandei chamar meu encadernador
para encaderná-los todos juntos, pois se eu morro, eles serão
dispersados” (MARAIS, 1864, p. 227). De fato, na sexta-feira,
dia 23, Boulainvilliers morreu, não chegando a completar sua A
vida de Maomé [La vie de Mahomed], cujo relato se interrompe
na primeira hégira. Essa obra foi impressa pela primeira vez
em 1730, composta de três “livros”, sendo os dois primeiros
de Boulainvilliers, correspondentes aos cadernos emprestados
a Marais, e o terceiro, mais breve e de tom completamente
distinto, segundo a edição, composto por alguma “pessoa capaz”
não nomeada27.
27 La Vie de Mahomed par M. le comte de Boulainvilliers. Auteur de l’Etat
de la France et des Mémoires historiques qui l’accompagnent, Londres
[Amsterdam]: P. Humbert, 1730; (Disponível em: <https://gallica.bnf.fr/
ark:/12148/bpt6k108352s>). Aqui citaremos a segunda edição, que saiu
já em 1731, pelo mesmo Pierre Humbert, que é idêntica à publicada por
François Changuion, talvez apenas diferindo na lista de títulos de cada
livreiro adicionada ao final do volume.
41
Boulainvilliers e seu Ensaio
A vida de Maomé é uma obra que ocupa um lugar de
destaque na bibliografia de Boulainvilliers, mas que é ainda
mais notável em meio a todas as obras sobre o Islã e seu profeta
publicadas na França antes dela, e mesmo ao longo do século
XVIII. Já em 1731 foi traduzida para o inglês e publicada em
Londres, de sorte que, sabemos pelas bibliotecas coloniais,
sua difusão foi mundial (cf. KIDD, 2018, pp. 9-10). Trata-se
da primeira obra ocidental na qual se depreende uma imagem
positiva da religião islâmica e de seu profeta. Essa simpatia,
expressa na mais tardia das obras de Boulainvilliers, parece
destoar do subsequente pensamento iluminista, cujo carro
chefe era a denúncia de todas as superstições.
Os livres pensadores se valeram de Maomé e das
instituições islâmicas como um alvo, deixando no ar que
essas suas mesmas setas, velada ou indiretamente, perfuram
perfeitamente o corpo da Igreja e de suas instituições.
Tratava-se dum caso extremo das iniquidades produzidas pela
superstição, da forma mais vil de se sustentar no “asilo da
ignorância”, celebremente descrito no Apêndice da Primeira
Parte da Ética como a “vontade de Deus”. Encontramos esse
movimento elusivo mesmo no Tratado Teológico-Político de
Spinoza28. De todo modo, o interessante é notar que em
ambos não se trata nunca de simplesmente negar ou atacar a
religião, mas de entender a articulação entre ela e a política.
Assim, podemos dizer, com Yves Citton (2007), que o que
28 Já no Prefácio do TTP encontramos um movimento nesse sentido, justamente
em uma argumentação sobre a finalidade do Tratado, isto é, uma defesa da
liberdade de filosofar: “Na verdade (como se prova pelo que já dissemos e como
Cúrcio muito bem observou, no Livro IV, cap. X), não há nada mais eficaz do
que a superstição para governar as multidões. Por isso é que estas são facilmente
levadas, sob a capa da religião, ora a adorar os reis como se fossem deuses,
ora a execrá-los e a detestá-los como se fossem uma peste para todo o gênero
humano. Foi, de resto, para prevenir esse perigo que houve sempre o cuidado
de rodear a religião, fosse ela verdadeira ou falsa, de culto e aparato, de modo
que se revestisse da maior gravidade e fosse escrupulosamente observada por
todos. Entre os turcos, isso foi tão bem sucedido que até o simples discutir eles
consideram crime, deixando a inteligência de cada um ocupada com tantos
preconceitos que não há mais lugar na mente para a reta razão, nem sequer
para duvidar” (ESPINOSA, 2003, pp. 7-8, grifos nossos).
42
Gionatan Carlos PaCheCo
escandalizou a crítica nas respostas que obra de Boulainvilliers
recebeu em seguida de sua publicação, não foi tanto a imagem
positiva de Maomé, mas a filosofia política ali expressa, que
tem como pano de fundo o pensamento de Spinoza.
Boulainvilliers reage ao discurso ordinário que basicamente
era um ataque aos muçulmanos. Se opõe diretamente ao que
ele identifica como os dois princípios sobre os quais a discussão
sobre o islamismo se desenrola até então. “O primeiro é que não
se acha nenhum motivo razoável em tudo o que eles acreditam
ou praticam, de sorte que precisaram renunciar ao bom senso
[sen commun] para se submeter a ele” (1731, p. 267-8). Ou
seja, era de praxe negar ao muçulmano qualquer racionalidade,
empurrá-lo para fora da esfera do que é propriamente humano
– tática que ainda repercute no ocidente e em sua periferia sobre
este e outros “outros”. Boulainvilliers ataca, enquanto segundo
princípio da leitura do senso comum ocidental, a imagem de
Maomé como “um impostor tão grosseiro e tão bárbaro que
qualquer ser humano teria o dever e a capacidade de aperceberse de sua fraude e de sua sedução” (ibidem, p. 268). De fato,
o tema dos profetas e sua caracterização como impostores, que
remete à Idade Média, é muito presente no final do século XVII
e durante o século XVIII, cujo símbolo máximo é o mais famoso
dos manuscritos clandestinos, o Tratado dos três impostores
[Traité des trois imposteurs]29.
Os princípios políticos spinozanos, extensíveis aos
filósofos do Iluminismo Radical, são o de que todo poder
de um governo repousa sobre o poder da própria multidão,
e de que nenhum ser humano cede seu direito natural,
dissipando-o no interior do corpo político. É através de tais
princípios que Boulainvilliers operará inversões sutis, mas
potencialmente escandalosas, como o enxerto de democracia
radical na tradicional imagem do despotismo oriental.
29 Por vezes esse manuscrito levava o título de L’esprit de M. Benoît Spinoza,
e chegou a ser atribuído a Boulainvilliers (WADE, 1967), pois efetivamente
circulava agregado a textos de Boulainvilliers, marcadamente, o próprio
Ensaio. Com efeito, o conteúdo de A vida de Maomé vai na contramão desta
atribuição, bem como outras razões (ver BERTI, 1996, pp. 21-22).
43
Boulainvilliers e seu Ensaio
[...] se os príncipes têm a vantagem de se fazerem
obedecidos em toda a extensão de seus comandos, sem glosa,
interpretação ou demora, o povo tem, em compensação,
a liberdade de odiá-los e fazer-lhes justiça quando sua
paciência for forçada. Isso lança os primeiros na necessidade
de exercer uma dominação muito exata e muito severa, e
os outros em uma disposição muito iminente de mudar ao
acaso a forma de sua escravidão. É assim que suas máximas
mais ultrajantes de obediência passiva lutam e se destroem,
porque é impossível forçar a natureza. (1731, p. 49).
Enfim, devemos notar que ao invés de defender ou
atacar a religião, o que interessa a Spinoza e a Boulainvilliers
é esclarecer o mecanismo teológico-político em sua função
de constituir o social, e em seu fundamento na constituição
afetiva da natureza humana30. Se os sentimentos religiosos nos
são de certo modo inerentes e respondem a uma necessidade,
como a própria sociabilidade o é e faz, não devemos censurar
ou rir, devemos entender – parafraseando o 4§ do primeiro
capítulo do Tratado Político de Spinoza. Ao mesmo tempo, os
abusos dos sacerdotes, suas ambições de se elevar em suas
próprias hierarquias, bem como sobre o povo em geral, não se
fundamenta em nenhum afeto teológico, mas em paixões bem
mundanas. E é isso que nossos filósofos atacam: eles não são
estritamente antirreligiosos, tal posição é uma ingenuidade;
não obstante, são claramente anticlericais. Tal distinção nos
parece importante, pois o sentimento irreligioso por vezes é
tomado como chave de leitura das obras de Boulainvilliers, mas
que, tomada em sentido estrito, não nos explica seu propósito
em A vida de Maomé. Assim, quando Colonna D’Istria (1907),
por exemplo, usa exatamente a irrreligião como chave de
leitura, ou melhor, fio condutor da obra de Boulainvilliers,
se temos em mente a distinção entre a instituição e o campo
afetivo da religião, podemos nos valer de sua análise sem
grandes desacertos.
30 A este respeito Clare Carlisle nos diz que “Spinoza está revisando
radicalmente ideias religiosas, mas não rejeitando elas” (2005, p. 70).
Sobre esta e outras questões teológico-religiosas da filosofia spinozana, ver
CARLISLE, 2021.
44
Gionatan Carlos PaCheCo
astrologia:
encanto e desencanto
Boulainvilliers foi astrólogo. Este aspecto curioso de sua
atividade intelectual parece confrontar sua imagem de spinozano,
e mesmo desacreditá-lo como precursor das luzes radicais no século
XVIII. Porém, é um fato. Era conhecido na corte por essa atividade,
o duque de Noailles sendo um dos mais entusiasmados com ela,
segundo Saint-Simon que, por sua vez, lamentava que “um homem
tão culto tivesse se apaixonado por essas curiosidades proibidas”
(1928, p. 239). Moreri atribui esse engajamento de Boulainvilliers,
tanto ao seu gosto pessoal, quanto a complacência dele “para com
diversos amigos de grande distinção” (1995, p. 133). A descrição
de Boulainvilliers dada por Saint-Simon é generosa – nada comum
em suas Mémoires, onde a regra é o cáustico. Ele lamenta não o
ter procurado mais seguidamente para instruir-se, e explica que
“o medo de dar a impressão de que o procurava para conhecer o
futuro me deteve, e tantos outros, de frequentá-lo como gostaria”
(1928, p. 240). De fato, em sua biblioteca, Boulainvilliers “teria
reunido mais de 200 volumes sobre a filosofia hermética e sobre
as ciências ditas ocultas”31. Além disso, ele não só lia e praticava,
como também elaborou com certa desenvoltura novos métodos de
cálculos para esta “ciência”. De fato, a astrologia foi uma paixão de
Boulainvilliers, mas, Saint-Simon nos diz, “por mais apaixonado
que estivesse, teve a boa-fé de confessar que não se baseava em
qualquer princípio” (1914, p. 249).
Colonna D’Istria toma o ataque à religião por fio condutor
para o entendimento da obra de Boulainvilliers – dissemos isso
a pouco. Assim, D’Istria demarca a irreligiosidade mesmo nos
textos astrológicos de Boulainvilliers. Talvez, ele conjectura,
tais atividades “fossem simplesmente um véu conveniente
para as ideias que, apresentadas sob a forma de devaneios
bizarros, escapavam mais facilmente à perseguição” (1907,
31 FRANCK, 1875, p. 203. Esse informação parece provir da mesma fonte e
corrigir em um decimal uma nota de rodapé (de M. de Lescure) em Marais,
onde lemos: “Ao mês de outubro de 1811, fez-se a venda da biblioteca do
Sr. Javiel de Forges, cuja base provinha daquela do conde de Boulainvilliers.
Encontrou-se lá mais de 2,000 vol. sobre a filosofia hermética e sobre as
ciências ditas ocultas” (MARAIS, 1864, t. 2, p. 227, n. 1).
45
Boulainvilliers e seu Ensaio
p. xiii). As propriedades de ser historiador e ser astrólogo se
compatibilizariam frente a um inimigo comum: “a intervenção
divina que põem o milagre no lugar da lei” (ibidem, p. xviii).
O argumento de D’Istria tem lá seu peso. Ele nos diz
que basta analisarmos o “método novo que Boulainvilliers quer
introduzir no cálculo astrológico” para entendermos que a “ideia
de lei histórica se oculta sob a forma de ilusão astrológica”
(ibid., p. xx). Assim, essa disciplina não teria tanto a função de
fazer previsões místicas, mas de um instrumento para apontar a
necessária ciência do passado. Sem dúvida, uma ideia ortodoxa
que é uma pedra no sapato de um historiador que se quer
independente, é a ideia da criação do mundo e de sua datação por
meio das Escrituras. Em sua História do apogeu do Sol [Histoire
de l’apogée du Soleil], através de uma
[...] interpretação ousada da ideia de período, ele se aproxima
imperceptivelmente da ideia de eternidade do mundo, que
ele pode negar de passagem e como que para descargo de
consciência. Mas o resultado é alcançado: a ideia de criação
desaparece e a eternidade do mundo junta-se à eternidade
divina. A importância desta passagem é capital. Não é somente
a Criação, mas a Providência que é excluída do universo. Sob
o pretexto de justificar o cálculo astrológico, Boulainvilliers
proclama a necessidade das leis da história; graças à hábil
distinção entre causas primárias e causas secundárias, as
únicas ativas, as únicas eficientes, não há mais lugar para a
vontade divina no universo. (D’ISTRIA, 1907, p. xx).
Eis que nos deparamos com um inusitado uso
spinozista da astrologia32. Resumidamente, a argumentação
32 Segue a tradução de algumas passagens de Boulainvilliers utilizadas por
D’Istria, nas quais afinadamente escutamos seu timbre spinozano: “Porque
embora Deus tenha feito tudo quando e da maneira que lhe aprouve, ignoramos
e sempre ignoraremos se o que Moisés disse tem outra relação além da terra
em que habitamos; no entanto, é muito pouco para dizer; pois está provado
que ele não conhecia a verdadeira disposição dos corpos celestes nem mesmo
a ordem [économie] comum da Natureza, do que é preciso necessariamente
concluir que ao escrever ele não pretendia ensinar senão o que sabia, embora
sua fala nos apresente um significado suficientemente indeterminado para que
vários dos seguintes filósofos tenham se gabado de que estarem se servindo
instrumentalmente de sua narração para autorizar sua opinião particular,
razão que levou escritores ilustres e eruditos a admirar e depois nos propor
essa fecundidade de significado nas Escrituras como uma das características
46
Gionatan Carlos PaCheCo
que Boulainvilliers sustenta é similar à que encontramos no
Tratado Teológico-Político, sobre os milagres perturbarem
a ordem da natureza, e a identificação que implica entre a
eternidade do mundo e a eternidade de Deus nos remete a
tese spinozana segundo a qual Deus é causa de si no mesmo
sentido que é causa de todas as coisas.
os extratos de leitura
Spinoza marca forte presença nos Extratos de leitura
do sr. conde de Boulainvilliers com reflexões [Extraits des
lectures de M. le comte de Boulainviller, avec des réflexions].
Visto que também se trata de uma parte considerável da
obra de Boulainvilliers, somando cerca de 32 títulos, convém
sabermos o que são estes escritos.
É complexo determinar a natureza destes textos.
Podemos dizer que não são tratados autorais. São anotações de
Boulainvilliers de suas leituras e comentários seus sobre elas.
As anotações por vezes são indistinguíveis dos comentários,
e carecemos de estudos específicos sobre isso (cf. SEGUIN,
2003, p. 22). Tais textos, informativos sobre as fontes das
quais bebia Boulainvilliers, certamente serviam para o uso
privado do autor, mas também podemos assegurar que
de sua divindade” (BOULAINVILLIERS, H. Histoire de l’apogée du Soleil ou
Pratique des règles de l’Astrologie pour juger des événements généraux, fol. 7980. Ms. de la Bibl. Nation., Fonds français, 9126, apud D’ISTRIA, 1907, p.
xviii); “Por que eu faria isso contra minha persuasão? Visto que da maneira
como concebo o edifício da nossa terra, e se é preciso dizer do mundo inteiro,
acredito que agradou a Deus deixar a direção dele às causas secundárias,
ao invés de agir imediatamente por sua vontade absoluta, não que ele não
tivesse a liberdade ou o poder de fazê-lo, mas porque sua conduta presente
seria um argumento invencível para o passado. Ora, essas causas secundárias
agem lentamente e por um progresso tão imperceptível que, para produzir
o que se passa aos nossos olhos, talvez tenham sido necessários não menos
do que uma infinidade de séculos durante os quais se formou essa cadeia
inconcebível de causas e efeitos ligados necessariamente uns aos outros. Eu
teria, então, insultado meus princípios e minha razão se tivesse atribuído a
este momento que chamo o primeiro meio-dia a data da criação; mas, de
fato, dei-lhe o nome de período porque não concebo nenhuma duração além
da qual não se relacione com outro princípio oculto na eternidade de Deus e
que não busco desembaraçar porque o instante em que eu escolhi basta para
tudo e por tudo o que aconteceu desde então”. (Ibidem, f. 80, apud D’ISTRIA,
1907, pp. xix-xx).
47
Boulainvilliers e seu Ensaio
não se limitavam a isto. Além disso, tal formato de escrita,
aparentemente ingênuo e sem maiores consequências, abre
uma margem de manobra inesperada para Boulainvilliers
tocar em questões tabu sem se comprometer diretamente
com o texto. Isso pode caracterizar o feitio desses extratos
como uma estratégia de divulgação clandestina, como
veremos a seguir.
Maria Susana Seguin (2003) faz uma análise desses
Extratos, caracterizando-os, para além do inédito, como escritos
clandestinos: “a circulação desses textos é comprovada tanto na
forma de coleção como, em alguns casos, em cópias separadas, e
todos os manuscritos foram copiados por copistas profissionais”
(ibidem, p. 23). Hoje contamos com o acesso a seis tomos
(coleções) desses Extratos, no site da Biblioteca Nacional da
França [Bibliothèque nationale de France] (BnF). Lá podemos
ver que os volumes, cada um com cerca de 250 páginas em
média, são padronizados entre si e numerados sequencialmente:
“situam-se, de fato, na fronteira entre o inédito e a edição, entre
o manuscrito e o livro do qual se fazem o eco” (ibid.). As diversas
querelas em torno do dogma religioso são um tema recorrente,
e os extratos intercalam posições distintas, de modo que
“considerados em seu conjunto, os extratos de leitura parecem
fornecer ao leitor clandestino do século XVIII verdadeiros dossiês
temáticos organizados em torno das grandes questões que
interessam o pensamento heterodoxo do qual Boulainvilliers se
torna então o símbolo” (ibid., p. 24). A conclusão de Seguin é
que esses textos foram importantes “na formação de um espírito
clandestino” (ibid., p. 31), visto que “oferecem um base de dados
de argumentações acadêmicas que se tornarão verdadeiros
lugares-comuns no combate filosófico do século XVIII, como, por
exemplo, as teorias cosmológicas de Burnet e a crítica filológica
de Spinoza ou de Jean Le Clerc” (ibid.)33.
33 Seguin também dedicou um artigo à análises dos Extratos de leitura que se
concentram nas observações de Boulainvilliers feitas a obra de Thomas Burnet,
percebendo um “parentesco metodológico entre os extratos de Boulainvilliers
e os princípios de interpretação da Escritura que Spinoza enuncia no Tratado
Teológico-Político, no capítulo VII, ‘Da interpretação da Escritura’” (2001, p. 125).
48
Gionatan Carlos PaCheCo
Tais textos são difíceis de datar. Estima-se que tenham
sido produzidos de 1695 ao início do século XVIII. Nos
manuscritos copiados, “quase-editados”, da BnF o único que
tem alguma indicação de data, até onde conseguimos ver,
é o primeiro tomo (NAF 11071) que, depois do primeiro
título, e acima do texto está indicado “Janeiro [16]97”, que
provavelmente nem se refira a data de composição dos
escritos. O Ensaio, por sua vez, autodeclara-se escrito em
1704 ou depois [1712? (BERTI, 1996, p. 33)], confinando
a tradução da Ética também a este período, que se supõe ter
sido feita antes do Ensaio, na qualidade de material de apoio.
Os textos sobre Spinoza nestes Extratos de leitura, que
encontramos no segundo tomo de manuscritos da BnF (NAF
11072), são: um extrato de leitura em latim dos Princípios
da Filosofia Cartesiana de Spinoza [Principia Cartesiana more
geometrico demonstrata per B. SP.]; o Sumário ou breve exposição
da opinião de Spinoza sobre a divindade, a mente humana
e os fundamentos da moral34 [Abrégé ou Courte expression de
l’opinion de Spinoza touchant la Divinité, l’esprit humain et les
fondements de la morale]; um (em francês) Extrato do Tratado
teológico-político com a refutação [Extrait du Traité théologopolitique de Spinoza avec la Refutation]35. Para além deste
tomo de manuscritos, há também uma Exposição do sistema
de Benoit Spinoza [Exposition du système de Benoît de Spinoza]
(BOULAINVILLIERS, 1973, pp. 213-230), seguido de uma
Defesa contra as objeções de Regis [Défense contre les objections
de M. Regis] (ibidem, p. 231-252).
soBre
o
ensaio
de
Metafísica
nos
PrincíPios
de
sPinoza
O Ensaio se pretende, e é efetivamente, uma
apresentação da metafísica de Spinoza despojada da aridez
34 Tradução publicada na Revista Conatus- Filosofia de Spinoza, v. 12, n.
22, ano de 2020. Disponível em:<https://revistas.uece.br/index.php/
conatus/article/view/10720>.
35 Em outros manuscritos o extrato é separado da refutação, esta
recebendo o título de Refutação de alguns de seus sentimentos [Réfutation
de quelques-uns de ses sentiments] (cf. BOULAINVILLIERS, 1973).
49
Boulainvilliers e seu Ensaio
matemática da Ética. Seu objetivo é torná-la acessível aos
estudiosos. Boulainvilliers afirma que metade desses savants
eram incapazes de compreender a Ética na estrutura em
que ela se apresenta. Neste grupo, ele não hesita em incluir
Bayle, e o faz categoricamente: “eu não tive dúvidas”. Isso
não é nada banal, pois Bayle “foi o mestre mais escutado dos
filósofos do século XVIII” (D’ISTRIA, 1907, pp. xli-xlii). O que
o fez levar este empreendimento a sério, ou a gota d’água,
foi a distorção da metafísica de Spinoza por missionários
que, da China, assimilaram-na às opiniões de Confúcio. Não
precisamos ter dúvida de que tais missionários não tiraram
tal comparação de um cotejo da letra spinozana com a de
Confúcio, e pode ser muito bem o caso de que, assim como
grande parte da República das letras, o único acesso deles a
Spinoza tenha sido o Dicionário histórico e crítico de Bayle
(cf. MOREAU, 1995, p. 410). É no verbete “Spinoza”, deste
que foi conhecido como “Dicionário Incomparável” de
Bayle, que encontramos a origem dessa interpretação que,
desde sua publicação em 1697, tornou-se hegemônica. Em
suma, acreditamos que o Ensaio é uma reação à leitura de
Bayle, intelectualmente engajada com o spinozismo, muito
longe de ser um exercício diletante destinado apenas ao
uso privado.
o ensaio manuscrito
Sabemos que cópias manuscritas do Ensaio circulavam
clandestinamente enquanto Boulainvilliers ainda era vivo, do
mesmo modo que seus Extratos de leitura e outros textos. A
circulação de obras clandestinas é naturalmente envolta por
mistérios. Um ponto que não podemos explicar completamente,
mas para o qual temos evidências, é o fato de já por volta 17121714 o Ensaio circulava integrando um curioso compilado de
manuscritos junto com a Vida de Spinoza atribuída a Lucas, e
com o Tratado dos três impostores, o mais famoso dos manuscritos
clandestinos (cf. SCHWARZBACH & FAIRBAIRN, 1996, p. 108).
Não fosse esse volume, diríamos que a circulação do
Ensaio foi bem restrita, provavelmente correspondendo àquele
50
Gionatan Carlos PaCheCo
“grande prelado” do qual nos fala a Advertência. Esta audiência
provavelmente era a já mencionada sociedade de estudiosos
em torno do duque de Noailles, à qual pertencia Freret. Não
obstante, é curioso que o conteúdo elusivo da Advertência, por
seu lado, não parece se direcionar a essa audiência “cativa”,
por assim dizer. Por isso, Sheridan (1996) levanta a questão de
se “Boulainvilliers sabia de antemão que sua obra alcançaria
um público relativamente amplo e preparou para si uma defesa
no caso de uma intervenção da polícia” (ibidem, p. 324). Com
efeito, há evidências de que cópias do Ensaio tenham chegado
até a Holanda neste período36. Vejamos o Ensaio mais de perto.
a advertência
do
ensaio
A Advertência que abre o Ensaio parece um texto
cuidadosamente elaborado. O primeiro parágrafo já vem
carregado de noções como suspeita, obrigação, medo. Todo
esse preâmbulo é caracteristicamente clandestino, carregado
de sentidos e da antecipada “hipocrisia voltairiana”. Por
outro lado, é um prefácio que retira qualquer margem para
o anonimato e até fornece informações bibliográficas e
cronológicas do autor.
Antes de falar da Opera Phostuma, Boulainvilliers
lembra que, muito tempo antes, empreendeu uma Refutação
do Tratado Teológico-Político, que foi comunicada ao tal
“grande prelado”. Esta comunicação, então, parece ter se dado
antes da morte de sua primeira esposa (1696) e da de seu pai
(1697). Segundo Simon, essa Refutação é o primeiro texto de
Boulainvilliers sobre Spinoza e teria começado a ser escrito por
volta de 1695 (SIMON, 1973, p. 10). Ela se encontra num dos
volumes dos Extratos de leitura (NAF 11072), como Extrato
do Tratado teológico-político com a refutação. Nesse escrito
há resumos de cada um dos seis primeiros capítulos do TTP,
36 “De fato, há razões para acreditar – uma anotação na cópia de Reimmann
do Essai de métaphysique – que, apesar das guerras, Boulainvilliers enviou,
ou intermediários obtiveram, para o Barão Hohendorff uma cópia do
Essai de métaphysique e outros materiais da França” (SCHWARZBACH &
FAIRBAIRN, 1996, p. 108).
51
Boulainvilliers e seu Ensaio
seguidos de breves refutações. À primeira vista, na Advertência
essa refutação é tratada como uma obra interrompida, tendo
saído de suas preocupações essa “ideia”, até lhe chegarem
duas refutações e o artigo de Bayle sobre Spinoza. Porém, não
faz muito sentido que a referência seja à Refutação, já que o
Ensaio não trata de completá-la.
O curioso é que nos parece que Boulainvilliers está
se referindo, por esta “ideia”, ao “ardor que deve animar
todo homem capaz de conhecer e de defender a verdade”.
Levemos, pois, adiante essa hipótese. Esse ardor teria sido
despertado pelas refutações e pelo artigo de Bayle. Porém,
ele nos diz que o que o fez tomar a sério a empreitada
do Ensaio foram os escritos, inspirados em Bayle, que
comparavam Confúcio com Spinoza. Acreditamos que colocar
o sistema de Spinoza em evidência pareceu algo sério para
Boulainvilliers, pois, mais do que interpretar erroneamente e
fazer dele um espantalho para ser refutado (algo demasiado
comum), o que estava em curso era a desocidentalização do
pensamento de Spinoza. Spinoza quis desvincular a filosofia
da teologia, agora a sua filosofia estava sendo desligada do
pensamento ocidental como um todo. A seriedade do esforço
de Boulainvilliers foi no sentido de fechar a vereda pela
qual Bayle estava metendo a filosofia spinozana, e à qual,
muito mais tarde, a leitura hegeliana lhe arrastou com vigor
renovado. Não por acaso o tom cartesiano do início do Ensaio:
ele mostra o pertencimento a uma tradição, a continuidade
e o aprofundamento do pensar saído do Renascimento, que
passou por Maquiavel, Hobbes e pretendeu levar a Nova
Filosofia às suas últimas consequências.
A hipótese levantada acima nos pareceu tentadora
demais para não ser trazida aqui. Porém, carece de
aprofundamento. Na verdade, Boulainvilliers parece ter o
sistema de Confúcio na mais alta conta, ainda que mais em
termos de sabedoria do que de filosofia. Assim, pode ser
que os escritos dos missionários, ao fazerem a comparação,
impulsionaram Boulainvilliers em direção a Spinoza, ao passo
52
Gionatan Carlos PaCheCo
que textualmente ele estaria é defendendo Confúcio – o qual
retorna quase ao fim do Ensaio em harmonia com Spinoza37.
No terceiro parágrafo, é de se notar, Boulainvilliers
nomeia apenas Bayle – um desterrado e não-eclesiástico, mas
também o mais célebre – para exemplo de quem compreendeu
mal Spinoza. A seguir, ele distingue duas caracterizações das
recepções da obra de Spinoza, a saber, horror e/ou obscuridade:
“ele nada havia escrito de inteligível ou que não merecesse
um completo desprezo”.
É interessante perceber como ele rejeita ambas
caracterizações, ininteligível e desprezível, no parágrafo seguinte.
É comum notar o irônico da desculpa dada por Boulainvilliers
para ter adquirido as obras póstumas de Spinoza, a saber,
seu interesse pela Gramática Hebraica ali contida – como
a desculpa de alguém que, surpreendido ao comprar uma
revista adulta, alega o interesse pelas entrevistas. Porém, essa
dissimulação superficial, por sua vez, parece dissimular uma
mais profunda. Ao falar deste apêndice raramente lembrado da
obra spinozana, tido como de menor importância em relação
aos demais escritos, longe de caracterizá-lo como ininteligível,
ele nos diz que “ela me parecia mais fácil” e, ainda, longe de ser
desprezível, também lhe parecia “mais sensata do que aquelas
que eu tinha visto até então”.
Nesse mesmo parágrafo, Boulainvilliers cita sua
indiferença até o ano de 1704, no qual leu Opera Posthuma,
em seguida transformada em indignação. Apresenta o Ensaio,
37 Ao falar da sabedoria no Prefácio, provavelmente escrito em 1700, de
seu Ideia de um sistema da natureza [1683?], Boulainvilliers afirma “eu até
não sei se não é preciso concedê-la aos bárbaros, visto que, religião à parte,
jamais apareceu um sistema como o de Confúcio” (1975, p. 151). Quase no
encerramento do Ensaio, na altura de sua exposição da mecânica spinozana
das paixões, em meio a qual Boulainvilliers se concentra na gênese do
sentimento religioso, Confúcio retorna: “Tudo isso é puramente mecânico
e tão consequente de nossa constituição que é possível se surpreender que,
entre as várias religiões do mundo, só pudesse ser encontrada uma (Confúcio)
que, sem ajuda da revelação, ao rejeitar igualmente os maravilhosos sistemas
e fantasmas da superstição e do terror, pretende ser de tão grande utilidade
para a conduta dos homens, sem ter sido estabelecida senão sobre o dever
natural” (1731, pp. 303-4; 1973, p. 206).
53
Boulainvilliers e seu Ensaio
então, como obra fruto da indignação e feita para provocar
indignação. A princípio, parece indignar-se com “o livro
mais perigoso que já foi escrito contra a Religião”. Porém,
o curioso é que se levarmos em conta o que o fez retornar
ao tema e levá-lo a sério, podemos ler essa indignação como
direcionada a “metade dos savants” que não compreendem
a Ética, também mencionados nesse parágrafo. Também vale
notar que na sequência da Advertência, Boulainvilliers se vale
do mote spinozano de comparar a verdade com a luz, uma
sendo o índice de si mesma e do falso, outra de si e das trevas.
Enfim, parece que essa Advertência, presente nos manuscritos
que circulavam clandestinamente, ao passo que serviria para
escusá-lo perante a censura, também funcionaria como uma
espécie de “apito de cachorro” para os livre-pensadores.
o ensaio
é uma oBra acaBada?
O Ensaio tem sido caracterizado como uma obra
incompleta. O seu verbete na Wikipédia possui até um subtítulo
no qual se refere a uma terceira parte que Boulainvilliers
teria anunciado, mas não escrito38. Não obstante, a própria
circulação do manuscrito, em alguma medida, parece indicar
a completude, ou ao menos que seu autor estava satisfeito
com sua incompletude.
De nossa parte, até o presente, acreditamos que o Ensaio é
uma obra finalizada. Acreditamos que os três tratados anunciados
na Advertência já se encontram no Ensaio assim como ele está.
Nossa hipótese é de que a Primeira parte contém dois deles, ao
passo que a Segunda parte seria o terceiro. Na Primeira parte, cujo
título é Do Ser em geral e em particular, há um tratado sobre o Ser
em geral e outro sobre o Ser em particular, divididos explicitamente
no texto estabelecido por Renée Simon (BOULAINVILLIERS, 1973,
p. 119), que comparou os diversos manuscritos existentes39. De
38 Ver: <https://fr.wikipedia.org/wiki/Essai_de_m%C3%A9taphysique>,
acesso 5/2/2023.
39 Cf. BOULAINVILLIERS, 1973, p. xvii. Nós, porém, não encontramos essa
divisão nos manuscritos a que tivemos acesso, nem na versão impressa em
1731, a qual até omite a menção aos três tratados da Advertência.
54
Gionatan Carlos PaCheCo
fato, no último parágrafo do que, então, poderíamos chamar
de primeiro tratado, Boulainvilliers concluí o que intencionava
explicar sobre o “sistema da Divindade” e anuncia o próximo
tratado, que se proporá a “aprender o que somos, assim como
o resto do universo, buscaremos doravante, na mesma ordem e
com as mesmas precauções, de que forma os seres particulares
puderam ser produzidos e o que eles são precisamente”.
Consequentemente, o que identificamos como segundo tratado
começa remetendo o leitor às primeiras definições e sobretudo
ao primeiro axioma da Ética.
No que chamamos de segundo tratado da Primeira
Parte, que trata do sobre o ser em particular ou modal, logo no
início, após definir mente, pensamento e ideia, Boulainvilliers
precisa que não está distinguindo a ideia da sensibilidade,
depois do que afirma: “Isso será o objeto da segunda parte
deste tratado, nem em relação aos julgamentos que elas
contêm, que serão o assunto da terceira”. Sheridan toma esta
frase como evidência de que haveria um projeto para uma
terceira parte do Ensaio que trataria dos julgamentos contidos
nas ideias. Consequentemente, assume ao mesmo tempo que
a Segundo Parte do Ensaio é sobre as ideias enquanto são
distintas dos afetos, o que não é o caso: pois esta parte da
obra tem por tema as paixões, as quais lhe dão o título.
Uma leitura mais atenta revela que Boulainvilliers, neste
início do segundo tratado, está dividindo este mesmo em três
partes em relação ao conceito de ideia. A indagação inicial é
sobre o estatuto ontológico das mentes e de sua participação
na ideia de Deus, o que se conecta a unidade mente-corpo, isto
é, a composição do humano. Isso tudo corresponde bem à Parte
2 da Ética, até a chamada pequena física entre as proposições
13 e 14. Depois disso vem a tematização da distinção da
ideia em relação a sensibilidade: “porque essa percepção dos
objetos externos é muito diferente daquela que se tem do que
se passa em si mesmo, chamo de imagem a ideia de objetos
que permanece após a impressão”. Segue-se disso a descrição
das limitações imposta pela própria natureza de nossas ideias,
55
Boulainvilliers e seu Ensaio
inelutavelmente unida às afecções do corpo: “É evidente que
as afecções do corpo são de tal maneira o objeto da mente que
não se tem percepção alguma que não seja pensamento, nem
reciprocamente algum pensamento que não seja percepção”.
Dessa conclusão spinozista, que parece antecipar o famoso
adágio kantiano, segue a crítica às noções abstratas de faculdades
e a terceira parte deste tratado, isto é, a abordagem da ideia em
relação ao julgamento: “a sensação e a ideia resultante são os
princípios necessários de nossos julgamentos”.
Quase no final da Primeira Parte do Ensaio, lemos:
“Quase nada resta a dizer para completar a anatomia da
mente humana, senão que, resumindo as várias proposições
deste tratado, […]”. Daí até o final desta parte completa
sua caracterização da mente humana, sua unidade com
corpo, dando conta até da eternidade dos seres particulares,
desenvolvida por Spinoza no final da quinta parte da Ética.
As “proposições deste tratado” que ele resume são restritas
às proposições do segundo tratado incluído na Primeira parte
do Ensaio, o que dá razão adicional à nossa interpretação da
estrutura e completude desse escrito.
A hipótese da incompletude pode ser descartada com
base no que já afirmamos. Não obstante, podemos ainda
fundamentar a nossa leitura por dois aspectos desta obra.
Em primeiro lugar, lembremos que o Ensaio de Metafísica
nos princípios de Spinoza é um ensaio. O caráter ensaístico do
texto não parece pretender dar conta definitiva dos pontos
que toca, mesmo naqueles em que se demora e especula para
além do que o próprio Spinoza fez. Apesar disso, todos os
três tratados são suficientemente estruturados e seus últimos
parágrafos dão ideia de encerramento, inclusive o final: “o
que eu disse até agora é suficiente para ter uma certa noção
da mecânica de nossas paixões”. Registramos, porém, que
Sheridan discorda dessa leitura, vendo nesse parágrafo um
final abrupto que “pede uma sequência” (1996, p. 327).
Em segundo lugar, lembremos que é um ensaio de
metafísica. Esse é o ponto mais importante, pois, basicamente,
56
Gionatan Carlos PaCheCo
Boulainvilliers é acusado de ter desprezado as partes edificantes
da Ética e ter substituído a teoria do conhecimento de Spinoza
por um empirismo pessimista (ou cético). Tais leituras nos
parecem superficiais, ainda que, de fato, a epistemologia e
a moral não sejam o foco do Ensaio, porém estão ali, tanto o
conhecimento intuitivo quanto o amor a Deus, e de maneira
muito próxima a como Spinoza as coloca.
No final da Primeira parte, há uma abordagem em
termos puramente metafísicos da doutrina spinozana da
eternidade dos modos finitos, a qual demonstra que percorreu
o caminho completo da Ética acerca do ser em particular, que é
como Boulainvilliers por vezes se refere aos modos. Em suma,
o Ensaio é composto de três passos: do ser geral: a definição
da substância e seus efeitos necessários; da produção dos
seres em particular e sua relação com o ser geral; e, por fim,
do interior dos seres particulares: da mecânica das paixões
como consequência da natureza imanente.
A possibilidade de se tratar de uma obra incompleta,
confessamos, não nos veio à mente antes de vermos mencionada
por Wade (1967) e, mais tarde, por Sheridan (1996). Sobre esta
incompletude, Wade baseia em parte sua atribuição do Tratado
dos três impostores [Traité des trois imposteurs], ou O Espírito
de Spinoza [L’esprit de Spinoza], à Boulainvilliers, de modo que
esse misterioso e célebre manuscrito seria a terceira parte do
Ensaio. Tal atribuição foi fartamente contestada, especialmente
pela escrita tosca do Tratado em comparação à sofisticação da
redação do Ensaio (cf. BERTI, 1996), o que afasta ainda mais a
possibilidade dele ser a esperada terceira parte.
Para Sheridan essa terceira parte jamais foi escrita. A
autora, a bem da verdade, não defende a incompletude do
Ensaio, pois somente se vale dela para apoiar sua tese sobre
a origem do Ensaio, mais precisamente, sobre a influência do
Breve Tratado nela. Especula-se que Boulainvilliers teria lido
o manuscrito do Breve Tratado, dali tendo tirado a estrutura
para o Ensaio. Trata-se de uma hipótese interessantíssima
com repercussões sobre a história do próprio Breve Tratado,
57
Boulainvilliers e seu Ensaio
do qual só nos aparecem rastros no século XIX. Contudo, não
há nenhuma evidência concreta (SHERIDAN, 1996, p. 328).
Não obstante, essa já é outra hipótese que, independente de
sua confirmação, não tem peso na questão da completude do
Ensaio e, em todo caso, é dispensável afirmar que o Ensaio
teria três partes como o Breve Tratado, no curiosíssimo caso
deste ter tido alguma influência naquele.
o ensaio e a oBra de spinoza
Por outro lado, é certo afirmar que a Ética não era o único
material de Boulainvilliers em sua exposição. Ele leu a Opera
Posthuma inteira, de modo que é possível encontrarmos no Ensaio
ecos da correspondência e demais textos. O Tratado da Emenda
do Intelecto (TEI) certamente tem seu papel (cf. POLLOCK, 1912,
p. 363), o começo do Ensaio por um recenseamento das ideias
nos lembra dele tanto quanto das Meditações cartesianas40.
Boulainvilliers parece ter tomado o TEI como uma forma de
prefácio à Ética, assim como Lívio Teixeira (2001) o caracteriza.
Ao contrário da Ética, que inicia abruptamente pelas definições
das categorias mais centrais se valendo do método sintético, o
começo do Ensaio, como o TEI, percorre um caminho de reflexões
analíticas, em direção a ideia que deve servir de pedra de toque
das demais, naturalmente, a ideia de Deus. Nesse sentido,
Boulainvilliers atalha a retórica meditativa de Descartes e o
conteúdo moral do início do TEI, como que indo diretamente ao
§21 dele, estabelecendo como certezas indubitáveis as noções de
extensão, sensação e pensamento. A certeza do “cogito spinozista”
não é uma certeza solipsista de uma existência particular, mas
implica também um conhecimento do que é comum entre tudo
o que existe e o eu pensante.
Também é certo que o Ensaio não se restringe
estritamente à letra spinozana. O próprio título da Primeira
Parte, Do Ser em geral e em particular, bem o uso ali das
noções de universalidade e abstração, possuem um sentido
40 D’Istria ressalta particularmente que o início do Ensaio não tem
semelhança alguma com a Ética, lembrando-lhe o PPC de Spinoza e o
Discurso do método de Descartes (1907, p. xxviii).
58
Gionatan Carlos PaCheCo
muito mais pedagógico do que revelam um intuito de exegese
ortodoxa. Tal intenção, porém, não parece trair o conteúdo
spinozista do texto, pois, não obstante, a crítica spinozana
sobre os universais e abstrações tem posteriormente seu lugar.
Outro caso do início do Ensaio, no qual Boulainvilliers
parece se distanciar de Spinoza, é o da distinção operada
entre os seres, através das três noções indubitáveis que
acompanham a certeza da própria existência (pensamento,
extensão e sentimento), a saber, entre seres vivos e não
vivos. Trata-se de uma distinção abstrata, feita via negação,
e problemática, segundo Boulainvilliers, pois o que vive
se nutre do que é morto, havendo aí uma conversibilidade
que nos é obscura. Com efeito, a noção de vida, longe de
estabelecer uma distinção inicial que terá desdobramentos,
possui somente a função de etapa para alcançar a noção
que é a chave interpretativa de Boulainvilliers, a saber, a
existência enquanto a propriedade mais comum e universal.
Pois, incluindo a nós mesmo, de tudo quanto percebemos
ser pensante, senciente ou meramente extenso, sempre o
percebemos acompanhado de existência.
Nesta mesma reflexão, há um segundo caso de
“transgressão” do spinozismo, que a crítica ao Ensaio
acentuou mais gravemente, a saber, a hipótese do Ser
tomado abstratamente. Aqui, confunde-se esta hipótese com
a implicação de um caráter fictício à substância. De fato,
é uma etapa de um caminho, em certa medida original de
Boulainvilliers, para chegar à ideia de Deus.
Se, por um lado, a existência é universalmente comum
a tudo, ao mesmo tempo tudo o que conseguimos perceber
“perece, ao menos quanto à forma”. A existência não pertence
à essência de nenhuma coisa particular. Assim, a própria ideia
de existência, a ideia mais comum de todas, precisa estar
contida na essência de um ser absoluto, o qual nenhuma
percepção nossa é capaz de envolver e nenhuma imagem que
possamos formar pode representar, de sorte que precisamos
nos contentar com a evidência intelectual.
59
Boulainvilliers e seu Ensaio
O “Ser abstrato” começa a ganhar concretude pela
propriedade de existência necessária: a partir daí não é mais
uma ideia universal que formamos abstraindo os diferentes
e variados seres particulares e os reunindo em uma mesma
noção. A posterior caracterização da substância como o ser cuja
propriedade essencial é a existência necessária é de todo conforme
a definição da Ética, porém, da forma como Boulainvilliers a
coloca, exclui os atributos da essência da substância, passo que é
visto como heterodoxo ou transgressor em relação a filosofia de
Spinoza. Este não é lá um ponto sobre o qual é simples julgar. Não
há apenas o risco de estarmos disputando por palavras ao invés
de ideias, como também se trata de uma questão interpretativa
das mais delicadas. O caso é que não encontramos o conceito
de atributo na definição spinozana de substância e, mesmo que
encontremos o conceito de substância na definição de atributo,
Boulainvilliers poderia sustentar seu ponto.
Enfim, há também momentos do Ensaio em que
Boulainvilliers é bem autoral em argumentos, exemplos,
digressões e até mesmo noções. Na crítica à noção de Criação,
demora muito mais que Spinoza, é minucioso na apresentação
da posição que defende e seu ataque beira ao entusiasmo.
O destaque à noção de preguiça, por exemplo, é de todo sem
paralelo na obra spinozana, por vezes apontado como um ponto
fraco de sua leitura. A presença pessoal de Boulainvilliers também
é notável na descrição da admiração, junto à qual ele aproveita
para elaborar toda uma gênese do sentimento religioso.
recepção
do
ensaio
Tanto a imagem intelectual de Boulainvilliers quanto
a de Spinoza mudaram e seguem em suas mutações ao
longo dos séculos. Antes de falarmos da recepção ao Ensaio
de Boulainvilliers, precisamos anotar o fato das mudanças
do imaginário (social) intelectual. Nossas concepções
compartilhadas sobre um autor ou uma obra vão se modificando
ao longo do tempo, seja por condições históricas e materiais,
seja por novas descobertas individuais ou coletivas, seja
por aparecimento de novas fontes primárias. Isso é natural
60
Gionatan Carlos PaCheCo
e saudável. O caso é que quando tais mudanças se dão em
relação a obras ou autores marginais, que lograram resistir
ao tempo e escapar do esquecimento, é ainda mais desafiador
dialogar com a tradição interpretativa que está cristalizada
em um “paradigma”, por assim dizer. Paralelo a isso, não
temos a pretensão de nos pôr acima ou fora de nosso próprio
“paradigma”, como se de cima de nosso galho quiséssemos
desenhar toda a floresta. Enfim, por fase ou paradigma,
queremos dizer aqui recortes temporais arbitrários que
pressupõem uma uniformidade de ideias que é no máximo
abstrata. Assim precavidos, não obstante, precisamos admitir
sua utilidade. Vejamos, pois, um deles.
Em seu tempo, Paul Janet (1823-1899) distinguiu três
fases da história do spinozismo na França.
No século XVII, Spinoza foi objeto de curiosidade de alguns
espíritos-fortes [esprits forts], de execração e horror para
os crentes que não viram senão um ‘monstro’. No século
XVIII, salvo raras exceções, foi desprezado e negligenciado
como obscuro, bárbaro, indecifrável. No século XIX, graças
sobretudo à influência alemã, regressou honrosamente,
encontra novos discípulos e é tratado com respeito até
mesmo por seus adversários. (JANET, 1882, p. 109).
Das “raras exceções” do XVIII, Janet cita Boulainvilliers.
Descreve-o como um “amador”, “aventuroso e excêntrico41,
41 Encontramos ecos dessa caracterização em Pollock, que ressalta o
caráter curioso ou pitoresco (curios, oddly) do Ensaio (1912, p. 363),
bem como mais tarde em Spink (1960), sobre o qual falaremos adiante.
Nos parece provável que esta alegada falta de seriedade, ou mesmo este
caráter diletante que se tenta atribuir a Boulainvilliers, apoia-se naquilo
que Saint-Simon descreveu como o seu maior defeito, a saber, “trabalhar
em muitas coisas ao mesmo tempo, e desistir ou interromper um trabalho
iniciado, seguidamente muito avançado, para começar outro” (SAINTSIMON, 1923, p. 240). Mais recentemente, Stefano Brogi se propôs a
remover essa pecha de amadorismo de Boulainvilliers, mostrando, “por
outro lado, que, por mais ecléticos que sejam, os interesses filosóficocientíficos de Boulainvilliers não foram cultivados de forma amadora.
Nenhum de seus contemporâneos estudou com maior seriedade e
aprofundamento os diferentes aspectos da filosofia de Spinoza, em suas
implicações metafísicas, morais e religiosas” (BROGI, 1993, p. 20), e por
aí vai.
61
Boulainvilliers e seu Ensaio
tanto em metafísica quanto em política” que quis veladamente
fortalecer o pensamento de Spinoza e acabou por enfraquecêlo. Janet caracteriza o Ensaio como uma exposição difusa,
em cuja prosa parafrástica não encontramos a grandeza que
vemos nos escólios e apêndices da Ética. Tal elogio à Spinoza,
mais até do que sua depreciação de Boulainvilliers, caracteriza
sua inserção no que o próprio Janet chama de terceiro período
do spinozismo na França.
O Spinoza de Janet (cf. JANET, 1883) e de seu tempo
vem “honrosamente” pintado pelo idealismo alemão que,
resumidamente, constrangido em explicar spinozismo de
Lessing (cf. SOLÉ, 2011), inventaram um Spinoza do Grande
Todo panteísta, o maior dos racionalistas dogmáticos, um
virtuose do fracasso. Essa caracterização de Spinoza adentrou
o século XX e ainda ecoa em nossos dias. Tal fato tem mais
consequência sobre a atual marginalização do Ensaio, do que
seus mais de 300 anos de idade.
Os trabalhos de Renée Simon sobre Boulainvilliers
publicados nos anos 1940, conjuntamente a reedição do
Ensaio e a edição de outros textos do conde nos anos 1970,
foram responsáveis por uma espécie de redescobrimento
dos escritos filosóficos de Boulainvilliers. Ao mesmo
tempo, há neles uma negligência notável e compreensível
acerca do pensamento de Spinoza e da influência dele
em Boulainvilliers. A arrancada para a redescoberta deste
pensador, enquanto pensador spinozano, deu a partida com
o freio de mão puxado. Em alguma medida, isso explica o
Ensaio ter sido desprezado durante tanto tempo enquanto
texto da tradição spinozana.
Não nos cabe aqui desatar nós apertados ao longo de
tantas décadas. Porém, não podemos deixar de mencionar
a influente leitura de J. S. Spink (1960), por sua vez,
influenciada pelos trabalhos de Simon. Trata-se de uma
leitura ambígua, pois caracteriza o texto de Boulainvilliers
como não spinozano, mas, ao mesmo tempo, medievalmente
escolástico e modernamente empirista (SPINK, 1960, pp.
62
Gionatan Carlos PaCheCo
268-271). É preciso mencioná-la, não obstante, por ter feito
escola, digamos assim, tendo ascendência, entre outros (cf.
BENÍTEZ, 1992; FESTA, 1996), no já citado texto de Sheridan
(1996) e no recente livro de Diego Donna (2021).
Pierre-François Moreau talvez tenha sido o primeiro em,
por assim dizer, sair em defesa do Ensaio, afirmando que esta
“obra não merece de forma alguma o desprezo no qual a têm
Renée Simon e P. Vernière; ela manifesta uma compreensão
bastante fina do sistema” (1994, p. 502). Segundo Moreau a
recomposição da Ética efetuada pelo Ensaio se dá “a partir de
uma meditação sobre a existência”, de modo que encontramos
um spinozismo que alguém pode chamar “heterodoxo, mas
que testemunha um reconhecimento bastante seguro das
estruturas do sistema” (1994, p. 514). Podemos dizer, dando
sequência a classificação de Janet, que Moreau pertence a um
quarto e contemporâneo período do spinozismo na França,
inaugurado na década de 1960, o qual por vezes chamamos
de Renascença spinozana. Porém, como os demais, o atual
período do spinozismo ainda não nos forneceu estudos
especialmente dedicados ao Ensaio, de modo que contamos
apenas com comentários feitos de passagem, como os de
Moreau, ou como o de Yves Citton que nos diz que o Ensaio de
Boulainvilliers “talvez permanece até hoje a introdução mais
acessível ao pensamento spinozista” (2007, p. 319).
Se hoje nos vemos razoavelmente livres da atravessada
leitura bayle-hegeliana de Spinoza, dispondo de diversas
interpretações concorrentes, podemos, sem o perceber,
estarmos valendo-nos de outros e novos antolhos. É
justamente por isso, por esta descontaminação sem igual
(para não descambarmos a falar de pureza), que o Ensaio tem
especial valor para a tradição interpretativa do pensamento
de Spinoza42. E é também por isso que a resenha que
42 No mesmo sentido, D’Istria aponta para o valor da tradução de
Boulainvilliers da Ética spinozana, pois se trata efetivamente de uma fonte
que nos revela o pensamento de Spinoza “na forma que ele poderia ter
tido para os contemporâneos de Spinoza” (1907, p. vii). Sobre a tradução
francesa disponível no momento em que escreve, afirma: “Se a estimável
63
Boulainvilliers e seu Ensaio
analisaremos a seguir, publicada no mesmo ano em que o
Ensaio foi impresso, merece nossa atenção em particular.
recepção
imediata do
ensaio
impresso
Em 1731 o Ensaio aparece impresso no meio de um
curioso volume que tinha por título Refutação de Spinoza
[Réfutation de Spinosa]. Na capa propriamente dita, este título
tem a seguinte versão extendida: “Refutação dos erros de Benoit
de Spinoza / Pelo Sr. de Fénelon Arcebispo de Cambray, pelo
P. Lami Beneditino e pelo Sr. conde de Boulainvilliers, com a A
Vida de Spinoza, escrita pelo Sr. Jean Colerus, Ministro da Igreja
Luterana de Haia; aumentada com várias particularidades
retiradas de uma Vida Manuscrita deste Filósofo, feita por um
de seus amigos”. Além disso, indica-se Bruxelles como lugar
de impressão e François Foppens como editor.
Felizmente, contamos com uma resenha crítica desse
volume, feita no mesmo ano de 1731, publicada na Biblioteca
arrazoada das obras dos eruditos da Europa [Bibliothèque
raisonnée des ouvrages des savans de l’Europe] (doravante apenas
BE). A BE foi uma publicação que funcionou de 1728 até 1753,
com uma periodicidade trimestral. O mais interessante é que
logrou tamanha produção e longevidade em um anonimato
que podia se estender entre os seus próprios colaboradores
anônimos. A grande maioria dos artigos não possuem qualquer
indicação de autoria, algumas exceções contém iniciais como
assinatura. A resenha que nos interessa, a da Refutação, é uma
dessas exceções e ao final estão lá as inicias “AR” que, porém,
não nos reduzem este anonimato (cf. CANDAUX, 1991).
Chamemos, pois, nosso resenhista anônimo de AR.
Trata-se de um autor muito familiarizado com a obra
de Spinoza e com textos spinozistas. Sobre o primeiro texto
tradução de Émile Saisset nos deixa seguidamente decepcionados, é
em parte porque a hostilidade leal do espiritualista francês em relação
a Spinoza contribuiu para lhe tornar alheio o pensamento do filósofo”
(ibidem, p. vii). De fato, este tradutor, em seu verbete generoso dedicado a
Spinoza (SAISSET, 1875, pp. 1652-1668), no Dicionário de ciências filosóficas
testemunha o quanto, em comparação ao Ensaio de Boulainvilliers, regrediu
o entendimento da filosofia de Spinoza mais de um século depois.
64
Gionatan Carlos PaCheCo
do volume, A Vida de Spinoza de Colerus, que no volume diz
ter sido “aumentada com muitas particularidades” de um
manuscrito suposto de um amigo de Spinoza, o resenhista
denuncia que devia ter por título: “Vida de Spinoza por um
de seus amigos aumentada com algumas particularidades do
Sr. Colerus” (BE, 1731, p. 164, grifo nosso). Por isso, critica
o editor do volume que elogia Spinoza a ponto de sacralizálo. AR diz acreditar “piamente que o compilador não teve o
desejo de favorecer o spinozismo” (ibid., p. 167), mas ressalva
o perigo de tais elogios “sobre a mente do vulgo” (ibid., p.
168).
Então, ele passa para o catálogo das obras de
Spinoza oferecido ao fim da biografia. Aqui, AR se
mostra uma autoridade no assunto. Corrige a lista, fala
das edições do Tratado Teológico-Político e da Opera
Phostuma, dá os títulos das edições elusivas publicadas
com nomes trocados, no que inclui a tradução francesa
do TTP, especulando sobre a autoria dela (Saint Glain
ou Lucas?), em todo caso, para AR “é muito certo que
ela é do mesmo que escreveu a Vida de Spinoza” (ibid.,
p. 169) 43. Em seguida lista diversas obras publicadas
na tentativa de refutar o spinozismo (ibid., pp. 171-3),
como que mostrando as opções que o editor tinha à mão,
mas preferiu dar o falso título de Refutação ao escrito de
Boulainvilliers, “visto que, como diz o próprio autor no
Prefácio [Advertência], não é senão o sistema de Spinoza
reduzido em método e posto em linha” (ibid., p. 173).
Em 1731 já circulavam algumas obras impressas de
Boulainvilliers, “do qual conhecemos bem a superioridade
do gênio e a sagacidade nas matérias mais abstratas” (ibid.).
AR vai descrevendo o conteúdo da Advertência do Ensaio.
Ele chega no ponto em que Boulainvilliers deixa a tarefa de
refutação para um metafísico mais hábil. Aqui o resenhista
faz uma comparação espirituosa com a atitude do também
43 Atualmente costuma-se atribuir a biografia a Lucas e a tradução a Saint
Glain.
65
Boulainvilliers e seu Ensaio
astrólogo Palingenius (1500-1543)44 que, em seu livro muito
célebre Zodiacus vitae, “Livro VII, circa fin, diz quase a mesma
coisa e nas mesmas circunstâncias; pois este autor, depois de
ter formado poderosas objeções contra a Criação e a noções
comuns, ao invés de as responder, ele diz simplesmente,
“Alguém certamente se juntará a mim para desmontálas e refutar totalmente seu sistema [Non deerit qui recte
istis respondeat olim / Quaesitis, nodosque omnes dissolvat ad
unguem].” (BE, 1731, p. 174)45.
A próxima comparação é ainda mais interessante.
Boulainvilliers fala sobre como seu esforço de esclarecer
esse sistema errôneo é mais útil para a verdade que ao
próprio erro.“Este raciocínio do Sr. de Boulainvilliers”, diz
AR, “lembra perfeitamente aquele de um certo autor que
não nomearemos aqui, visto que ele se esforçou muito para
se ocultar” (ibid., p. 175), citando na sequência o início da
Advertência do Tratado dos três impostores. A comparação é
contundente, de fato, pois a Advertência do Tratado, apesar
de muito mais incisiva que a do Ensaio, igualmente cita a
forma violenta com que a Inquisição busca vencer as ideias
na falta de boas razões. Comparação feita, AR se distancia
da posição de Boulainvilliers e do autor anônimo se valendo
do clichê do “iluminismo moderado” de que tais ideias
são perigosas ao povo, dizendo inclusive que “há mesmo
verdades de uma tal espécie, que podem ser mais perigosas
de manifestar ao povo do que deixá-lo em seu erro” (ibid.,
p. 175). Segue-se no texto uma lista de perigos trazidos
pelas ideias spinozistas. Moderado, contudo tolerante, AR
44 O Dicionário histórico e crítico lhe dedicou um verbete, no qual nos
informa, por exemplo: “É certo que ele falou contra os monges e contra os
abusos da Igreja com extrema liberdade; e daí vem que apareça no Index
librorum prohibitorum entre os hereges de primeira classe, sob a pecha de
luterano. Diz-se até que seu cadáver foi desenterrado e queimado sob o
pretexto de heresia” (BAYLE, 1697, p. 721).
45 PALINGENII, 1600, p. 184. Nos valemos para a tradução livre desses
versos da tradução francesa, em prosa, publicada também nesse ano
de 1731, p. 295: “Quelqu’un sans doute se joindra un jour à moi pour les
confondre & réfuter totalement leur systeme”.
66
Gionatan Carlos PaCheCo
desaprova “todas as violências que se fazem contra aqueles
que não pensam como os outros” (ibid., p. 178).
Mesmo sem “conhecer mais particularmente” o
compilador, AR afirma que seguramente “é ou um ignorante,
ou um enganador, ou um spinozista”. Não se conforma com o
fato do editor do volume ter dado “sob o enganoso título de
Refutação de Spinoza, um sistema completo de cerca de 330
páginas da mais danosa doutrina deste ateu; sistema melhor
seguido e mil vezes mais perigoso do que os escritos dos quais
é extraído” (ibid., p. 179).
Eis que temos em primeira mão uma caracterização
geral da recepção do Ensaio impresso como um sistema
spinozista fluído: “totalmente esclarecido, e totalmente
desprendido da secura matemática” (ibid., p. 180). O perigo
representado pelo texto é atenuado, bem como a condenação
ao editor, pois, por mais esclarecido e fluído “que ele seja, é
ainda bastante abstrato e metafísico para não ser entendido
por todo mundo indiferentemente; é preciso ter a mente um
pouco geométrica e não ignorar os termos escolásticos para
vê-lo em todo encadeamento, e é nisso que nem todo mundo
é capaz” (ibid.).
AR também descreve o conteúdo do Ensaio (ibid.,
p. 180-2): sua estrutura dividida em duas partes e o
desenvolvimento dos princípios centrais, “dos quais ele tira
as terríveis conclusões que confundem e invertem a ideia que
sempre tivemos de Deus, da religião, da alma, etc.” (ibid., p.
182). Nesta breve análise, vemos apontadas, pela primeira
vez, características do Ensaio frequentemente ressaltadas
em comentários posteriores. Sobretudo, é de se notar que
AR já capta o tom cartesiano do Ensaio – “ele se serve da
via da análise, como o fez Descartes” (ibid., p. 180) –, e,
em alguma medida, a preeminência da noção de existência
neste sistema.
Daí em diante, a resenha segue sobre as demais peças
componentes do volume. No último parágrafo, revela o editor,
surpreendentemente um “eclesiástico católico romano, famoso
67
Boulainvilliers e seu Ensaio
na República das Letras, etc. em uma palavra o abade Lenglet”
(ibid., p. 186), a quem esse trabalho de compilação não trará
muita honra, diz AR, e nem teria sido isso que ele tinha em
vista, mas sim apenas o lucro. Por fim, também já desmascara
o suposto lugar de impressão (Bruxelas), afirmando que foi
impressa em Amsterdã.
68
Gionatan Carlos PaCheCo
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75
Ensaio de metafísica nos
princípios de Spinoza*
Henri
de
Boulainvilliers
advertência
pouco natural dar-se ao trabalho de reduzir
´ tão
E
metodicamente um sistema absurdo, como o do autor
que me empenho a fazer falar nos três tratados seguintes, que
me considero obrigado a relatar a causa e a ocasião que me
levou a isso, por medo de deixar a alguém o menor pretexto
de me suspeitarem ter emprestado gratuitamente minhas
expressões aos erros mais intoleráveis.
Não estou menos prevenido que qualquer outro contra a
doutrina de Spinoza, e repleto daquele ardor que deve animar
todo homem capaz de conhecer e de defender a verdade, há
muito eu havia empreendido a Refutação do Tratado TeológicoPolítico deste autor. Tendo mesmo comunicado esta obra a
um grande prelado, foi aplaudida de tal forma que me fez
esperar que a execução do desígnio que eu havia formado
* Estabelecemos o texto nos valendo tanto das edições impressas (sobretudo
pela de 1731), quanto dos manuscritos. Fontes impressas utilizadas para
o texto estabelecido: “Réfutation de Spinoza”. In: Refutation des erreurs de
Benoit de Spinoza, Bruxelles: François Foppens, 1731, pp. 151–320. Henri
de Boulainviller, “Essai de métaphysique dans les principes de B[enoît] de
S[pinoza]”, éd. Renée Simon, in Œuvres philosophiques, éd. Renée Simon, La
Haye, Martinus Nijhoff, 1973, pp. 83-212; Fontes manuscritas: La vie, Essay de
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77
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
pudesse ser útil ao público. Mas vários embaraços domésticos
que sobrevieram por ocasião da morte de meus parentes mais
próximos interromperam esta obra, eu teria aparentemente
perdido a ideia, se não me tivesse caído nas mãos, algum tempo
depois, duas refutações da Ética de Spinoza: uma composta
pelo Padre Lamy, beneditino, e o outra manuscrita, por um
holandês que eu acreditei ser sociniano. O artigo de Spinoza
no dicionário de Bayle me fez ainda prestar uma nova atenção
ao sistema desse judeu. Porém, o que acabou por me fazer
o considerar como um trabalho sério, digno de ser posto ao
lume para poder em seguida ser validamente refutado, foi a
publicação da doutrina dos chineses nos escritos dos Senhores
das Missões estrangeiras, interessados em fazer conhecer que
as honras que se rendem no Oriente à Confúcio não são mais
legítimas do que as que se renderia na Europa à Spinoza, visto
que ambos sustentavam as mesmas opiniões.
Admito de passagem que as refutações que eu havia
lido anteriormente não me satisfizeram e que, pelo contrário,
elas me induziram a julgar, ou que os seus autores não
quiseram colocar a doutrina que combatiam em uma evidência
suficiente, ou que a entenderam mal. E, em particular, eu
não tive dúvidas de que Bayle estaria nesta última posição.
Porém, aconteceu mais tarde que, tendo me encontrado em
companhia de várias pessoas de saber e piedade conhecida,
ouvi sustentar por alguns que a doutrina de Spinoza era capaz
de aniquilar todas as religiões e, por outros mais numerosos,
que a cristandade nada teria a temer de um tal sedutor, visto
que ele nada havia escrito de inteligível ou que não merecesse
um completo desprezo.
Estava muito indiferente a este problema e muito contente
de ignorar os prós e os contras, quando as obras póstumas de
Spinoza me caíram nas mãos em 1704, por ocasião de uma
gramática hebraica que se achava ali, e que me determinou a
comprar o livro inteiro do qual ela fazia parte, porque ela me
parecia mais fácil e mais sensata do que aquelas que eu tinha
visto até então. Enfim, o grande lazer e a estadia no campo
78
Advertência
me tendo convidado a ler toda a obra, ela me pareceu duma
tal consequência que, na expectativa de algum dia eu mesmo
combater o livro mais perigoso que já foi escrito contra a
Religião, ou ao menos na esperança de engajar um metafísico
mais hábil do que eu a refutá-la, empenhei-me em despojála daquela aridez matemática que torna a leitura impraticável
até mesmo para metade dos estudiosos [savants], a fim de
que o sistema, posto em uma linguagem comum e reduzido às
expressões ordinárias, pudesse estar em condições de excitar
uma indignação semelhante à minha e, por esse meio, obter
verdadeiros inimigos a tão perniciosas princípios.
Segui, a respeito das obras póstumas, a mesma conduta
que havia tido sobre o Tratado Teológico-Político, com exceção
da refutação, ou seja, expliquei fielmente a doutrina que
deve ser o objeto desta mesma refutação. E, de fato, de que
serviria diminuir a força das razões que se opõem a nós?
Nós não trabalhamos pela verdade? E poderia ela carecer de
evidência, de certas cores com as quais seu contrário pudesse
ser embelezado?
Levei, então, o raciocínio de Spinoza o mais longe que
pude levá-lo. Não negligenciei adornar seus pensamentos além
do que ele mesmo fez e, em geral, não alcancei nada além
de enfraquecer suas demonstrações. Cheguei mesmo a levar
a sinceridade ao ponto de sustentar os sofismas evidentes,
que seu livro contém um grande número, pelos meios mais
plausíveis que pude encontrar na lógica natural em que fui
instruído. Sempre persuadido de que nada pode manchar a
verdade e que, para fazê-la brilhar com toda claridade que lhe
pertence, é bom às vezes opor a ela, senão as densas trevas
(porque o contraste seria muito forte), ao menos as falsas
luzes de uma tempestade impetuosa que por alguns momentos
parece destinada a deslumbrar a razão e a natureza. Tenho,
além disso, esta íntima confiança de que é impossível que a
boa causa seja abandonada, e que a Providência possa deixar
de suscitar na multidão de seus verdadeiros adoradores algum
defensor tão judicioso quanto zeloso, que reduzirá este falso
79
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
sistema ao pó e fará triunfar tão realmente a verdade quanto
ela é aqui artificiosamente atacada.
Há muito tempo desejo ter alguma parte nesta glória;
mas como os anos começam a diminuir minha vivacidade
e outras ocupações mais convenientes ao alcance de meu
gênio parecem destinadas a me prender pelo resto da minha
vida, é sem ciúme que cedo a um escritor mais douto e mais
eloquente a honra de obter para a religião uma vitória menos
equívoca do que aquela que a violência da Inquisição lhe fez
obter, pela supressão dos livros ou suplícios daqueles que os
compuseram.
Não posso também abdicar ainda da esperança de aqui
contribuir, ao menos de maneira indireta, seja por minhas
solicitações junto a pessoas que estimo capazes de ter êxito
em tal obra, seja pela comunicação do que já esbocei contra a
impiedade de Spinoza.
80
PRIMEIRA PARTE
do ser
em geral e em particular
u não sei qual será o fruto de minha ideia, mas me levou
E
a recolher neste escrito o detalhe das coisas que acredito
conhecer, e daquelas que ignoro ou das quais duvido. Pareceme que aprenderei por este meio mais perfeitamente o que eu
já sei, ou que me instruirei melhor sobre minha ignorância, o
que pode servir a dois fins: ou para afastar a presunção pelo
conhecimento preciso de minha fraqueza, ou para aliviar a
aflição da incerteza pela evidência das razões que tornam a
ignorância e a dúvida invencíveis.
É usual ter em conta as suas receitas e as suas despesas.
Por esse meio, organizam seus negócios, evitam surpresas,
asseguram-se contra as inclinações e tendências mais naturais
que levariam à desordem e ao esmorecimento de suas forças.
Mas eu creio essa espécie de conta muito mais necessária em
relação aos conhecimentos da mente, os quais sendo o bem
e a possessão, em relação às consequências que deles se tira,
que são as receitas deste fundo, e em relação ao uso que se
faz deles em aplicações particulares, que são propriamente
a despesa. E é nisso que me engano muito ordinariamente,
crendo saber o que não sei, tirando conclusões sem princípios
e muitas vezes construindo sistemas quiméricos dos quais não
reconheço a frivolidade senão depois de ter depurado todo o
trabalho de sua construção.
Eis porque que tomei o desígnio de prestar conta a mim
mesmo de meus conhecimentos verdadeiros, não daqueles
81
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
que me instruíram dos eventos passados pela leitura da
história, ou daqueles que são fruto da experiência, que se
adquire durante o curso ordinário da vida, nem, enfim, de
todos os assuntos particulares que caem sob os sentidos, mas
sobre os conhecimentos primeiros e gerais que devem servir
de fundamento a todos os outros, e mesmo de regra para a
conduta.
Tal é o primeiro de nossos conhecimentos que consiste
na convicção que temos de nossa existência. Conhecimento
acompanhado de sentimento, assegurado pelo axioma
comum: “Eu penso, logo existo”, ou “eu sou pensante”, contra
o qual não creio que se possa razoavelmente formar um
incidente, sob o pretexto da forma da argumentação que ali
está contida, porque seu objeto é uma noção indubitável.
Ora, o meu sentimento, que me prova a minha própria
existência, faz-me conhecer com a mesma certeza a de várias
outras coisas. Não sou o único homem que pensa; vendo vários
outros que também pensam e que me fazem conhecer os seus
pensamentos por suas expressões, como reciprocamente eu
lhes comunico os meus. Eu também não sou o único que tem
sentimento. Encontro a mesma propriedade em várias coisas
além dos homens. Pode ser mesmo que o seu sentimento seja
acompanhado de pensamento; ao menos parece que elas
têm uma voz para expressá-lo. Mas sua expressão não me
é inteiramente inteligível. Assim, ignoro o detalhe de seus
pensamentos. Enfim, não sou o único ser que tem extensão;
vejo corpos extensos como o sou eu mesmo, mas esses corpos
não parecem ter nenhum sentimento, o que me faz concluir
que eles também não têm pensamento.
Dessas três observações das quais estou tão certo quanto
de minha própria existência (pois se fundam sobre o mesmo
sentimento que me faz conhecer que eu sou), concluo que
há seres cuja primeira propriedade parece-me ser a extensão
sólida que me é comum com eles, e que podemos dividir esses
seres em três classes: aqueles que pensam evidentemente
como eu mesmo penso; aqueles que sentem de tal maneira
82
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
que se poderia conjecturar que eles também pensam, sem
podermos, todavia, assegurarmos perfeitamente, e aqueles
que não pensam de todo.
A experiência que nasce dos diversos tipos de sensações
cuja memória se conserva internamente em mim, ensiname que a terceira espécie é mais geral do que as outras, não
somente porque todos os corpos são extensos, mas porque
aqueles cuja distinção se apreende pelo sentimento e pelo
pensamento, perdem um e outro depois de certa duração, e
caem na espécie da simples extensão sólida.
Concebo, então, com certeza que há algo em mim e
em todos os seres da primeira e da segunda espécie distintos
da simples extensão, e que é o princípio do sentimento e do
pensamento. Também sei que este princípio de distinção é
nomeado vida, e que ela é o fundamento de uma segunda
divisão de todos os seres: viventes e não viventes.
Mas se quero buscar o que que é a vida, em que ela
consiste, o que a produz em mim, o que faz que uma erva, um
grão, um fruto, etc., não a possuindo eles mesmos, todavia, a
conservam em mim ao me servirem de alimento, encontro-me
tomado por tantas dificuldades, e as minhas ideias se tornam
tão confusas que me apercebo que esta busca é um abismo
do qual é impossível me desprender senão dando aos meus
pensamentos uma precisão que eles não têm, mas que eu me
gabo de poder adquirir por uma distinção exata das coisas que
devo considerar, as arranjando de acordo com suas diversas
propriedades e estabelecendo claramente suas conveniências
e desconveniências.
Ao seguir esta rota, reconheço logo que todos os seres têm
propriedades comuns e que têm singulares, e as primeiras, como
mais gerais, me parecem exigir a minha primeira atenção, porque
concebo muito bem que nada podemos concluir do particular ao
geral para fazer um raciocínio sólido, mas que, ao contrário, as
proposições gerais se aplicam a todas as coisas particulares.
Ora, de todas as propriedades dos seres das quais
tenho conhecimento, a mais simples e a mais geral é a da
83
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
existência. Porém, como eu não poderia raciocinar sobre
esta propriedade concebendo ela atrelada à certas coisas e
dependente delas, sem as conhecer elas mesmas de antemão
(o que não pode ser, a menos que me limite às considerações
particulares que evito pela razão precedente), eu mudo a
forma da minha ideia, e em vez de me deter na existência
como simples propriedade, esforço-me por conceber uma
ideia universal que abrace tudo o que existe e, assim, formo
aquela do Ser tomado abstratamente, sem atenção a qualquer
coisa particular, nem mesmo à minha própria existência, que
entrará no seu ranque com aquelas outras. Me basta, na visão
que proponho, ter a ideia geral de que há alguma coisa de
existente, e isso é o que chamo de Ser abstrato e geral, o qual
devo examinar as propriedades antes de qualquer outra coisa.
A primeira que descubro aqui é a necessidade de sua
existência: pois o Ser não seria Ser se não existisse. No entanto,
observo de início que tudo o que cai sob meus sentidos perece, ao
menos quanto à forma, depois de uma curta duração. Ora, visto
que cessa de existir; visto que eu mesmo tenho o sentimento de
ter começado recentemente, concluo racionalmente que todos
os seres particulares não têm essa existência necessária que
faz a propriedade essencial do ser absoluto. Concebo, então,
perfeitamente que há outra coisa do que aquilo que cai sob
meus sentidos, e o concebo tanto melhor quanto não o posso
conceber senão como existente, embora, de fato, eu não o veja.
Estou, então, convencido pela razão de que há um Ser absoluto
e necessário, e pelo sentimento que há vários particulares
que não são nem absolutos, nem necessários, e que, todavia,
existem uns após outros em uma certa ordem, cuja disposição
não me é conhecida, mas onde observo sensivelmente que a
matéria de um torna-se ordinariamente a matéria do outro, por
meio de uma mudança muito medíocre que se dá na forma de
suas partes.
Essa reflexão me levaria facilmente a duvidar de
que os seres particulares fossem verdadeiros seres, se eu
não concebesse distintamente que esse nome lhes pertence
84
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
enquanto existem, e que não o perdem senão quando cessam
de existir. Mas, por outro lado, visto que é a diferente disposição
da matéria que lhes dá a existência, não posso julgar que o
ser pertence realmente a essa matéria? Todavia, reconheço
de início o meu erro, pois, além de amarrar o ser à matéria,
excluiria o pensamento e a extensão não sólida, o que seria
absurdo, bem vejo que não posso separar esta matéria dos
seres nos quais ela existe, nem a conceber sem a despojar
de sua universalidade ao determiná-la à alguma existência
particular.
No entanto, tiro do raciocínio precedente duas
conclusões, que a minha só experiência me daria por certas, se
a demonstração não fosse sensível por ela mesma: a primeira,
que tudo o que é concebido como necessariamente existente
deve ser em si e por si, e a segunda, que o que não existe
necessariamente existe em outro e por outro, e não pode ser
concebido senão por outro. No que é preciso bem distinguir
a ideia racional de uma coisa do sentimento que dela temos:
pois bem sinto, por exemplo, que existo, mas não concebo
que poderia existir por mim mesmo. Eu bem sinto minha
existência, mas não poderia separá-la de suas causas, seja
daquelas pelas quais ela começou a ser, seja daquelas que a
conservam e a contêm.
Ora, entre os seres que não têm existência própria,
vejo duas espécies: uns imitam a natureza do Ser absoluto
no que parecem ser por si mesmos. Não é senão a razão que
descobre o contrário. Outros são manifestamente em outro
e não podem ser separados de seu sujeito. Um homem, uma
árvore, qualquer outra coisa são da primeira espécie; a figura,
a cor, etc. são da segunda. E isso me é tão evidente que não
falta a esse respeito senão lhes impor nomes definidos que
ocasionalmente possam remeter as ideias precisas à memória.
O Ser é, então, um nome geral, sob o qual compreendo
tudo o que é, e tudo o que pode ser. Mas conhecendo
distintamente que todos os seres não existem da mesma
maneira, havendo um necessário e muitos não necessários,
85
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
e que entre estes alguns têm uma existência distinta, que
podemos chamar de subjetiva, porque ela serve de sujeito
para outros seres que nunca tiveram uma existência separada,
concluo dividindo a natureza do Ser:
Que tudo o que é, é em si e por si, caso em que o chamo
substância;
Ou é distintamente em outro e por outro e, doravante,
chamo modo de substância;
Ou, enfim, o que está em outro e por outro sem
distinção, e neste caso ele é acidente.
Parece-me que essa divisão é perfeita, pois nada fica de
fora dela.
Tenho uma ideia muito distinta das duas últimas
espécies de ser, porque posso escolher exemplos à vontade.
Eu mesmo sou um ser existente, embora não necessário: pois
bem sinto que comecei e que devo terminar. Julgo, então, que
tenho uma existência emprestada, visto que não a tenho por
mim mesmo: e daí concluo que sou um ser modificado ou
uma modificação do ser, determinado em certa forma, em
certa duração. Eu tenho uma existência comum com o Ser
absoluto, consequentemente eu a tenho dele, não podendo têla recebido realmente de outros homens semelhantes a mim,
que não possuindo outro poder senão aquele que fruo por meu
turno, tão cegamente quanto eles o fazem. Tenho, além disso,
as mesmas propriedades que reconheço nos outros homens: a
extensão, a figura, o pensamento, o sentimento. Sinto minha
existência efetiva e separada de todas as outras; sou, então,
mais do que o que entendo pelo nome de acidente.
A respeito de minha figura, de minha cor, etc., bem
vejo que elas não me são essenciais, visto que elas mudam.
No entanto, elas subsistem comigo realmente, mas sempre
indistintamente, porque não podem ser separadas de mim,
nem de qualquer outro sujeito em que as vejo existir. Não
concebo a redondeza separada de um corpo redondo;
portanto, é com razão que distingui a espécie dos acidentes
das outras duas.
86
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
Mas quanto ao Ser absoluto a que chamo substância,
embora eu conceba evidentemente que ele existe, não
tenho nenhum sentimento positivo, nem percepção sensível,
senão na relação que todos os outros seres têm com ele por
participarem de sua propriedade de existir.
Se quero o conhecer sem me contentar com simples
negações, eu me lanço em um embaraço e uma confusão de
ideias que me parece insuportável. Pois se tomo a extensão
pela substância, porque, de fato, tudo que vejo participa da
extensão, imediatamente percebo que excluo o pensamento
que nada tem em comum com ela, e se, por outro lado, dissesse
que o ser pensante é a substância, excluiria a extensão. Devo,
portanto, concluir que o Ser Absoluto não é pensamento nem
extensão, excluindo um do outro, mas que a extensão e o
pensamento são atributos ou propriedades do Ser absoluto.
Começo assim a reconhecer que a dificuldade de formar
uma ideia correta deste Ser não vem de alguma inevidência,
mas da desproporção de sua natureza e a minha. Não posso o
tomar senão em partes e, todavia, concebo perfeitamente que
ele não as tem. É preciso, então, que eu evite, ao considerálo, tudo o que pode ter relação com uma ideia particular, e
que eu me apegue simplesmente às propriedades gerais pelas
quais ele me é conhecido, as quais, para evitar a ambiguidade,
nomearei atributos, pelo que entendo o que a mente conhece
da substância, ou aquilo sem o qual dela não haveria ideia.
O primeiro desses atributos é a existência necessária;
pois, 1º se eu pudesse conceber o Ser universal ou absoluto
como inexistente, não poderia conceber que houvesse no
mundo qualquer existência. Consequentemente, os axiomas:
eu penso, tenho um sentimento, logo existo, seriam falsos, o
que não pode ser. 2º É tão próprio ao Ser existir que, se não
existisse, não seria. Não posso, então, conceber sua existência
senão como necessária.
O segundo desses atributos é a unidade; pois além
do fato de que a ideia do ser é única, não pode haver várias
substâncias de mesmo ou diferente atributo. Não com os
87
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
mesmos, porque se são iguais, são uma. Não com diferente,
porque o atributo é o que a mente concebe da substância
como lhe sendo próprio. Mas é próprio da substância existir
necessariamente e por si mesma, segundo sua definição,
visto que é o atributo sem o qual eu não teria nenhuma ideia.
Concluo, então, que não há e nem pode haver substâncias de
diferente atributo.
Além disso, se houvesse diversas substâncias, elas
seriam diferentes em seu ser, em seus atributos ou em
seus modos. Não pode ser pelo primeiro que é suposto e
reconhecido como comum, nem pelos dois outros que são
acidentais à substância: pois ela subsiste por si mesma, isto
é, independentemente de todas as modificações, às quais ela
precede por natureza, visto que elas não existem senão nela, e
mais independentemente ainda de nossos conhecimentos ou
julgamentos. A Substância é, então, uma.
Se alguém objetar que existem várias e que elas
diferem entre si por sua essência, imediatamente reconheço
que isso não pode ser, visto que a existência é a essência do
Ser absoluto ou da substância, seguindo a definição. Não me
detenho em provar que esses termos são equivalentes: pois
a própria definição o garante. Assim, concluo que, supondo
várias substâncias, elas não poderiam diferir umas das outras
em sua essência, ou então não seriam substâncias.
Acrescento ainda que a definição de substância dá uma
ideia tão precisa do que ela é que, como ela subsiste em si e
por si, também é concebida por si mesma, sem qualquer ideia
de outra coisa. Então, visto que ela não tem nada em comum
com qualquer outra coisa, devemos concluir que ela é uma.
Esta prova poderia se estender ainda mais, mas eu permaneço
bastante convencido da unidade do Ser por isso só. Assim,
passo aos outros atributos.
A substância sendo uma e necessária, concluo que
ela é infinita, pelo que entendo aquilo a que nada pode
ser acrescentado: pois, por um lado, todas as modificações
sendo acidentais à substância, não têm proporção com ela,
88
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
e portanto: não a podem limitar, nem aumentar. Por outro
lado, sendo a sua essência necessária, segue-se que tudo o
que é necessário lhe pertence e, por conseguinte, que ela é
infinita, visto que nada lhe pode ser acrescentado de mesma
natureza. Digo ainda que sendo uma, segue-se que ela não
pode ser limitada e, portanto, que é infinita, segundo uma
outra definição de infinito.
Além disso, pela palavra fim, ou término [terme],
entendo uma negação de existência para além dele; mas, ao
contrário, a substância afirma e contém a existência por sua
definição. Ora, a mesma propriedade não pode ser afirmada e
negada de um único objeto. A substância, então, não é finita.
Então, ela é infinita.
O mesmo princípio ainda me leva a reconhecer que a
substância é independente, 1º) porque ela é uma; 2º) porque
sendo necessária, ela é sua própria causa de existir e agir; 3º)
porque é infinita.
Julgo ainda que ela é simples e indivisível, porque se ela
tivesse partes, elas seriam da mesma natureza ou de natureza
diferente que ela; no primeiro caso, haveria várias substâncias,
o que não pode ser; no segundo, o Todo não poderia ser
identificado com suas partes, contrariando a noção de Todo.
Concluo também que ela é eterna, porque sendo
necessária, não concebo nenhum tempo em que ela pudesse
não existir. E é o mesmo com sua imutabilidade. Ao passo que
se ela pudesse mudar, o seria a respeito de sua essência ou
de suas propriedades. Mas sua essência é necessária e suas
propriedades são consequências de sua essência. Portanto,
se pudessem mudar, sua essência teria que mudar, o que é
contraditório.
Julgo ainda que, visto que o Ser absoluto deve conter
todas as propriedades do Ser, segue-se que a substância é não
somente extensa, mas que pensa necessária e infinitamente.
De fato, não tenho ideia do Ser, senão por meio da extensão
e do pensamento. Esses são, consequentemente, os únicos
atributos sensíveis pelos quais ele me é conhecido. O Ser
89
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
é, então, pensante e extenso e, consequentemente, tal é a
substância.
Não é, todavia, sem certa relutância que concedo
tantas prerrogativas ao Ser que nomeio de substância; mas
a sua unidade, que é de certo modo o fundamento de todas
as outras, é também a que mais fere a minha imaginação.
Pois se eu concebo tão bem que é da essência do modo não
poder existir sem a substância, como é evidente que há modos
incompatíveis, não parece que podemos evitar reconhecer
que diversas substâncias lhes devem servir de sujeito, visto
que, segundo a noção mais comum, um mesmo ser não pode
ser encontrado ao mesmo tempo vivo e morto, redondo e
quadrado. Isso é incontestável.
Mas respondemos que, assim como as figuras redondas
e quadradas são modalidades da extensão, da mesma maneira
a extensão e o pensamento são atributos da substância. Ora,
como seria absurdo dizer que a extensão ou o pensamento não
podem ser modificados senão de uma forma, por causa que
eles não poderiam admitir de uma só vez figuras ou sensações
incompatíveis, parece-me também que, sob este mesmo
pretexto, não devo concluir que uma mesma substância não
possa ser o sujeito de diferentes modificações.
Como não é preciso imaginar um sujeito da extensão
e do pensamento diferente do Ser pensante e extenso, não
é necessário tampouco atribuir a tal ou tal figura um sujeito
diferente da extensão, tampouco a tal ideia ou sensação um
sujeito diferente do pensamento. Sendo que essa extensão é
um atributo do ser e a figura é uma modalidade deste atributo,
é-me fácil compreender que uma tal modalidade não pode
ser redonda e quadrada ao mesmo tempo. Não que lhe falte
diferentes atributos ou diferentes substâncias para estabelecer
essas figuras, mas porque, segundo a noção mais comum,
nada de qualquer espécie que seja pode simultaneamente
[ensemble] ser e não ser.
No entanto, levemos a objeção ainda mais longe.
A extensão, digamos, não é concebível sem partes e,
90
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
consequentemente, é preciso dizer, ou que cada uma dessas
partes é uma substância, ou que a extensão em geral não é
uma substância. Mas, se nos atentarmos a esta última parte do
argumento, podemos provar o contrário de várias maneiras.
1º A extensão não pode ser concebida como uma
modalidade da substância, porque se retiramos a extensão,
não podemos conceber a substância.
2º A extensão não pode ser um atributo da substância,
a menos que seja ela mesma substância, porque o atributo
não lhe sendo distinto, ou separado, posto que pela definição
é o que a mente conhece da substância.
3º Se a extensão não fosse substância, seria distinta
da substância, caso em que ela não poderia adquirir suas
dimensões (pois o não-ser não pode produzir o ser, o nãoextenso não pode se tornar o sujeito da extensão, senão
distinto da substância). Tudo o que é extenso é substância.
Esta objeção parece ter alguma força. No entanto, para
resolvê-la, basta uma inteligência verdadeira dos termos. E 1º
a extensão substancial não pode ser concebida por partes, do
contrário não seria mais o que ela é, pois seria modificada em suas
partes. 2º O atributo não é a substância; mas, como convimos,
ele é aquilo pelo qual a mente tem noção dela. Ora, se julgo
que é próprio à substância ser indefinidamente extensa, julgo
também que toda extensão determinada por suas dimensões,
ou por uma figura, não é senão uma extensão modificada, e
não a extensão substancial, a qual está em questão.
Concebo o mesmo do pensamento. Pensar em geral é um
atributo do ser: pois conheço a existência pelo pensamento,
como pela extensão, mas este ou aquele pensamento
determinado em um ser particular é uma modificação deste
atributo. Tal ser [particular], nem qualquer outro, não é
substância, nem porque é extenso, nem porque pensa ou
sente. Pois esse não entra na definição da substância, mas é
pensante, ou extenso, ou ambos juntos, porque é um modo
da substância, à qual esses dois atributos pertencem com uma
infinidade de outros, dos quais não tenho nenhuma noção e
91
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
que não entram na composição deste modo determinado a
uma certa existência.
O que engana nisso é que se faz impropriamente
distinção entre o pensamento e o ser pensante, entre a
extensão e o ser extenso, como se eu e meu pensamento ou
minha extensão fôssemos duas coisas diferentes. Mas esse
erro é fácil de destruir, pois se o sujeito da extensão fosse
diferente dela mesma, poderia ser concebido sem extensão, o
que não pode ser.
Quando eu rolo um pedaço de cera entre meus dedos,
ela é, na verdade, o sujeito das figuras que eu lhe dou,
mas não o é enquanto substância, porque eu não concebo
a substância pelas figuras. É, então, porque esta cera é
uma extensão determinada que não pode ser sem limites
e, consequentemente, sem figuras, indiferente a todas, e
necessariamente sob alguma. Ela não é quadrada quando é
redonda. Mas não é menos extensa sob uma forma do que sob
outra, porque tal e tal figura é um modo de extensão. A cera
também não é sujeito da extensão, pois, não somente eu não a
poderia conceber sem extensão, mas também sem figuras que
são modos da extensão. Se, além disso, ponho que ela é cera,
ela é por isso mesmo um modo de ser independentemente
da extensão. Seria preciso haver no mundo apenas cera para
que se pudesse a tomar por Ser substancial e absoluto. Resta,
então, concluir que ela é um modo e, se ela é um modo,
que não é a substância. Então, nem sua extensão, nem suas
diferentes figuras me farão concebê-la como um sujeito
substancial. Relacionarei sempre as figuras à extensão da qual
são modos, e a extensão ao ser do qual ela é também modo,
quando ela é determinada, e atributo quando ela é concebida
substancialmente, sem partes e sem relação com qualquer
particularidade que seja. É o mesmo do pensamento tomado
singularmente e de qualquer outra coisa que se possa propor.
O resto da objeção é suficientemente destruído pelo
que acabei de dizer, que me fez conceber em que sentido a
extensão é distinta da substância, e em que sentido não o
92
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
é, seguindo as propriedades do modo ou do atributo, pelos
quais, o primeiro, enquanto limitado, é concebido como tendo
partes e o segundo, enquanto infinito, não tem nem pode ter.
Essas diferentes reflexões trazem uma nova luz sob
minhas ideias. No entanto, sou obrigado a conceder que
ainda não me encontro em posição de imaginar claramente
o que é a substância, e suspeito que isso seja porque ainda
não examinei quais são as relações que os outros seres têm
com ela e especialmente as minhas particularidades. Neste
pensamento, empenho-me a aprofundar as relações desta
substância que concebo já necessariamente existente, una,
infinita, independente, simples, imutável, eterna, extensa e
pensante.
Por relações ou denominações externas, entendo
aquilo que é concebido em um sujeito sem nele ser realmente,
como o nome de parte que não acrescenta nem diminui nada
à essência do que é assim nomeado e que, no entanto, é
concebida tão necessariamente em relação ao todo que, sem
a parte, o todo não seria o que é.
Existem noções comuns ao sujeito das relações que
devem servir de regra para o que vamos dizer. A primeira é
que tudo o que é concebível, deve ser concebido por si, ou
por outro. A segunda, que as coisas que são concebidas sem
relação, não têm nada em comum e, reciprocamente, que as
coisas que nada têm em comum são concebidas sem relação,
isto é, que a ideia de uma é totalmente independente da ideia
de outra, também não se relacionando de nenhuma forma.
Seguindo essas regras, estou assegurado
1º que nada do que é pode ser concebido sem relação
com a substância, isto é, com o Ser existente, caso contrário,
não poderia ser concebido;
2º que tudo o que é concebido como existente tem
existência comum e, portanto, não pode ser concebido sem
relação;
3º que a substância que existe é uma, visto que qualquer
outra que pudesse ser concebida não existiria.
93
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
As relações que temos a considerar se expressam
geralmente pelos nomes de causa e efeito, de sujeito e adjunto,
de todo e parte e de personalidade. Coisas que entendemos
suficientemente pela enunciação. É por isso que, passando
inicialmente à aplicação, busco se a denominação ordinária do
Todo convém à substância, e concebo inicialmente que não:
porque, de acordo com sua definição, é indivisível, não tendo
nem podendo ter partes, sem o que, no entanto, é impossível
que haja o Todo. Concebo, pelo contrário, que os modos que
são limitados têm necessariamente partes. Assim, determino
sem esforço que, se a substância tivesse partes, não seria mais
infinita, porque estas fariam o todo e, consequentemente, o
limite que não poderia ter.
Busco também se o nome de pessoa ou o ser individual
convém à substância e não posso deixar de concluir que não,
na medida em que, quem diz uma pessoa, diz um ser distinto,
do qual se pode negar que seja um outro. Mas do ser existente
e infinito, nada podemos negar de existente. Portanto, a
substância não pode ser concebida sob a ideia de um ser
individual, e não pode ser senão muito impropriamente que
a dizemos única, visto que a unidade se torna número apenas
quando podemos dizer dois.
Para a relação de sujeito e adjunto, vejo inicialmente
que a aplicação não se pode fazer senão muito impropriamente
à substância e aos seres particulares: pois além de que não
podemos jamais propor que o finito seja adjunto do infinito,
porque sua natureza é absolutamente diferente, se tomarmos a
existência abstrata pelo sujeito da extensão ou do pensamento,
precisaríamos distinguir seu ser, o que não pode ser, a existência
não subsistindo senão em suas propriedades, como as
propriedades na existência. Isso quer dizer que o que existe é
necessariamente extenso, ou pensante, ou ambos juntos, e que se
o que existe não fosse extenso nem pensante, não teríamos ideia
alguma, pois não conhecemos o ser senão por seus atributos.
Eu vejo esta ou aquela figura em um pedaço de cera
como um adjunto, porque pode ser indiferentemente redonda
94
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
ou quadrada; mas eu não poderia imaginar sua extensão da
mesma maneira, porque se não fosse extensa, ela não existiria.
É por isso que concluí acima que ela não é redonda ou quadrada
senão por um modo de ser da extensão, como não é extensa
senão por um modo particular de existir em geral.
Eu também não poderia raciocinar diferentemente a
respeito do pensamento. A propriedade de formar ideias e
ter percepções, que sinto em mim mesmo, não é diferente
de mim, nem minha extensão e minha figura. Esta mudou
quando de pequeno me tornei grande, e velho do jovem
que eu era. No entanto, minha individualidade não mudou.
Assim, a mudança das ideias que constituem a forma do meu
pensamento não me deve fazer julgar que eu, sujeito dessas
ideias, seja diferente das próprias ideias. Cada ideia ocupa
toda a base do sujeito pensante e posso me assegurar que
o que pensa em mim no momento que escrevo isso não é
diferente de minha ideia presente, e que o é sua forma atual,
como tal figura o é da cera, que manuseio, embora esta figura
e esta ideia sejam igualmente mutáveis e sucessivas.
Compreendo o bastante que se essa cera tivesse uma
percepção de si mesma, internamente se acreditaria o sujeito
dessas figuras sucessivas, ou bem que ela pensaria que essa sob
a qual ela se poderia considerar lhe seria essencial. Mas esses
julgamentos seriam ambos falsos, o primeiro, porque concebemos
bem que a cera não tem existência distinta de sua extensão, o
segundo, porque sua figura é mutável por sua natureza.
Mas eu não deveria raciocinar da mesma maneira sobre
minha própria existência? Minhas ideias são sucessivas e as
formas diferentes de meu corpo o são também. As primeiras
fluem continuamente, porque representam sem cessar objetos
novos ou percepções diferentes. Os segundos progridem
lenta e quase imperceptivelmente; mas ambos operam uma
mudança real, não de mim como sujeito, mas de mim como
existindo sob uma forma tão necessária à minha mente quanto
ao meu corpo: porque sou igualmente limitado a respeito de
uma ou outra propriedade.
95
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Posso, então, concluir com certeza que seres particulares
não são o sujeito de suas propriedades, mas que seu ser e suas
propriedades são a mesma coisa, considerados sob diferentes
aspectos e que, assim, a relação que existe entre eles é tal que
de modo a modo, ou de modo a atributo, ou a substância, mas
não é tal que a compreendemos como [relação] do sujeito e
do adjunto.
O corpo não é outra coisa senão uma extensão sólida
e delimitada por uma figura que é um modo de ser desta
extensão.
A inteligência nada mais é do que um pensamento
representativo de objetos ou de percepções, para o qual as
diferentes ideias são o mesmo que as figuras para a extensão.
Consequentemente, extensão modal sem figura, e pensamento
sem determinação de ideia, ou ideia sem imagens de objeto
ou de percepção, é o que não se pode compreender.
Mas, com mais forte razão, devo formar a mesma
conclusão em relação à substância, que, sendo já reconhecida
como essencialmente infinita, única, necessária, independente,
etc., nunca pode ser o sujeito do que é concebido como
limitado, multiplicado, composto de partes, sujeitada às
causas externas, etc.
Resta agora falar da mais extensa de todas as relações,
quero dizer aquela da causa e do efeito, que concebo de tal
natureza que um não pode existir sem o outro. Pelo nome de
causa, entendo tudo o que produz um efeito, e pelo nome de
efeito tudo o que é produzido por uma causa. Mas, porque
nada pode existir sem uma causa, segue-se que tudo o que
existe tem uma causa em si mesmo ou fora de si.
O que existe por si mesmo e só precisa de si mesmo
para existir, é certamente sua própria causa, e tal é pela
definição o Ser necessário que tenho nomeado substância, a
qual, visto existir por si mesma, é a causa absoluta de tudo o
que pode existir. Pois é da essência do efeito ter uma causa
e, pela divisão completa do ser, existe apenas o necessário e
o não necessário. Este último, então, não pode existir senão
96
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
como o efeito do primeiro. Portanto, o Ser necessário é a causa
absoluta de si mesmo e de tudo o que pode existir.
Esta verdade sendo conhecida, precisamos examinar o
caráter da ação da substância, para julgar se é determinada
ou contingente, livre ou necessária. Mas antes de decidir,
devemos convir na significação dos termos.
Chamo determinação toda ação de uma causa que
produz um efeito e, nesse sentido, não posso duvidar que a
substância seja determinada, pois é a causa geral de si mesma
e de tudo o que existe.
Chamo livre toda determinação cujo princípio está em
si mesma, acepção na qual é impossível que a substância não
seja livre, pois ela é sua própria causa de existir e de agir.
Chamo espontaneidade o sentimento que faz querer,
ou que faz aquiescer a uma determinação, mas este termo não
pode convir à substância, tanto porque ela é oposta àquela
da coação, que não pode ter relação com ela, quanto porque
não podemos julgar seus sentimentos que são infinitos; além
disso, o termo espontâneo induz uma personalidade que não
pode ser atribuída à substância.
Chamo contingente o que pode ser ou não ser, em um
sentido tal que é evidente que a substância e suas ações não
o podem ser, visto que sua natureza e suas consequências são
igualmente necessárias e determinadas.
Chamo necessário tudo o que é determinado e, nesse
sentido, a substância é necessária, sendo determinada por si
mesma; e seres particulares também são necessários enquanto
determinados por suas causas. Mas há outro tipo de necessidade
que é a da natureza, e tal é a da substância, cuja existência
é necessária por sua definição, a qual, consequentemente,
não convém aos seres particulares que podem ser concebidos
como não existentes.
Há igualmente outro tipo de determinação que consiste
nos limites prescritos para a existência dos seres particulares,
seja na extensão, seja na conformação dos órgãos, seja
nas percepções e nos conhecimentos; mas essa espécie de
97
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
determinação limitada é oposta à ideia geral e se restringe
aos indivíduos.
Isto posto, concluo que a ação da substância é eterna,
livre, infinita e necessária, como sua natureza, pois de outra
forma sua ação não dependeria dela. Ela teria uma outra causa
que ela mesma, contra sua definição, que me faz concebê-la
como sua própria causa de existir e de agir.
E da mesma maneira, segue-se que é onipotente, isto
é, pode fazer tudo o que é possível, não para forças limitadas
ou para um intelecto finito, mas em geral tudo o que pode ser
consequência de seu atributos infinitos. Ora, da infinidade de
atributos se segue a infinidade de consequências. Portanto,
a substância ou o Ser absoluto é infinito em sua ação e,
consequentemente, onipotente.
Com esta enumeração dos atributos da substância, mas
mais sensivelmente com aquilo que concebo sob o nome de
causa absoluta e de onipotência, não é difícil reconhecer o Ser
supremo, isto é, Deus que concebo como o Ser absolutamente
infinito, a substância dotada de uma infinidade de atributos,
ou melhor, cognoscível por uma infinidade de propriedades,
cada uma das quais exprime infinitamente sua essência eterna
e infinita.
Mas, nesse sentido, evidentemente percebo que não
posso limitar sua infinitude em um gênero particular, porque
seria verdadeiramente repugnante para a natureza do infinito
que fosse possível expressar alguma realidade que não lhe
conviesse ou que pudesse lhe ser negada. Em consequência do
que se pode estabelecer por axioma que tudo o que envolve
existência, realidade ou perfeição não pode ser negado do
Ser necessariamente existente e infinito, ou ainda (trazendo
a proposição de outra maneira), que seria contraditório
conceber alguma negação ou defeito em uma existência real,
infinita e necessária, tal como o Ser divino.
Todavia, não levo muito longe este raciocínio sem
perceber que a primeira dificuldade relativa à divisibilidade
da extensão lhe constitui um terrível obstáculo: pois, se a
98
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
infinitude de Deus me leva, por um lado, a julgar que ele é
real e infinitamente extenso, por outro lado, sua simplicidade
não permite supor um atributo que o tornasse divisível e que
o compondo de partes, destruiria essa mesma infinitude. Isso
me parece tão claro e tão decisivo para o sistema que postula
Deus como o criador dos corpos e da extensão, sem ser ele
mesmo extenso, que independentemente do preconceito da
educação e do hábito, que fala interiormente em seu favor,
estaria inclinado a concluir que há uma contradição em ser
extenso e infinito.
Mas, ao considerar a questão mais detidamente, é
assim fácil conceber que a extensão poderia ter sido formada
sem extensão? É a mesma dificuldade que encontraríamos
ao estabelecer que o Nada poderia produzir o Ser. Não se
trata de decidir se Deus poderia ter feito algo do nada, mas
para mostrar como ele poderia ter feito alguma coisa sem
a colocar em qualquer lugar: pois é uma contradição e, por
consequência, impossível. Ora, ao criar a extensão, onde ele a
colocou se não havia extensão? Se dissermos que a infinitude
de sua natureza compreende tudo, isso quer dizer, em outras
palavras, que a extensão é um efeito de um de seus atributos.
O que nos ilude neste confronto é que estamos
acostumados a considerar a extensão em suas partes e a
compreendê-la sob uma figura, não tendo nem mesmo
imagem do infinito senão pela adição de várias quantidades
limitadas, sejam números, sejam magnitudes. O que eu tomo
por infinito não é isso, por mais extenso que o conceba.
E, consequentemente, ele não pode entrar em qualquer
comparação com o infinito substancial, que devemos
conceber indivisível, de sorte que o atributo da extensão que
ali descubro não se limita nem a uma quantidade, nem a uma
medida imaginável.
É verdade que quando formo a ideia da quantidade por
uma medida, devo concluir que ela é divisível, mas a extensão
abstrata, tal como a concebo em consequência da infinitude
da substância, não é nem mensurável nem figurável senão em
99
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
seus modos ou maneiras de ser. Portanto, a extensão enquanto
atributo não prova que a substância seja divisível, e menos
ainda porque concluí acima, por sua definição, que ela não
pode ter partes.
Mas essa solução não é questionável? Não poderiam
me dizer que esta extensão substancial não divisível é uma
quimera de minha mente, visto que não conhecemos nada
disso por experiência e que, ao contrário, a experiência está
contra mim, e todo o raciocínio que podemos fazer sobre o
sujeito da extensão conhecida?
Para melhor julgar a verdade, parece-me conveniente
abandonar por alguns momentos a ideia da extensão e escolher
uma outra, se possível, mais sensível, pela qual possamos
formar um raciocínio comparativo. Ora, nada é mais sensível
do que o pensamento. Mas de onde tiramos o sentimento,
senão pelas ideias? Essas ideias não são limitadas, figuradas,
determinadas, senão absolutamente como a extensão, pelo
menos em seu gênero? Mas acreditarei que as ideias de Deus
sejam limitadas e determinadas como as nossas? Se dirá que
a determinação da ideia não se toma a partir do objeto que
ela considera, que o sujeito pensante pode ser infinito, na
medida em que considera uma infinidade de ideias de uma
vez, embora cada uma dessas ideias sejam determinadas no
objeto particular que elas representam, além disso, que a ideia
de Deus tem outro objeto infinito que é ele mesmo, e que as
ideias particulares não aumentam seu conhecimento.
Mas mesmo isso é uma contradição: pois não concebo
menos uma infinidade de ideias particulares distintas, que
uma infinidade de números. Sempre posso acrescentar uma
nova quantidade a ambos. Dizer que as ideias particulares
não aumentam o conhecimento de Deus, isso não se pode
compreender, visto que aumentam ao menos o conhecimento
acidental, além do que é impossível negar que, suprimindo
por suposição essas ideias particulares do conhecimento
divino, não se destrói sua infinitude. E não se pode evitar esse
inconveniente senão reconhecendo que o conhecimento de
100
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
Deus compreende substancialmente todos os tipos de ideias
possíveis, sem número, sem limites e sem medidas, que é o
sentido no qual se pode julgar que Deus ou a substância é tão
extenso quanto é pensante, mas não é e não pode ser divisível
em nenhum desses aspectos.
E daí tenho motivo para concluir que nenhum atributo
da substância única deve ser concebido, de sorte que se
possa inferir que ela seja divisível, visto que não pode ter
partes, como foi provado, e da mesma maneira concluo que a
pluralidade ou infinitude dos atributos não combate a unidade
da substância, porque é de sua essência ser uma e ter uma
infinidade de atributos ou de propriedades.
Devo tomar por regra dessa noção que a quantidade,
o número, a figura e tudo o que conclui por dar limites ao
Ser, não podem convir senão às modalidades da substância
e não à ela mesma enquanto substância. Por exemplo, vejo
que um corpo, como a água, é divisível, mutável, sujeito à
corrupção, ao congelamento, a tomar a forma dos vasos em
que está contida. Mas digo que todas essas propriedades não
lhe convêm senão em relação à sua modificação, e não em
relação à sua existência substancial.
Me responderão imediatamente que mesmo para
mim a existência e as propriedades são inseparáveis, e isso
é verdade, como foi provado acima da existência modal da
cera, ou do pensamento. Mas como é da experiência que todos
os seres particulares são mutáveis e mudam de modalidade
sem perder a existência substancial pela qual são um com a
substância, devo concluir que as propriedades modais da água
ou de qualquer outro sujeito particular não são consequências
do Ser substancial.
Uma coisa é o Ser, outra é a maneira de ser. Esta é
limitada, finita, mensurável, etc. Mas o primeiro é infinito,
imutável e, portanto, não é limitado nem mensurável. Que se
voltarmos a dizer que o ser é, então, o sujeito do modo e esse
modo é seu adjunto, ou que o modo é para o ser o que a cor é
para o mármore, de sorte que será reduzido à natureza de um
101
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
simples acidente, é fácil de replicar, como acima, que o ser e
o modo são confundidos na substância e que esta existe nos
modos, assim como os modos existem nela.
Detenho-me aqui para refletir sobre o que entendi
até agora e, examinando-o, para julgar se minhas ideias são
claras, se as conclusões têm alguma solidez e, enfim, para
onde me conduzem. Mas quanto mais avanço, mais fico
surpreso. Porque nesta ordem de raciocínio não posso deixar
de concluir que Deus e a universalidade das coisas são o
mesmo. Segue-se, portanto, que tudo o que pensei do Ser
Soberano, do Ser Perfeito, de um Deus a quem acreditei dever
obediência, amor, adoração, religião, de um Deus criador juiz
das minhas ações, tudo isso se desvanece. Mas posso estar
indo rápido demais: e de fato.
Se eu me imaginasse Deus soberano da natureza da
maneira que os reis são em seus estados, com a diferença
de que seu poder é sem limites, sem dúvida me desviaria da
verdade; pois devo conceber que a vontade de Deus não é
separada de sua inteligência, nem seu poder de sua vontade,
visto que tudo é um na substância indivisível. Mas isso o
desvia de sua perfeição? Não sem dificuldade; pois o que é a
perfeição senão a realidade do Ser? E podemos conceber uma
realidade mais absoluta do que aquela que inclui tudo o que
existe e sem a qual nada pode existir?
Concebo que os homens que têm as ideias e os desejos
sucessivos não fazem, de uma só vez, tudo o que está em seu
poder; mas seria absurdo pensar a mesma coisa de Deus. Na
verdade, é dito que se Deus tivesse feito tudo o que podia,
ele teria exaurido seu poder onipotente. Pretexto absurdo
para supor Deus, senão pela impotência, ao menos pela
impossibilidade de fazer tudo o que poderia. Não é mais justo
reconhecer que a onipotência de Deus sempre existiu em ato, e
que estará ali eternamente, porque é um atributo inseparável
de sua natureza?
Se eu também concluísse que a ideia de Deus,
compreendida sob a da infinitude do universo, dispensa-me
102
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
da obediência, do amor e da adoração, estaria fazendo uso
ainda mais pernicioso de minha razão: pois me é evidente
que as leis que recebi, não do relato ou da intervenção de
outros homens, mas imediatamente dele, são aquelas que a
luz natural me faz conhecer como verdadeiros guias de uma
conduta racional. Se me faltasse obediência a este respeito,
pecaria não só contra o princípio de meu ser e contra a
sociedade dos meus semelhantes, mas contra mim mesmo, ao
me privar da mais sólida vantagem da minha existência: mas
é verdade que esta obediência apenas não me engaja senão
aos deveres de meu estado, e que ela me faz considerar todo
o resto como práticas frívolas, inventadas supersticiosamente,
ou para a utilidade de quem as instituiu.
No que diz respeito ao amor de Deus, longe desta ideia
enfraquecê-lo, creio que nenhuma outra é mais adequada
para aumentá-lo, pois ela me faz conhecer que Deus é íntimo
ao meu ser, que ele me dá a existência e todas as minhas
propriedades, mas que ele as dá a mim liberalmente, sem
censura, sem interesse, sem me sujeitar a nada senão a
minha própria natureza. Ela bane o medo, a inquietude, a
desconfiança e todos os defeitos do amor vulgar ou egoísta.
Ela me faz sentir que é um bem que não posso perder e que
possuo tanto melhor quanto mais o conheço e amo.
No que diz respeito ao culto, embora me vincule àquele
em que nasci e ele me faça preferi-lo a todos os outros, percebo
bem que, ao me despir do zelo desumano, dos sentimentos de
parcialidade e ódio que acompanham a religião vulgar, ela
purifica a minha e a torna digna de ser praticada por uma
mente racional, como a torna mais própria à honrar o Ser
supremo.
No que diz respeito à qualidade de juiz das ações dos
homens, de onde seguem as de recompensador e de vingador,
não discordo que essas ideias não toquem eficazmente algumas
mentes que só o medo e a esperança podem convencer. Mas
devemos também admitir que elas são inteiramente opostas
ao amor perfeito, que é nosso primeiro dever para com Deus, e
103
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
que elas são as fontes muito fecundas de todas as superstições
do mundo. Supondo, todavia, que o bem que delas deriva
supera o mal, devemos concordar que seu fundamento é a
persuasão do castigo e da recompensa que o vício e a virtude
devem encontrar, seja neste mundo, seja na eternidade. Mas
qual inconveniente pode haver em olhar para esta distribuição
de castigo ou recompensa como uma consequência necessária
da primeira verdade, isto é, da natureza divina? O mal que
deve alcançar aos ímpios e a felicidade que os bons devem
esperar, são menos temidos ou desejados de uma maneira
do que de outra? E nossa precaução ante essas qualidades,
que são para nosso uso, deve nos cegar ao ponto de não
ficarmos satisfeitos com a justiça de Deus, senão enquanto a
imaginamos arbitrária e semelhante à nossa?
Assim, seja o caso que os princípios do amor a Deus,
da caridade, da temperança e da justiça universal receberam
para nós uma forma de lei pela voz de certos homens que
foram favorecidos por revelações sobrenaturais e autorizados
a estabelecê-los por milagres, seja o caso de terem sido
simplesmente gravados em nossos corações pela natureza, e
que brilham ali à luz da razão para a felicidade daqueles que os
seguem, e a condenação daqueles que os rejeitam, seriam eles
menos salutares aos primeiros e menos danosos aos últimos,
que não podem violá-los sem dano a sua consciência?
Isso não é rejeitar a religião, nem a virtude, senão
estabelecer sua recompensa em sua prática. Tampouco autoriza
o crime ao estabelecer a principal punição na vergonha e
no remorso que o acompanham, ou na perversidade e na
loucura que preenchem ambos. Quando julgamos o contrário,
é porque a virtude não parece suficientemente amável em
si mesma para engajar o coração, ou porque o vício tem
tantos atrativos que estaríamos inclinados a nos abandonar
a ele por escolha, sem o medo de penitência. Se, então,
praticarmos a virtude nesta disposição, podemos nos gabar
de que merecemos alguma recompensa, mesmo da parte de
um juiz que é suposto infinitamente justo e esclarecido? Isso
104
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
seria antes odiar sua obra, obedecer ao terror, condenar seu
próprio coração e renunciar às luzes da razão, que poderiam
fazer o homem feliz, fazendo-o encontrar Deus, a verdade, o
descanso em seu próprio meio, sem remeter a sua posse em
um tempo de uma outra vida.
Esse raciocínio alivia um pouco minha inquietude e
tranquiliza minha imaginação. No entanto, não remove duas
dificuldades que à primeira vista parecem intransponíveis: a
primeira é que, se Deus e a universalidade dos seres são a mesma
coisa, segue-se que, sendo todas as coisas em geral, ele não é
nada de particular. Ele não pensa senão nas inteligências, não
se estende senão nos espaços, em suma, é tudo e é nada. Ou
seja, é uma quimera tão absurda quanto a primeira matéria.
Em que, então, podemos basear a obrigação de amá-lo, e como
ele poderia fazer felizes aqueles que o conhecem? A segunda
dificuldade é que se Deus é verdadeiramente (como foi
demonstrado) um ser necessário e infinito, suas consequências
devem ser iguais e necessariamente infinitas. Razão pela
qual se pode concluir que os seres limitados e particulares
nunca poderiam ser consequência da existência da substância
infinita. Tentarei responder a ambas as dificuldades.
Mas para colocar a primeira em toda a sua força, é
necessário acrescentar, parece-me, que no princípio que é
aqui desenvolvido, se imaginamos alguma personalidade
na substância, essa será um modo ou maneira de ser, sem
proporção com a infinitude, e que se rejeitarmos a ideia de
personalidade, não será nada absolutamente, ou pelo menos
nada de que possamos formar a ideia, seguindo a regra:
universalium non datur notio [universais não dão conceito].
Não sei de que servem para este assunto as distinções
utilizadas pela Escola, e pouco versado nas sutilezas que
lá se ensinam, contentar-me-ei em dizer que entendo
perfeitamente que se pelos termos de pessoa [personne] ou
de suporte [suppôt] devemos entender um ser limitado e
definido tal que exclua qualquer outro suporte, é impossível
que a substância, que é concebida infinita por sua natureza,
105
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
goze dessa personalidade exclusiva; mas que, se tomarmos o
termo pessoa por realidade do ser, é igualmente impossível
negá-la à substância, visto que é a única existência real e
necessária que inclui absolutamente todas as outras, embora
julgadas não necessárias.
Essa objeção envolve, ao meu ver, uma contrariedade que
destrói toda a sua força: pois convimos que a substância existe, e
que é próprio dela existir. Assim, não negamos que ela seja; mas
queremos que ela seja pessoalmente [personnellement] distinta
de suas afecções, e queremos admitir que essa personalidade
é um atributo do ser, como se pudéssemos imaginar que uma
esfera redonda e branca fosse realmente e pessoalmente
distinguida de sua redondez e de sua brancura. Ora, posso bem
conceber que esses dois modos são realmente distintos um do
outro, pois a redondez não é a brancura; mas não conceberei
jamais que a esfera seja pessoalmente distinta de sua redondez.
Assim, voltando à ideia universal, concebo que a figura de uma
esfera e a de um triângulo são pessoalmente distintas, pois são
modos da extensão; mas não poderei distinguir pessoalmente a
extensão da esfera, nem do triângulo. E é o mesmo, por razão
mais forte, da substância em relação aos seus atributos e a todas
as afecções das quais ela é suscetível, visto que ela é a ideia
universal que as compreende todas distintamente entre elas,
mas indistintamente delas com ela mesma, pois ela é o único
fundamento de seu ser. Além disso, é-me muito mais evidente
que Deus existe, necessária e absolutamente, em seus atributos
infinitos, do que me é difícil de conceber que ele é tudo e
infinitamente além. Se me proponho a universalidade das
coisas como uma quantidade numérica, é contraditório associála à ideia do infinito substancial, que não pode ter partes sem
deixar de ser o que é. Mas também, se eu me proponho essa
universalidade como um suporte particular, confundo as ideias
mais distintas ao querer que o universal seja particular e que o
infinito seja limitado.
É por isso que concluo que compor o Ser de Deus das
diferentes partes do universo é destruí-lo, pois, sendo infinito,
106
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
não tem partes. Querer que Deus seja um suporte singular ou
individual é, da mesma forma, destruir a ideia de sua infinitude
e a de sua existência absoluta. Pretender representar à sua
imaginação uma ideia modal do Ser infinito é enganar a si
mesmo. Duvidar da existência de Deus depois de concluir que
ele existe necessariamente é duvidar da própria evidência.
Mas como combinar o impossível, como entender
que Deus é o todo e que não faz parte do todo, e que existe
sem uma personalidade distintiva? Isto não é tão difícil se
reconhecermos que sua existência é certa. Porque toda a
questão se limitará a definir sua maneira de existir. Mas quem
diz uma maneira de existir, diz um modo; não se trata mais
do Ser absoluto que compreende todas as existências modais.
Assim, vejo claramente que tudo o que eu possa dizer ou
imaginar a esse respeito, longe de me fazer conhecer como
Deus existe, faria-me perder a sua ideia. Portanto, estou seguro
de que não preciso da minha imaginação para o compreender.
Basta que a evidência de seu ser me seja tão certa quanto a
minha própria, sem exceção do que extraio do sentimento,
ou, por outras palavras, sendo verdadeiro o princípio de que
Deus existe, necessário, infinito e absoluto, e que os modos
são limitados e não necessários, devo concluir que Deus, ou a
substância, não é um modo, e que todos os modos juntos não
são Deus. Se me pressionam dizendo que há uma contradição
em minha ideia de infinito, visto que, se for assim, não se
pode negar nada de sua existência, é inconcebível que seres
particulares não sejam partes dele, eu responderia que ele
é um Todo substancial no sentido de que nada lhe pode ser
adicionado, nem retirado, e que inclui tudo, mas que não é
um Todo relativo às partes, que ele não tem e não pode ter,
enquanto que ele é infinito.
Com efeito, as definições devem servir de regras
para minhas ideias. Se compreendi, então, que o infinito
existe necessariamente, que não tem partes, porque se fosse
composto poderíamos lhe acrescentar algo, e que por isso não
seria mais infinito; que não obstante ele compreende tudo,
107
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
porque se lhe pudesse negar alguma realidade, também não
seria infinito (como o coloca a definição); se eu também
compreendi que é da essência do modo ser limitado e existir
pela determinação de uma causa fora dele, necessariamente
concluirei que nenhum deles, nem todos juntos podem ser
o infinito, nem o Ser necessário e absoluto. Esta conclusão
é da última evidência. É, então, preciso fixar minha ideia
neste termo de que a noção da substância não está ao alcance
dos recursos da imaginação, que não se instrui senão pela
experiência, e que nunca a fez nem poderia fazer sobre um tal
sujeito, e com isso ficarei satisfeito em saber que Deus existe
sem poder determiná-lo outramente senão por sua infinitude,
sua necessidade, etc. Nesta convicção, inclinarei-me [exciterai]
ao seu amor, ao seu culto, à obediência, persuadido, porém,
de que tudo isso nada é em relação a ele, mas que em relação
a mim é o bem essencial que convém ao meu ser.
Poderiam ainda objetar-me que seria preciso experiência
para se assegurar da verdade de uma tal definição; mas, pelo
contrário, entendo que não há necessidade de experiência,
senão a respeito das coisas que não são claramente exprimidas
por uma definição, isto é, contidas na expressão da ideia
que delas tenho formado. Por exemplo, na medida em que a
existência não é a essência do modo, nem compreendida em sua
definição, visto que ele pode ser concebido como não existindo,
não posso estar certo de que existam modos senão pela minha
experiência; mas quando a definição compreende a existência,
isto é, quando não posso conceber uma coisa sem existência,
não posso duvidar, mesmo sem experiência, de que esta coisa
não seja. Tal é o Ser de Deus que é concebido necessário,
embora minha imaginação não possa formar uma imagem.
Consequentemente, posso dizer que minha experiência a esse
respeito se relaciona com o sentimento que tenho do meu
ser, já que não poderia conceber o Ser necessário senão como
existente.
Quanto à segunda dificuldade, que gira em torno da
natureza das consequências do Ser infinito e necessário,
108
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
parece-me que está suficientemente resolvida distinguindo
os dois significados acima observados da palavra necessário.
Pois convindo que todos os seres particulares não envolvem
nenhuma necessidade que se relacione puramente com sua
existência, isto é, podemos concebê-los como existentes ou não
existentes, desde que não prestemos atenção à determinação
de sua causa, ao lado da qual são sempre necessários, porque
não há efeito sem causa, nem causa sem determinação.
Mas Deus não é infinito em relação a uma
determinação externa que o fez existir. Ele é a sua própria
causa; ele existe por si mesmo, infinito, como ele é, e nada
pode ser concebido separadamente [divisément] em seu Ser
substancial. É, portanto, evidente que a necessidade do Ser
de Deus e a necessidade da determinação que faz existir os
seres particulares são duas necessidades diferentes; uma visa
o próprio Ser, a outra visa a eficácia da causa.
Mas os seres causados não podem ser infinitos, uma vez
que são determinados por sua causa e limitados pelo próprio
fato de terem uma causa fora deles. Portanto, não há questão
de saber como determinados seres particulares podem ser
finitos, uma vez que não podem ser diferentes. Reduz-se, assim,
a dificuldade em determinar como podem ser consequências
do ser infinito, o que é fácil, pois a substância não pode ser
sem suas afecções, e as afecções da substância são modos.
Ora, as afecções da substância são consequências de seu ser.
Assim, os modos necessariamente finitos são consequências
da substância infinita.
Os modos são infinitos em geral, porque as
consequências do Ser infinito são da mesma natureza que ele,
ou seja, existem tantos modos quanto ideias no entendimento
infinito, e os modos de ser em particular no Ser geralmente
absoluto. Mas todos eles são limitados enquanto modos, caso
contrário, não seriam o que são.
Eu torno essa ideia ainda mais clara ao considerar que
os atributos de Deus devem exprimir sua essência, sem o que
não a conheceríamos, pois é tudo o que estabelece a noção
109
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
que temos, mas que os modos que são as maneiras de ser
desses atributos não representam diretamente senão esses
mesmos atributos, que, assim, a extensão não compreende
o pensamento, nem reciprocamente; de sorte que cada
modo é limitado no gênero de seu atributo, e não é uma
consequência senão do mesmo atributo: porque a extensão
não é consequência do pensamento.
Isto posto, se refletirmos que a substância que por sua
natureza deve ter infinitos atributos não nos é conhecida senão
pelos dois da extensão e do pensamento, que compreendem
todos os objetos de nossas percepções, não podendo ter senão
de um ou o outro gênero, facilmente concluiremos que é
impossível, não de imaginar, mas de conceber a menor ideia
do infinito, a não ser aquela que é carregada por sua definição,
isto é, pelo conhecimento que temos de sua existência
necessária.
E consequentemente diremos que os modos, sendo
seres imperfeitos, carentes da principal realidade, que é
a necessária, não tendo outra senão aquela que segue a
determinação de sua causa, não podem ser consequências
da infinitude de Deus, mas que são consequências de seus
atributos enquanto afecções dos mesmos atributos.
Examinando essas respostas, parece-me que elas
resolvem inteiramente as dificuldades propostas. Mas como
em uma decisão de tal importância é preciso empregar
todos os tipos de precauções, parece-me necessário apoiar
adequadamente minha ideia para compará-la com a que
supõe que Deus é um infinito particular, especificado, como
em consequência de sua perfeição, que também lhe dá uma
onipotência arbitrária. Eis aqui como eu compreendo esse
sistema.
Deus não é o Ser absoluto, mas uma espécie particular
do ser, distinto dos demais por sua perfeição suprema e por
sua infinitude. A perfeição de Deus é de tal natureza que nada
de excelente deve ser concebido que não lhe pertença no grau
soberano. O poder supremo e arbitrário é concebido como
110
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
uma vantagem infinita: consequentemente, pertence a Deus,
excluindo todos os outros seres, e Deus o exerceu na criação
dos seres particulares que ele tirou do nada, tal como ele os
pôs e quando os pôs.
Nesse sentido, a infinitude de Deus não é tomada
genericamente, mas como uma excelência da natureza à
qual pertence tudo o que pode ser considerado bom. Pois
não concebemos o mal como uma realidade; é por isso que
restringimos a infinitude de Deus ao que pode ser chamado
bem perfeito.
Pretende-se ademais que as criaturas são obra de sua
simples vontade e poder, que ele governa esses seres por sua
sabedoria infinita, dispensando a cada um os talentos que
possui, exercendo, não obstante, sua justiça e bondade para
cada um de acordo com seus méritos.
Este sistema tem grandes vantagens e poupa grandes
inconvenientes. 1º Ele decide sobre as dificuldades do infinito,
que nos ocuparam até agora. Pois concebendo Deus como
um infinito particular, não é mais uma questão de mostrar
que ele não tem partes, basta assegurar tal. 2º Ele abrevia
todas as nossas pesquisas a respeito de seres particulares,
dizendo-nos que eles são como aprouve a Deus formá-los. 3º
Ele adula a imaginação, que é a parte sensível do homem,
1º propondo um objeto exterior à sua religião: pois não
podemos facilmente meter na mente que o culto e o amor são
indiferentes à natureza suprema, a quem o são devotados,
e que só são vantajosos para o homem que os dispensa. 2º
Dando-nos uma razão precisa e conforme ao que praticamos
na ordem do mundo, da construção de suas partes, de sua
relação, de sua beleza e bondade. 3º E enfim, proporcionandonos, para todas as ocasiões singulares e para todos os efeitos
que nos surpreendem, um recurso miraculoso e uma causa
tanto mais suficiente quanto se supõe ser acima de todas as
forças da natureza.
Ousaremos dizer depois disso que falta a parte mais
essencial da beleza do sistema, saber a verdade? No entanto,
111
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
é preciso admitir, se o Ser Supremo fosse tal como esse sistema
o representa, não seria nada menos do que queremos que ele
seja, e não teríamos certeza alguma de que ele existe.
1º Se Deus fosse um infinito especificado com um certo
caráter de ser particular, ele não seria nem o ser absoluto,
nem o infinito real e verdadeiro. Não o primeiro, porque
concordamos que ele é diferente das criaturas; não o segundo,
visto que poderíamos negar dele tudo o que concebemos de
realidade efetiva, em lugar da qual precisaríamos substituir
uma outra puramente imaginária e ideal.
2º Se Deus não fosse o Ser absoluto e o puro infinito, não
teríamos demonstração de sua existência, porque a existência
necessária só pode pertencer a ele em consequência de que
é o ser absoluto. Porque se alguém diz que essa necessidade
é consequência da perfeição de Deus, responderei que essa
perfeição supõe que exista, e exigirei que me prove que existe
de fato. Não é suficiente, por exemplo, dizer que é da essência
de um triângulo ter seus três ângulos iguais a dois ângulos
retos, embora isso seja comprovadamente verdadeiro, se não
me mostram um tal triângulo, ou melhor, se ele não existe de
fato: pois se eu negar que ele existe, nego consequentemente
todas as suas propriedades.
Assim, eu poderia convir que é da essência do Ser
perfeito existir, mesmo necessariamente, que ainda precisaria
me provar que um tal Ser existe, sem o que não seria mais
uma demonstração, mas um sofisma.
Além dessas dificuldades, há várias outras, não menos
essenciais, pois 1ª a Criação é impossível na suposição de que
Deus seja o Ser necessário e infinito. 2º O que estabelecemos
como regra de perfeição, o que chamamos de virtude, bem
e mal, é em relação a Deus uma pura ficção da imaginação.
3º O poder supremo e arbitrário do qual fazem o principal
atributo da Divindade envolve contradições que arruínam o
sistema, e assim várias outras.
Aqueles que compreendem que o termo infinito é tão
absoluto que esgota, ou melhor, envolve a totalidade do Ser sem
112
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
exceção, quiseram evitar esse escolho usando uma distinção
escolástica. Eles dizem que Deus é infinito intensivamente
e não extensivamente, o que explicam dizendo que toda a
virtude do Ser é reunida na essência de Deus, de sorte que
nada pode existir senão por ele, e que os seres particulares
não têm existência própria, visto que, não sendo nada por si
mesmos, não são senão o que ele quer que eles sejam. Eles
pretendem que isso não prejudique o infinito perfeito, que
deve existir necessariamente, segundo a definição que dão
dele. É por isso que eles asseguram que os seres limitados e
não-necessários não podem, pela mesma definição, ter nada
em comum com o infinito, nem mesmo a existência.
Mas o que significam realmente as palavras intensivo
e extensivo, senão a maneira como o universal e o infinito se
tornam particulares em seus modos, sem perder seu infinito e
sua universalidade?
Não é evidente que se supor que Deus é um ser
especificado, todo infinito como se quer concebê-lo, haverá
uma ideia de ser mais universal do que a sua, visto que ela
o compreenderá enquanto especificado, e que compreenderá
também a universalidade das coisas, que se supõe essencialmente
diferentes dele? Ora, se existe uma ideia mais geral do que o
infinito, o infinito não é mais o infinito.
Dir-se-á, sem dúvida, que os seres limitados, na
quantidade que são supostos, não podem constituir um
todo infinito e que, consequentemente, seja os removendo,
seja os adicionando ao infinito, ele é sempre o mesmo por
natureza. Isso é verdade no sentido negativo, que exclui toda
composição na natureza infinita, mas não o é no sentido
afirmativo e próprio que descobre que o infinito compreende
toda realidade, ou que do ser infinito não se pode negar
qualquer existência real.
Se me objetam ainda que a ideia universal do ser
não tem objeto distinto, como não o tem a de humanidade,
tomada a parte rei, porque a humanidade não existe senão
nos indivíduos humanos, e igualmente o Ser universal nos
113
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
particulares, respondo que essa comparação é muito desigual,
havendo aí uma diferença completa entre os sujeitos, visto
que o ser absoluto é concebido existir necessariamente, e que
a humanidade abstrata é julgada um ser não necessário e não
existente.
Se, depois de ter concebido o Ser absoluto, eu pudesse
compreender que ele não poderia existir, concluiria que minha
ideia não tem objeto distinto dos seres particulares, porque ela
os representa para mim como existindo sem necessidade. Mas
do só fato de que o Ser absoluto existe necessariamente, devo
concluir que ele é e que compreende todos os outros realmente.
Se acrescentarmos que a ideia universal compreende
o finito e o infinito como duas espécies ou duas propriedades
do ser inteiramente distintas, portanto, que um não é o outro
e que, assim, há razão para sustentar que eles têm existências
totalmente diferentes; eu respondo a esta objeção, que
não passa de um sofisma, que nenhum ser é finito porque
existe, pois a existência é absoluta e comum a tudo o que
é, mas que um ser é finito pela modificação do atributo no
qual ele é compreendido, seja extensão, seja pensamento.
Consequentemente, a pretensa divisão do ser em finito e
infinito não deve ser admitida, pois repugna à noção do ser.
Mas se alguém toma a existência pela maneira de existir,
acautelo-me de não contestar essa conclusão. Reconheço que os
seres particulares não existem como o Ser infinito e universal,
visto que são limitados e têm curta duração, ao passo que este
é substancial, único, eterno e necessário. Mas não se segue
que, enquanto o Ser absoluto é infinito e substancial, ele não
compreenda suas modalidades, visto que a substância contém
seus modos, os quais não podem existir ou ser concebidos sem ela.
Enfim, passando por essas dificuldades espinhosas a
respeito da verdadeira noção do infinito, cheguemos à que
consiste na impossibilidade da criação. Parece-me que há duas
razões principais que nos devem convencer disso. A primeira
é uma consequência natural da necessidade do Ser absoluto,
e a segunda é tirada de sua infinitude.
114
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
1º A criação é suposta dos seres não necessários, isto
é, daqueles que, nada sendo por si mesmos, receberam a
existência pelo só beneplácito de Deus, que não são concebidos
como uma determinação de sua natureza, mas como um
ato arbitrário que poderia não ser, pois se ele não pudesse
não ser, não conceberíamos aí liberdade, prova certa de que
nossa ideia não é correta. Ora, se os seres criados não são
necessários, isto é, se não são determinados a existir senão
por um ato de vontade contingente, é preciso concluir que
Deus, cuja essência é a existência necessária, não é seu autor,
visto que o ser necessário só pode agir necessariamente.
Mas se, confundindo a liberdade com o acaso, sustenta-se
que o ser necessário pode agir contingentemente, responderei
que resta provar que existem diversas substâncias; porque
enquanto a ideia da unidade do ser subsistir, será preciso
conceder que tudo o que existe ou pode existir lhe pertence,
e que, consequentemente, a criação de seres tirados do nada
é impossível, visto que seguindo uma noção comum a ambos
os sistemas, concorda-se que não existe senão as substâncias
e suas afecções.
2º Se Deus é o infinito atual, ele compreende toda a
realidade possível. Assim, ou os seres particulares não são
reais, ou pertencem ao infinito. Então, sua criação não pode
ser compreendida. É tão evidente que nada pode existir para
além do infinito (já que por sua definição é aquilo a que não
se pode acrescentar nada da mesma natureza), que todas as
objeções que se possa fazer sob o pretexto da desproporção do
finito e do infinito me parecem puras ninharias, concebendo
distintamente que o ser é uma propriedade comum às
criaturas e ao criador, a qual não pode ser limitada de forma
alguma sem alterar a natureza do infinito e destruí-la. É vão
sustentar que se os seres limitados pertencessem ao infinito,
ele seria consequentemente divisível. É um erro grosseiro da
imaginação que relaciona a divisibilidade à extensão, em vez
de julgar com precisão que nada é divisível senão o que é
mensurável.
115
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
3º Retiro uma última prova contra o sistema da
criação, não somente da opinião vulgar que quer que os seres
particulares compreendidos sob o nome de criaturas não sejam
conservados em sua existência senão pela continuidade de sua
criação, mas também da demonstração que faz com que um
ser não possa mudar de modo sem mudar de existência, a qual
lhe é concedida por meio de uma nova criação ou reprodução.
De fato, se supormos que a noção de cada indivíduo
envolve todas as suas diferentes determinações, ou, para falar
mais propriamente, se é verdade que o ser não pode existir
senão nos modos que lhe são próprios, seguir-se-á que ele não
pode mudar de modos sem mudar de ser. Ora, quem não vê
que para essa mudança ele precisa da mesma criação que se
supõe tê-lo feito existir a primeira vez? Isso é claro.
Mas se sustentam que o mesmo ser pode mudar de
modo sem mudar de existência, isto é, para dar exemplos
que a mente é sempre a mesma sob qualquer ideia que ela
se transforme, como o corpo em repouso ou em movimento
é sempre o mesmo corpo, será preciso, para compreender
essa identidade contínua, abstrair da substância pensante,
que será concebida não pensante em certo momento, como
a substância corporal será concebida como não estando em
repouso nem em movimento; porque a passagem de um
modo a outro supõe um instante no qual o ser é privado do
modo que ele parte e ainda não é dotado do modo que deve se
tornar. De fato, há uma tal diferença entre o modo de repouso
e o de movimento que um nunca pode ser concebido sem o
outro. Assim, na discussão dos diferentes modos corporais,
será preciso supor um tempo em que o corpo não estará nem
em repouso nem em movimento, nem reto nem dobrado,
nem figurado, o que é absurdo no sistema de quem rejeita as
propriedades do Ser absoluto ou quem com ele confunde as
existências modais e não necessárias dos indivíduos.
Mas se, além disso, a coisa é por si mesma evidente,
visto que sei sensivelmente que minha mente é capaz de
tomar diversas ideias, e que meu corpo é o mesmo sentado ou
116
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
em pé, falando ou escrevendo, segue-se que o Ser em geral ou
em particular é capaz de diferentes modificações sucessivas,
ou que a abstração do ser não seja uma quimera inconcebível,
como se pretende.
Mas em ambas as opiniões, a criação ou reprodução
do ser em cada momento que ele recebe um novo modo deve
passar por uma ideia inútil e sensivelmente falsa. Então, a
primeira criação não é senão ela mesma uma quimera absurda,
visto que ela se termina em simples modalidades do Ser que já
existe, segundo o que já foi demonstrado.
Pois, se é preciso repeti-lo, o Ser é por si mesmo,
e as modalidades individuais não existem senão pelas
determinações de suas causas. É necessário, então, distinguir
nos indivíduos o que eles possuem a título de ser, que é a
existência, e o que eles têm a título de modos determinados, a
saber, composição, figura, forma, ideia, etc. Mas a existência
nunca deve ser concebida como uma criatura, a menos que se
diga que o ser é o efeito do nada, ou vice-versa.
Concluirei, então, que a abstração necessária que deve
ser feita do Ser, toda a vez que se quiser imaginar a mudança
modal de algum indivíduo, é uma imagem justa e acabada
[accomplie] do Ser absoluto, existente em suas modalidades, e
que ela faz a prova perfeita do absurdo do sistema da criação.
E, enfim, concluirei por último que a criação é uma
obra impossível e contraditória, que não concebo no poder
do Ser onipotente, visto que ele não pode senão o que seu
intelecto infinito pode compreender, e que nisso o finito e
o infinito são iguais, que eles conhecem distintamente que
uma coisa não pode conjuntamente ser e não ser. Se os seres
particulares são concebidos como afecções da substância,
ou modos do Ser absoluto, eles não são tirados do nada
pela criação, isso é mais claro do que o dia. Se são julgados
não necessários, não são o efeito de uma causa necessária
da necessidade da natureza e menos ainda o efeito de uma
vontade arbitrária, visto que não há causa sem determinação.
Ou, se quisermos juntar essas ideias contraditórias, eu teria
117
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
o direito de sustentar ainda que, embora às vezes abusemos
da razão pelos sofismas, não é desculpável se deixar conduzir
a uma opinião tão absurda e tão sensivelmente contraditória
como essa da criação, seja qual for a autoridade que a religião
lhe empreste; porque (isto seja dito para resumir em poucas
palavras o raciocínio precedente) ela é suposta de seres
que não existiriam e nem mesmo poderiam ser concebidos
existentes, se eles não tivessem a existência comum com o Ser
substancial e absoluto, isto é, se não fossem modos.
A respeito da ideia que nós formamos da perfeição, ou
do que é chamado de bom e mau, vício e virtude, defeito e
perfeição, é bastante evidente que julgamos apenas em relação
a nós mesmos. Tudo o que satisfaz a nossa sensibilidade, ou
seja, a percepção que temos do nosso ser, o que a expande,
o que a conserva, é universalmente chamado de bom, como,
pelo contrário, dizemos que uma coisa é má quando nos
aflige, restringe ou ameaça nossa existência. Assim, os objetos
são bons ou maus para a nossa sensação em relação aos
sentimentos de prazer, alegria, dilatação ou constrição, dor e
aflição que eles nos causam.
Disso, se passarmos à consideração dos atos de um ser
inteligente, é claro que chamamos virtude aqueles que são
convenientes à nossas ideias de bem, e vício ou imperfeição
aqueles que se relacionam com nossas ideias de mal, ou de
um bem menor.
Acredito que, em consequência dessas definições,
podemos concluir com certeza que o bem e o mal não são
nada de positivo, e que não devemos considerá-los senão como
modos de pensamento ou noções formadas pela comparação
que podemos fazer dos outros seres conosco e deles entre eles
mesmos. Consequentemente, o que é assegurado de um bem
ideal ou arquetípico, ao qual todos os bens, a virtude e a própria
santidade, devem se relacionar, parece-me bastante distante da
verdade e da realidade, porque é evidente que cada coisa é nela
mesma conforme à determinação de sua causa, e não pode ter
mais perfeição ou realidade do que ela lhe deu.
118
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
Ora, os seres particulares não existem por eles mesmos
e, portanto, a sua causa está sempre fora deles, diferentemente
de Deus, que sendo concebido o Ser necessário, deve ter sua
causa em si mesmo, segundo a sua definição, isto é, que ele
é a sua própria causa de existir e agir, e como sua ação é
tão necessária quanto sua existência, segue-se que tudo o que
podemos conceber sob qualquer relação que seja, tem uma
perfeição, ou melhor, uma realidade atual e necessária.
Não é, portanto, uma realidade ou perfeição comparativa,
que pudesse de alguma forma depender da minha ideia ou
da minha estima. Não devo conceber nada em Deus que não
exista necessariamente e por ele mesmo. Quando digo que ele
é totalmente bom e o soberano bem, é porque sua existência
é, de fato, o fundamento da minha. Amando o meu ser,
procurando sua conservação nas regras da razão, realizo a sua
obra, consinto com o sentimento que ele me deu e encontro
este bem soberano no meio de mim mesmo, segundo minha
própria disposição e modificação.
Então, se acrescento à ideia do ser infinito aquela dos
atributos de sabedoria, justiça, misericórdia, paciência, amor
pela virtude, ódio pelo vício, pureza, etc., faço duas coisas
igualmente improváveis. Pois 1º qualifico a divindade pelas
virtudes humanas que não são de seu uso e que ela não poderia
praticar, na medida em que a respeito de umas, sua unidade
as exclui de todo comércio, e em relação a outras, não vejo
nada de real e positivo que possa pertencer-lhe. 2º Ao pensar
em elevar sua excelência, destruo sua infinitude: pois não há
nenhuma dessas virtudes que não tenha seus limites; mas,
se as tomarmos em um grau intenso, como elas se conflitam
entre si, é certo que não poderiam existir no mesmo sujeito,
não mais do que as figuras redonda e quadrada.
Além disso, essas virtudes são modos ou maneiras
de ser, seja à respeito do hábito, seja a respeito dos atos,
e, portanto, não podem ser adequadas ao Ser que existe
substancialmente, do qual as ideias são tão verdadeiras e
reais que as coisas particulares possuem precisamente tanta
119
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
realidade quanto elas contêm de realidade, e não mais. Isto
destrói absolutamente tudo o que jaz apenas em relações e
em comparações de uns com os outros.
Mas o erro do sistema é ainda mais sensível quando
prestamos atenção que ele conduz naturalmente a recorrer a
um outro princípio que não o próprio Deus, para dar razões ao
que ele fez. E é assim que se diz que ele age para certos fins,
ou em relação a um determinado bem que lhe é conhecido,
supondo consequentemente uma causa determinante de sua
ação, de todo diferente dele mesmo. Mas se, para evitar esse
inconveniente, contenta-se em dizer que ele mesmo é o bem
intencional e o fim a que se propõe, tem-se a mesma ideia
que nós, disfarçada sob uma expressão diferente. Pois isso
quer dizer que a causa da ação divina está em sua essência
e, portanto, é ela tão necessária quanto sua existência. Isto
destrói o sistema da criação arbitrária.
A ideia de um poder supremo exercido deliberativamente
não é menos desproporcionada ao Ser substancial e absoluto,
se for formada não de uma potência necessária, cujo exercício
não é livre senão na medida em que ela é determinada por si
mesma, como não é absoluta senão no sentido de que pode
fazer tudo o que é possível, e não mais. Mas para se ter uma
ideia da onipotência de Deus, em consequência da qual se possa
concluir que ele fez e poderia fazer igualmente o possível e o
impossível, os contraditórios assim como os simples contrários,
os seres pensantes como os extensos, e em geral todo o universo,
sem nada disso pertencer ao obrador, isto é abusar de sua razão
e dos termos pelos quais ela se exprime.
Diz-se, não obstante, para apoiar a ideia comum que se
tem sobre esse assunto, que a onipotência é concebida como
um atributo necessário do Ser perfeito; mas que se negarmos
a criação de seres sem matéria preexistente, em consequência
de um simples ato da vontade divina, arruína-se a ideia da
onipotência, porque essa seria sua operação mais essencial.
Porém, já mostrei que se faz uma falsa ideia da onipotência,
sobretudo porque ela nunca deve ser aplicada ao impossível
120
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
contraditório, tal como ser e não-ser. Resta somente dizer algo
da vontade considerada em nós e em Deus, porque nós somos
enganados a seu respeito, por um sentimento interior, que nos
faz confundir a determinação, em consequência do qual agimos,
cuja causa quase nunca nos é claramente conhecida, com a
consciência de nossa ação. De sorte que usualmente tomamos
a aquiescência dada à determinação por um julgamento livre e
um ato voluntário, que se pode repetir quantas vezes quisermos,
e que assim se torna o verdadeiro princípio de todas as nossas
ações. E daí concluímos que, como a vontade é a mais universal
e a mais estimável de nossas faculdades, e que sem ela nós nos
conceberíamos despojados de toda ação, ela deve, com mais
forte razão, encontrar-se eminentemente no Ser perfeito. Ora,
neste sentido, crer que Deus poderia ter desejado uma coisa ,tal
como a criação, e que Ele não a executou, seria sem dúvida um
defeito, o qual é importante justificar.
Mas sem nos deter por ora em demonstrar o abuso que
se encontra na suposição de nossas faculdades, limito-me a
provar que aquilo que concebemos pelo nome de vontade não
pode convir a Deus, e que seria até prejudicial ao Ser Perfeito.
Eis aqui duas razões.
A primeira é retirada da definição dada pelos melhores
teólogos, que nos ensinam que Deus é um ato puro, ou seja,
que não há nada nele dividido, nem divisível, ou que suas
infinitas faculdades estão todas unidas em uma só essência e
existência. Daí se segue que seu consentimento, sua vontade,
sua potência, etc., são apenas uma coisa existente em ato: e,
portanto, que ele não conhece nada que não quer, e que não
quer nada que não execute atualmente.
A segunda é uma consequência do axioma comum e
geralmente reconhecido, de que o efeito difere de sua causa
precisamente no que dela recebeu. Daí decorre, por exemplo,
que o homem que ao engendrar um outro, sendo causa real
e efetiva de sua existência, difere dele precisamente por esta
mesma existência: de sorte que o pai e o filho, que convêm
em essência, na qualidade de homens, fruindo das mesmas
121
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
faculdades, diferem formalmente em existência, de sorte que
vivem e existem separada e independentemente. Ora, Deus é
incontestavelmente a causa verdadeira e soberana do homem; é
por isso que se este tem faculdades das quais é preciso convir que
Deus seja a causa efetiva, será por essas mesmas faculdades que
o homem diferirá formalmente dele. Pois, se fosse verdade que
a vontade humana seria uma faculdade distinta da aquiescência
dada a uma determinação sensível, cuja causa é desconhecida,
seguir-se-ia que nem esta mesma faculdade, nem as outras de
memória, julgamento, etc., poderiam se encontrar em Deus,
por esta razão invencível de que o efeito difere de sua causa
precisamente no que dela recebeu. E é assim que podemos nos
convencer de que o Ser absoluto e supremo está de tal forma
acima de todas as ideias e de todas as imagens, que nossos
esforços para representá-lo nos privam de seu conhecimento ao
invés de facilitá-lo.
Talvez dirão que este raciocínio prova demais: porque
sua conclusão se estende à existência que o homem sustenta
[tient] de Deus mais particularmente do que todo o resto. Mas
isso em si é verdade, visto que nada existe substancialmente
senão o Ser absoluto, e que as entidades particulares não são
senão modalidades cuja existência não necessária nada tem
de igual a dele.
Por essas razões, concluo em último lugar, que se há algo
de verdadeiro e razoável no sistema da Divindade, tal como
é vulgarmente concebido, está perfeitamente de acordo com
nossas primeiras definições, e que o que há de acréscimos sob
diferentes pretextos de probabilidade, decoro e de comparação,
se distancia do fundamento verdadeiro e não é capaz de nos
lançar para fora da rota da reta da razão. Mas, como não basta
conhecer a existência de Deus, e que é necessário ainda, se
possível, aprender o que somos, assim como o resto do universo,
buscaremos doravante, na mesma ordem e com as mesmas
precauções, de que forma os seres particulares puderam ser
produzidos e o que eles são precisamente.
***
122
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
A noção essencial que deve regular este trabalho é a
conclusão já seguidas vezes repetida, de que nenhum ser pode
existir nem ser concebido independentemente da substância,
a qual não nos sendo conhecida senão por dois de seus
atributos, o pensamento e a extensão, disso se segue que não
podemos ter uma ideia de nenhum ser que não seja modo de
um ou de outro.
Isto suposto, estamos certos de que o corpo é modo da
extensão, senão enquanto ela é penetrável e indefinida, ao
menos enquanto pode ser sólida e figurada, segundo a noção
própria de corpo. E apenas daí tenho motivo para concluir
que Deus não é um corpo particular, nem todos os corpos
juntos, visto que não pode haver corpo sem modificação e,
consequentemente, o corpo tomado em geral ou em particular
não pode ter qualquer proporção com o infinito.
Não estamos menos certos de que as ideias em geral e
em particular são modificações do pensamento. E, portanto, a
mesma razão nos obriga a concluir que Deus não é a totalidade
das ideias em geral, nem qualquer ideia em particular, que ele
não pode ser compreendido por nenhuma ideia representativa
de seu ser, e que sua ideia própria não pode representar algum
objeto particular. Porém, é indubitável que o pensamento é
um de seus atributos, visto que é pelo pensamento que dele
temos a primeira e a principal noção. Mas é a [noção] de um
pensamento infinito, visto que ela nos faz conhecer um ser
infinito, ou seja, ela compreende toda a existência e realidade
efetivas. De sorte que não pode existir nenhum modo dos
atributos divinos que não seja conhecido ou conhecível por
um modo correspondente no pensamento infinito. De fato,
se houvesse algum modo da substância infinita que por sua
natureza não pudesse ser representado por nenhum modo
do pensamento, seguir-se-ia que o atributo do pensamento
não seria mais infinito, ou não forneceria mais a noção e a
prova da existência de um ser infinito, o que vai contra a
definição do atributo. Portanto, é evidente que o pensamento
considerado em sua qualidade de atributo é capaz de conhecer
123
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
e representar, seja realmente, seja virtualmente, todas as
modificações da substância que são seu objeto infinito.
E daí resulta 1º que, seja considerando os atributos
divinos em sua própria natureza, seja os considerando
como objetos de um pensamento infinito, eles devem ser
infinitamente modificados, seja real, seja virtualmente,
segundo a forma da ideia divina. E 2º que cada modificação
possui no atributo que lhe é próprio uma existência real e
determinada. Real, porque tudo o que participa do ser da
substância é real e efetivo; e determinada, porque de outra
maneira ela não existiria, nenhum ser não necessário podendo
existir sem uma causa específica e particular.
Propondo-nos, então, a pesquisar como os seres
modificados existem e como são produzidos diária e
incessantemente, não podemos duvidar que eles existem 1º
como modificações dos atributos da substância, visto que
pela regra geral reconhecida por todos, não há nada que não
seja substância ou afecção de substância, e que por nossas
demonstrações particulares estamos convencidos de que não
são substâncias. 2º Dizemos que eles existem como objetos
reais e necessários do pensamento infinito que é em Deus. E 3º
reconhecemos que, enquanto modos, eles são imediatamente
produzidos pela determinação de suas causas, da mesma
maneira que esta determinação é o efeito de uma outra causa,
e assim ao infinito, até à causalidade suprema, que se encontra
em Deus, tal como demonstrado por sua definição.
Todavia, seria concluir errado inferir desse raciocínio que
Deus não fosse senão uma causa remota de cada modalidade,
porque a causa imediata se encontra na determinação: pois é
necessário distinguir em um sujeito o que pertence ao ser e o
que pertence à maneira de ser, depois do que conceberemos
facilmente que se esta se relaciona com a determinação, e
não é o mesmo da existência, que não pode ser concebida
separadamente daquela da substância: visto que, se não
houvesse o Ser absoluto, não se daria nada de existente no
mundo.
124
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
Tampouco se segue que as coisas que não são modos de
pensamento não existam senão em consequência delas serem
o objeto necessário da ideia divina. De fato, cada atributo é
concebido separada e independentemente. A ideia da extensão
não envolve a do pensamento, nem vice-versa. Ora, visto que,
seguindo o axioma, o que é concebido independentemente
e sem relação não possui nada em comum, segue-se que as
modificações de um atributo não podem ser causas em um
atributo diferente, caso contrário, as naturezas estariam sujeitas
a uma confusão perpétua. O pensamento se tornaria extensão,
ou a extensão se tornaria pensamento, o que é um absurdo.
Porém, esses atributos e essas modalidades pertencem a um só
ser. E é dele que cada um tira o fundamento de sua existência,
que é comum, não tendo senão a atribuição e a maneira de ser
que seja diferente; e é a partir daí que se segue por necessidade
da natureza que, malgrado sua distinção formal, as modalidades
do pensamento se reúnem às da extensão, de sorte que umas
se tornam o próprio objeto, e outras as imagens sensíveis e
representativas de tudo o que acontece ao objeto delas.
Mas, para compreender bem este assunto, não será
inútil, antes de irmos mais longe, fixar as noções que devem
ser atreladas às palavras mente, pensamento, ideia.
Pela palavra Mente, entendo então todo ser pensante.
Não que eu pretenda distingui-la essencialmente da extensão,
porque as conclusões precedentes nos ensinaram que a
substância infinita é ao mesmo tempo extensa e pensante, e
porque a experiência também nos ensina que o pensamento
se encontra unido aos nossos corpos, embora sua conexão não
seja conhecida.
2º Pensamento é um ato representativo e sensível pelo
qual o ser tem percepção de si mesmo e de tudo o que lhe
acontece, bem como dos objetos externos que é capaz de
perceber ou conhecer, em consequência da impressão que
deles recebe.
3º Ideia é todo conceito formado pela mente. Mas
há ideias de vários tipos, embora todas elas convenham
125
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
na propriedade de serem sensíveis ao sujeito pensante, de
representar objetos e de conter um julgamento sobre o objeto
representado.
Não vou distinguir aqui as ideias em relação à
sensibilidade e aos afetos do sujeito pensante. Isso será o
objeto da segunda parte deste tratado, nem em relação aos
julgamentos que elas contêm, que serão o assunto da terceira;
mas as considerando em relação à representação, parece que
se pode dizer que umas são puramente mentais e espirituais,
porque não representam nada que caia naturalmente sob
nossos sentidos, e tais são as ideias que temos da substância
e de suas propriedades; que outras são puramente corporais e
não representam senão nossas percepções; e que, enfim, outras
são mistas, resultantes das operações e reflexões da mente
sobre as ideias corporais. E tais são aquelas que exprimimos
pelos termos de duvidar, concluir, raciocinar, comparar, etc.
Mas a sua divisão principal deve, parece-me, relacionar-se
com a verdade que elas contêm, isto é, com a sua conveniência
com os objetos que elas representam: segundo o que chamarei
ideias iguais aquelas que são conformes, e desiguais aquelas
que não o são. Depois disso, descubro que existem simples e
compostas, gerais e particulares, absolutas e relativas, e várias
outras espécies cujos detalhes iriam longe demais.
Ora, tendo assim determinado o significado das
expressões, é evidente que, ao aplicá-las a Deus, devemos
reconhecer que a unidade de sua essência com os atos, que
são consequentes, demonstra inelutavelmente que a ideia que
é nele, é tão igual ao objeto que ela representa, que ela não
constitui senão um mesmo ser com ele. De sorte que é verdade
dizer que a ideia de Deus se conhecendo, e ele mesmo, são um
só; visto que se a ideia de Deus fosse diferente, o modo não
seria o que é, ou a ideia de Deus poderia ser falsa, o que não
pode ser.
Todavia, isso não deve ser entendido sem precaução
e sem critério, pois de acordo com a definição precedente,
o pensamento enquanto é um conceito sensível da mente,
126
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
representativo dos objetos e das percepções, nunca pode estar
isento de modificação, uma vez que ele não existe senão pela
determinação dos objetos. E, portanto, se [o pensamento] é
infinito na substância, enquanto é um atributo dela, deixa de
sê-lo assim que exista especificamente, mesmo na suposição
de que possa representar ao mesmo tempo, por uma única
ideia completa, a infinidade de modificações da substância.
Esta verdade se tornará ainda mais evidente se
considerarmos que não só o pensamento tem como seus
objetos todos os modos possíveis da extensão, que é infinita
por sua qualidade de atributo, mas que todas as modificações
de que ele mesmo é capaz são igualmente seu objeto, a mente
não sendo menos sensível à percepção das modalidades do
pensamento do que àquelas da extensão.
Ora, a consequência natural dessa consideração nos
levaria a dizer que há uma contradição em sustentar que esses
atributos são infinitos, visto que o [atributo] do pensamento
seria precisamente o dobro do [atributo] da extensão, numa
unidade aproximada [à une unité près]; medida e numeração
de partes incompatíveis com a natureza do infinito, como já
observamos.
É preciso remarcar que aqui eu digo numa unidade
aproximada [à une unité près], porque a última ideia não
seria representativa, caso contrário haveria um progresso ao
infinito, o que não pode ser.
Mas temos uma outra regra que nos aproxima da
verdade, ao nos fazer sentir, por essas dificuldades, que nos
é absolutamente impossível formar qualquer ideia do Ser
substancial, e que nos basta saber com convicção que nem
a substância, nem seus atributos, são infinitos por suas
modalidades, não podendo ter nelas um numeral infinito;
mas que são infinitos por sua natureza, no sentido de que
nada de real pode ser negado de sua existência, assim como
nada pode existir que não lhe pertença.
Se, então, depois disso, quisermos definir com precisão a
maneira pela qual a ideia de Deus, ou o atributo do pensamento
127
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
envolve as ideias de todas as modalidades possíveis, tanto as
que existem atualmente, como as que existiram e não existem
mais, ou daquelas que existirão embora ainda não o sejam,
tendo-se bem compreendido a demonstração que estabelece
que a ideia de Deus representativa dele mesmo ou de tal
modalidade que é a mesma coisa que o objeto representado,
será necessário concluir que essas ideias particulares são em
Deus como seus objetos, isto é, enquanto os seres particulares
não existentes senão em potência nos atributos divinos
relativamente à suas causas ou à seus efeitos, sua ideia não
existe em Deus de outra maneira, mas que quando eles passam
à uma existência real, que em relação à sua não necessidade
não é mais do que uma duração dependente da determinação
de suas causas, então a ideia de Deus os conhece e os abraça
como realmente existentes e participantes de sua própria
realidade: de tal forma, não obstante, que esta ideia objetiva
e eles próprios não sejam senão uma e a mesma coisa, pois,
como se disse, se a ideia de Deus fosse diferente, eles não
seriam o que são.
E daí vem que, se alguém perguntar o que pode ser
a ideia divina, ou o modo de pensamento correspondente a
uma matéria absolutamente desconhecida, como aquela que
existe na terra perpendicularmente sob o lugar que eu ocupo,
a mil léguas de profundidade, ou então o interior de um
bloco de mármore, de uma árvore, de uma pedra, etc., pois
é certo que tal matéria realmente existe, pois é um modo de
extensão corporal, e que ao mesmo tempo é desconhecida, e
pouco conhecível na suposição, qual é o modo de pensamento
correspondente que lhe pode ser assinalado? A resposta
não é difícil, visto que se trata apenas de aplicar a ideia
de conhecimento virtual, que mostramos existir em Deus
tão realmente como o conhecimento atual. De fato, quem
supõe a ideia de um todo supõe a de suas partes, ao menos
implicitamente. De sorte que, se quisermos formar uma ideia
ou conceito particular da parte, é preciso, então, separá-la do
seu todo para revesti-la de outra forma: e é assim que, abrindo
128
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
a massa da terra, ou de um bloco de mármore, para penetrar
e conhecer o interior, o que era sólido se torna superfície e,
portanto, não será mais a mesma modalidade de antes. A
mesma coisa se passa continuamente no corpo animado, não
havendo ninguém que não saiba que é atualmente sensível
em todas as suas partes, embora existam várias das quais ele
pode nunca ter tido conhecimento ou sentimento explícito,
não por falta de sensibilidade, mas por falta de aplicação
formal de algum objeto a essa parte, a qual ao desenvolver
seu sentimento a teria de alguma maneira separada do todo
onde é compreendida. Exemplo preciso do que acontece no
universo material, onde a natureza e a disposição do modo de
extensão determinam o conhecimento atual e virtual que dele
se pode ter; isto é, a espécie do modo de pensamento que lhe
corresponde.1
Mas depois de ter considerado os seres particulares em
Deus, que é o princípio geral, é necessário examiná-los em si
mesmos. E como me encontro ocupando um lugar entre esses
seres particulares, interrogo a mim mesmo primeiro, a fim de
julgar os outros pelo meu próprio sentimento.
E primeiramente em relação à minha existência, busco
se, apesar das conclusões anteriores, não há meio de me
considerar uma substância, em consequência de que existo
com todas as propriedades que chamamos de transcendentes:
pois sou um, isto é, separado e distinto de todos os outros; sou
verás, isto é, um ser real e efetivo; sou bom, isto é, tenho todas
as qualidades necessárias à minha constituição: e daí não tenho
motivo para concluir que sou uma substância real? Mas, por
outro lado, se uma vez entendi a verdadeira ideia que deve
ser atrelada ao nome da substância, e particularmente esta
propriedade de ser concebido por si só, e de precisar apenas
de si para existir, necessariamente concluirei que eu e todos
1 Em nota, Renée Simon nos informa que este parágrafo, que aparece na
impressão de 1731, não está presente nos manuscritos de Valenciennes
e Angoulême (cf. BOULAINVILLIERS, 1973, p. 124n1). Dos manuscritos
que consultamos, num deles este parágrafo está ausente (Fr. 12242), ao
passo que no outro ele está lá (Fr. 9111).
129
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
os meus pares não somos senão modalidades dependentes das
causas que nos fizeram existir, ou daquelas que perpetuam
nossa duração em uma certa forma e relação de partes, embora
seja verdade que, em relação à existência, pertencemos ao ser
absoluto, do qual apenas nós a podemos ter.
Objeto-me, não obstante, que, se pertencemos ao Ser
absoluto, de tal maneira que não temos existência senão
pela participação na dele, deve-se concluir que, se ele é uma
substância, também nós somos substâncias, ou ao contrário.
Mas vejo primeiro que este raciocínio não é senão um
paralogismo, já refutado no artigo em que se tratou da unidade
da substância, no qual me convenci de que não podem existir
várias substâncias com o mesmo ou diferente atributo: e quanto
à mim em particular, o que existe em mim substancialmente
sempre existiu, e existirá eternamente porque pertence ao Ser
absoluto, por outro lado, quanto à modalidade ou maneira
de ser que depende de causas particulares, que são elas
próprias modalidades, e que não têm nada em comum com
a substância, serei absolutamente destruído assim que cair
na esfera de uma causa contrária àquela que me fez existir.
Portanto, devo me assegurar na conclusão de que os seres
particulares, considerados em sua forma ou maneira de ser
não são substâncias, apesar das qualidades transcendentes
que lhes são próprias, porque essas mesmas qualidades não
entram na verdadeira definição da substância.
Além disso, como estou certo de que não há nada
além da substância, seus atributos e suas afecções, é preciso
reconhecer que os seres particulares são pelo menos afecções
da substância universal e modalidades de seus atributos, os
quais, pelo poder do ser contido em cada atributo, passam à
existência real pela determinação de uma causa particular, e
esta por uma outra até o infinito, como também perdem esta
existência por uma outra determinação.
Isto posto, tudo o que resta é formar uma definição
correta do ser particular, que traga à luz e sem confusão
as propriedades de sua existência. Assim, digo que o ser
130
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
particular é uma modalidade determinada de algum atributo
da substância, modalidade da qual a ideia se encontra em ato
completo ou incompleto no atributo infinito do pensamento
que é próprio do Ser absoluto.
Ora, nos termos desta definição, nada de difícil se
apresenta que já não tenha sido plenamente explicado, exceto
pela diferença entre a ideia em ato completo ou em ato
incompleto, que deve ser encontrada no pensamento infinito do
Ser absoluto. E, não obstante, essa diferença é tão efetiva que,
junto com a especificação dos atributos, é ela que estabelece a
natureza e a essência dos seres pensantes e não pensantes.
Com efeito, por ato incompleto, não entendo mais que
uma possibilidade de ser, representada pela ideia ou pelo
conceito de algum ser inteligente, possibilidade essa que se
reduz à representação efetiva, sem alterar a natureza do ato
incompleto, na medida em que toda a propriedade dos seres
que ele especifica se limita a uma capacidade puramente
passiva de ser representada por uma imagem ideal e que,
assim, a realidade ou não realidade de uma tal representação
não muda nada para a natureza do objeto: e é por isso que
foi notado acima que basta que tais seres sejam conhecidos
ou conhecíveis por algum modo de pensamento que lhes
corresponda na infinitude do atributo divino.
E por ato completo, entendo uma afecção sensível,
bem como representativa de tudo o que acontece ao próprio
objeto de um ser pensante. De sorte que o Ser pensante não
é realmente distinguido do não pensante (a especificação do
atributo à parte) senão pela percepção que ele é capaz de
receber, tanto do estado quanto da disposição de seu próprio
objeto, quanto de todas as coisas que fazem impressão sob esse
objeto, enquanto o não pensante se limita à possibilidade de
ser representado por uma imagem sensível a quem a recebe,
mas insensível àquele de quem ela se toma.
Por outro lado, como já fomos aqui antes convencidos de
que a ideia objetiva, que é em Deus, de todas as modalidades
de seus atributos, não é realmente senão uma e a mesma
131
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
coisa com elas, devemos concluir que o ser pensante e o não
pensante diferem entre si como a ideia de um e do outro que
são em Deus; mas essas ideias são igualmente em ato, visto que
constituem igualmente seres reais e efetivos. É preciso, então,
reconhecer que a diferença que existe entre elas não pode
relacionar-se senão com a natureza do próprio ato, segundo o
qual a ideia do ser pensante é dita existir em ato completo, e
a ideia do ser não pensante em ato incompleto, isto é, menos
perfeito que o precedente. E daí tenho o direito de concluir
que toda a diferença dos seres é estabelecida sobre a natureza
e a qualidade do ato, que determina a ideia objetiva de Deus
em relação a eles.
Porém, segue-se ainda deste princípio, 1º que todo
ser pensante é formado no atributo do pensamento de uma
porção determinada e modificada do pensamento infinito da
substância, uma vez que a ideia objetiva que é nela, e a mente
que é o objeto desta ideia, foram demonstradas serem a
mesma coisa. E 2º que no atributo da extensão o ser pensante
é formado a partir de uma determinada porção da mesma
extensão, que se torna o objeto próprio desta modificação do
pensamento, pela determinação da ideia objetiva que é em
Deus, de tal maneira que tudo o que pode acontecer a este
objeto se lhe tornará sensível e conhecido por uma imagem
certa da impressão de todas as causas que agirão sobre ele. E,
portanto, a mente será precisamente definida como um modo
de pensamento correspondente a um certo modo da extensão
pelo qual é determinada, como pelo seu objeto próprio e
necessário.
E, portanto, a ideia objetiva e divina, que especifica a
mente humana e que a faz existir, abrange necessariamente
a do corpo humano, como de seu objeto próprio: pois se não
fosse o corpo, a mente não teria nenhuma percepção do que
lhe acontece, ou pelo menos não a teria senão como de um
corpo estranho; mas ela não tem percepção de outros corpos
senão através de seu corpo: então, seu próprio corpo é seu
objeto e não qualquer outro, senão em relação com ele.
132
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
É por isso que concluo que sou composto de corpo e
mente, e que todos os outros indivíduos que participam da
sensação e da inteligência são proporcionalmente da mesma
natureza e composição que eu: de tal sorte que com eles,
como comigo, o corpo e o pensamento estão unidos como a
ideia está ao seu objeto, e que ambos recebem sua existência
tanto da modificação dos atributos substanciais quanto da
ideia de um e do outro reduzido [réduite] em ato completo,
que se encontra em Deus.
Daí se segue que, em geral, as ideias de Deus em relação
aos seres particulares, de qualquer natureza e propriedade que
eles sejam, são entre si como seus objetos, porque se supõe que
sejam iguais e que não podem ser outras de acordo com as provas
que demos. Portanto, a realidade e a perfeição das ideias são
relativas às dos objetos e, reciprocamente, as dos objetos às das
ideias, visto que está provado que a ideia objetiva de um modo
e o modo mesmo não são senão um. E é nisso que consiste toda
a diferença individual ou especial que se encontra de homem
para homem ou de homem para outra espécie, desde o último
inseto que parece ter sensação e percepção de si mesmo, até a
inteligência mais elevada que possa ser concebida.
Nem todo modo de extensão inclui necessariamente o
modo de pensamento, embora seja evidente que os modos
de ambos os atributos se correspondem proporcionalmente.
Aquele, então, que reúne o pensamento ou o sentimento
à extensão, tem uma realidade a mais. E essa realidade
aumenta na proporção da disposição do objeto a ser movido
pelas impressões de causas externas, pois a alteração desse
objeto fornece à mente um maior número de percepções, que
consequentemente aumentam sua realidade, multiplicando
e variando suas ideias. Observação que nos faz conhecer a
grande vantagem que resulta da organização dos corpos:
visto que é ela que determina a flexibilidade e a mobilidade
do objeto próprio de cada mente, desde aquela que anima
o inseto até a inteligência suprema, e visto que é ela que
estabelece todas as diferenças individuais na mesma espécie.
133
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Mas, segue-se ainda do mesmo princípio, que a mente
que, na percepção que tem de seu objeto, melhor distingue a
natureza das impressões que recebe de causas externas, aquela
que menos confunde as diferentes afecções resultantes e,
enfim, aquela que tem sobre seu objeto um juízo mais simples,
é também a que tem ideias mais claras e evidentes, e quem está
mais disposta a fazer uma comparação correta. Princípio que
desenvolve o fundamento do que chamamos de razão.
Todavia, é muito difícil entender perfeitamente uma
tal mecânica, se não formos instruídos mais particularmente
sobre a natureza dos corpos e suas propriedades. E é isso que
me determina a interromper nossas considerações sobre a
união do corpo e da mente para tratar fisicamente do primeiro.
O corpo em geral é uma extensão sólida, isto é, um modo
do atributo absoluto da extensão, e os corpos particulares são
modos da extensão sólida distintos entre si por sua figura,
composição, repouso e movimento.
Daí se segue que todos os corpos concordam no
princípio de que eles não podem ser concebidos senão como
modos de um mesmo atributo, e que eles não diferem senão
pelos termos que demarquei.
Quanto às afecções dos corpos, notamos em geral
que as primeiras são o repouso ou o movimento, a qual é
considerada de acordo com sua velocidade, que tem vários
graus, mas não prestando atenção senão à própria natureza
do corpo, será sempre verdadeiro dizer que, uma vez que não
pode haver efeito sem uma causa, os corpos não podem se
mover, nem podem repousar, sem determinação da parte de
um agente de mesma natureza que eles, isto é, de um outro
corpo que está ele mesmo em repouso ou em movimento por
uma outra determinação, e assim ao infinito.
De fato, se considero um corpo em repouso sem atentar
a nenhum outro, não posso julgar outra coisa, senão que está
em repouso. Mas, se ele vem a se mover, sou convencido de
que não é porque estava em repouso, e que seu movimento
deve ter sido causado por uma determinação externa.
134
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
Considerando, em seguida, o efeito de uma causa
externa agindo sobre um corpo, não posso duvidar que ele
não resulta da ação da causa, e da reação do objeto que a
sofre. De sorte que dos dois nasce um ou mais modos no
corpo determinado por esta causa. Assim, quando um corpo
cai sobre outro, ao qual ele não pode comunicar nenhuma
parte de seu movimento, resulta em um modo de reflexão
pela conservação do mesmo movimento no primeiro desses
corpos.
A respeito da maneira como os corpos se associam
[joignent] entre si, observamos que, sejam eles de igual ou
diferente grandeza, sejam todos eles em repouso ou em
movimento, se são constrangidos [resserrés] por outros
corpos, se eles se tocam por suas superfícies, se se aderem ou
se penetram reciprocamente, esses corpos se dizem unidos, e
juntos compõem um todo de uma certa figura, que é um modo
da extensão sólida, que chamamos de indivíduo corpóreo ou
suporte.
A composição desses indivíduos os torna mais difíceis
ou mais fáceis de se separar. E daí vêm as distinções de duro,
mole, fluido, etc. Se algumas das partes desses indivíduos são
separadas de seu todo, e que lhes sucedam outras de mesma
natureza, o indivíduo conservará seu ser, sua composição e seu
nome, porque os corpos não se distinguem por sua substância
e porque o ser de tal e tal indivíduo não consiste senão em sua
composição.
Igualmente, se as partes desse todo aumentam ou
diminuem proporcionalmente entre elas e ao todo, se essas
mesmas partes mudam de movimento sem perder a relação
que têm entre elas, se até mesmo cessam de se mover
completamente ou em parte sob a mesma condição, é evidente
que o mesmo indivíduo subsistirá sempre.
E disso é preciso concluir que existem indivíduos de
todas espécies: alguns compostos de corpos muito simples,
outros eles próprios compostos de outros indivíduos, e ainda
outros desses últimos, e assim por diante até a universalidade
135
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
das coisas que é ela mesma nesse sentido uma espécie de
indivíduo cujas partes mudam perpetuamente, e em uma
infinidade de maneiras, sem que sua natureza seja alterada
ou cesse de ser a mesma.
Aplicando agora essas noções ao corpo humano, concluo
imediatamente que se trata de um indivíduo composto de
vários outros, os quais têm também suas partes individuais.
Percebo que dos indivíduos de que sou composto,
uns são duros, outros moles, outros fluídos, etc., que esses
indivíduos mudam, alteram-se, dissipam-se e que preciso
reparar a perda de outros corpos individuais, que tomam o
lugar das partes dissipadas.
Observo ainda que as impressões das causas externas
mudam ordinariamente o plano e a figura de minhas partes.
Enfim, creio sentir em mim mesmo não sei que força
que tomo por um poder de mover meu próprio corpo, e por
seu meio vários outros, sem que eu possa me assegurar, não
obstante, de que não seja o efeito de uma determinação
externa, cuja causa não me é conhecida.
Por essas observações, mesmo que eu não tivesse uma
experiência certa, poderia concluir que a mente humana é capaz
de ter uma quantidade muito grande de ideias e percepções
diferentes, visto que ela deve natural e necessariamente
sentir e conhecer o que acontece à seu objeto. Mas é preciso
ainda julgar que o modo de pensamento que estabelece
sua existência não consiste em uma ideia simples, mas que
resulta da sucessão de suas diversas ideias relativas a todas
as afecções de seu corpo e de suas partes, não em relação
ao detalhe de sua composição ou arranjo, mas em relação às
diferentes impressões de que elas são suscetíveis.
Igualmente, concebo que as ideias das diferentes
afecções do corpo humano e de suas partes envolvem as de
outros corpos, que agem sobre elas e sobre ele, porque de
outra forma ignoraria como é que, com a percepção de meu
próprio ser, eu também tenho a de tudo o que excita essa
percepção.
136
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
Enfim, encontro no mesmo princípio a causa pela qual
conheço tão pouco a natureza de meu próprio corpo e minha
constituição, dos quais não posso ter ideias senão por minhas
sensações. Assim como não conheço outros corpos senão
pelas impressões que eles fazem sobre o meu, as quais me
asseguram simplesmente de sua presença, ou um pouco mais,
até que outras impressões as afastem de mim, apaguem ou
enfraqueçam a percepção que delas tenho.
Por outro lado, observando que às vezes temos uma
percepção tão viva dos objetos ausentes quanto dos presentes,
para penetrar na causa dessa igualdade irregular, observo
que o efeito necessário da ação dos objetos é de modificar
as partes do corpo, sobre as quais eles agem, de sorte que a
impressão continue por muito tempo, mesmo na sua ausência,
o movimento que é formado na sua ocasião alterando as
partes próximas e estas as seguintes, até que resulte numa
disposição duradoura nos órgãos frágeis do cérebro.
Mas porque essa percepção dos objetos externos é
muito diferente daquela que se tem do que se passa em si
mesmo, chamo de imagem a ideia de objetos que permanece
após a impressão, e chamo de imaginação o poder que cremos
ter de contemplar essas imagens excitando certos órgãos ou
recordando de sensações passadas.
O fundamento da imaginação nada mais é do que a
percepção de objetos que agem ou que agiram sobre o corpo.
Mas como não existe uma percepção simples que não diga
respeito à ação de vários agentes de uma vez, as partes
orgânicas não podem assumir a situação ou o movimento que
renova essa percepção, sem relacioná-la inteiramente com
as imagens de todos os objetos que concorrem para formar
esta percepção. Mecânica que nos revela em que consiste a
faculdade da memória, a qual por ocasião de uma imagem
imediatamente evoca outra, de acordo com a sequência e
o encadeamento das percepções passadas, embora essas
imagens muitas vezes não tenham relação umas com as
outras, como não há entre as palavras e as coisas significadas.
137
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Confrontando a seguir a ideia que essas diferentes
reflexões nos dão da natureza da mente com a tese principal
que postula que o pensamento é um atributo do ser absoluto,
e que os seres particulares dotados de pensamento são modos
deste atributo, distinguidos uns dos outros por seus objetos,
encontro-me em condição de concluir que minha mente é,
então, um modo de pensamento, distinto das outras mentes
pelo objeto que lhe é próprio, o qual é meu corpo, e que
todavia não conhece este corpo, nem a si mesma, nem sua
existência, nem sua composição, nem a de outros senão pelas
afecções deste mesmo corpo.
Ou, diferentemente, pois não será demais repetir
tais princípios e de muitas maneiras diferentes, a mente
humana é estabelecida pelo conhecimento íntimo e sensível
que tem necessariamente de tudo o que acontece ao corpo
humano, composto, movido, alterado, reparado em suas
diversas partes, que são elas próprias alteradas, compostas,
movidas, reparadas, etc. Mas não é estabelecida pela ideia
ou pelo conhecimento do movimento, composição, mudança
e reparação do corpo, nem de suas partes: porque a ideia
objetiva que faz toda a realidade dos seres particulares não
estabelece a existência de mentes senão sobre a sensibilidade
das afecções de seus objetos que são os corpos.
Essas verdades que se desenvolvem pouco a pouco
me fazem perceber (embora ainda com alguma confusão)
que o sistema que estabelece a essência das mentes em um
pensamento só e puro é muito mais sutilmente imaginado
do que verdadeiro ou sólido. De fato, é tão difícil para mim
conceber um pensamento sem objeto, sem representação e
sucessão de imagens, quanto uma sensação sem órgão. O que
seria, por exemplo, uma alma separada de seu corpo, senão
um pensamento vago, indefinido, despojado de objeto real e
de sentimento? É verdade, todavia, que o ser sendo infinito e
suas modalidades também, não há fundamento suficiente para
negar que não possa haver outras inteligências muito acima
das mentes humanas, como há várias e em uma quantidade
138
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
imensa que estão abaixo em diversos graus de inferioridade,
desde que concedamos a essas objetos particulares em alguns
dos atributos divinos.
Se levarmos essa discussão adiante, também descobriremos
a razão pela qual a mente não conhece a si mesma, ignorando
sua natureza e sua essência, suas propriedades, a origem de
suas ações, sua verdadeira duração e, para dizer tudo, os
fundamentos precisos de seu repouso ou de sua esperança. Ela
pode na verdade dobrar e triplicar suas ideias, isto é, ter ideias
das ideias de seus afetos, porque ambas são sempre percepções.
Mas ela não se conhece melhor, visto que não existindo senão
como representação sensível e sucessiva das afecções de seu
corpo, não poderia ter uma ideia mais completa de si mesma do
que do objeto sem o qual ela não seria.
Além disso, como as partes constitutivas deste objeto
não são de sua essência, e que não é senão sua conjunção
ou a relação que existe entre elas o que o faz o que é, seguese que nenhuma ideia dessas partes se acha particularmente
contida na ideia total do ser humano, exceto de uma maneira
simplesmente condicional, que não pode fornecer senão uma
noção absolutamente imperfeita do todo.
Assim, infelizmente, a imperfeição do nosso conhecimento
está muito bem fundada, tanto na ignorância em que nos
encontramos da verdadeira natureza de nossas mentes e
dos nossos corpos, bem como da sua constituição, como na
impossibilidade de penetrar na dos objetos exteriores que não
nos são comunicados senão pelas sensações. Não deveria,
portanto, ficar surpreso de me descobrir ignorante de minha
própria duração, ou da dos outros, já que minhas noções são
todas superficiais e incapazes de atingir a natureza em seu
interior. Descubro mesmo a razão pela qual me acostumei a ver
os eventos como contingentes, a saber, de um lado a certeza de
que a existência de seres particulares não contém por si mesma
qualquer necessidade e, de outro, a ignorância da ordem das
causas e das determinações especiais que os fazem existir, ou
que os destroem, ou fazem com que mudem de disposição.
139
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Contudo, não posso me conhecer, e aos outros homens,
tão pouco que não saiba que nós raciocinamos, ou seja, que
podemos comparar nossas ideias entre elas e tirar conclusões.
Como isso pode ser, se nossas mentes não existem senão
pela continuação ou sucessão de ideias representativas das
afecções de nossos corpos? E esta dificuldade resolvida, qual
é a regra de julgamento que nós irá garantir que sabemos e
conhecemos algo de certo e de verdadeiro?
A respeito da primeira questão, aqui está como eu
acho que ela pode ser respondida. É evidente que as afecções
do corpo são de tal maneira o objeto da mente que não se
tem percepção alguma que não seja pensamento, nem
reciprocamente algum pensamento que não seja percepção. E
se isso fosse de outra forma, pensaríamos sem sentir e sem ter
conhecimento, o que é absurdo.
Ora, a memória, da qual começamos a formar uma ideia,
é sensivelmente o depósito das imagens de todas as percepções,
e das ideias refletidas das mesmas percepções. Por outro lado,
a imaginação que se representa como uma potência ativa e
livre, e que, todavia, não é senão a determinação consequente
de alguma afecção do corpo, excita essas imagens segundo sua
relação e a dependência nas quais elas estão uma para com
as outras. Diremos ainda que, para comparar essas imagens,
para conhecer o que elas têm de semelhante ou de diferente,
para formar uma nova ideia, para ter uma nova percepção
de uma ou de outra, seria preciso supor novas faculdades em
nossas mentes, uma apreensão que tome os objetos, um juízo
que afirme ou que negue e uma razão que conclua?
É numa tal ocasião que podemos dizer que o homem
se apraz em multiplicar os seres sem necessidade, visto
que a simples percepção basta para todas essas diferentes
operações. De fato, não é evidente que, quando se trata de
comparar duas ideias ou duas imagens, o sentimento sozinho
nos revele o que elas têm de comum ou de diferente e que a
conclusão nada mais é que a sensação mais ou menos perfeita
de sua conveniência ou desconveniência, a qual quando se
140
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
chega até o grau que chamamos de evidência e convicção, não
é senão uma percepção mais viva e que grava tanto melhor
sua imagem na memória, como todas as outras de mesmo
gênero?
É, então, verdade que nossos pensamentos mais sutis,
conquanto, todavia, que sejam pensamentos (pois muitas vezes
há amontoados de palavras que nada significam), não são
senão as imagens de nossas percepções, iguais ao mais simples
no princípio comum, que é a sensação, mas mais delicados
nos retratos que elas nos pintam, porque são traçados pela
reflexão e consequentemente mais desprendidos da matéria.
Nós nos expressamos, em seguida, esses pensamentos uns
aos outros com mais ou menos leviandade, propriedade de
expressão, e mais ou menos prazer e convicção na audiência,
conforme o estado que ela está pela disposição de seus órgãos
de serem tocados de uma sensação de certa espécie. Pois já
observamos que é a flexibilidade das partes que determina a
propriedade das mentes. Assim, não precisamos nos espantar
de encontrar homens para os quais a linguagem dos outros
é ininteligível sem diferença de idioma, porque deve haver
a mesma desproporção entre as ideias de uns e as de outros,
do que entre seus órgãos e as disposições de seus corpos. A
mesma demonstração se estende ao animal e ao inseto que
raciocinam à sua maneira, por comparação das imagens que
lhes são presentes e por aquiescência à evidência, isto é, à
sensação mais forte, sem que haja outra diferença entre eles
e nós do que a organização, tal como se encontra de homem
para homem, embora em uma menor distância.
Mas não podemos insistir contra esse discurso e dizer
que, se a mente age sobre suas ideias, se ela pode efetivamente
compará-las, reduzi-las ao que elas têm em comum e conhecer
suas diferenças, é impróprio que eu diga que essas mesmas
ideias são a forma da mente, sem outra diferença senão aquela
que se concebe entre a figura e a extensão sólida: porque a
mesma diferença que existe entre o homem e a sua obra deve
ser entre a mente e o raciocínio.
141
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Enganamo-nos, não obstante, a mente não trabalha
sobre suas ideias como sobre um assunto distinto dela mesma.
Ela compara com a verdade as imagens de suas percepções,
ela forma as ideias de suas ideias, ela as duplica, as aumenta,
as diminui, as separa, mas sempre como imagens de suas
percepções, e nunca como uma coisa distinta da impressão
sensível que elas fazem sobre ela, visto que ela não pode
conhecê-las nem julgá-las de outra maneira.
Quanto à segunda questão, que diz respeito aos meios
de conhecer a verdade e de alcançar uma certeza, a única
que pode produzir o repouso da mente, antes de responder
é necessário estabelecer alguns princípios a respeito da
imaginação e das ideias.
O primeiro é que o princípio do erro não está na
imaginação: isto é, a mente não erra em consequência do que
tem das percepções, e do que ela se representa nas imagens,
mas somente porque ao representá-las não tem faculdade
crítica, capaz de rejeitar a ideia daquilo que imagina mal: pois
ao formar um conceito, se conhecesse sempre a realidade ou
não realidade do que imagina, não se enganaria nunca.
O segundo, que toda ideia, enquanto é um modo de
pensamento, é verdadeira e real nela mesma e não contém
nada de positivo pelo qual possa ser dita falsa; tanto é assim
que, se a falsidade fosse qualquer coisa de real, seria um modo
de algum atributo do ser absoluto, o que não pode ser. Ora,
a palavra verdadeiro afirma a existência de algum modo, e a
palavra falso nega essa mesma existência; consequentemente,
é certo que o falso não é positivo.
Então, para que uma ideia seja verdadeira no sentido
natural, é suficiente que ela exista, mas para que seja justa e
proporcional ao seu objeto, e verdadeira a respeito dele, é preciso
que esse objeto exista realmente tal como é representado por essa
ideia e, enfim, para que a mente possa aquiescer a essa ideia, ela
precisa conhecer essa conveniência por uma percepção viva e
sensível, que não admite nada contrário a si mesma, e a ideia dessa
percepção é o modo de pensamento que chamamos de evidência.
142
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
A falsidade, ao contrário, não pode ter outros princípios
que a não existência dos objetos ou das qualidades que lhes
supõe, ou também a negação do que existe realmente. Assim,
não encontro senão defeito de conhecimento, visto que são
as mentes que erram e não os corpos. No entanto, isso não é
uma ignorância total: porque se enganar e ignorar são coisas
muito diferentes. É, então, um conhecimento imperfeito que
pode resultar, quer de uma percepção confusa, quer de uma
prevenção contrária à verdade, quer do fascínio das paixões,
todos os quais podem emprestar a vivacidade e a sensibilidade
que atribuímos à evidência, mas que, não obstante, são os
verdadeiros e únicos obstáculos que podem nos impedir de
reconhecê-la.
O caráter próprio, o índice seguro da verdade, não pode,
então, ser encontrado em outro lugar senão na evidência,
porque qualquer outro tipo de convicção de antemão se
tornará suspeita para uma mente livre, e não prevenida,
em lugar daquela que é o efeito da evidência nítida, clara,
distinta, que não é combatida por nenhuma ideia contrária
ou desconveniente, mas, antes, que exclui absolutamente a
incerteza. De fato, o que é saber uma verdade senão conhecêla bem, entendê-la perfeitamente? Ora, posso ter o sentimento
desse conhecimento sem sua ideia, ou sua ideia sem sua
percepção? É me impossível saber que duvido ou que tenho
certeza, se efetiva e anteriormente não tenho o sentimento
ou a consciência de minha dúvida e de minha certeza; mas
isso não é a continuação ou a consequência de um estudo
laborioso ou da arte de construir silogismos. Tudo se faz aqui
por sentimento, ao qual não está em nosso poder contradizer,
ou recusar uma aquiescência interior.
O erro, pelo contrário, é uma imagem imperfeita e
disfarçada, que representa um objeto que não existe, ou que
o reveste de qualidades que não tem, ou que nega aquelas
que ele possui, imagem que, enquanto é o conceito de um ser
pensante, é, no entanto, realmente um modo de pensamento,
bem como a evidência que é um modo de outra espécie; mas
143
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
sua realidade, que é igual quanto à existência, não o é quanto a
representação, visto que um é suposto dos objetos que existem
como tais, e o outro de objetos que não existem. Segue-se,
então, que a ideia verdadeira e a ideia falsa diferem uma da
outra, como o ser e o não-ser, visto que tal é a diferença entre
seus objetos.
Minhas ideias se esclarecem, bem o vejo, e ainda assim essa
evidência que deve banir a incerteza e fazer conhecer nuamente
a verdade parece ainda fugir diante de mim. Uma nuvem de
novas dificuldades vem me confundir, e sinto toda a força dos
preconceitos do hábito e da educação: por que, afinal, não existe
entre nós uma ciência que nos ensine a julgar a força ou a fraqueza
de um raciocínio, uma arte que ensine a persuadir os outros, a
treinar seus sentimentos e a convencê-los? Mas se esta ciência é
verdadeira, se esta arte não é uma ficção, o que acontece com
toda a pretensa mecânica das ideias, percepções e do raciocínio
mecânico? Sentimos, de fato, que o raciocínio é uma obra da
mente, na qual não só discerne as provas que quer empregar, depois
de ter estimado o valor, mas as arranja, distribui, sustenta umas
nas outras, em suma, ela as compõem à sua vontade. Por outro
lado, se se trata de persuadir, de obter, de defender, de acusar, há
uma arte na conduta da palavra e das expressões que dificilmente
falta ao fim a que se propõe; mas essas palavras e expressões são
apenas os signos de nossas ideias. Então, se a arte se aplica sobre
essas, ela consequentemente regula aqueles, e os regula primeiro
sem nenhuma dificuldade. Existe uma ciência, uma arte, um
método que possa regular os efeitos supostamente determinados
por causas externas e totalmente independentes de nós? Além
disso, qual é a faculdade que nos resta, capaz de empregar esta
arte e este método, se a ideia que temos da vontade não é senão
uma pura quimera, e se nossos órgãos não são usados senão por
uma determinação que tem sua causa fora de nós? Essas são as
dificuldades que a antiga prevenção ainda suscita para mim.
Mas antes de trabalhar para resolvê-las, é necessário,
parece-me, conceber a significação dos termos ciência, arte,
método.
144
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
Quanto ao primeiro, creio que pelo nome de ciência
nós devemos entender um acumulado regular e metódico,
composto por um certo número de ideias verdadeiras e
definidas, a respeito deste ou daquele assunto. E seguindo
esta definição, podemos assegurar que não pode haver falsa
ciência, uma vez que assumimos que todas elas devem ser
estabelecidas sobre ideias verdadeiras. Portanto, resta evidente
que a ciência deve ser definida como um conhecimento
verdadeiro e metódico de algum assunto que é adquirido por
instrução ou por experiência. E assim, rejeito a frívola definição
da Escola que, supondo que a ciência é o conhecimento dos
objetos por suas causas, exclui a todas em geral, visto que não
temos tais conhecimentos. Mas, segue-se de nossa definição
que o fundamento de toda ciência é o órgão da memória, cujo
dever e propriedade é de conservar as imagens de todos os
tipos de ideias e de todos os tipos de percepções.
2º Chamo de arte toda operação metódica dos órgãos
humanos, concomitante com as ideias e as imagens traçadas
na memória pela instrução e pela experiência. E observo sobre
este assunto que o homem sendo um autômato, isto é, movendo
seu próprio corpo de acordo com certas determinações, pode
consequentemente excitar e aplicar seus órgãos de acordo
com as mesmas determinações. E tanto mais que a memória
está compreendida entre esses órgãos, o método de dar uma
ordem às ideias que são conservadas cai tão bem na classe das
artes quanto a direção da língua, ou da mão, ou de qualquer
outro órgão mais sensível do que ela é.
Enfim, chamo de método o uso resultante da experiência
que torna conhecido sensivelmente os meios mais fáceis de
atingir um fim proposto. E, portanto, o órgão natural da arte e
do método é a imaginação que faz reviver igualmente todas as
imagens contidas na memória, seja como termos, seja como
meios, seja como peças inúteis.
Ora, essas definições postas, quem pode negar que
a ciência, a arte, o método não possam ser adquiridos e
empregados pelo homem, ser mecânico e determinado por
145
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
suas causas externas, tal como o descrevemos? Ele pode ter
ideias verdadeiras assim como supomos que ele pode ter de
qualquer espécie que seja. Mas é evidente que não pode haver
nenhuma sem percepção e, consequentemente, sem uma
causa externa. Ora, como a experiência própria e particular
do homem não lhe pode fornecer senão um número muito
limitado de ideias verdadeiras, porque a vida é curta, as
ocasiões raras, e porque o espírito quase nunca está atento,
ele também tem a vantagem de poder se beneficiar da
experiência dos outros, recebendo deles, através do órgão
da fala, a percepção de certas imagens verdadeiras, que eles
próprios receberam daqueles que os precederam ou de sua
própria experiência.
Ora, quem poderia duvidar de que, a partir desse
número de ideias tidas como verdadeiras, não se pode formar
um conhecimento verdadeiro, isto é, uma ciência concernente
a tal e tal assunto? Quem poderia igualmente duvidar de
que essas ideias sejam suscetíveis de alguma ordem e algum
arranjo, sobretudo da parte daqueles que as possuem há
muito tempo, as manipulando e comparando à vontade,
e conhecendo as novas percepções que essa comparação
produziu neles? Donde eles concluíram que teria o mesmo
efeito em outros; método que produziu os diferentes sistemas
de ciência que vemos e que forma a cada dia o que chamamos
um raciocínio, que não é outra coisa, como já foi dito, senão
um acumulado de percepções refletidas, isto é, nascidas da
comparação de outras ideias ou percepções precedentes.
Ora, como duvidar que a memória conserva as imagens
dessas novas percepções na ordem e na relação em que elas lhes
são apresentadas, ou naquilo que depende da configuração
das partes do órgão, segundo a qual uma ideia remete a uma
outra progressivamente até o termo da determinação que
excitou a primeira? Isso não coloca nenhuma dificuldade
e nem pode ser de outra maneira. Admito, todavia, por ser
uma consequência necessária da mecânica do ser humano,
que há órgãos mais bem dispostos do que os outros para
146
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
adquirir essas percepções ou imagens refletidas, como há
muitos outros que as recebem mais nitidamente, outros que
os expressam com mais força ou mais graça e leveza. Pois a
persuasão, que nada mais é do que uma percepção preferida
por quem é tocado por ela, é consequência ou da paixão que o
orador sabe despertar e conduzir, ou da evidência das razões
que sabe empregar, as quais se tornam percepções no ouvinte,
como foram primeiramente nele.
O que se torna, depois desse detalhe, toda a força das
objeções que me propus? De fato, concebo melhor que a mente
tem um poder real de inventar e forjar razões ao seu critério,
do que posso conceber que essas razões estando prontas, ela
tem a percepção delas, pela comparação que o sentimento
opera nela, das imagens dos objetos que lhe são presentes, ou
que estão gravados em sua memória, e que ela tem o poder
de exprimir tal percepção, que se tornou ideia, seja pela fala,
seja pela escrita? Há mais verossimilhança em supor que um
homem pode governar sua mão para fazer alguma obra, do que
dizer que ele conduz sua língua e suas expressões e que essas
expressões são os signos de suas ideias, de sua nitidez, clareza,
arranjo, ordem e consequência? Admito que não entendo em
que se possa basear a disparidade dessa economia, pois se o
homem tem a direção arbitrária de um de seus órgãos, deve
ter a de todos os outros, ou ao contrário.
Assim, a dificuldade se reduz essencialmente ao artigo
da vontade, a qual imaginamos ser a única faculdade que
pode empregar e dirigir os órgãos humanos. Mas é fácil
julgar, pelo que temos dito, que não pretendemos atacar a
realidade da vontade na medida em que expressa o desejo,
que é verdadeiramente o princípio e a fonte de todas as
nossas ações, e que nós não a negamos senão no sentido de
que é suposta uma faculdade livre e indeterminada por uma
causa diferente dela mesma: o que é absolutamente oposto à
natureza de um ser modal e não necessário.
Quanto ao desejo, cuja natureza explicaremos mais
exatamente na segunda parte desta obra, basta considerar
147
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
que não há nenhum que não se relacione com algum objeto,
para nos convencermos de que não é também tal que não
seja necessariamente determinado e, consequentemente,
incapaz de qualquer outra espécie de liberdade que não
a espontaneidade, pela qual querer e desejar se tornam a
mesma coisa. Assim, como é verdade dizer que a exclusão
do objeto exclui consequentemente a realidade do desejo, é
preciso admitir que a impressão do objeto é a causa necessária
da determinação do desejo.
Pode-se dizer que o homem deseja em geral ser feliz e
que este é o primeiro móvel de sua vontade, que em seguida
se porta livremente entre os diversos objetos. Mas essa objeção
não se funda senão sobre um erro da imaginação que nos faz
crer que, como nos contentamos quando nossos desejos são
satisfeitos, nós não desejaríamos senão nos tornarmos felizes.
Donde se conclui que nada desejamos senão em relação à
nossa felicidade, que é o termo necessário de nossos desejos,
e que abraçamos os objetos simplesmente por ocasião. Porém,
como sobre matérias semelhantes a experiência é o guia mais
seguro, creio que podemos assegurar que nenhum homem visa
a felicidade sem determinação do objeto, na fruição do qual
espera em vão encontrá-lo: visto que a satisfação de um desejo
não pode determinar a de outro, e as impressões dos objetos
são sucessivas e independentes umas das outras. Reservo-me a
tratar esta matéria na sequência com mais precisão e extensão,
para desenvolver o fundamento da mecânica de nossos desejos
e, consequentemente, de nossas paixões. Mas já disse o
suficiente neste lugar para tornar conhecido de que maneira o
desejo supre a vontade na direção dos órgãos humanos.
Chegamos enfim à investigação principal e
verdadeiramente essencial que consiste em determinar se é
possível conhecer a proporção de uma ideia com o seu objeto
existente e, suposta essa possibilidade, quais são os meios e
as regras que podem nos conduzir a tal conhecimento. Esta
discussão é tanto mais necessária porque só ela pode nos
assegurar que sabemos algo de verdadeiro, e que só ela pode,
148
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
por assim dizer, verificar a ideia da evidência, da qual o erro
seguidamente toma emprestado a semelhança.
Ora, o primeiro passo que pode ser dado nesta busca
nos convence absolutamente da verdade que já tantas vezes
expressamos, a saber, que nada acontece na economia
do intelecto humano que não tenha sua causa efetiva no
sentimento pelo qual distinguimos os objetos e as suas imagens
de uma maneira evidente e irresistível: visto que não está
mais em nosso poder confundir as imagens do branco e do
preto, isto é, representar um como o outro, do que aniquilar
a diferença física e real que existe entre essas duas cores. Mas
se não distinguimos positivamente os objetos uns dos outros
senão em razão da percepção que deles temos, segue-se que
não distinguimos suas imagens de nenhuma outra maneira e
que, portanto, a sensação e a ideia resultante são os princípios
necessários de nossos julgamentos.
Que se levarmos adiante esta reflexão, estendendo-a
à proporção da ideia com seu objeto, é ainda evidente que
o sentimento sendo o juiz natural e incontestável, visto que
não está em meu poder formar uma imagem diferente de
minha percepção, nem de me representar o amargo como o
doce, ou o branco como o preto. Ora, é precisamente esta
inevitabilidade do julgamento, ou da conclusão, que é feita
pela mente como consequência da percepção, que se chama
de evidência, pela qual entendemos a certeza que temos da
conformidade de nossa ideia com o objeto que ela representa.
De fato, que tipo de certeza ou convicção eu poderia
exigir ou imaginar diferente daquela que resulta do
sentimento, a fim de permanecer convencido que a ideia
que tenho do branco está de acordo com a brancura que eu
vejo, e diferente do vermelho que vejo também? Isso é da
evidência como de todas as outras ideias simples, as quais
é impossível representar por qualquer conjunto de outras
ideias, ou de palavras escolhidas para significá-las. De fato,
a ideia da evidência não admite nenhuma composição. É um
ato tão simples que nenhuma outra ideia além da sua poderia
149
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
representá-la. Mas seu poder é tão efetivo que, como ela
exclui necessariamente a suspeita, a desconfiança e a dúvida,
ela convence absolutamente a mente por uma percepção
igualmente certa e irresistível. Pedir ou pretender mais da
natureza do homem é ignorar suas forças e sua constituição:
e tudo o que imaginamos para além nada mais é do que
substituir a verdade mais sensível pelas mais vãs quimeras.
Bem sei que se objetaria os erros tão comuns de nossas
sensações, que são uma aparência de prova contrária a essa
proposição. Mas devemos atentar que esses mesmos erros não
são descobertos nem corrigidos senão por outras sensações,
sem as quais nenhum tipo de raciocínio poderia nos convencer
do primeiro erro. Quando, afundando minha bengala na água,
a percepção me representa ela rompida, não há melhor prova
para me fazer conhecer que é um erro da sensação do que
retirar a mesma bengala da água, e posso dizer que todas
as razões buscadas pelas regras de refração para assinalar a
causa de tal aparência não foram imaginadas para preveni-la,
pois seriam realmente insuficientes se a segunda percepção
não as justificasse.
Se a natureza tivesse disposto nossa constituição de tal
maneira que todas as nossas percepções concorressem para
formar o mesmo erro, a objeção proposta teria toda a força
que se supõe; mas, visto que, ao contrário, a experiência nos
assegura que uma espécie de sensação corrige a outra, devemos
sempre retornar ao sentimento para fundar solidamente o
que chamamos de evidência: isto é, a convicção de que nossas
ideias são conformes aos seus objetos.
Há homens que pensam sobre este assunto de uma forma
mais surpreendente do que se poderia imaginar: pois depois de
ter estabelecido que a verdade, como a virtude, a santidade,
a justiça, etc., não existem senão em Deus, arquétipo de toda
perfeição, eles dizem que o homem foi primeiramente formado
com uma relação essencial com essas mesmas perfeições, e que
ele não foi deturpado e tornado sujeito ao erro senão por seu
pecado, de tal maneira que ainda lhe resta uma luz natural,
150
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
cuja propriedade é reconhecer esta verdade, embora oculta
sob espessas trevas, e ligar-se a ela, após o que a inteligência
cega e a vontade corrompida se encontrarão de um só golpe
iluminadas e submissas pela operação da graça divina.
Ora, o que eles entendem, ou o que devemos
compreender pelos termos de verdade substancial, ideal
ou arquétipa? Não há tantas verdades quanto pode haver
fatos, proposições ou ideias, e poderíamos, com alguma
sombra de verossimilhança, imaginar uma verdade ideal, em
consequência da qual meu papel é realmente branco, como
me parece, e sem a qual ele poderia ser preto? Essas ideias não
são nem sensíveis, nem evidentes, e isso para dizer o mínimo.
Mas me dirão talvez que não há mais probabilidade
em sustentar que apenas as sensações possam retificar
reciprocamente seus erros, e que, supondo que assim fosse,
ainda seria impossível determinar o motivo de preferência
pelo qual o julgamento se deveria determinar mais por uma
sensação do que por outra.
A respeito da primeira parte desta objeção, ela é
suficientemente refutada pela experiência universal; mas
quanto à segunda, que contém uma dificuldade essencial, é
necessário buscar a solução. De fato, não é a vivacidade de
uma sensação que pode decidir da verdade da ideia que nos
representa um objeto; nem é a regularidade da sensação:
pois quem poderia exigir outras regras no sentimento do
que o sentimento mesmo? Então, o que é preciso para
nos engajarmos em preferir uma sensação a outra, para
aquiescer com a evidência de uma e para reconhecer o erro
da outra?
O obstáculo mais fatal ao conhecimento dos homens
é sempre sua própria disposição. Prevenidos de paixões de
tal ou tal espécie, devoção, devassidão, raiva, amor, ciúme,
curiosidade, eles não veem quase nada em seu estado natural.
O objeto é sempre disfarçado pela cor do meio através do qual
é apercebido. Espere, então, até que a disposição do órgão
seja mudada, que seja restabelecida em uma justa liberação, e
151
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
a percepção será de um tipo totalmente diferente, assim como
a determinação do julgamento.
Mas, dir-me-ão, quem será o juiz desta disposição do
órgão? A isso não tenho nada a responder, senão o que eu
diria a um homem repentinamente acordado de um sono
profundo pelo terror de alguma coisa: esteja certo de vosso
estado, conheça vossa disposição e então julgue a causa de
vosso medo ou de qualquer outra paixão você sentir. E, de
fato, entre todos os exemplos que eu poderia escolher para
dar a conhecer o quanto a certeza de uma percepção prevalece
sobre uma outra, não há nenhum mais adequado do que o do
sono e da vigília, ou melhor, das sensações que nos chegam
em um ou outro desses dois estados. A impressão de umas e
de outras é amiúde igualmente poderosa. A memória delas
também é distinta, as paixões que resultam também são vivas,
e a própria imaginação é de tal maneira seduzida por elas,
que por vezes ignora se as ideias que ela teve em sonho de
certas percepções não são realmente o efeito de sua reflexão.
Ora, de minha parte, pergunto por qual regra o homem
distinguirá certamente as percepções da vigília daquelas do
sono, e como é impossível que haja outras além do sentimento
mesmo, concluirei sempre que a evidência não pode ser
legitimamente fundada senão sobre o sentimento.
Isso é bom, responder-me-ão, pelos exemplos que
você propõe, em que podemos ter diferentes percepções de
um mesmo objeto; mas não podemos razoavelmente aplicálo aos objetos dos quais a percepção é sempre semelhante,
embora seja constante que ela nos engane. Tal é aquela que
nos representa as estrelas como pequenas tochas presas ao
firmamento, sem qualquer noção de seu verdadeiro tamanho
ou da imensa distância que existe entre elas e nós. Ora, este
é um fato em que estamos manifestamente enganados, e a
respeito do qual nenhum tipo de percepção direta pode nos
conduzir a uma verdade evidente.
Mas esta objeção não tem a mesma força que a
precedente e não contém propriamente mais que uma
152
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
repetição frívola. As regras da óptica que nos conduzem a julgar
solidamente da verdadeira grandeza dos corpos distantes,
aquelas que nos ensinam a medir distâncias corretamente,
são elas outra coisa que percepções digeridas, reduzidas em
método e tão geralmente verificadas por todos os homens
versados em sua prática, que as conclusões que delas se
extraem adquiriram um título de certeza que não pode ser
equilibrado, e menos ainda contrariado por nossas percepções
particulares, que o bom senso sempre desautorizará quando
lhes forem contrárias? Reconhecerei, todavia, que neste caso
todos os homens não têm o mesmo grau de evidência, no que
diz respeito a verdades contrárias às suas percepções. Mas,
para justificar minha proposição, basta que o matemático que
não vê as estrelas mais perto que eu, nem diferentemente,
corrija sua própria percepção de uma maneira demonstrativa
e invencível por meio de outras percepções verdadeiras, sobre
as quais estão suas regras e suas máximas estão estabelecidos,
e que pareceriam igualmente verdadeiros e convincentes para
todos, se todos as tivessem estudado.
Seja-me permitido deter-me aqui por um momento
para admirar a maravilhosa prodigalidade da natureza, a qual
tendo enriquecido a constituição do homem com todos os
recursos necessários para prolongar até certo termo a duração
de sua frágil existência, e para animar o conhecimento que ele
tem dele mesmo pelo de uma infinidade de coisas distantes,
parece ter negligenciado expressamente lhe dar os meios
para bem conhecer aquelas de que é obrigado a fazer um uso
mais ordinário, e até dos indivíduos de sua própria espécie.
Porém, bem entendido, isso é menos efeito de uma recusa
do que de uma extrema liberalidade, pois se houvesse algum
ser inteligente que pudesse penetrar um outro contra a sua
vontade, gozaria de tal vantagem sobre ele que por isso mesmo
ele seria excluído da sociedade, ao invés disso, no estado
presente, cada indivíduo goza de si mesmo na extensão de
suas forças com plena independência, não se comunica senão
tanto quanto lhe convém.
153
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Além disso, pouco importaria para a felicidade essencial
do homem que ele tivesse esse conhecimento justo e verdadeiro
dos objetos dos quais ele não tem senão uso exterior. Ele pode,
sem prejuízo de sua felicidade, ignorar a natureza do ouro e da
prata, desde que possua o suficiente para suas necessidades.
Ele também pode ignorar a natureza íntima dos animais, ou
dos indivíduos de sua espécie, porque a primeira impressão
passiva o instrui suficientemente sobre o que ele deve esperar
ou temer. Mas quanto aos conhecimentos necessários para a
felicidade da mente, embora a sua distribuição seja tão diversa,
não obstante, nada falta a ninguém do que é conveniente à
sua própria disposição e à extensão de suas forças: verdade
em consequência da qual vemos cada um contente com o
que possui, e sem a qual é verdadeiro dizer que a partilha da
existência seria muito desigual.
Porém, este não é ainda o benefício inteiro desta sábia
prodigalizadora de nossa felicidade: porque como que para
estimular o homem na busca de conhecimentos que possam
contribuir para sua perfeição ou para seu bem-estar, ela lhe deu
o aguilhão da curiosidade, não como propriedade destacada
e externa da obra, mas como uma consequência de seu ser
mecânico, segue-se que esta curiosidade, que deve servir de
suplemento ao que falta na constituição orgânica, não pode
se limitar a objetos escolhidos, mas deve se estender tão longe
quanto as forças dos recursos que lhe dão o ser. Razão pela
qual ela se aplica também e mais seguidamente aos objetos de
uso do que a todos os outros, porque caem mais comumente
na esfera de sua atividade.
Mas isso resulta em outra grande vantagem, uma
vez que seus diferentes esforços enfim produzem regras
e um método por meio do que podemos julgar de maneira
sadia e justa da verdade contida na ideia dos objetos menos
penetráveis ao nosso conhecimento, a necessidade e o hábito
lhes dando lições.
E 1º concebemos que o que é comum a tudo não pode
produzir senão uma ideia igual e perfeita de si mesmo, tanto
154
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
porque o sentimento é universal e igual, quanto porque tão
logo é suposto ser comum, não se pode formar uma noção
particular dele. E esse é o único caso em que poderia tornar
a ideia falsa.
2º É evidente que o que é comum a todos, e a todas as
partes de todos, convém à ideia objetiva de todos, isto é, à ideia
que é em Deus, de todas as modalidades de seus atributos,
e esta ideia é, como vimos, o fundamento da realidade de
todos os seres, tanto do meu como o dos outros. Se, então,
eu conheço a mim mesmo e conheço ao mesmo tempo outra
coisa, isso não pode ser senão pelo que temos em comum e,
então, limitando meu conhecimento a esse ponto comum,
devo estar certo de que esse conhecimento é perfeitamente
justo.
É verdade que também conheço as coisas com distinção,
e que sua ideia objetiva em Deus não é menos real a respeito
desta distinção do que a respeito ao que é comum; mas como
a particularidade distintiva os afasta de mim, longe de me
aproximar deles, é certo que eu nunca os conheceria, se nada
tivéssemos em comum.
Posso, então, enganar-me ao julgar o que os indivíduos
têm de particular, mas não posso errar quanto ao que nos
é comum, ou então seria verdade que não conheço a mim
mesmo. Assim, devo concluir regularmente que há noções
comuns a todos os seres inteligentes e que essas noções são
verdadeiras, ou seja, conformes aos objetos dos quais elas
representam a ideia.
Mas podemos ir ainda mais longe, e afirmar que as noções
consequentes das primeiras noções verdadeiras são também
verdadeiras, supondo, todavia, a verdade da consequência,
sobre a qual se pode estar enganado por diferentes meios, que
não são do presente assunto, visto que nos basta saber que
toda a arte de descobrir verdades ignoradas e acessíveis deve
consistir, segundo nosso princípio, em despojar os objetos da
particularidade que os esconde de nós, e em reduzi-los à ideia
comum na qual, como vimos, não podemos errar.
155
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Ora, é certo a este respeito que a natureza nos favorece
pela nossa só constituição, sem estudo e sem trabalho, de
tal sorte que a nossa própria fraqueza e os limites nos quais
nossa capacidade é envolvida servem necessariamente para
nos aproximarmos da verdade: porque não sendo capazes
de conter claramente senão uma certa quantidade de ideias
e imagens, elas se confundem por si mesmas, assim que
seu número excede, e então a mente não podendo mais
contemplar um detalhe que ultrapassa sua força, compreende
a todas ao comprimi-las sob a ideia geral mais próxima, o
homem, o animal, o cão, etc., daí se segue a necessidade de
inventar termos universais, o gênero, a espécie, etc., e os
termos transcendentes, ens, res, aliquid [ser, coisa, algo].
Devo, então, conceber que, para julgar com verdade
os seres particulares, não precisamos nos deter nas ideias
exclusivas que eles nos apresentam, mas que é preciso, na
medida do possível, considerá-los em relação às noções
universais, nas quais não podemos nos enganar, em vez das
ideias singulares serem relativas às nossas percepções, que
nunca seriam iguais, pois os órgãos que as recebem são todos
diferentes, ou tão frágeis que muitas vezes é necessário apenas
um ligeiro intervalo de tempo para torná-los dessemelhantes
deles mesmos. Sobre o que, observemos de passagem, não há
razão para nos surpreender que os filósofos, que querendo
explicar as coisas naturais pelas diferentes imagens que delas
formavam, estivessem tão pouco de acordo.
De resto, para completar a explicação de minha ideia
sobre os meios de chegar ao conhecimento da verdade,
parece ser necessário apenas mostrar distintamente as
ocasiões comuns do erro, ou melhor, definir de que maneira
ocorre nos enganarmos por erro de percepção, por erro da
imaginação, ou por erro de ambos juntos. Mas, como seria
preciso empregar exemplos e entrar em um detalhe que
poderia distrair nossa ideia do objeto principal deste tratado,
retorno à certeza que se encontra nas noções comuns, embora
não sujeitas à percepção ou à imaginação. E é a este respeito
156
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
que é verdade dizer que a convicção e a certeza que temos
da existência de Deus, considerado como substância absoluta,
ou como ser substancial e verdadeiramente infinito, supera
todas as outras espécies de certeza e de convicção, visto que
não somente ela é comum a todo ser inteligente e capaz
de atenção e reflexão; mas não há nada no universo que
possa ser concebido independentemente dele, que é a causa
suprema e a fonte necessária da qual cada modalidade tira sua
existência; desde que, todavia, no lugar do Ser absoluto não
tomemos um ser particular, ornado de qualidades ao critério
de nossa imaginação; porque então não seria mais o objeto
de uma ideia comum a todos, mas de uma ideia particular
cuja existência não poderia ser demonstrada senão por uma
percepção real que é impossível.
Pergunta-se muito comumente por que os homens não
possuem um conhecimento de Deus tão nítido e tão sensível
quanto o de qualquer outra coisa, sendo verdade que sua
existência é evidente e necessária, tanto por sua definição
quanto pela de nós mesmos e pela de tudo o que cai sob
nossos sentidos. Mas a resposta é fácil se bem entendemos
o que vem sendo dito: pois outro que do Ser absoluto não
pode ser imaginado sob nenhuma semelhança, e que cada um
acrescenta à ideia verdadeira e natural que tem de Deus as
imagens de uma infinidade de preconceitos, quer recebidos
da educação, quer produzidos por nossas próprias disposições
e nossa tendência para o terror ou para a esperança. E
como dessa mistura caprichosa não resultam senão ideias
particulares, cuja demonstração é impossível, embora a
teimosia não seja menor entre os que nelas se previnem,
acontece que raramente se entendem e que nada provam uns
aos outros, o turco combatendo tão cegamente pela unidade
de Deus quanto o cristão por uma Trindade não-contrária à
unidade, ou pela Encarnação do Verbo.
Mas há mais, pois esta diferença não se limita apenas
às religiões, é sentida entre os seguidores de um mesmo culto,
e cada um concordará que o Deus dos jansenistas e o dos
157
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
molinistas não é o mesmo, segundo as suas definições. Ora,
o que se passa, a respeito de seitas inteiras, sendo fundado
sobre a natureza íntima dos homens deve ser comum a
todos, e daí é preciso concluir que assim que alguém se deixa
arrastar para além dos limites da verdadeira noção do ser
substancial e absoluto, não há ninguém que não forje a ideia
de uma divindade a sua maneira, malgrado a impossibilidade
real de demonstrá-la a si mesmo ou aos outros. Na verdade,
comumente nos apoiamos sobre a revelação como sobre um
fundamento sólido e invariável, sem prestar atenção que
nos princípios de todas as religiões e do próprio cristianismo
a revelação não é crível senão como consequência de uma
opinião comum. Eu não acreditaria nas Escrituras, disse Santo
Agostinho, se a Igreja não o ordenasse.
Quase nada resta a dizer para completar a anatomia da
mente humana, senão que, resumindo as várias proposições
deste tratado, devemos permanecer convencidos das
consequências justas e necessárias se a alma do homem não
for outra coisa, como sua definição o ensina, que um modo
de pensamento, do qual o corpo é de tal maneira o objeto,
que nada pode lhe acontecer do que, supondo a atenção, ela
não tenha imediatamente a ideia e o conhecimento, como
reciprocamente o corpo não poderia ter percepção nem
sentimento, senão pelo modo de pensamento que está unido
a ele, a saber, a alma ou a mente, segue-se que se essa pudesse
existir sozinha, não teria nenhum objeto preciso e determinado
que pudesse ser o órgão de suas percepções, da mesma forma
que o corpo, destituído de alma, não teria mais sentimento,
porque não teria nele mesmo uma faculdade representativa
do que lhe acontece, sendo um modo de extensão e não um
modo de pensamento.
E desse princípio resulta, como já ressaltei, que as
faculdades com as quais se pretende que a alma humana
esteja ornada, tais como o intelecto, a vontade, etc, são,
propriamente falando, apenas noções universais de percepções
singulares da mente, que envolvem conhecimento, recusa ou
158
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
consentimento; tais noções não são mais distintas dos atos
de vontade e de conhecimento do que o é a humanidade de
todos os indivíduos humanos; pois, como as propriedades de
um triângulo ou de um círculo não são distintas do círculo
ou do triângulo, e são concebidas respectivamente, aquelas
por estes e estes por aquelas, eu não poderia conceber a
vontade sem volição, nem a inteligência sem ideia e sem
representação. Assim, deve permanecer constante que estes
não são outra coisa que diferentes maneiras de pensar e,
consequentemente, que são modos do mesmo atributo do
pensamento e não faculdades singulares concedidas ao
homem como suplemento da existência.
Além disso, tendo compreendido, como temos feito,
sobre demonstrações sensatas muito evidentes, que todas as
ideias da mente nascem de suas percepções, e que a memória
é o depósito orgânico de ambas, de onde são tiradas para
formar a lembrança, ou seja, a representação do passado pelo
restabelecimento de uma certa conformação de partes, vejo-me
obrigado a concluir precisamente que a capacidade de imaginar,
de ter percepções ou de recordar está ligada à existência do
corpo e, consequentemente, à mente que não possui essas
propriedades senão enquanto está unida ao corpo.
Poderíamos até ir mais longe ao concluir que, visto
que a mente é definida como um modo de pensamento
do qual o corpo é o objeto único e especial, é preciso que
a destruição do corpo acarrete consequentemente a sua
própria. Mas, aparentemente, isso seria dizer demais, pois,
como a dissolução das partes de que o corpo é composto não
prejudica a sua existência, porque sua ideia objetiva está em
Deus, embora de outra forma, ou para falar mais claramente,
visto que elas não cessam de ser modos da extensão
material, em alguma nova figura que venham a assumir e,
consequentemente, de participar da existência do ser cuja
extensão é um atributo, da mesma maneira a mente, que é
um outro modo de ser no atributo do pensamento, parece
não poder cessar absolutamente de existir, tanto por razão
159
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
de sua ideia objetiva, que será sempre em Deus, tal como
um modo que existiu em ato, quanto pelo princípio geral
de que da existência do ser sendo necessária, nada pode ser
totalmente aniquilado. Cessará, então, de ser tal modo que
ela era; suas relações internas e externas não subsistirão
mais. Mas, enquanto o pensamento for reconhecido como um
atributo da substância, será verdade dizer que tal modo deste
atributo existiu relativamente às suas causas e aos efeitos
que lhe são consequentes, e que se perpetuam ao infinito e,
consequentemente, que ele ainda existe, ao menos no poder
do Ser, visto que, para restabelecer sua realidade, bastaria
restituir à outras partes da matéria a mesma disposição e as
mesmas relações que tinham aquelas que formaram seu corpo.
Segue-se, então, que não morrerei inteiramente, e
que uma grande parte de mim escapará da ruína de minha
existência modal, sem, no entanto, que eu seja capaz de me
jactar de ter após minha morte qualquer conhecimento ou
noção de que eu sou, ou de que tenha sido, visto que não tenho
nada da existência precedente de todas as partes da matéria
das quais presentemente sou composto, as quais também
existiam realmente antes que eu fosse e existirão depois que
não serei mais. Do que concluo que não há proposição mais
absurda do que aquela que é usada para nos persuadir de
que devemos acreditar provisoriamente em tudo o que é dito
da outra vida, exceto a experiência que se terá dela após a
morte. Porque, além disso, quem anula, por assim dizer, sua
existência presente na esperança de uma segunda existência,
que ele nunca terá, joga e arrisca tudo o que é e tudo o que tem
contra nada, e não é necessário remeter para após a morte uma
experiência que a vida nos fornece continuamente, seja pela
perda diária que fazemos de uma quantidade muito grande
de partes, seja pela adesão daquelas que vêm a tomar seu
lugar, sendo claro e evidente que sabemos tão pouco do que
acontece com essas que se separam de nós, quanto daquelas
que se juntaram a nós, e que precisamos raciocinar da mesma
maneira no tocante a nossa dissolução total.
160
Primeira parte
do ser
em geral e em particular
Nosso ser corporal consiste na modificação e
organização de certas partes da matéria que não têm nenhuma
conexão necessária entre elas, unindo-se e se separando
segundo a ação de certas causas, sem prejuízo da organização
e da modificação que nos são próprias; desde que as relações
internas sejam conservadas. Mas uma vez que essas relações
são destruídas, é evidente que não há mais nenhuma
organização e, consequentemente, nenhum conhecimento ou
sentimento particular, visto que o modo de pensamento que
deu ser à mente não tem mais objeto determinado, o que digo
supondo que ela ainda exista, senão como um modo atual,
pelo menos na imensidão do atributo do pensamento.
Que se insistem nesse assunto, a ponto de querer
determinar um objeto particular à um pensamento reunido à
infinitude do atributo, direi nitidamente que não há nenhum
e nem pode haver. Mas se se contentam em perguntar em
que sentido posso, então, pretender que um modo particular
do pensamento conserva sua existência na infinitude do
atributo quando realmente cessou de existir pela dissolução
do modo corporal que era seu objeto próprio, eu responderei
que não é mais difícil de conceber que, não existindo mais em
ato completo, ele possa trocar e troca efetivamente de objeto
singular, do que seria improvável sustentar que, estando
confundido na universalidade de um atributo, ao qual é
próprio o existir, pudesse ser realmente aniquilado.
161
SEGUNDA PARTE
das
paixões
E
sclareci a ideia confusa que tinha de mim mesmo
pela conta que me comprometi prestar dos meus
conhecimentos verdadeiros, na primeira parte deste ensaio. No
entanto, como o que tenho observado não diz respeito senão
à maneira de existir dos seres que preenchem o universo, eu
não tiraria senão a menor parte da utilidade que me propus
nesta pesquisa se não examinasse:
1º Minhas afecções
2º O poder que se supõe estar em mim de governá-las.
Este exame me assegurará melhor da verdade de
minhas primeiras reflexões. Ele me dará a certeza da extensão
de minhas forças e talvez me propiciará o fruto precioso da
Sabedoria, se é verdade, como a Religião e a Filosofia ensinam,
que ela pode ser adquirida pela regra ou pela aniquilação das
paixões.
A Religião, que deve ser a primeira a avançar, prescrevenos o aniquilamento das paixões, estabelecendo por princípio
que houve uma desordem infausta na Natureza, a qual inverteu
toda a organização e sujeitou o homem a uma concupiscência
que antes não o acometia; que esta concupiscência é a fonte
de todas as paixões, que tornou o homem carnal e cego
em relação a todos os conhecimentos intelectuais e sujeito
a uma infinidade de movimentos, por vezes involuntários,
mas sempre condenáveis, porque são contrários ao primeiro
estabelecimento.
163
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Quanto à Filosofia, ela supõe as paixões na constituição
do homem. Ela até as considera como o princípio da
quantidade das boas ações, mas exigindo delas a regra e a
moderação, porque reconhece que seu efeito mais comum é
levar o homem desatento para além dos termos racionais e,
assim, perturbar e dividir a sociedade.
Assim, a religião e a filosofia concordam em supor
no homem um poder efetivo com o qual ele pode tornarse mestre de suas paixões. E, consequentemente, longe
de considerá-las como os efeitos necessários das leis do
movimento e do arranjo das partes de que somos compostos,
elas nos querem persuadir de que dispomos sempre de nós
mesmos, e que nunca somos determinados senão por nossa
própria vontade.
A religião, então, pretende que o homem possa
aniquilar todas as paixões pelo socorro da graça celeste, e a
filosofia, que ele as pode regrar por sua razão. Portanto, não
resta saber senão se essas proposições não são contrárias à
ordem comum da natureza, supondo que o homem é capaz de
agir sobrenaturalmente dentro desta mesma ordem, ou então
atribuindo-lhe um direito de comando no seio de a natureza,
apesar da evidente dependência dos efeitos de sua causa, em
tudo o que resulta da existência de um ser não necessário.
A experiência nos ensina que somos capazes de ação
em uma certa extensão de forças. A opinião vulgar até atrelou
a ideia de felicidade a essa capacidade de agir, de sorte que
um soberano é considerado muito mais feliz do que um
simples particular apenas porque pode mais. Porém, para se
ter uma ideia correta dessa felicidade, é necessário voltar à
fonte, e considerar que nossas ações, supostamente livres, são
consequências de nossos desejos, o que nos faz imediatamente
julgar que a felicidade consiste menos em poder para agir, do
que na satisfação dos desejos. Este, todavia, não é o último
termo, porque para saber em que consiste essa satisfação, é
preciso saber qual é a natureza de nossos desejos e do esforço
resultante de sua determinação. Mas nos detenhamos aqui:
164
Segunda parte
das
paixões
porque primeiramente vemos que a determinação de nossos
desejos não pode ter outra causa senão nós mesmos ou os
objetos exteriores que atuam sobre nós. Se nossos desejos
são consequências de nossa própria natureza, isto é, se
eles não têm outra causa senão nosso poder real, nem de
outro objeto além de nós mesmos, eles serão considerados
simples e diretos; mas, pelo contrário, se nossos desejos são
determinados pelos objetos exteriores, isto é, colocam-se fora
de nós mesmos em qualquer espécie que seja, eles serão ditos
compostos e refletidos, e mais propriamente serão chamados
de paixões, por exprimir que o homem determinado pela ação
de causas externas não concorre com elas senão emprestando
sua sensibilidade. Será, portanto, em relação a esses dois tipos
de desejos que tentarei fixar meu conhecimento.
Seria de se esperar, para explicar as verdades que se
seguirão, que fosse possível empregar os termos e os raciocínios
de uso mais comum. Mas a escolha das expressões, em se
tratando de um assunto abstrato e distante das ideias vulgares,
não é uma das menores dificuldades que se encontram na
redução das noções metafísicas, e prevejo com pesar que
ela me lançará, como menos habituado do que outro a esta
linguagem, na necessidade de me servir de raciocínios mais
extensos do que eu gostaria, ou então usar algumas repetições
de princípio. No entanto, estou convencido de que o defeito
quase necessário da expressão não é o obstáculo mais nocivo
à inteligência dessas questões, mas que a insuficiência de
nossas ideias sobre a natureza do homem e a confusão onde
nos lançam os preconceitos da educação produzindo um
outro muito mais essencial e que é necessário dissipar, antes
de pensar em edificar um sistema racional sobre as paixões.
Somos prevenidos de que a mente humana é uma
substância independente do corpo, a qual não faz ali senão
uma habitação passageira, após a qual ela desfrutará sem
ele de todos os benefícios da espiritualidade. Acreditamos
também que se a mente é algo por ocasião do corpo e de
seus órgãos, segundo a relação que Deus estabeleceu entre
165
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
eles, há uma infinidade de outras sensações que pertencem
às suas propriedades intelectuais. Por fim, acreditamos que
nossa alma move nosso corpo e que ela determina todas as
ações pelo poder de sua vontade. Esses são os preconceitos
capitais sobre os quais giram todas as outras ideias que se têm
sobre a natureza das mentes.
Para agora julgar racionalmente sua verdade efetiva,
precisamos retornar às noções demonstradas na primeira
parte desta obra, segundo as quais, tendo remetido todos os
indivíduos da natureza ao gênero absolutamente geral, ou
seja, a noção de Ser, sem a qual nada pode ser compreendido,
permaneci persuadido de que não pode haver senão um só Ser
necessário e existente por si mesmo, é, consequentemente,
uma só e única substância da qual todos os indivíduos
imagináveis são modalidades existindo não necessariamente
e, não obstante, determinantemente, no que diz respeito à
ação das causas que os tiram do seio do ser onde tudo o que é
possível existe, ou realmente, ou virtualmente.
A partir daí concluí que sou uma modalidade
particular participante de dois atributos do ser absoluto, que
são os únicos que conheço, embora saiba que ele realmente
possui uma infinidade deles: mas vejo claramente que sou
incapaz de conhecer outros que não aqueles dos quais eu
mesmo sou composto. Além disso, concluí particularmente
que meu pensamento não existe senão pelas percepções de
meu corpo, que é seu objeto próprio, de sorte que minha
mente não é uma faculdade de pensar e de ter ideias, nem
uma ideia simples, nem propriamente uma ideia composta,
mas antes uma sucessão ou continuidade de ideias que
nascem de minhas percepções, durante e por todo o tempo
em que a constituição orgânica de meu corpo a torna capaz
de sentimento.
Ou, para dizer a coisa, se é possível, mais claramente,
não concebo minha mente como um ser distinto de mim
mesmo, ao qual meu pensamento pertence propriamente, sem
que meu corpo e meus órgãos ali concorram de outra maneira
166
Segunda parte
das
paixões
senão ocasionalmente, mas a concebo como um ser não
diferente de meu indivíduo pessoal, pensando, conhecendo,
sentindo pelas percepções que ela tem do que acontece ao meu
corpo, e não pensando, conhecendo, nem sentindo quando
ele não tem nenhuma percepção. De sorte que as percepções
são o fundamento e propriamente a matéria de minha mente,
se for permitido empregar tal expressão.
E assim poderíamos dizer que o que a figura ou a forma
são para um corpo, as ideias o são para a mente, a exclusão
da forma destrói a natureza do corpo como a exclusão do
pensamento destrói a da mente.
Concluí também do mesmo princípio que eu, não sendo
um ser necessário, não poderia receber a existência senão por
determinação de certas causas, que me são pouco conhecidas,
mas de cuja realidade estou convencido; e que essas causas
de minha existência particular são também causas de todas as
minhas ideias, sensações, percepções, ações: visto que se eu
não existisse, seria incapaz de qualquer função. E, além disso,
é uma máxima certa que as consequências do ser são também
consequências da causa do ser. “Qui dat esse, dat consequentias
ad esse”, razão pela qual não posso pensar que a faculdade
que é chamada vontade seja realmente outra coisa que uma
determinação acompanhada de sentimento, a respeito da qual
confundimos o consentimento resultante da sensação com a
noção de um ato livre, o qual não poderia existir em um ser
não necessário, visto que depende totalmente das causas que
o fazem ser o que é, e que sem essas seria sua própria causa
de agir e, consequentemente, de existir, o que não pode ser, se
ele é suposto não necessário.
Ora, se é evidente a partir dessa demonstração que a
ideia da vontade, separada do desejo, e indeterminada por
outro agente que não ela mesma, é uma pura ficção, devo
concluir que é impossível que seja esta mesma vontade, que não
existe, o que move meu corpo e os outros. Consequentemente,
vejo com evidência que nenhum dos preconceitos que detalhei
acima possui um fundamento sólido.
167
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Isso todavia não é suficiente; é preciso ainda me
convencer que, independentemente da vontade no conjunto
das modalidades de pensamento e de extensão que constituem
o eu presente, não é possível que um aja sobre1 o outro; de sorte
que não é nem meu corpo que determina meu pensamento,
nem minha mente que determina meu corpo ao movimento
ou ao repouso, nem em qualquer outro tipo de ação, caso haja
possíveis para além dessas. De fato, concebi acima que meu
corpo e minha mente não compõem senão um e o mesmo
indivíduo, ou uma e a mesma modalidade de existência, que
pode ser considerada ora sob o atributo da extensão corporal,
ora sob o atributo do pensamento, e que, apesar da partição ideal
que dele se faz habitualmente, não é senão um todo realmente
indivisível, cuja ação não é nem mais própria nem mais
consequente de um atributo do que de outro. Daí se segue que a
ordem ou encadeamento dos movimentos ou afecções do corpo
é a mesma que a das afecções da mente, como reciprocamente
a ordem das ideias é a mesma dos movimentos. E, portanto,
não resta nenhuma razão plausível para estabelecer a ideia
de uma determinação recíproca do corpo à alma e da alma ao
corpo, seja tomada na natureza e organização do corpo, seja
tomada no sentimento, pelo qual parece que a mente move o
corpo, visto que supondo a unidade do nosso ser e o sentimento
íntimo que dela deve resultar, deve ser impossível distinguir o
consentimento acordado a uma determinação sensível, daquilo
que imaginamos ser um ato livre e voluntário, mas que vimos
anteriormente não poder existir em um ser não necessário.
Mas há mais: pois não nos é possível determinar o que
está no poder do corpo, isto é, o que pode se seguir fundado
na mera corporeidade, só pelas forças e leis da natureza. Não
conhecemos nem a fabricação ou construção dos corpos, nem
as funções de que são capazes. Quem, por exemplo, pode
1 N.T.: No texto estabelecido por Simon (BOULAINVILLIERS, 1973, p.
154) está “sem [sans] o outro”, como também está em um dos manuscritos
que consultamos (Fr. 12243), ao passo que no outro (Fr. 9111) e também
na versão impressa de 1731 está a opção que adotamos aqui: “sobre [sur]
o outro”.
168
Segunda parte
das
paixões
explicar por quais meios os animais e os mais vis insetos
executam tantas coisas impossíveis à arte e ao raciocínio dos
homens?
Além disso, quem conhece por que organização ou por
quais meios uma mente pode mover um corpo, se devemos
acreditar no axioma universal: tangere enim e tangi nisi corpas
nulla potest res [“nada pode tocar e ser tocado se não é corpo
material”2]. Quem conhece igualmente quais são os graus de
força e velocidade que uma mente pode lhe comunicar? É,
então, evidente que nenhum dos que afirmam de forma mais
positiva que a alma produz esta ou aquela ação pelo poder
que se supõe que tem de mover o corpo arbitrariamente,
não expressa nada de que tenha uma noção clara, isto é, que
conheça evidentemente.
Por outro lado, se quisermos refletir sobre o que se passa
na organização [economie] do ser humano, reconhecemos que
a ação do corpo sobre a mente não é menos poderosa do que a
da mente sobre o corpo, embora a sensação seja mais obscura.
Com efeito, não vemos que é da composição do corpo que a
mente tira sua força e sua vivacidade? Que é a delicadeza dos
órgãos e sua flexibilidade que tornam as mentes mais leves
e mais geralmente próprias às artes, ciências e negócios?
Que é o temperamento que dispõe o caráter do homem, que
torna um colérico e outro preguiçoso? Que é da abundância
e da fermentação do sangue que nascem os ávidos desejos da
volúpia? Enfim, não sentimos que o cansaço do corpo lança a
alma no langor e na inação como, ao contrário, vemos que a
febre causa delírios e às vezes furores? O próprio sono é uma
prova diária de que as disposições do corpo determinam as
faculdades da alma, pois no momento em que as sensações
são suspensas pelo sono, a mente não tem mais ideias, nem
vontade ou conhecimento, senão as que permanecem nos
sonhos, as quais ocorrem apenas quando todos os sentidos
não estão perfeitamente adormecidos.
2 N.T.: Tradução de Agostinho da Silva, em LUCRÉCIO, Da natureza, São
Paulo: Abril Cuktural (Coleção Os Pensadores), 1973, p. 43.
169
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
É preciso, então, reconhecer de uma vez por todas que
o princípio das ações recíprocas da mente sobre o corpo e do
corpo sobre a mente nunca pode ser claramente demonstrado,
exceto pela noção da unidade de nosso ser modal, embora
resultante da união de dois atributos tão diferentes que o
mundo se acostumou há quase dois mil anos a considerá-los
como substâncias distintas.
Mas, dir-me-ão, o que será de todas as obras dos homens,
de todas as produções das artes, de todas as descobertas das
ciências? O que será desse nosso poder tão sensível para cada um
de falar ou de se calar? Como imaginar que sua determinação
possa ser tirada de alhures que não da vontade do homem,
de sua aplicação e do poder efetivo que está nele para mover
seu próprio corpo, e por ele aquelas massas de edifícios que
formam cidades inteiras? Eis uma objeção capciosa; mas não é
nada no fundo. Não confundamos o desejo do homem com uma
vontade indeterminada por outro agente que não ela mesma.
Longe de negar que o homem seja capaz de formar ou sentir
os desejos, estabelecemos que esta é a primeira consequência
de sua sensibilidade, e o presente trabalho não tenciona senão
desenvolver o princípio e os efeitos. Este desejo, junto à arte,
ou conhecimento metódico dos meios para chegar a uma
determinada meta, conduz as mãos do obrador e é a causa
determinante do efeito mais próximo que nele resulta, como
daqueles que se seguem progressivamente até a perfeição do
empreendimento. Mas esse desejo tem ele mesmo sua causa
determinante no sentimento de precisão em que o homem se
encontra de construir uma casa para morar, fazer um relógio,
ou qualquer outro tipo de trabalho para tirar sua subsistência
ou suas comodidades. É, então, algo à parte, e muito diferente
de sua vontade, que estamos considerando agora.
Quanto à dificuldade que toca ao poder que acreditamos
ter de falar ou calar, é comumente resolvida pela comparação
de um homem que, tomado de sede, crê na liberdade de
beber uma bebida que lhe agrade, ou pela de um bêbado,
qui dicenda tacenda locutus [falou o que devia dizer e o que
170
Segunda parte
das
paixões
3
devia calar] , crê dizer por julgamento o que amanhã gostaria
de ter calado a sua vida toda. Poderíamos ainda combatê-la
por esse princípio comum da teologia cristã de que nenhuma
de nossas faculdades é livre em relação a seu objeto clara e
evidentemente conhecido, mesmo quando os atos resultantes
sejam voluntários. Mas vale mais resolvê-la pela exposição
de uma verdade que nunca é demais repetir, a saber, que os
homens se creem livres porque possuem um sentimento de
seus desejos e das ações que realizam em consequência, e não
o possuem das causas que os determinam. Eu bem sinto, por
exemplo, quais os efeitos produzem em mim a visão de uma
beleza ou a esperança de uma fortuna. Vejo por experiência
que minhas ideias ordinárias são banidas por esses objetos
novos, que meu coração se inflama de desejos e impaciência,
que minha mente se propõe um termo diferente do que havia
desejado até então. Mas como essas causas externas operam
em mim movimentos diferentes do passado? Isso é o que a
sensação sozinha não me pode fazer conhecer. Para penetrar
neste mecanismo é preciso estabelecer uma nova teoria do
homem, segundo a qual diremos que o que se chama ato
de vontade, decreto da mente, desejo ou determinação não
são realmente senão uma e a mesma coisa considerada
como devemos considerar nós mesmos, ora no atributo do
pensamento, caso em que chamaremos de vontade, decreto
da alma, e ora no atributo da extensão, segundo o qual tudo
está sujeito às leis comuns do movimento e do repouso, em tal
caso chamaremos de determinação e paixão.
Contudo, podemos ainda considerar este mecanismo
de um ponto de vista bastante diferente do que acabei de
explicar: pois supondo que temos uma faculdade de vontade
tal como vulgarmente a imaginamos, é evidente que ela não
pode produzir nenhum ato em relação a coisas ausentes sem
3 N.T.: Essa é uma tradução livre nossa. Este trecho é da Epístola I.7 de
Horácio (2009, p. 78, In: PICCOLO, Alexandre P. O Homero de Horácio:
intertexto épico no Livro I das Epístolas. 2009. Dissertação (Mestrado
em Linguística) – Programa de Pós-graduação em Linguística, Campinas,
Unicamp, 2009).
171
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
a ajuda da memória; não podemos nem falar senão por meio
da memória dos termos próprios a significar o que queremos
dizer: ora, não se é livre para esquecer ou se lembrar. É preciso,
então, separar do domínio da vontade tudo aquilo cuja ideia
e percepção não estão presentes na mente. Mas, por outro
lado, a mente não tem ideias nem percepções que não sejam
determinadas de alguma forma, isto é, pela aplicação real dos
objetos, ou pela impressão de suas imagens. O que então resta
sob o império da vontade e sobre o qual ela pode exercer seu
suposto poder?
Essa porção de reflexões sobre a unidade individual
da mente e do corpo nos permite avançar à prova direta da
proposição, que postula que o corpo não determina a mente
a pensar, e que nem a mente determina o corpo a agir ou se
mover, e esta prova é muito simples: pois, visto que todos os
modos imagináveis do pensamento não podem existir senão
na medida em que pertencem ao Ser absoluto considerado
no atributo do pensamento, assim como os corporais existem
no atributo de extensão que lhes é próprio, é tão impossível
que um modo do pensamento possa produzir ou determinar
um modo de extensão e vice versa, quanto é impossível que
um dos atributos do ser absoluto possa mudar sua natureza,
deixar de ser o que é e se tornar o que não é.
Este fundamento posto, por meio do qual permaneço
tão convencido da união individual dos dois atributos que
constituem o meu ser, quanto do vazio dessa força chamada de
vontade, na qual os homens trariam a causa de todas as suas
ações, é tempo de me convencer da mesma forma que nossas
paixões ou desejos refletidos não possuem outro princípio que
a modificação causada pela impressão dos objetos, dos quais,
entretanto, nunca podemos ter uma ideia perfeitamente
completa, de tal sorte que é verdade dizer que nossas paixões
não chegam à mente senão negativamente porque a privam
de ação própria, e são animadas, por assim dizer, por uma
determinação externa, muito frequentemente destituída de
um conhecimento verdadeiro.
172
Segunda parte
das
paixões
E, na verdade, se tomei uma noção correta de meu ser,
devo me representar à minha própria ideia como um modo
particular dos atributos infinitos do pensamento e da extensão
que concebo no ser absoluto, modo esse que existe, seja como
consequência da ideia que está no ser infinito, considerado
como pensante, seja pela determinação das causas que
agiram no atributo da extensão, para formar o que encontro
em mim de material e de extenso. Devo representar-me
ainda que minha modalidade individual, considerada como
pensante, não é outra senão a sequência e o encadeamento de
percepções de meu corpo, as quais são o princípio distintivo
de todas as minhas ideias e pensamentos; de sorte que, sob o
nome de mente humana, sou verdadeiramente um modo de
pensamento resultante do sentimento de tudo o que acontece
ao meu corpo, em consequência do qual minhas ideias são
perpetuamente mutáveis; o que significa que, no decorrer da
minha vida, sou capaz de ter uma infinidade de todos os tipos,
verdadeiras ou falsas, iguais ou desiguais: porque é a divisão
mais simples que se pode fazer.
Mas é impossível que uma ideia, tal como ela seja,
exista individualmente, se não existe na causa primeira: caso
contrário, ela não existiria de todo, visto que para existir
é preciso ser um modo de algum atributo do Ser absoluto.
Além disso, está demonstrado que nenhuma ideia é falsa ou
desigual em consequência do que ela tem de positivo: porque
se a falsidade ou o erro, que consistem em pura negação de
conhecimento, ou de representação, fosse algo de real, o nada
seria um modo de algum atributo do ser absoluto, o que é
absurdo. Segue-se, então, que em Deus, causa primeira e
necessária, a diferença de uma ideia igual e verdadeira de
uma ideia desigual e falsa consiste simplesmente em que
ambas estabelecem o modo de pensamento que determina
a mente humana a existir sob uma certa forma em certo
momento, a primeira aperfeiçoa esta modalidade ao perceber
o conhecimento passivo de que é capaz segundo sua natureza,
e que a ideia desigual, ao contrário, destrói a realidade de
173
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
seu próprio conhecimento pelas imagens falsas pelas quais ela
substitui o verdadeiro.
Portanto, segue-se que a ideia igual e verdadeira
esclarecerá a alma, ornará-lhe de conhecimentos e a fará
existir nos termos verdadeiros e reais, que envolvem o tipo
de perfeição que pode lhe ser essencialmente própria. Pois
é fora de dúvida que a perfeição da inteligência seja pensar
a verdade. Ao contrário, a ideia falsa e desigual alterará sua
existência, engajando-a no erro que se opõe diretamente à
perfeição e à realidade.
Esses princípios, que se desenvolvem pouco a pouco à
minha imaginação, começam a me fazer perceber que não sou
nada menos do que pensava ser – visto que em vez de uma
substância espiritual, essencialmente distinta da matéria e
que não poderia unir-se ao meu corpo sem a instituição de um
Criador todo-poderoso, isto é, sem uma contínua violência à
sua natureza, ou melhor, sem um milagre perpétuo, o mais
surpreendente de todos os que possam ser imaginados –, não
sou outra coisa senão eu mesmo. Encontro no fundo da minha
sensibilidade e na constituição dos meus órgãos o princípio
das minhas percepções, das minhas ideias e do progresso de
meu conhecimento.
Não me é mais necessário recorrer à visão do próprio
Deus para compreender como os objetos fazem impressão
sobre meus sentidos, nem de que maneira essa impressão se
pinta à minha ideia e, consequentemente, na minha memória.
A unidade do meu ser modal sob dois atributos diferentes
aplaina todas as dificuldades, desde o momento em que
concebo claramente:
1º Que a essência das mentes consiste na ideia de um
objeto atualmente existente, e que esse objeto é o corpo, ao
qual estão unidas.
2º Que esta ideia é modificada por tudo o que
acontece a este objeto, do qual a mente tem uma percepção
necessária, na medida em que compõem juntos um só ser
modal.
174
Segunda parte
das
paixões
3º Que a mente não existindo senão pela sequência e
encadeamento de suas ideias e suas percepções não é capaz
de nenhum conhecimento ativo.
4º E que, enfim, os efeitos ou consequências da mente
são efeitos e consequências das diferentes ideias que a
constituem.
Acrescentemos, todavia, a estas conclusões uma curta
reflexão sobre o lugar que ocupamos na natureza, lugar que
nos liga de tal maneira às diversas outras de suas partes que é
impossível formar uma ideia simples, nem em relação à nossa
natureza ou essência, nem em relação às suas consequências,
isto é, não poderíamos nos considerar sem relações, do que se
segue que não somos causa senão de nossas próprias ações de
uma maneira mais ou menos parcial; tão longe estamos de ser
causas absolutas, como se pensa vulgarmente. Assim, longe
de podermos estabelecer que nossas ações são consequências
de nossa vontade ou de nossa essência, pois o é a mesma coisa
na acepção ordinária, pode-se concluir com evidência que
elas são também consequências de todas as modificações que
recebemos da parte dos objetos, cuja sensação se junta à nossa
própria ideia, sem a qual sensação não teríamos, contudo,
outro uso de nosso ser senão o dos mármores e do que parece
inanimado na natureza. Essa sensação é, então, em certo
sentido, a primeira vantagem de nossa individualidade; mas
como o modo de pensamento está intimamente unido ao da
extensão na natureza do homem, visto que os dois atributos
não compõem senão uma e a mesma existência, segue-se que
a sensação se torna percepção e que esta se torna ideia, não
por progressão ou melhoria da natureza, mas pela identidade
do princípio que faz com que nada possa acontecer ao corpo
do qual a mente não tenha ideia, porque ele é seu objeto
necessário.
É preciso com isso ser lembrado que as ideias que
temos dos objetos não representam senão as percepções
que temos em sua ocasião, e não a natureza desses objetos,
dos quais é tão impossível que tenhamos um conhecimento
175
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
direto deles, como é impossível que tenhamos qualquer
conhecimento sem percepção. É, então, necessário que essas
ideias sejam desiguais, visto que não nos representam senão
nossas próprias afecções, e não a natureza dos objetos que
agem sobre nós. Assim, podemos concluir:
1º Que para falar exatamente, nós não agimos, nem
podemos dizer que agimos, senão na medida em que as
consequências de nosso ser estejam isentas de modificação por
parte das causas externas. Verdade que nos deve convencer de
que não há, e não pode haver, desejos puramente diretos, à
exceção daquele da perseverança do ser, do qual trataremos
mais abaixo, e que todas os outros, às quais aquele serve de
fundamento, estão todos mesclados com alguma determinação
tomada de objetos externos.
2º Que nós sofremos e somos justamente ditos e
reputados passivos, enquanto nossas ideias são modificadas
pelas próprias causas. O que pode ocorrer de duas maneiras:
pois, como vimos, nossas ideias são iguais ou desiguais; mas
nenhuma das duas pode se pintar para a imaginação senão
pelo canal da percepção, o qual representa diretamente a
afecção do corpo e não a natureza dos objetos. No entanto,
quando é verdade que essa percepção poderia nos fornecer as
ideias perfeitamente conformes à seus objetos, não é menos
certo que os desejos ou paixões que seriam consequentes não
se relacionariam senão negativamente com a mente: visto
que em vez de uma determinação tomada na mente mesma,
receberia a de uma imagem exterior ao seu objeto essencial,
que é o corpo. Mas no caso de ideias desiguais, que é o estado
comum e ordinário, a falta de realidade objetiva que constitui
seu caráter não nos permite pensar que os desejos ou paixões
que lhe são consequentes possam se relacionar à mente,
diferentemente de uma forma negativa.
Esta demonstração me parece completa. Assim,
não tendo senão que fixar minha ideia por uma conclusão
conforme e relativa às provas precedentes, digo que todas
as paixões humanas são desejos, plenos de agitação e
176
Segunda parte
das
paixões
inquietude, formados sobre a percepção dos objetos exteriores,
consequentemente dos quais a mente é levada fora dela mesma
e constrangida a atrelar sua própria ideia ou a de seu poder a
esses mesmos objetos. De onde ocorre que ela imagina ou age
de todo diferentemente do que fazia antes.
Todos os termos desta descrição são claros e a
verdade dela é estabelecida pelo que foi observado acima
no tocante à natureza das mentes: visto que sua essência
consiste na sequência de ideias que elas recebem por
ocasião da existência atual de seu corpo, e não em uma
pretensa espiritualidade que não poderia ter relação
natural com o corpo, segue-se que toda ideia representa
a aptidão presente do corpo e não o próprio objeto por
ocasião do qual ou pela determinação do qual essa aptidão
é posta tal. Mas se essa representação é verdadeiramente
a do corpo em tal e tal instante, segue-se que a aptidão do
corpo é modificada por esses objetos: isto é, que o poder
do corpo e, consequentemente, o da mente é aumentado ou
restringido por esses mesmos objetos. Segue-se daí, então,
que as afecções do indivíduo são paixões reais, e que as
ações consequentes não são consequências da só natureza
do indivíduo. Isso não apresenta dificuldade.
De resto, não pretendo dizer que a mente faça uma
comparação laboriosa entre o estado real de seu corpo e a
mudança provocada pelas diferentes paixões pelas quais
é tocada: pois essa comparação se faz naturalmente pela
simples percepção que carrega consigo a ideia de maior ou
menor perfeição, que resulta da paixão presente.
Tal é, então, a natureza e o princípio dos desejos
refletidos, ou paixões, muito diferentes daqueles que chamamos
de diretos, os quais não têm senão nós mesmos por princípio e
por objeto. E tal é o desejo íntimo pelo qual cada ser senciente
é levado a perseverar em seu ser e sua modalidade particular.
Mas fora deste ponto, como não existem e não podem existir
ideias sem percepções, nem percepções sem objetos, é
verdadeiro dizer que a natureza do homem não pode admitir
177
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
desejos que não sejam verdadeiras paixões, na medida em que
são determinados por tudo que causa a percepção e a ideia, e
não pela própria natureza do indivíduo.
Segue-se disso também que nossos desejos refletidos
devem se multiplicar em proporção à nossa sensibilidade,
com o número e a qualidade dos objetos que lhe fazem
impressão: o que responde naturalmente ao argumento
tirado de uma pretensa insaciabilidade do coração humano,
em consequência da qual supomos que ele nunca pode ser
satisfeito senão pela posse de um objeto infinito. Mas seria de
se esperar que aqueles que fundaram sua moralidade neste
princípio conhecessem melhor sua própria constituição, e
distinguissem o efeito necessário da impressão dos objetos
em nossos sentidos e nossos órgãos, da inquietação voluntária
que eles nos atribuem.
Com efeito, qual proporção eles poderiam conceber
entre o suposto vazio de nosso coração e um objeto infinito?
Mas se é verdade, como não podemos duvidar, que somos seres
sencientes, engajados em formar perpetuamente novas ideias e
novos desejos por ocasião de cada nova percepção, dado que a
satisfação dos primeiros desejos não determina a dos próximos,
e é evidente que sua multiplicação é um efeito consequente e
necessário de nossa sensibilidade e da presença dos objetos:
e, portanto, não seria muito judicioso supor que o coração do
homem só pode ser preenchido por um objeto infinito.
Estes diversos fundamentos postos, é tempo de chegar
ao nosso assunto principal, ou seja, de tratar da natureza de
nossos desejos.
O primeiro que está em nós e o princípio de todos os
outros é certamente aquele que tende à nossa conservação. Não
poderemos duvidar de que ele seja comum a tudo o que existe
com percepção de si mesmo. Os filósofos, e particularmente os
estoicos, o consideravam íntimo à natureza e, todavia, deram
razões tão ruins que foram obrigados a admitir que a verdade
de sua existência se estabelecia melhor pelo sentimento do que
pelas sutilezas de sua lógica. No entanto, como toda a mecânica
178
Segunda parte
das
paixões
das paixões está fundada sobre esta base, e como temos, além
disso, exemplos de várias pessoas que procuraram sua própria
destruição por um desespero contrário a este sentimento
universal, seria apropriado procurar uma demonstração sólida,
e que possa convencer que sempre existe mesmo naqueles que
se acabaram pela violência.
Vimos acima que todos os seres particulares são modos
consequentes dos atributos do Ser absoluto, dos quais cada
um exprime em seu gênero o poder e a ação, na medida
em que cada atributo é determinado a uma certa existência
particular. Consequentemente, não é possível que contenham
a ideia nem o princípio da sua destruição, seja em relação
ao ser absoluto do qual são modalidades, visto que nada lhe
pode ser oposto, seja em relação à sua essência modal, porque
a sua existência posta como consequência da determinação
que os faz ser o que são, não podem ser concebidos senão
como existentes.
Portanto, não pode haver nem em Deus, ou o Ser
absoluto, suposto determinado, nem neles, supostos existentes,
qualquer ideia que não afirme sua existência. De outra
maneira, o princípio do ser e o do não-ser seriam o mesmo,
o que é contraditório e, consequentemente, impossível.
Portanto, todo seu ser se opõe inteiramente à não-existência.
Então, é verdade que cada modalidade de ser deve perseverar
e continuar a existir enquanto é em si, seja com conhecimento
e sentimento, enquanto a natureza da modalidade é capaz,
seja sem percepção enquanto outra disposição das partes a
coloca no ranque de coisas insensíveis e inanimadas.
Mas esse desejo de existência não é um acréscimo do
ser particular: é o fundamento íntimo da essência de cada
coisa, porque se supomos um ser, precisamos supor também
suas consequências imediatas e necessárias, na medida em que
elas decorrem da mesma causa que o faz existir. Mas o desejo
ou o esforço de perseverar é uma consequência necessária da
existência, como acabamos de ver. Portanto, ele não difere da
determinação do ser, isto é, de sua essência. Razão que nos
179
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
deve convencer de que a espécie deste desejo é inteiramente
diferente de todas as outras, visto que tem seu princípio e seu
objeto na natureza mesma do ser, de sorte que sem esperar
alguma determinação externa ele existe em um indivíduo
sensível antes de qualquer percepção.
Além disso, esse desejo não é limitado a um tempo ou
a uma duração finita: pois, se isso fosse possível, seguir-se-ia
que o princípio da destruição estaria na determinação que faz
o ser existir, o que não é possível. É preciso, então, concluir
que esse desejo se estende tanto quanto o poder do próprio ser,
isto é, por uma duração indefinida. É por isso que podemos
incluir entre as regras da natureza que nenhum ser pode ser
destruído senão por causas externas: assim como vimos que
na ordem dos seres não necessários, nada pode existir sem
semelhantes causas. E a razão é demonstrada pelo mesmo
princípio, pois, dado um ser, sua definição põe sua realidade
como fundamento. Um ser não existe quando não é real. Mas
essa realidade, uma vez suposta, é absoluta, enquanto não
consideramos as causas que a podem destruir. Assim, deve
permanecer constante que a posição ou afirmação do ser não
contém e não pode conter nada que o exclua, isto é, que o
possa destruir.
No entanto, não há coisa singular na natureza, e não
pode haver, em relação a qual não exista outra mais forte e
mais poderosa que a limite, isto é, que restrinja, termine ou
destrua seu poder e sua duração, pela razão de que nenhuma
modalidade pode começar a existir exceto pela determinação
de uma ou mais causas, não há também uma que não deixe de
ser pela determinação de outra causa diferente em natureza e
efeito, cada poder sendo limitado por um outro poder ou uma
força maior.
Portanto, se há contrários na ordem e arranjo do
universo, são esses diferentes graus de força que se limitam
mutuamente, e que são verdadeiramente opostos, no sentido
de que eles não podem convir nem subsistir juntos no mesmo
sujeito, como é provado pela proposição que estabelece
180
Segunda parte
das
paixões
que nada pode conter o princípio de sua destruição. Seguese, então, que o poder pelo qual todas as coisas singulares
conservam seu ser e nele perseveram não é diferente daquele
do ser absoluto ou do próprio Deus, não enquanto ele é
infinito, mas como determinado a uma existência particular.
Determinação que, como vimos, é o único princípio do que
existe em particular.
Contudo, se pretendêssemos que, em consequência dessa
participação da natureza infinita, um homem, por exemplo,
não fosse sujeito a outras mutações que aquelas que seriam
consequentes de sua própria natureza, a conclusão não valeria
nada, porque daí seguiria que este homem seria imutável e
verdadeiramente um ser necessário; seja concebido agir em
consequência da própria necessidade do Ser absoluto, caso em
que não seria mais uma modalidade; seja concebido agir em
consequência da determinação que lhe dá o ser, isto é, por um
poder finito, mas que, não obstante, seria suposto suficiente
para afastar a ação de todas as causas externas, o que implica
contradição. É preciso, então, voltar a dizer que todo ser
particular só pode ser considerado como parte da natureza, sua
ideia em Deus e, consequentemente, sua existência especial,
que é a mesma coisa, são modificados pelo concurso de todos
os objetos que agem nele ou com ele e que é sujeito a todas as
mutações resultantes dessas diferentes modificações.
Depois disso, não nos devemos surpreender que o
desejo da perseverança seja geral e comum a tudo o que tem
o sentimento de si mesmo, e que ele seja manifestado por
todos os que são capazes de exprimi-lo. Porém, podemos
nos espantar que no costume os homens o confundam com
a vontade que se atribuem, ou como uma faculdade natural
que está neles para dirigir suas ações, ou como um poder
que lhes é concedido como acréscimo a seu ser, que os torna
verdadeiramente livres para agir, ou não agir, escolher,
preferir, etc.
É verdade que na primeira acepção o erro é pouco
considerável, pois esse desejo de perseverança é realmente
181
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
o princípio de todos os outros e, consequentemente, de
tudo o que queremos e fazemos; embora no fundo haja
uma diferença muito real entre a causa e seu efeito. Mas, na
segunda acepção, como nada é tão oposto à liberdade como
a determinação, e como não há ato de vontade que não seja
determinado, não se pode deixar de concluir, por um lado,
que se a liberdade e a vontade são tais como as imaginamos,
é contraditório pretender combiná-las e, por outro lado, que
se juntamos no princípio a vontade ao desejo, também é
contraditório pretender conservar a liberdade, pois o desejo é
uma determinação precisa, que carrega a vontade a tal objeto
ou a tal ação. Se opusermos a essa conclusão a experiência
comum de tantas ações que se fazem contra seu desejo, é fácil
responder que a simples percepção nos ensina que essas ações
são ainda menos livres que as outras, porque sua determinação
é tão sensível que não escapa nem mesmo àqueles que não
têm intuito de a examinar.
No fundo, como não se trata aqui senão de convir
nos termos, a fim de poder se fazer entender, é certo que,
considerando o desejo, e o esforço da alma que lhe é a
consequência, como modo de pensamento, podemos, sem
notável abuso, nomeá-los vontade, desde que tenhamos o
cuidado de não os confundir com o fantasma da vontade livre
e indeterminada que é a quimera favorita dos homens.
Mas se os considerarmos em relação ao corpo, ou
em relação à identidade do corpo e da mente, teremos que
nomeá-los de apetites, termo pelo qual quero exprimir um
desejo mesclado de sensação que se estende, tanto à própria
conservação, quanto aos meios considerados capazes de
servir a ela. Podemos, não obstante, para uma maior precisão
distinguir ainda entre estes dois termos, apetite e desejo,
fazendo com que o primeiro sirva para designar uma sensação
toda corporal, como a fome ou a sede, e o segundo com o
de cupidez, que pode ser sinônimo, para exprimir a sensação
ideal resultante, ou o modo de pensar unido à percepção do
corpo.
182
Segunda parte
das
paixões
Porém, dado que estou convencido da verdade deste
princípio de que o homem está necessariamente determinado
a perseverar em seu ser, também devo concluir que, visto que
ele é suposto senciente, isto é, sujeito a todas as impressões
das causas externas e a receber as suas percepções, ele está
também determinado da mesma maneira:
1º A buscar os meios que estima próprios a obter sua
conservação e o seu bem-estar, não havendo diferença entre
estes dois termos: querer ser e querer estar bem.
2º A fugir, rejeitar e afastar o que estima lhe ser
contrário, como podendo aniquilar seu ser, diminuí-lo ou
incomodá-lo, isto é, reduzi-lo a estar mal.
Esses dois sentimentos são igualmente consequentes do
princípio absoluto do desejo de perseverança do ser, suposto
agindo para além dos limites do indivíduo, e determinado
pelas causas externas que produzem as percepções. É por
isso que ele tem respectivamente uma igual impetuosidade
e um mesmo ardor, quer se trate de abraçar um objeto, quer
de o repelir, não tendo mais força ativa de um lado do que
de outro, se ele não a encontra na impressão que causa os
diferentes objetos.
Todavia, para explicar convenientemente este tópico,
não basta observar a paridade de forças nas duas afecções,
é preciso dizer também que a identidade do princípio que as
produz e do fim a que elas se propõem as unem e as ligam de
tal maneira que elas não formam propriamente senão uma
só. E, de fato, o desejo de estar bem não é praticamente senão
a fuga do estar mal, e vice-versa. Prova manifesta de que
o desejo natural de existir e perseverar na existência não é
diferente daquele de estar bem, como argumentei acima.
Mas vou ainda mais longe: pois é da experiência que
não é a ideia de felicidade, por maior que a imaginemos, que
determina nossos desejos, se a separamos de um sentimento
de mal-estar e de inquietude que nos faça aperceber de sua
privação. Tanto isso é verdade que a oscilação é de tal maneira
igual entre essas duas afecções que ficamos embaraçados de
183
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
decidir qual move a balança; se o fazemos apenas considerando
o bom e o mau pelo lado da sensação, não queremos dizer
que a percepção deste último é a mais sensível, e que todos
os homens temos uma ânsia mais viva de libertar-nos dela
do que de aspirar a um bem, do qual várias considerações o
podem dissuadir.
Ora, é nisso que consiste todo o poder ou propriamente
a fonte dos desejos. Pois, se há uma atividade cheia de fogo,
trabalho e zelo, que são as testemunhas seguras de uma
determinação perfeita, há outras tão débeis que, detendo-se
na simples consideração dos objetos, nunca vão tão longe a
ponto de obter sua fruição. São aquelas que nós distinguimos
ordinariamente pelo termo de veleidade, que exprime o mais
baixo grau do poder de vontade. Mas se é fácil julgar que
ambos não são tais senão em consequência da impressão que
os causa, ou da maior ou menor mobilidade dos órgãos do
sujeito afetado, é muito difícil dizer por que a ideia do bem
soberano ou de uma felicidade eterna toca tão pouco a maior
parte dos homens, mesmo daqueles que teriam o terrível
escrúpulo de colocá-la em dúvida. Mas o poder do desejo
consiste tanto, como mostramos, no sentimento de privação,
que é um mal real do qual se deseja necessariamente se livrar,
quanto na convicção e esperança de um bem futuro, por maior
que o imaginemos. Assim, enquanto aqueles a quem o paraíso
é pregado serão dissipados por objetos mais sensíveis, isto é,
enquanto não sentirem em si mesmos, a respeito deste objeto,
a fonte comum dos desejos, quero dizer uma inquietude efetiva
causada pelo medo de serem privados dele, eles não ansiarão
por desejá-lo. E esta é a verdadeira razão pela qual esse tipo
de sentimentos, aos quais dificilmente prestamos atenção
durante a vida, tornam-se tão vívidos quando corremos o
risco de perdê-los. Acontece o mesmo com mais forte razão
para todos os outros tipos de desejos, visto que a ideia do bem
maior é certamente aquela que deve ter mais peso e eficácia.
Tal é, então, a natureza do desejo que o faz produzir o
concurso atual das duas primeiras afecções, a busca e a fuga,
184
Segunda parte
das
paixões
ambas fundadas no esforço necessário pelo qual os seres
sencientes persistem em sua existência com conhecimento
e sentimento. Há, porém, essa diferença entre eles que, no
concurso, a ideia do bem o representa como futuro e ausente,
enquanto o sentimento do mal está presente, pelo menos pela
inquietude que causa a privação conhecida de um bem, seja
efetivo, seja imaginário.
Não emprego aqui os termos bom e mau aqui como
distinções positivas, tiradas das diferentes qualidades dos
objetos: pois embora seja verdade que entre os indivíduos com
os quais o mundo está repleto, os há mais ou menos conformes
com a nossa natureza, reconheço que não os qualificamos em
consequência de suas verdadeiras propriedades, visto que
é uma verdade certa que no uso ordinário os homens nada
procuram por o terem julgado bom depois de uma justa
consideração, mas, pelo contrário, o estimam e o julgam
bom porque estão determinados a buscá-lo na primeira
percepção que têm dele. O mesmo ocorre com as espécies do
mal, nenhuma coisa sendo dita má, senão em consequência
do sentimento de fuga que se excita em nós por sua ocasião.
Tudo porque as percepções recebidas na alma são ideias e não
há ideia que não contenha um julgamento positivo, sendo até
a inevidência e a dúvida julgamentos.
Também ocorre a partir daí que a maioria das ideias
que são traçadas como bem ou como mal por essas primeiras
percepções são falsas, desiguais ou, no mínimo, confusas e
precipitadas, razão pela qual elas produzem paixões de tantos
tipos diferentes quanto diferentes são as modificações que
elas causam ao corpo e a mente. Sejam quais forem essas
ideias, no entanto, se o erro em que nos lançam pudesse ser
retificado pelo conhecimento da verdade ou pela presença do
verdadeiro, não teríamos que reclamar de nossa constituição:
mas como foi mostrado que o que é falso em toda ideia não é
real, visto que reside na falta de conhecimento e representação
e, além disso, no que diz respeito ao Ser absoluto tais ideias
são verdadeiras enquanto existem, se o poder do verdadeiro
185
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
pudesse mudá-las, ou corrigi-las, a verdade destruiria a
verdade, o que é absurdo.
Isso será melhor entendido por uma breve explicação das
operações da imaginação humana, sobre a qual já reconhecemos
que ela realmente representa mais a sensação presente e a
disposição do corpo, do que objeto que a causa, do qual ela não
pode dar senão uma ideia reflexiva e indireta. Razão pela qual
a mente se engana a seu respeito. Por exemplo, olhando para o
sol, a imaginação o julga a uma distância comum de nós, como
mais ou menos de uma légua, no que estamos absolutamente
enganados, visto que ignoramos sua verdadeira distância. Mas
quando esta distância verdadeira é conhecida, o erro, que é
certamente dissipado no que diz respeito à noção, não o é no
que diz respeito à imaginação, isto é, a ideia do sol pintada
na percepção: pois se temos de representar o sol, nós não o
consideraremos como mil vezes maior que a terra, nem em
uma distância tão prodigiosa. Nós o imaginaremos como a vista
o representa a nós e não tal como a demonstração nos ensina
que ele é, porque não é a ignorância da verdadeira grandeza ou
distância do sol que o pinta à nossa ideia sob a forma em que
nos aparece; mas é a sensação mesma, a qual o conhecimento
da verdade não muda.
É o mesmo em geral de qualquer outra percepção em
que a imaginação é enganada; de sorte que devo permanecer
convencido de que o erro em que ela me envolve não pode
ser banido pelo conhecimento da verdade, e que ela não
cede efetivamente senão a uma nova imagem mais forte que
a primeira e que a exclui, seja por razão de sua força, seja
por ser mais recente e mais precisa; como se, em relação ao
sol, eu tivesse me aproximado quinze ou vinte mil léguas, é
certo que o conceberia de uma forma diferente da que ele me
imprime daqui.
Podemos ainda dizer que, para destruir a primeira
impressão, não é necessário que a segunda tenha uma
causa verdadeira; basta que opere sobre nós. De fato, não
experimentamos todos os dias que o medo de um mal futuro
186
Segunda parte
das
paixões
e real se dissipa com a alegria que dá uma boa nova, ainda
que ela seja falsa, desde que cause uma impressão pelo menos
igual à primeira? Tanto isso é verdade que a experiência
responde exatamente à ordem e à necessidade que supomos
na natureza: segundo a qual são as paixões mais fortes que
acalmam as menores e não o conhecimento da verdade.
Mas tiro tristes induções desses exemplos: pois eles
me revelam uma causa de erro e uma razão de incerteza tão
poderosas e tão ordinárias que me lançam em uma espécie
de desesperança de poder alcançar a verdade. Assim, antes
de ir mais longe, creio que devo reassegurar-me, tomando
uma noção precisa dos diversos graus de realidade e verdade
que nossos conhecimentos podem ter, proporcionalmente à
maneira de os adquirir e à capacidade de nossas mentes.
Parece-me, então, que todos os conhecimentos dos
homens se podem reduzir a certas espécies, a primeira das
quais é aquele que eles adquirem pela percepção de diferentes
objetos, a qual sendo apresentada pelo sentimento à medida
que chegam não é suscetível a nenhuma ordem, e não pode
deixar de ser desigual, obscura e confusa, representando antes,
como já foi dito, a aptidão do corpo do que os objetos, que lhe
é impossível penetrar. Assim, essa espécie de conhecimento
pertence inteiramente à imaginação, uma vez que se contém
na pintura dos objetos da sensação. No entanto, deve-se
reconhecer que esta é o fundamento de todas as outras:
pois sem o uso da percepção seria impossível para a mente
conhecer a si mesma e ter ideia alguma.
Mas como a mera existência de ideias não bastou para
estabelecer a razão humana, nossa modalidade não poderia
existir sem um órgão mais excelente que todos os outros, no
qual essas ideias estão gravadas pela mesma percepção que
as produz na ordem de sua formação: e é desse depósito geral
que saem uma primeira, segunda e terceira vez, umas após as
outras, e umas por ocasião das outras, para dar novas formas
à mente, que, segundo sua definição, não pode existir sem
ideias.
187
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Este tesouro de ideias é, então, uma segunda fonte
de conhecimento que os homens adquirem por ocasião de
certos signos, como nomes e palavras; os quais, conhecidos
ou entendidos, excitam a lembrança de certas ideias, ou de
certos objetos que a mente tem força para imaginar como de
percepções presentes e, não obstante, sempre ocasionalmente,
como explicado na primeira parte deste tratado. Mas essa
espécie de conhecimento, que é manifestamente mais
suscetível de ordem e de método do que o anterior, não é
mais segura, uma vez que tudo o que pode produzir se limita
a ideias representativas de percepções passadas. Segue-se,
então, que nem a primeira nem a segunda podem fornecer
mais do que uma opinião: um termo pelo qual entendo uma
persuasão gratuita que uma certa imagem, apresentada pela
percepção, é conforme a certo objeto. Assim, opina-se que o
fogo é quente, porque nos queima: o que realmente não tem e
não pode ter senão uma conveniência por puro acaso com os
objetos representados.
É, entretanto, nessa acumulado de ideias que consiste
a maior parte de nossas ciências usuais. 1ª A prática de todas
as artes, sobre a qual dificilmente raciocinamos, cada um dos
que as praticam satisfazendo-se com uma rotina que retira dos
ensinamentos do mestre e que se confirma pela experiência
a seu respeito; rotina que os conduz mais seguramente ao
termo a que se propõem, do que o poderiam fazer longos
raciocínios, nos quais temem se perder.
2º As ciências que se ocupam precisamente de objetos,
fatos e arranjos de ideias e expressões, como a retórica ou
a poesia, como a física tomada para o conhecimento da
disposição do mundo, e a conexão dos seres que aí vemos,
a geografia, a hidrografia, que são apenas descrições das
superfícies da terra e da água das quais o nosso globo é
composto; a história que é apenas uma compilação de eventos
passados, a teologia de todas as religiões, que consiste na
suposição de certas ideias tidas como verdades absolutas,
seja como consequência de alguma revelação, considerada
188
Segunda parte
das
paixões
sobrenatural, seja como consequência de uma tradição que
é sempre carregada com novas ideias em seu progresso, e
assim várias outras ciências.
No entanto, tenho o cuidado de não pretender excluir o
raciocínio da prática [usage] desses tipos de ciências e estudos:
pois os princípios sendo uma vez estabelecidos e tidos como
certos por aqueles que os admitem, eles se acham em condição
de tirar conclusões ao infinito, nada sendo tão fecundo quanto
a imaginação. Mesmo assim, tenho o direito de sustentar que
o fundamento dessas ciências ou conhecimentos consiste
apenas na aquisição de um número suficiente de ideias para
cada assunto.
A segunda espécie de conhecimento próprio aos homens
deve ser tirado das noções comuns, em consequência das quais
conseguimos formar ideias justas e iguais de certas propriedades
dos objetos, como por exemplo que o todo é maior do que
sua parte, ou o recipiente que o conteúdo. Mas embora seja
demonstrado e certo que o que é comum a tudo não pode ser
senão concebido de maneira igual e verdadeira, percebemos
que nosso conhecimento faz pouco progresso por esta via, o
número de máximas estabelecidas nesses princípios sendo tão
limitado, e as conclusões que tiramos de um uso tão pequeno.
A terceira espécie de conhecimento é o que chamamos
intuitivo, porque parece ser o efeito de uma simples visão; e
porque atinge a mente com uma convicção tão sensível que
ela não está mais certa daquilo que vê, do que conhece por
seu meio. Certeza que nos igualaria às inteligências mais
perfeitas, se o meio que a alcança fosse de uma tão grande
utilidade para a afirmação, quanto como o é para a negação.
É por meio dela que distinguimos os objetos e as nossas ideias,
e percebemos com convicção que uns não são as outras. Digo
com convicção, porque nenhuma mente pode imaginar uma
evidência mais inteira do que aquela que resulta da diferença
que nós apercebemos entre dois objetos ou duas ideias.
O mesmo meio também nos faz conhecer o que dois
objetos ou duas ideias têm em comum; mas é sempre com
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Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
mais reflexão e trabalho, de sorte que embora a evidência seja
a mesma, há algo de mais complicado na maneira de adquirir
esse conhecimento. Assim, somos obrigados a reconhecer que,
de uma forma ou de outra, é a base de todo o raciocínio de que
os homens são capazes: porque quando a conveniência ou a
desconveniência de duas ideias não está presente em nossa mente
por si mesma, toda a sagacidade humana não pode fazer outra
coisa que descobrir uma ideia mediana que possa ser comparada
às duas primeiras pela via do conhecimento intuitivo, e que
possa estabelecer a prova da conveniência ou desconveniência
que queremos descobrir entre essas diferentes ideias.
É nisso que consiste toda a arte dos silogismos e das
demonstrações, como todos sabem, arte a qual (mantidas as
regras) não pode deixar de produzir um conhecimento certo,
embora acompanhado de trabalho e aplicação, porque a mente
não pode prescindir de sempre fazer avançar o conhecimento
intuitivo em relação às ideias medianas, e de redobrar esse
trabalho até o final da demonstração: o que pode se estender
tanto a ponto de os gênios preguiçosos serem totalmente
incapazes disso, ou que a rejeitem, abandonando-se antes à
ignorância ou à fé de quem lhes assegura que a coisa está
bem provada e que as mentes mais aplicadas perderão a
memória do fio e do encadeamento dessas ideias medianas,
lembrando-se somente que há uma demonstração completa
da verdade de uma tal proposição, isto é, da conveniência ou
desconveniência de tais ideias.
Isso é por si só claro e, todavia, não creio que deva
negligenciar trazer aqui alguns exemplos, que tornarão, se
possível, a verdade ainda mais sensível.
A ciência dos números é precisamente uma ciência de
palavras: pois o número dez, que posso aplicar à medição de
tal quantidade como me aprouver, não se aplica a nada se
quisermos, e não significa por si mesmo senão dez unidades
indefinidas. Contudo, os números não são termos vazios,
pois despertam em nossa imaginação a ideia de quantidade
e nos permitem conhecer a medida até o termo que podemos
190
Segunda parte
das
paixões
contar. Este é também o primeiro de nossos conhecimentos,
uma ciência de palavras que servem de signos para recordar
certas ideias, ou melhor, um catálogo de percepções escritas na
memória ocasionalmente, e todavia sob a mesma designação
das palavras convencionadas para significá-las.
Eis certamente um conhecimento muito leviano em
aparência; no entanto, ele é tão fundamental que, como
alguém que não tivesse ideia dos números, seja qual for a
mente que possa ter, não poderia distinguir quantidade, assim
também aquele que não tem noção dos signos estabelecidos
entre os homens para se comunicarem seus pensamentos não
compreenderia quase nada do que os veria praticar. A história
de um surdo e mudo de nascença, que recuperou a audição
e, consequentemente, o uso de sua língua aos trinta anos, é
precisa para sustentar essa proposição, por ter parecido tão
instruído quanto seria possível do culto externo da religião,
e acostumado na loja do pai a ver as mercadorias vendidas e
a receber o preço em dinheiro, ele admite hoje que não fazia
ideia nem do que se fazia na missa, nem do valor do dinheiro,
nem mesmo da perpétua troca de mercadorias que via ser
feita com o dinheiro. Seria o mesmo, com mais forte razão,
com um homem que não conservasse nenhum traço de suas
percepções, e acho que posso dizer que ele seria incapaz de
distinguir a si mesmo do resto da natureza.
Ora, a ciência dos números estando suposta, se eu quiser
me aplicar ao conhecimento de suas propriedades, primeiro
percebo sua conveniência ou desconveniência de maneira
intuitiva e garanto com a certeza final que 1 não é 2 nem 3, e
que 1 é a metade de 2 e um terço de 3. Nenhuma evidência é
mais clara do que esta, nem mesmo aquela que me assegura
que 2 é mais do que 1, em consequência da noção comum
de que o Todo é maior do que a parte: porque todo homem
é intuitivamente convencido da verdade dessa proposição
“2 é mais do que 1” antes de ser instruído no axioma que
acabei de citar. Razão pela qual insisti pouco acima sobre os
conhecimentos resultantes das noções comuns. Além disso, o
191
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
que estou dizendo aqui do conhecimento intuitivo que temos
das propriedades de alguns números se aplica a qualquer
outro objeto cuja percepção é simples: pois não é menos óbvio
que o branco não é preto, ou que o círculo não é quadrado, do
que é certo que 1 não é 2.
Mas quando, depois de ter avançado em minhas buscas
sobre as propriedades dos números, persuadi-me ter motivo
para estabelecer uma proposição, como dizer: 6 é para 3 como
2 é para 1, se eu precisar ao demonstrar a verdade e não puder
comparar intuitivamente estes quatro números, é necessário
que eu recorra a um termo ou a uma ideia mediana, que
possa comparar imediatamente a cada um dos dois membros
da minha proposição, e é isso que encontro na ideia ligada
à palavra dobro: pois conhecendo intuitivamente que 6 é o
dobro de 3, como 2 é duplo 1, mostra-se que 6 é 3, pois 2 é 1.
E nenhuma mente pode resistir a esta prova.
E se acontecer de um homem ir além de uma verdade
expressa, no desejo de penetrar em alguma outra que ele
ignora, mas que ele se jacta de descobrir por meio de seu
trabalho, como um termo desconhecido no exemplo de 1, 2,
e 3, o qual seria para 2 o que 3 seria para 1, o conhecimento
intuitivo à parte, que se faz aperceber ele mesmo nesses
números simples, é preciso proceder da mesma maneira por
uma ideia mediana; de sorte que, tendo observado que o
número 3 contém três vezes 1, será fácil descobrir aquele que
conterá três vezes 2.
Esses exemplos, talvez simples demais, não deixam de
nos fazer perceber a mecânica do progresso ordinário de nossos
conhecimentos e dos meios que proporcionam a certeza. Resta
mostrar o que a arte e o método podem agregar a isso, e a que se
reduz sua prática pela relação com aqueles que não empregam
senão as simples regras para atingir determinada meta. Para
isso, basta considerar que as mesmas demonstrações, que
são feitas com tanta facilidade a respeito das proporções dos
números muito simples, tornam-se bastante difíceis quando
os números são muito compostos. No entanto, como a razão
192
Segunda parte
das
paixões
de sua proporção é a mesma, aqueles que raciocinaram sobre
a natureza dessa proporção descobrem por longa experiência
que, com a ajuda de uma multiplicação e de uma divisão,
obtêm precisamente a proporcionalidade desejada. Assim,
a necessidade de empregar uma ideia mediana foi reduzida
no método para encurtar a repetição das comparações que
deveriam ser feitas com os diversos termos da proporção. E
tanto o sábio como o ignorante tornam-se, por meio desse
método, igualmente capazes de encontrar um quarto termo
proporcional aos termos propostos, embora totalmente
desconhecido, tanto a um quanto a outro.
Todavia, na prática, há esta diferença entre eles, que o
conhecedor sabe o que faz e como o faz: ele vê intuitivamente de
que maneira as multiplicações e divisões que emprega suprem
a atual comparação de ideias médias, das quais ele precisaria,
ao passo que o comerciante e o contador que empregam as
mesmas regras, segundo lhes foram mostradas, negligenciando
todas as ideias de proporção, comparação, conhecimento
intuitivo e termo médio, atingirão seu objetivo com o mesmo
sucesso e sem embaraço. No entanto, a ignorância destes
está longe de ser preferível ao conhecimento do outro: pois
se alcançam igualmente ao mesmo termo, os primeiros são
conduzidos ali como cegos e o outro se porta com liberdade,
ação e conhecimento, de maneira que nada mais tenha desejar
por evidência do que ele se propôs a saber. Eis de que maneira
o que é método, evidência e convicção para uns é arte mecânica
para outros, arte que podemos exercer e conhecer sem outras
ideias que não as das regras, cuja recordação é necessária se
quisermos nos poupar do trabalho de raciocinar: um princípio
dos mais gerais da conduta dos homens.
Ora, por mais que seja evidente que o erro e a falsidade
não podem ter nenhum outro princípio a respeito das ideias
representativas além da precipitação com que tomamos um
julgamento sobre a conveniência ou desconveniência de duas
ideias (o que, para bem tomá-la, não é em si mesma senão
uma semelhante desigualdade, pela qual imaginamos que uma
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Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
proposição é demonstrada, embora não o seja), na medida
em que me parece certo que o erro e a falsidade não podem
referir-se senão à primeira espécie de conhecimento próprio à
mente humana, a qual, como vimos, não fornece senão ideias
de nossas percepções, e não os objetos neles mesmos.
Pelo contrário, a verdade não se podendo pintar à
mente por outra via que a das ideias iguais, e reciprocamente,
as ideias iguais não podendo representar senão a verdade, é
impossível que as outras três espécies de conhecimento nos
possam enganar, se, além disso, nós não fazemos nada por
nós mesmos que lhes seja contrário. Assim, nossa natureza
frui da vantagem de três tipos de conhecimento verdadeiro,
contra um sujeito ao erro. Mas também é preciso admitir que o
hábito perpétuo e necessário das sensações e da palavra torna
estas muito mais gerais que as outras, que exigem reflexão e
atenção, coisas sempre combatidas por nossa preguiça natural.
É por isso que, por outro lado, como se alguma natureza
inteligente quisesse nos preservar, mesmo apesar de nós
sermos presas do erro, as ideias iguais se encontram marcadas
de uma característica distintiva, sobre o qual nenhuma
mente pode se equivocar, e essa característica é a evidência
intuitiva, ou demonstrada, em consequência da qual aquele
que tem uma ideia verdadeira sabe e conhece que a possui, de
maneira que, quando é dada, não lhe é possível formar dúvida
por sua ocasião. De fato, quem diz uma ideia verdadeira,
diz um conhecimento completo e perfeito do objeto que
ela representa, e quem diz conhecimento perfeito exclui
necessariamente a dúvida e a incerteza. De outra maneira,
isso seria reduzir a ideia à função de um quadro inanimado e
despojá-la da sensação que a acompanha, na medida em que
ela é um modo de pensamento unido aos órgãos sensíveis.
Portanto, a verdade é evidente por ela mesma e distinta da
falsidade como a luz é das trevas, sem outro argumento que a
sensação e a evidência resultante.
Há, no entanto, uma dificuldade que consiste em que –
visto que a sensação é a companheira inseparável da evidência
194
Segunda parte
das
paixões
e esta a consequência necessária da verdade – parece que a
sensação não deveria ser encontrada onde há erro, e portanto
nós nunca deveríamos tomar o falso pelo verdadeiro. Mas esta
consequência não é justa: pois não é o erro que toma a forma
de verdade e que se torna evidente na sensação de estarmos
nos enganando. Vimos que o erro e a falsidade não são senão
defeito de conhecimento e que nada têm de positivo. Pelo
contrário, nossa percepção é real, efetiva e necessariamente
sensível. Assim, quando represento o sol do tamanho de um
prato, é certo que minha percepção não me engana: pois
realmente o vejo como tal e não pode me parecer outro nas
circunstâncias que acompanham minha percepção. Porém, é
certo que me engano por falta de conhecimento, e mesmo
que me engane desmesuradamente, porque não há nenhuma
proporção entre o tamanho efetivo do sol para o que a
percepção lhe dá.
Qual é, então, o meu erro e como ele me seduz por
uma sensação verdadeira? Aqui está: é que vou além da
minha percepção, e por um julgamento falso e precipitado
me persuado de que o sol é tal como me parece. O mesmo
é válido para qualquer outra sensação: elas são todas
verdadeiras, na medida em que representam um objeto, ou
melhor, o sentimento e a aptidão do corpo em sua ocasião, e
todas incertas, e na maioria das vezes falsas, na medida em
que elas passam a formar um julgamento efetivo e real dos
objetos que as causam. Limitemo-nos, então, a julgar as nossas
próprias sensações e as ideias que delas resultam, a comparálas, a examinar as suas conveniências e desconveniências, seja
intuitivamente, seja seguindo o método de uma demonstração
justa, e seremos assegurados da verdade por sua evidência.
Segue-se daí que os homens se enganam e muito mais
e muito menos do que acreditam, e que não lhes é dito que o
fazem: pois, em geral, enganam-se ou podem se enganar em
todos os julgamentos que formam sobre os objetos exteriores
em consequência de suas percepções, e pela mesma razão
em tudo o que edificam sobre um mal fundamento. Em
195
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
segundo lugar, eles se enganam como consequência dos maus
princípios de sua conduta: desatenção, precipitação, paixão,
falsas hipóteses, submissão ao hábito e à autoridade, falta de
provas, falta de habilidade ou vontade de usá-la, etc…
Mas em todos os outros aspectos, não está no poder do
homem se enganar. Seu conhecimento é feito necessário pela
convicção da verdade, seja intuitiva, seja demonstrativa. E é
por isso que os homens não divergem de opinião sobre o objeto
das verdades matemáticas, porque suas demonstrações são tão
evidentes para um chinês ou americano, quanto para um homem
nascido em Londres ou Paris. O mesmo seria aparentemente
para a metafísica, moral e muitos outros conhecimentos, se eles
também fossem igualmente cultivados. Pelo contrário, vemos
que no que diz respeito a todas as ciências, que consistem na
representação de objetos, não somente as diferentes nações não
concordam, mas que é muito raro que dois homens particulares
concordem com as mesmas conclusões, embora pareçam convir
dos mesmos princípios.
Resta-me depois disso demonstrar que a evidência é
o caráter distintivo da verdade, e que não está no poder do
homem resistir a ela, se ele age naturalmente. Vimos acima
que nenhuma ideia é verdadeira em relação a nós, senão em
consequência do que ela é tal no Ser infinito ou absoluto, a
respeito ao qual é demonstrado que a ideia de uma coisa,
como seria a de um triângulo, é a mesma que um triângulo
existente. Se, então, eu tenho uma ideia verdadeira, ela é
objetiva do lado do ser absoluto, isto é, que em Deus há uma
ideia dessa ideia, e do meu lado é o modo constitutivo de
minha mente no momento em que estou ocupando. Seguese, então, que a segunda ideia, aquela que concebo estar
em Deus, existe em mim, como a primeira, visto que não
há diferença entre a ideia de Deus e um ser existente. Mas
esta ideia existe em Deus como ideia verdadeira: então, ela
existe da mesma maneira em mim: isto é, tenho uma ideia
verdadeira da minha primeira ideia; mas quem diz uma ideia
verdadeira diz um conhecimento perfeito. Então, conheço
196
Segunda parte
das
paixões
perfeitamente minha primeira ideia e, consequentemente,
não posso formar nenhuma dúvida sobre seu objeto: isto
é, que ela me é evidente ou que me dá um sentimento
convincente de sua verdade.
Mas o que você entende, dir-me-ão, por essa ideia
objetiva, que você supõe estar em Deus, de tudo o que existe no
universo e de sua ideia em particular? Ou essa ideia objetiva é,
como você o diz, a mesma coisa que o ser individual existente,
ou é diferente. Se for a mesma coisa, toda essa prova não é senão
uma batologia ou um sofisma; se for diferente, você faz um ser
particular daquilo que você reconheceu pelo Ser absolutamente
geral. Eu respondo a isso que este assunto foi amplamente
discutido na primeira parte deste tratado, onde mostramos a
natureza e as propriedades dessa ideia objetiva. Contudo, para
não abusar da atenção do leitor, contentar-me-ei em repetir
aqui duas coisas: a primeira, que nunca pode haver diferença
entre um ser individualmente existente e a ideia objetiva que
está em Deus, pois, diferentemente, o Ser absoluto e geral seria
concebido como pensante em particular, o que seria absurdo. A
segunda, que o termo ideia objetiva não deve ser tomado senão
pela realidade individual dos seres particulares, correspondendo
a algum ponto do atributo infinito do pensamento que existe
no ser absolutamente geral: isto é, não existe nada que não seja
concebido ou concebível por uma inteligência proporcional, visto
que os atributos do ser total sendo necessariamente infinitos, eles
respondem proporcionalmente uns aos outros em seus diferentes
modos, graus ou partes, expressão a ser tomada aqui no sentido
que mostrei que os atributos divinos podem ter partes, embora
sejam respectivamente infinitos.
Mas, apesar dessa resposta, ainda me objetarão que,
neste mesmo sentido, eu provo demais: porque eu disse alhures
que uma ideia desigual é verdadeira e igual em Deus: sendo
esta compreendida pela realidade individual que lhe convém,
enquanto ela é um modo do ser absoluto, é preciso dizer que,
se essa ideia é real em Deus, também existe em mim com a
ideia de sua ideia, e igual convicção que a primeira. Todavia,
197
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
bem vejo que tal objeção não seria fundada senão sobre um
abuso significativo dos termos: pois a realidade de uma ideia
desigual não é efetiva senão em relação à verdade de seu ser e
não em relação à representação que é necessariamente falsa,
caso contrário, não seria desigual.
No entanto, não podemos dizer que a ideia da realidade
de uma tal ideia é suficiente para a convicção? Mas o oposto é
evidente, pois a ideia de uma ideia desigual só pode representála como tal. Ela pode ser capciosa; pode lisonjear as paixões,
pode ser favorável aos desejos, mas não será evidente, porque
a verdade de seu ser estabelece sua falsidade, visto que é
suposta desigual.
Por outro lado, é difícil não concluir sobre esta prova
que o erro e a falsidade são, então, evidentes, visto que eles
não podem ter absolutamente o caráter da verdade e, se é
assim, não se pode nunca errar senão por um fato voluntário.
Mas isso é ir longe demais; não se pode dizer que o erro e
a falsidade sejam evidentes, pois, pelo contrário, é porque
não são evidentes que são erro e falsidade. Dizemos, então,
somente que seriam facilmente apercebidos se se quisesse darlhes uma atenção conveniente, e se os preconceitos, as paixões,
a preguiça de examinar e raciocinar e os outros compromissos
assinalados acima não suprimissem o conhecimento.
As características da verdade e do erro, assim como
as diversas espécies de conhecimento que nos são próprias,
uma vez estabelecidas, é tempo de regressar à nossa última
proposição, segundo a qual reconhecemos que o esforço
comum de todos os seres para se conservar, e para perpetuar
a sua existência, é íntimo à natureza, da qual ele faz uma
parte essencial. De sorte que os apetites, ou desejos de
busca e fuga que lhe são necessariamente consequentes, são
também consequências da natureza, na medida em que é
determinada pelos objetos: pois, então, não é mais o efeito
do desejo puramente direto, que deve envolver no indivíduo
que o sente, pois, ao contrário, este se refere aos objetos
externos, segundo a forma da percepção. Assim, não pode
198
Segunda parte
das
paixões
haver ser sensível que não esteja inelutavelmente sujeito a
essas duas afecções, fuga e busca, na medida em que ele é
suposto capaz de esforço para se perpetuar e de sensação
para conhecer objetos.
Mas a simples propriedade dos termos nos faz conhecer
que a busca é um desejo que aspira à posse de algum objeto,
assim como a fuga é, ao contrário, um desejo de ausência ou
de privação de algum outro objeto, e daí devemos concluir
que a presença ou ausência dos próprios objetos causarão
necessariamente um prazer ou um desprazer atual àqueles
que supomos serem tocados por essas afecções, isto é,
um sentimento de bem-estar ou mal-estar, consistindo em
que o poder do indivíduo será virtualmente aumentado ou
diminuído, segundo sua percepção.
Com efeito, se lembramos de nossas provas precedentes,
lembraremos que foi demonstrado que a existência da mente
não consiste senão na percepção do que acontece ao seu
corpo, que a ordem ou a conexão das ideias é a mesma que
a das percepções, e que a mente tem mais ou menos aptidão
para formar diferentes ideias, segundo a aptidão de seus
órgãos para receber diferentes percepções. Além disso, vimos
que a mente e o corpo juntos não compõem senão um mesmo
indivíduo dotado de certa força, capaz de certas ações, e
sensível às mudanças que ocorrem, seja ao corpo, seja à mente.
Consequentemente, é fora de dúvida que qualquer coisa que
aumente ou diminua sua força e poder atuais, e o bem-estar
de seu corpo, aumenta ou diminui também a força e o bemestar da mente e, reciprocamente, da mente ao corpo, visto
que os dois juntos são um mesmo indivíduo.
Segue-se daí que a mente e o corpo estão reciprocamente
sujeitos às mesmas mutações, isto é, a passar de uma realidade
maior para uma realidade menor, e inversamente. Mas, seguindo
nossas definições precedentes, a realidade e a perfeição não
são senão a mesma coisa. Portanto, quem diz para passar para
uma realidade maior ou menor, diz passar para uma perfeição
maior ou menor. Todavia, o que se compreende facilmente do
199
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
corpo, que vemos sucessivamente em diversos estados de força
ou fraqueza, de perfeição ou imperfeição, não se aplica tão
facilmente à mente, pela dificuldade que há de imaginar que o
atributo do pensamento não é independente do corpo. E é aqui
que o preconceito nos adestra, apesar da própria evidência, para
o qual não parece haver outro remédio que bem compreender
e reter para sempre que a alma humana, na medida em que
ela é um modo de pensamento determinado a um objeto
próprio, não tem outra realidade além daquela que ela tira das
ideias das quais ela é sucessivamente ocupada à proporção das
afecções do corpo. Mas, para evitar qualquer ambiguidade,
é preciso demarcar que os ofícios da memória estão aqui
incluídos entre as afecções do corpo, porque a lembrança não
é verdadeiramente senão uma segunda sensação evocada pelas
causas ocasionais que já mencionamos, e que conheceremos na
sequência ainda mais claramente.
Ora, se considerarmos as mudanças do indivíduo
humano em relação apenas à mente, não as devemos considerar
como a sucessão ordinária de suas ideias: pois essa mudança é
necessária para cumprir as funções de sua natureza, ou melhor,
é o efeito necessário de sua existência. Mas é preciso tomá-las
por um estado de perfeição ou imperfeição, ocasionado pelas
causas que aumentam ou diminuem seu poder, ou o de seu
corpo, isto é, do indivíduo inteiro, estado esse que não pode
deixar de ser sensível a um ser igualmente capaz de percepção
em relação ao corpo e em relação à mente. Não é, então, a
igualdade ou a desigualdade das ideias que torna o homem
sensível, é a percepção mesma que o torna capaz de buscar
ou evitar objetos de prazer ou de desprazer em sua aplicação.
Mas quem diz sensibilidade diz uma modificação intrínseca do
indivíduo, na medida em que os objetos que agem sobre o corpo
se unem à ideia objetiva da mente que deve ser encontrada
no Ser absoluto. Razão pela qual foi demonstrado acima que
tais modificações da mente são realmente paixões: isto é,
ideias para formação das quais ela recebe sua determinação de
objetos externos, e não age senão emprestando a sensibilidade
200
Segunda parte
das
paixões
e a facilidade de sua natureza. Daí resulta que os efeitos
consequentes dessas mesmas modificações não têm causa
própria senão na ação dos objetos, aplicada a um ser capaz de
sentimento, e de um impulso autômato [ressort automate], que
no hábito se toma por uma força ativa. Portanto, posso concluir
que, como o princípio ativo das paixões reside sensivelmente
na impressão dos objetos, seu princípio passivo não pode ser
tomado senão na sensibilidade do homem, expressa pelas
afecções de busca e fuga.
Se passarmos depois ao exame das paixões em sua
ordem natural, as primeiras que se apresentam à mente são
aquelas que resultam imediatamente das afecções primitivas,
na medida em que são satisfeitas, pela fruição na busca e
afastamento na fuga, ou na medida em que são afligidos pela
privação na busca e pela presença na fuga. Essa satisfação e esse
pesar são evidentemente os primeiros efeitos da aplicação dos
dois impulsos da natureza do homem aos objetos exteriores,
a busca propondo necessariamente a fruição e não a privação,
e a fuga propondo da mesma maneira o afastamento e não a
presença.
Se, então, essas afecções são satisfeitas, resulta um
sentimento, uma percepção, uma ideia que exprimimos pelo
nome de alegria e, consequentemente, o coração e a mente
são dilatados, conhecendo seu bem-estar e o aumento de seu
poder, realidade ou perfeição. Mas se, por um efeito contrário,
essas afecções são afastadas de seu termo, resulta uma sensação
toda oposta, que exprimimos pelo nome de tristeza, em
consequência da qual o coração e a mente são constrangidos
pelo conhecimento de uma menor realidade, poder ou perfeição.
A alegria e a tristeza, então, são incontestavelmente
as primeiras paixões com as quais o homem pode ser
tocado, e não o são somente em ordem, como as primeiras
consequências das afecções necessárias do ser senciente, mas
na realidade porque todas as outras paixões não são senão de
modificações destas: verdade que a sequência demonstrará.
Isso é também o que torna sua definição muito importante, já
201
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
que seremos obrigados a considerá-las em uma variedade de
faces tão grande quanto há variedades nas paixões.
Observarei, então, que, como o homem é de alguma
forma duplo em sua constituição, essas paixões que são
nomeadas alegria e tristeza em relação à mente devem ter
outras denominações em relação ao corpo para evitar a
confusão. Assim, chamarei titilação, carícia ou hilaridade o
que é próprio do corpo na paixão da alegria, distinguindo,
todavia, que os dois primeiros não se referem ao corpo senão
no que diz respeito a algumas de suas partes, ao passo que
a hilaridade se estende à aptidão inteira. E nomearei dor e
melancolia o que é o paralelo na paixão da tristeza, a saber,
dor quando uma ou mais partes do corpo são afetadas com
violência, e melancolia quando o é à aptidão inteira.
Mas deste grande princípio que um ser senciente e
conhecedor, tal como o homem, é necessariamente sujeito à
alegria e à tristeza, segue-se uma infinidade de consequências
que, na sua diversidade, dão a forma a todas as outras paixões,
em geral e em particular.
E, em primeiro lugar, precisamos concluir que a mente
humana deve se esforçar, tanto quanto está em si, em imaginar
as coisas que lhe são próprias a dar alegria, isto é, a aumentar
o poder de seu corpo e, consequentemente, seu próprio, o que
faz nascer a afecção que distinguimos pelo nome de amor.
Em segundo lugar, que quando a mente é forçada a
imaginar as coisas que a afligem, porque elas constrangem e
limitam esse mesmo poder, ela deve conceber o sentimento do
ódio, ou seja, fazer mais um outro esforço para rejeitar a ideia.
E certamente, enquanto o corpo humano é modificado
por uma impressão externa, é necessário que a mente
considere como presente o objeto que causa essa modificação,
e reciprocamente, enquanto a mente considera como presente
tal objeto, não o faz senão pelo auxílio da memória, o corpo
será afetado de uma maneira que aumentará ou diminuirá seu
poder; porque, como vimos, a ordem e a conexão das ideias
é a mesma que a das percepções. Mas cada ser se conduz
202
Segunda parte
das
paixões
por seu esforço natural de perseverar em sua existência e nas
consequências desse esforço, que não são senão o desejo de
bem-estar. Portanto, é impossível que a mente não se leve à
consideração dos objetos que ela julga capazes de aumentar a
realidade dela mesma e de seu corpo, ou seja, o bem-estar do
indivíduo total.
Não é mais difícil mostrar que, da mesma maneira,
o esforço natural tende a excluir a ideia e a sensação das
coisas que restringem o poder do indivíduo: pois enquanto
a mente imagina o que diminui sua realidade efetiva, ela
consequentemente imagina o que diminui a de seu corpo, e,
da mesma maneira, reciprocamente do corpo para a mente.
De sorte que, como deseja essencialmente a sua conservação
e bem-estar, será necessário fazer um esforço contrário à sua
ideia ou à sua percepção, isto é, trabalhar para excluí-las, o que
não pode ser feito senão propondo outro objeto, cuja impressão
seja suficientemente forte para banir a imagem fastidiosa que
está presente em nossa mente. Assim, o indivíduo deve se
agitar nesse esforço, revirar-se, por assim dizer, para todos os
lados para encontrar um estado cômodo. E essa é a razão física
da inquietude que sempre acompanha as paixões fastidiosas.
Por outro lado, como não há percepção que não se grave
na memória, nem da qual consequentemente a lembrança
não represente a imagem com uma vivacidade proporcional
ao sentimento primitivo ou ao tempo decorrido desde que ela
aconteceu, segue-se que o amor e o ódio não são restritos apenas
à presença dos objetos, porque sempre que nossas faculdades
de imaginação ou de memória tornam objetos distantes
presentes para nós, devemos sentir as mesmas percepções que
antes atribuímos à sua presença efetiva e real. Razão que deve
nos convencer de que essas duas paixões não estão atreladas à
mera presença dos objetos, mas se estendem às suas imagens
segundo a forma em que foram gravadas pela percepção.
Assim, podemos dizer que o amor não é outra coisa
que um sentimento de alegria, acompanhado da ideia de uma
causa externa, da qual desejamos a presença, até empreender
203
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
tudo o que a possa proporcionar, ou a conservar depois de
tê-la adquirido, ou ao menos mantendo a memória, cujas
imagens tomam o lugar da presença efetiva.
Pelo contrário, o ódio é um sentimento de tristeza,
acompanhado igualmente da ideia de uma causa externa,
que leva a mente a rejeitá-la e a imaginar seu afastamento
e destruição: de tal sorte que não haverá nada que não
empreendemos com satisfação para chegar ao fim do propósito
formado de nos livrarmos dele, e que na falta de uma ação
real, a imaginação se nutrirá de todos os projetos que lhe
poderão consolar a este respeito.
Mas isso mesmo nos faz conhecer quanto esses
sentimentos estão longe de depender de nossa liberdade:
pois, além do que acima conhecemos, a necessidade de uma
determinação externa para produzir nossas percepções,
estamos em posição de julgar que não pode haver nada de
arbitrário na afecção, que resulta das mesmas percepções,
nenhum objeto podendo excitar nosso amor por um sentimento
contrário à alegria, nem causar alegria sem aumento da
realidade do ser, e, ao contrário, o ódio não podendo entrar
em nosso coração por nenhuma outra porta do que a de uma
percepção fastidiosa e importuna, que necessariamente irrita
o sujeito que a sente contra o objeto que a causa.
Não é menos evidente, pela definição da memória,
que toda mente que concebeu duas ou mais ideias juntas não
será mais afetada por uma delas sem o ser logo pelas outras.
Verdade cuja prova se estabelece pela relação necessária
que as ideias têm com as afecções do corpo. É por isso que
a imaginação e a memória não sendo fundadas senão na
propriedade natural dos corpos animados de renovar uma
percepção por ocasião de uma outra, e as ideias que não
representam senão essas mesmas percepções, de tal sorte
que a ordem de umas é a mesma da das outras, seguese que, no exercício da imaginação e da memória, não há
nada mais arbitrário nem mais livre do que na aplicação
dos objetos.
204
Segunda parte
das
paixões
É preciso também concluir do mesmo princípio que
não há nada no mundo que não possa, por acidente, causar
seja o ódio, seja o amor, seja a alegria, seja a tristeza; pois se
supormos o homem tocado por dois afetos, um dos quais lhe
será indiferente, porque não aumenta nem diminui seu poder
ou seu bem-estar, e outro que, ao contrário, toca-o realmente
de alegria ou de tristeza, necessariamente acontecerá que
quando ele imaginar o primeiro, ou se lembrar dele, ele irá
imaginar o segundo e sofrerá de sua parte a alegria ou a
tristeza que esse é capaz de lhe causar. Portanto, a primeira
afecção, embora indiferente em si mesma e em relação a ele,
será ocasionalmente causa positiva de alegria ou tristeza e,
consequentemente, objeto de ódio ou de amor, sem nenhum
mérito de sua parte. Princípio que descobre a causa de nossas
simpatias ou antipatias em um mecanismo muito simples.
Mas essa consequência se estende ainda mais, visto
que é indubitável que toda percepção ou imaginação de um
objeto em que encontramos alguma semelhança ou paridade
com outro objeto, que nos tocou com amor ou ódio, excitará
os mesmos sentimentos em relação a ele, mesmo que a
semelhança desses objetos consistisse em coisas diferentes
daquilo que é a causa real de nossas afecções. O que acontece
em consequência da propriedade essencial do órgão da
memória, onde as imagens das percepções são evocadas por
ocasião umas das outras; ou melhor, por um efeito do desejo
precipitado que nos leva a buscar, ou a rejeitar, sobre a mais
ligeira aparência tudo o que julgamos capaz de contribuir para
o nosso bem-estar, ou tudo o que lhe parece ser contrário.
Mas se esse princípio tem consequências coerentes
e moralmente relativas entre si, há outros que parecem
contraditórios, como aquele que muitas vezes reúne sentimentos
de amor e ódio em relação ao mesmo objeto. Isso ocorre,
todavia, em razão da mesma mecânica: pois o corpo humano
sendo composto de um grande número de partes diferentes,
que podem ser diversamente afetadas por um mesmo objeto,
as percepções que dele resultam podem ser diferentes e até
205
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
contrárias; ou pode ser que um objeto sendo amado ou odiado
por si mesmo, seja lembrado na imaginação por outro objeto,
que excita um sentimento contrário, de modo que será amado
por si mesmo e odiado por ocasião, ou vice-versa. Mas de uma
forma ou de outra, esse combate de duas paixões opostas termina
necessariamente em uma incerteza, que os latinos chamaram de
animi fluctuatio, que na ordem dos afetos corresponde ao que
chamamos de dúvida em relação à evidência de um objeto, ou de
uma proposição, em coisas que são do domínio da imaginação.
Tudo isso se compreende facilmente, mas me parece que
resta alguma dificuldade no tocante à eficácia que atribuímos
à memória, para excitar as mesmas afecções de alegria ou
tristeza que poderia fazer um objeto presente. No entanto, a
definição da memória e nossa própria experiência nos fazem
conhecer que consideramos como presente qualquer objeto
que imaginamos, por mais distante que esteja realmente, a
menos que a percepção tenha perdido muito de sua evidência
pelo número de anos decorridos no intervalo, ou então pela
constituição do órgão; e daí se segue que uma ideia, enquanto
tal, não está mais relacionada com o tempo do que com a
distância, e o mesmo ocorre com qualquer afecção ou paixão
resultante de uma tal ideia. Não se pode separar a ideia de
uma coisa da afecção que é seu efeito necessário: porque,
enquanto ideia, ela é a forma da mente no momento em que
ela está ocupada e, portanto, está tão realmente presente como
se o objeto, do qual é a imagem, afetasse o corpo no mesmo
instante, o que, no entanto, deve ser entendido na proporção
da percepção dessa imagem, quando se trata do passado.
Não é o mesmo com as ideias que formamos no
porvir: pois é ordinário ampliar as imagens dos objetos. De
sorte que, quando chegamos a obter o que desejávamos, ou
caímos na inconveniência que nos apreendeu, quase sempre
encontramos a experiência mais fraca do que a ideia do
objeto esperado. É preciso, no entanto, excluir desta regra
os homens a quem o uso da vida deu suficiente sabedoria e
experiência para conhecer a incerteza dos eventos, os quais
206
Segunda parte
das
paixões
são mantidos em suspense até onde sua razão pode agir, sem
desejar demais nem temer, de modo que que suas afecções
são mais facilmente dissipadas por outras imagens, até que o
sucesso as tenha plenamente asseguradas.
Isso ainda traça o caminho para reconhecermos a fonte
de diversas paixões de segunda ordem, como da esperança
que não é senão uma alegria mal assegurada, concebida
na ideia de um evento incerto, ou do medo que, em uma
espécie contrária, é uma tristeza inconstante, concebida na
ideia de algo triste cujo sucesso não é garantido. Assim, essas
duas paixões são tão baseadas na incerteza, que mudam de
natureza e de nome assim que o evento deixa de ser duvidoso,
a esperança torna-se segurança e o medo desespero ou simples
dor, segundo a gravidade dos casos que o determina.
É certo, então, segundo o que acabamos de explicar, que
o ser sensível e cognoscente, ou seja, o indivíduo humano, sendo
uma vez tocado por sentimentos de amor ou ódio pelos diversos
objetos que a sensação lhe apresenta, não está mais em condições
de deter as paixões do que suas consequências necessárias, e
toda a sabedoria, religião e filosofia com que ele pode se armar
contra seu esforço, nada podem opor-se a elas, se não atrelou
desde cedo sua inclinação aos objetos de uma outra espécie ou se
não a retiram dessas próprias percepções pela representação de
outros objetos, que poderiam tocá-lo mais sensivelmente.
Parece-me, porém, que nisto falo demais, visto que
conheço por experiência um sentimento que se recusa de tal
forma aos objetos e que aquiesce tão simplesmente à minha
própria constituição que, sem ajuda externa, sem precauções
contra as paixões, goza de si mesmo e das circunstâncias de seu
estado com uma tranquilidade que é sua verdadeira satisfação.
Pode-se até dizer muito mais, visto que esse estado se opõe
inteiramente às novidades, de qualquer lado que se apresentem,
nos hábitos, nas sociedades, nas opiniões. Devemos dizer que
esta disposição é suficiente para si mesma? Vamos acreditar nos
infelizes que suspiram na escravidão sem querer positivamente
mudar sua situação? Ou, pelo menos, nossa prevenção natural
207
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
em favor do costume não formará uma demonstração contrária
a tudo o que foi alegado para sustentar a necessidade da ação
de causas externas na determinação de nossos desejos?
Não, sem dúvida: pois é fácil descobrir no mesmo
princípio a mecânica dessa preguiça, que encanta, por assim
dizer, o gênero humano. De fato, o desejo da perseverança
do ser precedendo essencialmente, na ordem da natureza,
e os apetites de busca e fuga, e os sentimentos de prazer e
dor, que dele resultam, não pode acontecer menos ao homem,
ocupado de um desejo tão íntimo quanto o da perseverança,
acostumar-se ao seu próprio estado, a ponto de temer ser
perturbado em sua posse, do que se sentir lisonjeado pela
esperança de ser distraído por uma sensação desconhecida,
sobretudo quando a confiança é mal assegurada e quando os
sucessos parecem mais incertos do que os perigos.
Além disso, se considerarmos essa afecção da preguiça
em relação aos atributos do pensamento e da extensão, que
constituem o indivíduo humano, reconheceremos que, como
é impossível que aquilo que não é causa de si mesmo aja a
não ser por impulso, o homem é não ele mesmo determinado
a qualquer tipo de ação, seja em relação ao corpo, seja em
relação à mente; mas que esse impulso sendo suposto, não
há parte do homem que possa agir sem trabalho. O corpo
suará sob o peso do trabalho, os pés e as mãos se fatigarão, e
a aptidão inteira suspirará pelo descanso, que nem sempre o
trabalhador encontra no final de seu dia.
É o mesmo com a mente. Se é preciso raciocinar, é
necessário que todos os órgãos e todas as faculdades concorram
para isso, que a memória evoque as percepções que lhe foram
confiadas, que a imaginação as represente, que o juízo as
compare e que se forme a partir daí uma nova percepção à
qual a mente dará sua aquiescência, ou que rejeitará segundo
a conveniência ou a desconveniência que perceberá entre seu
bem-estar e essa nova percepção.
Ora, este trabalho, em qualquer atributo em que se
passe, é um efeito da determinação que, como já reconhecemos
208
Segunda parte
das
paixões
precedentemente, não pode ter senão uma causa externa,
visto que o homem, ser modal e condicional, é tão pouco sua
própria causa de agir do que é a de existir, e que, embora
penetrado do desejo íntimo de sua perseverança em seu ser,
e em sua modalidade, nunca pode ser causa em seu próprio
fundamento, embora possa sê-lo em todo outro aspecto nas
coisas que são fora dele.
Assim, combatido por duas disposições contrárias, ele
busca seu prazer nas determinações novas e seu descanso
na aptidão ou na continuação de sua existência modal. E,
consequentemente, ele nunca está em condições de decidir em
qual situação se encontra mais confortável, se a inconveniência
do presente ou a esperança do porvir não pendem a balança.
Segue-se, então, que, propriamente falando, o homem
não age mentalmente ou corporalmente senão a despeito de
si mesmo: isto é, ele só raciocina quando, não encontrando
em sua memória regras de conduta feitas ou conhecimentos
assegurados, é obrigado a refletir sobre a natureza das
coisas, comparar suas ideias e formar juízos sobre elas, assim
como, por outro lado, só trabalha com as mãos quando suas
necessidades a tal o constrangem.
Mas essa preguiça é um defeito em nossa constituição ou,
para exprimir melhor a questão, nossa felicidade consiste mais
na ação do que no repouso? Essa proposição é de uma extrema
importância: pois se a felicidade reside na ação, parece que não
nos cabe senão sermos felizes, não agindo sem determinação,
mas não tendo senão que nos abandonarmos àquelas que os
objetos possam nos causar. Ao contrário, se a tranquilidade,
se a calma das paixões é a verdadeira felicidade do homem,
a preguiça nos conduz pelo caminho mais curto à felicidade,
pois não temos senão que recusar com constância as sensações
que nos seduzem e que, assim, o afastamento do mundo, a
renúncia aos cuidados e negócios, a indolência e a posse de si
são os verdadeiros meios que nos podem fazer felizes.
A filosofia se empenha há várias centenas de anos
em resolver solidamente esta questão, sem ter podido se
209
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
satisfazer. A religião se empenhou novamente em socorrê-la
neste trabalho, e em abreviar seus raciocínios com o auxílio de
imagens cujo espanto e vivacidade representam infinitamente
acima de todas as sensações comuns. O que poderíamos
acrescentar ao que cada uma avança de sua parte? Limitemonos, pois, a observar que na própria ação o repouso é o nosso
verdadeiro termo, e que, segundo a definição da ação que nos
é própria, não está no poder de quem nele mais se compraz,
de ter encontrado uma outra satisfação que não aquela que
resulta da aptidão adquirida no trabalho, ou na mudança de
objetos, ou em uma palavra, na agitação de uma vida que,
passando-se em seguir a impressão de causas externas, deve
sempre sofrer e, consequentemente, fazer alguma violência.
Parece, por outro lado, que a preguiça é o presente
mais rico que a natureza nos deu. É ela que contenta e,
consequentemente, iguala todas as condições; é ela que põe
equilíbrio entre as doçuras obscuras de uma vida simples e a
brilhante felicidade dos conquistadores. É ela que ameniza
as maiores dores, e que torna a existência amada e desejada,
mesmo nas masmorras e suplícios. É ela, enfim, que assegura
os tronos, adoçando a condição dos sujeitos, e lhes fazendo
suportar um jugo do qual eles nem sequer têm ideia no
meio da experiência. Tudo pela só razão de que o desejo
de perseverança do ser se afasta por si mesmo de qualquer
mutação violenta, atrela-se necessariamente ao estado
presente e receia experiências incertas.
Mas, além disso, essa preguiça de raciocinar e agir
precisa de entretenimento. Uma sensação contínua tornase necessariamente importuna. Muitas vezes elogiamos
os grandes príncipes, os mais cheios de sua glória e de sua
fortuna, porque descem facilmente de sua elevação, e no fundo
são louváveis e felizes pela espontaneidade de seu gênio, que
não repugna às sensações comuns; mas, no fundo, não será
que, entediados com homenagens contínuas e ocupações
tão gloriosas, procuram se divertir, ou falar a linguagem
comum, para matar o tempo? A experiência está contra eles,
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Segunda parte
das
paixões
pois vemos pela história que a maioria, sob o pretexto de
relaxar, deu menos atenção, não estou dizendo ao destino
dos indivíduos, mas ao destino de nações inteiras, do que aos
seus entretenimentos mais simples: porque, seguros de sua
autoridade, em que o desejo de perseverança está satisfeito,
raramente pensam em seus deveres, que são efeitos de uma
determinação externa.
Tenho o cuidado de não pretender dar, por semelhantes
razões, vantagem à preguiça acima das outras afecções
necessárias da humanidade, nem mesmo justificá-la no tocante
às contradições de conduta em que ela lança a maioria dos
homens, sobretudo no que diz respeito a questões que exigiria
raciocínio e sofrimento para desenvolver e fazer considerar suas
consequências. Pretendo ainda menos aplaudir a ignorância,
que é seu efeito mais ordinário, visto que é a causa comum
das maiores fraquezas da humanidade, quero dizer, do medo
e da superstição. Mas concluo, sobre este exemplo, que será
sem dúvida tão útil quanto agradável seguir neste tratado as
outras consequências de nossos princípios e examinar com
precisão a mecânica de nossas paixões para poder julgar a
extensão de suas forças, contra as quais nos jactamos tantas
vezes de podermos nos defender com toda liberdade.
1º Digo então, seguindo os princípios acima
demonstrados, que qualquer mente que imagina a destruição
do que ama deve se afligir, como, ao contrário, deve se alegrar
em imaginar sua conservação. A prova desta proposição deve
ser tirada da necessidade do esforço que determina cada ser
senciente a representar para si o que aumenta seu poder, isto
é, o que lhe dá alegria e, consequentemente, o que ama. Tanto
este mesmo poder só pode ser aumentado, de acordo com a
hipótese, pela posição de tal objeto, quanto é destruído por
sua negação.
Mas pela mesma razão, toda mente que imagina
a destruição do que odeia deve alegrar-se, visto que é
necessariamente inclinada a excluir a existência daquilo que
diminui seu poder, e semelhantemente deve afligir-se de sua
211
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
preservação como de sua presença: porque qualquer afecção
que contém a ideia do objeto de seu ódio se oporá ao seu
esforço natural e lhe causará necessariamente um sentimento
de tristeza.
No entanto, é bastante difícil exprimir por nomes e
designações particulares as paixões resultantes desta mecânica,
senão dizendo que ela é o princípio de todo o bem que fazemos
ou que desejamos ao que amamos, e de todo o mal que fazemos
ou desejamos ao que odiamos. Além disso, é necessário
observar a esse respeito que os diferentes temperamentos dos
homens diversificam os efeitos desta mecânica, visto que o
mundo está repleto de pessoas que nem amam nem odeiam,
outras que odeiam e que não amam e, enfim, outras que
amam e dificilmente odeiam. Mas consideramos aqui o estado
comum da natureza, segundo o qual essas duas proposições
não apresentam nenhuma dificuldade.
2º Digo que qualquer mente que imagina o objeto que
ama como sendo tocado por sentimentos de alegria ou tristeza,
será determinada às mesmas paixões, proporcionalmente
à afecção que se supõe no objeto amado e no grau de sua
afinidade própria. Com efeito, as imagens ou ideias das coisas
supõem sua existência em uma modificação particular, que se
relaciona não menos à imagem do que ao seu objeto. Mas a
ideia de alegria é essencialmente o sentimento de uma maior
realidade, como, ao contrário, a de tristeza é o sentimento de
uma menor realidade. Portanto, é certo que a mente não pode
imaginar a tristeza ou a alegria em um objeto que aumenta
realmente seu próprio poder (na suposição de que o ama)
sem ser tocada proporcionalmente pelas mesmas afecções.
O reverso desta proposição não é menos fácil de
demonstrar, nem menos perceptível na experiência. Assim,
dizemos que a mente, que imagina o objeto de seu ódio
tocado de tristeza, deve se alegrar com isso e, ao contrário,
afligir-se por sua alegria proporcionalmente aos sentimentos
que sente e que imagina nele: porque na ordem comum de
nossas ideias, quem diz uma tristeza diz uma afecção negativa
212
Segunda parte
das
paixões
de realidade, e quem diz ódio acompanha necessariamente a
ideia da tristeza da imagem de uma causa externa. Se, então,
aplicamos a tristeza, isto é, uma negação de realidade, ao
objeto que nos aflige, não podemos senão nos alegrar, como, ao
contrário, se aplicarmos a ideia de alegria, que é uma afirmação
de realidade, não podemos senão nos afligir, visto que nossa
própria realidade será proporcionalmente diminuída.
Esta mecânica é simples, mas infelizmente suas
consequências não são vantajosas para a humanidade: pois
além de multiplicar as ocasiões de dor e aflição, muito além das
de alegria, na medida em que nosso coração é mais disposto
a odiar do que a amar, nossa conveniência com os objetos
externos nunca podendo igualar a desconveniência, no próprio
amor ela nos faz encontrar o sentimento de tristeza pelo
interesse do que nós amamos. Ela nos inspira, além disso, a
alegria pelo mal alheio e a aflição por sua felicidade: disposição
infinitamente contrária à generosidade, que é uma das
afecções da mente para a qual mais geralmente damos nossos
aplausos. Enfim, a satisfação que ela obtém com o mal alheio
nunca é isenta de percepções contrárias a ela mesma: o que
necessariamente entrega o coração à incerteza e à impaciência
e, consequentemente, afasta-o da verdadeira alegria.
3º Se a mente imagina algo que produz realmente ou não
os sentimentos de alegria e tristeza que percebe no que ama,
conceberá necessariamente para essa coisa os sentimentos
de amor ou ódio, proporcionais à sua afinidade pelo sujeito
afetado, e à ação que ele atribuirá à coisa imaginada. Esta
proposição é provada pela precedente: porque se é verdade
que somos tocados de alegria ou tristeza por ocasião do que
amamos, não pode ser senão pela imagem de uma coisa
externa, seguindo a definição dessas paixões. Mas, no caso
da tristeza, essa imagem não é a do objeto amado: pois esse
não pode causar tristeza enquanto é amado. Será, então, o da
causa que o modifica, para o qual seremos levados com amor
ou ódio, segundo a imagem da paixão que se acredita causar
ao que amamos.
213
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Mas, pela mesma razão, odiaremos necessariamente
o objeto que imaginamos aumentando a realidade do que
odiamos e, ao contrário, amaremos o que o diminui nas
mesmas proporções de nosso ódio pelo objeto, e dos afetos
que imaginamos lhe serem causados.
Que, se aplicarmos essas duas proposições gerais aos
nossos próprios sentimentos, conheceremos primeiro que
as afecções expressas pelos nomes de favor e indignação são
verdadeiramente fundadas sob esta mecânica. Com efeito, o
favor é apenas uma espécie de alegria, misturada com amor,
aplicada a um objeto que se supõe ter beneficiado o sujeito
que amamos, e a indignação, ao contrário, é um sentimento de
tristeza, misturado com ódio, contra um objeto suposto causa
do mal que acontece ao que amamos. Disso se segue que o favor
pode passar até à amizade e ao sentimento de reconhecimento,
como a indignação pode se tornar cólera e desejo de vingança
na proporção da afecção que nos liga ao objeto ao qual causou
dano ou benefício. Mas se esse mesmo mecanismo se passa
em relação a um objeto odiado, o despeito e o ressentimento
tomam o lugar do favor, e a indignação se transforma em
um sentimento de gratidão que se teria vergonha de admitir
por reconhecimento, o qual, todavia, não deixa de vincular a
sociedade daqueles que são contentes em prejudicar.
4º A mente humana necessariamente se esforça para
afirmar e imaginar em um objeto que ama o que acredita ser
próprio a dar-lhe a sensação de bem-estar ou alegria, como,
ao contrário, a mesma determinação deve levá-la a negar de
um objeto que ama tudo o que imagina que possa ser uma
causa de tristeza ou um sentimento de mal-estar.
Esta proposição, estritamente falando, não é senão
uma extensão da primeira definição de amor e ódio, segundo
a qual vimos que a mente não pode deixar de se comprazer
com o que aumenta seu próprio poder, e de se afligir do que
o diminui. Propriedade que não pode pertencer à natureza da
mente sem se tornar necessária à respeito dos objetos externos
aos quais ela se liga ou dos quais se afasta. Ou seja, ela ama ou
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Segunda parte
das
paixões
odeia como consequência de sua percepção: porque seguindo
sua verdadeira e real constituição, amar ou odiar os objetos
nada mais é do que amar a si mesmo e seu bem-estar.
Mas esta proposição tem sua recíproca, assim como
todas as precedentes, que (seja dito de passagem) me
persuade e pode até, ao meu ver, fazer uma prova admissível
para todos, que a moral considerada nas afecções naturais do
indivíduo humano deve ser tratada matematicamente, e que
ela é suscetível de demonstrações tão regulares quanto aquelas
que podem ser empregadas para determinar as proporções de
grandezas, números, sons e de qualquer assunto mecânico.
Ora, esta recíproca consiste em que, por uma razão igual à
precedente, a mente deve necessariamente se esforçar para
afirmar do que odeia o que imagina poder lhe causar alguma
diminuição da realidade ou de poder, e negar o que lhe julga
ser um motivo real de alegria.
É por isso que, embora essas ideias não sejam arbitrárias,
pois cada uma requer um fundamento efetivo, é tão comum
ver os homens sujeitos a opiniões falsas, seja sobre si mesmos,
ou sobre o que amam, ou do que odeiam, quase nunca
estimando cada um desses objetos pelo seu justo valor, porque
a paixão corrompe a maior parte das ideias que deles podem
tomar. De fato, a mente prevenida de soberba, pensando em
si mesma para além dos termos verdadeiros, atribui a si tudo
o que imagina valer e poder. Contempla suas falsas ideias
como reais, imagina todos os objetos que a adulam como
verdadeiros, e ela mesma os desfruta efetivamente enquanto
não for treinada na consideração de outras ideias que os
excluem, ou de uma força que limite a dela.
Que se esse sentimento se aplicar fora da mente, será
ou excesso de estima pelo que ela ama, ou de desprezo pelo
que odeia: o que faz nascer uma outra espécie de cegueira,
em consequência da qual se põe muito alto ou muito abaixo
a opinião sobre as qualidades ou forças de um amigo ou
inimigo, não podendo a verdade ser produzida pelas ilusões
de um amor-próprio desregrado.
215
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
5º A mente considerando a si mesma e seu próprio poder
deve conceber tanto mais alegria quanto mais os imagina
distintamente. Verdade que é substancialmente relativa à
proposição anterior, pela qual aprendemos que a mente deve
esforçar-se por imaginar de si mesma, e consequentemente do
que ama, tudo o que busca ou supõe o bem-estar: visto que
ela não pode imaginar o contrário sem restringir seu próprio
poder e, consequentemente, sem o afligi-lo.
Mas se quisermos uma prova independente disso,
basta considerar que a mente, não se conhecendo senão pelas
afecções de seu corpo e pelas percepções que delas resultam,
não pode passar para uma realidade maior, isto é, ser tocada
de alegria, senão por sua própria consideração, na medida em
que se reconhece afetada de uma maneira e por objetos que
a satisfazem, de sorte que quanto menos se incomoda nessa
consideração, mais sua satisfação deve ser plena. Por outro
lado, o poder da mente e o esforço que dele resulta não são
diferentes de sua essência, isto é, dela mesma: e a essência de
cada coisa não envolve senão o que ela tem de real, e não o
que não tem. Consequentemente, o esforço da mente não pode
ser dirigido senão para a afirmação de seu poder, ou melhor,
de seu ser e de seu bem-estar, e tanto quanto esta afirmação
lhe parece clara e evidente, tanto e proporcionalmente sua
satisfação deve ser aumentada.
É sob esse princípio que é fundado o amor à
independência, não só como meio mais seguro do que
qualquer outro de nos garantirmos dos eventos que podemos
temer, mas porque a ideia de sujeição e de obediência oprime
a nossa própria ideia, e não deixa senão uma evidência
emprestada, com a qual a mente não pode ficar plenamente
satisfeita. É também por isso que podemos concluir que,
como é impossível na ordem comum da natureza que a mente
possa considerar sua impotência sem se afligir, também é
impossível que a mente possa regozijar-se na humilhação, ou
seja, na ideia clara de sua impotência, ou se quisermos, de
seu nada: visto que qualquer impedimento que se encontre
216
Segunda parte
das
paixões
na formação de uma ideia plena de si mesma e de seu poder,
torna-se necessariamente uma causa de tristeza. Pode bem
acontecer que uma mente forte, ocupada com ideias e objetos
singulares, como os que a religião apresenta, regozije-se
com uma humilhação que afligiria uma outra; mas não o é
senão porque ela se compensa alhures, essa aflição ou tristeza
mecânica servindo, por outro lado, para multiplicar a ideia de
seu mérito diante de Deus, isto é, aquela do poder, do qual ela
é então mais vivamente lisonjeada.
Ora, a alegria que o homem tira de sua própria
consideração deve necessariamente aumentar na proporção
dos sufrágios que recebe de fora, isto é, dos testemunhos da
satisfação que inspira nos outros, à qual ele relaciona à sua
própria ideia, e isso é o que torna o comércio de elogios tão
usado entre nós, cada um se apressando em dar sua parte
para obter a sua. Disso vem também o contentamento e a
satisfação interiores, que sentimos por ocasião de uma boa
ação, quando podemos nos considerar como o autor e o
princípio dela, sentimento que, não obstante, aumenta na
proporção dos aplausos que recebe, e que muitas vezes chega
ao ponto de torná-los desejáveis.
Mas, por razão contrária, a culpa necessariamente
aflige a mente na mesma proporção, pois junta à nossa
própria ideia a da indignação, desprezo ou tristeza que
inspiramos nos outros. E é isso o que entendemos pelos
termos vergonha, arrependimento, remorso, humilhação,
que designam diferentes paixões, mas todas baseadas no
princípio da tristeza, concebidas por ocasião de uma falta
da qual não se pode desculpar, ou então por ocasião de um
constrangimento que traz à tona nossa inexperiência. Assim,
não perguntemos mais por que o homem gosta tanto de
promover a si mesmo, ou suas próprias ações, ou por que
os outros se cansam tão rapidamente de histórias ordinárias
para esse fim, os elogios próprios sendo uma espécie de
negação à respeito dos ouvintes de tudo isso que atribui a si
mesmo.
217
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
6º Se a mente humana se apega a algum objeto
semelhante a si mesma, ou que ela apenas imagina capaz de
sensação, não pode deixar de desejar o recíproco de sua parte,
e de se esforçar por obtê-lo. De sorte que ela será sensível à
alegria de adquiri-lo e possuí-lo; e que se algum outro objeto
fizer parte dessa reciprocidade que ela exige para si mesma,
ela será tocada de tristeza, às vezes a ponto de tomar uma
aversão ao objeto amado, mas sempre a ponto de odiar, e
muitas vezes com fúria, o objeto que acusará de sequestro
de um bem sobre o qual seus desejos e suas ânsias a fizeram
tomar uma espécie de direito.
Para julgar a necessidade desse mecanismo, basta
lembrarmos que foi demonstrado que a mente procura
necessariamente ocupar-se com o que ama e tocá-lo de uma
alegria que seja acompanhada de sua ideia, ou seja, fazer-se
amar. Princípio que desenvolve todas as outras consequências
do amor, mas que, aplicado à última proposição, faz-lhe a
demonstração completa, pois quanto mais essa alegria e essa
ideia forem sensíveis ao objeto amado, tanto mais o serão
para nós mesmos. Donde se segue que o enfraquecimento, a
partilha ou a destruição dessa ideia causarão uma tristeza real
que não pode ser sem ódio contra os objetos que a produzem,
e sem ciúme contra aquele que se apodera do objeto que fazia
a satisfação. Há, porém, essa diferença em relação ao ódio
que pode ser concebido nesta ocasião contra o objeto amado
que, como não é odiado senão por acidente, e como esse tipo
de ódio é contrabalançado por um amor essencial, não resulta
senão uma dolorosa incerteza, que mantém a sensação em tal
equilíbrio que pode facilmente ser convertida em verdadeiro
ódio, ou em amor mais ardente do que antes.
7º Qualquer homem que se considere amado ou odiado
livremente, e sem ter dado uma ocasião positiva, ama ou
odeia mais na proporção em que as ideias dessa liberdade
ou gratuidade são mais evidentes. E aqui está a prova. Quem
diz ser livre concebe sua liberdade e sua indeterminação
por elas mesmas. Se, então, esse ser nos causa ao mesmo
218
Segunda parte
das
paixões
tempo uma alegria ou tristeza reais, nós o imaginamos só e,
portanto, seremos mais tocados por sua ocasião do que se,
o considerando como determinado, fôssemos obrigados a
lhe acrescentar outra imagem. Razão que nos faz conhecer
por que os homens, que são reciprocamente persuadidos de
sua liberdade, amam-se ou se odeiam mais do que qualquer
outros objetos.
É também a causa evidente da cólera e da vingança,
que são os movimentos pelos quais a mente se inclina a odiar
quem a odeia ou quem a prejudica, e a retribuir o mal que
ela considera lhe ter recebido, ou então a lhe fazer aquilo
que ela apreende. E é o ponto pelo qual esta afecção tende
à crueldade que, além disso, é considerada fazer o mal sem
pretexto ou objeto. Assim, vemos que o ódio é aumentado
pelo ódio. Mas a mesma razão também mostra que pode ser
vencido pelo amor, pois ninguém pode atentar que é amado
sem conceber um sentimento de alegria capaz de aniquilar a
tristeza que causa o ódio.
Isso é também por consequência do mesmo princípio
que a ingratidão nos aflige, os benefícios mais desinteressados
estando sempre fundados sobre o desejo de se fazer amar. Fim
ao qual somos privados pela ignorância.
Mas é necessário observar sobre a mudança do amor
para o ódio ou do ódio para o amor que, depois de feita a
mudança, o sentimento que dela resultará deve extrair grande
parte de sua força da paixão precedente: porque aquele
que começa odiar o que amou perde muito mais realidade
do que quem nunca amou, seja do lado da própria alegria,
seja do que deu ao objeto, seja do lado do esforço que fez
para se fazer amar reciprocamente. Circunstâncias que são
todas necessárias na suposição do amor e que, cessando tudo
com ele, multiplicam por consequência a tristeza e o ódio
proporcionalmente. É o mesmo com a mudança do ódio em
amor: pois à nova alegria do amor e suas consequências, juntase a de se libertar da tristeza real que causou o ódio, alegria
essa que não pode ser determinada senão proporcionalmente
219
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
aos sentimentos contrários que se tinha antes. Não se segue,
todavia, que seja possível, como consequência desta verdade,
que alguém possa se propor o ódio como meio de amar mais
fortemente em seguida. Pois é contrário à natureza engajar-se
em um certo mal com a esperança de uma vantagem duvidosa
e, além disso, quem odiasse por esse princípio certamente
odiaria sempre.
Todavia, no uso comum, percebe-se que é muito mais
ordinário ver as paixões violentas se amenizarem e extinguirem
do que vê-las passar ou mudar de uma para outra. Para o que
há diferentes causas: pois além da mudança de organização,
que acontece a cada indivíduo no curso dos anos, a qual faz
com que se torne insensível a prazeres ou dores que outrora
tocavam profundamente, é certo que a grande distração da
maioria dos homens e a facilidade com que se prestam a todas
as novas percepções lhes faz perder muito prontamente a
memória das primeiras.
8º As paixões que têm seu princípio imediato nas afecções
primeiras, a saber, a alegria e a tristeza, têm necessariamente
um efeito proporcional a essas mesmas afecções, e assim,
segundo essa medida, o desejo de gozar o que se ama, ou
de afastar o que se odeia, não pode ser moderado senão por
outros desejos de mesma força, ou de tipo oposto, como o
medo de um mal maior ou a esperança de um bem maior.
Chamo aqui bem qualquer espécie de satisfação e os
meios que a ela conduzem, assim como, ao contrário, nomeio
mal toda espécie de tristeza, e particularmente aquela que
surge de um desejo frustrado, isto é, tornado inútil. De fato,
vimos acima que o bem e o mal não se distinguem por sua
natureza, e que não o são em relação a nós senão pelas
afecções de fuga ou busca, inseparáveis da percepção dos
objetos, o que faz com que cada coisa seja estimada boa ou
má segundo as ideias particulares.
Ora, a determinação pela qual a mente não consente
em seguir a impressão que recebe de um objeto, ou pela qual
se submete a uma outra menos sensível de certa maneira,
220
Segunda parte
das
paixões
porque ela apraz menos, mas mais eficaz para fazê-la agir,
chama-se precaução, e consiste apenas na esperança de obter
um bem maior previsto e desejado, ou de evitar um mal
apreendido; como, por outro lado, a sagacidade, que permite
prever os acontecimentos de longe, e que dá à sua imagem o
peso necessário para prevalecer sobre as sensações presentes,
chama-se prudência.
Segue-se, então, que toda paixão contém e pressupõe
um esforço da mente proporcional à sensação que a causa, isto
é, à percepção do objeto, mas que a determinação efetiva, ou
seja, aquela que produz uma ação, não é sempre consequente
da atração, ou do esforço da própria paixão, porque temos
dois outros motivos quase inseparáveis da alma, a saber, a
esperança e o medo, os quais, embora mais obtusos do lado da
sensação, não são menos poderosos, porque sendo auxiliados
pelos preconceitos do hábito e da educação, são capazes de
superar os sentimentos mais vivos.
De sorte que, na estima comum, os homens que
obedecem sem restrições às suas paixões, que não consideram
nem as consequências remotas nem os efeitos imediatos a não
ser em sua satisfação presente, esses, digo, são considerados
imprudentes, ou como loucos, igualmente incapazes de
sentimentos de glória e de vergonha.
9º Se uma mente foi tocada de alegria ou tristeza por
algum objeto, no primeiro caso ela fará necessariamente
esforço para representá-lo para si mesma nas mesmas
circunstâncias em que lhe recebeu a percepção, se não for
ainda tocada do desejo de tornar sua posse mais perfeita.
Mas, pelo contrário, se foi acometida de tristeza ou ódio, fará
outro esforço para diminuir, ou remover, a ideia da coisa das
circunstâncias de sua percepção, se não for o caso que sua
paixão a leve à vingança.
A causa desses sentimentos é inteiramente evidente em
qualquer espécie que se queira considerá-la: pois se falta algo
na ideia de um objeto, falta também à sua realidade imaginada,
e é uma privação à qual a mente se esforçará em suprir pelos
221
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
seus desejos se se trata do sentimento de amor, ou de que não
pode deixar de se regozijar se se trata do sentimento do ódio.
Mas como por esta última espécie de satisfação ela não pode
confiar absolutamente na ação de outrem, e como consequência
de sua constituição ela precisa agir ela mesma para se livrar
de sua dor presente, ela se vê na necessidade de diminuir em
sua imaginação as circunstâncias do que a aflige, para afastar
ao menos o que puder da realidade de sua tristeza. Todavia, a
respeito do ódio absoluto, há a distinção de que este aumenta,
como vimos, na proporção de que ele é sensível, sobretudo
quando a mente se jacta da esperança da vingança: pois então
ela busca razões para odiar mais e não teme aumentar em sua
imaginação as circunstâncias que aumentam sua cólera. Mas
se examinarmos bem esse sentimento, reconheceremos que
ele não é produzido senão pelo odioso prazer que encontra
em prejudicar e vingar-se. Com efeito, se mudarmos a espécie
de ódio, supondo-o direcionado a um objeto poderoso, contra
o qual nossa vingança não possa ter força, ou do qual nós
mesmos temos motivos para temer a ira, a mente se esforçará
então, de acordo com a mecânica natural, para diminuir tanto
quanto está em si a realidade de sua tristeza, negando ou
ocultando de si mesma algumas das circunstâncias da ação
ou do objeto que causa seu desprazer.
10º Se a mente, supostamente em um estado de perfeita
indiferença por um objeto que considera, não obstante, o
imagina tocado de amor ou ódio, ou simplesmente de dor ou
prazer, tomará a ideia da mesma afecção e será igualmente
afetada. Aqui está a prova desta proposição:
As imagens são afecções de algum órgão do indivíduo
humano, que envolvem, conjuntamente com a representação
de um objeto externo, a ideia da percepção ou modificação
que recebe de sua parte. Se então este objeto é semelhante
ao que ela imagina, mesmo que fosse apenas por uma
igualdade de sensação, a imagem desse objeto envolverá a
ideia dessa paridade ou semelhança e, consequentemente,
se o imaginarmos tocado por uma afecção que nos seja
222
Segunda parte
das
paixões
conhecida, a ideia dessa afecção será pintada na mesma
imagem e a mente, da qual essa ideia se torna a forma, será
necessariamente tocada por ela. Ora, segue disso:
1º Que facilmente concebemos o amor ou o ódio pelos
objetos, aos quais imaginamos causar prazer ou dor àqueles
que consideramos nossos semelhantes, mesmo que apenas
por uma suposição de paridade de sensação.
2º Que não é da natureza odiar os objetos que nos
causam piedade, porque de outra maneira não teríamos
piedade, visto que nos regozijaríamos com seu desprazer.
3º Que somos naturalmente inclinados a consolar
aqueles por quem temos compaixão, porque sua tristeza se
torna nossa, vemo-nos obrigados a buscar meios e ideias que
possam excluí-la.
Este último sentimento que, entre todos os nossos
afetos, distingue-se pelos honoráveis nomes de bondade e
de humanidade, muito diferentes, consequentemente, do
que nomeamos inclinação, consiste no desejo de consolar
aquele que estimamos digno de uma fortuna melhor, e pode
ser considerada como uma das disposições mais louváveis
da natureza, porque parece descobrir no coração humano
um fundo de generosidade muito mais extenso do que seria
julgado pela experiência. Mas, além disso, é mal compensado
por outras afecções, resultantes do mesmo princípio, as quais
sempre, na estima dos sábios, pouco honrarão a humanidade.
Com efeito, segue-se igualmente que, se imaginarmos
alguém em condições de possuir sozinho um objeto que possa
enchê-lo de alegria, o esforço natural nos levará a lhe fazer
obstáculo, porque pelo único princípio de que o espírito se
engaja por imitação a amar o que julga ser amado por outro,
segue-se que uma posse exclusiva não pode deixar de afligir
aquele que a considera em outro, e a mente não pode sentir
tristeza sem lhe fazer esforço contrário, como foi demonstrado.
Eis, pois, o segundo mecanismo que duplica, por assim
dizer, a desvantagem da natureza humana: visto que não só
nos torna sensíveis às dores de todos os infelizes, mas também
223
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
nos aflige pela alegria dos que são felizes; a mesma causa
que nos torna piedosos também muito ordinariamente nos
torna ciumentos ou invejosos. Digo ordinariamente porque,
como a organização, que é o instrumento das percepções,
varia na maioria dos homens, pode-se encontrar algum
temperamento menos sujeito à inveja do que à piedade, e
vice-versa. No entanto, ao considerar essa mecânica na ideia
geral da constituição dos homens, é preciso reconhecer que
a demonstração do princípio e de suas consequências não
apresenta nenhuma dificuldade. Não falo aqui de uma espécie
de inveja que possa ser chamada de maligna, em relação à
causa que a determina, que descobrirei mais adiante, e
considero apenas aquela que decorre da disposição comum
das mentes de tomar as afecções de seus semelhantes.
Podemos ter várias experiências cotidianas da grande
facilidade com que nos deixamos levar à imitação dos
sentimentos de outrem, e particularmente em relação a
jovens ou crianças, cujos órgãos ainda estão em uma espécie
de equilíbrio: pois os vimos ordinariamente rirem e chorarem
apenas por imitação, conforme encontram pessoas que riem
ou que choram. Eles também desejam, e muitas vezes com
a maior violência, o que parece agradar seus semelhantes,
porque são incapazes de moderar por outros sentimentos
esse ciúme natural, que resulta da inclinação a imitar ou a
se revestir das afecções de outrem: em uma palavra, porque
as ideias que os ocupam não são ainda senão as primeiras
percepções de suas mentes, que os determinam a querer e a
agir, sem mistura de antigas sensações que poderiam modificar
essa determinação. Pois é o que acontece com as pessoas de
idade e mente mais maduras, a quem o grande número de
percepções passadas dá lugar a sabedoria e a moderação,
porque lhes é difícil receber novas delas, que não remetam
a ideia de alguma outra mais antiga, cujo efeito certo será
suspender ou modificar de qualquer maneira que seja essa
nova percepção, pela qual (se as circunstâncias forem as
mesmas) se deixariam levar tão bem quanto as crianças.
224
Segunda parte
das
paixões
11º A mente que considera um objeto não se pode
deter satisfatoriamente senão em dois casos particulares,
se atribui sua alegria a ele ou se descobre nele qualidades
singulares, cujas imagens necessariamente a ocuparão com a
mesma determinação que lhe fará negligenciar esse mesmo
objeto, se nele não encontrar senão qualidades comuns ou já
conhecidas.
A verdade da mecânica, expressa por esta proposição,
é fundada em dois princípios, que foram demonstrados de
forma invencível: o primeiro é o vínculo necessário da mente
ao que lhe apraz, isto é, ao que estabelece seu bem-estar; o
segundo é a relação que nossas ideias mantêm entre si e a
dependência em que elas estão umas em relação às outras. A
nada remeterei aqui do que concerne aos efeitos da alegria e
do amor em relação à maneira como essas afecções nos fazem
considerar os objetos, especialmente porque basta saber que
na ordem comum a imaginação não pode representar nada
cuja ideia não dê instantaneamente origem a uma outra,
particularmente quando as qualidades que se tornam seu objeto
são comuns a vários indivíduos. Mas, por essa mesma razão,
é evidente que apenas ideias e percepções singulares podem
verdadeiramente vincular a mente: porque sendo inusitadas,
não podem ainda ser unidas a outras, das quais as imagens
poderiam tomar seu lugar e, consequentemente, aniquilá-las.
Assim, essas ideias são necessariamente as mais duradouras,
porque a mente não se distrai delas, como não poderia deixar
de ser quando as ideias se sucedem prontamente uma após a
outra.
Mas, por outro lado, é necessário que a mente encontre
sua satisfação ao considerar essas ideias singulares, porque
se elas produzissem qualquer outro efeito e lhe causassem
uma sensação triste ou dolorosa, ela seria necessariamente
engajada em rejeitá-las e imaginar sua destruição: o que
contraria a suposição de que essas ideias não lembram outras
que possam aniquilá-las. Acrescentemos a isso essa forte
impressão que nos leva ao repouso, quando não somos levados
225
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
por uma determinação contrária, e estaremos em condições
de julgar a satisfação que acompanha as ideias singulares.
Excetuo, aliás, os casos graves, mais capazes de surpreender
a imaginação do que de satisfazê-la. Mas de resto, como este
mecanismo se junta necessariamente a vários outros na nossa
constituição, daí resulta uma infinidade de efeitos diferentes,
embora sempre proporcionais às suas causas.
Tal é aquele que é produzido pela união de nosso vínculo
às ideias singulares com o princípio que nos faz desejar ter uma
ideia clara e distinta de nós mesmos e de nosso próprio poder: pois
se segue que não podemos ver senão penosamente nos outros
uma realidade que se é obrigado a negar de si mesmo; como, ao
contrário, o que se considera com alegria em si, o que se estima
tão singular que se acredita podê-lo negar de todos os outros. É
por isso que, se não se percebe em si mesmo senão qualidades
necessárias ao ser e à natureza e, consequentemente comuns a
todos os indivíduos de mesma espécie, por mais louváveis que
sejam essas qualidades, seremos pouco sensíveis à sua posse.
Mas se por infelicidade alguém for obrigado a reconhecer a
inferioridade de suas próprias qualidades, será afligido por
isso, tentará remover a ideia da comparação enfraquecendo a
ideia dessas qualidades externas para engrandecer as próprias
e formar delas uma imagem que excita a complacência, e é
assim que se engendra a inveja, que podemos distinguir pela
alcunha de maligna, cujo efeito ordinário é aniquilar o mérito
verdadeiro, ou o mérito externo, para elevar o pessoal.
Isto, não obstante, recebe uma exceção, na medida em
que a inveja só pode ocorrer entre semelhantes. Ninguém
ainda pensou em ter inveja da altura das árvores ou da força
dos elefantes, e aqui está a razão: é que, pela definição da
inveja, ela deve ser como um ódio formado contra um objeto
por ocasião de um sentimento de tristeza, da qual ele é causa,
porque sua ideia aniquila ou diminui a do próprio poder; mas
o poder do homem é consequência de sua natureza e não de
outra: é por isso que ele nunca pode desejar o que constitui a
propriedade de uma outra espécie de ser que não a dele, tal
226
Segunda parte
das
paixões
como o voo dos pássaros, a não ser por uma ficção, pela qual
nunca é realmente tocado.
Assim, quando vemos em outros homens qualidades de
valor, justiça, magnanimidade ou qualquer outra espécie de
perfeição, que excitam mais a veneração do que o ciúme, é
porque não as concebemos como propriedades da natureza
das quais se esteja tão despojado que falte a esse respeito
algo na própria realidade; mas nós as imaginamos como
singularidades superabundantes no indivíduo que as possui,
que, negadas de si mesmo, ainda deixam ao ser particular tudo
o que é necessário para exercer e sentir seu próprio poder.
Mas esse grande princípio das qualidades singulares,
comparável em sua fecundidade às afecções de fuga e busca,
não se limita a produzir apenas o ciúme maligno. A admiração
é um efeito ainda mais simples, visto que é preciso defini-la
como a consideração de uma qualidade especial desconhecida
e inesperada no objeto de nossa percepção, da qual a mente
não se distrai por nenhuma ideia diferente, nascida da
mesma consideração. Na verdade, ela não pode ser colocada
diretamente entre as paixões: visto que ela não é, considerando
tudo, senão uma maneira particular de imaginar. Mas o detalhe
seguinte nos fará conhecer que ela produz uma quantidade
quase igual à dos objetos que podem causá-la, e que elas são tão
diferentes umas das outras quanto o são esses mesmos objetos.
Com efeito, se a admiração parte de um objeto que nos
inspira medo, ela se tornará consternação, isto é, formará uma
imagem de perigo tão nova e, consequentemente, tão viva e
tão poderosa, que excluirá todas as ideias habituais de glória,
honra, virtude e bom senso, mesmo as dos meios que se poderia
empregar para se livrar dela se estivesse de sangue frio.
Que se esta admiração parte de um objeto simplesmente
odioso, como de uma má ação, a cólera, a vingança, a crueldade
de um outro homem, ela se torna horror: isto é, uma aversão
que revolta todas as sensações daquele que é tomado por ela.
Mas se, ao contrário, essa admiração tem a virtude
por objeto, ela se tornará veneração, respeito, e se o amor
227
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
ali se juntar, ela produzirá a devoção: termo que explico pelo
de consagração de si mesmo ao objeto admirado. E a partir
disso é fácil compreender como a mistura da admiração com
as outras afecções é capaz de excitar paixões de tantos tipos
diferentes que nem sequer há termos usuais para expressá-las.
De resto, a admiração é uma afecção tão mecânica
que seu inverso se descobre à mente menos diligente, que
reconhece sem dificuldade que ela deve consistir em uma tal
disposição do objeto ou da mente que o considera, que esta
está mais inclinada a julgar o que lhe falta do que a refletir
sobre o que ali se encontra realmente. Não pretendo excluir
por esta definição a espécie de desprezo de que já falei por
ocasião da soberba, nem aquele que resulta da indignação e do
ódio. Mas parece que, no sentido mais próprio, para tornar o
desprezo completo, é necessário que a mente não seja tocada
por nenhuma outra afecção, visto que se a imaginação ali juntar
outras ideias, nascerão tantas paixões diferentes, proporcionais
aos seus princípios, as quais todavia será difícil exprimir para
além do que nomeamos de troça, zombaria, insulto.
Por outro lado, estando a mente disposta de maneira
que se vincula e se deleita na consideração de qualidades
singulares, deve necessariamente se esforçar para formar
imagens em cuja novidade e singularidade ela possa encontrar
sua satisfação. E é por isso que todos os homens desejam tão
geralmente ampliar seus conhecimentos, alguns pelo estudo
e pela leitura, outros pela visão de objetos novos, outros
pela conversação e pela sociedade de seus semelhantes. De
sorte que podemos dizer que há uma infinidade de espécies
de curiosidade, sem aí compreender o que podemos chamar
maligno, que é um efeito do ciúme, unido à propensão que
temos para buscar novas ideias.
A mecânica que produz o tédio é uma consequência
da precedente, e não parecerá menos evidente: pois se se
considera que a mente não tem ideias e, consequentemente,
nenhuma ocupação, nem mesmo da própria existência que,
na medida em que tem percepções, as quais lhe são fornecidas
228
Segunda parte
das
paixões
por apenas duas vias, as sensações presentes e as imagens
gravadas na memória, julgaremos facilmente que, se o
indivíduo se encontra num estado em que não pode receber
novas percepções, é preciso que a mente recorra às imagens
da memória, que já são conhecidas e, consequentemente,
incapazes de deter a mente por sua novidade ou singularidade.
Além disso, as imagens da memória não se apresentam à
mente dependendo umas das outras, e de acordo com sua
conexão, de sorte que se a determinação, de qualquer lado
que for tomada, leva a considerar uma, esta lembrará apenas
um certo número de outras e deixará desvanecer a imaginação
quando este número se esgotar. Será preciso, então, uma nova
determinação para suscitar uma segunda, e assim por diante.
Mas supõe-se que a mente carece de determinação, porque o
indivíduo carece de percepções. Portanto, há ao mesmo tempo
uma falta de ação e, consequentemente, de realidade, o que
não pode acontecer sem dar lugar a um tipo de tristeza, que
nomeamos de tédio, a qual, sem ser dolorosa nela mesma,
é, no entanto, insuportável, na medida em que não excita
nenhuma outra sensação além da inquietude pela busca de
uma determinação que lhe falta.
Esse mesmo princípio desenvolve ainda de qual maneira
ocorre que às vezes não se pense em nada, ou pelo menos não
que se possa explicar, nem prestar conta de sua última ideia;
o que supõe que a última determinação chega ao fim, e que
não tem mais força para excitar novas imagens; disposição
muito próxima de cair no sentimento de tédio: visto que para
produzi-la basta perceber que faltam novas percepções.
Mas o grande e importante efeito do princípio
estabelecido por esta proposição, de que a mente se apraz e
vincula a necessidade de considerar as qualidades singulares
dos objetos, consiste na disposição na qual lhe põe a acreditar
sem nenhum esforço nas coisas menos críveis. Da qual a causa
deve ser tomada na natureza da imaginação, que se apraz com
a surpresa, e não é capaz aprofundar para além da percepção,
de sorte que lhe basta que seja movida e vinculada à uma
229
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
consideração para então dar seu consentimento sob a mais
leviana probabilidade.
A surpresa de uma percepção maravilhosa, então,
envolve quase sempre a opinião e até a fé, o que não é
afastado na maneira comum de pensar. E daí vêm todos os
preconceitos e contos populares em que cada um toma sua
parte sem exame, seguindo o caminho traçado pelo maior
número, e mesmo apesar do exame que às vezes se pode fazer,
porque a imaginação uma vez conquistada e treinada segundo
à sua disposição natural, justifica a sua própria leviandade
valendo-se de todas as circunstâncias que possam servir para
a defender.
É verdade que seguidamente encontramos homens
mais firmes, cujo julgamento é mais difícil de enganar.
Todavia, pode-se assegurar de que, se fosse possível
examinar rigorosamente suas opiniões, encontrar-se-ia a
maior parte delas de origem na surpresa causada por um
objeto inusitado, ou em uma narrativa maravilhosa, mais
do que na verdade bem discutida. Isso é tão verdadeiro,
e tão conhecido de todos os homens, que se formou entre
eles na mais profunda antiguidade uma arte cujo único
objetivo é surpreender a credulidade comum. E nesta visão,
após longas observações, regras foram estabelecidas para
excitar os diversos movimentos do coração de acordo com
a intenção do orador, e para submeter o julgamento dos
ouvintes pelo sublime, o maravilhoso ou o patético de um
discurso estudado. É uma prática de mais de vinte séculos,
contra a qual reivindicamos mil e mil vezes, sem sucesso, a
evidência da verdade.
Isto ainda não é tudo: pois é preciso tomar no mesmo
princípio o motivo desta antiga definição que nos ensina que
o homem é essencialmente um animal religioso, isto é, que é
formado de uma disposição que não pode recusar seu culto a
certos objetos que ele não conhece, mas que sua imaginação
lhe representa a critério de sua própria credulidade, misturada
com todas as paixões às quais ela se junta na ordem comum.
230
Segunda parte
das
paixões
É verdade, não obstante, que a profissão de uma religião não
está totalmente à escolha dos indivíduos: visto que se apegam
ordinariamente àquilo do qual se recebe as primeiras noções
e que, consequentemente, encontra tudo estabelecido, com
uma base doutrinal à qual entrega sua crença, seguidamente
a ponto de pensar que seria um crime colocá-la em dúvida. No
entanto, se ousássemos remontar à origem, seria fácil ver que
não há religião que não tenha um começo conhecido, e um
legislador a cujas ideias devemos remeter a regra da moral e
a doutrina especulativa que cada uma propõe diferentemente.
Consequentemente, é impossível supor que todas elas tenham
a mesma verdade por objeto e a mesma autoridade divina por
seu fundamento.
É preciso, então, concluir necessariamente que esses
legisladores empregaram as disposições comuns muito mais
do que as criaram, por mais tocantes que sejam os objetos
que representaram diferentemente. Cada um deles se serviu
da base de credulidade comum a todos os povos, como um
terreno fértil onde se fez germinar os dogmas convenientes aos
seus desígnios e ao seu caráter próprio, por meio das paixões
que souberam excitar de acordo com a disposição particular
dos mesmos povos. E para dar um exemplo incontestável, tal
foi Maomé, que, encontrando seus compatriotas predispostos
à paixão pela eloquência e capazes de se entregar sem
cerimônia às ideias sublimes e maravilhosas se lhes fossem
apresentadas sob essa isca, sabia não apenas tirar desta base
uma submissão cega à sua doutrina, mas também recursos
para persuadir ou subjugar metade do nosso continente em
menos de cinquenta anos.
Basta, de fato, à nossa constituição natural e à conexão
que nossas diferentes paixões têm com a base da admiração
que se encontra em nós mecanicamente, para obter para as
religiões em geral a autoridade que elas assumem sobre as
consciências; mas o que será se lhe acrescentarmos ainda
os preconceitos da educação e do hábito contra os quais a
própria evidência não pode fazer quase nada?
231
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
O que digo, com efeito, visto que a evidência é tão pouco
requisitada em matéria de religião, que o mistério e a ignorância
entram essencialmente na constituição de todas aquelas que o
mundo tem seguido até o presente. É mesmo no mistério de
uma doutrina obscura e inexplicável que a imaginação encontra
um recurso seguro e sempre novo para manter sua credulidade,
seja pelas descobertas que ela se apressa a fazer ali, como
em uma terra desconhecida, seja pela atração e gosto que ela
encontra para formar, no vazio que ele lhe apresenta, fantasmas
proporcionais aos seus desejos. Na conta dos quais não devemos
excluir nem mesmo aqueles que prejudicam o próprio sujeito
religioso, como as terríveis mortificações que os índios idólatras
ou os santos da Turquia praticam com um zelo que horroriza
a razão. E isso mostra que o único ponto essencialmente difícil
para a mente humana, arrastada por tantas percepções, ideias
e determinações diversas, é fixar seu juízo na verdade, e sua
prática moral ou sua conduta no que há de razoável, de natural
e consequente no que ela sabe ser verdadeiro.
O grande poder das religiões consiste, então, na atração
que a imaginação encontra nelas para se satisfazer, seja nas
paixões de esperança ou de medo, que nos agitam quase
continuamente, seja do lado da ficção de certos sentimentos
proporcionais aos quais ela alcança por fortes meditações, as
quais excitam as paixões que lhe são mais úteis. Ora, não há
quem não esteja em condições de julgar quão pouca evidência
é necessária para tais fins, para não dizer que ela lhes seria
inteiramente contrária.
Todavia, não seria suficiente se a razão e a verdade
não dessem alguma cor às diferentes religiões: pois não há
nenhuma que seja absolutamente desprovida de razão e de
especiosa aparência, caso contrário ninguém lhe poderia
aquiescer. A armadilha que elas armam para as mentes mais
firmes, depois de tê-las submetido como as outras, ou pelas
maravilhas de sua hipótese, ou pela diretiva do nascimento e
da educação, consiste, então, nas consequências exatamente
ligadas e deduzidas de seus princípios, que nunca são
232
Segunda parte
das
paixões
examinados, ou na regra dos costumes, a qual nenhuma religião
deixou de prover, desculpando-se facilmente pelas desordens
particulares de tudo o que se pratica contrariamente. Assim,
os homens sábios e virtuosos sempre têm motivos suficientes
para suportar até a morte uma parte do jugo da religião em
que nasceram.
Depois disso, é tão pouco necessário quanto seria difícil
explicar quantos tipos de paixões entram em cada sistema de
religião, quão suas misturas têm efeitos complicados, quão o
amor-próprio emprega muitos impulsos e destrezas para lhe
sacrificar seu exterior, retendo o direito de fazer sua própria
religião servir aos fins que lhe são verdadeiramente caros.
Tudo isso é puramente mecânico e tão consequente de nossa
constituição que é possível se surpreender que, entre as várias
religiões do mundo, só pudesse ser encontrada uma (Confúcio)
que, sem ajuda da revelação, ao rejeitar igualmente os
maravilhosos sistemas e fantasmas da superstição e do terror,
pretende-se ser de tão grande utilidade para a conduta dos
homens, sem ter sido estabelecida senão sobre o dever natural.
12º Todo homem capaz de ação para fora de si mesmo
sempre tenderá necessariamente a fazer o que pensa que seus
iguais verão com alegria, e não a fazer o que estima que eles
veriam com tristeza, exceto no caso de agir por motivo de
ódio e desejo de vingança, ou se ele se gaba de poder retrair
sua ação.
Essa mecânica não parecerá menos óbvia do que as
precedentes, para quem se lembrar que foi demonstrado
que não somente os outros homens são nossos semelhantes,
e que, consequentemente, sendo sujeitos à imitação de seus
sentimentos, as disposições que eles tomam à nosso respeito
tornam-se nossas, mas que qualquer ação própria, suscetível
a elogio ou censura, isto é, capaz de excitar em outrem
um sentimento de alegria ou tristeza, que se expressa por
aprovação ou condenação, causa realmente na mente uma
afecção tanto mais viva porque não pode ser separada da
ideia própria, seja na espécie do bem, seja na espécie do mal.
233
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
Que se juntarmos a isso a ideia, embora falsa, que os
homens têm de sua própria liberdade, tal que se estimam
causas efetivas e imparciais de tudo o que fazem, podemos
julgar o quanto as paixões que resultam do elogio ou da
censura de suas ações têm força e poder.
A primeira em ordem é a ambição, a qual deve ser
compreendida sob a ideia de um desejo muitas vezes imoderado
de dominar seus pares, seja pela força em caso de contradição,
seja por seus sufrágios voluntários, por merecer realmente ou
fazê-los pensar que se merece deles homenagens, submissão
e elogios.
O contrário da ambição é a pusilanimidade, que é, além
de uma impropriedade para comandar, um medo imoderado
de desagradar e de merecer culpa. Por isso, é apropriado
observar que o que chamamos de elogio ou censura, quando
julgamos as ações de outrem ou as nossas próprias, é em
relação a nós mesmos ou a Deus uma afecção de alegria
fundada no testemunho da consciência, que deve ser nomeada
de complacência e satisfação, ou bem uma afecção de tristeza,
fundado no mesmo testemunho, que levará os nomes de culpa
e arrependimento. Paixões tanto mais vivas, como temos
observado, quanto mais envolvem distintamente a ideia da
própria liberdade.
A glória e a vergonha, que são ainda efeitos do mesmo
princípio, referem-se mais propriamente a uma ação passada,
sobre a qual se espera o sufrágio ou a condenação do público.
Mas quando as paixões se desvinculam da consideração ou
do julgamento de outrem, e se restringem à ideia que cada
um tem de si mesmo, mudam de nome e assumindo os de
arrogância e orgulho na espécie da própria complacência, ou
o de remorso na espécie de arrependimento.
Além disso, pode-se observar sobre essas quatro
diferentes afecções que a primeira, isenta de violência e
injustiça, é reconhecida pelo caráter particular das belas almas,
as quais, no desejo de uma reputação digna delas, ou pela
satisfação que encontram no cumprimento do que julgaram ser
234
Segunda parte
das
paixões
seu dever, na qualidade de homens, cidadãos, pessoas públicas
ou privadas, e geralmente em todos os aspectos, empreendem o
que parece ao vulgo ser mais difícil à natureza, porque não são
tocados pelos mesmos objetos. Assim, não precisamos concluir
sobre essa ideia popular que essas almas generosas se façam
uma perpétua violência para resistir aos sentimentos comuns.
O hábito que elas contraíram de nunca aquiescer senão às
determinações conformes às regras que se propuseram, ou a
feliz constituição de seus órgãos, que não são senão raramente
movidos pelas sensações que fazem agir os outros homens, são
o princípio de sua virtude. Foi assim que a firmeza de Régulo
triunfou sobre a ternura que ele sem dúvida tinha pela família:
porque a determinação que falava nele, pelo interesse da pátria
e pela observação de sua palavra, fazia-se a mais poderosa,
pelo hábito formado contra o preconceito comum.
A vergonha é uma paixão totalmente oposta à glória e
que, consequentemente, indica uma fraqueza real em quem
é tocado por ela, o que fez dizer justamente que ela não é
própria senão às almas que não têm força de serem generosas,
nem toda a coragem de serem más. O caráter particular desse
defeito é de fazer sentir àqueles tocados por ela a necessidade
de ajuda externa. É por isso que a bajulação sempre passou
pelo remédio particular da vergonha, tiranos e príncipes
perversos não consolando-se de sua própria indignidade
senão por meio dela. Além disso, o sentimento da vergonha
ainda tem essa imperfeição que, nunca aplicando-se senão ao
passado, é lhe impossível poder retificar as desordens futuras
daquele a que ela mais toca; nisto diferindo de outras paixões
que podem, em certo sentido, servir à vantagem do indivíduo
ou de toda a sociedade dos homens.
O remorso, que na linguagem das Escrituras é chamado
de verme da consciência, não é propriamente senão uma
vergonha levada ao excesso: uma vez que essas duas afecções
consistem igualmente na tristeza, concebida no objeto de uma
ação, ou qualquer outra falta, a qual se une de tal maneira
a causa com a ideia de si mesmo e de uma liberdade inteira
235
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
que não se pode pensar em uma sem ser instantaneamente
chocado pela outra. E é sobre esse vínculo necessário que é
fundada a sensação importuna e dolorosa que causa o primeiro
suplício dos culpados.
Mas a respeito da arrogância, ela consiste em uma
satisfação consigo mesmo tão forte e tão pouco mesurada
que degenera em desprezo por todos os outros. De sorte
que seu efeito indispensável é produzir o ódio em todos
aqueles a quem ela se revela: porque não é da natureza do
homem poder perdoar o desprezo de si mesmo, que ela supõe
necessariamente. Esta é também a razão pela qual a modéstia
não pode deixar de agradar e de se fazer amar: porque supõe
sentimentos de estima e respeito pelos outros, que são tão
lisonjeiros para aqueles a quem se mostram, quanto o desprezo
e o orgulho são ofensivos.
Pouco seria, todavia, se o homem se contentasse em
se jactar de seus sentimentos; mas por outra consequência
mecânica de sua constituição, ele exige de todos os seus
semelhantes que amem ou odeiem o que ele mesmo ama ou
odeia, e geralmente quer que os outros pensem e sintam as
mesmas afecções que ele. Tudo em consequência do mesmo
princípio que forma a ambição. Quer-se, de fato, que os outros
vivam e ajam em uma ordem conforme as suas próprias
ideias. Exige-se não só a obediência exterior, mas também a
dos afetos: porque tudo isso serve para multiplicar o poder e a
ação daquele que se atribui esta dominação. O mal é que cada
um desejando a mesma coisa para si, é inevitável que resulte
uma divisão perpétua na sociedade e que, consequentemente,
os homens quase sempre vivam inimigos uns dos outros.
13º Deve ser evidente, após as demonstrações
precedentes, que existem tantas espécies de afecções quantas
são as espécies de objetos capazes de causar diferentes
percepções; e reciprocamente que as afecções diferem entre
si, ou em razão dos objetos que as excitam, ou em razão das
disposições do sujeito que as percebe. Assim, esta proposição
tem duas partes, ambas fáceis de demonstrar.
236
Segunda parte
das
paixões
Pois, em primeiro lugar, embora os nomes usuais de
alegria e tristeza, ou de outras paixões que brotam da fonte
comum, não nos apresentem senão ideias unívocas, é verdade
todavia que seu princípio não é outro senão as imagens
resultantes da percepção de certos objetos, e que essas
imagens não podem ser senão desiguais, visto que, como
foi inelutavelmente demonstrado, nossas afecções envolvem
mais a ideia de nossas percepções do que a da natureza dos
objetos. No entanto, como é impossível que uma percepção
não represente o objeto que a dá, visto que se o objeto é
excluído, a percepção é anulada; segue-se necessariamente
que cada paixão é determinada por uma ideia, ou imagem do
objeto, de modo que ela possa ser. E é por isso que o amor ou
o ódio, concebido por um objeto, é sempre diferente de um
outro amor, ou de outro ódio; embora o mesmo indivíduo seja
sujeito de uma mesma paixão em espécie; porque basta que o
objeto ao qual se aplicam as paixões seja mudado, ou se não
for realmente assim, que a imagem que o representa em nossa
ideia seja mudada por alguma ocasião externa ou interna.
E eis aqui o grande princípio, não somente da diferença de
uma paixão para outra, na mesma espécie, mas dos diferentes
acessos de uma mesma paixão.
Em segundo lugar, é indubitável que os modos ou
afecções de um corpo movido por outro não resultam apenas
da natureza daquele que age, mas também da natureza
daquele que sofre a ação. De sorte que, considerando esta
verdade na ordem simples do movimento, podemos dizer
que todo corpo que é movido recebe uma modificação
dependente, tanto da força das causas que o fazem mover,
quanto de sua própria natureza, e que por razão semelhante,
um só corpo, suposto agindo sobre vários outros, move-os
diversamente, segundo o que ele é e segundo o que os outros
são. Isso é tão claro que a proposição pode ser numerada
entre os axiomas mais indubitáveis. Mas visto que a ordem
das ideias é a mesma das afecções dos corpos animados e
sensíveis, tenho azo de concluir que há tanta diferença entre
237
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
as paixões dos indivíduos da mesma espécie, quanto há entre
sua constituição particular, sem falar da presença da outra
diferença que consiste na disparidade das percepções ou na
diversidade das imagens impressas pelos objetos.
Não procuremos, então, outra causa da infinita
variedade que se encontra nas paixões com que os homens
são tocados. Variedade tão fecunda que experimentamos
todos os dias que o que é objeto de ódio ou tristeza para um,
é objeto de alegria e amor para outro; que um teme o que o
outro não teme, e assim por diante. Porque cada um julga
de acordo com sua afecção, ou percepção particular, e não
de acordo com a verdadeira natureza das coisas. Assim, os
nomes de bom e mau, melhor e pior, não exprimem senão
nossos próprios julgamentos relativos às nossas percepções, e
às imagens que delas resultam.
Mas disso se segue ainda que, segundo o uso comum
de nossa vida, que se passa quase inteiramente em comparar
os diferentes objetos, se nos ocorre de nos colocarmos em
paralelo com os outros, ou de compararmos os outros entre
si, sempre os julgamos pela só diferença de nossas afecções.
Assim, dizemos por expressões absolutas que alguns são
corajosos, outros tímidos, e todavia esses termos não significam
outra coisa que uma comparação de nossas próprias afecções
com aquelas que supomos nos outros. Por exemplo, aquele que
despreza um perigo, sobre o qual eu ponderaria, e com mais
forte razão se tivesse o costume de temê-lo, parece intrépido à
minha imaginação. Ao contrário, aquele que teme um perigo
que desprezo, parece-me não ter coragem. Da mesma maneira,
chamo de ousadia ou temeridade o sentimento que, em um
empreendimento, faz alguém superar as considerações que
poderiam impedir-me, e chamo de fraqueza o abandono de um
empreendimento feito em função de um motivo que não teria
poder sobre minha mente. Assim, a variedade de afecções de
todos os homens influencia necessariamente sobre todos os seus
julgamentos. De sorte que, longe de poder confiar em alguma
regra certa a esse respeito, em consequência da qual todos os
238
Segunda parte
das
paixões
homens devem amar ou odiar certos objetos de uma maneira
uniforme, não há indivíduo humano que possa confiar em si
mesmo, pois seus julgamentos são necessariamente relativos
às suas afecções, e estas mudam quase continuamente, é da
ordem natural que às vezes odeie o que amou, ou que ame o que
odiou, que tema o que desprezou ou que despreze o que temeu,
não havendo nada real em suas considerações e julgamentos
senão as imagens de objetos, gravadas por uma percepção que
vemos ser tão sujeita a mudanças quanto a erros.
É isso também que torna o arrependimento tão
frequente entre os outros sentimentos, especialmente porque
o sucesso quase nunca atende às expectativas, e a tristeza
resultante necessariamente altera as disposições dos homens,
eles não podem mais considerar os objetos sob sua primeira
aparência, o que os leva a se acusarem voluntariamente de
erro, seja no empreendimento, seja na escolha dos meios, que
poderiam ter conseguido o seu sucesso, ou na conduta geral,
ou particular, algo que imaginam depender deles.
Segue-se também que as afecções dos animais, que não
podemos mais considerar como destituídos de sentimento,
depois de ter entendido tão claramente o nosso princípio,
são tão diferentes das afecções dos homens quanto sua
conformação é da deles. Assim, embora pareçam ter desejos
como os nossos, não podemos raciocinar completamente
sobre seu objeto. E verdadeiramente reconhecemos nas feras
um desejo de acasalar, o que indica uma propensão à volúpia,
que também se encontra na natureza do homem. Todavia,
há a diferença de que seus desejos não estão relacionados
como os nossos à beleza ou ao agrado, mas que são excitados
por certas disposições da estação, ou do sangue da fêmea,
os quais não agem sobre nós. Razão que os isenta dos vícios
em que a atração da beleza lança a maioria dos homens por
determinações invencíveis. No entanto, devemos concluir
disso que cada indivíduo vive contente em sua natureza e por
sua natureza, tendo as sensações suficientes à sua espécie
para fornecer-lhe as paixões que devem lhe dar o impulso,
239
Ensaio de metafísica nos princípios de Spinoza
Henri de Boulainvilliers
determinando-o ao gênero de ação que lhe é própria, e que
assim as sensações dos animais são somente nisso comparáveis
às nossas: que elas envolvem, com a ideia individual, o desejo
de ser, ou de bem-estar, do qual nenhum indivíduo sensível
pode ser privado segundo as leis da natureza.
14º Há uma série de outras paixões que não explico
em detalhes, porque algumas carecem de nomes distintivos,
como notei acima, ou porque têm nomes impróprios que o
uso lhes atribuiu de uma maneira absoluta: embora no fundo
elas não tirem sua distinção senão dos objetos aos quais se
aplicam. Tais são, por exemplo, a devassidão ou a luxúria, a
avareza, a embriaguez etc., as quais são em si mesmas apenas
espécies de amor, distinguidas apenas pelos objetos a que se
dirigem. E deve-se notar a respeito desses tipos de afecções
que não têm nenhuma imediatamente contrária a elas, como
as verdadeiras paixões, isto é, aquelas que têm seu princípio
na constituição mecânica do indivíduo. De fato, a temperança,
a sobriedade, a castidade, que a elas opomos idealmente, não
são paixões, mas hábitos e, na ideia comum, poderes supostos
na alma por meio dos quais ela se crê restringir e moderar
os apetites corporais. A própria prodigalidade não se opõe
à avareza senão pelo seu efeito dissipador, caso contrário
deveria ser definida como o ódio ao dinheiro, uma paixão que
não é natural e que podemos assegurar que nenhum homem
jamais teve. Mas o pródigo dissipa porque ama outros objetos
mais do que o dinheiro, o qual sacrifica muito facilmente no
desejo apaixonado de obtê-los.
O detalhe dessas paixões superabundantes seria, então,
inútil para o meu propósito, já que me restringi à minha própria
instrução no tocante a origem, extensão e força das paixões
em geral, e tocando as propriedades que lhes são comuns,
para colocar-me em condições de compará-las com os poderes
reais que estão em mim, se houver algum diferente do hábito
e da percepção e, enfim, julgar com alguma solidez o que uns
podem reciprocamente sobre os outros. Assim, embora eu veja
claramente que há uma diferença absoluta entre o amor de
240
Segunda parte
das
paixões
um marido por sua esposa, o de um amante por sua amante, o
de um pai por seus filhos etc., ou entre a alegria de um bêbado
à mesa e a de um filósofo a estudar, vejo ao mesmo tempo que
essas diferenças não dizem respeito aos princípios comuns de
cada uma dessas afecções, e que se referem apenas, como
expliquei, aos objetos que as determinam, o que me persuade
de que o que eu disse até aqui basta para tomar uma noção
certa da mecânica de nossas paixões.
241
Apêndice
nota exPliCativa sobre o Conto
“o jantar do Conde de boulainvilliers”
E
ste opúsculo, Le dîner du comte de Boulainvilliers, foi
publicado por Voltaire em 1767. Trata-se, nas palavras
de Wheeler e Foote, de um “charmoso resumo das opiniões
religiosas de Voltaire, que teve a honra de ser queimado pela
mão do carrasco” (1894, p. 49). É, porém, um texto apócrifo,
que Voltaire atribuiu à “Mr. St. Hiacinte”, e no qual consta
a data de 1728, – uma manobra das tantas adotada pela
literatura clandestina da época. A atribuição a Thémiseul de
Saint-Hyacinthe (1684-1746) dizem ter sido uma espécie
de vingança póstuma, pois os dois sustentaram uma longa
querela (cf. CROCKER, 1964; LANDON, 2020) e Hyacinthe
teria tido algum papel na surra de cacetadas que Voltaire
levou do pessoal do duque de Rohan.
referências
VOLTAIRE. “Le dîner (du comte de Boulainvilliers”. In: Mélanges,
t. 7; Oeuvres de Voltaire, t. 43, (prefácios e notas de Beuchot)
Paris: Léfèvre, 1831. pp. 562-607. (Disponível em https://
play.google.com/store/books/details?id=L8xbyCyGeL4C,
acesso 27/05/22).
CROCKER, L. G. “Saint-Hyacinthe et le nihilisme moral”. Revue
d’Histoire littéraire de la France, 64 ann., nº 3, Jul. - Sep., 1964,
pp. 462-466; CARAYOL, Elisabeth. «SAINT-HYACINTHE», In:
Dictionnaire des journalistes, nº 730, (disponível em: https://
dictionnaire-journalistes.gazettes18e.fr/journaliste/730themiseul-de-saint-hyacinthe, acesso 26/05/22).
LANDON, N. “Saint-Hyacinthe, auteur-compilateur du
Recueil de divers écrits (1736)”, Pratiques et formes littéraires.
Publicação online em 17/12/20. (disponível em:https://
publications-prairial.fr/pratiques-et-formes-litteraires/index.
php?id=227, acesso 26/05/22).
WHEELER, J. M. & FOOTE, G. W. Voltaire: A Sketch of his Life
and Works. London: Robert Forder, 1894.
243
o jantar do Conde de boulainvilliers*
voltaire
i – antes do jantar
O abade Couet1 – Por que, senhor conde, você considera a
filosofia tão útil para o gênero humano quanto a religião
apostólica, católica e romana?
O conde de Boulainvilliers – A filosofia estende seu império
sobre todo o universo, e vossa Igreja não domina senão uma
parte da Europa; ela ainda tem muitos inimigos. Mas você
deve me confessar que a filosofia é mil vezes mais salutar que
a sua religião, já que é praticada há muito tempo.
O abade – Você me assombra. O que você entende, então, por
filosofia?
O conde – Entendo o amor esclarecido pela sabedoria, sustentado
pelo amor do Ser Eterno, recompensador da virtude e vingador
do crime.
* [Nota de Beuchot: Esta obra é de dezembro de 1767; as Memórias Secretas
[Mémoires secrets] falam dela desde 10 de janeiro de 1768; a primeira
edição, in-8° de 60 páginas, estava sem frontispício e sem nome do autor.
Mas logo reconheceram Voltaire e, mais do que nunca, enfureceram-se
contra sua impiedade. Voltaire, assustado, não só desautorizou o Dîner,
como escreveu, em 22 de janeiro de 1768, a Marmontel, que “todas as
pessoas conhecem um pouco o fato do escrito ser de Saint-Hyacinthe, que
o imprimiu na Holanda em 1728”. No dia seguinte, escreveu a Argental
que o nome de Saint-Hyacinthe estava no livro, prova evidente, segundo
ele, de que Voltaire não era o autor. E para provar o que dizia sobre a edição
de 1728, Voltaire mandou fazer uma edição intitulada Dîner du Comte de
Boulainvilliers por M. Saint-Hiacinte, 1728, in-8° de 60 páginas. Mas esta
edição de 1728 é impressa com os mesmos caracteres que a Profissão dos
teístas [Profession des théistes], a Epístola aos Romanos, etc., saídos, em
1768, das prensas de Cramer, em Genebra. Os livreiros da Holanda [...].
1 Nota de Beuchot: Couet (Bernard), grão-vicário do cardeal de Noailles,
cônego de Notre-Dame, confessor do chanceler Daguesseau, foi assassinado
em 3 de abril de 1736. Voltaire havia endereçado a ele, em 1725, uma
quadra picante; ver t. LI, p. 149-50].
245
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
O abade – Pois bem, não é isso o que nossa religião anuncia?
O conde – Se é isso que você anuncia, nós estamos de acordo.
Eu sou um bom católico e você é um bom filósofo. Não iremos,
então, mais longe nem um nem o outro. Não desonremos nossa
filosofia religiosa e santa, nem pelos sofismas e absurdos que
ultrajam a razão, nem pela cupidez desenfreada de honras e
riquezas que corrompem todas as virtudes. Ouçamos apenas
as verdades e a moderação da filosofia; então esta filosofia
adotará a religião por sua filha.
O abade – Com sua permissão, esse discurso cheira um tanto
à heresia.
O conde – Enquanto você não parar de nos contar heresias,
e se servir de heresias alumiadas2 no lugar de razões, você
não terá por partidários senão hipócritas e imbecis. A opinião
de um único sábio, sem dúvida, prevalece sobre o prestígio
dos malandros e sobre a escravização de mil idiotas. Você me
perguntou o que quero dizer com filosofia; eu lhe pergunto,
em meu turno, o que você entende por religião.
O abade – Eu precisaria de muito tempo para lhe explicar
todos os nossos dogmas.
O conde – Isso já é uma grande presunção contra você. Você
precisa de livros grandes; e a mim não é preciso mais que
cinco palavras: Sirva a Deus, seja justo.
O abade – Nossa religião nunca disse o contrário.
O conde – Gostaria de não encontrar ideias contrárias em seus livros.
Essas palavras cruéis: “Obriga-os a entrar”3, que são abusadas com
tanta barbárie; e estas: “Eu vim trazer a espada e não a paz”4;
e ainda estas: “Aquele que não ouve a Igreja seja considerado
pagão ou como recebedor de fundos públicos”5; e uma centena
de máximas semelhantes assustam o bom senso e a humanidade.
2 N.T.: No original, “fagots allumés”, que seria “cavacos acesos” ou algo
correspondente. Esta fala faz um trocadilho com a anterior, que nos foi
impossível de traduzir. Em ambas a palavra “heresia” não aparece e é uma
opção nossa, pois é apenas insinuada pela expressão francesa (sentir le
fagot) utilizada pelo abade.
3 Luc., cap. 14, v. 23.
4 Mat., cap. 10, v. 34.
5 Idem, cap. 18, v. 17.
246
Apêndice
Existe algo mais duro e mais odioso do que este outro discurso:
“Eu lhes falo por parábolas, para que vendo não vejam, e
ouvindo não ouçam”6? É assim que se explicam a sabedoria e
a bondade eterna?
O Deus de todo o universo, que se faz homem para esclarecer
e favorecer todos os homens, dizer: “Eu não fui enviado
senão ao rebanho de Israel”7, isto é, a um pequeno país de no
máximo trinta léguas?
É possível que este Deus, a quem se faz pagar o imposto, disse
que seus discípulos não deveriam pagar nada; que os reis “não
recebem impostos senão de estrangeiros, e que as crianças são
isentas”8?
O abade – Esses discursos que escandalizam são explicados
por passagens bem diferentes.
O conde – Céus! O que é um Deus que precisa de comentários
e que se faz dizer perpetuamente os prós e os contras? O que
é um legislador que não escreveu nada? quais são os quatro
livros divinos cuja data é desconhecida e cujos autores, tão
pouco averiguados, contradizem-se em cada página?
O abade – Tudo isso se concilia, eu lhe digo. Mas você pelo
menos me admitirá que está muito satisfeito com o Sermão
da Montanha.
O conde – Sim; pretende-se que Jesus teria dito que serão
queimados aqueles que chamam seu irmão Raka9, como seus
teólogos fazem todos os dias. Ele diz que veio para cumprir a
lei de Moisés, que você tem horror10. Ele pergunta com o que
se salgará se o sal se esgotar11. Ele diz que bem-aventurados
são os pobres de espírito, porque o reino dos céus é deles12.
Eu também sei que lhe fazem dizer que o trigo deve apodrecer
6 Idem, cap. 8, v. 10.
7 Idem, cap. 15, v. 24.
8 Idem, cap. 17, v. 24, 25, 26.
9 Idem, cap. 5, v. 22.
10 Idem, ibid., v. 17.
11 Idem, ibid., v. 13.
12 Idem, ibid., v. 3.
247
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
e morrer na terra para germinar13; que o reino dos céus é um grão
de mostarda14; que é dinheiro gasto em usura15; que não se deve
dar jantar aos pais quando eles são ricos16. Talvez essas expressões
tivessem um significado respeitável na língua em que se diz que
foram pronunciadas; eu adoto tudo o que pode inspirar a virtude:
mas tenha a gentileza de me dizer o que você pensa de outra
passagem, que é a seguinte:
“Foi Deus quem me formou; Deus está em toda parte e em mim:
ousaria contaminá-lo com ações vis e criminosas, com palavras
impuras, com desejos infames?
“Que eu, em meus últimos momentos, diga a Deus: Ó meu
mestre! ai meu pai! você queria que eu sofresse, sofri com
resignação; você queria que eu fosse pobre, eu abracei a
pobreza; você me rebaixou, e eu não quis grandeza; você quer
que eu morra, eu te adoro enquanto morro. Deixo este magnífico
espetáculo agradecendo-te por me ter admitido para fazer-me
contemplar a admirável ordem com que rege o universo”.
O abade – Isso é admirável; em qual padre da igreja você
encontrou esse trecho divino? Está em São Cipriano, em São
Gregório de Nazianzo, ou em São Cirilo?
O conde – Não; estas são as palavras de um escravo pagão,
chamado Epiteto; e o imperador Marco Aurélio nunca pensou
diferente desse escravo.
O abade – Lembro-me, de fato, de ter lido, em minha juventude,
os preceitos de moral nos autores pagãos, que me fizeram
grande impressão. Concedo-te mesmo que as leis de Zaleuco,
de Charondas, os conselhos de Confúcio, os mandamentos
morais de Zoroastro, as máximas de Pitágoras, me pareceram
ditadas pela sabedoria para a felicidade do gênero humano:
me pareceu que Deus se dignou honrar esses grandes homens
de uma luz mais pura que a dos homens comuns, pois deu
mais harmonia a Virgílio, mais eloquência a Cícero e mais
13 Iª Epístola de Paulo aos Coríntios, cap. 15, v. 36.
14 Luc., cap. 13, v. 19.
15 Mat., cap. 25, v. 27
16 Luc., cap. 14, v. 12.
248
Apêndice
sagacidade a Arquimedes do que a seus contemporâneos.
Fiquei impressionado com aquelas grandes lições de virtude
que a antiguidade nos deixou. Mas, enfim, toda essa gente
não conhecia a teologia; eles não sabiam a diferença entre um
querubim e um serafim, entre graça eficiente à qual não se
pode resistir e graça suficiente que não é suficiente; eles não
sabiam que Deus foi morto e que, tendo sido crucificado por
todos, ele não havia sido crucificado senão por alguns. Ah!
senhor conde, se os Cipião, Cícero, Catão, Epiteto, os Antonins,
soubessem que o Pai gerou o Filho, e não o fez; que o Espírito
não foi gerado nem feito, mas procede por inspiração às vezes do
Pai e às vezes do Filho; que o Filho tem tudo o que pertence ao
Pai, mas que não tem a paternidade; se, digo, os antigos, nossos
mestres em tudo, tivessem podido conhecer uma centena
de verdades desta clareza e desta força; enfim, se tivessem
sido teólogos, que vantagens não teriam proporcionado aos
homens! A consubstancialidade sobretudo, senhor Comte, a
transubstanciação, são coisas tão belas! Quisera o céu que
Cipião, Cícero e Marco Aurélio tivessem aprofundado essas
verdades! eles poderiam ter sido grão-vigários do arcebispo,
ou síndicos [syndics] da Sorbonne.
O conde – Isso, diga-me conscientemente, entre nós e diante de
Deus, se você pensa que as almas desses grandes homens estão
no espeto, eternamente assadas pelos demônios enquanto
esperam que encontrem seu corpo que será eternamente
queimado com elas; e isso por não poder ser síndico da
Sorbonne e grão-vigários do arcebispo?
O abade – Você me embaraça demais; pois fora da Igreja não
há salvação. Ninguém deve agradar ao céu, senão nós e nossos
amigos17. Todo aquele que não ouve a Igreja, seja como pagão ou
como lavrador em geral18. Cipião e Marco Aurélio não ouviram
a Igreja; eles não receberam o Concílio de Trento; suas almas
17 N.T.: No original: “Nul ne doit plaire au ciel que nous et nos amis”. Nota
de Beuchot: Paródia do verso de Moliérie (Femmes savantes, III, 2). Nul
n’aura de l’esprit hors nous et nos amis [Ninguém terá espírito, senão nós
e nossos amigos].
18 Mat., cap. 18, v. 17.
249
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
espirituais serão queimadas para sempre; e quando seus
corpos, dispersos nos quatro elementos, forem reencontrados,
eles serão queimados para sempre também com suas almas.
Nada é mais claro, assim como nada é mais justo: isso é
positivo.
Por outro lado, é muito difícil queimar eternamente Sócrates,
Aristide, Pitágoras, Epiteto, os Antonins, todos aqueles cuja
vida foi pura e exemplar, e conceder a beatitude eterna à
alma e ao corpo de François Ravaillac, que morreu como bom
cristão, bem confessado e provido de uma graça eficaz ou
suficiente. Estou um pouco embaraçado neste assunto; pois,
enfim, sou juiz de todos os homens; sua felicidade ou seu
infortúnio depende de mim, e eu teria alguma repugnância
em salvar Ravaillac e o maldito Cipião.
Há uma coisa que me consola, é que nós teólogos podemos
tirar do inferno quem quisermos; lemos nos Atos de Santa
Tecla, grande teóloga, discípula de São Paulo, que se disfarçou
de homem para segui-lo, que libertou do inferno seu amigo
Faconille, que teve a infelicidade de morrer pagão19.
O grande São João Damasceno relata que o grande Macário, o
mesmo que obteve de Deus a morte de Ário por suas orações
ardentes, questionou um dia em um cemitério a caveira
de um pagão sobre sua salvação: a caveira lhe respondeu
que as preces dos teólogos confortaram infinitamente os
condenados20.
Enfim, sabemos com certeza que o grande São Gregório,
papa, tirou do inferno a alma do imperador Trajano21: são
belos exemplos da misericórdia de Deus.
O conde – Você é um gozador; tire, então, do inferno, por
suas santas orações, Henrique IV, que morreu sem sacramento
como um pagão, e coloque-o no céu com Ravaillac, o bem
confessado; mas meu embaraço é de saber como eles vão
viver juntos e com que cara vão ficar.
19 Ver Damascène, Orat. de iis qui in pace dormierunt, p. 585.
20 Apud Grab. Spicileg. tom. I.
21 Eucholog. c. 96. & alii lib. graec. Damascène, p. 588.
250
Apêndice
A condessa de Boulainvilliers. – O jantar está esfriando; eis lá
Sr. Fréret que chega, sentemo-nos à mesa, depois vocês tirem
do inferno quem vocês quiserem.
ii – durante
o jantar
O abade – Ah! Senhora, você come gordura em uma sextafeira sem a permissão expressa do senhor Arcebispo ou
minha! Você não sabe que isso é pecar contra a Igreja? Não
era permitido entre os judeus comer lebre, porque ainda que
ela rumine, não tem a pata fendida22; era um crime horrível
comer ixion e grifo.23
A condessa – Você graceja sempre, senhor abade; me diga, por
favor, o que é um ixion.
O abade – Eu não sei, senhora; mas sei que quem come uma
asa de frango na sexta-feira sem a permissão de seu bispo, em
vez de se fartar de salmão e esturjão, peca mortalmente; que
sua alma será queimada enquanto espera por seu corpo, e que
quando seu corpo vier encontrá-la, ambos serão queimados
eternamente, sem poder ser consumidos, como eu dizia antes.
A condessa – Nada é seguramente mais judicioso ou mais justo;
há prazer em viver em uma religião tão sábia. Você gostaria
de uma asa desta perdiz?
O conde – Pegue, acredite em mim; Jesus Cristo disse: Coma o
que vos ser apresentado24. Coma, coma, que a vergonha não
lhe prejudique.
O abade – Ah! na frente dos criados, numa sexta-feira, que é
depois da quinta-feira! Eles diriam isso por toda a cidade.
O conde – Então você tem mais respeito pelos meus lacaios do
que por Jesus Cristo?
O abade – É bem verdade que nosso Salvador nunca soube a
distinção entre dias gordos e dias magros; mas mudamos toda
a sua doutrina para melhor; ele nos deu todo o poder na terra e
no céu. Você bem sabe que, em mais de uma província, há menos
22 Deuteron. cap. 14, v. 7.
23 Idem, v. 12 e 13.
24 Luc., cap. 10, v. 8.
251
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
de um século, as pessoas que comiam gordura na Quaresma
eram condenadas à forca? E eu lhes citarei exemplos.
A condessa – Meu Deus, quão edificante! E como vejo bem que
sua religião é divina!
O abade – Tão divina que, no próprio país onde enforcaram
quem tinha comido omelete de toucinho, fizeram queimar
quem tinha tirado toucinho de uma galinha picada, e que
a Igreja ainda o usa às vezes desta forma: tanto ela sabe se
dosar às diferentes fraquezas dos homens! – Bebamos.
O conde – A propósito, senhor grão-vigário, sua Igreja permite
que se casem as duas irmãs?
O abade – Ambas ao mesmo tempo, não; mas uma após a outra,
de acordo com a necessidade, as circunstâncias, o dinheiro dado
na corte de Roma e a proteção: note bem que tudo sempre
muda e que tudo depende de nossa santa Igreja. A Santa Igreja
judaica, nossa mãe, que detestamos e que sempre citamos,
acha muito bom que o patriarca Jacó se case com as duas irmãs
ao mesmo tempo: ela proíbe em Levítico de casar com a viúva
de seu irmão25; ordena-o expressamente no Deuteronômio26 ; e
o costume de Jerusalém permitia que alguém se casasse com
sua própria irmã, pois você sabe que quando Amnon, filho do
casto rei Davi, estuprou sua irmã Tamar, aquela irmã modesta e
discreta disse-lhe estas palavras: “Meu irmão, não faça tolices,
mas peça em casamento ao nosso pai, ele não lhe recusará”27.
Mas, para voltarmos à aprovação de casar as duas irmãs ou a
esposa de um irmão, a coisa varia de acordo com os tempos,
como eu lhe disse. Nosso Papa Clemente VII não ousou
declarar inválido o casamento do rei da Inglaterra, Henrique
VIII, com a esposa do príncipe Arthur, seu irmão, por medo de
que Carlos V o pusesse preso uma segunda vez, e o declarasse
bastardo como ele era; mas tenha como certo que em matéria
de casamento, como em tudo o mais, o Papa e o Arcebispo são
os mestres de tudo quando são os mais fortes. Bebamos.
25 Lévit., cap. 18, v. 16.
26 Deut., cap. 25, v. 5.
27 II, Reis, cap. 13, v. 12 e 13.
252
Apêndice
A condessa – Pois bem! Senhor Fréret, você nada responde a
esses belos discursos, não diz nada!
Sr. Fréret – Eu me calo, senhora, porque teria demais a dizer.
O abade – E o que você poderia dizer, senhor, que pudesse abalar a
autoridade, obscurecer o esplendor, invalidar a verdade de nossa
santa mãe Igreja católica, apostólica e romana? – Bebamos.
Sr. Fréret – Por Deus! Eu diria que vocês são judeus e idólatras,
que zombam de nós e embolsam nosso dinheiro.
O abade – Judeus e idólatras! Você exagera!
Sr. Fréret – Sim, judeus e idólatras, já que você me força. Seu
Deus não nasceu judeu? Ele não foi circuncidado como judeu?28
Ele não realizou todas as cerimônias judaicas? Você não o faz
dizer várias vezes que é preciso obedecer à lei de Moisés?29
Ele não fez sacrifícios no templo? Seu batismo não foi um
costume judaico tirado dos orientais? Você ainda não chama
pela palavra judaica páscoa o principal de seus feriados? Você
não canta há mais de mil e setecentos anos, em uma música
diabólica, canções judaicas que você atribui a uma reizinho
judeu30, bandido, adúltero e homicida, um homem segundo o
coração de Deus? Você não penhora em Roma com seus judeus,
que você chama de banco de caridade [monts de pieté]? E você
não vende impiedosamente as penhoras dos pobres quando
eles não pagam a tempo?
O conde – Ele tem razão; só falta uma coisa na lei judaica, que é
um bom jubileu, um verdadeiro jubileu, pelo qual os senhores
voltariam às terras que haviam dado como tolos, no tempo que
vocês lhes persuadiram de que Elias e o anticristo iriam vir, que
o mundo ia acabar, e que era necessário dar todos os seus bens
à Igreja para o remédio da sua alma, e não para ser classificado
entre os bodes. Este jubileu seria melhor do que aquele que vocês
não nos concedem, senão indulgências plenárias; eu ganharia,
por minha parte, mais de cem mil francos de renda.
28 Luc., cap. 2, v. 22 e 39.
29 Mat. cap. 5, v. 17 e 18.
30 Nota de Beuchot: David; ver II, Reis, cap. 11 e 12.
253
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
O abade – Eu veria isso bem, desde que dessas cem mil libras
você me fizesse uma gorda pensão. Mas por que Sr. Fréret nos
chama de idólatras?
Sr. Fréret – Por que, senhor! Pergunte a São Cristóvão, que é a
primeira coisa que você encontra em sua catedral31 e que é ao
mesmo tempo o mais vil monumento de barbárie que você tem;
pergunte a Santa Clara, que é invocada para o mal dos olhos e
para quem você construiu templos; a São Genou que curou a
gota; a São Januário, cujo sangue se liquefaz tão solenemente
em Nápoles quando é trazido perto de sua cabeça; a Santo
Antônio que borrifa água benta em cavalos em Roma32.
Você se atreveria a negar sua idolatria, você que adora com
o culto de Dulia em mil igrejas o leite da Virgem, o prepúcio
e o umbigo de seu filho, cujos espinhos você diz que uma
coroa foi feita para ele, a madeira podre na qual você afirma
que o ser eterno está morto? Você, enfim, que adora com um
culto de latria um pedaço de massa que você coloca em uma
caixa, por medo de ratos? Seus católicos romanos levaram
sua extravagância católica ao ponto de dizer que transformam
esse pedaço de massa em Deus em virtude de algumas palavras
latinas, e que todas as migalhas dessa massa se tornam tantos
deuses criadores do universo. Um mendigo que foi feito padre,
um monge que emerge dos braços de uma prostituta, vem por
doze soldos, vestido com roupas de ator, para murmurar para
mim em uma língua estrangeira o que você chama de missa,
para dividir o ar em quatro com três dedos, dobrar, endireitar,
virar à direita e à esquerda, para a frente e para trás, e fazer
quantos deuses quiser, beber e comê-los, e depois devolvê-los
ao seu penico! E você não vai admitir que é a idolatria mais
monstruosa e ridícula que já desonrou a natureza humana?
Não é preciso transformar-se em animal para imaginar que
se transforma o pão branco e o vinho tinto em Deus? Novos
idólatras, não se comparem aos antigos que adoravam Zeus,
31 Nota de Beuchot: Havia em Paris, dentro da igreja catedral, uma
enorme estátua que se dizia ser a de Cristóvão.
32 Voyage de Misson, tom. II, p. 294; esse é um fato público.
254
Apêndice
o Demiourgos, o mestre dos deuses e dos homens, e que
prestavam homenagem aos deuses secundários; saiba que
Ceres, Pomona e Flora valem mais que sua Úrsula e suas onze
mil virgens; e que não cabe aos padres de Maria Madalena
zombar dos padres de Minerva.
A condessa – Senhor abade, você tem no Sr. Fréret um rude
adversário. Por que você quis que ele falasse? A culpa é sua.
O abade – Oh! Senhora, eu sou aguerrido. Não me apavoro por
tão pouco. Faz muito tempo que ouço todos esses argumentos
contra nossa Santa Madre Igreja.
A condessa – Dou minha palavra, você me lembra uma certa
duquesa a quem um descontente chamou de meretriz; ela lhe
respondeu: Há trinta anos que me dizem isso, e gostaria que
me dissessem por mais trinta anos.
O abade – Senhora, senhora, uma boa palavra não prova nada.
O conde – Isso é verdade; mas uma boa palavra não impede
que se possa ter razão.
O abade – E que razão se poderia opor à autenticidade das
profecias, aos milagres de Moisés, aos milagres de Jesus, aos
mártires?
O conde – Ah! Não vos aconselho a falar de profecias, pois os
meninos e as meninas sabem o que o profeta Ezequiel comeu
no seu almoço33, e que não seria honesto nomear no jantar;
desde que souberam das aventuras de Oolá e Oolibá34, sobre
as quais é difícil falar diante das damas; pois sabem que o
Deus dos judeus ordenou ao profeta Oséias que tomasse uma
meretriz e fizesse filhos de prostitutas35. Hélas! Você encontrará
algo mais nessas misérias do que rabiscos e obscenidades?
Que seus pobres teólogos parem, então, de discutir com
os judeus sobre o sentido das passagens de seus profetas,
sobre certas linhas hebraicas de um Amós, um Joel, um
Habacuque, um Jeremias; sobre certas palavras a respeito de
33 Ezeq., cap. 4, v. 12.
34 Idem, cap. 16 e 23, v. 20.
35 Oséias, cap. 1, v. 2, e cap.3, v. 1 e 2.
255
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
Elias, transportado para as regiões celestes orientais em uma
carruagem de fogo, que Elias, abro parêntesis, nunca existiu.
Deixe-os sobretudo enrubescer com as profecias inseridas em
seus Evangelhos. É possível que ainda existam homens tolos e
covardes o suficiente para não serem tomados de indignação
quando Jesus prediz em Lucas36: Haverá sinais na lua e
nas estrelas; os sons do mar e das ondas; homens secando de
medo esperarão pelo que deve acontecer com todo o universo.
As virtudes dos céus serão abaladas, e então eles verão o filho
do homem vindo em uma nuvem com grande poder e grande
majestade. Em verdade vos digo que a presente geração não
passará até que tudo isso se cumpra.
É seguramente impossível ver uma previsão mais demarcada,
mais circunstancial e mais falsa. Seria preciso ser louco para
ousar dizer que ela foi cumprida, e que o filho do homem veio
em uma nuvem com grande poder e grande majestade. Como
é que Paulo, em sua Epístola aos Tessalonicenses (Ire, cap. iv,
v. 16), confirma essa previsão ridícula por outra ainda mais
impertinente? Nós, que vivemos e falamos com você, seremos
levados nas nuvens para encontrar o Senhor no meio do ar, etc.
Por menor que seja a instrução, sabe-se que o dogma do fim do
mundo e da instauração de um mundo novo era uma quimera
então aceita por quase todos os povos. Você encontrará esta
opinião em Lucrécio, no livro IV. Você a encontra no primeiro
livro das Metamorfoses de Ovídio. Heráclito, muito tempo antes,
disse que este mundo seria consumido pelo fogo. Os estoicos
adotaram esse devaneio. Os meio-judeus meio-cristãos, que
fabricaram os Evangelhos, não deixaram de adotar tal dogma
recebido e de aproveitá-lo. Mas, como o mundo subsistiu
ainda muito tempo, e Jesus não veio nas nuvens com grande
poder e grande majestade no primeiro século da Igreja, diziam
que seria para o segundo século; eles em seguida prometeram
para o terceiro; e de século em século essa extravagância se
renova. Os teólogos agiram como um charlatão que vi no final
36 Cap. 2. [Na edição de Beuchot: Cap. 21, v. 25, 26, 27, 32].
256
Apêndice
da ponte-nova sobre o cais da escola; ele mostrava ao povo,
à noite, um galo e algumas garrafas de bálsamo: Senhores,
dizia ele, eu vou cortar a cabeça do meu galo, e o ressuscitarei
em seguida na presença de vocês; mas é preciso que primeiro
vocês comprem minhas garrafas. Sempre havia pessoas simples
o suficiente para comprá-las. Eu vou cortar a cabeça do meu
galo, continuava o charlatão; mas como é tarde, e esta operação
é digna do grande dia, ficará para amanhã.
Dois membros da Academia de Ciências tiveram a curiosidade
e a constância de voltar para ver como o charlatão se sairia; a
farsa durou oito dias consecutivos; mas a farsa da expectativa do
fim do mundo, no cristianismo, tem durado oito séculos inteiros.
Depois disso, senhor, cite-nos as profecias judaicas ou cristãs.
Sr. Fréret – Eu não lhe aconselho a falar sobre os milagres
de Moisés na frente de pessoas que têm barba no queixo. Se
todas essas maravilhas inconcebíveis tivessem sido feitas, os
egípcios teriam falado delas em suas histórias. A memória de
tantos fatos prodigiosos que espantam a natureza teria sido
preservada entre todas as nações. Os gregos, que eram instruídos
em todas as fábulas do Egito e da Síria, teriam feito o barulho
dessas ações sobrenaturais ressoar nos dois confins do mundo.
Mas nenhum historiador, nem grego, nem sírio, nem egípcio,
disse uma única palavra sobre isso. Flavius Josephus, tão bom
patriota, tão obstinado em seu judaísmo, esse Josefo que reuniu
tantos testemunhos em favor da antiguidade de sua nação, não
conseguiu encontrar nenhum que atestasse as dez pragas do
Egito, e a passagem em chão seco no meio do mar, etc.
Você sabe que o autor do Pentateuco ainda é incerto: que
homem sensato poderia acreditar, com a fé de não sei qual
judeu, seja Esdras ou outro, em tais maravilhas apavorantes
desconhecidas para todo o resto da terra? Mesmo que todos os
seus profetas judeus tivessem citado mil vezes esses estranhos
eventos, seria impossível acreditar neles: mas não há um
único desses profetas que cite as palavras do Pentateuco sobre
esse monte de milagres, nem um único que entra nos mínimos
detalhes dessas aventuras; explique esse silêncio como puder.
257
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
Lembre-se de que são necessários motivos muito sérios para
provocar a reversão da natureza dessa maneira. Que motivo,
que razão poderia ter o Deus dos judeus? Seria para favorecer
seu pequeno povo? Dar-lhe terra fértil? Por que ele não lhe deu
o Egito em vez de fazer milagres, a maioria dos quais, vocês
dizem, foram igualados pelos feiticeiros do Faraó? Por que fez
o anjo exterminador degolar todos os anciãos do Egito e fez
morrer todos os animais, a fim de que os israelitas, em número
de seiscentos e trinta mil combatentes, fugissem como ladrões
covardes? Por que abrir-lhes o seio do Mar Vermelho, a fim de
que morram de fome no deserto? Você sente a enormidade
desse absurdo; você tem muito bom senso para admiti-los e
acreditar seriamente na religião cristã fundada na impostura
judaica. Você sente o ridículo da resposta trivial de que não
se deve questionar Deus, que não se deve sondar o abismo da
Providência. Não, não devemos questionar a Deus por que ele
criou piolhos e aranhas, porque, tendo certeza de que existem
piolhos e aranhas, não podemos saber por que existem; mas
não temos tanta certeza de que Moisés mudou sua vara em
uma serpente e cobriu o Egito com piolhos, embora os piolhos
fossem familiares ao seu povo: não questionamos a Deus;
questionamos os loucos que se atrevem a fazer Deus falar e
emprestar-lhes o excesso de suas extravagâncias.
A condessa – Palavra minha, meu caro abade, também não o
aconselho a falar dos milagres de Jesus. O criador do universo
teria se feito judeu para transformar água em vinho37 em um
casamento onde todos já estavam bêbados? Ele teria sido levado
pelo diabo38 para uma montanha de onde podiam ser vistos todos
os reinos da terra? Ele teria enviado o diabo39, no corpo de dois mil
porcos em um país onde não havia porcos? Ele teria secado uma
figueira40 por não dar figos, “quando não era tempo de figos”?
Acredite, esses milagres são tão ridículos quanto os de Moisés.
Confesse em voz alta o que você pensa no fundo de seu coração.
37 João, cap. 2, v. 9.
38 Mat., cap. 4, v. 8.
39 Idem, cap. 8, v. 32.
40 Marc., cap. 11, v. 13.
258
Apêndice
O abade – Senhora, um pouco de condescendência pelo
minha batina, por favor; deixe-me fazer meu trabalho; estou
um pouco batido talvez sobre as profecias e sobre os milagres;
mas sobre os mártires, é certo que houve; e Pascal, o patriarca
de Port-Royal des Champs, disse: Acredito voluntariamente nas
histórias cujas testemunhas foram degoladas.
Sr. Fréret – Ah! senhor, que má fé e ignorância em Pascal!
Alguém acreditaria, ao ouvi-lo, que ele viu os interrogatórios
dos apóstolos e que foi testemunha de seus suplícios. Mas
onde ele viu que eles foram torturados? Quem lhe disse que
Simon Barjone, apelidado Pedro, foi crucificado em Roma,
de cabeça para baixo? Quem lhe disse que este Barjone,
um miserável pecador da Galiléia, já esteve em Roma e lá
falava latim? Hélas! Se tivesse sido condenado em Roma,
se os cristãos o conhecessem, a primeira igreja que teriam
construído, pois em honra dos santos, teria sido a de São Pedro
em Roma, e não a de São João de Latrão; os papas não teriam
perdido; sua ambição teria encontrado ali um belo pretexto.
A que estamos reduzidos quando, para provar que esse Pedro
Barjone viveu em Roma, somos obrigados a dizer que uma
carta atribuída a ele datada da Babilônia41 foi de fato escrita
da própria Roma? Sobre o que um autor célebre disse muito
bem que, sob condição de tal explicação, uma carta datada de
São Petersburgo deve ter sido escrita em Constantinopla.
Você não ignora quais são os impostores que falaram dessa
jornada de Pedro. Foi um Abdias quem primeiro escreveu
que Pedro tinha vindo do lago de Genezareth direto à Roma
para o imperador, para assaltar os milagres contra Simão, o
Mago; é ele quem fez o conto de um parente do imperador,
ressuscitado pela metade por Simon, e inteiramente pelo
outro Simon Barjone. É ele quem põe os dois Simões um
contra o outro, um dos quais voa pelos ares e quebra as duas
pernas pelas preces do outro. É ele quem fez a famosa história
dos dois cães enviados por Simon para comer Pedro. Tudo
isso é repetido por um Marcel, por um Hegésipo. Estes são os
41 Iª de São Pedro, cap. 5, v. 13.
259
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
fundamentos da religião cristã. Você não vê aí senão um tecido
das mais crassas imposturas feitas pela mais vil canalha, que
sozinha abraçou o cristianismo durante cem anos.
É uma série ininterrupta de falsários. Forjam cartas de Jesus
Cristo, forjam cartas de Pilatos, cartas de Sêneca, constituições
apostólicas, versos das sibilas em acrósticos, mais de quarenta
Evangelhos, atos de Barnabé, liturgias de Pedro, de Tiago, de
Mateus e de Marcos, etc., etc., etc. Você o sabe, senhor, você os
leu, sem dúvida, esses arquivos infames de mentiras, que você
chama de fraudes piedosas; e você não terá a honestidade de
confessar, ainda que na frente de seus amigos, que o trono do
papa não foi estabelecido senão sobre quimeras abomináveis,
para a desgraça da raça humana?
O abade – Mas como a religião cristã poderia ter se elevado tão
alto, se tivesse sido baseada apenas em fanatismo e mentiras?
O conde – E como o islamismo se elevou ainda mais? Pelo
menos suas mentiras foram mais nobres e seu fanatismo
mais generoso. Pelo menos Maomé escreveu e combateu;
e Jesus não sabia escrever nem se defender. Maomé teve
a coragem de Alexandre com o espírito de Numa; e seu
Jesus suou sangue e água assim que foi condenado por seus
juízes. O islamismo nunca mudou, e vocês mudaram toda
a sua religião vinte vezes. Há mais diferença entre o que é
hoje e o que era em seus primeiros dias, do que entre seus
costumes e os do rei Dagobert. Cristãos miseráveis! Não,
vocês não adoram o seu Jesus, vocês o insultam substituindo
as suas novas leis pelas dele. Vocês zombam dele mais com
seus mistérios, seu agnus, suas relíquias, suas indulgências,
seus simples benefícios e seu papado, do que você zomba
dele todos os anos, no dia 5 de janeiro, com suas canções
dissolutas, nas quais você cobre de ridículo a Virgem Maria,
o anjo que a saúda, a pomba que a engravida, o carpinteiro
que tem ciúmes dela e a criança que os três reis vêm
cumprimentar entre um boi e um burro, companhia digna
de uma tal família.
260
Apêndice
O abade – É, no entanto, esse ridículo que Santo Agostinho
achou divino; ele disse: “Acredito, porque é absurdo; eu
acredito, porque isso é impossível”.
Sr. Fréret – Ei! Que nos importam os devaneios de um africano,
ora maniqueísta, ora cristão, ora debochado, ora devoto,
ora tolerante, ora persecutório? O que nos fez seu absurdo
teológico? Você gostaria que eu respeitasse esse retórico
insano, quando ele diz, em seu sermão xxii, que o anjo pôs a
criança em Maria pela orelha? imprœgnavit per aurem.
A condessa – De fato, eu vejo o absurdo; mas não vejo o divino.
Acho muito simples que o cristianismo se formou entre o
populacho, como se estabeleceram as seitas dos anabatistas
e quacres, como se formaram os profetas de Vivarais e
Cévennes, como a facção dos convulsionários já ganha força42.
O entusiasmo começa, o engano acaba. É com a religião como
com o jogo:
Começa-se por ser enganado,
Acaba-se por ser trapaceiro.
Sr. Fréret – Isso é muito verdadeiro, senhora. O que resulta
mais provável do caos das histórias de Jesus, escritas contra
ele pelos judeus, e a seu favor pelos cristãos, é que ele era
um judeu de boa-fé, que queria se fazer valer ao povo, como
os fundadores dos recabitas, dos essênios, dos saduceus,
dos fariseus, dos judaítas, dos herodianos, dos joanistas,
dos terapeutas e de tantas outras pequenas facções criadas
na Síria, que era a pátria do fanatismo. É provável que ele
tenha posto algumas mulheres em seu partido, assim como
todos os que queriam ser chefes de seitas; que lhe escaparam
vários discursos indiscretos contra os magistrados e que
foi cruelmente punido com o derradeiro suplício. Mas se
ele foi condenado ou sob o reinado de Herodes, o Grande,
como afirmam os talmudistas, ou sob Herodes, o Tetrarca,
42 Nota de Beuchot: As convulsões não tendo ocorrido senão após a morte
do diácono de Paris, ocorrida em 1727, trata-se de um anacronismo fazer
com que as pessoas falem sobre ela diante do conde de Boulainvilliers,
falecido cinco anos antes.
261
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
como dizem alguns Evangelhos, é bem irrelevante. Admitese que seus discípulos eram muito obscuros até encontrarem
alguns platônicos em Alexandria que apoiavam os devaneios
dos galileus com os de Platão. Os povos de então eram
apaixonados por demônios, espíritos malignos, obsessões,
possessões, magia, como são os selvagens hoje. Quase todas
as doenças eram possessões de espíritos malignos. Os judeus,
desde tempos imemoriais, gabavam-se de expulsar demônios
com a raiz barath, colocada debaixo do nariz dos enfermos,
e algumas palavras atribuídas a Salomão. O jovem Tobias
afugentou demônios com a fumaça de um peixe na grelha.
Esta é a origem dos milagres dos quais os galileus se gabavam.
Os gentios eram fanáticos o suficiente para concordar que
os galileus podiam fazer essas belas maravilhas; porque os
gentios acreditavam estar fazendo isso eles mesmos. Eles
acreditavam na magia como os discípulos de Jesus. Se alguns
doentes foram curados pelas forças da natureza, não deixaram
de afirmar que foram libertados de uma dor de cabeça pela
força dos encantamentos. Eles disseram aos cristãos: Vocês
têm belos segredos, e nós também; vocês curam com palavras,
e nós também; vocês não têm nenhuma vantagem.
Mas quando os galileus, tendo ganho uma numerosa turba,
começaram a pregar contra a religião do Estado; quando,
depois de pedir tolerância, ousaram ser intolerantes; quando
queriam erguer seu novo fanatismo sobre as ruínas do
fanatismo antigo, então os sacerdotes e magistrados romanos
lhes tiveram horror; então reprimiram sua audácia. O que eles
fizeram? Eles supuseram, como vimos, mil obras a seu favor;
de enganados tornaram-se trapaceiros, tornaram-se falsários;
defenderam-se pelas mais indignas fraudes, não podendo
empregar outras armas, até ao momento em que Constantino,
tendo-se tornado imperador com o seu dinheiro, pôs a religião
deles no trono. Então, os trapaceiros ficaram sedentos de
sangue. Atrevo-me a assegurar-vos que desde o Concílio de
Nicéia até a sedição de Cévennes, não se passou um único ano
em que o cristianismo não tenha vertido sangue.
262
Apêndice
O abade – Ah! senhor, isso é dizer muito.
Sr. Fréret – Não; isso não é dizer o suficiente. Apenas releia
a História Eclesiástica; ver os donatistas e seus adversários
se atracando a golpes de bastão; os atanasianos e arianos
tomando o império romano de carnificina por um ditongo.
Veja esses bárbaros cristãos reclamando amargamente que
o sábio imperador Juliano os impede de matar e destruir
uns aos outros. Veja esta terrível série de massacres; tantos
cidadãos morrendo torturados, tantos príncipes assassinados,
as estacas acesas em seus conselhos, doze milhões de
inocentes, habitantes de um novo hemisfério, abatidos como
bestas em um parque, sob o pretexto de que não queriam ser
cristãos; e, em nosso antigo hemisfério, os cristãos imolavam
incessantemente uns pelos outros, velhos, crianças, mães,
mulheres, filhas, expirando em multidões nas cruzadas dos
albigenses, nas guerras dos hussitas, nas dos luteranos, dos
calvinistas, dos anabatistas, a Saint-Barthélemy, aos massacres
da Irlanda, aos do Piemonte, aos de Cévennes; enquanto um
bispo de Roma, molemente deitado em um sofá, tem seus pés
beijados, e cinquenta eunucos lhe cantam seus murmúrios
para distraí-lo. Deus é minha testemunha de que este retrato
é fiel, e você não ousaria me contradizer.
O abade – Confesso que há algo de verdadeiro; mas, como
disse o bispo de Noyon, estes não são assuntos de mesa; estes
são índices de matérias43. Os jantares seriam muito tristes se a
conversa se prolongasse sobre os horrores do gênero humano.
A história da Igreja perturba a digestão.
O conde – Os fatos a perturbaram ainda mais.
O abade – Não é culpa da religião cristã, é dos abusos.
O conde – Seria bom se houvesse pouco abuso. Mas se os
padres quisessem viver às nossas custas desde que Paulo, ou
aquele que tomou seu nome, escreveu, não tenho44 direito
de ser alimentado e vestido por você, eu, minha esposa ou
43 N.T.: Na tradução perdemos o jogo de palavras: “ce ne sont pas là des
matières de table; ce sont des tables des matières”.
44 Iª aos Coríntios, cap. 9, v. 4 e 5.
263
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
minha irmã? Se a Igreja sempre quis usurpar; se ela sempre
empregou todas as armas possíveis para nos privar de nossos
bens e nossas vidas, desde a pretensa aventura de Ananias
e Safira, que, dizem, trouxeram aos pés de Simão Barjone
o preço de suas heranças, e que haviam guardado algumas
dracmas para subsistência45; se é evidente que a história da
Igreja é uma série contínua de brigas, imposturas, vexames,
enganos, rapinas e assassinatos; então fica demonstrado que
o abuso está na própria coisa, como fica demonstrado que
um lobo sempre foi carnívoro, e que não é por alguns abusos
passageiros que sugou o sangue de nossas ovelhas.
O abade – Você poderia dizer o mesmo de todas as religiões.
O conde – De jeito nenhum. Eu lhe desafio a me mostrar uma única
guerra excitada pelo dogma de uma única seita da antiguidade.
Desafio você a me mostrar entre os romanos um único homem
perseguido por suas opiniões, desde Rômulo até o tempo em que
os cristãos vieram para perturbar tudo. Essa barbárie absurda foi
reservada apenas para nós. Você sente, corando, a verdade que o
pressiona, e você não tem nada para responder.
O abade – Então eu não respondo nada. Concordo que as
disputas teológicas são absurdas e funestas.
Sr. Fréret – Concorde, então, também que é preciso cortar pela
raiz uma árvore que sempre carregou venenos.
O abade – Isso é o que eu não vou conceder; pois esta árvore
tem também às vezes dado bons frutos. Se uma república
sempre está em dissensão, não quero que a república seja
destruída por isso. Podemos reformar nossas leis.
O conde – Um estado não é como uma religião. Veneza reformou
suas leis e floresceu; mas quando eles quiseram reformar o
catolicismo, a Europa nadou em sangue; e, finalmente, quando
o famoso Locke, desejando poupar tanto as imposturas desta
religião quanto os direitos da humanidade, escreveu seu livro do
Cristianismo razoável, ele não teve quatro discípulos: prova forte
o suficiente de que o cristianismo e a razão não podem subsistir
45 Atos dos Apóstolos, cap. 5.
264
Apêndice
juntos. Resta apenas um remédio no estado em que as coisas
estão, ainda que seja apenas um paliativo, que é tornar a religião
absolutamente dependente do soberano e dos magistrados.
Sr. Fréret – Sim, desde que o soberano e os magistrados sejam
esclarecidos, desde que saibam tolerar igualmente todas as
religiões, considerar todos os homens como seus irmãos, não
ter consideração pelo que pensam e ter muita consideração
pelo que eles fazem; deixá-los livres em seu comércio com
Deus e acorrentá-los apenas às leis em tudo o que devem aos
homens. Porque seria necessário tratar como bestas ferozes os
magistrados que sustentariam sua religião por carrascos.
O abade – E se, todas as religiões sendo autorizadas, todas elas
se batessem umas contra as outras? Se o católico, o protestante,
o grego, o turco, o judeu, pegarem-se pelas orelhas ao sair da
missa, do sermão, da mesquita e da sinagoga?
Sr. Fréret – Então, um regimento de dragões deve dissipá-los.
O conde – Eu preferia dar-lhes aulas de moderação do que
enviar regimentos; gostaria de começar instruindo os homens
antes de puni-los.
O abade – Instruir os homens! O que você está dizendo, senhor
conde? Você os acredita dignos?
O conde – Eu entendo! Você sempre pensa que não se deve
senão enganá-los: você não está senão apenas meio curado;
seu antigo mal lhe admoesta sempre.
A condessa. – A propósito, esqueci de pedir sua opinião sobre
uma coisa que li ontem na história daqueles bons maometanos
que realmente me impressionou. Assan, filho de Ali, estando
no banho, um de seus escravos inadvertidamente joga uma
panela de água fervente sobre seu corpo. Os servos de Assan
queriam empalar o culpado. Assan, em vez de empalá-lo, deulhe vinte moedas de ouro. Há, diz ele, um grau de glória no
paraíso para aqueles que pagam os serviços, um maior para
aqueles que perdoam o mal, e um ainda maior para aqueles que
recompensam o mal involuntário. O que você acha dessa ação
e desse discurso?
265
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
O conde – Reconheço nisso meus bons muçulmanos do
primeiro século.
O abade – E eu, meus bons cristãos.
Sr. Fréret – E eu, lamento que o escaldado Assan, filho de Ali,
tenha dado vinte moedas de ouro para ter glória no paraíso.
Eu não gosto de boas ações autointeressadas. Eu gostaria que
Assan fosse virtuoso e humano o suficiente para consolar o
desespero do escravo, sem sonhar em ser colocado no paraíso
no terceiro grau.
A condessa – Vamos tomar um café. Imagino que se em todos
os jantares em Paris, Viena, Madrid, Lisboa, Roma e Moscou
tivéssemos conversas tão instrutivas, o mundo não seria senão
melhor.
iii – depois
do jantar
O abade – Eis um excelente café, senhora; é um puro moka.
A condessa – Sim, ele vem do país dos muçulmanos; não é
uma grande pena?
O abade – Brincadeiras à parte, senhora, os homens precisam
de uma religião.
O conde – Sim, sem dúvida; e Deus lhes deu uma divina,
eterna, gravada em todos os corações; é aquela que, segundo
você, praticaram Enoque, Noéquides e Abraão; é aquilo que
as letras chineses preservaram por mais de quatro mil anos,
a adoração a um Deus, o amor à justiça e o horror ao crime.
A condessa – É possível que tenha sido abandonada uma
religião tão pura e tão santa pelas seitas abomináveis que
inundaram a terra?”
Sr. Fréret – Em matéria de religião, senhora, comportamo-nos
diretamente de maneira contrária ao que fazemos em matéria
de vestuário, alojamento e alimentação. Começamos com
cavernas, cabanas, roupas de pele de animais; tínhamos em
seguida pão, alimentos saudáveis, roupas de lã e seda fiada,
casas próprias e confortáveis: mas, no que concerne à religião,
voltamos à cabana, às peles dos animais e às cavernas.
266
Apêndice
O abade – Seria muito difícil sair disso. Você vê que a religião
cristã, por exemplo, está em toda parte incorporada ao Estado,
e que, do Papa ao último capuchinho, todos fundam seu trono
ou sua cozinha sobre ela. Já lhe disse que os homens não são
suficientemente razoáveis para se contentar com uma religião
pura e digna de Deus.
A condessa – Você não acredita nisso; você mesmo admite que
eles mantinham essa religião nos tempos de seu Enoque, seu
Noé e seu Abraão. Por que não deveríamos ser tão razoáveis
hoje como éramos então?
O abade – Devo dizer: foi porque então não havia cônego
com uma grande prebenda, nenhum abade de Corbie com um
milhão, nenhum papa com dezesseis ou dezoito milhões. Para
restituir todos esses bens à sociedade humana, talvez fossem
necessárias guerras tão sangrentas quanto foram necessárias
para arrancá-los dela.
O conde – Apesar de ser militar, não quero fazer guerra aos
padres e monges. Não quero estabelecer a verdade pelo
assassinato, como eles estabeleceram o erro; mas gostaria que
pelo menos esta verdade esclarecesse um pouco os homens,
que fossem mais gentis e mais felizes, que as pessoas deixassem
de ser supersticiosas e que os chefes da Igreja temessem serem
perseguidores.
O abade – É muito difícil (já que devo finalmente me explicar)
tirar dos loucos as correntes que eles reverenciam. Você talvez
fosse apedrejado pelo povo de Paris se, com tempo chuvoso,
impedisse que a suposta carcaça de Santa Genoveva fosse
desfilar pelas ruas para trazer bom tempo.
Sr. Fréret – Eu não acredito no que você diz. A razão já avançou
tanto que há mais de dez anos essa suposta carcaça e a de
Marcel não desfilam por Paris. Acho muito fácil desenraizar
gradualmente todas as superstições que nos embrutecem.
Não acreditamos mais em feiticeiros, não exorcizamos mais
demônios; e embora se diga que seu Jesus enviou seus
267
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
apóstolos precisamente para expulsar os demônios46, nenhum
sacerdote entre vocês é louco ou tolo o suficiente para se
gabar de expulsá-los; as relíquias de São Francisco tornaramse ridículas, e as de Santo Inácio, talvez, um dia sejam
arrastadas pela lama com os próprios jesuítas. Deixamos, na
verdade, ao papa o ducado de Ferrara que ele usurpou, os
domínios que César Bórgia arrebatou pelo ferro e pelo veneno,
e que devolveu à Igreja de Roma, para a qual não trabalhou;
deixamos Roma até mesmo para os papas, porque não querem
que o imperador se apodere dela; eles estão dispostos a pagarlhe mais annates, embora isso seja um ridículo vergonhoso e
uma simonia evidente; não queremos fazer barulho por um
subsídio tão módico. Os homens, subjugados pelo costume,
não rompem de repente um mau negócio feito há quase três
séculos. Mas que os papas tenham a insolência de enviar,
como no passado, legados a latere para impor dízimos aos
povos, excomungar os reis, interditar seus Estados, dar suas
coroas a outros, você verá como se recebe um legado a latere:
não me desesperaria que o parlamento de Aix ou de Paris o
enforcasse.
O conde – Você vê quantos preconceitos vergonhosos nós nos
livramos. Olhe agora para a parte mais opulenta da Suíça, para
as sete Províncias Unidas, tão poderosas quanto a Espanha,
para a Grã-Bretanha, cujas forças marítimas sozinhas se
impõem, com vantagem, contra as forças reunidas de todas
as outras nações: olhe para todos do norte da Alemanha e da
Escandinávia, esses inesgotáveis viveiros de guerreiros, todos
esses povos nos avançaram longe no progresso da razão. O
sangue de cada cabeça da hidra que eles derrubaram fertilizou
seus campos; a abolição dos monges povoou e enriqueceu
suas propriedades: certamente se pode fazer na França o que
se faz em outros lugares; a França será mais opulenta e mais
populosa.
O abade – Ah, bom! Quando vocês tiverem sacudido os vermes
dos monges na França, quando não verem mais relíquias
46 Mat., cap. 10, v. 1; Marc., cap. 3, v. 15; Luc., cap. 9, v. 1.
268
Apêndice
ridículas, quando não mais pagarem ao bispo de Roma um
tributo vergonhoso, quando até desprezarem suficientemente
a consubstancialidade e a procissão do Santo Espírito pelo Pai
e pelo Filho, e transubstanciação, para não falar mais; quando
esses mistérios restarem enterrados na Suma de São Tomás, e
quando os desprezíveis teólogos forem reduzidos ao silêncio,
vocês ainda permaneceriam cristãos; em vão você iria querer
ir mais longe, isso é o que você nunca obteria. Uma religião de
filósofos não é feita para os homens.
Sr. Fréret – Est quodam prodire tenus, si non datur ultra [Podemos
progredir um tanto, embora nos é dado ir além]47.
Eu lhe direi com Horácio: seu médico nunca lhe dará a visão
do lince, mas poderá remover uma bélida de seus olhos. Nós
gememos sob o peso de cem quilos de correntes, poderemos
ser liberados de três quartos. A palavra do cristão prevaleceu,
e permanecerá; mas pouco a pouco adoraremos a Deus sem
mistura, sem lhe dar nem mãe, nem filho, nem pai putativo,
sem dizer que ele morreu por uma tortura infame, sem acreditar
que estamos fazendo deuses com farinha, enfim sem aquele
amontoado de superstições que colocam os povos civilizados
tão abaixo dos selvagens. A adoração pura do Ser Supremo
começa a ser hoje a religião de todas as pessoas honestas; e em
breve descerá para uma parte sana do próprio povo.
O abade – Você não teme que a incredulidade (cujo imenso
progresso eu vejo) seja funesta ao povo descendo até ele, e
o leve ao crime? Os homens estão sujeitos a paixões cruéis
e infortúnios horríveis; eles precisam de um freio que os
retenham, e um erro que os console.
Sr. Fréret – O culto racional de um Deus justo, que pune e
recompensa, sem dúvida traria felicidade à sociedade; mas
quando esse conhecimento salutar de um Deus justo é
desfigurado por mentiras absurdas e superstições perigosas,
então o remédio se transforma em veneno, e o que deveria
assustar o crime o encoraja. Um vilão que não raciocina senão
47 Horácio, Epístolas, Livro I, Ep. I, vers 32.
269
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
pela metade (e há muitos desse tipo) seguidamente ousa
negar o Deus do qual lhe pintaram um quadro revoltante.
Outro vilão, que tem grandes paixões em uma alma fraca, muitas
vezes é convidado à iniquidade pela certeza do perdão que os
sacerdotes lhe oferecem. De qualquer multidão de crimes que
você está contaminado, confesse-se a mim, e tudo será perdoado
pelos méritos de um homem que foi pendurado na Judéia há
muitos séculos. Mergulhe, depois disso, em novos crimes sete vezes
sessenta e sete vezes, e tudo será perdoado novamente. Isso não é
verdadeiramente induzir à tentação? Isso não é para aplainar
todas as vias da iniquidade? A Brinvilliers não confessou cada
envenenamento que cometeu? Luís XI não se valia do mesmo?
Os antigos tinham, como nós, sua confissão e suas expiações;
mas não se era expiado por um segundo crime. Ninguém
perdoou dois parricídios. Pegamos tudo dos gregos e dos
romanos e estragamos tudo.
O inferno deles era impertinente, confesso; mas nossos
demônios são mais estúpidos que suas fúrias. Essas fúrias não
eram condenadas; eram consideradas carrascos, e não vítimas
da vingança divina. Ser ao mesmo tempo carrascos e pacientes,
queimadores e queimados, como são nossos demônios, é uma
contradição absurda, digna de nós, e ainda mais absurda que
a queda dos anjos, esse fundamento do cristianismo, não se
encontra nem no Gênesis, nem no Evangelho. É uma antiga
fábula dos brâmanes.
Enfim, senhor, todos riem hoje do seu inferno, porque é
ridículo; mas ninguém riria de um Deus remunerador e
vingativo, de quem esperaria a recompensa da virtude, de
quem temeria o castigo do crime, ignorando a espécie dos
castigos e recompensas, mas estando persuadido de que os
haverá, porque Deus é justo.
O conde – Parece-me que o Sr. Fréret deixou bem claro como
a religião pode ser um freio salutar. Eu quero tentar provar a
você que uma religião pura é infinitamente mais consoladora
que a sua.
270
Apêndice
Há doçuras, você diz, nas ilusões das almas devotas, eu o creio.
Há também algumas nos manicômios. Mas que tormento
quando essas almas vêm à se esclarecer! Em que dúvida e
em que desespero certas freiras passam seus dias tristes;
você testemunhou, você mesmo me contou: os claustros são
a morada do arrependimento; mas, especialmente entre os
homens, um claustro é o antro da discórdia e da inveja. Os
monges são condenados voluntários que lutam remando juntos;
Exceto um número muito pequeno que é verdadeiramente
penitente ou útil. Mas, na verdade, Deus colocou o homem
e a mulher sob a terra para que eles arrastassem suas vidas
em masmorras, separados um do outro para sempre? É este o
propósito da natureza? Todo o mundo grita contra os monges;
e tenho pena deles. A maioria deles, ao sair da infância, fez
o sacrifício de sua liberdade para sempre; e de cem há pelo
menos oitenta que secam na amargura. Onde estão esses
grandes consolos que sua religião dá aos homens? Um rico
benfeitor é consolado, sem dúvida, mas é por seu dinheiro,
não por sua fé. Se ele desfruta de alguma felicidade, ele a
experimenta apenas violando as regras de seu estado. Ele é
feliz apenas como um homem do mundo, e não como um
homem da igreja. Um pai de família, sábio, resignado a Deus,
apegado ao seu país, rodeado de filhos e amigos, recebe de
Deus bênçãos mil vezes mais sensíveis.
Além disso, tudo o que você poderia dizer em favor dos méritos
de seus monges, eu o diria com muito mais razão dos dervixes,
dos marabus, dos faquires, dos bonzos. Eles realizam penitências
cem vezes mais rigorosas; eles se dedicaram a austeridades
mais terríveis; e essas correntes de ferro sob as quais estão
curvados, esses braços sempre estendidos na mesma posição,
essas terríveis macerações, ainda não são nada em comparação
com as jovens da Índia que se queimam na fogueira de seus
maridos, na louca espera de renascerem juntos.
Portanto, não se gabe mais das dores ou consolações que
a religião cristã nos faz experimentar. Admita abertamente
que de forma alguma se aproxima do culto razoável que
271
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
uma família honesta presta ao Ser Supremo sem superstição.
Largue lá as masmorras dos conventos; largue lá seus mistérios
contraditórios e inúteis, objeto de riso universal; pregue Deus
e a moralidade, e eu lhe respondo que haverá mais virtude e
mais felicidade na terra.
A condessa – Sou bem desta opinião.
Sr. Fréret – E eu também, sem dúvida.
O abade – Ah, bem! Vejo que é preciso contar meu segredo, eu
também sou.
Em seguida, chegaram o presidente das Maisons, o abade de
Saint-Pierre, Sr. Dufay, Sr. Dumarsais; e o abade de SaintPierre leu, de acordo com seu costume, seus pensamentos
matinais, sobre os quais se poderia fazer um bom livro.
Pensamentos Tirados do sr. o abade de St. Pierre
A maioria dos príncipes, ministros, homens de alta posição,
não tem tempo para ler; desprezam os livros e são governados
por um grande livro que é o túmulo do senso comum.
Se soubessem ler, teriam poupado o mundo de todos os
males que a superstição e a ignorância causaram. Se Luís XIV
soubesse ler, não teria revogado o édito de Nantes.
Os papas e seus capangas acreditaram tanto que seu poder
não se fundava senão na ignorância, que sempre impediram a
leitura do único livro que anuncia sua religião; eles disseram:
esta é a sua lei, e nós o proibimos de lê-la; você só saberá
o que nos dignamos a lhe dizer. Essa tirania extravagante é
incompreensível; ela existe, no entanto, e qualquer Bíblia na
língua que se fala é proibida em Roma; só é permitido em
uma língua que não é mais falada.
Todas as usurpações papais têm por pretexto um miserável
jogo de palavras, uma equivocidade das ruas, um ponto que
faz Deus dizer, e pelo qual se açoitaria um estudante: Tu és
Pedro, e sobre esta pedra fundarei minha assembleia.
Se soubessem ler, veriam evidentemente que a religião não tem
feito senão mal ao governo; ela tem feito muito mais na França,
272
Apêndice
pelas perseguições contra os protestantes; pelas divisões em não
sei que bula, mais desprezível que uma canção do Pont-Neuf;
pelo ridículo celibato dos padres; pela preguiça dos monges;
pelos maus negócios feitos com o bispo de Roma, etc.
Espanha e Portugal, muito mais embrutecidos que a França,
sofrem quase todos esses males, e têm em cima a inquisição,
que, supondo um inferno, seria o que o inferno teria produzido
de mais execrável.
Na Alemanha, há disputas intermináveis entre as três seitas
admitidas pelo Tratado de Vestefália: os habitantes dos países
imediatamente submetidos aos padres alemães são brutos
que mal têm o que comer.
Na Itália, essa religião que destruiu o Império Romano deixou
apenas miséria e música, eunucos, arlequins e padres. Eles
enchem de tesouros uma pequena estátua negra chamada
Madona de Loreto; e a terra não é cultivada.
A teologia está para a religião como os venenos estão para os
alimentos.
Tenha templos onde Deus seja adorado, seus benefícios
cantados, sua justiça anunciada, virtude recomendada: todo
o resto é espírito partidário, facção, impostura, orgulho,
avareza, e deve ser proscrito para sempre.
Nada é mais útil ao público do que um cura que mantém um
registro de nascimentos, que presta assistência aos pobres,
consola os doentes, enterra os mortos, traz paz às famílias e
que é apenas um mestre da moral. Para colocá-lo em condições
de ser útil, ele deve estar acima da necessidade, e não deve ser
possível desonrar seu ministério alegando contra seu senhor
e seus paroquianos, como fazem tantos padres do país; que
sejam empenhados pela província, segundo a extensão da
sua paróquia, e que não tenham outro cuidado senão o de
cumprir os seus deveres.
Nada é mais inútil do que um cardeal. O que é uma dignidade
estrangeira, conferida por um padre estrangeiro? Dignidade
sem cargo, e que quase sempre vale cem mil coroas por ano,
273
o jantar do Conde de boulainvilliers
voltaire
enquanto um padre do campo não tem os meios para ajudar
os pobres nem os meios para socorrer a si mesmo.
O melhor governo é, sem dúvida, aquele que admite apenas o
número de sacerdotes necessários; pois o supérfluo é apenas
um fardo perigoso. O melhor governo é aquele em que os
padres são casados, porque são melhores cidadãos; dão filhos
ao Estado e os criam com honestidade: é onde os padres ousam
pregar apenas a moral; pois se eles pregam controvérsia, isso
é soar o sino da discórdia.
Pessoas honestas leem a história das guerras de religião
com horror; eles riem das disputas teológicas como da farsa
italiana. Tenhamos, portanto, uma religião que não faça você
estremecer ou rir.
Houve teólogos de boa-fé? Sim, como houve pessoas que
acreditaram ser feiticeiros.
Sr. Deslandes, da Academia de Ciências de Berlim, que
acaba de nos dar a História da Filosofia, diz, no volume III,
página 299: A faculdade de teologia me parece o corpo mais
desprezível do reino; ela se tornaria uma das mais respeitáveis
se se limitasse a ensinar Deus e a moralidade. Seria a única
maneira de expiar suas decisões criminosas contra Henrique
III e o grande Henrique IV.
Os milagres dos mendigos no Faubourg Saint-Médard
poderiam ir longe, se o senhor cardeal de Fleury não os
ordenar. Devemos exortar a paz e defender estritamente os
milagres.
A monstruosa bula Unigenitus ainda pode perturbar o reino.
Cada bula é um ataque à dignidade da coroa e à liberdade da
nação.
A canalha criou a superstição; os honestos a destroem.
Buscamos aperfeiçoar as leis e as artes; podemos esquecer a
religião?
Quem começará a purificá-la? São os homens que pensam. Os
outros seguirão.
274
Apêndice
Não é vergonhoso que os fanáticos tenham zelo e os sábios
não? É preciso ser prudente, mas não tímido.
275
Esta obra foi composta pela Argentum Nostrum em
Charter, Eagle Lake, Charter BT, Davys Dingbats
1 e Book Antiqua, em plataforma PDF para a
EdUECE e o PPGFil-UECE em fevereiro de 2024.
978-85-7826-911-1
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