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TRANSFORMAÇÕES DA LAICIDADE: ESTADO, RELIGIÃO E SOCIEDADE EM RELAÇÃO ORGANIZADORES: EMERSON GIUMBELLI MARCELO CAMURÇA DOI livro – 10.48006/978-65-87289-28-1 1 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA COMISSÃO EDITORIAL DE LIVROS CIENTÍFICOS DA ABA – CELCA (GESTÃO 2023-2024) DIRETORIA (GESTÃO 2023-2024) Coordenador: Carlos Alberto Steil (UFRGS; Unicamp) Vice-coordenadora: Tânia Welter (Instituto Egon Schaden) Presidente Andréa Luisa Zhouri Laschefski (UFMG) Integrantes: Edimilson Rodrigues (FAMES) Eva Lenita Scheliga (UFPR) Marcelo Moura Mello (UFBA) Martina Ahlert (UFMA) Nathanael Araújo da Silva (Unicamp) CONSELHO EDITORIAL Andrea Zhouri (UFMG) Antonio Augusto Arantes Neto (Unicamp) Carla Costa Teixeira (UnB) Carlos Guilherme Octaviano Valle (UFRN) Cristiana Bastos (ICS/Universidade de Lisboa) Cynthia Andersen Sarti (Unifesp) Fabio Mura (UFPB) Jorge Eremites de Oliveira (UFPel) Maria Luiza Garnelo Pereira (Fiocruz/AM) María Gabriela Lugones (Córdoba/Argentina) Maristela de Paula Andrade (UFMA) Mónica Lourdes Franch Gutiérrez (UFPB) Patrícia Melo Sampaio (Ufam) Ruben George Oliven (UFRGS) Wilson Trajano Filho (UnB) Vice-Presidente Sônia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos (UFPA) Secretária Geral Deborah Bronz (UFF) Secretária Adjunta Alexandra Barbosa da Silva (UFPB) Tesoureiro Geral Guilherme José da Silva e Sá (UnB) Tesoureiro Adjunto Gilson José Rodrigues Junior (IFRN) Diretora Flávia Melo da Cunha (UFAM) Diretor Osmundo Santos de Araújo Pinho (UFRB) Diretor Tonico Benites (CEFPI-MS) Diretora Denise Fagundes Jardim (UFRGS) www.portal.abant.or.br UNB - Campus Universitário Darcy Ribeiro - Asa nortePrédio do ICS - Instituto de Ciências SociaisTérreo - Sala AT-41/29 - Brasília/DFCEP: 70910-900 2 TRANSFORMAÇÕES DA LAICIDADE: ESTADO, RELIGIÃO E SOCIEDADE EM RELAÇÃO ORGANIZADORES: EMERSON GIUMBELLI MARCELO CAMURÇA Brasília 2024 3 Copyright ©, 2024 dos autores Organização Emerson Giumbelli e Marcelo Camurça Revisão Izabella Bosisio Diagramação Osmair Pereira Capa Júlia Rohden Giumbelli Apoio Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bianca Mara Souza –Bibliotecária - CRB-14/1587 T772 Transformações da laicidade : estado, religião e sociedade em relação / Organizado por Emerson Giumbelli e Marcelo Camurça. -- Brasília : ABA Publicações, 2024. 517p. : PDF ; 3,8 MB. Inclui índice, bibliografia e informação dos autores. ISBN 978-65-87289-28-1 1. Diversidade religiosa. 2. Estado. 3. Laicidade (Brasil e França). 4. Sociedade. I. Giumbelli, Emerson. (org.), II. Camurça, Marcelo. (org.). III. Título. DOI Livro 10.48006/978-65-87289-28-1 CDD 306.6 Índice para catálogo sistemático: 1. Instituições religiosas – sociologia da religião - 306.6 4 SUMÁRIO 9 Apresentação: laicidades em transformação Emerson Giumbelli / Marcelo Camurça 39 PARTE I: LAICIDADES NA FRANÇA E NO BRASIL Um esboço de comparação entre a laicidade na França e no Brasil: dinâmica de caminhos cruzados Marcelo Camurça 63 Os valores contra as liberdades: o integralismo laico na França contemporânea Philippe Portier 87 As duas faces da laicidade do presidente Macron: o protestantismo atesta e contesta Jean-Paul Willaime 115 PARTE II: LAICIDADE SOB BOLSONARO Bolsonaro e a laicidade brasileira Ari Pedro Oro 143 O ativismo evangélico conservador no Brasil: uma análise acerca da defesa da família tradicional no campo institucional dos direitos humanos Paula Bortolin 173 “Entregueis o Brasil ao Imaculado Coração”: as consagrações do Brasil ao Imaculado Coração de Maria e as transformações das relações entre Estado, sociedade e religião Juliano Florczak Almeida 191 A laicidade brasileira “em tempos de Bolsonaro”: perspectivas de cientistas sociais brasileiros Claude Petrognani 5 221 PARTE III: ENTENDIMENTOS DA LAICIDADE Cristianismo cultural e laicidade colaborativa no governo Bolsonaro Ronaldo de Almeida / Paula Bortolin / João Moura 243 A laicidade segundo o Supremo Tribunal Federal brasileiro: observações sobre o julgamento acerca do ensino religioso confessional Emerson Giumbelli 273 Ensino religioso e educação moral: uma laicidade experimental Eduardo Dullo / João Vitor Gavioli 293 Laicidade com aspas: interpretações e reinterpretações de uma noção em disputa nos processos judiciais movidos pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) Sabrina Testa 325 PARTE IV: ENCADEAMENTOS ENTRE ESTADO E SOCIEDADE Laicidade às margens: reflexões sobre religião e violência em contextos extremos Carly Machado 357 Ressocializar pelo coaching: apontamentos sobre o religioso e o secular na institucionalização do Método CIS como política pública de segurança no Brasil Taylor de Aguiar 379 O fomento de uma laicidade do diálogo nas escolas em resposta à expansão do discurso religioso de viés fundamentalista no Brasil Jóvirson Milagres 405 PARTE V: RELIGIÃO E DINÂMICAS SOCIAIS Nas trilhas da imanência: Mindfulness, saúde mental e espiritualidade secular Isabel Cristina de Moura Carvalho / Giovanna Paccillo 6 431 Espiritualidades fora da norma e a centralidade das margens na Europa contemporânea Alfonsina Bellio 455 Teologias da prosperidade: perspectiva pós-colonial e tipologia Sébastien Fath 491 As viagens dos santos selvagens: histórias entrelaçadas da migração venezuelana Cantaura La Cruz 513 AUTORAS E AUTORES DOS CAPÍTULOS 7 ENSINO RELIGIOSO E EDUCAÇÃO MORAL: UMA LAICIDADE EXPERIMENTAL1 Eduardo Dullo João Vitor Gavioli A Primeira República (1889-1930), foco temporal deste texto, é usualmente relegada ao esquecimento, como se a formação da nação tivesse seu início apenas na década de 1930, durante o período Vargas. Por muito tempo, esse período foi nomeado pela literatura como “República Velha”, indicando algo que deveria ser deixado para trás. Este viés histórico é também reproduzido por parte significativa da literatura que se dedica ao tema da laicidade, produzindo um curioso hiato temporal nos estudos sobre o tema no Brasil. Fala-se, recorrentemente e com muita qualidade, da transição da monarquia para a república em fins do século XIX para discutir o término do regime do padroado e, na sequência, discute-se as transformações ocorridas a partir da década de 1930, quando a Igreja Católica conseguiu mais acesso e aceitação entre os políticos no governo do Estado, além das atuações da Liga Eleitoral Católica, o retorno do ensino religioso e a instalação do Cristo Redentor no Rio de Janeiro em 1931 (p.ex., Cecchetti, 2016; Cecchetti; Santos, 2022; Giumbelli, 2008a). Esse hiato de pesquisas sobre as quatro décadas desse período levou a uma interpretação equivocada sobre a Primeira República, em que prevaleceu a percepção de ruptura radical entre Estado e Igreja Católica, chamada por alguns de “laicismo”. Uma exceção na literatura é o trabalho de Leite (2011), que se contrapõe à interpretação desse “laicismo” na Primeira República. Entretanto, sua interpretação caminha na direção oposta, de sugerir que não há uma significativa distinção nesse período em relação ao que é estabelecido pela Constituição de 1934 sob Vargas, concluindo que “o que se verifica é que, na prática, a República brasileira conheceu apenas um modelo de laicidade. […] [O] que se impôs na realidade foi um modelo de cooperação e proximidade entre Estado e religião, com o previsível destaque à religião majoritária” (Leite, 2011, p. 51). O presente capítu1 Este trabalho é parte da pesquisa financiada com a Bolsa em Produtividade em Pesquisa do CNPq (2021-2024), recebida por Eduardo Dullo. 273 lo tem por objetivo dar mais um passo para suprir essa lacuna, porém discordando tanto das interpretações do laicismo de ruptura radical quanto do modelo único de laicidade. A perspectiva aqui adotada é a de uma genealogia da formação do secular (Asad, 2021; Dullo, 2012, 2013), capaz de atentar para as ambivalências, contradições, instabilidades e disputas políticas próprias das dinâmicas sócio-históricas que dotam cada cenário de uma particularidade. O argumento mais amplo sugerido aqui, seguindo as perspectivas genealógicas (Foucault, 1979), é o de que tais dinâmicas não configuram uma fundação de modelo único, uma matriz de laicidade que será reproduzida e reiterada desde a Primeira República, e, sim, que podemos ver uma disputa e invenção de matrizes que, entretanto, não se estabilizaram no longo prazo – o que pode ser pensado como um dos efeitos da ruptura institucional ocorrida em 1930. Assim, sugerimos que a Primeira República é caracterizada pela experimentação acerca da laicidade, ou melhor, uma laicidade experimental2. A excelente literatura sociológica e antropológica brasileira sobre a laicidade (Camurça, 2017; Giumbelli, 2008b, 2013; Mariano, 2011; Montero, 2015; 2018; Oro, 2011, 2023) permanece presa a este viés temporal, enfatizando o tempo presente sem uma perspectiva histórica que observe um momento de intensa experimentação social, com uma fértil imaginação de futuro para um país que havia se tornado uma República laica e ainda buscava meios para tornar socialmente efetiva no cotidiano essa realidade. Por essa razão, consideramos o aspecto mais fascinante do material que trabalharemos neste texto o de sua imaginação e experimentação, sobretudo de coisas que não vieram a ser ou que não se concretizaram no longo prazo como projetado, abrindo novos olhares para as transformações da laicidade no decorrer da história. Nessa direção, sugerimos que um foco de pesquisa na laicidade nos leva além das relações entre Igreja(s) e Estado, isto é, que trabalhar com 2 Se Leite (2011) argumenta que o “ensino leigo” não era realidade em diversos estados (como Rio Grande do Sul e Minas Gerais), cabe lembrar que os estados tinham suas próprias constituições nesse período e que mesmo esses casos eram resultados de ambivalências e experimentações locais. A carta citada pelo autor acerca do ensino religioso no RS é bastante elucidativa dessa dinâmica, na medida em que o ensino religioso foi implementado para evitar a evasão dos jovens da escola pública laica para escolas católicas, nas quais recebiam a almejada formação para a comunhão. Já a situação em MG era resultante da articulação dos intelectuais católicos cariocas e mineiros presentes na Associação Brasileira de Educação (ABE) e foi acompanhada em detalhes por Fernando de Azevedo, tanto no Congresso da ABE quanto ao manter em sua pasta (Acervo IEB/USP) recortes de jornais acerca do debate e da decisão, agindo, como veremos, para impedir esse evento no Distrito Federal. 274 as controvérsias sobre a pertinência do ensino religioso nas escolas públicas laicas por ocasião da Reforma Fernando de Azevedo no Distrito Federal (na época, o Rio de Janeiro) dos anos 1927 a 1930 envolve falar dos anseios e projetos de nação, das tentativas de consolidar um “povo” para o Brasil (A Reforma […], 1927; O Ensino […], 1928; O Novo […], 1928; Wurth, 1928). Em outras palavras, podemos notar que há um problema recorrente no debate público sobre a laicidade brasileira: à separação formal entre Igreja(s) e Estado corresponde um cotidiano em que a experiência vivida e a subjetividade da população é marcada pela religiosidade. O questionamento entre qual relação deveria existir entre Estado e sociedade civil é, portanto, central. Porém, no contexto da Primeira República, essa sociedade civil era percebida como muito menos plural do que no século XXI. A disputa é pela manutenção ou pela derrocada de uma hegemonia católica, que silenciava vozes dissidentes e plurais, como as de religiões afro-brasileiras ou ateias. Assim, estamos debatendo não apenas o conceito de laicidade, e, sim, o que Talal Asad chamou de “secularismo”, um projeto sociopolítico composto de ideias específicas sobre o papel e o lugar da religião na modernidade. Esse projeto da Primeira República, argumentamos, traz a marca de uma primeira formação: modernidade, nation-building, democracia e laicidade eram temas que estavam na ordem do dia, mas que não estavam minimamente estabilizados em seus contornos e fundamentos. Neste texto, discutiremos a pretensão desse projeto em formar a sociedade civil brasileira em sua secularidade3. O presente capítulo está estruturado para seguir uma das controvérsias públicas4 relacionadas à educação: a do ensino da moralidade necessária para formar a população desejada para a nação. Essa controvérsia pode ser encontrada no material histórico arquivado no Acervo Fernando de Azevedo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP)5, que contempla dez álbuns de recortes 3 Um aspecto central do projeto moderno de formação da nação envolveu a dimensão biológica, em termos raciais, eugênicos e higiênicos (Seyferth, 2020). Não adentraremos esse tópico neste momento, mas é importante salientar sua centralidade, pois desde a concepção arquitetural dos prédios para as escolas, passando pela inserção dos esportes, ensino de higiene bucal e educação sexual, tudo demonstra um verdadeiro complexo projetado como forma de governo biopolítica de população (Foucault, 2023). 4 Para uma proposição sobre o estudo com base em controvérsias públicas, cf. Montero (2015) e Dullo (2015). 5 A consulta a esse material somente pode ser feita no local, mas é possível pesquisar a catalogação no site disponível em: https://www.ieb.usp.br/acervo/. Acesso em: 1º abr. 2023. 275 dos jornais dos anos 1927 a 1929, com um total de 8.329 matérias de jornal. Esses álbuns foram montados pelo próprio Fernando de Azevedo, reunindo todas as matérias que se relacionavam com a reforma educacional em andamento sob sua coordenação6. Após cuidadosa leitura desse material jornalístico e de outros inúmeros documentos do Acervo Fernando de Azevedo (como correspondências, manuscritos e outros – o acervo comporta mais de 17 mil documentos), identificamos o desenvolvimento dessa controvérsia pública com um desfecho inesperado e ainda não apresentado pela literatura especializada. Aqueles que promoviam a Reforma na educação, como o Diretor da Instrução Pública, Fernando de Azevedo, e que eram identificados como parte de um grupo de intelectuais associados aos ideários liberais, julgavam que o ensino da moral era o da moralidade do progresso, do civismo e da ciência (cf. Carvalho, 1998). Aqueles que almejavam uma nação católica consideravam que essa moral deveria ser transmitida pelo ensino religioso confessional (católico) nas escolas públicas (Ensino […], 1929). Essa separação, entretanto, é muito mais ambígua, pois os agentes católicos com frequência adotavam as palavras e pautas de seus adversários e as preenchiam com seus valores (Kalenda, 2021, p. 211-217)7. Veremos, portanto, que, diante das pressões dos católicos para que o ensino religioso fosse estabelecido, os reformadores precisaram intervir tanto no debate público quanto nas mais altas esferas decisórias e terminaram por concluir o embate com uma “solução de compromisso”: a educação moral das crianças tendo como arcabouço o então recente escotismo, visto por reformadores como não religioso e por católicos como uma transmissão dos valores cristãos. Com isso, nosso argumento é o de que nesta laicidade experimental, justamente por não existir uma matriz estabilizada, uma mesma prática social pode ser interpretada por ambos os lados como adequada aos seus projetos morais. 6 Ainda que seja relevante em termos metodológicos questionarmos a autoria da fabricação dos acervos históricos e as interferências políticas que daí possam advir, ressalto que este não é o objetivo deste texto, cujos autores estão cientes desse problema. 7 Kalenda (2021) demonstra como, nos jornais católicos dos anos 1920, se formulou essa estratégia de cooptação das palavras e pautas, sobretudo ao conceberem um “feminismo católico” e uma “revolução católica” que reforçavam as posições tradicionais da mulher e a harmonia social hierárquica entre pobres e ricos. Para a posição do Pe. Leonel Franca, SJ, sobre o manifesto educacional dos Escolanovistas, cf. (Franca, 1954a). Para o desenvolvimento das ações de leigos católicos e sua relação com a modernidade, cf. Portantiolo Maia e Pinto Sales (2019). 276 A Reforma no Distrito Federal (RJ): educacional e moral O “estrangeiro” paulista, como Fernando de Azevedo (1894-1974) foi chamado por setores cariocas quando nomeado Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal (Rio de Janeiro), assumiu com o compromisso e a intenção de realizar uma grande reforma no sistema educacional. Sua posição, bem como total autonomia e liberdade política, foi assegurada pelo prefeito Antonio Prado Jr. e em muitas vezes cobrada pelo Diretor para que permanecesse no cargo. Após um recenseamento da situação escolar, um procedimento inovador naquele momento em que o país não realizava ainda as pesquisas censitárias, Fernando de Azevedo encaminhou seu projeto de reforma. O cenário era marcado por uma intensa inspiração na educação moderna promovida em países europeus (como França, Inglaterra, Alemanha) e nos Estados Unidos da América, que era contrabalançada por fortes convicções, pertencimentos e alianças locais. O próprio Fernando de Azevedo era descrito como marcado pela sua formação humanística clássica greco-romana que não descuidava do corpo para trabalhar a mente (Griecco, 1927), embora não fosse enfatizado que boa parte de sua erudição havia sido formada nos bancos escolares jesuíticos (tanto no Colégio quanto ao adentrar a Companhia de Jesus como noviço, na qual permaneceu por cinco anos). Diferentes parcelas da população colocaram-se como atores fundamentais do debate, ainda que a participação na controvérsia pública, ocorrida nos jornais da época, estivesse disponível apenas para uma minoritária elite alfabetizada e intelectualizada – e majoritariamente masculina. Os dois principais atores coletivos na cena pública foram a Igreja Católica, que se manifestava por meio de intelectuais leigos, como os pertencentes ao Centro Dom Vital – Jackson de Figueiredo falece em 1928, e Alceu Amoroso Lima assume a direção nesse ano, durante os debates da Reforma (Arduini, 2015) –, e o grupo dos intelectuais liberais ao redor de Fernando de Azevedo, que passou a encabeçar o movimento da Escola Nova, sendo o principal redator do Manifesto dos Pioneiros em 1932 (Nagle, 2009; Vidal, 1994). Sendo estes últimos os propositores da mudança, ao ocupar formalmente posições no Estado, 277 coube à primeira o papel de reação e de contenção dessas mudanças, com vistas a não perder a posição de responsável pela formação das almas da população. Assim, durante todo o processo de aplicação dos novos métodos educacionais pela Diretoria de Instrução Pública do DF (e mesmo nos anos posteriores, já na década de 1930 com o governo de Getúlio Vargas), a Igreja, por meio de representantes oficiais (como sacerdotes) e de intelectuais leigos, se colocou como oposição central nos debates, refletindo sobre suas diferentes formas de atuação moral e educacional. Entretanto, as posições e os fóruns de debate não estavam segregados. A Associação Brasileira de Educação (ABE), por exemplo, congregava as mais diversas posições, o que resultava em embates e argumentações também nos seus Congressos anuais (Carvalho, 1998; cf. Azevedo, 1971, p. 98-99, para sua própria nomeação dos intelectuais aliados a ele). O primeiro desses Congressos ocorreu em 1927, em Curitiba; o segundo em Belo Horizonte, em 1928 (quando o governador de MG anunciou o retorno do ensino religioso no estado); e o terceiro em São Paulo, em 1929. Personagens como Everardo Backheuser, que colaborava regularmente para a Revista A Ordem, do Centro Dom Vital, eram assíduos no embate da ABE e, durante parte significativa dessa controvérsia, era o presidente da Associação dos Professores Católicos do Estado do Rio de Janeiro (Jardim, 1929)8. Desde o início, a implementação do projeto proposto enfrentou dificuldades que demandavam uma transformação da mentalidade e da moralidade pública. Como afirmou Azevedo (1971, p. 100): Eu me havia proposto modificações radicais de estrutura, de mentalidade e de métodos e técnicas de ensino. Para alcançar êsses objetivos, tinha de forçosamente começar pela reorganização da escola destinada à formação de professôres. Era preciso atacar a questão pela raiz. E sob todos os aspectos. Materiais, estruturais e pedagógicos. Sua luta pela “moralização” do ensino começou, portanto, pela moralização do trabalho dos professores, sobretudo do turno da noite, que “não ensinavam em geral cousa alguma, e, – o que é pior e mais escandaloso, – não poucos só compareciam às aulas (quando compareciam), 8 Álbum 5, matéria 496. 278 para ler jornais, sentados e com os pés sôbre a mesa, enquanto os alunos conversavam, discutiam ou entravam em lutas corporais” (Azevedo, 1971, p. 101). Sua ação foi a de transferir de escola esses professores, para obrigá-los a pedir demissão por não quererem ser realocados em um lugar distante. Porém, a questão da moral era central também na sua visão de mundo e sua concepção da vida social. Penna (1987, p. 7) afirma, citando o próprio Azevedo ao final, que, para ele, “nessa época, a chave do problema social estaria em uma reforma moral e religiosa, endossando a encíclica De Rerum Novarum, de Leão XIII, ‘profundamente humana porque reduz, em última análise, a questão social a uma questão ética’”. A transformação de mentalidade almejada era pensada no contexto de crescente urbanização e industrialização e incluía os esforços de formação de mão de obra minimamente qualificada em termos de conhecimento e racionalidade para o trabalho, mas sem descuidar do objetivo ético-político de formação para a cidadania. A educação nova, nas suas bases, na sua finalidade, e nos seus métodos, não podia, pois, fugir, de um lado, às ideias de igualdade, de solidariedade social e de cooperação que constituem os fundamentos do regime democrático, e por outro lado, às ideias de pesquisa racional, trabalho criador e progresso científico, que guiam a sociedade cada vez mais libertada da tirania das castas e da servidão dos preconceitos (Azevedo apud Penna 1987, p. 16-17). O próprio Azevedo formulou sua posição a respeito das ideias presentes na Reforma em seu livro Novos caminhos e novos fins: a nova política de educação no Brasil, enfatizando que a questão ético-moral era tão central que não foi concebido um ensino em separado para o tópico, inexistindo uma disciplina de “instrução moral e cívica”. Para ele, “não há atividade escolar […] que não dê ensejo a uma lição de moral ou de civismo”, no qual se forma a consciência dos deveres, da responsabilidade e o hábito do trabalho. Essa formação moral dos estudantes deve ocorrer na escola, porque esta é concebida como o ambiente em que o estudante entra em contato com o mundo público e aprende o senso do sacrifício pela comunidade, em contraposição aos valores individualistas. Sua formação moral é dirigida para servir a coletividade nacional, o que ele caracteriza como a “socialização” própria dessa escola nova, 279 na qual “a própria classe, uma democracia em miniatura, apresenta as características essenciais de uma comunidade” (Azevedo, 1958, p. 78). O “entusiasmo pela educação” e depois o “otimismo” (categorias cunhadas por Nagle, 1997) marcavam como a questão educacional era tomada como a principal solução para o problema do país. Sua função prática era vista como essencial para a evolução do Brasil, e o argumento de que se devia tomar conta das riquezas nacionais fomenta essa relação: “precisamos cuidar primeiro da educação da gente, para depois cuidar definitivamente das riquezas da terra” (A festa […], 1927)9 e assim se criava a necessidade de um “Ensino de utilidade Imediata”, a escola primária estaria na posição de ensinar fatos úteis e práticos para vida do estudante. A posição do sexo feminino também teve sua relação debatida com recortes da educação prática, a fundamentação de uma praticidade relacionada às tarefas domésticas e organizacionais do lar eram os focos principais do debate, que teve uma formação em separado chamada de “educação doméstica”, isto é, para a domesticidade entendida de forma racional em sua economia: “Educamos a mulher para atrair, para agradar, preparamo-a com uma certa dose de aguda perspicácia para o encanto dos sentidos e, no entanto, não educamo-a para a felicidade do lar que é o verdadeiro reino” (A remodelação […], 1927)10. Essas posições demonstram o caráter com que era trabalhada a relação entre a reforma educacional e o ensino prático, naquele período. A dimensão técnica, da educação voltada para o trabalho (Educação […], 1929), era central em sua proposta e, ainda que a maioria a entendesse como um passo importante para o sucesso da nação, muitos almejavam uma instrução mais humanística. Em uma das matérias publicadas nesse contexto, o jornalista paulista Sud Mennucci refletiu sobre o assunto, dizendo: “As escolas oficiais não podem esquecer que servem de preferência a população pobre, na sua maioria, daqueles que se destinem, na vida, a operários, artesãos, artífices. Não se tomará como exagero retórico dizer-se que 80% da população seguirá o caminho” (apud Vianna, 1927)11. 9 Álbum 1, nº 352 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 10 Álbum 1, nº 686 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 11 Álbum 1, nº 149 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 280 A defesa da perspectiva da praticidade do ensino público baseava-se muitas vezes em uma relação de fomento de uma educação que se angariava às populações mais pobres. Não entraremos na discussão pormenorizada de uma diferenciação de educação moral para as elites e para a massa popular, existente no período para ambas as posições. A separação entre povo e elite era estruturante do pensamento da época e, aqui, trata-se sobretudo da educação moral a ser oferecida para as massas. Assim, a educação para o trabalho tinha, também, um papel de moralização dos costumes, na medida em que visava à “implementação de um modo de vida moralizado e sanitarizado no qual o trabalho e a família eram modelados por uma série de micro-dispositivos” (Carvalho, 1998, p. 315). Por outro lado, havia aqueles que consideravam que deveria existir um ensino moral específico, uma disciplina como a de ensino religioso, direcionada aos preceitos e valores cristãos. Tratava-se de pensar nos jovens estudantes como futuros trabalhadores sim, mas, sobretudo, como o espírito da nação, que deveria ser moralmente ilibado. Essa posição não era sustentada apenas pelos católicos. O Sr. Langrien, líder do Colégio Batista Americano-Brasileiro no período, abordou a questão: “Não são ainda mais eficientes os nossos programas de ensino, pela demasiada complexidade. Seria, talvez, mister, sem prejuízo do lado intelectual, ampliar tanto quanto possível o lado moral, o mais preponderante na vida e na conduta do homem” (O recenseamento […], 1927)12. O trabalho moral era visto como fundamental na construção de uma reputação ímpar, por parte do estudante, e que era tida como central para a vida em sociedade. Nesse momento inicial do debate, a noção de ensino laico, assegurada por um Estado laico, era uma das fontes principais de discussão. A proposta de Reforma visava formar tendo como base os valores cívicos e era enunciada como parte de uma “democratização” da educação, sobretudo por torná-la obrigatória, ampliando o acesso de uma imensa massa populacional analfabeta. Porém, algumas das questões colocadas discordavam filosófica e teologicamente da possibilidade de fundamentar uma moral em outra coisa que não em Deus. 12 Álbum 1, nº 92 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 281 No primeiro Congresso da ABE, por exemplo, a questão do ensino religioso apareceu por mãos católicas, e encaminhou-se para aprovação no plenário a moção de que deveria ser realizado nas escolas primárias públicas fundado na doutrina católica (Carvalho, 1998, p. 311-314). No entanto, o reformador e pedagogo Lourenço Filho apresentou um substitutivo que alterava a redação para que a “instrução moral, nas escolas primárias, tivesse base na noção de Deus, porém fora de qualquer sectarismo” (Carvalho, 1998, p. 314). Como fica evidente, a solução encontrada visava minimizar os efeitos da votação em plenário, marcada pelo debate público. Os agentes católicos buscavam ocupar essas posições e garantir a legitimidade democrática (pautada na votação de maioria). De maneira similar, o Projeto da Reforma deveria ser primeiramente aprovado no âmbito do Conselho Municipal para poder entrar em execução. Nessa ocasião, o Dr. Jeronymo Penido propôs uma emenda ao Projeto, acrescentando o ensino religioso facultativo nas escolas públicas. A emenda foi aprovada pelo Conselho, gerando intensa disputa na esfera pública e contrariando Fernando de Azevedo, que se manifestou contrário e apelou ao prefeito. Os argumentos que fundamentavam a proposta de Penido eram os de que só a religião (e o catolicismo) poderia constituir uma educação moral verdadeira. Apenas por meio dessa concepção de moral, o indivíduo se tornaria verdadeiramente livre, de fato, para tomar suas decisões. Como já havia colocado Carvalho (1998, p. 43), o que estava em jogo era a produção de uma nacionalidade fundamentada no catolicismo, já manifestada por Jackson de Figueiredo (em publicação de 1921), em que dizia que o “catolicismo é a força de ordem moral e religiosa que arregimenta todas as forças do país” (apud Carvalho, 1998, p. 43). Essa visão era prolongada para interpretar o projeto de Fernando de Azevedo como o de uma criação da nação desprovida de sua essência por meios considerados “autoritários”. O caráter facultativo do ensino religioso era também um importante ponto ressaltado pelos defensores da emenda e, de acordo com eles, essa posição não estaria contrária à Constituição, por não obrigar e, sim, criar a possibilidade de escolha. Esses pontos eram amplamente contrariados pelas personalidades incompatíveis com a proposta; para 282 elas, na realidade, o fato de essa emenda tornar o ensino facultativo poderia resultar em dois problemas: o primeiro seria a abertura para uma educação religiosa que suportasse todas as correntes religiosas (ainda que o debate fosse limitado ao cristianismo), o que era entendido como a criação de uma confusão na mente dos jovens; e o segundo problema é que uma educação religiosa que só abarcasse os fundamentos católicos estaria em contraposição à constituição do Estado brasileiro laico. A emenda, mesmo sendo aprovada em uma sessão do Conselho Municipal, acabou por ser vetada pelo prefeito, com o argumento de não haver nenhuma finalidade coletiva angariada pela proposta: “Os dispositivos vetados alteram a estrutura da lei orgânica e constituem medidas de caráter pessoal” (Falta […], 1927)13. Esse fato, grandemente influenciado pela personalidade de Fernando de Azevedo, resultou na manutenção do caráter proibitório em relação ao ensino religioso. Como parte dos esforços católicos e vendo o caminho da votação democrática fracassar, Everardo Backheuser propôs, por meio da ABE, que fosse feito um inquérito sobre o ensino de moral e o ensino religioso, consultando personalidades eminentes, como ex-presidentes brasileiros, constituintes de 1891, ex-presidentes da Ordem dos Advogados, a respeito de dez quesitos, dos quais citaremos apenas alguns (Grande […], 1928)14: Deve o ensino moral ser feito apenas no lar ou também nas escolas? Pode ou deve o ensino moral ser levado a bom termo independente de qualquer noção de religião ou melhor será que se ligue a noções religiosas? A letra e o espírito de Constituição republicana são contrarios ao ensino, em caracter facultativo, nas escolas publicas, de doutrinas e principios religiosos? Pode ou deve ser proibido ao professor primario ministrar educação religiosa, na sua propria escola, desde que paes ou responsaveis o autorisem e sem perturbação do horario das disciplinas escolares? Attendendo a que catholica é a grande maioria da população brasileira, será vantajosa para a consolidação da moral catholica, dentro das escolas? ou, ao contrário, será a educação catholica da infância prejudicial a essa unidade nacional? 13 Álbum 2, nº 978 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 14 Álbum 4, nº 548 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 283 Articulando uma sequência de perguntas que culminam na centralidade do catolicismo para a formação nacional, o “inquérito” proposto por Backheuser é instrutivo da racionalidade operante. Imediatamente, colocava-se a responsabilidade da educação moral: seria apenas familiar? Caberia ao Estado, em suas escolas? Parece-nos, sabendo da posição católica do formulador dessas perguntas, que a resposta almejada era pela afirmativa: de que caberia primeiramente à família, mas também à escola promover a educação moral das crianças. É curioso que, nesse debate, não tenha sido mencionada a responsabilidade das igrejas em oferecer essa educação, ainda que as perguntas continuassem questionando se essa moral não deveria estar ligada a questões religiosas. E, por fim, direcionando-se para argumentos “liberais” e “democráticos”, como a liberdade de escolha, o caráter facultativo e a decisão da maioria. Entretanto, o Diretor da Instrução Pública era inflexível: não aceitaria o ensino religioso na escola pública e exigiu do prefeito o exercício de seu poder de veto quando da emenda proposta por Penido no Conselho Municipal. Essa postura lhe valeu a alcunha de “autoritário”, irredutível às argumentações e decisões do debate público “democrático” e à mobilização de maiorias por agentes ligados à Igreja Católica. Uma solução de compromisso: o escotismo Com uma relativa derrota no âmbito político, os agentes religiosos se viram na necessidade de uma mudança de atuação. O caráter fundamental das mudanças educacionais foi reafirmado, o combate ao analfabetismo foi reforçado, e uma nova instituição surgiu para recolocar os preceitos morais católicos, de forma inesperada, em pauta. O escotismo formou-se como principal argumento moralizante durante os primeiros meses de 1928 (O Escotismo […], 1928). Considerada “uma forma de educação física, moral e cívica” (Escoteiros […], 1928)15 e “uma escola de educação de virilidade, moral, civismo e fraternidade” capaz de criar “para a família: bom pae - bom filho - bom irmão” e “para a patria: patriota - educador - trabalhador” 15 Álbum 3, nº 822 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 284 (Martins, 1928)16, o escotismo adquiriu centralidade. Ele se tornou ao mesmo tempo um braço moralizante para parte da intelectualidade católica e uma atividade prática de educação física e higiene moral para os intelectuais reformadores da Escola Nova, tendo uniformes padronizados regulamentados pelo Estado e a aceitação do Diretor de Instrução Fernando de Azevedo. Sua organização em “Associação Escolar dos Escoteiros” resultou em diversas medidas a serem tomadas pelas instituições educacionais da época, discutindo regulações sobre a maneira de propagar o escotismo em ambiente escolar e de como essa organização funcionaria no contexto educacional do país. Como trabalho preliminar dessa organização torna-se necessário que, nas escolas, os professores expliquem aos alunos o que é escotismo e, em casa, os pais ou responsáveis por eles, fiquem ao corrente dos fins dessa instituição. A explicação aos alunos deverá ser breve, consistindo em informar que o fundador do escotismo foi o General Baden Powel, que estabeleceu, na Inglaterra, em 1908, e que essa obra tem por fim a educação complementar, do ponto de vista físico, moral e intelectual. Em seguida, o professor explicará o significado de cada um dos artigos do Decálogo. Depois, incumbira cada escoteiro de entregar a seus pais ou responsáveis o folheto explicativo número 2. Após esse trabalho preliminar, trata-se ha de organizar a “Associação Escolar dos Escoteiros”. A terceira etapa será o estabelecimento da “Escola de Instrutores Escoteiros”. Finalmente formar-se-ão os “Núcleos de Escoteiros Escolares” separados por distritos (A sede […], 1928).17 Além da estrutura, a atuação dos ensinamentos dos escoteiros tinha uma forma muito bem definida, os fatos morais estavam sempre em papel de destaque e fomentados por normas religiosas. Tudo se faz por meio de contínuas lições de coisas, ou pelo exemplo pessoal, de modo que, durante esse período da idade se encaminhe a juventude para o bem, sob todas as formas, habitados de religião, sentimentos de honra e responsabilidade, 16 Álbum 6, nº 189 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 17 Álbum 3, nº 814 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 285 horror à mentira, espírito de iniciativa: higiênica, física, mental, generosidade, econômica etc. (Escoteiros […], 1928)18. Nesse mesmo ponto, a educação moral, agora trabalhada pelos grupos escoteiros, passou a constituir a ideia de busca pelo progresso da nação. Esse fato era colocado não de maneira contrária à educação pública, mas, sim, de forma complementar. Sua estrutura era vangloriada como essencial não só para o avanço presente do país, mas também na construção de um povo votante, constituído de uma moral católica, e para bons políticos que iriam dirigir a nação com fé e moral puras. “O pequeno escoteiro que tirou da rua uma casca de laranja, vale como um professor de educação cívica. Se o Brasil tivesse – não estamos exagerando – dez homens de governo com essa mentalidade ele não escorregaria tanto” (Escola […], 1928)19. Conclusão É surpreendente para nós, quase cem anos depois, que o escotismo tivesse essa força e fosse encarado como um programa moral nacional, mas não é algo único do cenário brasileiro. Em seu livro sobre o encontro imperial da Grã-Bretanha com a Índia, van der Veer (2001, p. 83-105) dedica boa parte de seu quarto capítulo ao escotismo. Porém, ali, ao mostrar a origem do escotismo no contexto imperial britânico, ele nos revela que fazia parte da produção da masculinidade racial branca como forma de dominação viril de outros povos, considerados inferiores. Uma das principais preocupações de Baden-Powell ao criar os escoteiros era a deterioração da raça britânica no encontro colonial. O curioso, ele salienta, é que o escotismo se difundiu globalmente, e mesmo os indianos, que eram descritos como afeminados, desejavam ser escoteiros, criando uma curiosa dificuldade para o General Baden-Powell. Mas por qual razão o escotismo alcança tamanha importância? Em primeiro lugar, ele aparece como uma atividade coletiva prática, capaz de criar vínculos entre as crianças e os jovens sob o olhar hierárquico entre eles até o topo, com um adulto. Logo, responde tanto aos anseios 18 Álbum 3, nº 822 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 19 Álbum 4, nº 6 do Acervo Fernando de Azevedo (IEB/USP). 286 católicos quanto dos reformadores, que colocavam centralidade na educação física (e o primeiro livro publicado por Fernando de Azevedo foi sobre esse tema). O mote “corpo são, alma sã” (a sound soul in a sound body) era assumido tanto por Fernando de Azevedo quanto pelo General Baden-Powell, visando mediante o lazer e exercícios físicos garantir a moralização dos costumes das classes populares, sem uma instrução teórica e formal acerca da moral e da ética. Nessa direção, permite, também, que a moralidade e o civismo sejam aprendidos sem que haja uma disciplina em separado, mas por meio de exemplos e atividades, na sequência da preocupação de Azevedo já mencionada no início. Por fim, e como apontou van der Veer (2001, p. 89, tradução nossa), “trata-se de uma organização que não está afiliada a nenhuma igreja, ainda que preenchida pelo moralismo cristão”, solucionando o problema de não corresponder a nenhuma igreja e, portanto, respeitar a letra e o espírito da Constituição laica, ao mesmo tempo mantendo uma fundamentação da moral em preceitos reconhecidos pelos intelectuais católicos. O padre Leonel Franca, SJ, ainda em 1927, louvou o escotismo ao fazer o discurso de inauguração de uma de suas sedes no Rio de Janeiro (cf. Franca, 1954b). Em 1931, em discurso acerca do ensino religioso (após o decreto do governo Vargas), ele comenta: Nos escoteiros onde já se começa a sentir a influência da educação religiosa – Suit God not Yourself – foram mais consoladores os resultados. Em grupos de formação muito recente a proporção dos meninos honestos já se elevava a 58 e 60% enquanto, como vimos, na melhor das escolas não passava de 41%. As seções mais antigas, organizadas, há meses ou 2 anos, já ofereceram um coeficiente de moralidade que atingia 80,4 % e 82,3 % (Franca, 1954c, p. 352). Porém, para nós, a maior surpresa foi perceber esse escorregão do debate público rumo ao escotismo, apoiado e elogiado por ambos os lados. De um questionamento acerca da moralidade e dos fundamentos religiosos da moral, e após seguidas tentativas fracassadas de impor o ensino religioso cristão e católico nas escolas públicas, é no escotismo que se encontra uma solução para a discussão da laicidade no final da década de 1920. Essa situação inesperada é parte crucial da argumenta287 ção levada a cabo neste capítulo, a de que a laicidade na Primeira República deve ser entendida como uma laicidade experimental. Referências bibliográficas A FESTA escolar da paz. A Noite, Rio de Janeiro, 26 maio 1927. ARDUINI, Guilherme Ramalho. Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social (19281945). 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