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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL LAICIDADE À BRASILEIRA: UM ESTUDO SOBRE A CONTROVÉRSIA EM TORNO DA PRESENÇA DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM ESPAÇOS PÚBLICOS Cesar Alberto Ranquetat Júnior Porto Alegre 2012 i UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL LAICIDADE À BRASILEIRA: UM ESTUDO SOBRE A CONTROVÉRSIA EM TORNO DA PRESENÇA DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM ESPAÇOS PÚBLICOS Cesar Alberto Ranquetat Júnior Orientador: Professor Dr. Ari Pedro Oro Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Antropologia Social. Porto Alegre 2012 ii LAICIDADE À BRASILEIRA: UM ESTUDO SOBRE A CONTROVÉRSIA EM TORNO DA PRESENÇA DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM ESPAÇOS PÚBLICOS Cesar Alberto Ranquetat Júnior Tese de doutorado em Antropologia Social BANCA EXAMINADORA Prof. Lélio Nicolás Madero Guigou Facultad de Humanidades/UDELAR-ROU Prof. Ricardo Mariano PPGCS/PUC-RS _____________________________________________________________________ Prof. Emerson Giumbelli PPGAS/UFRGS-RS ______________________________________________________________________ Prof. Ari Pedro Oro PPGAS/UFRSG-RS iii AGRADECIMENTOS Muitas foram as pessoas que de alguma forma colaboraram com esta longa caminhada de confecção e escrita da tese. Em primeiro lugar, agradeço aos meus pais, Cesar e Ivete, pelo apoio emocional e pelo carinho nas horas de dificuldade. Meus irmãos, Petter e Arianne, também foram importantes nesta caminhada, auxiliando-me sempre que eu precisava. Minha namorada, Joice, foi fundamental, me incentivando e me estimulando sempre. Agradeço ao meu orientador professor Ari Pedro Oro pela paciência, educação e aconselhamento. O professor Emerson Giumbelli foi, também, uma presença constante em todo trabalho, emprestando livros, textos, e me dando dicas para aperfeiçoar a tese. Agradeço, ainda, ao professor Ricardo Mariano, pelas conversas, troca de informações e preocupação com o andamento da tese. Por fim, devo agradecimento à Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior - CAPES, pelo recurso financeiro em forma de bolsa. iv Em todo lugar onde os modernos têm que, ao mesmo tempo, construir e se deixar levar por aquilo que os arrebata, nas praças públicas, nos laboratórios, nas igrejas, nos tribunais, nos supermercados, nos asilos, nos ateliês de artistas, nas fábricas, nos seus quartos, é preciso imaginar que tais fe(i)tiches são erigidos como os crucifixos ou as estátuas dos imperadores de outrora. Mas todos, como os Hermes castrados por Alcebíades, todos são destruídos, quebrados a golpes de martelo por um pensamento crítico, cuja longa história nos remeteria aos gregos, que abandonaram os ídolos da Caverna, mas erigiram as Ideias; aos judeus destruidores de Bezerros de ouro, mas construtores do Templo; aos cristãos queimando as estátuas pagãs, mas pintando os ícones; aos protestantes caiando os afrescos mas erguendo sobre o púlpito o texto verídico da Bíblia; aos revolucionários derrubando os antigos regimes e fundando um culto à deusa Razão; aos filósofos que se valem do martelo, auscultando o vazio cavernoso de todo as estátuas de todos os cultos, mas tornando a erigir os antigos deuses pagãos do desejo de poder. Como se pode observar nos dois São Sebastião feitos por Mantegna, em Viena ou no Louvre, os modernos só podem substituir os antigos ídolos que jazem destruídos a seus pés, por uma outra estátua, também de pedra, também sobre um pedestal, mas também quebrada pelo mártir, atravessada por flechas, logo destruída. Para fetiche, fetiche e meio (Bruno Latour, Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches). v RESUMO Este trabalho tem como tema principal a questão da laicidade e, assim, a relação entre Estado, religião e sociedade no Brasil. Para tanto, foca-se empiricamente na descrição e análise da controvérsia acerca da presença de símbolos religiosos em espaços públicos. Essa contenda tem seus primeiros capítulos nos anos finais do Império e no começo do regime republicano, mas vem ganhando maior amplitude e visibilidade nos últimos anos. A controvérsia se expressa, principalmente, por meio de uma série de processos judiciais e administrativos, protestos e pedidos informais que requerem a remoção de cruzes, crucifixos, imagens de santos e capelas de locais públicos. Para alguns agentes, a existência desses símbolos religiosos em órgãos públicos como escolas, universidades, hospitais, tribunais e parlamentos representaria uma ofensa ao princípio republicano e liberal de separação entre Estado e religião. A laicidade do Estado brasileiro estaria sendo violada na medida em que órgãos públicos ostentam símbolos e imagens de uma determinada religião. Por outro lado, os defensores da permanência dos símbolos religiosos reagem a essas demandas argumentando que a sua afixação é já parte de nossa tradição histórica, exprimindo a cultura cristã e católica de nosso país. O que parece estar em jogo nesses casos são diferentes definições e concepções de laicidade, bem como divergentes posicionamentos acerca do papel e do lugar da religião na vida social. Assim sendo, busco mapear os diversos agentes envolvidos nesse embate e suas diversas e conflitantes posturas e argumentos. Procuro, ainda, ressaltar as constantes interações entre o religioso e o secular, e, desse modo, problematizo a noção de que estes são campos plenamente autônomos e diferenciados. De maneira mais geral, busco refletir e examinar criticamente categorias e conceitos analíticos como laicidade, secularização, secularismo e laicismo. Preocupo-me, sobretudo, em expor não apenas as definições e teorias sociológicas e antropológicas já consagradas acerca dessas categorias, mas também como são estas acionadas e utilizadas pelos mais diferentes atores sociais em situações concretas. Por fim, sublinho a constante imbricação ao longo da história brasileira entre o poder estatal “secular” e os símbolos religiosos, que são e foram constantemente mobilizados para afirmar e consolidar a imagem de uma nação cristã e católica. Palavras- chave: Estado laico; Secularismo; Símbolos religiosos, e Catolicismo. vi ABSTRACT This work approaches the question of laity as the main theme and, consequently, the relationship between State, religion and society in Brazil. It empirically focuses on the description and on the analysis of the controversy about the presence of religious symbols in public spaces. This contention had its first chapters at the very end of the Empire and at the beginning of the republican regime, but it has gained greater amplitude and visibility in recent years. The controversy has mainly been expressed by means of a series of judicial and administrative procedures, protests and informal requests requiring the removal of crosses, crucifixes, images of saints and chapels from public places. For some agents, the existence of these religious symbols in public departments such as schools, universities, hospitals, tribunals and parliaments would be an insult to the republican and liberal principle of separation between State and religion. The laity of the Brazilian State has been violated considering that public departments have been displaying symbols and images of a particular religion. On the other hand, the defenders of the permanence of the religious symbols react to those demands by arguing that those displays have already played a role in our historical tradition, expressing the Christian and Catholic culture of our country. What seems to be in question in these cases is the difference among definitions and concepts of laity as well as the divergent positions on the role and on the place of religion in social life. Thus, I try to map the various agents involved in this clash and their diverse and conflicting attitudes and arguments. I also try to emphasize the constant interactions between the religious and the secular fields, as well to problematize their notions of autonomy and differentiation. In a general way, I reflect on and critically examine the analytical categories and concepts such as laity, secularization, secularism, and laicism. I am especially concerned to expose not only the already recognized sociological and anthropological definitions and theories about these categories, but also the way they have been activated and also applied to real situations by all the different social actors. Finally, I wish to emphasize the constant interplay/interconnection/imbrication along the Brazilian history between the "secular" state power and the religious symbols, which are and have been, constantly, mobilized to affirm and to consolidate the image of a Christian and Catholic nation. KeyWords: secular state, secularism, religious symbols, Catholicism. vii SUMÁRIO RELAÇÃO DE FIGURAS..............................................................................................x INTRODUÇÃO...............................................................................................................1 1 A RELIGIÃO NA MODERNIDADE: SECULARIZAÇÃO, SECULARISMO e LAICIDADE..................................................................................................................16 1.1 Repensar a secularização e a laicidade..................................................................24 1.2 Religião e política: conexões e aproximações........................................................30 1.3 Religiões políticas, seculares e civis.......................................................................34 1.4 O cristianismo e a esfera da política e do Estado.................................................38 2 LAICIDADE À BRASILEIRA: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E JURÍDICA............................................................................................................47 2.1 Um Estado confessional..........................................................................................47 2.2 Ruptura republicana e reação católica.................................................................51 2.3 Neocristandade........................................................................................................67 2.4 Estado e religião: distanciamentos e contatos......................................................73 2.5 O acordo entre o Estado brasileiro e a Santa Sé e a Lei Geral das Religiões...................................................................................................................80 3 ORIGENS DE UMA CONTROVÉRSIA: O CRISTO NO TRIBUNAL DO JÚRI, NO CORCOVADO E NOS PARLAMENTOS....................................................................................................87 3.1 O primeiro protesto.................................................................................................88 3.2 O Cristo no júri.......................................................................................................90 3.3 O caso de Teodoro Magalhães...............................................................................96 3.4 O monumento do Cristo Redentor no Corcovado...............................................99 3.5 O Cristo nos parlamentos.....................................................................................104 3.6 A cerimônia de entronização dos crucifixos.......................................................117 4 SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM DISCUSSÃO: O CONGRESSO DE MAGISTRADOS NO RIO GRANDE DO SUL, EM 2005...........................................................................................................................123 viii 4.1 Religião e laicidade no poder judiciário gaúcho: “ o ponto de vista nativo” .......................................................................................................................................125 4.2 Os personagens envolvidos e seus argumentos...................................................126 4.3 Tecendo considerações finais sobre o ponto de vista nativo..............................156 5 OS JULGAMENTOS DOS CRUCIFIXOS E OUTRAS SITUAÇÕES CONFLITIVAS ENVOLVENDO SÍMBOLOS CATÓLICOS EM LOCAIS PÚBLICOS...................................................................................................................160 5.1 A decisão do Conselho Nacional de Justiça.........................................................161 5.2 Outros casos controversos.....................................................................................166 5.3 Ação Civil em São Paulo contra símbolos religiosos..........................................197 5.4 A iniciativa “Brasil Para Todos” e a ATEA: guerra de símbolos e imagens?.......................................................................................................................203 5.5 Perfil de um militante laicista...............................................................................213 6 A INVOCAÇÃO DO NOME DE DEUS NAS CONSTITUIÇÕES E A EXIBIÇÃO DA BÍBLIA NOS PARLAMENTOS E EM PRAÇAS PÚBLICAS...................................................................................................................219 6.1 A exibição da Bíblia nos parlamentos..................................................................229 6.2 Projetos de lei sobre imagens religiosas em estabelecimentos públicos na Câmara Federal...........................................................................................................237 6.3 Os monumentos à Bíblia em praças públicas......................................................245 7 DE CAPELAS CATÓLICAS A ESPAÇOS ECUMÊNICOS: SIMBOLIZANDO O PLURALISMO RELIGIOSO NOS ESPAÇOS PÚBLICOS..............................257 7.1 Resistência católica na capela do Hospital de Clínicas de Porto Alegre/RS....260 7.2 Espaços inter-religiosos sem símbolos religiosos................................................268 7.3 Um espaço público com uma pluralidade de objetos e símbolos religiosos.......................................................................................................................271 CONCLUSÃO..............................................................................................................282 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................295 ix RELAÇÃO DE FIGURAS FIGURA 1. Crucifixo na sala de julgamento do STF. FIGURA 2. Crucifixo feito pelo escultor Alfredo Ceschiatti, afixado em um recorte do painel de mármore do STF. FIGURA 3. Busto de Rui Barbosa e Crucifixo no Senado Federal. FIGURA 4. Cerimônia de entronização do crucifixo no Tribunal de Contas do Estado do Sergipe. FIGURA 5. Benção do crucifixo no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. FIGURA 6. Crucifixo no Tribunal Marítimo do Rio de Janeiro FIGURA 7. Crucifixo na Câmara de Vereadores de São Paulo/SP. FIGURA 8. Imagem de Nossa Senhora Aparecida em Adamantina/SP. FIGURA 9. Imagem de Nossa Senhora Aparecida em Adamantina/SP, com fiéis. FIGURA 10. Capela Católica no Centro Administrativo do Estado do Piauí. FIGURA 11. Crucifixo no Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Piauí. FIGURA 12. Capela católica no Tribunal de Justiça do Estado do Piauí. FIGURA 13. Protesto a favor da permanência do crucifixo na Câmara de Vereadores de Monlevade/MG. FIGURA 14. Campanha ATEA 2010/2011. FIGURA 15. Campanha ATEA 2010/2011. FIGURA 16. Campanha ATEA 2010/2011. FIGURA 17. Campanha ATEA 2010/2011. FIGURA 18. Crucifixo e Bíblia na Câmara Federal. FIGURA 19. Monumento à Bíblia na Praça 7 de setembro em Tubarão/SC. FIGURA 20. Monumento à Bíblia instalado na cidade de Ribeirão Preto/SP. FIGURA 21. Monumento à Bíblia em Campo Lindo Paulista/SP. FIGURA 22. Monumento à Bíblia em Porto Alegre /RS. FIGURA 23. Monumento à Bíblia em Porto Alegre /RS. FIGURA 24. Monumento à Bíblia em Quatá/SP. FIGURA 25. Monumento a Bíblia em Ceilândia/DF. FIGURA 26. Porta de entrada da capela do Hospital de Clínicas de Porto Alegre/RS. x FIGURA 27. Interior da capela do Hospital de Clínicas de Porto Alegre/RS. FIGURA 28.Calendário de atividades do Espaço inter-religioso do Hospital Cristo Redentor, de Porto Alegre/RS. FIGURA 29. Espaço inter-religioso do Hospital Fêmina em Porto Alegre/RS. FIGURA 30. Capela católica do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre/RS. FIGURA 31. Placa indicando o espaço inter-religioso no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre/RS. FIGURA 32. Interior do espaço inter-religioso do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre/RS. FIGURA 33. Interior do espaço inter-religioso do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre/RS. xi 1 INTRODUÇÃO Observa-se, atualmente, no cenário nacional, um conjunto de fenômenos empíricos que revelam um embate entre laicistas e grupos religiosos, principalmente a Igreja Católica e as denominações pentecostais. Em diversas esferas da vida social emerge uma disputa entre posições laicistas e cosmovisões religiosas. No campo da sexualidade, essa confrontação aparece em temas relacionados à homossexualidade, à utilização de métodos contraceptivos e à educação sexual nas escolas. Na esfera médico-científica, a oposição de posturas e concepções dá-se em assuntos relativos ao aborto, à eutanásia e à pesquisa com células-tronco embrionárias. Na esfera da educação, a disputa mais evidente se verifica na questão do ensino religioso nas escolas públicas. Por fim, na esfera política e jurídica, tal conflito transparece na discussão sobre a existência de feriados religiosos oficiais, na permanência de símbolos religiosos em repartições públicas e na Concordata entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro. Neste trabalho procuro centrar-me na descrição e análise de uma dessas controvérsias, a saber: a presença de símbolos religiosos em espaços públicos. Essa controvérsia se expressa, fundamentalmente, por meio de uma série de processos judiciais e administrativos, protestos e pedidos informais que requerem a remoção de cruzes, crucifixos, imagens de santos e capelas de locais públicos. Para uns, a existência desses símbolos religiosos em órgãos públicos como escolas, universidades, hospitais, tribunais e parlamentos representaria uma ofensa ao princípio republicano e liberal de separação entre Estado e religião. A laicidade do Estado brasileiro estaria sendo ameaçada na medida em que órgãos públicos ostentam símbolos e imagens de uma determinada religião. Para outros, os defensores da permanência dos símbolos religiosos, a sua afixação já é parte de nossa tradição histórica, exprimindo a cultura cristã de nosso país. Dessa forma, a ostentação de tais símbolos em instituições públicas não ofenderia a separação jurídica entre Estado e religião. Ressalto aqui que não procuro assumir a causa de nenhuma das partes em disputa. Acredito que esse não é o papel de um trabalho acadêmico e muito menos de um cientista social. Minha função principal é de observação, descrição, análise e compreensão dos múltiplos agentes, discursos, argumentos e categorias implicados nesse debate. Não tomo partido de nenhum dos atores e posicionamentos, mas intenciono sim a descrição e a visão mais honesta, clara e real das situações, casos, 2 posturas e agentes envolvidos nessa controvérsia. Desse modo, não se trata de estabelecer e definir quem está com a razão, quem deve ganhar a contenda, mas perceber o que está em disputa, e o que essas polêmicas expressam de relevante para o entendimento de certos aspectos do lugar da religião na sociedade brasileira, e como o religioso e o secular se articulam. Sendo assim, sigo a lição de Latour (2008b) quando este observa que não cabe ao cientista social a função de legislador ou mesmo de emancipador social. Antes, é tarefa do sociólogo e antropólogo mapear e inventariar as forças ativas nas controvérsias. Sobre esse ponto esclarece Latour (2008b, p. 42): A tarefa de definir e ordenar o social deve ser deixada aos atores mesmos, e não ao analista. É por isto que para recuperar algum sentido de ordem, a melhor solução é rastrear relações entre as controvérsias mesmas, em vez de tratar de decidir como resolver qualquer controvérsia dada. O que parece estar em jogo nesses casos são diferentes definições e concepções de laicidade, bem como divergentes posicionamentos acerca do papel e do lugar da religião na vida social. Assim sendo, procuro apresentar e examinar as diversas definições de religião e laicidade defendidas pelos atores sociais envolvidos nessa controvérsia, buscando explicitar o que esse embate revela. Evidenciaria a existência de uma esfera pública “encantada”, permeada pelo religioso no Brasil? Por sua vez, tal confrontação não estaria sinalizando o revigoramento de um discurso laicista que concebe a religião como assunto meramente privado e que, portanto, deveria ser excluída do espaço público? Os laicistas conceberiam o religioso como algo irracional, anacrônico e retrógrado, como um resíduo de tempos arcaicos, como uma mera superstição? Por outro lado, os “religiosos” seriam contra o Estado laico e uma arena pública secular? O sentido religioso de tais símbolos se preservaria? Qual o significado que os sujeitos dão à presença de um crucifixo, de uma capela ou imagem de santo em locais públicos como escolas, hospitais e varas judiciais? O que explica a persistência de símbolos religiosos como o crucifixo em repartições públicas e qual a razão que faz com que essa presença seja problemática em um Estado laico? De um modo mais amplo, intenciono refletir, problematizar e examinar categorias e conceitos analíticos como laicidade, secularização, secularismo e laicismo. Desse modo, preocupo-me em expor não apenas as definições e teorias sociológicas e antropológicas já consagradas acerca dessas categorias, mas também como elas são acionadas e utilizadas pelos mais diferentes atores sociais em situações concretas. Em todos esses debates e discussões públicas há diferentes definições acerca da religião, do secular e do laico. Por último, 3 cabe perguntar e averiguar quem define o que é ou não religioso? Qual o propósito e o interesse dos atores quando é feita essa definição? (Dress, 2008). Essa questão da definição do religioso e do secular me parece crucial. Como lembra Talal Asad (2010), em todo ato de definição algumas coisas são endossadas e outras são repudiadas. Definir o que é religião não é um exercício intelectual abstrato, mas um ato revestido de elementos passionais, ansiedades e interesses. A definição de determinados objetos, práticas e crenças como religiosas tem profundas implicações para organização da vida social e para a existência dos indivíduos.1 Importa notar que nos casos apresentados ao longo deste trabalho o principal símbolo religioso que motiva os debates é o crucifixo. É ele que, majoritariamente, está presente nos órgãos públicos. O crucifixo está geralmente afixado em uma posição central, de destaque, em espaços sociais e instituições públicas fundamentais para uma sociedade moderna, como escolas, universidades, tribunais e parlamentos. Vale aqui lembrar que o Senado Federal, a Câmara Federal, o STJ (Superior Tribunal de Justiça)2 e o STF (Supremo Tribunal Federal) possuem, hoje, na sua sala principal, o crucifixo afixado na parede. No STF o crucifixo está colocado ao lado da bandeira nacional e do brasão da República. O símbolo religioso católico está, estrategicamente, próximo aos símbolos cívicos nacionais. Acerca da localização do crucifixo no plenário do STF, há uma interessante explicação. Segundo José Levi Mello do Amaral Júnior, Procurador da Fazenda Nacional e Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), cada placa de mármore da parede do referido plenário apresenta um recorte que corresponde a um quarto de um círculo. Os diversos recortes que compõem o painel de mármore do plenário da Suprema Corte brasileira são rigorosamente iguais, com a única exceção daquele que abriga o crucifixo. Esse recorte é maior. Com isso, deseja-se expressar que a justiça humana deve ser pautada pelo princípio da isonomia, daí porque as placas têm 1 Disponível em: http://talalasad.blogspot.com/2010/12/thinking-about-religious-beliefs-and.html. Acesso em: 02/09/2011. 2 Segundo Leite (2008) o STJ não apreciou um requerimento apresentado pelo então ministro deste tribunal Waldemar Zveiter, solicitando a remoção do crucifixo das salas de julgamento do Tribunal. No requerimento ainda argumentava que se este pedido fosse recusado deveria ser submetida a corte do STJ a colocação da Torá, símbolo da religião judaica, no mesmo local. Waldemar Zveiter é de origem judaica. Interessante frisar que seu filho o desembargador Luiz Zveiter, em uma de suas primeiras medidas como presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 2009, decidiu retirar o crucifixo afixado no plenário do Órgão Especial e desativar a capela católica, transformando-a em um espaço ecumênico, para lá foi transferido o crucifixo. Trato com mais cuidado sobre este caso ao longo desta tese. 4 recortes de mesmo tamanho. Por seu turno, a justiça divina é superior à dos homens, o que explica o tamanho maior do recorte onde está o símbolo religioso em relação aos demais. FIGURA 1. Crucifixo na sala de julgamento do STF.3 FIGURA 2. Crucifixo feito pelo escultor Alfredo Ceschiatti, afixado em um recorte do painel de 4 mármore do STF. 3 4 Imagem disponível em: http://www.migalhas.com.br/. Acesso em: 10/03/2010. Imagem disponível em: http://www.stf.jus.br Acesso em: 10/03/2010. Alfredo Ceschiatti foi um escultor mineiro que colaborou com a decoração de diversos prédios projetados por Oscar Niemeyer. A escultura “A Justiça”, feita em granito, localizada na frente do prédio do STF, é de sua autoria. 5 FIGURA 3. Busto de Rui Barbosa e o crucifixo.5 No Senado Federal o crucifixo está acima do busto de Rui Barbosa, sendo ladeado por bandeiras nacionais. Essa representação simbólica pode ser tomada como uma importante pista para aquilo que nesta tese chamo de “laicidade à brasileira”. O mentor e artífice de nossa separação entre Estado e religião é encimado pelo símbolo religioso católico. Essa imagem, assim como a representação de santos e capelas, encontra-se, também, profusamente em hospitais, universidades, escolas e parlamentos. Esses espaços sociais e instituições públicas são projetados como neutros e imparciais pelo ideário secularista. Desse modo, a existência de referências religiosas particularistas nesses ambientes é muitas vezes vista como uma afronta, uma profanação à “sacralidade” desses locais, que devem afirmar e transmitir valores seculares e cívicos (Asad, 2003; Howe, 2009). A ostentação de ícones religiosos nestes espaços representaria uma ameaça à liberdade de consciência e ao pluralismo de valores de uma sociedade democrática. 5 Foto tirada pelo autor da tese em 20 de julho de 2010. 6 É importante ressaltar que a polêmica sobre a presença de símbolos religiosos nos espaços públicos é também encontrada nos Estados Unidos, Canadá, Europa e em outros países da América Latina,6 como a Argentina e o Uruguai.7Diversos países possuem algum tipo de norma jurídica ou administrativa que proíbe ou limita a presença de imagens e de símbolos religiosos em repartições públicas, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde não há qualquer regra jurídica que determine a colocação ou a remoção de símbolos religiosos em locais públicos. O caso mais comentado ocorreu na França, com a discussão em torno do porte do véu islâmico (hijab) por alunas muçulmanas em escolas públicas daquele país. O governo francês criou uma comissão para tratar do assunto - Comissão Stasi - e, em 2004, foi aprovada uma legislação, baseada nos relatórios e reuniões dessa comissão, proibindo a utilização de signos religiosos ostensivos em escolas públicas. Nos Estados Unidos, desde o começo de 1990 registrase uma série de demandas que chegaram às cortes judiciais, contestando principalmente a exposição dos Dez Mandamentos em locais públicos.8 A suprema corte do Canadá tem julgado diversos casos envolvendo o uso do kirpan9 por jovens sikhs em escolas públicas. Nesses casos, as decisões judiciais têm sido favoráveis à vestimenta desse objeto religioso pelos sikhs. A suprema corte canadense insiste em afirmar que a escola pública deve assegurar valores como a tolerância e a diversidade. Na realidade, procurase, com essas decisões, acomodar as diversas expressões religiosas em âmbito público. O princípio que guia essa postura é o da “acomodação razoável”10, fundado em uma concepção da organização política e social de teor multiculturalista e comunitarista. De acordo com esse princípio, deveria o Estado reconhecer a dimensão pública das diversas manifestações religiosas, sem, entretanto, apoiar, sustentar e favorecer a supremacia de 6 Na Argentina, em fevereiro de 2002, ocorreu um forte debate público com desdobramentos judiciais devido à colocação da imagem da Virgem de Medjugorie na entrada principal do Palácio dos Tribunais. A imagem foi posta em frente à estátua da justiça, e próxima a um crucifixo e à bandeira da Argentina. A entronização desta imagem foi contestada por uma associação de defesa dos direitos civis que requereu a retirada da imagem. Para detalhes sobre esse caso ver Sarsfield (2007). 7 Em 1987, quando da visita de João Paulo II nesse país, um virulento debate ocorreu por conseqüência da instalação de uma cruz de trinta metros de altura em um local público de Montevidéu. A questão era se a cruz deveria ou não permanecer em um espaço público de um país de forte tradição laicista. Sobre isso, ver Caetano (2006), Costa (2006) e Guigou (2006). 8 Sobre esses casos nos Estados Unidos, ver Howe (2008; 2009). 9 O kirpan é uma pequena espada ou punhal utilizado sobre a roupa ou guardado em algum lugar da mesma pelos fiéis dessa religião. 10 Para maiores detalhes sobre essa controvérsia no Canadá e a aplicação desse princípio pela suprema corte do referido país ver, Koussens (2009). 7 qualquer uma delas. Na Alemanha, em 1995, a Corte Constitucional decidiu pela inconstitucionalidade da exibição de crucifixos em escolas públicas, argumentado que a liberdade religiosa e a de pensamento das minorias devem ser protegidas pelo Estado.11 O caso teve início em 1991, quando os pais de uma aluna de escola pública localizada na Baviera pediram à direção da escola a retirada dos crucifixos. Os pais da aluna eram ateus e desejavam que sua filha fosse educada em um ambiente que não fizesse referência a qualquer religião. Mais recentemente, em novembro de 2009, a Corte Europeia de Direitos Humanos, decidiu contra a exposição de crucifixos em salas de aula de escolas públicas da Itália. O recurso foi apresentado por Soile Lautsi, cidadã italiana de origem finlandesa que, em 2002, requereu, sem sucesso, à diretora da escola pública em que estudavam seus dois filhos a remoção de crucifixos presentes em salas de aula. Na decisão proferida por essa corte é afirmado que a prática de exibição desse símbolo religioso viola os direitos dos pais de educar os filhos da maneira como preferem e contraria os direitos da criança de livremente escolher suas crenças. O governo italiano apelou contra a sentença.12 O recurso foi remetido à Grande Câmara do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Em 18 de março de 2011 essa corte anulou a sentença que proibia a exibição de crucifixos em escolas públicas. A Grande Câmara aceitou a tese da defesa, apresentada pelo governo italiano, que declara que a presença do crucifixo nas escolas públicas não pode ser considerada uma forma de doutrinação religiosa por parte do Estado. Os juízes salientaram que a existência do crucifixo no ambiente escolar não está associada ao ensino obrigatório do cristianismo. Cabe lembrar aqui que há uma íntima relação entre poder político, lei e imagens. Os Estados sempre procuraram regular e controlar o fluxo de imagens por meio de regras jurídicas. Com efeito, as leis e os ícones tiveram e ainda têm um papel crucial na formação das subjetividades. Devido ao poder corruptor e encantador dos símbolos e das imagens, todas as culturas buscaram manter algum tipo de política visual (Douzinas, 2000). Isso conduz à questão do poder e agência dos objetos, símbolos e imagens, que tento explorar neste trabalho, e que vem sendo evidenciada por importantes 11 Para um estudo comparativo sobre o véu islâmico na França e os crucifixos na Baviera, ver o artigo Bavarian Crucifixes and French Headscarves: Religious signs and the Postmodern European State, de Leora Auslander (2000). 12 Dez países europeus entraram como amicus curie (terceira parte) nessa contenda, pedindo que a proibição do crucifixo fosse suspensa. São estes os dez países que se juntaram à Itália nesse caso: Rússia, Grécia, Chipre, Bulgária, Chipre, Lituânia, Malta, Mônaco, San Mariano e Romênia. Nota-se que são todos países onde há uma forte influência do catolicismo romano ou então das igrejas ortodoxas. 8 historiadores e antropólogos13(Belting, 2009; Freedberg, 1992; Gell, 1998; Latour, 2008b, Meyer, 2006 e Mitchell, 2005, Sansi, 2005). A concepção de que as imagens são dotadas de poder, parecendo ter certa “força vital”, bem como a capacidade de nos incitar a ação e a compaixão é esclarecida por David Freedberg (1992, p.14): Temos de considerar não só as manifestações e a conduta dos espectadores, mas também a efetividade, eficácia e vitalidade das próprias imagens; não só o que fazem os espectadores, mas também o que as imagens parecem fazer; não só o que as pessoas fazem como consequência de sua relação com a forma representada na imagem, mas também o que esperam que essa forma faça e por que têm tais expectativas sobre ela. Conforme Sansi (2005), há que se notar ainda que a agência dos objetos e das “coisas” não deriva unicamente dos atos de “consagração” dos humanos, que através de operações mentais concedem e atribuem valores e sentidos aos objetos, mas também devido a sua obstinada presença física em eventos e assim de sua relação com o corpo humano. Desse modo, a agência dos objetos é resultado de sua historicidade, materialidade e territorialidade14. Ademais, é inegável que os símbolos canalizam e provocam reações emocionais. De acordo com Victor Turner (2005), os símbolos são vetores de ação social, apresentando dois polos essenciais de sentido: o polo orético ou sensorial que refere-se aos aspectos emocionais, estando associado às funções corporais, e o polo ideológico que se refere às normas e valores morais. Os símbolos dominantes atrelam os valores e regras sociais com a emotividade; dessa forma, carregam de elementos afetivos e sentimentais as normas sociais. Ainda, segundo Turner (2005), os símbolos possuem três dimensões ou níveis: 1) dimensão exegética, que diz respeito à interpretação e ao sentido que os atores sociais dão aos símbolos; 2) dimensão operacional, que refere-se ao modo como os símbolos são utilizados concretamente pelos atores e 3) dimensão relacional: que aponta para a relação entre um símbolo particular com outros símbolos de um dado sistema cultural. Por seu turno, os símbolos são representações visíveis do invisível, tornando presentes e tangíveis em uma forma icônica princípios, normas, concepções e sentimentos. Além disso, os símbolos apresentam certa vagueza de significado. Essa indeterminação, instabilidade e não 13 Na verdade, isso não é algo inteiramente novo para a Antropologia. Victor Turner (2008), já tinha chamado a atenção para o poder que os símbolos têm de mobilizar e instigar a ação social. 14 Trata-se, então, de certo modo, também, de realçar o aspecto material da religião, conforma declara Jean-Claude Schmitt (2007, p. 280): “[...] a experiência religiosa não consiste apenas em crenças e num imaginário do além e do divino, nem em palavras e gestos (orações, homílias, ritos, etc.), mas consiste, também, em manipulações de objetos de toda espécie, cuja natureza, grau de consideração e funções variam segundo as épocas”. 9 fixidez das imagens e dos símbolos leva àquilo que Burke (2004) constatou de que os produtores de símbolos não podem controlar e fixar ou controlar seus significados. Em suma, os símbolos e as imagens são multivocais, cabendo então ser avaliados em seus contextos específicos: [...] o significado das imagens depende do seu “contexto social”. Estou utilizando esta expressão num sentido amplo, incluindo aí o “contexto” geral, cultural e político, bem como as circunstâncias exatas nas quais a imagem foi encomendada e também seu contexto material, em outras palavras, o lugar físico onde se pretendia originalmente exibi-la (Burke, 2004, p.225). Na controvérsia que examino, um dos argumentos centrais daqueles que pleiteiam a remoção do crucifixo de espaços públicos é que ele pode alienar, ferir e constranger os crentes de outras religiões, ou mesmo os ateus e agnósticos. O símbolo em questão não seria assim uma mera representação passiva de uma herança cultural, mas possuiria agência, tendo a capacidade de afetar os indivíduos, além de transmitir e veicular uma determinada mensagem. Por consequência, a ostentação de um ícone religioso em determinado órgão público parece produzir efeitos, endossando valores específicos. O símbolo religioso não apenas representa alguma coisa, mas também diz algo, influenciando condutas e comportamentos. Isso é evidente quando se observa, ao longo da história da humanidade, os múltiplos episódios de conflitos entre iconoclastas e iconófilos. Se o objeto ou ícone religioso não tivesse poder nem valor, qual a razão que leva o iconoclasta a destruir um objeto? (Sansi, 2005). Por outro lado, o ícone exerce um fascínio sobre o “idólatra”. Tanto o idólatra15 quanto os iconoclastas percebem os símbolos religiosos como objetos com sentimentos, intenções, desejos e agência (Mitchell, 2005). Dessa maneira, quando um defensor da permanência do crucifixo em repartições públicas afirma que este ícone transmite uma mensagem de paz e bondade, ou então lembra aos homens um dos maiores erros jurídicos da história, ele está reconhecendo, de alguma maneira, o poder da imagem. Sublinho a importância do estudo de controvérsias públicas como a que irei descrever neste trabalho. As controvérsias públicas são, na verdade, um locus privilegiado para a compreensão da realidade social. Nelas, múltiplos atores intervêm Sobre a idolatria na tradição cristã esclarece Latour (2004b, p.363): “Tradicionalmente, no cristianismo, a defesa dos ícones religiosos tem consistido em afirmar que a imagem não é o objeto de uma ‘latria’ – como em idolatria – mas de uma ‘dulia’, termo grego com o qual se diz que o fiel, diante da cópia – uma Virgem, um crucifixo, uma estátua de santo – tem o espírito voltado para o protótipo, o original unicamente digno de adoração. Essa, no entanto, é uma defesa que nunca chegou a convencer os iconoclastas platônicos, bizantinos, luteranos ou calvinistas – para não falarmos no mulá talibã Mohammad Omar, que fez passar pelas armas os Budas de Bamyan, no Afeganistão”. 15 10 com seus argumentos e contra-argumentos, ajudando assim a definir, construir e remodelar a vida social. Fazem emergir posicionamentos que normalmente estão latentes e encobertos, tendo as características de um drama social (Turner, 2008). Conforme assevera Latour (2000, p. 329): As frequentes designações “estrutura da linguagem”, “taxionomia”, “cultura’, “paradigma” e “sociedade” podem ser usadas para definir-se reciprocamente: essas são algumas das palavras usadas para resumir o conjunto de elementos que aparecem ligados a uma alegação em debate. Esses termos sempre têm definição vaga, porque só quando há controvérsias, e enquanto ela durar e dependendo da força exercida pelos discordantes, é que palavras como “cultura”, “paradigma” ou “sociedade” podem receber uma definição precisa. Esta pesquisa não está circunscrita a um lugar específico tratando-se, dessa forma, de uma pesquisa multilocalizada e multidimensional (Comaroff e Comaroff, 2003).16Não há qualquer grupo social em particular que esteja diretamente envolvido na defesa de um Estado laico e de uma arena pública secular, distanciada de símbolos e valores religiosos. Há, na verdade, uma constelação de atores sociais (juristas, políticos, religiosos, feministas, etc) que estão imbricados com essa questão. Procuro, então, mapear o discurso dos atores religiosos e laicistas acerca dessa controvérsia, analisando os argumentos e as concepções de religião, espaço público e laicidade acionados por esses atores. Para tanto, recorrer-se-á a duas operações metodológicas. Primeiramente, buscar-se-á captar o fluxo discursivo (religiosos e laicistas, na controvérsia acima referida), nas várias esferas em que ele se manifesta, como escolas, hospitais, tribunais de justiça e casas legislativas, em nível local e nacional. Em um segundo momento será traçada a genealogia da controvérsia acerca da presença de símbolos religiosos no espaço público e do processo de laicização no Brasil, destacando as rupturas e continuidades, bem como aquilo que é único e aquilo que se reproduz ao longo do tempo. O método utilizado para a realização desta pesquisa é qualitativo. A pesquisa de campo foi realizada por meio de entrevistas semi-dirigidas, além de conversas informais com os líderes religiosos, políticos, magistrados, advogados e demais atores envolvidos 16 A elaboração de uma etnografia multilocalizada e multidimensional, como a que se procurará levar a cabo, tende a superar a concepção da sociedade e da cultura como uma unidade integrada e uma totalidade delimitada. O grupo social, a cultura ou a sociedade, são tomados como algo dado, mas são na realidade uma invenção do pesquisador para descrever e interpretar outras realidades (Wagner, 1981). A sociedade ou a cultura não são entidades concretas, objetos a serem analisados, como concebe a antropologia estrutural-funcionalista, ou, então, um conjunto de textos que podem ser interpretados pelo antropólogo, como advoga a antropologia semiótica (Clifford, 1991). 11 na polêmica já destacada. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas e analisadas. Realizei no total dezessete entrevistas (8 magistrados, 1 advogado, 1 procuradora-federal, o diretor da campanha Brasil para Todos e da ATEA, um professor da faculdade de Educação da UFRGS, que coordenou a Rede-Liberdades Laicas-Brasil, a responsável pelo espaço inter-religioso do Aeroporto Internacional Salgado Filho de Porto Alegre/RS, uma das responsáveis dos espaços inter-religiosos do Grupo Hospitalar Conceição de Porto Alegre/RS e três líderes religiosos). A observação participante como técnica de pesquisa também foi utilizada, pois presenciei alguns encontros e reuniões da Rede Liberdades-Laicas Brasil17, em Porto Alegre, no ano de 2008, além de participar de seminários que foram realizados sobre os temas da laicidade estatal e da liberdade religiosa. De grande relevância foi a participação no V Curso Internacional “Fomentando o conhecimento das liberdades laicas”, realizado em Porto Alegre/RS, nos dias 13 a 24 de setembro de 2010. Esse curso foi realizado na Escola Superior da Magistratura e contou com o apoio da Rede Iberoamericana pelas Liberdades-Laicas, do Colégio Mexiquense e da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS). O curso de caráter intensivo contou com a presença de pesquisadores e da militância laica da América Latina. Na ocasião foram realizadas reuniões, palestras e exposição de trabalhos. Esse evento, foi sem dúvida, alguma um espaço privilegiado para a observação e a troca de informações com os mais diversos agentes envolvidos com a temática da laicidade. Utilizei de maneira considerável de fontes textuais e documentais18, pois se trata de uma controvérsia pública que foi e é expressa, manifesta, por uma série de personagens em artigos, processos, e demais tipos de textos e documentos. Assim sendo, em um primeiro momento realizei ampla coleta e seleção de artigos, reportagens e textos de jornais, revistas e internet da imprensa religiosa e secular, que se relacionam 17 Trata-se de um projeto que congrega uma série de acadêmicos e militantes envolvidos com o tema da laicidade. Esta organização tem sua base de operações no México, mais particularmente na cidade do México e é apoiada pela Fundação Ford e El Colegio Mexiquense. É dirigida pelo sociólogo Roberto Blancarte, e possui representantes na Argentina, Brasil, Bolívia, Chile e Peru. 18 Sobre o uso destas fontes de pesquisa sigo a lição de Giumbelli (2002, p.59): “O privilégio aos textos, está conjugado a uma espécie de abordagem que se recusa terminantemente a textualizar o objeto. Ou seja, não interpelo ou elaboro os dados que coletei a partir de uma perspectiva hermenêutica, preocupada apenas em desvendar o significado dos enunciados a partir de sua lógica própria e como se fossem totalidade auto-contidas e autossuficientes, mas o considero propriamente como o registro de intervenções, que necessitam ser vistas em sua estruturação interna, mas também em suas referências mútuas e especialmente em seus efeitos específicos e conjugados. Em outras palavras trato os registros textuais como atos, considerando-os pelas interações em que se envolvem e pelos resultados que produzem. Nessa perspectiva, a linguagem participa da realidade, atuando como uma força objetiva”. 12 com o objeto desta pesquisa. Processos judiciais, processos administrativos e projetos de lei relacionados com a controvérsia acerca da presença de símbolos religiosos em repartições públicas também foram examinados. Em um segundo momento, o material foi cuidadosamente analisado. Juntamente com a coleta de material escrito da imprensa e de arquivos realizei uma revisão da bibliografia, que teve como objetivo mapear e levantar o maior número de artigos científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado escritas sobre o tema da pesquisa no Brasil. Algumas edições antigas de jornais de grande circulação nacional, alguns já extintos, foram consultados nos arquivos do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, em Porto Alegre/RS. O Jornal Idade Nova, do Partido de Representação Popular, que encabeçou na década de 1940, uma forte campanha pela entronização da imagem do Cristo crucificado em casas legislativas foi consultado no Centro de Documentação sobre a Ação Integralista Brasileira e o Partido de Representação Popular, localizado em Porto Alegre/RS. Os Anais da Assembleia Nacional Constituinte de 1933-1934, os Diários do Congresso Nacional da década de 1940, 1960 e 1980, bem como o Diário da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 e o Diário da Câmara dos Deputados da década de 1990, foram pesquisados na Biblioteca da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. O marco teórico deste trabalho fundamenta-se em parte na antropologia do secularismo proposta por Talal Asad (1999; 2003).19Trato desta questão, mais especificamente dos conceitos de secularização, secularismo e laicidade no primeiro capítulo deste trabalho. Com a finalidade de mostrar que os processos de secularização e laicização nunca se caracterizam pelo surgimento de Estados neutros em matéria religiosa e de uma arena pública “desnuda”, foco minha atenção no conceito de religiões políticas e civis. As religiões políticas surgem, muitas vezes, na esteira de processos secularizadores, engendrando novos valores e símbolos que entram em choque com o imaginário e a imagética religiosa tradicional. Os projetos de laicização do aparato jurídico e político, em suas fases iniciais e em suas feições mais radicais, conduzem a 19 A nascente antropologia do secularismo mostra como esse é uma estrutura cultural com seus próprios símbolos, ícones, discursos e práticas. Dessa forma, o secularismo não intencionaria apenas a construção de uma arena pública neutra e laica, pois é pleiteado por atores sociais com interesses específicos, que defendem um determinado estilo de vida e uma particular visão de mundo. Trata-se, sobretudo, de uma ideologia central na formação das sociedades modernas (Gorski e Altinordu, 2008). A antropóloga Saba Mahmood (2008, p.462), que segue essa corrente teórica, iniciada por Talal Asad, assevera que o secular e o religioso são duas categorias interdependentes. Sendo assim, “é impossível traçar a história de um sem simultaneamente traçar a história do outro”. 13 uma “guerra de símbolos” e a uma luta cultural pela conquista das mentes e pela formação das almas. Em muitos casos, a nação ou o novo regime político são sacralizado e novas representações simbólicas são afirmadas. Em alguns casos, os novos símbolos civis, construídos pelas religiões seculares, enfrentam e combatem os símbolos, imagens e valores das religiões tradicionais; em outros, se amalgamam a estes últimos. Dessa maneira, trata-se de ressaltar a estreita imbricação entre o poder político, os rituais e os símbolos (Abélès, 1997). No segundo capítulo, abordo, a partir de uma perspectiva histórica e legal, o processo de laicização do Estado brasileiro. Traço, de forma sintética, a relação entre Estado e religião no Brasil, desde a época colonial até os dias atuais, dando especial ênfase a um acontecimento recente e de grande magnitude para essa relação que foi a Concordata entre o governo brasileiro e a Santa Sé e a Lei Geral das Religiões. Por sua vez, as origens da controvérsia sobre a presença de símbolos religiosos em espaços públicos é descrita no terceiro capítulo. Enfoco alguns casos de contestação à exibição de imagens religiosas em locais públicos ocorridos no final do império e nos primeiros anos do regime republicano. Ainda, destaco a campanha empreendida por um partido político na década de 1940, pela colocação da imagem do Cristo crucificado em casas legislativas e a reação de determinados atores a essa proposta. No quarto capítulo, tendo como mote o congresso de magistrados realizado em 2005, no interior do Rio Grande do Sul, que reinstaurou o debate sobre a ostentação de símbolos religiosos em ambientes judiciais, apresento os diferentes posicionamentos que os atores envolvidos nessa discussão têm acerca desse assunto e de questões correlatas. Igualmente, demonstro as diferentes concepções de laicidade acionadas por estes atores e suas percepções acerca do lugar e do papel da religião na vida social. No quinto capítulo descrevo e analiso uma série de processos judiciais e administrativos, assim como outras situações e casos transcorridos entre 1991 e 2012, que envolvem pedidos de remoção de crucifixos e outros símbolos católicos de locais públicos. Na grande parte dos casos quem pleiteia a remoção dos símbolos religiosos de repartições públicas é o engenheiro paulista Daniel Sottomaior Pereira, criador da campanha Brasil Para Todos, o qual advoga a separação entre Estado e religião e a democratização dos espaços e serviços públicos. Por conta de seu protagonismo nesses embates trato, ainda, sobre as iniciativas e campanhas criadas por esse ator e alguns aspectos de seu perfil de militante laicista. 14 No sexto capítulo acompanho os debates e enfretamentos que ocorreram na Câmara Federal por conta da inclusão do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal. Detenho-me, ainda, sobre a exibição da Bíblia nos parlamentos e a ereção de monumentos à Bíblia em praças públicas. Algumas questões que procuro responder nesse capítulo são as seguintes: haveria alguma relação de continuidade ou de oposição entre a construção de monumentos à Bíblia e a entronização de crucifixos em repartições públicas? Existem disputas e embates em torno da construção desses monumentos? Quais são os personagens que defendem a colocação de Bíblias em ambientes públicos e quais são seus objetivos com essa medida? Além disso, são apresentadas e investigadas algumas proposições legislativas no Brasil, em âmbito federal, que visam limitar, regular, garantir e até mesmo remover símbolos religiosos de espaços públicos.20No sétimo e último capítulo trato sobre as tensões e impasses em torno da transformação de capelas católicas situadas no interior de ambientes públicos em espaços ecumênicos e/ou inter-religiosos como expressão de mudanças significativas no campo religioso brasileiro, e a forma como o Estado e as instituições públicas seculares podem lidar com essas situações. Por fim, é importante sublinhar que este trabalho pretende contribuir para um maior aprofundamento das discussões sobre o tema da laicidade e das relações entre Estado, religião e espaço público no Brasil no âmbito das Ciências 21 Sociais. Particularmente sobre a temática da laicidade há nas últimas décadas um novo interesse teórico, social e político. Do ponto de vista prático e empírico, há alguns fatores que conduzem a revitalização e a disseminação dessa categoria nas discussões públicas. Acerca disso comenta Blancarte (2011, p.203): Nas últimas duas décadas do século XX e no começo do novo milênio três fatores permitiram a reativação da laicidade: 1) a gestação de uma efetiva e significativa pluralidade religiosa; 2) a maior consciência da necessidade de 20 O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNHD-3), aprovado pelo presidente da Luiz Inácio Lula da Silva por meio do Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009, fazia referência aos símbolos religiosos no “Objetivo Estratégico VI: Respeito às diferentes crenças liberdade de culto e garantia da laicicadade do Estado”. Era dito no item c: “Desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União”. Todavia, devido às fortes pressões de setores da Igreja Católica e de parte da opinião pública esse tópico foi suprimido na nova versão do documento apresentada em 2010. 21 Do ponto de vista teórico, no que tange ao tema da laicidade em específico, verifica-se uma predominância de artigos e trabalhos acadêmicos no âmbito das Ciências Jurídicas no Brasil, carecendose assim de uma discussão e pesquisa de cunho mais Antropológico sobre essa questão, já que o enfoque das Ciências Jurídicas se apresenta como estritamente legal e normativo. 15 proteger os direitos humanos e, portanto os direitos das minorias com o crescimento reconhecimento das diversidades, e 3) gradual, mas real democratização das sociedades latino-americanas.22 Ademais, destaco que a presença da religião no espaço público não se dá apenas por meio de atores humanos (individuais e coletivos) e discursos, mas também por imagens e objetos. Imagens e objetos que são dotados de agência e assim não me parece ser insignificante sua presença em espaços públicos. É um objeto/imagem em especial, o crucifixo, que desencadeia boa parte das controvérsias gerando debates e disputas acerca de seu sentido e valor. Afinal, esse símbolo não é um mero adorno estético, mas um poderoso ícone que concentra múltiplos significados.23 22 Tradução livre feita pelo autor da tese do espanhol para o português. Os objetos, as coisas, possuem uma biografia cultural e uma vida social (Appadurai, 2008; Kopytoff, 2008). Segundo Appadurai (2008, p.17): “[...] temos de seguir as coisas em si mesmas, pois seus significados estão inscritos em suas formas, seus usos, suas trajetórias. Somente pela análise desta trajetória podemos interpretar as transações e os cálculos humanos que dão vida às coisas. Assim, embora de um ponto de vista teórico atores humanos codifiquem as coisas por meio de significações, de um ponto de vista metodológico são as coisas em movimento que elucidam seu contexto humano e social. Nenhuma análise social das coisas (seja o analista um economista, um historiador da arte ou um antropólogo) é capaz de evitar por completo o que pode ser denominado fetichismo metodológico”. 23 16 1 A RELIGIÃO NA MODERNIDADE: SECULARIZAÇÃO, SECULARISMO E LAICIDADE De acordo com Talal Asad (2003), a Antropologia, ao contrário de outras áreas das Ciências Sociais, como a Sociologia e a Ciência Política, não tem dado a devida atenção ao “secular” e ao “secularismo”, dimensões basilares na construção e desenvolvimento da modernidade ocidental. Entretanto, acredito que uma antropologia das sociedades modernas, uma antropologia do centro (Latour, 2004b), que não se volte unicamente aos aspectos marginais e periféricos da modernidade, deve concentrar sua atenção no entendimento das relações entre o religioso e o secular, bem como do lugar da religião nas sociedades modernas, ensejando, dessa forma, um repensar crítico acerca dos processos e conceitos de secularização e laicização. Nessa tentativa de elaboração de uma antropologia do secularismo (Asad, 2003), fundamental é a explicitação e o exame da teoria da secularização 24, dos seus pressupostos, lacunas e valores heurísticos. Haja vista que esta tem sido a moldura teórica e analítica através do qual as Ciências Sociais têm observado a relação entre religião e modernidade (Casanova, 1994). Assim sendo, dedico-me inicialmente a compreensão e análise crítica dessa teoria, para, em um segundo momento diferenciá-la da laicidade. Como será visto, a secularização é um processo societal mais vasto, que em determinadas conjunturas históricas engloba a laicidade, mas que não pode, em termos teóricos e conceituais, ser confundida com essa última. A teoria ou tese da secularização apresenta um caráter multidimensional e polissêmico. Como outros conceitos e categorias das Ciências Sociais, não comporta uma única definição. Grosso modo, diz respeito ao refluxo da religião na modernidade. O advento de uma sociedade moderna, marcada pela urbanização, industrialização e pelo progresso técnico e científico acarretaria o enfraquecimento da religião. Diferentemente do que ocorria em sociedades arcaicas, “primitivas” ou tradicionais, onde a religião ocupava um lugar central, na modernidade o sagrado, ou o religioso, torna-se uma esfera, um domínio, em separado e restrito. É, na verdade, um processo de perda e “saída da religião”, que não mais estrutura a vida política e social (Gauchet, 24 Conforme Swatos (1999), Bryan Wilson, Peter Berger, Thomas Luckmann e Karel Dobbelaere são os principais proponentes desta teoria. 17 1985).25Desse modo, a religião deixa de ser o princípio norteador da vida social: os comportamentos, atitudes e instituições são guiados por outros valores, isentos de matiz teológico. Segundo Tschannen (1991), as “teorias da secularização”, defendidas por autores como Berger, Luckmann, Wilson, Martin, Fenn, Parsons e Bellah, apesar de divergentes, se baseiam em alguns conceitos centrais, o que indica a existência de um “paradigma da secularização”. Esse paradigma se ancora em três conceitos nucleares: diferenciação, racionalização e mundanização. Esses conceitos centrais dão origem, por sua vez, a outras categorias analíticas secundárias, como: autonomização, privatização, generalização, pluralização e colapso da visão de mundo. Enfatizo aqui, brevemente, os três conceitos nucleares. O conceito de diferenciação sinaliza o processo pelo qual a religião tornou-se um domínio particular, diferenciado dos demais domínios da vida social. A racionalização diz respeito à emergência de uma visão de mundo racional e científica, distanciada de preceitos religiosos, dessa forma, a visão religiosa do mundo perde plausibilidade. Com a mundanização, o “transcendente”, o “sobrenatural” perde cada vez mais espaço no mundo social. As organizações religiosas, por consequência, preocupam-se mais com problemas sociais do que com questões espirituais como a salvação das almas. Interessante notar a etimologia dos termos secular e secularização, pois ambos têm uma origem religiosa, mais especificamente ligada à tradição cristã e ao Direito Canônico (Marramao, 1995). A palavra secular deriva da expressão século, que se origina do latim saeculum. Conforme Catroga (2004, p. 53): [...] no cristianismo, a palavra saeculum foi aplicada na Vulgata (São Jerônimo), para traduzir o grego Kósmos numa acepção negativa: “o momento presente”, este “século”, em oposição à eternidade, ao futuro – o reino prometido por Deus. Por sua vez, o termo secularizar e secularização derivam do latim secularizatio, possuindo inicialmente o sentido de transição e passagem de um religioso regular ao estado secular. Já no século XV o termo secularizatio26 referia-se ao ato jurídico e 25 Para Marcel Gauchet, em sua obra Le desenchantment du monde (1985), o cristianismo cumpriu um papel importante no processo de dessacralização do mundo. A cosmovisão dualista e transcendentalista do cristianismo colaborou para o surgimento de uma modernidade secularizada. 26 Catroga (2004, p.59) ainda destaca um outro significado ligado a esse termo, que conecta-se com uma determinada filosofia da história que surge no século XVII; acerca disso declara: “E, por diferentes ou antitéticas que venham a ser as várias ilações político-ideológicas que elas fundamentarão, será possível 18 político dos príncipes protestantes de expropriação dos bens e propriedades da Igreja Católica (Marramao, 1995). Sendo assim, a própria noção de secular surge no interior da tradição cristã para enfatizar um domínio da realidade que é caracterizado como mundano, temporal e meramente natural. Contudo, de acordo com Koselleck (2003), o conceito, a expressão secularização tem seu sentido ampliado a partir da revolução francesa. A partir desse momento, além do sentido jurídico-canônico e jurídico-político, a secularização se torna uma categoria hermenêutica de uma determinada filosofia da história que analogamente aos conceitos de emancipação e progresso intenciona uma interpretação da história universal inteira da idade moderna. Nesse sentido, o termo “secular”27 tornou-se uma categoria central do pensamento ocidental moderno, dando origem a uma particular ideologia e visão de mundo o secularismo, que surge e se espraia como doutrina política no ocidente a partir do século XIX.28 Para essa doutrina, a moralidade, a educação e o Estado não devem basear-se em princípios religiosos. Em consonância com a ideologia secularista, para que uma sociedade seja moderna ela tem que ser necessariamente secular, impedindo a presença da religião no espaço político. Assim sendo, a religião torna-se assunto meramente privado (Asad, 2004). Genealogicamente, a cosmovisão secularista deita suas raízes no humanismo da Renascença, no iluminismo e em parte na filosofia da história de Hegel (Asad, 1999). O liberalismo, o republicanismo, o positivismo e o socialismo são correntes políticas e filosóficas que se desenvolvem na esteira da ideologia secularista. Desse modo, é interessante notar que a secularização é um processo social e um programa político. É na realidade um projeto político do movimento secularista, que tende a alinhar perigosamente a religião com a tradição e a superstição, e a secularidade com a modernidade, a racionalidade e a ciência (Gorski e Altinordu, 2008). encontrar, em todas uma crença comum: o convencimento de que as tarefas e desafios humanos devem ser resolvidos no tempo histórico, com e através do próprio tempo histórico”. 27 Em seu volumoso livro - Uma era secular - mais de cunho filosófico do que propriamente sociológico e antropológico Charles Taylor (2010), caracteriza a modernidade ocidental como uma era secular. Esta seria marcada fundamentalmente pela passagem de uma sociedade em que a fé em Deus é inquestionável, não problemática, para uma outra configuração civilizacional em que a fé é entendida como sendo uma opção entre outras. “A fé em Deus não é mais axiomática. Existem alternativas” (Taylor, 2010, p.16). 28 Conforme Asad (2004), os termos secularismo e secular foram introduzidos por livre-pensadores ingleses na metade do século XIX, para evitar a carga pejorativa de termos como ateístas e infiéis. 19 De acordo com Dobbelaere (1999), é preciso diferenciar, no que tange à teoria da secularização, entre níveis de análise: um nível macro ou societal, um nível meso e um nível micro ou individual. No nível macro ou societal, verifica-se uma autonomização das diferentes esferas da vida social, educação, direito, política, economia, arte e outras, do controle e autoridade das instituições religiosas. As esferas sociais não são mais regidas por normas religiosas, mas por princípios próprios. Dessa maneira, a religião torna-se também uma esfera autônoma, um campo particular e diferenciado, não possuindo mais um domínio sobre as demais esferas sociais. Na modernidade, o religioso não é mais o elemento axial em torno do qual gravitam os variados campos sociais, declinando na medida em que perde influência e força sobre as instituições sociais. No nível meso observa-se a pluralização das crenças que resulta na formação de um mercado religioso, altamente competitivo e dinâmico. Por sua vez, no nível micro percebe-se a individualização, a descrença, a bricolage e o declínio do envolvimento dos indivíduos com as igrejas institucionalizadas. Porém, Dobbelaere (1999) ressalva que a religiosidade dos indivíduos não pode ser exclusivamente explicada pela secularização do sistema social. Outros fatores como a destradicionalização, a mobilidade e o individualismo utilitário contribuem para o enfraquecimento das crenças e práticas religiosas. Contudo, a secularização do sistema social, em nível macro, influencia a religiosidade dos indivíduos, havendo pontos de contato entre o nível macro e micro. A relação entre os níveis não é causal, nem unidirecional, mas sobretudo dialética. Dessa forma, Dobbelaere (1999), não descarta o núcleo duro da teoria da secularização, mas apenas ressalta seu aspecto muldimensional, enfatizando a secularização em nível macrossocietal. Para Casanova (2007b) a tese da secularização tem três conotações básicas. A primeira refere-se à decadência das práticas e crenças religiosas nas sociedades modernas; a segunda diz respeito à privatização da religião e a terceira indica a distinção das esferas sociais, que se emancipam do religioso. Todavia, segundo esse autor, as evidências empíricas têm demonstrado que a tese da secularização como decadência das práticas e crenças religiosas, e como privatização da religião, não se manteria. Apenas a noção da secularização como diferenciação funcional teria validade. 20 Cabe ainda sublinhar que autores como Mariano (2006)29 e Pierucci (1997), enfatizam o caráter processual, agonístico e dinâmico da secularização, com a finalidade de desvencilhar-se de uma perspectiva linear teleológica, e assim preservar o alcance heurístico dessa teoria. Desse modo, a secularização não é concebida como um fenômeno social irreversível e fatal, presente de forma única e modelar em todas as sociedades. Trata-se na verdade de uma visão mais nuançada e atenta às particularidades históricas do processo de secularização. Defendo aqui uma postura que observa na realidade concreta das diversas sociedades humanas um permanente embate e interação entre forças secularizantes e valores e agentes religiosos. Secular e religioso se interpenetram e estão em constante tensão. Concordo, dessa maneira, com o que afirma Catroga (2006, p.453): Pensando bem, tanto as posições que sentenciaram a inevitável morte do sagrado, como as que cantam a involução do processo, pecam por excesso, pois, esquecem que a secularização não é sinônimo de antirreligião, mas afirmação da autonomia do século. Assim, se a primeira atitude padece de um exagerado otimismo racionalista e antropocêntrico que as experiências históricas concretas não confirmam, as que enfatizam, em termos “restauracionistas”, o comportamento “regresso”, mostram-se insensíveis a esta outra evidência: a gradual infiltração de atitudes, comportamentos individuais e relações institucionais,de inspiração secular, nas próprias religiões, relações de vasos comunicantes que se torna particularmente visível nas sociedades pós-industriais. Enquanto a secularização é um processo socio-cultural de maior amplitude envolvendo o declínio e a perda da posição central e estruturante que a religião detinha em tempos pretéritos, a laicidade30 é eminentemente um fenômeno político e jurídico relacionado à consolidação do Estado moderno. Acerca dessa distinção assevera Oro (2008, p. 83): De fato, a laicidade é tida muitas vezes como sinônimo de secularização. Mas aqui também não há um alinhamento conceitual. O termo secularização, usado preferencialmente no contexto anglo-saxônico, e o de laicização, ou Mariano (2006, p.1) percebe a secularização “como um ‘processo’ eminentemente agonístico, marcado por uma série de lutas sem-fim entre laicistas e religiosos”. 29 30 Importante sublinhar que o termo laicidade foi utilizado pela primeira vez na França em 1871 em um voto no Conselho Geral da Região do Sena a favor do ensino público laico (Blancarte, 2008a). Neste sentido, as expressões escola laica, Estado laico, laicizar, laicização expressam uma oposição ao clerical e a religioso. Historicamente, a expressão laicidade deriva do temo laico, que se origina do grego laikós, que significa do “povo”. Foi utilizada primeiramente para diferenciar o “leigo” do clérigo (Catroga, 2004). 21 laicidade, usado nas línguas neolatinas, não se recobrem totalmente. Secularização abrange ao mesmo tempo a sociedade e as suas formas de crer, enquanto laicidade designa a maneira pelo qual o Estado se emancipa de toda a referência religiosa. É o Estado moderno, pressionado por atores sociais laicistas, que se separa e desvincula-se do religioso (Baubérot, 2005a). O Estado laico é conceitualmente um Estado neutro em matéria religiosa, imparcial e não confessional que procura, também, tratar todas as organizações religiosas com isonomia. Caracteriza-se fundamentalmente pela autonomia do político frente ao religioso, e pela ideia de que a soberania e a legitimidade do poder derivam do povo e não do sagrado (Blancarte, 2008a). Há aqui o ideal político que Bhargava (2009) cunhou como uma “mútua exclusão”, ou seja, o Estado não adentra e interfere no campo religioso e as religiões não interferem na ordem estatal. Trata-se, em suma, de um modelo de Estado que não se vincula com qualquer confissão religiosa ou doutrina filosófica. Porém, concretamente, o Estado laico não é neutro, pois advoga uma determinada visão de mundo e defende certos valores como a democracia, os direitos humanos, a igualdade e a liberdade. Ademais, há uma grande variedade de exemplos empíricos que atestam que o Estado laico interfere, regula e define a esfera religiosa. Na realidade, o Estado laico assume uma tarefa pedagógica e positiva, inculcando determinados valores e princípios, preocupando-se assim com a “formação das almas”. O Estado laico intenciona forjar um “homem novo”, o cidadão, imbuído de virtudes cívicas. Assim, é no terreno do ensino, da educação, que o processo de laicização se afirma prioritariamente; por isso, a defesa intransigente da escola laica. Juntamente com a laicização da escola pública, outras medidas laicizadoras são levadas a cabo como indica Catroga (2004, p.111): [...] separação das Igrejas da Família, garantida pela introdução do casamento civil e do divórcio; a separação da Igreja e da saúde, conseguida através da proibição da enfermagem e da assistência religiosas nos hospitais. Num registro mais cultual, também se desejava laicizar o capital simbólico, visando a produção (e reprodução) do consenso social e nacional, quer mediante a substituição de Deus pelo culto da pátria e a abolição dos juramentos religiosos nos actos políticos e judiciais, quer através da instauração de feriados civis (extinguindo ou restringindo os religiosos) e da promoção de festas e de uma nova hagiografia cívica. Dessa forma, em muitos países o projeto laicizador acabou por desenvolver religiões cívicas e políticas, que acabaram por “substituir” às religiões tradicionais. A formação de religiões políticas, alternativas seculares as religiões tradicionais, é uma 22 das facetas da ideologia secularista. Esse ponto será examinado com mais detalhe nas próximas páginas. É, sobretudo, nos países de tradição católica que o processo laicizador assumirá feições radicais e fortemente anticlericais. Devido à ampla influência cultural e à união da Igreja Católica com o Estado nos países do sul da Europa e da América Hispânica, os atores sociais e correntes políticas que defendiam a separação entre Estado e religião assumiram posturas combativas e de enfretamento com o grupo religioso hegemônico. Para Blancarte (2008b, p. 140), na América Latina “predominou o laicismo mais que a laicidade [...]”. O laicismo indica uma atitude de rechaço ao religioso, uma “laicidade de combate”, que concebe a religião como um oponente.31 Por sua vez, nos países de tradição protestante, a relação entre a religião e o Estado foi e continua sendo menos conflituosa (Champion, 1999). Estabeleceu-se em muitos desses países regimes de igrejas de Estado, como é o caso do anglicanismo na Inglaterra e do luteranismo na Finlândia, Dinamarca, Noruega e Suécia. Por outro lado, nos países ortodoxos (Grécia32, Rússia e Sérvia) a religião é um elemento fundamental da identidade nacional e com significativa presença na arena política. Mesmo em outros países europeus, como Irlanda e Polônia, a religião foi e continua sendo importante na formação e consolidação do Estado nacional.33 Em realidade, nota-se na Europa e mesmo na América Latina, uma diversidade de arranjos jurídicos e políticos nas relações entre Estado e religião. Examinando o caso europeu assevera Catroga (2004, p.124): [...] ausência completa de laicismo, como acontece na Grã-Bretanha (onde o monarca é chefe da Igreja), na Dinamarca (onde a Monarquia se identifica com a Igreja Luterana), na Grécia (onde a Igreja ortodoxa está intimamente liga à luta pela independência nacional); aquele que assenta numa “semilaicidade” (Alemanha, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Irlanda) que se caracteriza pela existência de um Estado confessional, mas que apoia e subsidia as religiões, num clima de independência das Igrejas e de respeito pela liberdade religiosa; aquele que, depois de períodos de laicidade à francesa, pode ser definido como de “quase laicidade” (Portugal, Espanha, Itália), porque, constitucionalmente, o Estado continua a ser religiosamente neutro, embora tenha celebrado tratados concordatários que acabam por 31 Para uma visão panorâmica e comparativa das formas de relação entre Estado e religião na América Latina e na Europa, ver Oro (2008). 32 A constituição grega de 1975, revisada em 1986, foi promulgada em nome da Santíssima Trindade e declara que a Igreja Ortodoxa Grega é a religião dominante (Baubérot, 2005b). 33 Sobre o tema das relações de contato entre nacionalismo e religião na Europa, ver Haupt (2008). 23 privilegiar a religião majoritária; e ainda aquele outro, de cariz “laico”, cujo modelo mais consequente e contínuo se encontra, pelo menos desde 1905, na chamada especificidade francesa. Parece-me que os Estados Unidos e a França são casos paradigmáticos para pensar as relações entre Estado e religião, e dessa forma compreender o caráter problemático da laicidade estatal. Nos Estados Unidos o processo de laicização ocorreu de forma rápida e relativamente pacífica; foi este o primeiro país a consagrar a separação entre Estado e religião na primeira emenda de 1791. Apesar desse documento jurídico proclamar a separação entre a esfera política e a esfera religiosa, a sociedade norte-americana é altamente religiosa e a religião influencia e interfere nos grandes debates públicos. Além disso, cabe acrescentar que essa nação formou-se por meio de uma “religião civil” (Bellah, 1967). Contudo, mais recentemente, uma série de medidas jurídicas laicizantes vêm sendo tomadas pela Suprema Corte Americana, como por exemplo a proscrição de orações das escolas públicas em 1962 e a legalização do aborto, em 1973 (Keddie,2003).34 Por outro lado, a França é vista como o berço e símbolo maior da laicidade.35A Lei de Separação, de 1905 busca fazer da religião assunto meramente privado. Trata-se de um dos únicos países do mundo que se afirma laico em sua carta magna. Não obstante, mesmo nesse país verificam-se pontos de contato entre o Estado e a religião. Escolas confessionais cristãs e judaicas são subsidiadas pelo Estado; na região da Alsácia e Mosela os pastores, padres e rabinos, são pagos pelo Estado; no exército, nas escolas, prisões e hospitais existem capelães pagos pelo Estado; por fim, ritos funerários judaicos e islâmicos são permitidos nos cemitérios, sendo estes controlados e mantidos pelo Estado (Asad, 2006b). Ademais, em 1996, o “Estado laico” francês celebrou uma missa católica na Notre-Dame de Paris em honra ao ex-presidente François Mitterand e comemorou os 500 anos do batismo de Clóvis (Giumbelli, 2002; Hervieu-Léger, 2008). Nota-se, de um modo geral e por toda parte, uma relação dinâmica e mutável entre a ordem estatal e as organizações religiosas, marcada ora por uma aproximação e mútua penetração, e ora por um afastamento e até mesmo uma confrontação. Dessa maneira, me parece bastante acertada a observação de Mart Bax (1991) de que Estado e Blancarte (2008a, p. 28) fala no paradoxo norte-americano: “[...] o primeiro país que estabeleceu a separação entre o Estado e as Igrejas e por outro lado, uma nação que baseia suas ações no mundo com um sentido religioso”. 34 35 Para uma visão geral acerca dos novos desdobramentos do modelo francês de laicidade ver Portier (2010) e Willaime (2005). 24 religião são “antagonistas interdependentes”. Conforme esse autor, as organizações religiosas tem um importante papel no processo de formação e desenvolvimentos dos Estados nacionais. Por outro lado, as religiões dependem para sua expansão, em alguma medida, dos Estados. Enquanto em alguns momentos históricos os Estados procuram incorporar e, até mesmo, destruir as organizações religiosas, em outros as religiões tentam dominar e instrumentalizar os Estados para seus fins. Além disso, há uma acirrada disputa e competição entre o Estado e as religiões para monopolizar diversos campos da vida social. 1.1 Repensar a secularização e a laicidade O surgimento do fundamentalismo islâmico, a expansão pentecostal, o revigoramento do integrismo católico, a explosão de novos movimentos religiosos e a atuação contundente e expressiva de discursos e atores religiosos nos grandes debates públicos contemporâneos, incita a um redimensionamento da teoria da secularização. A concepção de uma “privatização da religião” contrasta com a realidade empírica, onde se pode verificar a pujante presença de demandas, valores, personagens e símbolos religiosos na esfera pública. Esses fatores indicam que não se verifica um “eclipse do sagrado”, mas uma reconfiguração do religioso na modernidade, que conduz a novos arranjos entre Estado, religião e sociedade. Em verdade, a teoria da secularização não tem alcance universal, não podendo, dessa forma, ser aplicada a outras conjunturas culturais. Pode ser válida, em parte, no contexto ocidental e cristão, onde nasceu. Contudo, em culturas influenciadas pela tradição islâmica, budista, hinduísta, confuciana e taoísta, muitos dos elementos básicos da tese da secularização não parecem ter validade teórica e empírica. Questões como participação e ativismo religioso, importantes na teoria da secularização, não podem ser verificadas nessas tradições espirituais que não se organizam em forma de igrejas, assim como a noção de autonomização das diferentes esferas da vida social (Van der Veer, 1995).36 Sobre essa necessidade de relativizar e contextualizar a tese da secularização, afirma Casanova (2007b, p. 6): Como uma conceitualização analítica de um processo histórico, a secularização é uma categoria que tem sentido dentro de um contexto de dinâmicas externas e internas particulares da transformação da cristandade 36 O próprio conceito de secularização e a categoria secular surgem no Ocidente (Asad, 1999). No mundo islâmico o termo secular somente começou a ser usado no século XX (Keddie, 2003). 25 europeia ocidental desde a Idade Média até o presente. Mas a categoria se torna problemática uma vez que se generaliza como um processo universal de desenvolvimento social e quando transfere a outras religiões do mundo e outras áreas civilizacionais com dinâmicas muito diferentes no momento de estruturar as relações e tensões entre a religião e o mundo, ou entre a transcendência cosmológica e a imanência profana. Nesse sentido, a tese da secularização pode apresentar um caráter normativo, teleológico e a-histórico ao sublinhar uma relação intrínseca entre modernidade e secularidade. A religião é vista como parte de um passado pré-moderno que deve ser superado pela razão e pelo conhecimento técnico e científico. A secularização torna-se uma narrativa que ressalta a emancipação que a modernidade ocidental efetuou do domínio arcaico e irracional da religião: “[...] uma autocompreensão ‘secularista’ que interpreta esta deterioração como algo ‘normal’ e progressivo’, isto é, como uma quase normativa consequência de ser um europeu ‘moderno’ e ‘ilustrado’(Casanova, 2007a, p. 18)”. Um dos pontos fulcrais da ideologia secularista é a distinção entre espaço público e espaço privado. O espaço público é concebido, na tradição liberal, como o espaço da discussão racional entre sujeitos despidos de suas identidades particulares, todos sendo vistos como iguais, pois, são cidadãos com os mesmos direitos e deveres. Assim sendo, as crenças religiosas devem estar alocadas na esfera privada, não podendo adentrar e influenciar a arena pública. O pressuposto que subjaz nessa afirmação é de que a religião é um assunto e uma prática ligada às emoções e às paixões, à autoridade e ao constrangimento, não devendo ocupar e participar dos debates que se travam no espaço público. O ideário liberal e republicano, de teor secularista, teme a intrusão da religião nos negócios do Estado, devido à percepção de que o religioso, fora do âmbito privado, pode apresentar-se como uma força passional, destrutiva e desestabilizadora, originadora de conflitos e violência (Asad, 2003). Igualmente, há uma tendência do discurso secularista em associar a religião com a irracionalidade, o conservadorismo com o autoritarismo. Desse modo, não caberia ao religioso fornecer e prover normas e valores para uma sociedade (Sullivan, 2005). Busca-se assim uma neutralização das identidades religiosas. Contudo, o espaço público, concretamente, não é um espaço homogêneo e vazio, caracterizado pela discussão racional, mas é sim um espaço carregado de sensibilidades, memórias e aspirações, habitado por sujeitos portadores de identidades religiosas, filosóficas, étnicas, etc. (Asad, 2006b). A ideologia secularista parece ter levado em 26 consideração a dimensão cívica e política dos agentes, mas deixou de lado a dimensão cultural e religiosa, que é parte integrante dos atores sociais em sua vida pública e privada. Acerca disso, Madan (1987), tem enfatizado que o secularismo não passa de um “mito social e político”. No entendimento desse autor, o secularismo é uma espécie de utopia, o sonho de uma minoria que busca impor à maioria a sua imagem de uma ordem social completamente afastada do religioso. Por consequência, o “mito secularista” tende a não levar em conta a importância da religião na vida individual e coletiva. Ora, como observa Charles Taylor (2011), o religioso e o secular formam uma díade, ou seja, duas dimensões da realidade que estão em constante tensão e interrelação. O problema surge quando há uma explícita negação de um desses níveis. Quando o religioso ou o transcendente, é negado, e só se afirma e se reconhece a imanência e assim o secular, o polo espiritual é tomado como uma quimera, uma mera invenção sem maior importância. Por sua vez, o secular é percebido como a única realidade, o único campo no qual a ação humana se desenvolve. Desse modo, o religioso, o “eclesial”, é visto como uma opção acessória e que, além disso, frequentemente causa distúrbios e incômodos no curso da vida secular. Por outro lado, a própria noção de que a passionalidade e a violência são características exclusivas das religiões é abusiva e generalizadora. Na verdade, as tradições religiosas não possuem o monopólio da violência e da intolerância, e, dessa maneira, não há qualquer garantia objetiva de que domesticando as “paixões religiosas” a vida política das sociedades seculares será mais segura (Casanova, 2007d). Ademais, o século XX presenciou uma terrível onda de guerras, genocídios e intolerâncias perpetradas por ideologias seculares, como o nazismo alemão, o comunismo soviético, o maoísmo chinês, o republicanismo na Espanha na década de 1930 e a ditadura kemalista na Turquia (Asad, 2003; Casanova, 2007b). Como assevera Asad (2003, p.100): “a equação de instituições religiosas com violência e fanatismo não pode ser feita”. Há assim, também, uma intolerância secularista, ou laica.37O secularismo e a laicidade não são garantias de sociedades democráticas, pacíficas e liberais. Por outro lado, a participação e atuação de atores e discursos religiosos no espaço público, bem 37 Gorski e Altinordu (2008), por sua vez, asseveram que a divisão entre secularistas e seus oponentes não significa que os primeiros sejam ateus ou agnósticos e os segundos crentes. Pode haver crentes que defendam o secularismo, e não crentes que apoiem o religioso em nome da ordem e da estabilidade social. 27 como a relação de proximidade entre Estado e grupos religiosos não significa, necessariamente, autoritarismo e anacronismo. De acordo com Casanova (2007b, p. 15): Não posso encontrar uma razão convincente, de acordo com os fundamentos democráticos e liberais, para proscrever os princípios religiosos da esfera pública democrática. Poder-se-ia, como muito, defender sobre princípios históricos pragmáticos a necessidade de separar a “Igreja” do “Estado”, ainda que não esteja convencido que a separação completa seja uma condição necessária e suficiente para a democracia. Mas, em qualquer caso, o intento de estabelecer um muro de separação entre “religião” e “política” é tão injustificado como provavelmente contraproducente para a própria democracia. 38 Seguindo semelhante linha de argumentação, Alfred Stepan (2000, 2009) tem enfatizado que o secularismo, e por consequência a própria separação entre Estado e religião não é um elemento estritamente necessário para o funcionamento de uma democracia. Desse modo, a laicidade não é um princípio central e caracterizador de sociedades democráticas. Existem democracias com igrejas estabelecidas e regimes autoritários com Estados laicos. A noção de que uma democracia deva ser laica e secular é apenas um pressuposto ideológico, que se fundamenta em um modelo específico e particular de relação entre Estado, religião e sociedade. Em realidade, não existe uma afinidade intrínseca entre democracia e secularismo; a princípio, boa parte das organizações religiosas não são contrárias à construção e ao fortalecimento de sociedades democráticas. Como exemplo histórico, vale lembrar que a Igreja Católica no Brasil, durante o regime militar, desempenhou um importante papel na defesa dos direitos humanos e em prol da democratização. Do mesmo modo, na Polônia e em outros países do Leste Europeu, essa instituição religiosa atuou a favor da instituição de regimes democráticos, batendo-se contra o totalitarismo comunista. Seguindo semelhante linha teórica, Bader (2011) pensa que a questão axial não é se o Estado e a política são modernos ou seculares, mas se de fato são liberais e democráticos. Colocando de outro modo: a distinção e disjuntiva principal a ser feita não é entre o religioso e o secular, mas entre liberal e não liberal, democrático e não democrático. Além disso, importa frisar que não há uma relação direta ou de causalidade entre modernidade, secularização e laicidade. Haja vista a existência de sociedades modernas fortemente religiosas, como o caso dos Estados Unidos, e Estados nacionais vinculados a uma determinada confissão religiosa, mas que, entretanto, são sociedades seculares, 38 Semelhante linha de raciocínio é arguida é desenvolvida pela cientista social Camil Ungareanu no artigo The contested relation between democracy and religion: Towards a dialogical perspective (2008). 28 como é o caso dos países nórdicos. A modernidade não conduz necessariamente a um declínio e enfraquecimento do religioso e a uma separação entre Estado e religião. A religião não é uma mera ilusão, uma fantasia irracional de tempos primitivos que sobrevive no mundo moderno. Em suma, como demonstra Diotallevi (2011), a laicidade é somente uma das alternativas que a modernidade apresenta para pensar e efetuar a distinção entre a esfera religiosa e o poder político. Para este autor, o modelo norteamericano baseado na noção de religious freedom, e caracterizado pela existência de duas cláusulas que se referem ao religioso, o free exercise e o disestablishment of church, consagradas na primeira emenda da Constituição norte-americana aprovada definitivamente em 1791, oferece uma forma de relação entre Estado e religião significativamente diversa do tradicional modelo de laïcité francês. No modelo norteamericano, a separação entre o poder político e o poder religioso não prevê a expulsão da religião da esfera pública, e, ainda, não é marcado por uma monopolização do espaço público pela política. Nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, e em outros países da Europa continental como a Itália, as leis vigentes não são apenas resultado do poder legislativo central, ademais, para organizações e instituições como igrejas, universidades e mercados é reconhecida a mesma dimensão pública atribuída às administrações políticas. Outrossim, o Estado moderno controla, fiscaliza e intervém no campo religioso. É este que define o lugar e o papel da religião no interior de uma determinada sociedade (Van der Veer, 1995). Através de uma série de medidas jurídicas e políticas se concretiza uma regulação do religioso, por parte do Estado, que, dessa forma, não se preserva neutro nessa matéria (Mahmood, 2006; Sullivan, 2005). Além disso, muitas funções e atividades que outrora eram cumpridas pelas instituições religiosas, no campo da educação, saúde e assistência social, são hoje conduzidas pelo Estado (Van der Veer, 1995). Em termos empíricos, pode-se citar a decisão do governo francês de vetar a utilização de signos religiosos ostensivos em repartições públicas, na polêmica sobre o véu islâmico39, como uma tentativa do Estado de regular e definir o religioso. Comentando sobre essa polêmica, Asad (2004), destaca uma relação assimétrica entre Estado e religião, pois o Estado toma decisões que afetam o livre exercício das religiões, mas a religião não pode intervir na esfera estatal. Pode-se falar assim em uma 39 Para uma cuidadosa análise desse caso ver Asad (2006b). 29 “normatividade secular” devido à ânsia dos Estados modernos, laicos, em delimitar e regulamentar a religião, remodelando-a e tornando-a mais adequada e palatável aos valores seculares (Mahmood, 2006).40 Nesse sentido, os Estados laicos assumem em determinados momentos históricos uma postura de “emancipadores filosóficos” ou mesmo de “magistrados”, intencionando libertar os indivíduos e as coletividades de quaisquer afiliações religiosas, vistas como incompatíveis com os valores seculares e democráticos (Koussens, 2009). O Estado assume assim uma postura intervencionista e “positiva”. Reportando-se ao caso turco, caracterizado por um secularismo extremado e de feições autoritárias, Nilüfer Göle (2010) observa que este se afirma sobretudo como um habitus, em que uma série de técnicas performativas e práticas discursivas são apreendidas e interiorizadas. Segundo a citada autora, a república turca criou sua própria elite secular e seus próprios espaços seculares.41 Acrescenta-se ainda o fato de que em muitas experiências históricas, como na França jacobina, os princípios republicanos foram sacralizados (Asad, 2006b; Casanova, 2007B; Kilani, 2007; Martin, 2003). Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, bem como o próprio princípio de separação entre Estado e religião, tornaram-se “novos dogmas”, a serem seguidos de forma irrestrita e absoluta. Dessa forma, a laicidade republicana francesa acabou por redundar em uma “religião civil”, centrada no culto do Ser Supremo, em 1791, e no culto da deusa razão em 1793. Em lugar da religião católica erigiu-se um novo culto, uma nova religiosidade, baseada também em mitos, heróis fundadores e símbolos.42 Saliento, nesse sentido, que a laicidade não é um conceito monolítico. Há, na realidade, variadas e contrastantes noções e definições de laicidade. O que procurarei descrever, e mostrar nos próximas capítulo deste trabalho é como a laicidade é concebida, apropriada e utilizada por diferentes atores sociais na prática, ou seja, em situações concretas que conduzem à definição e ao uso dessa categoria. Keddie (2003) vai ainda mais longe ao falar de um controle “agressivo” sobre a religião em alguns Estados nacionais, referindo-se ao que ocorreu na Turquia moderna, no Irã de Pahlavi, na Tunísia de Bourguiha e na União Soviética e leste europeu. 40 41 A laicidade turca, conhecida pelo termo laiklik, teve começo com a constituição de 1924. Tendo como figura-chave o general Kemal Atatürk, que fundou a república turca. 42 Em pequeno artigo publicado no Jornal El Mundo, da Espanha (17/11/1999), Norberto Bobbio fala sobre o perigo da laicidade se degenerar em uma nova fé: “[...] el laicismo que necesite armarse y organizar-se corre el riesgo de convertir-se en una iglesia enfrentada a las demás iglesias”. 30 Por sua vez, religião e política, o sagrado e o poder estatal, sempre mantiveram contatos e envolvimentos, o que coloca em xeque a concepção republicana de fronteiras fixas entre a esfera religiosa e a esfera estatal (Asad, 1999).43 Assim, a própria noção de Estado laico não pode ser universalizada, pois há diversas experiências históricas que indicam outros caminhos na relação entre Estado e religião A maneira como se consolida a relação entre religião e política está diretamente vinculada à história política e religiosa de cada sociedade.44 1.2 Religião e Política: conexões e aproximações A concepção de uma completa separação, disjunção, e autonomia do político frente à esfera religiosa é uma construção histórica e cultural da modernidade ocidental.45 Trata-se, então, de uma noção que não pode ser naturalizada, pois deslocando a atenção para as sociedades tradicionais, se observará como o religioso e o político encontravam-se estreitamente vinculados, interpenetrando-se.46Isso também ocorre no campo conceitual e teórico. Em sua obra Os Dois Corpos do Rei, Ernst Kantorowicz (1985) demonstra como conceitos teológicos e eclesiológicos foram transferidos para o campo político e jurídico durante a Idade Média e no alvorecer da modernidade ocidental. Por outro lado, é sobretudo, no medievo cristão que a autoridade espiritual e o poder temporal intercambiam símbolos e insígnias: As infinitas interrelações entre a Igreja e o Estado, ativas em todos os séculos da Idade Média, produziram híbridos em ambos os campos. Os empréstimos mútuos e os intercâmbios de insígnias, símbolos políticos, prerrogativas e 43 Acerca da convergência entre o imaginário religioso e político na América Latina ver Oro (2009). Sobre essa temática Mariza Peirano esclarece (1996, p.19): “Historicamente, no entanto, foi a religião que dominou a configuração cosmológica mais ampla que gerou o ‘ocidente’ atual, da qual a política se separa por volta do século VIII e, nos último séculos, distingue-se a economia como dimensão autônoma. Mas religião, política e economia são categorias modernas, fruto de um processo histórico de longa duração que teve como mola o impulso de distinguir o que antes se mostrava reunido. (Tal processo histórico explica porque encontramos, ainda e sempre, política vinculada à religião, economia ligada à política, ou aspectos religiosos na economia). Por esta razão, quando se pensa a questão de uma antropologia do mundo contemporâneo, é imperativo o questionamento deste mecanismo de ‘separação’ como condição sine qua non para nos libertarmos da amarras da nossa própria ideologia (ou cosmologia)”. 44 Segundo Oro (2001, p.9): “Ademais, é previsível que a relação entre religião e política seja dinâmica, ora se aproximando e ora se distanciando, segundo idiossincrasias próprias das sociedades e das culturas”. 45 46 Sobre a união entre político e religioso na antiguidade greco-romana ver Coulanges (1961). Acerca da relação de proximidade entre essas esferas na Idade Média Ocidental ver Kantorowicz (1985). Sobre esse mesmo tema no âmbito da civilização hindu ver Dumont (1992). Granet (1998) discute essa questão na civilização chinesa. Balandier (1969) demonstra as conexões entre sagrado e político em sociedades africanas. Nasr (2001) analisa a inexistência da separação entre religião e política no mundo islâmico. 31 direitos honorários, se realizavam incessantemente entre os dirigentes espirituais e seculares da sociedade cristã. O papa adornava sua tiara com uma coroa de ouro, vestia a púrpura imperial, e era precedido por estandartes imperiais quando cavalgava em solene procissão pelas ruas de Roma. O imperador levava debaixo da coroa uma mitra, calçava os sapatos pontifícios e vestia roupas clericais, e recebia na coroação o anel, igual que o bispo. Estes intercâmbios afetarão, na Alta Idade Média, principalmente as pessoas dos governantes, tanto espirituais como seculares, até que finalmente o sacerdotium teve uma aparência imperial e o regnum um toque clerical (Kantorowicz, 1985, p.188).47 Por seu turno, a teoria elaborada no século XVI por juristas ingleses da época Tudor, que postulava os dois corpos do monarca, o corpo natural e material visto como mortal e efêmero e o corpo político imaterial, concebido como imortal, fundamentavase nas discussões cristológicas dos primeiros séculos da era cristã acerca da natureza dupla de Cristo. Esse debate, entretanto, originou-se da noção do corpo místico de Cristo, construída por parte de teólogos da Igreja Católica no século XII (Kantorowicz, 1985). Por sua vez, o conceito de pátria é transplantado do campo político e jurídico para o campo teológico, para posteriormente, ser secularizado, representando a comunidade nacional-territorial. Para os Padres da Igreja, a verdadeira pátria era o reino dos céus, sendo todo cristão visto como um peregrino neste mundo terreno. Por aquela pátria celeste todo o sacrifício era válido. A ideia de pátria é assim empregada, inicialmente, pela doutrina cristã, para definir uma cidade celeste e espiritual. Contudo, este foi um empréstimo que os teólogos cristãos fizeram da noção política e jurídica de pátria usada para a polis grega e a civitas romana. Em um terceiro momento esta noção é empregada para definir as comunidades políticas nacionais. Segundo Kantorowicz (1985, p.255): “[...] em um momento determinado da história, o Estado havia aparecido como um corpus mysticum comparável ao da Igreja. Por tanto, pro patria morri, morrer pelo corpo místico político, tinha sentido [...]”. A concepção cristológica de sacrificar a própria vida pela Igreja Católica, pela fé cristã, como um mártir,48 foi transferida para a 47 No Brasil isso também ocorreu, e ainda parece ocorrer. Dom Pedro I é sagrado imperador usando não um pequeno bastão, símbolo do poder real, mas sim um báculo, o cajado dos bispos, que visava representar a função pastoral e sacerdotal do monarca. Ademais, o imperador utiliza nessa ocasião a mitra e não uma coroa régia. O imperador é visto como um representante de Deus na terra, uma espécie de instrumento da providência divina. Juntamente com a imagem do sacerdote, emerge na cerimônia de sagração a imagem do rei-soldado, Dom Pedro I vestindo um uniforme militar, jurando defender a justiça, zelar pelo império da lei e defender a todo custo seu povo (Oliveira, 2005). 48 Para Kantorowicz (1985), a concepção cristã do mártir e da caridade tem sua origem na concepção clássica greco-romana do heros e amor patriae. 32 esfera política, a partir do surgimento dos Estados-nacionais, que se tornaram entidades sacralizadas, um novo corpo místico onde a morte pela pátria ou pelo rei foi percebida como uma morte heroica. As conexões, empréstimos e “contaminações” entre o teológico e o político na modernidade, é também o alvo do estudo de Carl Schmitt (1996) em sua Teologia Política. O autor assevera: “Todos os conceitos expressivos da moderna doutrina de Estado são conceitos teológicos secularizados” (Schmitt, 1996, p. 109). Existiriam assim certas correspondências e analogias estruturais entre categorias teológicas, religiosas, e conceitos políticos. Para Schmitt (1996), o Deus todo-poderoso da teologia cristã tornou-se o legislador onipotente da política moderna. Por outro lado, a ideia do Estado de exceção é análoga à concepção de milagre na teologia. O Estado neutro e liberal que procura não intervir direta e abruptamente na vida social tem como base metafísica o deísmo, que expulsa o milagre do mundo, confinando Deus na pura transcendência, sem poder de intervenção nas leis naturais de funcionamento do mundo. O conceito político de soberania, por sua vez, possui vínculos com a teologia, pois “na doutrina de Estado do século XVII o monarca é identificado com Deus e possui, no Estado, a mesma posição atribuída a Deus no mundo, pelo sistema cartesiano” (Schmitt, 1996, p.116). Conforme esse autor, o conceito cartesiano de Deus influencia decisivamente as monarquias do século XVII. No sistema cartesiano é Deus quem estabelece as leis da natureza, cabendo ao monarca, analogicamente, estabelecer as leis em seu reino. Importante frisar que Hobbes, com o seu Leviatã, é o principal artífice do modelo do soberano e do Estado todo-poderoso do absolutismo. Suas concepções políticas estão eivadas de imagens religiosas, pois se serve do símbolo bíblico do Leviatã para construir sua teoria estatal (o Livro de Jó nos capítulos 40 e 41 descreve esta criatura como um monstro marítimo). Na capa original do livro publicado por Hobbes em 1651, aparece a figura de um gigantesco soberano no fundo de um quadro pairando acima de montanhas; em sua mão direita porta a espada simbolizando o poder temporal e na sua mão esquerda porta um báculo episcopal simbolizando a autoridade espiritual. Abaixo de seu corpo, a cidade, e no lado direito, onde segura a espada, gravuras com um castelo, coroa, um canhão, lanças, bandeiras e uma batalha que exprimiam o poder político e militar. No lado esquerdo, onde segura o báculo, gravuras de uma igreja, uma mitra episcopal, um concílio e outros símbolos religiosos que 33 exprimem o poder espiritual. O corpo do soberano é composto por uma multidão de indivíduos em miniatura, simbolizando a pequenez e impotência dos indivíduos diante do poder do soberano. Hobbes pretendia reunir nas mãos do soberano o poder espiritual e temporal. O Estado moderno é assim representado como uma espécie de grande máquina, ou mesmo de um deus mortal, segundo o pensador inglês. Por consequência, as doutrinas estatais e políticas que advogam a onipotência do Estado são formas secularizadas de noções teológicas acerca da onipotência de Deus. Entretanto, as imagens teológicas e metafísicas do mundo modificam-se e alteram-se com o avanço da modernidade. Com Rousseau, o povo se torna o soberano. Essa concepção se fortalece nos Estados Unidos, onde o povo é visto como a própria voz de Deus. O imanentismo começa a predominar nos espíritos: O conceito de Deus dos séculos XVII e XVIII subentende a transcendência divina diante do mundo, assim como a transcendência do soberano diante do Estado subentende a sua filosofia de Estado. No século XIX, numa expansão crescente, tudo era dominado pelas ideias de imanência. Todas as identidades que reaparecem na doutrina política e de direito do Estado do século XIX baseiam-se nessas ideias de imanência: a tese democrática da identidade dos governantes com os governados, a doutrina orgânica do Estado e sua identidade entre Estado e soberania, a doutrina do Estado de direito de Krabble e sua identidade entre soberania e ordem jurídica e, finalmente, a doutrina de Kelsen da identidade entre Estado e a ordem jurídica. Depois que os escritores da era da restauração desenvolveram, como primeiros, uma teologia política, a luta ideológica dos opositores radicais de toda a ordem vigente direcionou-se com uma consciência crescente contra a crença em Deus, geralmente como expressão fundamental mais extrema da crença em um poder e em uma unidade (Schmitt, 1996, p.118). Schmitt (1992), ainda evidencia os vínculos entre concepções teológicas sobre a pecaminosidade do homem, e as teorias políticas contra-revolucionárias arguidas por Bonald, De Maistre e Donoso Cortés. Para esses pensadores, se fazia necessário um Estado forte e ditatorial que auxiliasse o poder espiritual na tarefa de controlar, regular e disciplinar os impulsos naturais do homem. Essas doutrinas políticas partem da concepção de que o homem é um ser decaído, fragilizado, e que dessa forma tende à maldade, sendo a influência da teologia católica cristalina nessas asserções. Por seu turno, as doutrinas políticas anarquistas pressupõem um homem naturalmente bom; neste mundo bom reina a paz e a segurança, “os padres e teólogos são aí tão supérfluos quanto os políticos e estadistas (Schmitt, 1992, p.91)”. A era das neutralizações, da técnica, do domínio da esfera econômica, do enfraquecimento do político, com o predomínio do Estado neutral e agnóstico das 34 teorias liberais, presumida por Schmitt (1992), teria conduzido a um irreversível declínio do teológico-político? É o que será visto a seguir. 1.3 Religiões políticas, religiões civis e seculares A política moderna não é apenas o terreno do poder, da dominação racionallegal, da escolha racional e da burocracia, mas também o espaço para o simbólico e o ritual.49 Não há movimento social, partido ou regime político, mesmo os liberais e democráticos, que não se sirvam do litúrgico para afirmar sua visão de mundo, fortalecer e legitimar sua existência (Kertzer, 1988; Riviére, 1989).50De acordo com Geertz (2006, p.187): No centro político de qualquer sociedade complexamente organizada (para reduzir, agora, o foco de nossa visão) sempre existem uma elite governante e um conjunto de formas simbólicas que expressam o fato de que ela realmente governa. Não importa o grau de democracia com que essas elites foram escolhidas (normalmente não muito alto) nem a extensão do conflito que existe entre seus membros (normalmente bem mais profundo do que imaginam aqueles que não são parte da elite); elas justificam sua existência e administram suas ações em termos de um conjunto de estórias, cerimônias, insígnias, formalidades e pertencentes que herdaram, ou, em situações mais revolucionárias, inventaram. São esses símbolos – coroas e coroações, limusines e conferências – que dão ao centro a marca de centro e ao que nele acontece uma aura não só de importância, mas algo, assim como se, de alguma estranha maneira, ele estivesse relacionado com a própria forma em que o mundo foi construído. Observa-se na modernidade ocidental uma espécie de sacralização do profano e do secular (Giner, 1993; Rivière, 1989). A esfera política emerge como uma instância onde, em alguns casos, parece haver uma nova experiência do numinoso. Torna-se um substituto, um equivalente funcional das religiões tradicionais e sobrenaturais, o político é sacralizado. Diversos elementos, valores e símbolos presentes no universo religioso são transpostos para o campo político. A esperança religiosa de salvação em outro mundo é substituída, nos mitos políticos modernos, pelo desejo de uma salvação terrena, neste mundo. Isso se expressa de forma bastante visível nas religiões políticas, 49 Sobre esse tema é importante a leitura do trabalho do antropólogo norte-americano David Kertzer Ritual, Politics & Power (1988). 50 A dimensão simbólica e ritual da política na modernidade não se apresenta como algo acessório, um mero adorno, mas é parte essencial da atividade política. A encenação do poder, a teatralização do político é um traço consubstancial desse campo da vida social. Para Abélès (1997), os governantes não apenas dramatizam o poder, colocando-o em cena, como também se apresentam como representantes da nação e encarnação do corpo coletivo. Por meio de cerimônias e rituais públicos se constrói uma “aura mágica” em torno da figura do soberano, sendo o poder, dessa forma, sacralizado. 35 como o comunismo soviético e o nazismo alemão. Acerca desse processo de sacralização da política na modernidade comenta Gentile (2007, p.244): Todas as revoluções modernas foram criações ou inovações de símbolos, mitos, e ritos que, que com distinta intensidade, outorgaram poder de numen ao poder político. Entidades da política de massas – nação, raça, classe, estado, partido ou líder, requereram ou provocaram atos de devoção total que eram típicos da devoção religiosa tradicional. Inclusive nas sociedades onde mais radical foi o processo de laicização ou deliberada descristianização se manifestaram estas novas forma de religiosidade secular e misticismo político. Segundo Sironneau (1985), as ideologias políticas totalitárias apresentam uma estrutura mítica baseada no milenarismo. Partem da visão mítico-religiosa de um passado grandioso, de uma Idade de Ouro, de um Éden, que foi perdido devido a “queda”, mas que pode ser restaurado pela ação salvífica do partido, classe, nação ou raça que instaurará na terra um reino milenar de paz e felicidade. Outros elementos, como o culto ao chefe, o Estado totalitário, a permanente mobilização das massas por meio de requintados cerimoniais, o uso de um aparato simbólico (bandeiras, insígnias e hinos), a concepção do partido como uma forma de seita-igreja, portador da “verdade eterna”, o “livro sagrado” anunciador da nova era, e a crença na possibilidade de uma transformação radical da ordem social com o surgimento de um novo tipo humano, são próprios das religiões políticas surgidas na modernidade. É bastante provável que a primeira expressão histórica de uma religião secular e política tenha se dado após a Revolução Francesa, com a derrubada do Antigo Regime. A religião secular, criada pelo novo regime, se expressava por meio de cultos e festas cívicas, como o culto da Razão celebrado em Notre Dame em 1793, e a festa do Ser Supremo, instituída em 8 de junho de 1794. A construção dos “altares da pátria” em 1789, onde eram realizados os batismos civis, a instalação das “árvores da liberdade”, além da entronização de uma nova bandeira, de um novo hino, La Marseillaise, e do calendário republicano-revolucionário são outros elementos simbólicos forjados pela nova elite política, que se erguia contra o catolicismo e a monarquia. A religião católica foi assim substituída por uma nova mística secular. O positivismo de Augusto Comte pode ser tomado também como um exemplo de uma religião secular. Anticlerical, via as religiões tradicionais como superstições. Em sua filosofia da história, Comte apresenta a teoria dos três estados ou idades da humanidade. A idade teológica e metafísica seria superada pela idade da ciência 36 positiva. Apesar de sua inclinação antirreligiosa, o positivismo acabou tornando-se uma nova religião secular, com seus dogmas, cultos e símbolos. Templos positivistas foram criados e até mesmo uma devoção mística a Clotilde de Vaux, musa inspiradora de Comte, foi entronizada pelos sábios-sacerdotes da religião da humanidade. Em paralelo com as religiões políticas e seculares há o tema da religião civil. A noção de religião civil foi primeiramente utilizada por Rousseau em seu livro Do contrato social, mas tornou-se mais conhecida recentemente com a publicação em 1967 do artigo do sociólogo norte-americano Robert Bellah intitulado Civil Religion in America.51 Nesse artigo, Bellah demonstra como os Estados Unidos da América foram construídos por meio de uma religião civil. Os Founding Fathers (pais fundadores dos Estados Unidos), os primeiros presidentes52, sempre se referiam a Deus e à dimensão espiritual da vida em seus discursos e nos principais documentos políticos, como a Constituição americana. Tratava-se de uma religiosidade difusa, não centrada em determinada denominação religiosa, mas ancorada na ideia de que a nação americana seria escolhida por Deus, possuindo uma missão e um destino especial. Os Estados Unidos eram percebidos como uma “Terra Prometida”, a “Nova Jerusalém”, uma nação eleita e predestinada para um futuro glorioso. Uma série de rituais cívicos foram instituídos para celebrar a nação, como o Thanksgiving Day (dia de ação de graças) e o Memorial Day, em homenagem aos soldados mortos em guerras (Bellah, 1967). A religião civil caracteriza-se fundamentalmente pela sacralização da comunidade política, através de “rituais públicos, liturgias cívicas ou políticas e piedades populares com a finalidade de conferir poder e reforçar a identidade e a ordem em uma coletividade socialmente heterogênea [...]” (Giner, 1993, p.26). Trata-se de infundir nos membros de uma determinada polis moderna as virtudes cívicas e o sentimento de solidariedade social. São mitos, símbolos e ritos públicos que dão legitimidade à ordem política e que são arquitetados pela classe dirigente. Determinados acontecimentos históricos, heróis e pais-fundadores, são exaltados e constantemente relembrados por ocasião de festas e cerimônias cívicas (Giner, 1993). 51 52 Disponível em: www.robertbellah.com. Acesso em: 20/05/2008. Até certo ponto isso se mantém até os dias atuais, já que os presidentes americanos ainda hoje fazem um juramento solene perante a Bíblia. Em seu discurso de posse, Barack Obama fez diversas menções a Deus, tendo em determinado momento declarado, conforme matéria vinculada no jornal Correio do Povo de 21 de janeiro, de 2009: “Tudo o que vemos existe por sua causa, Deus. Tudo existe para sua glória. Estamos muito gratos por viver numa terra onde o filho de um imigrante africano chega ao poder. Doutor King deve estar gritando no céu.” 37 O nacionalismo é uma das formas de expressão da religião civil. A nação é vista como uma entidade sagrada e uma realidade superior. O Estado, o sistema de ensino, os meios de comunicação de massa e os intelectuais, são acionados para forjar e transmitir os valores nacionais. A bandeira, o hino, as festas cívicas53 e demais elementos simbólicos são ativados para formar um sentido de comunidade e pertencimento. É evidente a similitude entre as religiões civis e as religiões políticas. Entretanto, alguns autores estabelecem uma diferenciação entre ambas (Giner, 1993; Rivière, 1989). Conforme Giner (1993, p. 42): A religião política pode distinguir-se com certa nitidez da religião civil quando aquela se baseia em uma ideologia explícita, vai ligada a um partido ou facção e pretende a mobilização ou controle total de uma população determinada. A religião civil, em contraste com ela, é mais difusa, mais espontânea [...]. Nas religiões políticas, a ordem política e social existente se torna objeto de adoração. As religiões políticas não apenas divinizam a nova ordem estatal, mas criam uma nova religião e um novo culto. Nas religiões civis, não há a imposição por parte do Estado do “novo culto”, tratando-se de uma adoração da comunidade, que surge de forma mais natural, sem que haja um partido político que lidere o processo e controle hegemonicamente o Estado. Segundo Rivière (1989, p.144): “Nas religiões políticas, existiria um sistema específico de valor e normas; nas religiões civis, seu conteúdo teria tal nível de generalidade que não entraria em conflito nem com as religiões, nem com as normas políticas”. Nas religiões políticas os “hierarcas” do novo culto político tendem a perseguir, boicotar e até mesmo suprimir as religiões tradicionais, o mesmo não ocorrendo no caso da religião civil, que respeita e até mesmo se apoia nas crenças religiosas tradicionais existentes em determinada comunidade. Tratei da temática das religiões políticas e civis de maneira sintética para enfatizar que os processos de laicização e secularização em seus estágios e momentos mais radicais e intensos podem levar ao surgimento de religiões seculares e laicas. Desse modo, concebo o laicismo e/ou secularismo como uma ideologia, uma visão de mundo alternativa às religiões históricas. Por consequência, esse projeto político advoga uma revolução cultural, e assim uma total transformação da ordem social e das mentalidades. Em realidade, as religiões políticas e civis são uma das facetas do secularismo e/ou laicismo, pois, este forja uma nova estrutura de símbolos e mitos para 53 Para Rivière (1989, p. 105): “O nacionalismo sustenta as mais importantes liturgias políticas”. 38 engendrar uma consciência coletiva diferenciada e alternativa à influência das religiões tradicionais. Sobre o caráter “religioso” do laicismo afirma Catroga (1988, p.267): [...] a exorcização do religioso (e do sagrado) visada pelo projeto cultural laicista não impediu que uma certa tonalidade religiosa lhe entrasse pela janela enquanto o seu discurso explícito procurava expulsá-la pela porta. Com tudo isto pretende-se dizer que, se o laicismo não se objetivou numa nova religião, não deixou, porém, de gerar uma nova religiosidade. Um exemplo histórico na América Latina de um radical processo de secularização e laicização, com feições jacobinas, que levou ao surgimento de uma religião política, produzida pelo Estado, é o que ocorreu no Uruguai. Nesse país procurou-se de modo contumaz privatizar o religioso em nome de um projeto de nação que buscava eliminar e sufocar qualquer forma de particularidade cultural e étnica. Desde o final do século XIX e no começo do século XX, por exemplo, uma série de medidas secularizantes foram tomadas como: secularização dos cemitérios, remoção de crucifixos de hospitais, lei do divórcio, supressão de todo referência à Deus e aos evangelhos no juramento de parlamentares, secularização dos feriados, etc. Consolidouse, assim, uma “nação laica”54 com seus próprios mitos e símbolos seculares, centrada na sacralização da comunidade política. Importa sublinhar que a escola pública foi um dos espaços fundamentais na produção da religião política uruguaia. A laicidade afirmou-se, nesse país, como um produtor privilegiado de uma religião política, como assevera Guigou (2000): Estabelecer que a laicidade é parte constituinte da religião civil uruguaia implica anular seu atributo de neutralidade, para conceitualizá-la como lugar privilegiado de representações emblemáticas e mitos que narram a própria nação. Assim como a laicidade não pode abandonar o campo religioso, tampouco o Estado-nação pode ser pensado sem considerá-lo como o produtor privilegiado e regulador da mencionada religião civil. 55 1.4 O cristianismo e a esfera da política e do Estado Em boa parte das sociedades tradicionais e “arcaicas” o religioso e o político estavam integrados; o cristianismo representa uma ruptura com essa estrutura monista 54 Utilizo aqui esta expressão cunhada por Guigou (2000). 55 Disponível em: http://www.antropologiasocial.org.uy/. Acesso em: 01/11/2011. 39 de poder, pois dessacraliza e desdiviniza a ordem política56(Voegelin, 1982). Na visão cristã, a comunidade política não é um cosmion (microcosmo), e o soberano não é uma entidade divina, que medeia as relações entre os homens e os deuses. O potencial revolucionário e inovador do cristianismo se expressará nas máximas evangélicas: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” e “Meu Reino não é deste mundo”. O reino anunciado por Cristo e esperado pela comunidade cristã primitiva é a pátria celeste, a cidade divina. Este mundo, a cidade terrestre, é concebido como uma longa peregrinação em direção ao destino espiritual do homem. Essa formulação contrasta com o mundo da antiguidade greco-romana, que não afirma a separação entre o domínio político e o domínio religioso, como acentua Fustel de Coulanges (1961, p. 196): É a primeira vez que se distingue tão nitidamente Deus do Estado. Porque César, nessa época era ainda o sumo pontífice, o chefe e órgão principal da religião romana; era o guarda e intérprete das crenças; mantinha em suas mãos o culto e os dogmas. Sua pessoa era sagrada e divina; porque constituía precisamente uma das características da política dos imperadores, desejosos de reconquistar os atributos da antiga realeza, não esquecer esse caráter divino que a antiguidade atribuíra aos reis-pontífices e aos sacerdotes-fundadores. Mas eis que Jesus Cristo quebra essa aliança que o paganismo e o império queriam renovar, proclamando que a religião não é mais o Estado, e que obedecer a César não é o mesmo que obedecer a Deus. O cristianismo primitivo estava em constante atrito e tensão com o poder político da época, o império romano.57 Via com desconfiança os poderes seculares divinizados e era refratário ao culto do imperador. A situação se atenua a partir do momento em que o cristianismo se torna a religião oficial do império romano. A Igreja Católica assim se fortalece, tornando-se uma instituição basilar na legitimação da ordem política romana. Desde a época romana, mas com mais intensidade na Idade Média e na modernidade, o catolicismo romano apresenta sua concepção dual e diárquica da sociedade política. Os teólogos e doutores da Igreja estabelecem a existência de dois Não apenas dessacraliza o político, mas é também responsável pelo “desencantamento do mundo” como notou Max Weber, desencantamento este que é levado até as últimas conseqüências com o surgimento e afirmação da ciência moderna. 56 Para Max Weber (1982, p.235): “A busca carismática e verdadeiramente mística da salvação, por parte dos virtuosos religiosos, foi naturalmente, em toda parte apolítica ou antipolítica, pela sua própria essência. As buscas de salvação reconheceram facilmente a autonomia da ordem temporal, mas o fizeram para apenas deduzir, coerentemente, o seu caráter diabólico, ou pelo menos para tomar o ponto de vista da indiferença absoluta frente ao mundo que foi expresso na frase: ‘Daí a César o que é de César’ (pois que relevância têm essas coisas para a salvação?).” 57 40 poderes e domínios distintos, o espiritual e o temporal, o eclesiástico e o civil, o religioso e o secular (Grasso; Hunt, 2006). De algum modo, essa noção deriva de um aspecto da cosmovisão cristã que estrutura a realidade em duas esferas fundamentais, que são o mundo terreno e o mundo celeste. Posteriormente, tal visão de mundo é desenvolvida através da noção das duas cidades na qual vivem os homens: a cidade dos homens e a cidade de Deus, conceituadas por Santo Agostinho. Essa separação entre o natural e o sobrenatural, entre este mundo e o outro mundo, bem como entre as criaturas e o criador supremo, serve como ponto de partida para a distinção entre o poder político e a autoridade religiosa. Ainda de acordo com a cosmovisão cristã e católica, o homem decaído pelo pecado original deverá então ser guiado e governado pela Igreja, responsável pelas questões espirituais, sendo o Império responsável pelas questões temporais. Essa concepção teve sua expressão mais acabada com a doutrina das “Duas Espadas” elaborada pelo Papa Gelásio I, no século quinto, que influenciou decisivamente a estrutura política e social do medievo. Em carta enviada a um imperador em Constantinopla, assim se manifestou o Papa Gelásio I: Há principalmente duas coisas, augusto imperador, pelas quais este mundo é governado: a autoridade sagrada dos pontífices e o poder real. Destas duas coisas os sacerdotes são portadores de uma responsabilidade tanto maior porquanto devem prestar contas ao Senhor até dos atos dos reis, submetendo-os ao julgamento divino. [...] Deveis curvar uma cabeça submissa perante os ministros das coisas divinas e é deles que deveis receber os meios de salvação. [...] Nas coisas respeitantes à disciplina pública, os chefes religiosos entendem que o poder imperial vos foi concebido do alto e eles próprios obedecem as vossas leis, temendo parecer que são contrários à vossa vontade nos negócios do mundo (Carlyle, 1903, apud Dumont, 1993, p. 55). Segundo Dumont (1993, p.55), essa passagem não expressa a ideia de uma simples submissão dos imperadores aos sacerdotes, mas uma complementaridade hierárquica: [...] o sacerdote está subordinado ao rei nos assuntos mundanos que dizem respeito à ordem pública. O que os comentaristas modernos não discerniram plenamente é que o nível de consideração deslocou-se das alturas da salvação para a baixeza das coisas deste mundo. Os sacerdotes são superiores, pois somente em um nível inferior é que eles são inferiores. Apesar de sua importância prática e teórica para as relações entre o regnum e o sacerdotium, durante o período medieval a doutrina das duas espadas não foi seguida à risca, pois os contatos e concessões entre os poderes eram inúmeros. Devido às 41 constantes interferências dos imperadores na esfera eclesiástica e o enfeixamento por parte destes do poder temporal e espiritual58, o papado reage reivindicando a “plenitude potestatis”. O papa é concebido como a autoridade máxima do mundo cristão. A doutrina da supremacia temporal e espiritual da Igreja Católica teve em Inocêncio III (1198-1216), Inocêncio IV e Bonifácio VIII, com a Bula Unam Sanctam de 1302, seus principais paladinos (Dumont, 1993). Em um texto59 datado de 1198 o papa Inocêncio III proclama: O Criador do universo estabeleceu duas grandes luzes no firmamento dos céus; a maior para iluminar o dia, a menor para dirigir a noite. Ele fez o mesmo para o firmamento da Igreja universal, da qual falamos como se fosse um céu, e definiu duas grandes dignidades; a maior para proteger e governar as almas (os dias), a menor para proteger e governar os corpos (as noites). Tais dignidades são a autoridade pontifical e o poder real. A lua retira sua luz do sol, sendo inferior a ele em tamanho e qualidade, em posição bem como em eficácia. O poder real deriva sua dignidade da autoridade pontifícia: e quanto mais ele escapa da esfera daquela autoridade, menos luz o adorna; quanto mais dela se aproxima, mais aumenta seu esplendor.60 O que cabe destacar nesse trecho é o simbolismo adotado por Inocêncio III. A Igreja Católica representa o sol, o poder político representa a lua. O sol ilumina os dias e guia as almas enquanto que a lua ilumina a noite e controla os corpos. O sol, o dia e a alma são percebidos com uma realidade hierarquicamente superior à lua, à noite e aos corpos. Da mesma forma que a lua retira sua luz do sol para manter-se, o poder político recebe sua legitimidade da autoridade eclesiástica. Seguindo uma linha de pensamento semelhante é publicada em 1302 a Bula Papal Unam Sanctam, de Bonifácio VIII, que declarava: As palavras do Evangelho nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja enquanto que a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual. O Segundo Sabine (1964, p. 228): “De um modo geral, contudo, até a época em que irrompeu a polêmica entre as jurisdições eclesiásticas e imperiais no século XI, o poder do Império sobre o papado era mais evidente e efetivo do que o do Papa sobre o Imperador. Isto era coisa usual e normal nos tempos romanos, e todos aqueles que observarem as instruções de Carlos Magno aos oficiais despachados em circuito para realizarem inquéritos por todo o Império não duvidarão que ele considerava religiosos e leigos como súditos, ou que assumisse inteira responsabilidade pelo governo da Igreja”. 58 59 Sicut universitatis conditor. 60 Disponível em: http://robertounicamp.blogspot.com/. Acesso em: 20/01/2009. 42 poder espiritual deve superar em dignidade e nobreza toda espécie de poder terrestre. Devemos reconhecer isso quando mais nitidamente percebemos que as coisas espirituais sobrepujam as temporais. A verdade o atesta: o poder espiritual pode estabelecer o poder terrestre e julgá-lo se este não for bom. Ora, se o poder terrestre se desvia, será julgado pelo poder espiritual. Se o poder espiritual inferior se desvia, será julgado pelo poder superior. Mas, se o poder superior se desvia, somente Deus poderá julgá-lo e não o homem. Assim testemunha o apóstolo: "O homem espiritual julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado" (1Cor 2,15).61 Afirmava-se nesse trecho da Bula Unam Sanctam a superioridade da Igreja frente ao poder político, pois a esta cabe aquilo que há de mais nobre e elevado no homem, que é a sua dimensão espiritual. As duas espadas estão sob o controle da Igreja, e o poder temporal está subordinado ao poder eclesiástico. É bastante provável que Bonifácio VIII tenha se baseado na obra de Egídio Colona De eclesiastica potestate, de 1302, para escrever essa Bula, pois tal obra defendia o poder absoluto do papa, advogando a primazia do espiritual sobre o temporal. Em um trecho do livro, Egídio Colona declarava: Da mesma forma que, no próprio universo, a substância corpórea é governada pela espiritual - pois o próprio céu, que é a mais alta entre as coisas corpóreas e comanda todos os corpos, é governado por substâncias espirituais como inteligências móveis -, assim entre os cristãos todos os senhores temporais e todos os poderes terrenos devem ser governados e dirigidos pela autoridade espiritual e eclesiástica e, especialmente, pelo Papa, que ocupa o cume e a mais alta posição entre os poderes espirituais e na Igreja (Sabine, 1964, p.271). Há nessa passagem uma analogia implícita entre o Estado e a Igreja no mundo social, e o corpo e a alma no homem. Da mesma forma que a alma -, sendo de natureza espiritual e eterna, ao contrário do corpo, que é material e corruptível - , deve ter primazia e “domar” o corpo, cabe a Igreja, expressão do espiritual no mundo terreno, guiar a sociedade humana para a salvação, o que não exclui o papel do Estado, esfera temporal e material, no sentido de contribuir para que o homem alcance a beatitude terrena e coopere para a beatitude celeste. Evidentemente que os partidários da autonomia do poder secular reagiram às doutrinas que absolutizavam o poder papal, sendo a obra de Jean de Paris, De Potestate regia et papali (1302-1303), uma expressão dessa corrente. Mas é Marsílio de Pádua, com Defensor Pacis (1324), que constrói uma teoria política e social que buscava separar de maneira radical a esfera eclesiástica da esfera política, tirando da Igreja 61 Disponível em: http://www.veritatis.com.br/article/1361. Acesso em: 20/01/2009. 43 Católica toda autoridade coercitiva e reduzindo-a a uma mera fé interior. Em Marsílio, a Igreja Católica perde todo o poder de intervenção direta e indireta na esfera política e torna-se subordinada ao Estado (Sabine, 1964). Com a dissolução da cristandade medieval e o surgimento dos Estado-nacionais modernos, a Igreja Católica se viu forçada a modificar sua visão acerca das relações entre o poder espiritual e o poder político. Na atualidade, a concepção da Igreja Católica sobre esse tema está fundamentada em diversas epístolas, em outros documentos escritos pelos últimos papas e nas inovações em matéria de doutrina trazidas pelo Concílio Vaticano II. De acordo com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica, dois princípios devem reger as relações entre a Igreja e a comunidade política, os princípios da autonomia e da cooperação. O princípio da autonomia se baseia na noção de que o Estado e a Igreja são autônomos, independentes e soberanos em sua esfera de ação. São duas sociedades distintas, com objetivos, natureza e finalidades diferenciadas. Cabe à Igreja tudo aquilo que esteja vinculado ao domínio espiritual, e ao Estado o que é de ordem temporal: “A Igreja organiza-se com formas aptas a satisfazer as exigências espirituais dos seus fiéis, ao passo que as diversas comunidades políticas geram relações e instituições ao serviço de tudo o que se compreende no bem comum temporal”.62 De acordo com o princípio da autonomia, é vedado ao Estado interferir na Igreja, e, por sua vez, a Igreja é proibida de imiscuir-se no Estado. O Estado é soberano na esfera temporal, e a Igreja é soberana na esfera espiritual. A Encíclica Immortale Dei63 de Leão XIII assim se manifesta sobre esse tema: Deus dividiu o governo humano entre dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil. Aquele, preposto às coisas divinas; este, às coisas humanas. Cada um deles no seu gênero é soberano; cada um encerrado em limites perfeitamente determinados e traçados em conformidade com sua natureza e com seu fim especial. Há, pois, como que uma esfera circunscrita em que cada um exerce sua ação iure próprio (Leão XIII, 1886 apud Cifuentes, 1989, p.59). O princípio da cooperação ressalta a independência das duas esferas, mas esta independência não pode ser tomada como uma separação absoluta, pois ambos os poderes devem colaborar para a realização integral da pessoa humana, relacionando-se 62 Citação do Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica. Disponível em: http://www.vatican.va. Acesso em: 20/01/2009. 63 Esta Encíclica papal foi promulgada em 1º de novembro de 1885. 44 em um clima de concórdia e harmonia. Tanto o Estado quanto a Igreja Católica, são concebidos como duas instituições que estão a serviço do homem. De acordo com Cifuentes (1989), a atual doutrina social da Igreja Católica afirma a laicidade do Estado, não sendo este percebido como uma entidade sagrada e divina, ou vinculado a uma determinada confissão religiosa. Entretanto, a doutrina católica diferencia a laicidade64 do laicismo. A laicidade seria a separação lícita e necessária entre a ordem temporal do Estado e a ordem espiritual da Igreja, o laicismo por outro lado parte da ideia de que a religião é assunto meramente privado, separando por completo o espiritual do temporal. Para Cifuentes (1989, p.156): A autonomia do Estado, no entanto, não deve constituir-se numa ordem fechada em si mesma, absolutamente impermeável à ordem ‘teonômica’, porque suas atividades têm relação intrínseca e essencial com a finalidade última do homem. O atual papa, Bento XVI, tem falado em uma “sã laicidade”. Ao receber no Vaticano participantes do Congresso Nacional de Juristas Italianos65, com o tema “A laicidade e as laicidades”, assim manifestou-se sobre essa questão: A religião, mesmo quando organizada em estruturas visíveis, como acontece com a Igreja, deve ser reconhecida como presença comunitária pública. Isto comporta que se garanta a cada Confissão religiosa (que não esteja em contraste com a ordem moral e não seja perigosa para a ordem pública) o exercício livre da liberdade das atividades de culto - espirituais, culturais, educativas e caritativas - da comunidade dos crentes. Não é, certamente, expressão de laicidade, mas a sua degeneração em laicismo, a hostilidade a toda e qualquer forma de relevância política e cultural da religião; e à presença, em especial, de todo e qualquer símbolo religioso nas instituições públicas. Como também não é sinal de sã laicidade recusar à comunidade cristã, e àqueles que legitimamente a representam, o direito a pronunciaremse sobre os problemas morais que hoje em dia interpelam a consciência de todos os seres humanos, em particular dos legisladores e dos juristas. De fato não se trata de indevida ingerência da Igreja na atividade legislativa, própria e exclusiva do Estado, mas da afirmação e da defesa dos grandes valores que dão sentido à vida da pessoa, salvaguardando a sua dignidade. Antes de seres cristãos, estes valores são humanos, não podendo, portanto 64 Durante a visita do atual papa a embaixada italiana na Santa Sé, devido à comemoração do 80º aniversário dos Pactos Lateranenses, que oficializaram a separação entre a República Italiana e o Estado da Cidade do Vaticano, em 15 de dezembro de 2008 assim afirmou Bento XVI: “A Igreja não só reconhece a distinção e autonomia do Estado em relação a ela, mas se alegra por este grande progresso da humanidade.” Notícia vinculada no site da agência de notícias ZENIT. Disponível em: www.zenit.org. Acesso em: 20/01/2009. 65 O congresso foi realizado na cidade de Roma em 2006. 45 deixar indiferente e silenciosa a Igreja, a qual tem o dever de proclamar com firmeza a verdade sobre o homem e sobre o seu destino.66 Bento XVI insurge-se contra uma determinada postura laicista que procura excluir a religião da vida social, inibindo e até mesmo vetando a ação de organizações e atores religiosos no espaço público, em questões que digam respeito aos valores morais. A doutrina católica acerca das relações entre Estado e religião parte do pressuposto de que o homem é um ser naturalmente religioso, possuindo uma dimensão espiritual, tendo seu fim último em Deus. Dessa maneira, o Estado deve colaborar para a realização do fim último do homem, não de maneira direta, mas “numa tarefa que facilite externamente, através de recursos temporais, o desenvolvimento da religião, sem prejuízo da liberdade de consciência de todos e de cada um dos cidadãos” (Cifuentes, 1989, p.167). Conforme visto anteriormente, de acordo com a atual doutrina social católica, há matérias que por sua natureza temporal são de alçada do Estado e, por outro lado, matérias que sendo de natureza espiritual e transcendente são da alçada da Igreja. Há também, as chamadas “matérias mistas”, que possuem um aspecto temporal, mas guardam alguma relação com o fim espiritual do homem, como é o caso do matrimônio e da educação. Essas matérias são do interesse do Estado e da Igreja. É nesse ponto que incide a teoria do poder indireto da Igreja. A Igreja católica teria um poder direto na esfera das questões sobrenaturais e um poder indireto em questões temporais que se vinculam com o espiritual. Por fim, cabe ressaltar que apesar das promíscuas relações entre o poder político e o poder eclesiástico durante a Idade Média, nunca houve uma “fusão de planos - a Igreja manter-se-á, mesmo quando a subordinou, o ou a ela se aliou, distinta e independente da organização política -, e nunca subsumirá o dualismo entre o espiritual e o século”67 (Catroga, 2004, p.82). Por sua vez, a aceitação oficial da separação jurídica entre Estado e religião por parte da Igreja Católica a partir do Concílio Vaticano II, não significa que essa instituição religiosa tenha se privatizado (Casanova, 1994). 66 Disponível em: http://www.oecumene.radiovaticana.org/por/Articolo.asp?c=107652. Acesso em: 14/12/2008. Conforme Dumont (1993, p. 86): “Os teóricos jesuítas do direito natural desenvolveram a teoria moderna que alicerça o Estado num contrato social e político, considerando a Igreja e o Estado duas sociedades distintas, independentes, exteriores, uma à outra.” 67 46 Assim sendo, é inegável a tentativa por parte da Igreja Católica de influenciar e pressionar os agentes estatais para que seus valores e símbolos tenham um reconhecimento público.68 Acerca das relações entre a Igreja Católica e os regimes políticos afirma Casanova (2010, p.39): “A posição e atitude tradicionais da Igreja Católica em relação aos regimes políticos modernos foram de neutralidade em relação a todos as ‘formas’ de governo. Contanto que as políticas daqueles governos não interferissem de maneira sistemática nos direitos corporativos da Igreja de liberdade religiosa, libertas Ecclesiae, e no exercício de suas funções como mater et magistra, a Igreja não questionaria sua legitimidade”. 68 47 2 LAICIDADE À BRASILEIRA: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E JURÍDICA Neste capítulo, abordo desde uma perspectiva histórica e jurídica, o processo de laicização do Estado no Brasil. Ressalto os aspectos legais e constitucionais que vêm configurando as relações entre Estado e religião. Evidencio, também, como a separação jurídica entre Estado e religião, assegurada pelo regime republicano, não levou à privatização do religioso. O grupo religioso hegemônico sempre procurou exercer algum tipo de influência sobre o Estado. Por outro lado, a laicização do Estado contribuiu para a pluralização do campo religioso, e dessa forma permitiu que outras organizações religiosas se aproximem dele, pleiteando privilégios e buscando ocupar espaços na esfera pública. 2.1 Um Estado Confessional A cultura brasileira sofreu o influxo do catolicismo desde seus primórdios. O Brasil foi descoberto por uma nação católica que, em seu projeto colonizador e evangelizador, visava estender ao novo mundo “as fronteiras da fé e do império”. Um dos primeiro atos que o colonizador português efetuou após desembarcar por estas terras foi a realização de uma missa. Nessa ocasião foi afixada uma cruz na areia de Porto Seguro, litoral sul da Bahia, à nova terra descoberta deu-se o nome de “Ilha de Vera Cruz”, posteriormente chamada de “Terra de Santa Cruz”. Nas naus portuguesas que aportaram em nosso litoral havia adornando as velas o símbolo da Ordem de Cristo, uma imponente cruz vermelha em um fundo branco.69 Desse modo, durante boa parte da história brasileira (Colônia e Império), o Estado foi confessional, unido à Igreja Católica. Autoridade espiritual e poder temporal estavam integrados em um modelo de Cristandade. Buscava-se, através dessa união entre o trono e o altar, cristianizar as novas gentes das terras conquistadas: “Na mente dos reis de Portugal, o que importava, sobretudo era estabelecer na colônia brasileira um Estado Católico, prolongamento do reino lusitano. O Brasil devia constituir-se basicamente como uma Cristandade Católica” (Azzi, 1981, p. 22). Sobre isso esclarece Hoornaert (1974, p. 44): “Diversos detalhes do ritual da tomada da posse por parte dos portugueses são na realidade cerimônias ligadas à cruzada: o desembarque com a cruz alçada (Tomé de Souza, Bahia, 1551), a cruz plantada na terra como padrão de posse (fundação de São Vicente e outras vilas), a primeira missa”. 69 48 Vigorava nessa época o regime do padroado70, que possibilitava à Coroa portuguesa e, posteriormente, ao Império brasileiro interferir na Igreja Católica, nomeando bispos, recolhendo os dízimos, remunerando o clero, construindo igrejas, monastérios, capelas, etc. A Igreja Católica no Brasil estava subordinada ao Estado, sendo então incorporada e instrumentalizada pelo poder político (Azzi, 1981).71 O catolicismo mantinha uma relação privilegiada com o Estado, haja vista que a Constituição Imperial de 25 de março de 1824 definia o catolicismo como religião oficial do Estado brasileiro.72 O monarca brasileiro era, por sua vez, ungido e sagrado pelos hierarcas da Igreja Católica (Schwarcz, 2001). Quando de sua aclamação jurava defender e manter a religião católica, o mesmo juramento sendo feito pelo herdeiro presuntivo ao completar quatorze anos, pelo Regente e pela Regência, bem como pelos Conselheiros de Estado (Scampini, 1978). Registro, também, que em nível de legislação infraconstitucional,o artigo 516 de um regulamento datado de 19 de setembro de 1860 proibia o despacho de qualquer objeto de escultura, pintura ou litografia cujo assunto fosse obsceno ou ofensivo à religião do Estado (Ribeiro, 2002). Ademais, o grupo religioso hegemônico controlava e influenciava direta ou indiretamente, importantes setores da esfera pública (escolas, hospitais etc), e as principais instituições sociais. Detinha o monopólio dos principais atos cívicos e ritos de passagem (batismo, casamento, enterro). Assim, ser cidadão no Brasil era quase sinônimo de ser católico (Schwartzman, 1986).73 No império, os cargos eletivos só eram permitidos para aqueles que seguiam a religião oficial. A promoção do recrutamento militar e o censo populacional eram tarefas do clero. A legislação eleitoral do império (nº387/1846) expressava a vinculação entre o secular e o religioso, pois os eleitores eram divididos por paróquias e a ata de Bruneau (1974, p. 31) define esse regime: “Padroado é a outorga, pela Igreja de Roma, de certo grau de controle sobre uma igreja local, ou nacional, a um administrador civil, em apreço de seu zelo, dedicação e esforços para difundir a religião, e como estímulo para futuras -boas obras-.” 70 71 Um estudo específico sobre o padroado é realizado por Dornas Filho (1937). 72 Conforme Mariano (2002), a constituição de 1824 estendeu o direito à liberdade religiosa a outros credos, desde que estes fossem professados em âmbito doméstico. Isso provocou as primeiras fissuras no monopólio católico Para Hoornaert (1974, p. 13): “[...] o catolicismo brasileiro assumiu nos primeiros séculos de sua formação histórica um caráter obrigatório. Era praticamente impossível viver integrado no Brasil sem seguir ou pelo menos respeitar a religião católica”. 73 49 alistamento teria que ser afixada na Igreja Matriz. No dia dos pleitos eleitorais um padre, pela manhã, realizava uma missa, ou alguém como seu representante deveria fazer uma oração (Toledo, 2004). Havia, ainda, uma lei datada de 15 de outubro de 1827, que determinava a criação de escolas de primeiras letras nos lugares mais povoados do império. Em um artigo dessa lei declarava-se que caberia aos professores ensinar a ler, escrever, fazer operações de aritmética, geometria, gramática, bem como os princípios da moral cristã e da doutrina da religião católica (Ribeiro, 2002). Entretanto, mesmo neste período as relações entre Estado e Igreja Católica nem sempre foram harmoniosas e pacíficas. Vale lembrar aqui a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal em 1759 e a “questão religiosa” de 1873-75. Por sua vez, os demais grupos religiosos, como protestantes, espíritas e afros eram objeto de perseguição e discriminação (Oro, 2005a). Em relação aos protestantes, desfrutavam de uma liberdade limitada. O Tratado de Comércio e Navegação, firmado entre o Brasil e a Inglaterra em 1810, estipulava a liberdade religiosa para os súditos britânicos em território português. Porém, proibia que estes fizessem proselitismo e que as casas edificadas para culto se assemelhassem a templos, tendo a forma exterior de casas de habitação. Existia a proibição da utilização da língua nacional em cultos protestantes (Leite, 2008).74 Os protestantes tinham dificuldades de legalizar seus casamentos realizados por pastores, pois não havia o reconhecimento do casamento civil. Além disso, enfrentavam dificuldades no momento do sepultamento de parentes, haja vista que os cemitérios pertenciam à religião oficial. Mesmo os cemitérios públicos construídos nas grandes cidades brasileiras durante o império eram benzidos pela autoridade eclesiástica e os enterros só aconteciam mediante apresentação de uma declaração paroquial de encomendação de cadáver (Rodrigues, 2005).75 Cabe notar, entretanto, que os primeiros pastores luteranos foram pagos pelo Estado, e quando o 74 Os debates em torno do princípio da liberdade religiosa na constituinte de 1823 tinham um caráter revelador, como acentua Leite (2008, p. 225): “[...] a defesa da liberdade religiosa estava mais centrada em uma conveniência de ordem econômica do que em uma compreensão da essência da liberdade em questão. Como consequência, o alcance da liberdade religiosa seria apenas o suficiente para permitir a imigração de não-católicos, mas não o exercício da religião em seus aspectos mínimos e essenciais”. Conforme Rodrigues (2005, p.177): “Foi nesse sentido que os membros do Conselho de Estado viram como providência mais conveniente a ser tomada a de que o governo mandasse, por decreto, que nos cemitérios estabelecidos pelas câmaras municipais e nos da Corte (criados pela Lei nº 583, de 1850), fosse designado ou separado – por muro ou vala – um lugar para os enterros sem distinção dos indivíduos de outras religiões, e daqueles aos quais os cânones negavam sepultura eclesiástica, tais como os meninos não batizados, os suicidas e duelistas”. 75 50 número de colonos alemães cresceu de forma significativa, alguns pastores vinham da Alemanha contratados pelo governo imperial (Dias de Araújo, 1977). Durante as últimas décadas do regime imperial, houve uma ampliação das liberdades religiosas devido à presença protestante e ao fortalecimento das ideias liberais e republicanas. No ano de 1861 foi aprovada pelo parlamento a Lei nº 1144, regulada pelo Decreto nº 3.069, de 1863, que conferia efeitos legais aos casamentos e batizados celebrados pelos ministros das religiões toleradas. Essa lei ainda determinava que os registros de óbitos de não católicos fossem feitos em Juízos de Paz. Ademais, afirmava que nos cemitérios públicos deveriam ser reservados espaços para o sepultamento de não católicos. A reforma eleitoral promovida pela chamada Lei Saraiva não exigiu mais o pré-requisito de ser católico para concorrer a cargos eletivos, e suprimiu o juramento religioso na cerimônia de posse do deputado (Pereira, 2007). Essa última medida era consequência da atitude de alguns políticos republicanos que ao tomarem posse negavam-se a prestar juramento à religião oficial do Estado. Um desses episódios envolvendo o deputado Aristides Caldeira eleito para a Assembleia Provincial de Minas Gerais, é ilustrativo das tensões que se avolumavam no final do império entre o ideal republicano e o caráter estatal do catolicismo. Esse caso é narrado por Dornas Filho (1941, p.133): As galerias estavam cheias de correligionários que foram assistir a sua posse, quando Rodrigues Campelo, presidente da Assembleia, lhe apresentou o Evangelho para ele fazer o juramento constitucional. Caldeira recusou-se, declarando que “sendo republicano, eleito também por um distrito republicano, faltaria à sua fé política e a todos os seus comitentes si prestasse aquele juramento de vassalagem a uma autoridade que ele tinha de combater”. Os republicanos da galeria prorromperam em aplausos frenéticos, desorientando os deputados monarquistas que tomavam parte na discussão dos incidentes, além dos aplausos e apartes dos deputados republicanos Martins de Andrade, Leonel Filho, Aristides Maia, José Sena e Vaz de Lima. Caldeira conserva-se de pé no meio do recinto, até que descobrira um jeito de tomar assento sem prestar o juramento regimental: dirigiu-se para as bancadas e dali pediu a palavra para encaminhar a discussão. No segundo reinado tem início o processo de romanização da Igreja Católica no Brasil, que intencionava a moralização dos clérigos, a reforma educacional do povo, afastando-o de uma religiosidade devocional em nome de uma religião centrada nos sacramentos, e a subordinação a Roma. A nova orientação tridentina e ultramontanista 51 da Igreja Católica76 fez aumentar as suas tensões com o poder político. Acerca disso comenta Micelli (2009, p.22): A despeito dos reiterados preitos de vassalagem ao trono, a última geração de prelados designados pelo imperador orquestrou uma campanha surda contra a ingerência do poder temporal na condução dos negócios eclesiásticos. Como se sabe, o regime do padroado dera margem a uma ampla tutela da Igreja, pondo em risco a própria continuidade da jurisdição pontifícia, tornando letra morta a legitimidade das normas canônicas e brecando quaisquer possibilidades de expansão organizacional. Na realidade, muitos setores da própria Igreja Católica começaram a perceber que o regalismo era prejudicial aos seus interesses: “Sob forte controle do Estado (com a cumplicidade de um clero relaxado) a influência da Igreja não aumentou durante o período do império” (Bruneau, 1974, p.56). O número de seminários, dioceses, padres e bispos no Brasil, na época imperial, eram bastante reduzidos em comparação com outros países. 2.2 Ruptura republicana e reação católica Sob o influxo das ideias iluministas e positivistas e das revoluções americana e francesa ocorre, em 1889, a instauração do regime republicano, que põe fim à união entre Estado e Igreja. A separação entre Estado e Igreja Católica é oficializada pelo Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, de autoria de Rui Barbosa77, sendo este o momento crucial e o ponto de partida do processo laicizador no Brasil. O Decreto 119-A consagrou a plena liberdade de cultos e extinguiu definitivamente o regime do padroado.78 O decreto de separação entre Estado e Igreja Católica, foi seguido pelo Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, que estabeleceu o casamento civil, e pelo Decreto nº 789, de 17 de setembro de 1890, que determinou a secularização dos cemitérios.79 Os dias santos de guarda foram extintos do calendário 76 Os bispos brasileiros seguiram as orientações conservadoras e antimodernistas vindas de Roma. É nessa época, mais especificamente em 1864 que Pio IX publica o “Syllabus de Erros”. Em 1870, com o Concílio Vaticano I, é declarada a infalibilidade papal. 77 Lins (1967) especula que o verdadeiro autor do projeto de separação foi o ministro da Agricultura Demétrio Ribeiro. 78 O artigo 1º proibia à autoridade federal, assim como aos Estados da federação, expedir leis, regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião ou vedando-as. Assim como criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento por motivo de crença ou opinião filosófica. 79 Sobre esse assunto é de grande valia o livro de Claudia Rodrigues Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVII e XIX) publicado em 2005. 52 oficial por meio de um decreto presidencial datado de 14 de janeiro de 1890. No entanto, a medida foi revista quando da reunião dos membros da junta ocorrida em 29 de março de 1890 (Vieira, 2007).80 Além disso, o governo federal estabeleceu os dias de festa nacional, por meio do Decreto 155-B, de 14 de janeiro de 1890. Esse decreto foi proposto pelo então ministro Demétrio Ribeiro. Foram considerados dias de festa nacional as seguintes datas: 1 de janeiro, consagrado à comemoração da fraternidade universal; 21 de abril, consagrado à comemoração dos precursores da Independência brasileira; 3 de maio, consagrado à comemoração da Descoberta do Brasil; 13 de maio, consagrado à comemoração da fraternidade dos brasileiros; 14 de julho, consagrado à comemoração da República, da Liberdade e da Independência dos povos americanos; 7 de setembro, consagrado à comemoração da Independência do Brasil; 12 de outubro; consagrado à comemoração da Descoberta da América; 2 de novembro, consagrado à comemoração geral dos mortos e 15 de novembro, consagrado à comemoração da Pátria brasileira. A inspiração positivista é evidente. Em verdade, o decreto proposto por Demétrio Ribeiro foi originalmente redigido por Teixeira Mendes, a pedido do primeiro que posteriormente fez algumas modificações no texto.81 Alguns setores da hierarquia católica viram com maus olhos esse decreto, que em um primeiro momento não fazia menção a qualquer feriado religioso. Declaravam que o governo federal estava impondo à população as festividades do calendário positivista. Os seguidores do apostolado positivista do Brasil assim responderam a essa colocação de alguns católicos: A impostura, porém, é aqui tanto mais revoltante quando entre essas festas a comemoração dos dias dos finados se acha referido ao dia católico, respeitando-se assim os costumes estabelecidos. Os livre-pensadores poderiam ter clamado, com melhor aparência de razão, que o Governo queria impor as festividades católicas. Ninguém, porém, reclamou; todos compreenderam com exceção dos jornalistas e padres católicos, que não se tratava de impor nenhum culto especial. Este decreto, instituindo a comemoração cívica, como a divisa Ordem e Progresso havia firmado o conjunto do programa político, e a separação da Igreja do Estado inaugurado a independência dos dois poderes, foi o último ato importante atribuível a influencia positivista no seio do Governo (Igreja e Apostolado Positivista, nº 343, 1913, p.54). 80 Essa sessão foi inicialmente convocada para tratar de questões relacionadas com o corpo de bombeiros, ferrovias e saneamento da capital federal, mas por coincidir com o fim da quaresma, nesta ocasião discutiu-se, ainda, a Semana Santa. Assim, devido à forte pressão da opinião pública, ficou decidido que os funcionários públicos ficariam dispensados de trabalhar nos dias religiosos de guarda (Vieira, 2007). 81 Lippi Oliveira (1989) explica em detalhe as festas e os feriados republicanos. 53 Descrevo agora, de modo sucinto, uma dessas festividades criadas pela nova ordem republicana com a finalidade de demonstrar que mesmo nesse período se observa que as injunções e vínculos entre o religioso e o secular são estreitas, sobretudo no âmbito simbólico e ritual. Com grande pompa, foi festejado o 3 de maio de 1890, consagrado à descoberta do Brasil. Essa festa teve a coordenação artística do positivista Décio Villares. O homenageado naquela ocasião foi Cristovão Colombo. Nessa data foi realizada uma procissão cívica que foi dividida em três blocos temáticos. Em cada um desses blocos havia um andor com imagens. Destaco que o primeiro andor era composto de uma réplica da caravela usada por Cabral no descobrimento do Brasil; esse era levado por um grupo de marinheiros. O bloco central era o da Igreja Positivista, sendo aberto pelo Estandarte da Humanidade; um outro estandarte vinha logo atrás, imitando um escudo luso-brasileiro que tinha em sua parte superior as cores azul e branca, e na parte inferior as cores amarelo e verde. Unindo as cores de Brasil e Portugal havia uma grande cruz vermelha, que simbolizava o primeiro nome do Brasil. Na cruz reproduzia-se o famoso quadro de Vitor Meirelles, a Primeira Missa no Brasil. Por último, nesse bloco central, vinha um andor com o busto de Cristovão Colombo. O terceiro bloco era composto por um andor que representava a civilização indígena, mais particularmente um andor com uma almadia ou piroga indígena, com um troféu de armas e o retrato de um indígena. O ponto que merece ser ressaltado nessa procissão cívica republicana e positivista é o escudo luso-brasileiro em que aparecia um símbolo religioso, a cruz cristã, bem como a reprodução da primeira missa. Por sua vez, o Estandarte da Humanidade poderia facilmente ser confundido com a imagem de uma santa com Jesus ao colo (Leal, 2006).82 Desse modo, os positivistas lançam mão da simbologia religiosa para atrair a atenção das massas. Outrossim, criam um calendário cívico próprio com a finalidade de marcar o tempo com festas e feriados que lembrem acontecimentos centrais para o ideário republicano. Retomando a genealogia do processo de laicização do Estado brasileiro enfatizo aqui um fato não comentado pela historiografia. Antes do Decreto 119-A, de 1890, o governador do Maranhão, Pedro Tavares, decretou, em 23 de dezembro de 1889, a separação entre o poder político e Igreja naquele Estado, sem consultar o governo federal. O decreto de Pedro Tavares era composto de quatro artigos. No primeiro artigo 82 Todos os dados descritivos expostos neste parágrafo se fundamentam no artigo de Elisabete da Costa Leal (2006). 54 reconhecia-se a todas as religiões o pleno exercício dos seus cultos. No segundo, declarava-se a extinção dos subsídios prestados a um asilo e a um seminário católico. No terceiro, extinguia-se a verba “culto público”. No último artigo, dispensava-se de seus empregos os padres e sacerdotes que serviam de capelães ou confessores em repartições públicas. Prontamente, ministros e o próprio presidente Marechal Deodoro da Fonseca enviaram telegramas ao governador do Maranhão, afirmando que a competência para emitir decretos dessa ordem eram de atribuição exclusiva do governo federal. Assim sendo, inicialmente foi solicitado que Pedro Tavares suspendesse sua medida. Contudo, este reagiu à solicitação do governo federal com o seguinte telegrama: Meu decreto contém medidas da exclusiva competência deste governo, porque dizem respeito ao orçamento deste Estado. Quanto à questão de princípios, fiz a única declaração compatível com o regime republicano e digno de um governo esclarecido, pois nenhum brasileiro deve querer para sua pátria o clericalismo de algumas repúblicas de origem espanhola (Igreja e Apostolado Positivista do Brasil nº 343, 1913, p. 32). Como Pedro Tavares não acatou a ordem de sustar aquela medida legal, Deodoro da Fonseca anulou o decreto. Diante desses acontecimentos o governador Pedro Tavares pediu demissão do cargo. Os dois principais líderes da Igreja Positivista no Brasil, Teixeira Mendes e Miguel Lemos, protestaram contra a atitude do governo federal, apoiando a iniciativa do governador do Maranhão. Teixeira Mendes, em artigo datado de 26 de dezembro de 1889, asseverava que o ocorrido foi uma ingerência do governo federal em uma questão que é de competência exclusiva dos Estados. Em outro momento desse artigo dizia: A Federação deve exigir como condição para pertencer aos Estados Unidos do Brasil que cada Estado aceite a liberdade religiosa garantindo a liberdade de cultos, o casamento civil, a secularização dos cemitérios e o registro dos nascimentos. Mas uns Estados não podem impor aos outros que sustentem uma igreja, como não lhes podem proibir que subvencionem a Igreja que quiserem. A União Federal não deve ter nenhuma igreja como instituição federal. Mas não pode sem abuso de poder material, sem comprometer a união fraterna e, portanto livre dos Estados, deixar de respeitar a autonomia de cada Estado para subvencionar ou não qualquer igreja (Igreja e Apostolado Positivista nº 343, 1913, p.34). Os positivistas defendiam uma república federalista, garantidora das liberdades locais. Ao final do artigo ainda enfatizava Teixeira Mendes: O ato do governador do Maranhão foi, portanto correto. Trata-se de um Estado onde não há o menor espírito clerical, e onde o ato passaria sem o 55 mínimo protesto, se o governador houvesse mantido os subsídios dos atuais funcionários eclesiásticos, cujas funções políticas ficaram suprimidas, conforme determina a política positivista. Mas, mesmo quanto a este ponto, admitida a forma republicana federal, falta competência ao governo central para revogar o ato do governador do estado do Maranhão, restando aos maranhenses promoverem a reparação de tal erro. Ao governo central só caberia aconselhar tal reparação (Igreja e Apostolado Positivista nº 343, 1913, p.35). Em consequência dessa manifestação de Teixeira Mendes e também do protesto de Miguel Lemos, ambos foram demitidos pelo chefe do governo provisório dos cargos que ocupavam desde o império, o primeiro como 2º oficial da Secretaria da Agricultura e o outro como secretário da Biblioteca Nacional. Todavia, esta medida acabou não se concretizando efetivamente, pois Benjamin Constant interveio na situação e ambos os militantes positivistas acabaram retornando aos seus cargos. Importa sublinhar, que na assembléia constituinte republicana amplos e fervorosos foram as discussões e os debates em torno dos dispositivos referentes à relação entre Estado e religião, bem com a questão da liberdade religiosa. O deputado Sr. Tosta defendia uma república religiosa. Entedia que esta não seria uma república governada pelo clero, nem subordinada à Igreja Católica, mas que caberia ao governo reconhecer os princípios fundamentais do cristianismo e não expelir Deus da Carta Magna, como se este fosse uma quimera. Para o deputado Tosta deveríamos nos inspirar no exemplo dos Estados Unidos e da Argentina. Nesse sentido, advogava a união entre Estado e religião, com o respeito irrestrito à liberdade de consciência e à liberdade de cultos. Além disso, em sua opinião a separação entre o Estado e a religião levaria ao surgimento de um Estado ateu. A proposição desse deputado foi rechaçada pelo deputado Seabra, que declarava haver uma contradição na proposta de uma república religiosa. Argumentava que a existência de um Estado sem religião oficial, sem juramento religioso e sem subvenção alguma aos cultos não conduziria ao surgimento de um Estado ateu. O deputado Seabra advogava a posição de um Estado indiferente às questões religiosas, que não hostilizasse e nem afirmasse a crença em Deus. Por seu turno, o deputado federal Couto Cartaxo apresentou uma emenda na qual era definido que a República reconhecia a religião católica como sendo da maioria dos brasileiros, e que os demais cultos seriam respeitados e garantidos desde que não ofendessem a moral e a razão natural. O deputado Santos Pereira apresentou uma emenda em que era afirmado que os Estados teriam total autonomia e liberdade para a subvenção ou para o embaraço ao exercício dos cultos. Pretendia que cada Estado da federação, cada 56 comunidade, tivesse a liberdade plena para definir-se no que concerne a questões religiosas e morais. Essa emenda foi repelida por boa parte dos deputados (Roure, 1918). Uma outra emenda foi apresentada com a finalidade de modificar o § 6º da Constituição que determinava que seria leigo o ensino ministrado nos estabelecimento públicos. A emenda restritiva apresentada pelo deputado Amphilofio pretendia acrescentar as palavras fundadas ou sustentados pela União (Maximiliano, 1918). Caso fosse aprovada, possibilitaria que nas escolas públicas estaduais e municipais houvesse a disciplina de ensino religioso. O deputado federal pela Bahia e jurista Aristides Milton fez um interessante comentário sobre o teor e os objetivos da nova Constituição em relação à temática das relações entre o poder estatal e as crenças religiosas: [...] o que a constituição quer não é ter o ateísmo erigido em máxima social, mas apenas que sejam respeitadas as conquistas liberais, efetuadas pela civilização moderna, a saber: que o sentimento religioso fique às relações do homem para com Deus, que ninguém jamais seja obrigado a revelar sua fé, menos ainda a praticar a contra-gosto qualquer culto e, finalmente, que se todos devemos dar contas aos Poderes Públicos de nossos atos, todavia eles nada têm que ver com as nossas opiniões ou crenças. À república, numa palavra, são estranhos tanto os interesses espirituais, quanto os negócios materiais de qualquer Igreja ou confissão. [..] E forçoso é reconhecer - que a liberdade de cultos -, estabelecida em nossa lei fundamental, tem levantado o espírito religioso do povo brasileiro, afervorando a sua devoção, num movimento feliz e digno dos maiores aplausos. Uma religião, já se tem dito à saciedade, não se impõe a golpes de decreto. Nem o legislador constituinte cogitou, por certo, em uma república ateística, ou cética (Milton, 1898, p. 384). Em que pese esses debates e posicionamentos, a Constituição Republicana de 1891 ratificou a separação entre Estado e religião, tendo formalizado outras medidas laicizantes como: privação de direitos políticos de membros de ordens religiosas, congregações e comunidades, engajados pelo voto de obediência; reconhecimento do casamento civil como o único oficial83; secularização dos cemitérios públicos; fim da imunidade política para o clero; laicização da escola pública com a exclusão da disciplina de ensino religioso e o término da subvenção estatal às escolas religiosas. O artigo 72, § 29, garantiu pela primeira vez na história constitucional brasileira a escusa de consciência, asseverando que por motivo de crença ou função religiosa nenhum cidadão poderia ser privado de seus direitos civis e políticos, nem eximir-se do 83 Sobre esse tema ver Ciarallo (2008). 57 cumprimento de seus deveres cívicos (Scampini, 1978).84 Além disso, a Constituição de 1891 não foi promulgada em nome de Deus. Destaco, também, que a bandeira republicana, com o lema positivista “ordem e progresso” ao centro em uma esfera celeste, substituiu a cruz ostentada nas bandeiras coloniais e imperiais. Acerca disso, Vieira (2007, p.365) relata um interessante episódio, ocorrido no Rio de Janeiro, nos primeiros anos do regime republicano que expressa o rechaço de alguns setores oficiais do catolicismo pelo novo símbolo cívico: Era dia da procissão de Corpus Christi, e o cortejo saía da catedral metropolitana com grande pompa. À frente, levando sob o pálio o Santíssimo Sacramento, caminhava lentamente Dom José, seguido por enorme multidão. Nesse momento, adiantou-se o coronel Dr. Mendes de Almeida para a benção episcopal à bandeira republicana, com o desenho e o lema “ordem e progresso” de inspiração positivista. O prelado refletiu um pouco e com voz firme e clara, replicou: “Sr. Coronel, de boa vontade lançarei as bênçãos sobre a bandeira nacional, depois de isenta de sua mancha sectária”. Deodoro o faria responder na justiça pela ofensa a um símbolo pátrio, mas ele não se retratou. Além desse fato é curiosa a intervenção de um católico republicano chamado Afonso Alburquerque Mello, que ao mesmo tempo em que reconhecia e exaltava a nova ordem política republicana tecia críticas à exclusão da simbologia cristã da bandeira republicana. Em artigo publicado em um jornal de Pernambuco, alguns dias após a proclamação da República, alertava para a necessidade da crença religiosa para a harmonia da ordem social, e assim destacava a importância dos valores e símbolos religiosos cristãos: Apagar Deus no advento da República é fazer deste povo deísta, deste povo cristão, um povo pagão, mais que isto, um povo ateísta. É fazer da República, da Confederação brasileira, que ainda não se formou, uma república como das antigas, gregas ou romanas; muito pior ainda, uma república como ainda não houve, uma república sem crenças, uma nação sem moral, sem deveres, sem civismo, sem honra. Foi tirada das notas oficias a fórmula do Deus guarde a V. S. Ex. ou Mercê, e substituída pelas palavras – Saúde fraternidade. Foi conservada a nossa bandeira com as suas cores,e delas tiradas por um decreto os símbolos das duas crenças, que já o foram ambas deste povo, e das quais uma contraria a outra, se tem por isto tanto apagado o sentimento, que nem deixou alento para verter uma lágrima, dar um suspiro de saudade. A coroa e a cruz! O Rei e Cristo! Não pode haver um povo sem crenças. Não pode haver moral sem Deus. Não pode haver liberdade e fraternidade sem Cristo (Diário de Pernambuco, 21 de novembro de 1889). Contestava o uso do símbolo da cruz pela monarquia como uma espécie de profanação, mas não aceitava sua retirada da bandeira republicana: Segundo Scampini (1978, p. 106): “Em parte, apenas, a Constituição Imperial de 1824 se referia à escusa de consciência, quando em seu artigo 179, parágrafo 5, dizia: ‘Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública’.” 84 58 Fizeram do rei um cristão com toda a sua sagrada família. Puseram a cruz na coroa para santificá-la e guardá-la. Pode a cruz, o símbolo da pura doutrina, das mais puras verdades ser nunca símbolo de poder senhoril, da realeza desse poder perversor e infame? Porque os ladrões, os senhores, tomaram para si o símbolo da liberdade, nós, esmagando os ladrões, o senhor e seu símbolo, que é a coroa, em que eles a engastaram, havemos de, banindo a coroa de nossa bandeira, banir com ela a cruz, que profanaram fazendo dela escudo do poder real? Se ela está em nossa bandeira, se é o símbolo da liberdade que a República nos deve trazer, para que tirar dela a cruz? Se nela nunca a cruz existisse, não teria eu direito de condenar a quem na nova ou renovada bandeira não a colocasse. Mas se existe, que razão há para tirá-la? (Diário de Pernambuco, 21 de novembro de 1889). Finalmente, insurgia-se contra a expressão positivista “Ordem e Progresso”, estampada na nova bandeira: A República em seu advento escreve ordem-progresso. Quer dizer espada para os fracos e muita estrada de ferro, muita materialidade para os felizes. Não exprimiria tão diferente coisa se escrevêssemos na tal zona: Deus e Liberdade! Não estão escrevendo nos ofícios saúde e fraternidade, em vez de Deus guarde? De onde vem a fraternidade senão de Cristo? De onde se inspirou dela Cristo para pregá-la senão de Deus, seu Eterno Pai? Querem fundar a república sob os auspícios do paganismo e do progresso da ordem ou da espada. Não. Não será assim. Melhor fará a Constituinte! Viva a República com Deus e pela liberdade do povo (Diário de Pernambuco, 21 de novembro de 1889). Apesar disso, boa parte dos liberais, republicanos, positivistas, maçons e até mesmo protestantes foram os principais propugnadores do projeto laicizante. Os liberais adotavam um discurso fortemente anticlerical, conforme acentua Romano (1979, p.115): No momento que se instaurou a República, o político liberal utilizou, em sua luta para reduzir a Igreja à particularidade, “argumentos” clássicos do tipo écrasez l’infame! Ressurgem na sua fala as figuras do clero enganador, do maquiavelismo jesuítico e romano, da astúcia e da superstição, cujo fim inconfessado seria manter a consciência da massa no atraso e na ignorância. Figuras de proa da política nacional, como Saldanha Marinho, Quintino Bocaiúva, Rui Barbosa, Tavares Bastos, Benjamin Constant e Demétrio Ribeiro, levantaram a bandeira da laicidade estatal. Segundo Isaia (1993, p.21): Já nas “Bases” do Programa dos Candidatos Republicanos, redigidas por Júlio de Castilhos, Ramiro Barcellos e Demétrio Ribeiro, lê-se a defesa, tanto da liberdade de associação e de cultos, quanto da retirada da jurisdição eclesiástica sobre nascimentos e óbitos, do casamento civil e da secularização dos cemitérios. Semelhante postura é advogada pelo Apostolado Positivista. Logo após a instauração do regime republicano, Miguel Lemos e Teixeira Mendes defendem que a nova constituição política do país deveria combinar a ditadura republicana com a mais completa liberdade espiritual, bem como a separação entre Estado e religião católica 59 (Azevedo, 1981). Em 1888 publicam uma carta aberta à nação, intitulada “A propósito da liberdade dos cultos”. 85 O primeiro grupo político que defendeu a laicidade estatal e a liberdade de consciência foi o partido republicano. Guiava-se pelo modelo de separação entre Estado e religião dos Estados Unidos. Conforme Pereira (2007, p.113): Segundo o manifesto republicano, no regime imperial, “a liberdade de consciência foi nulificada por uma igreja privilegiada”. Assim, na República, que é o regime das liberdades, da igualdade perante a lei, da supressão dos privilégios e dos favores arbitrários, não haveria proteção especial a nenhuma religião, nem desrespeito aos direitos individuais dos cidadãos, com base nas distinções de suas crenças particulares. Por sua vez, no que concerne ao envolvimento dos protestantes com as ideias republicanas de separação entre Estado e religião e liberdade religiosa, afirma Dias de Araújo (1977, p.28): A oposição ao catolicismo, no começo, foi indiretamente uma oposição ao regime que tinha como religião oficial o catolicismo e que reconhecia a Igreja Católica como parte dos poderes políticos dominantes. A simpatia dos protestantes para com os intelectuais liberais, os maçons, os anti-clericais e os republicanos foi notória nas duas últimas décadas do século passado. Era uma simpatia típica de um grupo de minoria. O principal jornal dos missionários presbiterianos, Imprensa Evangélica, na edição de 7 de fevereiro de 1874, noticiou a organização de um grupo que tinha como finalidade propagar o ideário liberal, e principalmente o princípio da liberdade de consciência e a separação entre Estado e Igreja. Participavam desse grupo, importantes membros da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro como Miguel Vieira Ferreira, e lideranças políticas nacionais como Tavares Bastos e Quintino Bocaiúva (Pereira, 2007).86 Saliento, todavia, que o principal mentor da separação entre Estado e a Igreja Católica, Rui Barbosa, não esgrimia um posicionamento de hostilidade para com o 85 Romano (1979, p. 134) demonstra certas afinidades entre o programa positivista e o catolicismo: “Enquanto os liberais repunham as certezas iluministas, o positivismo viu na ‘tradição católica’ do povo brasileiro sua própria condição de possibilidade, para um projeto político autoritário e racional. Esta afinidade eletiva das duas doutrinas da ordem foi inúmeras vezes salientada pelos seguidores de Comte”. Segundo Pereira (2007, p. 118): “No ano seguinte ao da sua fundação, o Sínodo Riograndense encaminhou à Assembleia Geral do Império uma petição assinada por 7.893 pessoas, na qual reivindicava que fosse ‘derrogado o Art. 5º da Constituição Política do Império, na parte que restringe o exercício dos cultos acatólicos, e em consequência disto também o Art. 276 do Código Criminal’. Na petição argumenta-se a contradição da legislação brasileira, que promovia a imigração de colonos evangélicos, mas punia a manifestação pública da fé protestante, como se fosse uma - vergonha para esta terra-”. 86 60 religioso. Examinado alguns dos seus textos e discursos sobre essa temática verifica-se que o renomado jurista baiano busca inspiração no modelo norte-americano e não no modelo laicista francês. De acordo com Rui Barbosa, as instituições de 1891 não tinham como finalidade matar o espírito religioso, mas depurá-lo e emancipá-lo do controle e jugo do Estado. O modelo projetado por Rui Barbosa acerca das relações entre Estado, religião e sociedade espelhava-se no constitucionalismo americano, que jamais se mostrou ofensivo e contrário à participação das religiões na vida pública: Desde 1876 que eu escrevia e pregava contra o consórcio da Igreja com Estado; mas nunca o fiz em nome da irreligião, sempre, em nome da liberdade. Ora a liberdade e religião são sócias, não inimigas. Não há religião sem liberdade. Não há liberdade sem religião (Barbosa, 1960, p.664). Em outro momento, o jurista republicano traça um interessante paralelo entre os Estados Unidos da América e o Brasil no que diz respeito à constituição e organização do campo religioso: Na república norte-americana a superfície moral do país estava mais ou menos igualmente dividida entre uma variedade notável de confissões religiosas. No Brasil o catolicismo era a religião geral, o protestantismo, o deísmo, o positivismo, o ateísmo, exceções circunscritas. De modo que, enquanto nos Estados Unidos a igualdade religiosa constituía uma necessidade sentida, mais ou menos, no mesmo grau, por todas as comunhões, entre nós ela representava tão-somente aspirações da minoria. A liberdade de cultos veio satisfazer, em boa justiça, à condição opressiva dessas dissidências maltratadas pela exclusão, mas não invertê-la contra a consciência da maioria (Barbosa, 1960, p. 665). Conforme Rui Barbosa, caberia às constituições, e mesmo à Constituição Republicana proteger a religião cristã, pois os documentos políticos de uma nação deveriam basear-se nas tradições e valores existentes e arraigados na sociedade: Antes da república existia o Brasil; e o Brasil nasceu cristão, cresceu cristão, cristão continua a ser até hoje. Logo, se a república veio organizar o Brasil, e não esmagá-lo, a fórmula da liberdade constitucional, na república, necessariamente há de ser uma fórmula cristã (Barbosa, 1960, p.665). Em linhas gerais, já delineiam-se nessas passagens algo do que pode ser chamado de “laicidade à brasileira”. A separação formal e jurídica entre Estado e religião é afirmada; no entanto não se propugna a separação da nação do cristianismo. Nesse sentido, o Estado mantém uma relação de proximidade, benevolência e simpatia com os grupos religiosos cristãos, reconhecendo neles um fator de ordenamento moral e controle social. A religião, principalmente o cristianismo, é tomada como um elemento formador das consciências e alicerce da identidade nacional. Desse modo, a garantia da liberdade religiosa, e a igualdade de todas as confissões religiosas, não significa a 61 privatização do religioso; pelo contrário. Utilizando uma expressão cara ao jurista baiano ao referir-se à realidade norte-americana, pode-se afirmar que também aqui no Brasil, apesar da distinção entre a esfera estatal e a esfera religiosa, nunca houve uma concreta separação da nação da “Bíblia e da Cruz”. Em que pese isso, a Igreja Católica, evidentemente, reage a estas medidas jurídicas laicizadoras. Na Carta Pastoral coletiva do episcopado brasileiro de março de 1890, os bispos brasileiros condenam com veemência a separação entre Estado e religião católica. Por outro lado, reconhecem que o regime do padroado, o regalismo, sufocava a liberdade da Igreja. Defendem, igualmente, a autonomia entre a esfera temporal e a esfera espiritual, vistas como duas sociedades distintas. Entretanto, enfatizam a necessidade de uma união e concórdia entre o poder temporal e a autoridade espiritual: Sim queremos a união, porque Deus a quer: Quod Deus conjunxit, homo non separet. Mas, notai bem, não queremos, não podemos querer essa união de incorporação e absorção, como tem tentado realizá-la certo ferrenho regalismo - monárquico ou republicano - união detestável, em que o regime das almas constitui um ramo da administração pública com o seu ministério de cultos preposto aos interesses religiosos. 87 Os bispos ainda redigem uma Reclamação ao Marechal Deodoro da Fonseca. Nesse texto enviado ao presidente da República, o episcopado protesta contra o projeto de Constituição em discussão.88 A reclamação tem um estilo pessoal, procurando afetar emocionalmente o presidente católico. Os bispos afirmam que não se voltam contra a República, mas contra o ateísmo legal presente no projeto de constituição. Declaram, outrossim, que a ideologia de fundo que inspira os decretos governamentais laicistas é o 87 Disponível 10/11/2009. 88 em: http://www.permanencia.org.br/revista/politica/episcopado.htm Acesso em: Por pressão da alta hierarquia católica o item do projeto da constituição de 1891, que determinava a exclusão da Companhia de Jesus do país e a proibição da fundação de novos conventos e ordens monásticas foi banido. Outro ponto que foi eliminado devido à mobilização da bancada católica composta de dezoito deputados, refere-se às leis de mão-morta. Sobre esse ponto esclarece Vieira (2007, p.351): “Uma das alterações positivas foi aquela relativa aos religiosos. O artigo 72§ 3º do projeto original concedia a ela a liberdade de adquirir bens, mas observando os famigerados limites das leis de mãomorta, enquanto que o §8º do mesmo artigo mantinha a proibição da fundação de novos conventos e ordens monásticas. Graças a uma emenda do deputado César Zama, o congresso constituinte substituiu as expressões finais do § 3º -‘observados os limites postos pelas leis de mão-morta’, pelas expressões observadas as disposições do direito comum’. Por sua vez, o §8º seria completamente suprimido, sendo acrescentado ao art. 72 o § 24 garantindo o ‘livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e individual’.” 62 positivismo, “ímpio positivismo, que rejeitou a Cruz da nossa bandeira para aí inscrever a sua triste legenda e o seu louco simbolismo!” (Reclamação apud Lustosa, 1990, p.72). Seguindo essa reação, Dom Antônio de Macedo Costa, bispo de Belém do Pará, dirige à Constituinte uma representação.89 Nesse texto busca alertar contra o perigo de uma nação divorciada de Deus e da religião. A separação entre o poder político e o poder eclesiástico acarretaria danos funestos para a ordem social: “Uma nação separada oficialmente de Deus torna-se ingovernável e rolará por um fatal declive de decadência até o abismo, em que a devorarão os abutres da anarquia e do despotismo” (representação de Dom Antônio de Macedo Costa apud Lins,1967, p.359). Ao final desse texto insiste para que os constituintes ao redigirem a Carta Magna inspirem-se nos Estados Unidos e em outras republicanas americanas, que não ofenderam os direitos e a liberdade da Igreja Católica.90 Se é verdade que a Constituição republicana de 1891 apresentava uma série de dispositivos jurídicos laicizantes, cabe, contudo, ressaltar que mesmo nesse período a Igreja Católica não se tornou um organização restrita ao âmbito privado, sem projeção política e pública. A laicização do Estado brasileiro parece não ter conduzido a uma privatização do religioso. O relato do médico Joaquim José de Carvalho 91, exposto em seu opúsculo O catolicismo na república, sobre a pujança social e a presença da religião católica no espaço público durante os primeiros anos do regime republicano é bastante elucidativo: A República, que quebrou as coroas imperiais, não demoliu um altar sequer, e viu reerguerem-se novas capelas em quartéis, como se deu na Fortaleza de São João; essa praça de guerra e a de Santa Cruz, há dezessete anos inalteradamente conservam seus nomes de Flos Sanctorum; as procissões percorrem as ruas concorridíssimas e sob maiores reverências; as missas são cotidianamente inúmeras em templos regorgitantes de fiéis; as exéquias 89 Os católicos leigos também se mobilizaram contra o Estado laico republicano, fundando organizações como o Centro Católico, em 1911. Esse centro, que funcionava no Rio de Janeiro, contava com o apoio de intelectuais como Carlos de Laet e Plácido de Mello (Lustosa, 1990). 90 Sobre essa tentativa de pressionar os constituintes comenta Bruneau (1974, p.66): “Organizacionalmente, faltava à Igreja poder político no novo governo. Os doze bispos tentaram influenciar a Assembleia e o Presidente provisório por meio de cartas, apelações e visitas pessoais, mas conseguiram muito pouco. Dom Macedo Costa, o mais notável bispo da época, e antigo professor de Rui Barbosa, conseguiu que se eliminasse da Constituição três provisões muito perniciosas (limitações nas leis sobre a mão-morta (bens inalienáveis), exclusão dos Jesuítas e proibição de fundação de novos conventos e mosteiros); isso foi importante, mas não mudou a atitude fundamental e as ações do governo”. 91 Vale lembrar que esse médico, doutor pela Faculdade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, era republicano e católico. O opúsculo foi publicado em 1906. 63 solenes e as bênçãos fundamentais são indispensadas nas comemorações públicas e oficiais; os Príncipes da Igreja viajam e transitam com regalias oficias que nunca lhes foram dadas em qualquer tempo;muitas constituições estaduais foram proclamadas em nome de Deus; a República mantém estreitas relações diplomáticas com a Santa Sé; os Arcebispados elevaram-se de 1 a 4, os Bispados de 11 a 18 até o momento em que escrevo, que mais serão brevemente, e temos o primeiro Cardeal da América Latina; a Religião enfim, entra solicitada e venerada em tudo e em todos atos da vida nacional”(Joaquim José de Carvalho apud Lustosa, 1990, p.106). O médico Joaquim José de Carvalho (apud Lustosa, 1990, p.109) ainda,declara: Um louco, um infeliz derrubou o Cristo do júri. E ele voltou processionalmente a seus delubros!... Foi abolido o juramento obrigatório; e todos espontaneamente juram em nome de Deus!...Foram supressos os dias santos; e os dias santificados se guardam ainda por tolerância oficial! Semelhante constatação é feita pelo republicano e pastor da Igreja Evangélica Brasileira, Miguel Vieira Ferreira: Conservam-se ídolos nos edifícios públicos civis onde cidadãos de todas as crenças são obrigados a funcionar; obrigam-se os militares a dar guarda às igrejas romanas em suas festas, o que não se faz (e nem deveria fazer) com os cultos de outras crenças; conserva-se uma legação junto ao papa, que já perdeu há muito o poder temporal; manda-se pagar côngrua ao bispo da Capital Federal e outros padres, dizendo-se que a ela tem direito; conserva-se um padre servindo na casa de Correição estipendiado pelo governo e em outros estabelecimentos públicos,onde nem de graça se permitem funções aos de outras crenças; quer-se que o casamento civil preceda forçosamente ao religioso e, ao mesmo tempo, desejam a imigração, querem que venham os judeus que, certamente, não deixarão a lei de Moisés, e o protestante, que sujeita-se aos preceitos cristãos; fazem-se à custa do Estado os funerais de um arcebispo e o transporte do cadáver para a Bahia em um navio do Estado especialmente encarregado dessa comissão; ministros de Estado recebem diplomas papais; governadores comunicam oficialmente aos padres que se acham investidos desse cargo e vêm oficialmente à ponte da barcas receber um bispo e levá-lo para o palácio civil, e tudo em caráter oficial; o ministro da guerra, com uma banda de música militar, saúda um bispo num colégio; o generalíssimo, em ato público, dobra-se humildemente a um vigário geral para lhe beijar a mão, como reconhecendo superior aquela a que pede a benção; manda-se, dia por dia, uma guarda militar postar-se na Igreja da Cruz dos Militares; em repartições públicas guardam-se oficialmente dias santificados pela igreja romana;etc.,etc. (Ferreira, 2001, p.278). O jurista Hermes Lima corrobora com essas impressões asseverando: [...] a separação decretada em 89 não prejudicou a cordialidade das relações dos dois poderes, nem o desenvolvimento administrativo do catolicismo no país. No regime da separação de 89, a Igreja Católica gozou de grandes favores da parte dos poderes públicos. Estado houve, por exemplo que deram subvenções vultosas para a construção de catedrais. A República não festejava nada sem a presença ritual das autoridades eclesiásticas. Esse regime, portanto, era excelente e assim o proclamaram até alguns papas (Lima, 1935). Os positivistas Teixeira Mendes e Miguel Lemos, por sua parte, denunciavam outros privilégios do catolicismo: 64 [...] o Governo provisório manteve o privilégio funerário da Misericórdia e deixou os cemitérios civis do Rio de Janeiro entregues a essa irmandade, mesmo depois de ter explicitamente promulgado a secularização dos cemitérios e a liberdade de culto fúnebre (Igreja e Apostolado Positivista do Brasil nº 343, 1913, p. 52). Lembro, também, que Teixeira Mendes e Miguel Lemos não aceitaram a decisão do governo federal que dispensava os funcionários públicos católicos de trabalhar nos dias santos de sua religião: Anuncia-se que o governo resolveu declarar feriados alguns dias da semana santa dos católicos, ou pelo menos, dispensar do ponto os empregados nesses dias, o que no fundo é a mesma coisa. Se o fato é verdadeiro não podemos deixar de protestar contra semelhante infração do decreto que separou a Igreja do Estado. No novo regime não pode o Governo sancionar os dias de guarda do catolicismo, nem de qualquer outra religião. O contrário constituiria uma contradição manifesta e um ataque á legalidade vigente (Igreja e Apostolado Positivista, nº 343, 1913, p. 64). Alguns positivistas, como Reis Carvalho insurgiram-se contra o Decreto Federal n. 4.697, de 19 de janeiro de 1922, que estabeleceu como feriado nacional o nascimento de Jesus Cristo. Preferiu vê-lo como a comemoração da Festa do Sol, e não como um feriado cristão: [...] o natal de Jesus – incorporado há três anos [...], entre os feriados brasileiros, num momento de predomínio, entre os senhores do poder, do espírito antirrepublicano, contrário ao verdadeiro entusiasmo cívico, que ditou ao Governo Provisório o calendário das festas nacionais, apesar de ser, por isso mesmo, um sintoma desse predomínio, porquanto se quis com o novo feriado festejar oficialmente o Menino-Deus do monoteísmo cristão, infringindo-se de modo escandaloso a Constituição da República consideramo-lo sob o único aspecto compatível com a verdade histórica e com o regime republicano da separação entre a Igreja e o Estado: modalidade cristã do culto universal do Sol. O 25 de dezembro deixa de ser então uma data exclusivamente cristã, para tornar-se um dia leigo, efeméride nacional e humana, comemorativa do mundo, representado pelo seu centro objetivo - o sol (Reis Carvalho, 1926, p. 11). Outro caso esclarecedor é a frustrada tentativa dos positivistas em prestar uma homenagem póstuma a Benjamin Constant. Essa homenagem não ocorreu devido a intervenção de algumas pessoas vinculadas à administração do cemitério. Apesar do cemitério ser público, a sua administração era de responsabilidade da Santa Casa de Misericórdia (Giumbelli, 2002). É também nesse período da República laica, mais precisamente no ano de 1905, que se deu a nomeação de um cardeal para o Brasil, o que se deveu em parte aos esforços do Barão de Rio Branco e do ministro pleniponteciário do Brasil junto à Santa Sé, Bruno Gonçalves Chaves, que em 1 de abril do referido ano esteve em reunião com 65 o Papa Pio X e o cardeal Secretário de Estado. O próprio Barão de Rio Branco foi consultado pela Santa Sé acerca do nome a ser indicado como cardeal, tendo respondido que qualquer arcebispo merecia a escolha. Desse modo, em outubro de 1905 o núncio Tonti recebeu um despacho do Secretário de Estado Merry del Val, chamando a Roma o arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Joaquim Arcoverde, para receber a investidura do Papa. Este foi o primeiro prelado sul-americano que deu aos católicos do Brasil um voto no Sacro Colégio Romano. Depois de um ano o cardeal Arcoverde retornou ao Brasil, sendo recebido por uma multidão de pessoas em uma grande festa que contou com a participação de autoridades governamentais, militares e do clero (Dornas Filho, 1941).92 Por sua vez, Thales de Azevedo (1981) demonstra que o Marechal Deodoro da Fonseca, presidente de uma República laica, utilizava-se de expressões como “Deus”, “Providência”, “Todo-Poderoso”, “leis eternas”, “país católico”, em seus discursos e manifestos. Além disso, declarou em certa ocasião: “Sou católico, não assinarei uma constituição que ofenda a liberdade da Igreja. Dos bens das Ordens Religiosas, não permitirei que o governo tome nem uma pedra” (Deodoro da Fonseca apud Scampini, 1978, p. 84). Derradeiramente cito ainda duas situações que também evidenciam a necessidade de examinar de maneira mais nuançada a separação entre Estado e religião promovida pelo regime republicano. O governo provisório determinava, por um dos seus membros, que os militares, guardas e tropas deveriam abrir fileiras, perfilar as armas, tirar as barretinas, pôr os joelhos em terra, abatendo-se as bandeiras horizontalmente e batendo em marcha os músicos, cornetas e tambores, quando passasse o santíssimo sacramento, o sagrado viático, a relíquia do santo lenho, imagens da Virgem e de Jesus Cristo em procissão do culto católico. Ainda eram determinadas outras continências para procissões de qualquer culto, “seguido por povo civilizado”, quando precedidas dos símbolos correspondentes, mas sem a exigência de pôr os 92 Um acontecimento ocorrido em 1922, não despido de paradoxos no que tange às relações entre Estado e religião, é narrado por Dornas Filho (1941, p.216): “[...] a população católica de Óbidos, no Estado do Pará, pretendeu certo dia sair à rua com uma procissão em louvor a S. Benedito. Foi, porém, proibida a levar a efeito esse desejo por ordem de Frei Rogério Voges, vigário da localidade. Os fiéis, deliberaram, ainda assim, sair à rua com a procissão, desobedecendo às ordens do vigário. Frei Rogério corre então ao juiz de direito e pede um interdito proibitório contra os seus paroquianos, a fim de impedir a realização da solenidade. O juiz, como era de esperar, julgou-se incompetente para conhecer do assunto, que era da alçada de autoridade eclesiástica. Frei Rogério não se deu por vencido e recorreu da decisão para o Tribuna da Relação do Estado, que a confirmou. Interpôs, ainda, recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, que dele não conheceu por não ser o caso de tal recurso, terminando o incidente com umas penalidades canônicas que o Ordinário julgou necessário aplicar...”. 66 joelhos em terra, pois essa atitude era reservada unicamente ao culto católico (Roure, 1918). A outra situação refere-se à existência do Decreto Legislativo n. 158 B, de 10 de agosto de 1893, que dispensava de impostos e direitos aduaneiros a entrada de imagens e pertenças que se destinavam a Igreja matriz da freguesia de São João Batista da Lagoa, localizada na capital federal. Também havia o Decreto Legislativo n. 272, de 30 de maio de 1895, que concedia a José Pereira da Silva Barro, ex-bispo da diocese do Rio de Janeiro, uma pensão anual. Por fim, o ministro da viação, por meio de despacho inserto no Diário Oficial, de 23 de julho de 1897, concedeu a redução de 50% no preço das passagens, em vapores ou estradas de ferro da União, aos membros do Congresso Espírita do Brasil, que estava a se realizar na capital federal (Milton, 1898). Por outro lado, mesmo com a separação formal entre Estado e religião e com a garantia da liberdade de crença e de culto, nos primeiros anos do regime republicano avultam os relatos de queimas de Bíblias protestantes, apedrejamento e invasão de templos, ataques a pastores presbiterianos e outras agressões contra os protestantes. Um caso curioso ocorreu nesse período inicial da República com a prisão por um mês de um Reverendo da Igreja metodista, Sr. Justus H. Nelson, devido ao fato dele ter recusado a tirar o chapéu enquanto acontecia pelas ruas uma procissão católica de Corpus Christi (Leite, 2008).93 Em verdade, na primeira República se dá o despertar e a construção institucional da Igreja Católica. O catolicismo se expande com a criação de novas dioceses, seminários, escolas, irmandades, hospitais, conventos, obras pias, além da criação de jornais, revistas e boletins. O número de bispos, padres e freiras também cresce substancialmente nesse período. Durante a República velha, o poder eclesiástico se estadualiza, refletindo de alguma forma a orientação descentralizadora do regime republicano, com sua conhecida política dos governadores. Esse fenômeno permitiu uma aproximação entre lideranças eclesiásticas e autoridades políticas em nível municipal e estadual. Sobre isso comenta Micelli (2009, p.157): O estilo “romanizado” de culto então em voga e tão apreciado pelas frações dirigentes católicas se prestava ao trabalho de legitimação do poder oligárquico através da encenação de solenidades festivas de entronização de imagens-padroeiros (as), de missas campais, de procissões e outras ocasiões propícias à consagração dos dirigentes e seus feitos. [...] Também prestou uma colaboração direta ao trabalho político oligárquico assumindo o 93 Pedro Tarsier (1936), em História das Perseguições Religiosas no Brasil, relata de forma detalhada e exaustiva os incidentes e perseguições contra protestantes nesse período. 67 desempenho de cargos executivos em nível estadual (d. Aquino Corrêa, bispo de Cuiabá e presidente de Mato Grosso, prefeitos, secretários estaduais etc.), parlamentares, partidários, bem como através da militância na imprensa e em instituições culturais (academias, institutos e associações cívicas). A reorganização institucional da Igreja Católica na primeira República permitiu que essa instituição se reaproximasse do Estado de forma efetiva na década de 1930, e assim reconquistasse privilégios jurídicos perdidos com a laicização do Estado brasileiro. 2.3 Neocristandade Em 1916, em uma carta pastoral, o arcebispo de Olinda, Dom Sebastião Leme, lançava as bases para o projeto de restauração católica94, também cunhado de neocristandade.95 Nesse documento enfatizava a catolicidade da nação brasileira. Entretanto, afirmava que os dirigentes republicanos e os princípios que orientam a República são laicos, distantes da doutrina e da moral cristã. Nesse sentido, se fazia necessário recatolizar a nação, fazendo com que o catolicismo novamente influenciasse a ação política e a legislação deste país. Os primeiros sinais efetivos de uma mais estreita colaboração entre Estado e Igreja Católica ocorrem nos governos de Epitácio Pessoa (1918-1922) e Artur Bernardes (1922-1926). Quando o governo do presidente Epitácio Pessoa se viu ameaçado por atividades revolucionárias, solicitou que o cardeal Leme se apresentasse ao seu lado. Isso serviria para indicar que a autoridade eclesiástica do Rio de Janeiro apoiava a autoridade política combatida por outros setores. O cardeal Leme aceitou o convite. No período de maior instabilidade do governo de Artur Bernardes, este um presidente republicano, fez-se a primeira visita oficial de um chefe de Estado a um chefe da Igreja Católica. Nessa ocasião, foi ressaltada a necessidade de uma colaboração das autoridades eclesiásticas com o governo, com a finalidade de promover a ordem e o progresso da nação. Como exemplo dessa colaboração, em 19 de janeiro de 1922, por meio Decreto n. 4.497, é declarado como feriado nacional o dia de nascimento de Cristo. Já em 1925, as chamadas emendas Plínio Marques continham dois dispositivos favoráveis à Igreja Católica: o primeiro que definia o catolicismo como a religião do 94 Sobre a restauração católica no sul do Brasil ver Rambo (2002). Acerca desse período comenta Scott Mainwaring (1989, p.45): “A nova missão da Igreja era cristianizar a sociedade conquistando maiores espaços dentro das principais instituições e imbuindo todas as organizações sociais e práticas pessoais de um espírito católico”. 95 68 povo brasileiro, e o segundo que advogava o retorno do ensino religioso nas escolas públicas. Contudo, devido a forte resistência de setores favoráveis ao Estado leigo, as emendas foram derrotadas em votação na Câmara Federal. Em 1926, é aprovada uma emenda constitucional, a qual garantia que a representação diplomática junto à Santa Sé não implicava uma violação ao princípio republicano de separação entre Estado e religião. Essa emenda foi adicionada ao artigo 72, § 7º, da Constituição de 1891(Toledo, 2004). É dentro desse espírito de restauração católica que se realizaram os suntuosos Congressos Eucarísticos de 1922 e 1933. Esses eventos públicos tinham como objetivo difundir a devoção a Jesus Sacramentado, destacando o valor da prática da comunhão. Além disso, procurava-se demonstrar a importância da religião católica para barrar o materialismo dos tempos modernos, reintegrando a coletividade nacional em Cristo. Neles, fé católica e nacionalismo se amalgamavam, como observa Dias (1996, p.108): Nestes congressos vemos o cultivo de dois princípios fundamentais na constituição de uma doutrina sobre a autoridade: a crença e o patriotismo. Os símbolos religiosos e políticos se entrecruzavam-se com frequência nestes eventos. O emblema do Congresso Eucarístico de 1922, realizado no Rio de Janeiro, era um laço de fitas com as cores nacionais e o símbolo do coração eucarístico de Jesus. Quando a grandiosa procissão do Santíssimo sacramento, que encerrou o evento, passou pelo Palácio do Catete, o presidente da República ajoelhou-se em demonstração de respeito. A procissão chegou à Biblioteca Nacional, onde funcionava provisoriamente a Câmara dos Deputados, e o vice-presidente da República, ministros, embaixadores, senadores e deputados também se ajoelharam em uma atitude de total devoção e respeito. O primeiro Congresso Eucarístico, com caráter verdadeiramente nacional, realizou-se entre os dias 3 a 10 de setembro de 1933, em Salvador. Como no primeiro congresso, este findou com uma grande procissão solene, que durou cerca de cinco horas, contando com a participação de milhares de fiéis (Dias, 1996). Nesses eventos, estavam presentes importantes autoridades políticas e militares, conforme afirma Azzi (1981, p. 39): Elementos importantes nos congressos eucarísticos,é a participação das autoridades políticas e militares. Em todas essas assembleias religiosas essas autoridades ocupam um lugar destacado, merecendo explícitas referências durante a realização dos atos religiosos. De certo modo, a Igreja passa a sacralizar com o seu poder espiritual a autoridade política dos governantes. 69 Com o objetivo de educar as elites políticas e intelectuais de acordo com os princípios do catolicismo, e influenciar na política e cultura nacional, é criado, em 1922, pelo intelectual Jackson de Figueiredo, o Centro Dom Vital. Outros importantes pensadores católicos, como Alceu Amoroso Lima e o Padre Leonel Franca participaram dessa organização que editava a revista A Ordem. No ano de 1932 surgem os Círculos Operários Católicos, em 1934 é criada a Liga Eleitoral Católica, e em 1935 a Ação Católica Brasileira. Destarte, na década de 1930, sob o governo Vargas, a Igreja Católica reconquista antigos privilégios jurídicos, aproximando-se do Estado. Símbolo expressivo dessa reaproximação da Igreja Católica com o Estado brasileiro e da articulação da identidade nacional com o catolicismo é a inauguração da estátua do Cristo Redentor, em 1931, que contou com a presença do presidente da República e de outras autoridades civis, bem como de bispos de todo o país. Ademais, no mesmo ano, o Brasil é consagrado a Nossa Senhora Aparecida, em uma cerimônia pública.96 A Constituição Federal de 1934 reassegurou uma série de direitos perdidos pela Igreja Católica, como o reconhecimento dos efeitos civis do casamento religioso, a reintrodução do ensino religioso nas escolas públicas, a reinserção do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal, a permissão aos sacerdotes de servirem ao exército como capelães e a liberação de verbas públicas para obras sociais da Igreja. A grande inovação estava no artigo 17, § 3º, que admitia a colaboração entre Estado e religião, em prol do interesse coletivo. Permitiu-se, ainda, a manutenção dos cemitérios religiosos, sendo vedada a recusa de sepultamento, onde não houver cemitério secular, e a concessão de direitos políticos aos religiosos, suprimidos na Constituição de 1891. Desse modo, a pressão política dos católicos surgiu efeito. Além de conseguirem garantir todos esses dispositivos, obtiveram sucesso em sua luta para que um conjunto Sobre o símbolo de Maria comenta José Murilo de Carvalho (2007, p. 93): “[...] assim como na França do Segundo Império, também no Brasil da Primeira República Maria foi utilizada como arma antirrepublicana. Houve um esforço deliberado dos bispos para incentivar o culto mariano, sobretudo por meio de Nossa Senhora Aparecida. A partir do início do século, começaram as romarias oficiais. Em 8 de setembro de 1904, Nossa Senhora Aparecida foi coroada rainha do Brasil. Observem-se a data e o título: um dia após a comemoração da independência, uma designação monárquica. Não havia como ocultar a competição entre a Igreja e o novo regime pela representação da nação. O processo culminou na década de 30. Em 1930, Pio IX declarou Nossa Senhora Aparecida padroeira do Brasil. No ano seguinte, D. Sebastião Leme, perante uma multidão congregada no Rio de Janeiro, a consagrou rainha e padroeira do país”. 96 70 de medidas contrárias aos seus interesses fossem contempladas na Constituição Federal de 1934. Sobre isso esclarece o jurista Hermes Lima (1935, p. 63): Foram os católicos notadamente contrários: 1) à liberdade absoluta de cátedra; 2) à educação sexual pelo Estado; 3) ao exame pré-nupcial; 4) à emenda que dizia “não constituir crime a propaganda de qualquer espécie de ideologia”; 5) à exigência de concursos para estabelecimentos de ensino particulares; 6) à emenda 140 que mandava equiparar os filhos legítimos aos ilegítimos; 7) à emenda que mandava que o plano geral de educação seria executado por sistemas leigos e gratuitos. Nesta advogaram a supressão tanto do leigo como do gratuito. Pretenderam ainda que as associações religiosas “ficassem subordinadas, no seu governo e disciplina, às regras fundamentais da confissão a que pertençam”, emenda impugnada por um comunista da marca do Sr. Raul Fernandez e, afinal, recusada. Sublinho, contudo, que durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1933-34 organizaram-se em diversos Estados brasileiros comitês e ligas pró-Estado leigo que lutavam contra as emendas religiosas enviando telegramas e cartas aos deputados federais envolvidos com a confecção da nova Constituição. As ligas pró-Estado leigo também recolhiam abaixo-assinados contra as emendas religiosas. De modo geral, esses comitês eram compostos por uma miríade de associações civis e religiosas. Destacavam-se na composição dessas ligas igrejas protestantes, organizações espíritas e lojas maçônicas. Um importante e atuante membro de uma dessas ligas era o escritor e jurista Carlos Süssekind de Mendonça, que apresentou no congresso regional da “Liberdade de Consciência”, realizado no Distrito Federal, em abril de 1933, uma tese em que advogava a supressão da Liga Eleitoral Católica. Asseverava que esta era uma organização estrangeira subordinada a um poder político estrangeiro, a Santa Sé. Dessa feita, da mesma maneira que o Superior Tribunal Eleitoral negou o registro do partido comunista, igualmente isso deveria ser feito em relação à Liga Eleitoral Católica. Para esse militante do Estado leigo, os católicos eram naquele período tão “perigosos” à ordem democrática quanto os comunistas: [...] não representarão, hoje, os católicos, com o seu propósito manhoso de apresentar apenas como modificações superficiais transformações profundas, radicais, decisivas, na nossa estrutura política e social, o mesmo risco de subversão que se teme do comunismo. Não dá o seu programa, em relação às instituições políticas vigentes, tantos passos atrás quantos pretende dar à frente o programa comunista? Como se compreende, então, que o Brasil se defenda do “perigo comunista” e permaneça inerte, senão mesmo aliado, conivente, entregue ao “perigo católico” (Süssekind de Mendonça, 1934, p. 178). 71 Essa proposta foi aprovada no congresso, mas acabou não sendo levada adiante em outras instâncias. Süssekind de Mendonça era também contrário ao ensino religioso nas escolas públicas. Bateu-se contra o dispositivo que fazia menção a essa disciplina na Constituição Federal de 1934. Apresentou um protesto formal contra o ensino religioso nas escolas públicas na 6ª Conferência Nacional de Educação, ocorrida em Fortaleza/CE, no começo do ano de 1934, quando, devido a seu posicionamento em prol do ensino leigo, acabou sendo agredido fisicamente por católicos exaltados.97 Por seu turno, o então deputado federal general Plínio Tourinho, quando da Assembleia Nacional Constituinte de 1933-1934, apresentou uma proposta que visava extinguir a assistência religiosa nas forças armadas. Entendia que esta poderia favorecer a espionagem estrangeira, por parte do Vaticano, em nossos quartéis. Ainda afirmava acerca disso: “O Vaticano é hoje em dia uma nação e nos não podemos expor à bisbilhotice dos servidores dessa nação sob o falso pretexto de que eles ingressaram nos quartéis e navios para propagar a religião de Cristo (Jornal Correio do Povo, 27/04/1934). A proposta do general Tourinho provocou a ira dos deputados católicos, não sendo aprovada. Outros deputados federais destacaram-se nessa constituinte pela defesa intransigente do caráter leigo do Estado. Destaco aqui a emenda nº 1.150 de autoria do deputado Asdrubal Gwyer de Azevedo, que destoava das outras que estavam em discussão naquele período pelo seu teor laicista. Nessa emenda, o referido deputado advogava que a Constituição Federal de 1934 deveria proclamar em um artigo específico a laicidade do Estado brasileiro. Ademais, essa emenda propunha outros artigos que limitavam a ação dos grupos religiosos. Um dos dispositivos proibia atos religiosos ou cultuais em qualquer departamento oficial e a sua promoção por parte dos poderes públicos, assim como o favorecimento ou embaraço, por parte desses poderes, do exercício de práticas cultuais de indivíduos ou associações religiosas. Outro dispositivo proibia a permanência ou colocação de imagens, figuras ou símbolos de qualquer igreja ou culto nos departamentos públicos.98 97 98 Noticia veiculada no Jornal Correio do Povo de 16/02/1934. Todas as informações contidas nesse parágrafo são baseadas na pesquisa realizada junto aos anais da Assembléia Nacional Constituinte de 1933-1934. 72 Em relação ao dispositivo inovador que admitia a colaboração entre Estado e Igreja, houve algumas manifestações contrárias por parte de setores que se identificavam com o ideário secularista. A seguir é transcrita a assertiva do jornalista, jurista e político baiano Hermes Lima sobre essa questão: Seguramente, ela, possui outras pretensões, que irá reivindicando à medida que os ventos lhe forem soprando favoráveis. Para isto, muito sabiamente lá deixou o caminho, o recurso, o método: é o artigo em que se admite a colaboração entre Estado e Igreja. Aí está a fonte das concordatas, dos privilégios e dos favores que o futuro tornará possíveis sem que haja necessidade de rever a Constituição de cuja intangibilidade o partido católico é hoje, entre nós, o mais ardente dos advogados (Lima, 1935, p. 84). De outro lado, alguns deputados ligados à Igreja Católica chegaram a defender uma concordata quando da realização da Assembleia Nacional Constituinte de 1933/34, como se pode depreender da proposta feita pelo deputado federal Raul Fernandes: Votamos uma série de disposições que significam bem a propensão desta Assembleia, correspondendo a do Brasil, para reconhecer a Religião Católica como religião nacional. Preferiria eu que a reconhecêssemos francamente como religião do Estado, e, dentro desse regime, ou fora dele, porque estas coisas não são incompatíveis, fizéssemos uma concordata com a Santa Sé, no sentido de regular esta questão espinhosa, que não pode ser resolvida com texto rígido que no está proposto. Na maioria dos países tem sido o caso resolvido em leis ordinárias. Não ousaria eu ditar à Igreja normas elaboradas pelo legislador. Preferiria que o Estado tratasse de potência a potência, dentro dos termos de uma concordata, atribuindo às autoridades eclesiásticas a inspeção, a vigilância, o controle que devem ter sobre as associações filiadas à Igreja, mas respeitando-se o Estado naquilo em que a sua competência precisa ser respeitada. A concordata seria, pois, a solução lógica (Anais da Assembleia Nacional Constituinte de 1934, volume XXI, p. 413, Imprensa Nacional /1937). Por sua vez, a carta constitucional de 1937 pouco mudou o que foi garantido na Constituição de 1934. Algo novo que aparece nessa Constituição é a recomendação de observância dos feriados religiosos por parte do empregador (Toledo, 2004). Contudo, para alguns autores como Pontes de Miranda (1967) e José Scampini (1978), a Constituição Federal de 1937 tinha feições laicistas que lembravam a Constituição de 1891. A carta magna de 1937 excluiu a expressão “sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo”, presente na Constituição Federal de 1934. Além disso, não mencionou a assistência religiosa nas forças armadas, nos hospitais, nas penitenciárias e nos estabelecimentos de internação coletiva, bem como não fez qualquer alusão à representação diplomática junto à Santa Sé presente na emenda constitucional de 1926 e na Constituição de 1934; não tratando também sobre o 73 casamento civil e nem sobre o casamento religioso, e assegurando apenas a liberdade de culto e não fazendo referência à liberdade de consciência e à liberdade de crença (Scampini, 1937). Como a Constituição de 1891, ela também não invoca Deus em seu preâmbulo. O que é inegável, contudo, é que durante a década de 1930 a Igreja Católica torna-se uma parceira do Estado, em um regime de cooperação entre a instância religiosa e a esfera estatal. Legitimava o Estado e tinha como contrapartida uma série de prerrogativas e espaços na vida nacional. Para Della Cava (1975, p. 13): “Logo após o início deste período, a Igreja finalmente conseguiria significativo avanço, no sentido de ser reconhecida pelo Estado de modo quase oficial”. Esses privilégios e o reconhecimento quase oficial por parte do Estado parecem ter facilitado a discriminação e perseguição em relação a grupos religiosos minoritários, apesar de constitucionalmente ter se assegurado a separação entre o poder político e a autoridade espiritual, bem como a liberdade religiosa. Acerca disso, afirma Oro (2005a, p.441): Por exemplo, as religiões mediúnicas continuaram sendo discriminadas negativamente e os terreiros sendo alvo de perseguições policiais sob o argumento do exercício ilegal da medicina e de curandeirismo. Igualmente, os espíritas não puderam professar despreocupada e tranquilamente suas crenças e esta situação, em relação a essas duas religiões mediúnicas, continuou até a década de 1950. 2.4 Estado e religião: distanciamentos e contatos Nas décadas de 1940 e 1950 persiste o regime de colaboração recíproca entre Estado e Igreja Católica, mas não mais com a mesma força e intensidade do modelo de neocristandade da era Vargas. A Constituição Federal de 1946 garante novamente uma série de privilégios para a religião católica, como o ensino religioso nas escolas públicas. Bruneau (1974, p.94) comenta as relações de proximidade entre o poder secular e religioso nesse período: O governo promoveu os símbolos através de um alto número de feriados católicos, celebrações religiosas em todos os setores da burocracia, incluindo a benção de novos prédios; referência oportuna a crenças católicas nos discursos políticos; a destinação de dinheiro público a projetos da Igreja; e, naturalmente o uso de estruturas do Estado para a influência da Igreja. Todavia, conforme Della Cava (1975), ao final da década de 1940 e no começo da década de 1950 o catolicismo brasileiro atravessa uma grande crise interna, relacionada ao surgimento de credos alternativos como o pentecostalismo e o marxismo, 74 à redução do número de sacerdotes e ao enfraquecimento da religiosidade leiga. O mesmo autor ainda afirma: A erosão do monopólio religioso católico significou a perda de quadros e membros. Neste século, essa erosão acelerou-se dramaticamente, em especial a partir dos anos 40 e os esforços para detê-la fracassaram. Por sua vez, os poderes coercitivos da Igreja, derivados em parte do seu monopólio espiritual, vão diminuindo progressivamente (Della Cava, 1975, p.21). Por outro lado, nas décadas de 1960 e 1970, como reflexo do Concílio Vaticano II e das Conferências Episcopais Latino-Americanas de Medellín (1968), na Colômbia, e de Puebla, no México (1979)99, a Igreja Católica brasileira desloca seu foco de ação do Estado para a sociedade civil. Influenciado pela teologia da libertação, o catolicismo nacional centra sua atenção nos problemas sociais, optando, pois, por estar ao lado dos pobres e excluídos. De acordo com Bruneau (1974), formula-se nessas décadas uma ideologia de mudança social. A Igreja Católica denuncia as injustiças sociais e adota uma postura mais progressista. Exemplo concreto disso é a publicação de documentos episcopais como “Ouvi os clamores do povo”, “Documento do Centro-Oeste” e “YJuca-Pirama” - o índio deve morrer”, que criticam duramente as estruturas sociais e econômicas estabelecidas (Azevedo, 2004). No entendimento de Schwartzman (1986, p.127), se estabelece uma guinada iluminista na Igreja Católica brasileira e latinoamericana: “Em sua versão moderna, o iluminismo surge pela tentativa de fazer um catolicismo engajado na história e comprometido com as transformações sociais que estão por vir”.100 Não obstante, setores da Igreja Católica apoiam em um primeiro momento o golpe militar de 1964, diante do “perigo do materialismo ateu comunista”. Porém, esse apoio não granjeia ao catolicismo privilégios, o que faz com que ele aos poucos se distancie do governo militar. Esse distanciamento se acentua quando o clero progressista passa a ser vítima da repressão estatal. Dessa maneira, a Igreja Católica, em quase toda sua totalidade, se ergue contra o regime militar, oferecendo uma forte oposição. Assim, nas décadas de 1970 e 1980 a Igreja Católica atua em prol da 99 A outra conferência é realizada em Santo Domingo, na República Dominicana, no ano de 1982. Com diferente olhar enfatiza Azzi (1981, p. 40): “É efetivamente nos anos 60, com a celebração do Vaticano II, que se consolida a ideia da implantação de um novo modelo eclesial; a Igreja como povo de Deus. Com profunda inspiração bíblica, a Teologia do Povo de Deus passa a ter grande aceitação, superando praticamente a precedente concepção teológica da Neocristandade”. 100 75 redemocratização do país e pela promoção dos direitos humanos (Azevedo, 2004; Mainwaring, 1989). Com a perda do apoio católico, o Estado procura novos aliados religiosos para a legitimação de sua autoridade. Os evangélicos emergem como os principais colaboradores do governo militar. Além desse grupo religioso, maçons e kardecistas também dão algum tipo de apoio ao regime. Entretanto, é com a redemocratização na década de 1980, principalmente na Assembleia Constituinte de 1987/1988, que os evangélicos conquistam mais espaços e prerrogativas junto ao Estado (Mariano, 2002).101 Cabe aqui ressaltar que do ponto de vista estritamente jurídico e constitucional102, o modelo de laicidade adotado pelo Estado brasileiro é de uma laicidade positiva ou de reconhecimento, que não exclui por completo o religioso da esfera pública, reconhecendo na dimensão religiosa um aspecto importante na formação do cidadão. Apesar da Carta Magna de 1988 estabelecer a separação entre Estado e religião103 e a consequente liberdade de crença104, há outros dispositivos constitucionais e leis federais que asseguram a presença da religião no espaço público, como aquele que diz respeito ao ensino religioso nas escolas públicas.105 Acrescenta-se a isto a invocação do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 e a possibilidade de assistência religiosa nas organizações civis e militares de internação coletiva.106 Desse modo, o religioso não é tratado com indiferença ou hostilidade, mas, pelo contrário, é concebido como um valor positivo. Para alguns juristas (Mendes, Coelho, Branco, 2009), nosso modelo de laicidade não apresenta um conteúdo contrário e de oposição às crenças religiosas, pois não 101 Segundo Mariano (2002), os evangélicos entram de corpo e alma no jogo político, elegendo a “bancada evangélica” de 32 deputados federais em 1986. 102 Refiro-me aqui aos dispositivos jurídicos da Constituição Federal de 1988. 103 Artigo 19, incisos I, II e III. A colaboração entre ambas as esferas, estatal e religiosa, é permitida apenas em caso de interesse público. 104 Artigo 5º, inciso VI. 105 Artigo 210, parágrafo 1º. Há ainda a Lei Federal nº 9475/97, que estabelece um novo modelo de ensino religioso, de feição inter-religiosa e supra-confessional, proibindo qualquer forma de doutrinação e proselitismo. 106 Artigo 5º, inciso VII e Leis Federais nº 6.923/81 e 9.982/2000. 76 impede a colaboração com as confissões religiosas para o interesse público (CF,art. 19, I). Além disso, acolhe expressamente medidas de ação conjunta dos Poderes Públicos com organizações religiosas, reconhecendo como oficiais determinados atos praticados no âmbito dos cultos religiosos, como, por exemplo, o caso da extensão de efeitos civis do casamento religioso. Esses mesmos autores enfatizam, também, que nosso sistema constitucional concebe o religioso como um bem valioso, que deve assim ser amparado: O reconhecimento da liberdade religiosa pela Constituição denota haver o sistema jurídico tomado a religiosidade como um bem em si mesmo, como um valor a ser preservado e fomentado. Afinal, as normas jusfundamentais apontam para valores tidos como capitais para a coletividade, que devem não somente ser conservados e protegidos, como também ser protegidos e estimulados (Mendes, Coelho, Branco, 2009, p. 463). Para outro importante constitucionalista, Manuel Gonçalves Ferreira Filho (2002), o ordenamento jurídico pátrio, que tem sua expressão maior na Constituição Federal de 1988, segue o modelo de “neutralidade benevolente” no que tange às relações entre Estado e religião. Acerca desse conceito assim se exprime esse autor: “Esta constituição segue em princípio o modelo de separação, mas a neutralidade que configura é uma ‘neutralidade’ benevolente, simpática à religião e às igrejas” (Ferreira Filho, 2002, p. 89). Por seu turno, o jurista Aloisio Cristovam dos Santos Júnior (2007) estabelece uma comparação entre a Constituição Federal de 1988 e Constituição Federal de 1891. Enquanto a CF de 1988 invoca a proteção a Deus no seu preâmbulo, a CF de 1891 não aludia em momento algum ao nome de Deus. A CF de 1988 admite a escusa de consciência ao brasileiro que se recuse, por motivo de crença religiosa, a cumprir obrigação a todos imposta, determinando apenas a perda de direitos políticos aos que não aceitarem cumprir obrigação alternativa. Já a CF de 1891 determinava a perda de direitos políticos daqueles que alegassem motivos de crença religiosa com a finalidade de se isentarem de qualquer ônus que as leis da República impusessem aos cidadãos. A CF de 1988, no próprio dispositivo que estabelece a separação entre Igreja e Estado (art. 19, I) admite, como exceção ao princípio, a chamada colaboração de interesse público entre a instância estatal e as organizações religiosas; a CF de 1891 não previa esta colaboração. A CF de 1988 dispõe acerca do ensino religioso nas escolas públicas. Por sua vez, a CF de 1891 previa que o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos seria leigo. A CF de 1988 estabelece a imunidade tributária quanto aos impostos que incidem sobre os templos religiosos; a CF de 1891 não previa nenhuma espécie de 77 imunidade tributária a favor dos grupos religiosos. Por fim, a CF de 1988 atribui ao casamento religioso o efeito civil; já a CF de 1891 somente reconhecia o casamento civil. Diante desses dispositivos presentes na vigente carta constitucional o referido jurista conclui: [...] a aconfessionalidade do Estado brasileiro, proclamada deste a instauração da República, na forma como é adota pela atual Constituição Federal, longe de significar uma diminuição do espaço conferido ao fenômeno religioso, presta-se até a ampliá-lo, e, sendo assim, a interpretação dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que tratam da liberdade religiosa não podem ignorar esse viés hermenêutico (Santos Júnior, 2007, p. 75). Outrossim, observa Weingartner Neto ( 2007, p. 148): “Nem indiferente, nem hostil, a Constituição Federal de 1988 parece-me, [...] uma constituição atenta, separada mas cooperativa, não confessional mas solidária, tolerante”. Derradeiramente, o renomado constitucionalista Celso Bastos (1990) afirma que os preceitos constitucionais indicam que a separação entre Estado e religião admite certos abrandamentos. Exemplo disso repousa na Constituição Federal de 1988, a qual ao mesmo tempo define não poder haver relações de dependência ou aliança entre o Estado e os grupos religiosos, determina a colaboração entre essas instâncias. Ademais, ressalta o referido constitucionalista: [...] o princípio fundamental é o da não-colocação de dificuldades e embaraços à criação de igrejas. Pelo contrário, há até um manifesto intuito constitucional de estimulá-las, o que é evidenciado pela imunidade tributária de que gozam (Bastos, 1990, p. 178). Outro ponto que merece ser agora destacado refere-se ao caráter genérico, abstrato e vago do dispositivo constitucional que trata acerca da separação entre Estado e religião. O artigo 19, inciso I, não define de maneira precisa e clara as situações em que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança. Com a finalidade de sanar essa imprecisão o então deputado federal Daso Coimbra (PMDB/RJ), ligado a uma igreja evangélica, apresentou uma emenda a esse artigo na Assembleia Constituinte. Essa emenda procurava especificar e detalhar as situações em que ocorreriam as vedações referidas. Sendo assim, § 1º dessa emenda declarava que seria considerado tendente ao estabelecimento de culto religioso ato que: a) determine a comemoração oficial de data religiosa; b) constranja o comparecimento à cerimônia religiosa; c) submeta a pessoa a rito religioso; e d) obrigue a difusão de acontecimento religioso por 78 meio de jornal, revista, rádio, cinema, televisão ou qualquer outro meio de comunicação. O § 2 º determinava ser considerado privilegiado o ato que: a) der preferência a determinada igreja na prestação, através de seu setor beneficente, de colaboração de interesse público; b) discriminar cidadãos na nomeação para entidades públicas como representantes de determinada igreja na proteção de assistência religiosa. O § 3º definia que seria considerada subvencionada a igreja quando houver: a) utilização, em obras ou serviços de entidades religiosas, de funcionários ou empregados de entidades públicas, ou de prédios, veículos, máquinas, utensílios e materiais, de qualquer natureza, de propriedade de entidades públicas; b) construção de templos ou capelas com dinheiro público. O § 4º estabelecia que a autoridade pública estaria prejudicando o exercício do culto religioso quando: a) restringir o instrumento, a natureza ou o volume da propaganda de doutrinas religiosas; b) dificultar a entrada ou saída de recursos financeiros, destinados exclusivamente à manutenção ou expansão do culto; e c) limitar o número dos oficiantes ou ministros de culto religioso. O § 5º determinava que a autoridade pública estaria mantendo relações de dependência e aliança com determinado culto ou igreja quando: a) só prestar colaboração de interesse público que tenha sido solicitada por determinada entidade religiosa; b) convidar para solenidade oficial somente representantes de determinada igreja; e c) exercer qualquer tipo de preferência por determinada igreja. Finalmente, o § 6º dispunha que a autoridade pública estaria em situação de dependência quando vincular programa governamental à campanha de propaganda religiosa (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, maio de 1987). Essa emenda, do citado deputado, foi incluída no anteprojeto do texto constitucional, mas acabou não sendo aprovada. Intencionava-se com ela definir uma clara e nítida separação entre as instâncias estatais e o religioso, restringindo em muito o campo de ação das confissões religiosas. Parece-me que um dos objetivos principais do deputado evangélico era solapar os privilégios e prerrogativas desfrutadas pela Igreja Católica, ou seja, limitar a histórica relação de simbiose entre o poder estatal e o grupo religioso majoritário. Com semelhante propósito, a deputada federal Lúcia Vânia sugeriu durante a realização da Assembleia Nacional Constituinte uma nova redação ao referido artigo. Este ficaria com o a seguinte redação: “Fica decretada a completa e integral separação Igreja e Estado como entes autônomos, sendo inadmissível a ingerência de qualquer uma dessas instituições na atividade uma da outra” (Diário da 79 Assembleia Nacional Constituinte, junho de 1987, p.44). Apesar de alguns deputados apoiarem a iniciativa de declarar expressamente a separação, a proposta foi rechaçada. Na década de 1990, apesar do país ser governado por Fernando Henrique Cardoso, ateu convicto, a Igreja Católica obtém uma grande vitória junto ao Estado, com uma lei federal específica sobre o ensino religioso nas escolas públicas (Mariano, 2002). A LDB de 1996, no artigo 33, estabelecia que o ensino religioso deveria ser oferecido sem ônus para os cofres públicos.Tal dispositivo legal não agradou a Igreja Católica, já que o ensino religioso seria ministrado nas escolas públicas sem que houvesse o pagamento dos professores da disciplina por parte do Estado. Devido às fortes pressões lideradas pela Igreja Católica, foram apresentados ao Congresso Nacional três Projetos de Lei que alteravam o artigo 33 da LDB de 1996. O primeiro projeto foi apresentado pelo deputado federal Nelson Marquezan, retirando a expressão sem ônus para os cofres públicos. O segundo projeto foi apresentado pelo deputado federal Maurício Requião, mudando de forma substancial o artigo da LDB. Ele estabelecia que o ensino religioso deveria colaborar com a formação básica do cidadão e vetava qualquer forma de proselitismo e doutrinação, respeitando a diversidade religiosa brasileira. Por fim, o Projeto de Lei d n° 3.043/97, de autoria do Poder Executivo, defendia a manutenção do texto da LDB, com algumas ressalvas. O relator do processo que modificou o artigo 33 da LDB de 1996 foi o deputado federal Padre Roque Zimmermann (PT/PR), membro da comissão de educação, cultura e desporto. A nova redação do artigo 33 da LDB de 1996 foi sancionada em 22 de julho de 1997 pelo presidente da República Fernando Henrique Cardoso, mediante a Lei 9475/97, que ficou com a seguinte redação: “o ensino religioso é parte integrante da formação básica do cidadão, constituindo disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurando o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, vedando qualquer forma de proselitismo”. O § 1º da referida lei estabelece que: “os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação dos professores.” O § 2º afirma: “Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos de ensino religioso” (Ranquetat, 2007). Derradeiramente, é preciso sublinhar, no que tange às relações entre Estado e religião no Brasil, que muitos setores da Igreja Católica saudaram a chegada de Lula à 80 Presidência da República. A relação do Partido dos Trabalhadores com certos movimentos e grupos católicos é bastante próxima. Evidência concreta dessa aproximação é a visita de Lula à CNBB em Brasília, o primeiro encontro de um presidente com a maioria do episcopado: Essa mensagem foi transmitida diretamente ao presidente Lula nas visitas que fez à sede da CNBB em Brasília, ainda antes de sua posse, e à Assembleia Geral dessa entidade no dia 1º de maio no Mosteiro de Itaici, em Indaiatuba (SP). Nos cinquenta anos da CNBB, essa foi a primeira vez em que um Presidente da República encontrou-se com a absoluta maioria do episcopado (305 cardeais, arcebispos e bispos de todo o país, além do Núncio Apostólico, embaixador do Papa no Brasil, D. Lorenzo Baldessari). No encontro reservado com os bispos, Lula ouviu, primeiro, discurso do então presidente da CNBB, D. Jaime Chemello, que destacou a "legítima autonomia da autoridade civil" e a decisão da Igreja de colaborar com o governo "de forma crítica e livre, em defesa da vida, da família e da justiça social". Depois, o Presidente fez o seu discurso, durante uma hora e meia, em que relembrou sua história de vida e em que pediu a colaboração da Igreja para seu mandato. Citou como preocupante a desagregação da juventude e da família. Logo depois, Lula passou a palavra a seus ministros, que resumiram as prioridades de suas pastas (Azevedo, 2004, p.117). Outra evidência significativa dessa reaproximação é o recente acordo firmado entre o governo brasileiro e a Santa Sé, que será brevemente abordado no item seguinte. 2.5 O acordo entre o Estado brasileiro e a Santa Sé e a Lei Geral das Religiões Em 13 de novembro de 2008, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em viagem diplomática ao Vaticano, firmou um Acordo com a Santa Sé, regulamentando a atuação e o estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil. O Acordo107 possui vinte artigos que tratam de diversos temas, como: isenções fiscais para pessoas jurídicas eclesiásticas, proteção dos lugares de culto e do patrimônio histórico e cultural da Igreja Católica, assistência espiritual em hospitais e presídios, ensino religioso nas escolas públicas, efeitos civis do casamento religioso, destinação de espaços para fins religiosos, etc.108Logo após a assinatura desse documento, o Itamaraty e a embaixada do 107 Esse acordo é denominado também de concordata. Cunha (2009, p.264) comenta sobre este termo: “Concordata é um termo próprio do universo simbólico da Igreja Católica. Ela é um tratado ou acordo firmado entre os governos de dois Estados, o Vaticano e um outro. Se a concordata com a Itália, em 1929, não foi a primeira, ela veio a ser matriz das que Igreja Católica veio estabelecer com outros governos, com esse nome ou chamada de tratado, acordo ou pacto”. 108 Sublinho os artigos 6º, 7º e 14º do acordo. No artigo 14º determina-se que o Estado brasileiro deverá destinar espaços para fins religiosos no planejamento urbano do plano diretor das cidades. O artigo 6º, por sua vez, afirma que o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica, deve ser reconhecido como parte do patrimônio histórico, artístico e cultural do Brasil. Ademais, o Estado e a Igreja Católica, devem colaborar para salvaguardar, valorizar e promover a fruição dos bens, móveis e imóveis dessa 81 Brasil junto à Santa Sé procuraram enfatizar que o acordo não trará privilégios à Igreja Católica, tratando-se apenas de um tratado administrativo e diplomático que consolida e formaliza em um único texto a legislação já existente. Em realidade, o acordo já estava sendo discutido e negociado desde 2006, tendo a primeira proposta sido enviada pela Santa Sé ao Itamaraty, em dezembro de 2006. O documento foi examinado por especialistas de vários ministérios, voltando ao Vaticano. Destaco que anteriormente a Igreja Católica já havia assinado outros dois acordos com o Estado brasileiro, de menor abrangência: o acordo administrativo para troca de correspondência diplomática, firmado em 1935, e o acordo sobre o estabelecimento do ordinariado militar e a nomeação de capelães militares, em 1989. O desejo da Santa Sé era assinar o acordo quando da vinda do papa Bento XVI ao Brasil, em maio de 2007. Contudo, na ocasião, seguindo a recomendação de setores do Ministério das Relações Exteriores que defendem a laicidade estatal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recusou-se a assinar o documento, afirmando quando do encontro com o papa no Palácio dos Bandeirantes: “Conhecedor das qualidades religiosas do Brasil, quero dizer que nosso empenho é preservar e consolidar o Estado laico e ter a religião como instrumento para tratar da espiritualidade e dos problemas sociais”.109 O acordo foi encaminhado ao Congresso Nacional, em 12 de março de 2009, sendo apresentado na forma da Mensagem/MSC Nº 134/2009, tramitando em regime de urgência. Em 18 de março de 2009 foi enviado para a apreciação da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) e Comissão de Constituição e Justiça (CCJC). A pedido de alguns parlamentares, o acordo foi ainda examinado nas Comissões Permanentes de Trabalho, Administração e Serviço Público (CTASP) e Educação e Cultura (CEC). Prontamente, alguns parlamentares e diversas organizações religiosas e seculares reagiram à concordata.110 organização religiosa que sejam considerados parte integrante do patrimônio nacional. O artigo 7º determina a responsabilidade do Estado de proteger os lugares de culto e de liturgias, bem como os objetos culturais e símbolos, de qualquer forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo. 109 Disponível em: http://noticias.correioweb.com.br/materias.php?id=2707113&sub=Pol%ADtica. Acesso em: 22/09/2009. 110 Manifestaram publicamente seu repúdio ao acordo as seguintes organizações religiosas e seculares: Igreja Metodista do Brasil; Igreja Presbiteriana; Associação Brasileira de Templos de Umbanda (ABRATU); Associação dos Pastores Evangélicos do Piauí; Conselho Interdenominacional de 82 O coordenador da bancada evangélica, deputado João Campos (PSDB-GO), afirmou que a concordata fere o princípio republicano de separação entre Estado e religião: O texto abre caminho para que o Brasil volte a ser um Estado confessional com uma única religião oficial com mais prerrogativas do que as outras. Isso fere a constituição, pois tem a ver com a liberdade de crença, a pluralidade de religião, a diversidade de culto.111 O deputado Pedro Ribeiro (PMDB-CE), pastor da Assembleia de Deus e integrante da frente parlamentar evangélica, subiu à tribuna em 26 de março de 2009 para manifestar sua posição contrária ao acordo, declarando que este feria a laicidade do Estado, a isonomia e a liberdade religiosa. Outro deputado evangélico, Arolde de Oliveira, vinculado à Convenção Batista Brasileira, em audiência com a Secretária Executiva do Gabinete Civil da Presidência da República, externou suas preocupações com o acordo entre o Brasil e o Vaticano. Por outro lado, lideranças católicas procuraram demonstrar que o acordo não se oporia à laicidade estatal e que outras religiões também poderiam assinar acordos da mesma natureza. Conforme o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer: “O acordo foi assinado pela Igreja Católica, mas outras confissões religiosas poderão seguir o mesmo caminho, se quiserem negociar com o Estado” (Estado de São Paulo, 14 de novembro de 2009). Para Geraldo Lyrio Rocha, presidente da CNBB: “O acordo não traz privilégios para a Igreja Católica nem fere a laicidade do Estado, que a Igreja vê com agrado, como conquista do Estado moderno” (Estado de São Paulo, 28 de junho de 2009). Buscando adaptar a concordata entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica, estendendo as mesmas prerrogativas às demais religiões, o deputado federal George Ministérios Evangélicos do Brasil e Associação Vitória em Cristo; Grande Loja Maçônica do Estado do Rio de Janeiro; Católicas pelo Direito de Decidir; Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e SaúdeSP; Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER); Ação Educativa; Comissão de Cidadania e Reprodução; Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC); Associação de Ateus e Agnósticos (ATEA); Associação Brasileira de Antropologia (ABA); Associação dos Magistrados Brasileiros(AMB); Associação Brasileira de Liberdade Religiosa e Cidadania (ABLIRC); Observatório da Laicidade do Estado (OLÉ-UFRJ) e Conselho Federal de Serviço Social (CFESS).Dezenas de organizações Glbts, que militam pelos direitos sexuais e reprodutivos, também expressaram seu repúdio pelo acordo. Sete advogados paulistas moveram uma Ação Popular, contra a União, o presidente Lula e a CNBB para suspender os efeitos da concordata. 111 Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em: 30/10/2009. 83 Hilton (PP-MG), membro da Igreja Universal do Reino de Deus, apresentou o projeto da “Lei Geral das Religiões”. Sobre esse projeto, o deputado evangélico declarou: Por entender que o princípio da igualdade constitucional das religiões em nosso País, pelo qual todas as confissões de fé, independente da quantidade de membros ou seguidores ou do poderio econômico e patrimonial, devem ser iguais perante a Lei é que apresentamos esta proposta112. O deputado evangélico Eduardo Cunha (PMDB-RS) foi designado relator da proposta, e ameaçou recorrer ao STF caso a Lei Geral das Religiões não for aprovada: “Pela Constituição, o Brasil é um Estado laico, portanto é inconstitucional dar privilégios para apenas uma igreja. Votando apenas o acordo com a Santa Sé, é isso que vai acontecer” (Folha de São Paulo, 21 de agosto de 2009). Os evangélicos e os demais grupos religiosos exigem, com essa lei, serem tratados com isonomia pelo Estado brasileiro, não aceitando privilégios exclusivos para a Igreja Católica. Todavia, a Igreja Católica parece não ter aceitado pacificamente esse projeto de lei, como se pode constatar neste editorial publicado pela Rádio do Vaticano, órgão oficial da Santa Sé, em 9 de agosto de 2009: Ao mesmo tempo em que louvamos o Congresso Brasileiro pela aprovação do Acordo entre o Brasil e a Santa Sé, ficamos perplexos com a futura criação da Lei Geral das Religiões. No Acordo vimos dois Estados, duas entidades independentes, autônomas, falando no mesmo nível e contemplando todas as religiões com as benesses adquiridas, se isso acontecer. Na Lei Geral, paira no ar um cheiro de retrocesso, de volta à dependência ao Estado, de solicitação ao Poder Civil para que legisle sobre a prática da fé. Sente-se algo de retorno ao Brasil Império, onde um ministério legislava sobre a religião, como poderia e deveria ser praticada. Esperava-se que os representantes do povo, cônscios de sua responsabilidade, não se deixassem levar por partidarismos, mas vissem o bem geral da nação. Infelizmente tal não acontece. Deixando de lado situações mais graves, vamos nos referir a situações comezinhas, mas não menos importantes, quando se pretender colocar no mesmo rol, por exemplo, um templo de 400 anos, seja de uma igreja cristã ou de uma sinagoga, mas patrimônio cultural da nação brasileira, com uma construção de poucos anos, que até há pouco era um local de diversão. Parece que não se entende do que se legisla e coloca-se no mesmo saco "oves et boves".113 Em 26 de agosto de 2009, em uma sessão marcada por intensos e acirrados debates, é aprovado de forma integral, na Câmara dos Deputados, o acordo entre o Brasil e a Santa Sé. Foram apresentadas, durante as discussões, dezoito emendas que tratavam das inconstitucionalidades e ilegalidades do documento. Uma dessas emendas 112 Disponível em: http://conteudo.arcauniversal.com/2009/08/26/evangelicos-articulam-aprovacao-dalei-geral-das-religioes/ Acesso em: 13/01/2010. 113 Disponível em: http://acordovaticano.blogspot.com/2009/09/para-vaticano-lei-das-religioes-e.html Acesso em: 10/12/2009. 84 foi apresentada pelo deputado Chico Abreu (PR-GO), que propunha a retirada da expressão “católico e de outras confissões religiosas” presente no artigo 11 do acordo que se refere ao ensino religioso nas escolas públicas. Na realidade, o deputado federal Chico Abreu (PR-GO) foi o relator da matéria na Comissão de Educação e Cultura (CEC),114 onde inicialmente propôs a retirada dessa expressão, tendo a comissão aprovado com essa ressalva o acordo. Pressionado, o deputado Chico Abreu acabou retirando essa emenda. Seguindo a recomendação do presidente da casa, deputado Michel Temer (PMDB-SP), a emenda foi transformada em uma mera recomendação ao poder executivo.115 Após a votação da concordata, ainda foi votada e aprovada a Lei Geral das Religiões, o que agradou a bancada evangélica. Essa lei copia os vinte artigos que compõem o acordo entre o governo brasileiro e o Vaticano, apenas substituindo a expressão “católica” por “todas as confissões religiosas”. O deputado George Hilton, autor do projeto da Lei Geral das Religiões, antes da votação asseverava: “Já está combinado: aprovamos o deles e eles aprovam o nosso”.116 O PSOL foi o único partido que votou contra os dois textos, anunciando que irá à justiça para anular tais acordos. O deputado Ivan Valente, deste partido, afirmou: “Foi a aprovação da lei das compensações no mercado da fé” (O Globo, 28 de agosto de 2009). Por outro lado, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que articulou o acordo evangélico, declarou que a finalidade era mesmo copiar o acordo com a Igreja Católica: “Copiamos todas as cláusulas, mas no formato de projeto de lei. Não houve acordo fechado, mas uma ponderação para que se desse igualdade a todos os credos. O que ocorreu foi um acordo político para votar”(O Globo,28 de agosto de 2009). No Senado Federal, o acordo Brasil-Santa Sé foi votado e aprovado em sessão realizada em 7 de outubro de 2009. Cabe lembrar que no mesmo dia, mais cedo, o parecer do relator Fernando Collor (PTB-AL) sobre o acordo na Comissão de Relações Exteriores foi aprovado. O único senador a abster-se, Geraldo Mesquita Júnior (PMDBAC), afirmou seu desagrado: 114 O Ministério da Educação e Cultura (MEC), também criticou esse artigo do acordo. Em parecer, emitido em julho de 2009, a Coordenadoria do Ensino Fundamental do MEC afirmou que ele fere a legislação brasileira e pode gerar discriminação nas escolas públicas. 115 116 Para uma discussão mais aprofundada sobre a polêmica acerca desse artigo, ver Cunha (2009). Disponível em: http://maisjesus.net/noticias/30-religiao/215-aprovado-tratado-entre-brasil-evaticano.html. Acesso em: 12/12/2009. 85 Temos que manter o Estado laico. Com a aprovação desse acordo, estamos abrindo precedentes graves. A gente reconhece o Vaticano como Estado, mas ele representa uma corrente religiosa. Como vamos resolver o problema das outras religiões que vão se sentir no mesmo direito? (O Globo, 7 de outubro de 2009). Não havia ainda previsão para a votação da Lei Geral das Religiões no Senado até o momento em que era redigido este trabalho. O projeto de lei foi despachado para análise em três comissões do Senado: Comissão de Educação, de Assuntos Econômicos e de Constituição e Justiça. Interessante notar que cerca de um mês antes da aprovação do acordo com a Igreja Católica, o presidente Lula sancionou o projeto de lei que institui o Dia Nacional da Marcha para Jesus, de autoria do senador Marcelo Crivela (PRB-RJ). Nesse dia ocorreu, em comemoração por essa sanção presidencial, uma cerimônia realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, que contou com a presença do presidente da República, do presidente da Câmara, Michel Temer, do ministro José Múcio Monteiro, da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, de vários deputados federais, do diretor de relações institucionais da Igreja Universal do Reino de Deus, Jerônimo Alves, e do próprio senador Marcelo Crivella. Diversos representantes de denominações evangélicas também estiveram presentes. Finalmente, em 11 de fevereiro de 2010, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva sancionou e promulgou por meio do Decreto nº 7.107, o acordo entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica. De acordo com Giumbelli (2010, p. 25) os dispositivos normativos presentes no texto do acordo apresentam fundamentalmente dois vetores: De um lado, há uma preocupação em garantir ou reconhecer um espaço próprio às instituições eclesiásticas. Participam dessa condição as disposições sobre o exercício público de atividades (art. 2º), sobre personalidade jurídica (art. 3º), sobre proteção dos lugares de culto, liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais (art. 7º), sobre seminário de formação (art.10º), sobre segredo do ofício (art.13), sobre a imunidade tributária (art.15º), sobre a natureza da relação trabalhista (art.16), sobre a entrada de estrangeiros para atividades pastorais (art.17º). De outro lado, ocorrem medidas que permitem que a religião católica estenda sua presença em outros domínios da sociedade: representação diplomática (art.1º), assistência social (art.5º), patrimônio histórico, artístico e cultural (art.6º), assistência espiritual (art. 7º), instituições de ensino (art. 10º), ensino religioso em escolas públicas (art. 11º), efeito civil do casamento religioso (art. 12º) e planejamento urbano (art. 14º). Se o primeiro vetor é de autonomia, o segundo é de difusão. Mas, a rigor, em ambos os vetores o que está em jogo é a presença da religião na sociedade, em movimento invertidos: no caso da autonomia, trata-se de algo reconhecido pela sociedade; no caso da difusão, trata-se da manifestação da religião em outras esferas. 86 Em suma, a concordata parece sinalizar mais uma vez para a dimensão pública da religião no Brasil, a sua impregnação nos mais variados espaços sociais e sua conexão e proximidade com o âmbito estatal. A Igreja Católica e os demais grupos religiosos, principalmente os evangélicos, participam de modo ativo na esfera pública, procurando conquistar espaços e prerrogativas junto ao Estado. Desse modo, não atuam conforme estabelece o ideário liberal e republicano, de teor secularista, que intenta fazer da religião uma questão de foro íntimo, distanciada assim da arena política e de outros domínios da vida social. Por seu turno, pode-se perceber que as bancadas evangélica e católica, tradicionalmente unidas em temáticas como o aborto e a união civil homossexual, dividiram-se na questão da concordata. Outra questão que tem sido motivo de conflitos e embates históricos entre evangélicos e católicos diz respeito à presença de símbolos religiosos em espaços públicos, conforme demonstrarei no próximo capítulo.117 117 Em verdade, essas tensões no campo religioso brasileiro e a luta por espaços e prerrogativas junto ao Estado são, em parte, efeitos da laicização do aparato jurídico e político, conforme acentua Mariano (2003, p.112): “No caso brasileiro, a ampla liberdade religiosa resultante da secularização do Estado está na raiz da desmonopolização religiosa, da formação e concorrência religiosa. Isto é, a concessão de liberdade religiosa e a separação Igreja-Estado romperam definitivamente o monopólio católico, abrindo caminho para que outros grupos religiosos pudessem ingressar e se formar no país, disputar e conquistar espaço na sociedade, adquirir legitimidade social e consolidar sua presença institucional”. 87 3 ORIGENS DE UMA CONTROVÉRSIA: O CRISTO NO TRIBUNAL DO JÚRI, NO CORCOVADO E NOS PARLAMENTOS A existência de símbolos, imagens e monumentos católicos nos espaços públicos e privados118 remonta ao período colonial e imperial, estendendo-se durante o regime republicano, até os dias atuais. Oratórios119, ermidas, santuários120, cruzeiros121 e cruzes permeavam todos os espaços sociais. Tratando-se de uma característica do catolicismo popular luso-brasileiro122, também marcado pelas festas, romarias e procissões públicas (Azzi, 1977; Beozzo, 1977; Mott, 1997). Sobre a significativa difusão de cruzes no território nacional afirma Azzi (1977, p.127): Desde o início, a cruz serviu tanto como expressão da religião oficial como da devoção popular, mas evidentemente com conotações diversas em um e outro caso. Nos primórdios da colonização do Brasil, a cruz foi utilizada na religião oficial, seja como marco de conquista, seja como local de culto. O povo deu sempre grande importância ao ato de erigir cruzes, através das quais expressava a sua devoção. Quer expandindo-se pelo litoral, quer penetrando pelo sertão, os colonizadores luso-brasileiros semearam as cruzes através do território da colônia. Essas cruzes tinham diversas finalidades e múltiplos significados. Entre eles, podemos destacar os seguintes: assinalar a presença de uma comunidade cristã, mesmo de caráter transitório, servir de local para preces, mormente ladainhas e rosário; expressar o culto à paixão de Cristo, indicar o local de sepultura de uma pessoa amiga; manifestar devolução às santas almas. Mesmo durante o período imperial e a época republicana, o povo, principalmente na área rural, continuou a tradição de expressar a sua fé católica através da ereção de cruzes e cruzeiros. Para Mott (1997, p. 164): “A casa de moradia é o locus privilegiado para o exercício da religiosidade privada dos católicos. Nas casas mais abastadas, o lançamento da pedra fundamental da construção contava com a presença de um sacerdote encarregado de aspergir água benta no alicerce, garantindo-se assim o bom futuro religioso do novo domicílio. Em muitas casas urbanas do Brasil antigo, conforme fixou a tradição oral, podia-se ver um cruzinha de madeira pregada à porta da entrada; nas zonas rurais, um mastro, com a bandeira de um santo, revelava aos visitantes a preferência da devoção familiar. Dentro de casa, uma série de imagens, quadros e amuletos sinalizavam a presença do sagrado no espaço privado do lar.” 118 Sobre os oratórios, afirma Azzi (1977, p. 128): “Com o desenvolver-se dos principais centros urbanos, tornou-se comum a construção desses oratórios nas esquinas das ruas ou no ângulo das praças. Em Recife, no Rio de Janeiro, na Bahia, e nas cidades mineiras eram comuns esses pequenos locais devoção, onde as pessoas acendiam velas ou se reuniam à noite para a reza do terço”. 119 Sobre os santuários, declara Azzi (1977, p. 130): “O termo santuário é utilizado aqui no sentido tradicional, designando um local de culto que o povo transformou num centro particular de devoção. Com frequência, esses centros de devoção tiveram origem em uma simples cruz, oratório ou ermida. O culto da cruz ou de uma imagem devota torna-se progressivamente eixo da piedade popular. E oratório ou ermida se transforma num centro de romaria”. 120 Conforme Mott (1997, p. 161): “Simbolizando o martírio de Cristo, o cruzeiro era a devoção que se expressava sobretudo nos espaços abertos: praças, morros, encruzilhadas. Mas podia ser trazido para o âmbito devocional doméstico [...]”. 121 Segundo Beozzo (1977, p. 751): “Há dois pontos privilegiados desta religião popular, a nível público e mais visível: os santuários e as capelas”. 122 88 Em realidade, a Igreja Católica desempenhou um papel central na formatação e organização do espaço e da morfologia urbana. As primeiras vilas, povoados e cidades brasileiras surgiram e se desenvolveram a partir de uma capela, ermida ou igreja.123 Com isso, procuravam os líderes católicos, religiosos ou leigos, imprimir e estabelecer uma marca religiosa no espaço urbano. Contudo, a existência desses símbolos religiosos nos espaços públicos somente começou a ser contestada de modo formal124 durante o final do império e, principalmente, nas primeiras décadas do regime republicano, como consequência da pluralização do campo religioso brasileiro, do influxo de ideais iluministas e das medidas laicizantes, advindas da separação entre Estado e religião, oficializada em 1890. Esses primeiros protestos e resistências serão descritos, de forma sucinta, neste capítulo. 3.1 O primeiro protesto Em 2 de abril de 1884, ainda sob a vigência do regime do padroado, registra-se o primeiro protesto contra a presença de símbolo religioso em repartição pública. Nessa data, Thomaz Nogueira da Gama, funcionário público ligado a um grupo religioso protestante, sorteado para comparecer como jurado na então “freguesia” do Espírito Santo, deparou-se com a imagem do Cristo crucificado afixada na parede e sob a cabeça do juiz em uma das sessões do júri. Não concordava com a presença dessa imagem em órgão público e, assim, elaborou um requerimento ao governo imperial solicitando a retirada do crucifixo Conforme Silva Júnior (2009, p.94): “Um dos mais importantes requisitos para que uma povoação passasse a ostentar o título de vila era ter uma igreja sagrada pelas autoridades eclesiásticas e seu território em volta ser denominado de freguesia ou paróquia. Com a sua consagração, o edifício passava a sediar uma paróquia, habilitando o povo a elevar-se à categoria de vila, determinando a criação de leis e regulamentos civis para o cotidiano. Para zela pelo cumprimento da ordem, com funções administrativas, judiciárias e penitenciárias, edificava-se a Casa da Câmara e Cadeia, espaço da justiça dos homens e do rei”. 123 124 Privadamente, e de forma mais velada, Mott (1997) relata dois casos de seguidores de religiões afro, que na segunda metade do século XVIII, “violentaram” imagens sacras do catolicismo. Acerca disso comenta: “‘Judiar’ de imagens ou símbolos sacros era impiedade amiúde atribuída sobretudo aos judeus e cristãos-novos acusados nas Visitações do Santo Ofício ao Brasil de meter o crucifixo dentro do urinol cheio de fezes, ou de pinicar gravuras de Nossa Senhora com agulha ou ponta de punhal. Essa forma de impiedade pode ser interpretada como uma manifestação da afirmação religiosa de crentes de outros sistemas religiosos, que, forçados a publicamente praticar a única religião permitida, o catolicismo, no secreto do lar, ao lado das devoções herdadas de seus ancestrais, vingavam-se de maneira sacrílega naqueles símbolos cristãos que em público eram obrigados em venerar. Igual aos missionários católicos que no Novo Mundo e na África desacreditavam e destruíam e queimavam ardorosamente os ídolos pagãos” (Mott, 1997, p. 170). 89 daquela sala. O requerimento não foi atendido. Thomaz Nogueira da Gama foi dispensado do júri. No final de outubro de 1890, já com a separação entre Estado e Igreja oficializada pelo Decreto 119-A, Thomaz Nogueira da Gama foi novamente sorteado para servir no Tribunal do Júri, e verificando a presença da referida imagem elaborou um novo requerimento ao governo provisório. Nesse documento, datado de 31 de outubro de 1890, declarava: Professando religião diferente da do antigo estado, não pode funcionar em ato algum presidido por ídolos, o que seria desobedecer formalmente a Deus. Já aos 2 de Abril de 1884, em circunstância idêntica, requereu ele ao exgovernador imperial que o dispensasse do júri ou fizesse retirar o ídolo que se acha na respectiva sala sobre a cabeça do juiz. Agora que não existe religião de Estado, novamente pede que o ídolo seja retirado como requer o direito divino e humano e é o dever daqueles que estão encarregados de zelar pelo cumprimento das leis e pela garantia dos direitos dos cidadãos. Já no tempo da extinta monarquia houve mandamento de retirar os ídolos das escolas publicas, e agora é impossível que continuem em repartições publicas de qualquer gênero. O suplicante está pronto a exercer o seu direito e dever de jurado, para cujo exercício espera ser garantido: mas declara que nunca o fará em presença de ídolos, porque serve a Deus que os condena. Fazendo-vos esta declaração e comunicação a bem o atendais, como é de justiça, fazendo retirar o ídolo que Deus condena, e garantindo a liberdade de consciência que a lei prescreve (Jornal do Comércio, 8 de novembro de 1890).125 O juiz, em seu despacho, não aceitou o requerimento de Thomaz Nogueira da Gama, asseverando que o pedido não tinha fundamentação legal. Afirmava ainda que a sala onde funcionava o júri não era propriedade sua e, dessa feita, não poderia ele alterar a ornamentação da sala retirando o símbolo religioso. Por fim, afirmava que aquilo que era visto como ídolo pelo jurado, autor do protesto, era para outros objeto de culto, devendo-se assim respeitar a crença dos demais. Thomaz Nogueira da Gama não aceitou o despacho do juiz e publicou uma resposta na imprensa, em 8 de novembro de 1890, onde dizia: O despacho do juiz não foi justo, como vou mostrar atendendo aos seus três pontos: 1.º A escusa é legal, porque não havendo religião de Estado, o suplicante não pode ser forçado a exercer funções publicas perante símbolos que a sua religião reputa ídolos e que não devem mais existir nas repartições, sejam escolas, tribunais, etc. Obrigá-lo por meio de multas pecuniárias a funcionar contra o que manda sua religião e consciência, é atacar as leis existentes. Esta é e sempre foi uma das formas de perseguição por motivo de religião. 2.º Concordo que o dito juiz não tenha competência para retirar o símbolo, “alterando a ornamentação de uma sala que não lhe pertence”; mas, neste caso, a justiça seria dispensar o suplicante, declarando-lhe que para aquela parte deveria recorrer a outra autoridade. Aliás entende o suplicante que as salas publicas não devem ser ornadas com símbolos religiosos de quaisquer crenças, e isto a bem da garantia individual e publica e do cumprimento das leis existentes. 3.º Finalmente que, se é ídolo para o 125 O requerimento publicado nesse jornal levou o título “Religião de Estado”. 90 suplicante o que para outros “é objeto de culto”, não podendo os tribunais e salas do governo ser transformados em lugares de culto, segue-se que lá não devem existir tais símbolos, isto para garantir e “respeitarmos as crenças uns dos outros”, porque a do suplicante também deve ser respeitada (Jornal do Comércio, 8 de novembro de 1890). No final dessa resposta, reiterava a solicitação de que todos os símbolos religiosos, de qualquer religião, fossem retirados dos estabelecimentos do governo, e de que não fossem cobradas multas pelo não comparecimento do jurado enquanto se conservassem os símbolos religiosos. O caso de Thomaz Nogueira da Gama teve certa repercussão na imprensa; o periódico católico O Brasil publicou, em 6 de novembro de 1890 uma pequena nota intitulada “O diabo feito jurado”, execrando a figura de Thomaz Nogueira: [...] Ninguém nos tira da cabeça que aquele Thomaz de que ali em cima se fala, é o próprio diabo com figura de gente (se é que tem figura de gente o Sr. Thomaz, cujo retrato desejaríamos possuir); porquanto só o diabo teria tanto medo da Cruz. Nesta hipótese nada mais nos resta do que gritar com toda a força dos pulmões: Passa fora, mafarrico! (O Brasil apud Ferreira, 2001, p.48) Thomaz Nogueira indigna-se com essa nota e publica uma contundente resposta no Jornal do Comércio, de 9 de novembro de 1890 em que declara ser cristão, porém ressalta: Não entendo nem compreendo religião que adora a matéria, fabrica um Deus, e insulta, avilta, injuria e calunia o homem; não reconheço por verdadeira uma religião cujos adeptos fecham seus deuses em um armário, tiram o chapéu a uma porta de edifício, que chamam igreja, e entregam-se muitos deles aos vícios e metem-se no lupanar que lhes fica fronteiro. Amo e temo a Deus, respeito o ente humano, tolero nos outros todas as crenças, embora mesmo as refute falsas e as combata como tais; abomino e rejeito os ídolos que Deus condena e que embrutecem os homens. No exercício e gozo de meu direito requeri que se cumprisse a lei que manda respeitar também a minha crença e a de todos que não forem católicos romanos. É de lei que os ídolos sejam retirados de todos os estabelecimentos públicos, porque já não há religião de estado (Jornal do Comércio, 9 de novembro de 1890). Como se pode notar, há em seu posicionamento um temor, próprio da doutrina protestante, de que a representação material do divino, por meio de objetos, imagens e estátuas, possa macular e contaminar a pureza do espiritual. O ritualismo bem como o aspecto “mágico” do catolicismo, são duramente condenados. 3.2 O Cristo no Júri Em 3 de maio de 1891, Miguel Vieira Ferreira foi intimado a comparecer como jurado nas reuniões da 4ª sessão ordinária do júri que realizar-se-ia no dia 4 de maio no Rio de Janeiro, na rua do Lavradio. Esperando o começo da sessão, reparou que sobre a 91 cabeça do juiz afixado na parede e dentro de um nicho havia um crucifixo. Indignado, preparou uma petição requerendo o cumprimento da Constituição Federal Republicana, que garantia a separação entre Estado e religião, bem como a retirada do crucifixo e de outros símbolos religiosos de órgãos estatais. Antes de descrever outros elementos importantes dessa controvérsia, faz-se necessário expor alguns dados biográficos do autor desse pedido. Miguel Vieira Ferreira nasceu em 10 de dezembro de 1837, em São Luís do Maranhão,126 no seio de uma família tradicional dessa região127. Seguiu carreira militar no Rio de Janeiro, doutorando-se em Ciências Matemáticas e Físicas, em 1863. Miguel Ferreira foi também político e jornalista. Fundou o primeiro clube republicano no Brasil128 e, em 1870, foi um dos primeiros redatores do jornal “A República”. Por volta de 1873, depois de entrar em contato com o Espiritismo Kardecista, vinculou-se à Igreja Presbiteriana.129No ano de 1879 deixou a Igreja Presbiteriana e fundou a Igreja Evangélica Brasileira. Retornando à controvérsia, no primeiro pedido entregue ao juiz Honório Teixeira Coimbra, que presidia a sessão, o pastor Miguel Ferreira afirmava que não iria atuar como jurado, pois na sala havia um “ídolo”. A presença da imagem do Cristo crucificado violaria sua consciência e a Carta Magna. O promotor da sessão indeferiu o pedido e o juiz, por sua vez, asseverou que o crucifixo afixado na sala das sessões não foi colocado por ordem sua. O juiz Honório Coimbra enviou a petição de Miguel Ferreira ao ministro da Justiça na época, Barão de Lucena, que assim se manifestou em 5 de maio: Em resposta à consulta que me fazeis em ofício de ontem datado, transmitindo o requerimento de um jurado que pede seja retirada da sala das sessões uma imagem de Jesus Cristo crucificado, cabe-me dizer-vos que tal requerimento não passa de um ato de fanática intolerância, pois a presença daquela imagem, que para os católicos é divina e para os acatólicos é, pelo menos, a do fundador de uma religião, de um extraordinário filósofo, digno do respeito de todos os homens civilizados; não ofende as crenças de quem quer que seja [...] (Barão de Lucena apud Ferreira, 2001, p. 56). 126 Para um exame do ambiente social e intelectual de São Luís do Maranhão na época de Miguel Vieira Ferreira, e sobre mais detalhes sobre essa família, ver Barrera (2004). 127 Seu pai era militar, tenente-coronel Fernando Luís Ferreira. A família Ferreira era proprietária de um importante jornal que circulava no Maranhão, chamado O Artista. 128 Miguel Ferreira assinou o famoso manifesto republicano de 1870. 129 Foi, também, o primeiro presidente da Sociedade Bíblica Brasileira. 92 Em mais três oportunidades (8, 11 e 15 de maio) 130 , apresentando-se como jurado, Miguel Ferreira elaborou outros requerimentos em que declarava que não aceitava a dispensa da função de jurado, decidida pelo juiz, mas somente solicitava o cumprimento da lei e o respeito à liberdade de consciência e religiosa. Em um dos requerimentos escrevia: Eu sei que “Deus não se substitui” e lança a sua maldição sobre todos quantos se curvam aos ídolos, quaisquer que sejam. Não posso desobedecer a nosso Senhor Jesus Cristo, porque ele é Deus. A imagem em um tribunal, em que o dever me impõe que funcione, fere, de frente e profundamente, a lei de Deus, as minhas crenças e as de milhares de pessoas já existentes neste país [...] (Ferreira, 2001, p.90). Mais adiante, no mesmo requerimento, conclui: Não me recuso a funcionar: pelo contrário, quero cumprir esse dever cívico e peço que não me espoliem dele. Não peço que se prive, seja a quem for, de trazer livros de figuras ou papéis pintados ou um crucifixo no bolso ou pendurado visivelmente ao pescoço sobre a roupa; insisto, porém, em requerer que seja retirado o crucifixo instalado neste tribunal (e de todos os estabelecimentos públicos do governo) embora assim não o tenha entendido o ministro da Justiça. A minha consciência é só minha: o meu direito tenha-o garantido por lei (Ferreira, 2001, p.90). Os requerimentos não foram lidos pelo juiz, mas foram publicados nos mais importantes jornais da época. Miguel Vieira Ferreira foi multado três vezes por ter se retirado do recinto dos jurados. Essa polêmica ganhou espaço nos principais jornais da época131, pois Miguel Ferreira fez questão de tornar público o assunto, escrevendo diversos artigos sobre o episódio. O conjunto dos textos sobre essa discussão foi editado em forma de livro por Miguel Ferreira em 1891, intitulado “O Cristo no Júri”. A opinião pública, de forma quase unânime, manifestou-se contra a posição do pastor, qualificando-o como “herege”, “fanático”, “intolerante”, “beato zagal”, “tupinambá de casaca” e outras expressões de teor pejorativo (Pereira, 2005) 132 . O Apostolado Positivista do Brasil, dirigido por Miguel Lemos, foi um dos únicos atores a 130 Para maiores detalhes sobre esse caso ver Giumbelli (2003). 131 O Jornal do Brasil, o Jornal do Comércio, a Gazeta de Notícias e O País publicaram notícias, notas, editoriais e artigos sobre essa polêmica. 132 Miguel Ferreira revela, ainda, que foi zombado, insultado e perseguido nas ruas por conta desse acontecimento. 93 se posicionar a favor da proposição de Miguel Ferreira. Sobre esse embate, afirmou Miguel Lemos: Qualquer que seja a opinião que se possa formar sobre o culto que o catolicismo presta à cruz e às imagens, quer se considere esse culto como profundamente racional e elevadamente moralizador, como nós o consideramos, quer seja ele reputado uma indigna idolatria, como pensam os protestantes, é fora de dúvida que, no regime de separação da Igreja do Estado, os símbolos religiosos, especiais a esta ou àquela crença, não podem figurar nos estabelecimentos oficiais, salvo como objetos de estudo e de observação artística (Miguel Lemos apud Ferreira, 2001, p. 71). O positivista Raimundo Teixeira Mendes também apoiou a atitude do pastor protestante, declarando que a afixação de “símbolos teológicos” em órgãos estatais constituía em “sintomas característicos dessa política de ilusão e medo sugerida pelo espectro clerical” (Mendes apud Vieira, 2007, p.363). Em seus escritos, Miguel Ferreira expressa uma visão de mundo que funde aspectos próprios da teologia protestante referentes à idolatria e à repulsa ao culto das imagens, bem como elementos ligados aos ideais republicanos, de defesa da estrita separação entre Estado e religião e a condenação da presença de símbolos religiosos no espaço público. Para o pastor, o grande mal que afeta o Brasil é a idolatria, sendo a Igreja Católica a principal responsável por isso: A igreja romana tem mergulhado o Brasil em trevas mui profundas e espessas, já o dissemos. Ensina o povo a receber os sinais, não só desprezando e não praticando as coisas significadas, como, até mesmo, ignorando o que fazem e desconhecendo o que recebem exteriormente (Ferreira, 2001, p. 36). Em seu entendimento, a educação religiosa católica tem mergulhado o povo brasileiro na superstição, na cegueira e no embuste: O povo é completamente cego: faz sobre si o sinal da cruz e implanta uma Cruz de ferro no alto duma torre, uma cruz sobre um altar ou uma sepultura, levanta-a sobre uma penha numa praça e, perante esse pau ou pedra, ajoelhase, beija-a, adora-a e atribui-lhe virtudes celestiais e divindade que não tem (Ferreira, 2001, p.36). O pastor Miguel Ferreira não condenava apenas as imagens religiosas, mas, também o culto a imagens e símbolos políticos. Em um artigo cunhado “Idolatria Monárquica”, critica a difusão de imagens de Dom Pedro II em espaços públicos e demais símbolos e rituais da monarquia. Para ele, essa adoração tinha como finalidade tornar o povo servil, alienando-o dos verdadeiros problemas nacionais (Pereira, 2005). 94 Dessa forma, sua veia republicana faz dele um paladino do Estado leigo e da liberdade religiosa. Outras violações do princípio de separação entre Estado e Igreja eram apontadas pelo pastor, como a invocação do nome de Deus em constituições estaduais, a participação de padres católicos em eventos políticos, as despesas públicas com o funeral de Dom Antônio Macedo Costa, o pagamento de côngrua junto ao bispo da capital federal, etc. Como consequência desse caso, em 1892, o então Procurador da República, Rodrigo Octávio Langaard Menezes133, emitiu um parecer favorável à posição de Miguel Ferreira. Arguia que a existência do símbolo religioso católico era uma ofensa ao princípio republicano de separação entre Estado e Igreja e a liberdade de consciência, configurando-se como um privilégio para a Igreja Católica. Ainda declarava no referido parecer: Se a Constituição estabelece que por motivo de crença religiosa nenhum cidadão pode se eximir do ônus de ser jurado (art. 72, § 28, da Constituição); se a imagem do Cristo crucificado é um símbolo de uma religião, absolutamente não constitucional é a determinação de um poder que obriga os jurados de todos os credos a cumprir um dever que não se podem eximir, por motivo religioso, perante um símbolo religioso (Langaard Menezes apud Lins, 1967, p.390). Registram-se, ainda, em 25 de março de 1892, atos de iconoclastia134 contra a imagem do Cristo crucificado no Tribunal do Júri no Rio de Janeiro, conforme atesta Almeida (1992, p.16): Na tarde de 25 de março de 1892, dois homens infiltram-se na Sala do Tribunal do Júri e quebram a porretadas dois crucifixos. O preto Domingos José Heliodoro Pereira, cinquenta anos, mineiro, casado, pintor, alfabetizado, é detido. Incurso nos artigos 3 e 185 do Código Penal, o iconoclasta é conduzido ao xadrez; os presos se revoltam contra sua presença, a multidão ameaça linchá-lo, as autoridades policiais transferem-no para a Casa de Detenção. Em seu depoimento Domingos declara-se protestante. Os católicos identificam-no como um dos seguidores do velho pastor Miguel Vieira Ferreira, que prega a remoção do crucifixo nas salas do júri. O pastor nega qualquer ligação com o atentado; a multidão cerca sua casa, o promotor público requer sua prisão preventiva em abril; será finalmente inocentado no desfecho do processo do qual resultará a condenação de Domingos José Heliodoro a seis meses de prisão em dezembro. 133 Em 1923, Rodrigo Langaard de Menezes emitiu um parecer contra o pagamento de soldo de tenentecoronel para a imagem de Santo Antônio, venerada em um convento franciscano no Rio de Janeiro. Afirmava no parecer: “O pagamento pelo Estado de um soldo à imagem de um santo, e declaradamente, para ser aplicado ‘a sua festa e ornato de sua capela’, não pode deixar de ser considerado subvenção oficial ao culto desse santo” (Lins, 1967, p.397). 134 Nunes da Silva (2008) relata com cuidado uma série de profanações ocorridas contra imagens de santos, da Virgem Maria e do crucifixo no período colonial. Esses atos foram perpetrados por cristãosnovos como um modo de protesto contra a religião dominante. 95 Em reação a esse episódio a Igreja Católica organiza uma procissão de protesto: Uma solene procissão de desagravo é convocada pelo Cabido para a sextafeira seguinte àquela do sacrilégio. Na véspera há boatos de que o governo impedirá a realização da procissão. Mas a massa humana diante da catedral à tarde da sexta-feira é imensa. Por volta das 17h30, 150 padres, seguidos por dezenas de ordens terceiras e centenas de anjos, dão início à procissão. Silêncio profundíssimo. Numerosas casas com bandeiras, mesmo os clubes e sociedades carnavalescas. Janelas e telhados cobertos de povo, na encosta do morro de Santo Antônio. Na rua do Ouvidor, alguns alunos da Escola Politécnica e três jornalistas, chapéus ostensivamente à cabeça, caçoam e provocam os católicos. A tensão explode e a procissão toma-se ruidosa manifestação: das ruas, das portas, das sacadas e dos telhados sobem vivas, aplausos e aclamações à religião, a Cristo, ao clero. Acenando lenços e chapéus, batendo palmas, a multidão mantém-se empolgada até o encerramento do ato público que, de cerimônia religiosa de desagravo à imagem sagrada, transforma-se em protesto aberto contra a política laicizadora da República (Almeida, 1992, p. 17). Importa ressaltar que os atos de iconoclastia protestante exprimiam muitas vezes um impulso secularizador. De acordo com o antropólogo espanhol Manuel Delgado (2001), esses atos tinham como finalidade desativar o sistema simbólico da Igreja Católica, reservando ao sagrado unicamente o espaço e o território da subjetividade. A iconofobia protestante revela, também, uma preocupação semântica e ontológica: [...] uma atenção prioritária sobre o valor dos signos externos, e sobre sua capacidade de manifestar realidades transcendentes que o pensamento moderno vai considerar por definições inefáveis e só experimentáveis nas recém inventadas esferas da intimidade e da subjetividade (Delgado, 2001, p.93). Esse antropólogo ainda chama a atenção para o fato de que ambos, iconoclastas protestantes e católicos coincidem em reconhecer nas imagens não um objeto passivo, “estátuas vazias”, mas um sujeito sobre-humano.135 A diferença está em que para os protestantes esse sujeito era visto como demoníaco, enquanto que para os católicos era percebido como divino. Sobre isso assevera: “A convicção de que existe uma essência objetiva e eficiente nos signos é precisamente o que caracteriza este universo ‘mítico’ e ‘mágico’ do catolicismo para os protestantes, e sua desativação é o que consiste o processo de secularização” (Delgado, 2001, p. 102). Desse modo, os atos de iconoclastia se caracterizariam por uma ânsia de extirpar o sagrado do espaço e da materialidade, e por consequência de laicizar os espaços públicos. Sendo assim, na ótica Segundo Freedberg (1992, p. 461): “[...] um grande número de ataques contra imagens - senão a maioria – se baseia de um modo ou de outro na atribuição de vida a figura representada ou na suposição correspondente de que o signo é de fato o significado [...]. O corolário que se impõe é que atuamos perante a imagem como se estivesse viva, como se fosse real”. 135 96 secularizante de determinados seguimentos protestantes, a religião deveria ocupar unicamente o espaço privado das consciências e dos templos. 3.3 O caso de Teodoro Magalhães Episódio semelhante ao de Miguel Ferreira ocorreu em 28 de abril de 1906, quando o advogado Teodoro Magalhães protestou contra a entronização do crucifixo em uma das salas do Tribunal do Júri no Rio de Janeiro, se ausentando de participar das sessões como jurado devido à presença desse símbolo religioso. Por conta de sua ausência, foi multado pelo juiz que presidia a sessão. Não obstante, elaborou uma cuidadosa justificativa de sua falta. Alegava Teodoro Magalhães que a existência do símbolo religioso católico no Tribunal do Júri revelaria a preferência do Estado por uma determinada confissão religiosa, não compreendendo a razão da presença do crucifixo nos tribunais, como se constata desta afirmativa: “Existe alguma lei que organize o Júri, ou mande decorar os tribunais com a efígie do crucificado?” (Magalhães apud Oliveira Filho, 1949, p.335). Argumentava que os trabalhos do júri deveriam ser exercidos sem qualquer conotação religiosa em um Estado neutro. Defendia, também, o princípio da liberdade de consciência: Todo o homem possui direitos próprios e o poder público serve para garantilos; é esta a doutrina dos publicistas. Entre esses direitos estão os direitos de pensar, o de crer, enfim a liberdade de consciência. O Estado, desta forma, em relação às religiões que disputam o império das almas, se torna neutro, imparcial e indiferente. Nada tem com a crença professada pelo cidadão ou o rito por ele praticado; merecem-lhe a mesma atenção o apóstata impenitente ou o religioso acendrado (Magalhães apud Oliveira Filho, 1949, p. 335). Para o advogado republicano, o jurado que falta em uma sessão onde se percebe a existência do símbolo religioso católico está a exercer seu direito: No Júri da capital de um país que proclama a liberdade religiosa, que se acha separada de toda seita é ilegal o julgamento das causas presentes com o retrato do fundador de qualquer confissão. Por conseguinte, uma vez que se depara ao jurado, em uma das paredes da sala do Tribunal, o símbolo do catolicismo, usará de um direito, e não incorrerá em pena, deixando de ali comparecer, porque só é obrigado a funcionar em um Júri constitucionalmente organizado (Magalhães apud Oliveira Filho, 1949, p. 336). 97 Teodoro Magalhães não aceitava que no ambiente da justiça se realizasse um ato religioso136 como o que se deu com a entronização do crucifixo. Para ele, o crucifixo não era um mero ornamento, mas representava a própria Igreja Católica. A luta de Miguel Ferreira e de Teodoro Magalhães não foi de todo infrutífera, haja vista que se constataram, alguns anos depois, casos de magistrados que decidiram retirar o crucifixo de sessões judiciais.137Reagindo a esses casos isolados, a Revista Católica Ave Maria 138 liderou, na década de 1910, um movimento pelo “Cristo no Júri”. Essa campanha foi gerada pela retirada do crucifixo do Tribunal do Júri da Comarca de Capivari, em São Paulo, em junho de 1909, por parte do juiz Pedro Fernandes de Barros (Gonçalves, 2008). Essa atitude foi duramente condenada pela revista: A sociedade nunca poderia revelar essa afronta se não lhe aplicasse a atenuante que ela pede: a comiseração para quem se deixa levar pelo fanatismo sectário quando, supondo iludir a lei para fingir cumprir a lei, se contrapõe a toda lei! É do Cristo toda a lei, que decorre logicamente do direito hodierno! Tirar de lá o seu fundador é dar provas antecipadas de desrespeito a nossa legislação vigente, se antes de tudo não fosse o não saber encará-lo sob suas diferentes feições, quer religiosa, moral, política ou social. Meditai sobre a dívida imensa de reparação que pusestes como juiz, sobre vossos ombros fracos e parciais. Mas se pensais com o vosso ato imponderado simplesmente guerrear a Igreja Romana, por que começais pela traição? Será porque o vosso protestantissimo exército enfraquecido pela indisciplina das divisões e subdivisões infinitas, só com tais recursos pense combater esse exército disciplinado e uno sob as ordens de um só chefe?(Revista Ave Maria apud Gonçalves, 2008, p.79). 139 Outras iniciativas semelhantes foram concretizadas, também, no começo da década de 1910, conforme comenta Vieira (2007, p. 363): Passaram-se os anos, e lentamente os crucifixos foram sendo reintroduzidos nas escolas e nos tribunais de todos os estados. São Paulo foi um dos últimos a aderir; mas uma comissão liderada pelo coronel Marcelino de Carvalho promoveu uma campanha com subscrições e petições que afinal triunfou: em 136 Conforme Thales de Azevedo (1981), no antigo Tribunal da Relação e no Supremo Tribunal de Justiça as sessões eram antecedidas por uma missa celebrada pelo capelão, e os magistrados participavam anualmente da festa litúrgica do Espírito Santo. 137 De acordo com Barros (2009), em 1909, na cidade de Estiva, localizada no sul do Estado de Minas Gerais, um inspetor escolar determinou a retirada de todas as imagens e emblemas religiosas existentes em salas de aula. Em reação a essa medida a população do município de São Caetano de Chopotó, iniciou um movimento para a colocação de crucifixos em todas as salas de aula. 138 Revista de orientação conservadora fundada em 1898, na cidade de São Paulo e administrada pela ordem dos claretianos (Gonçalves, 2008). Conforme Gonçalves (2008, p. 79): “O êxito da campanha foi evidenciado em 1917. No mês de abril, o juiz da Comarca de Joinville restituía a imagem do crucificado à sala do Tribunal, criticando os iconoclastas da República que exprimiam uma vontade contrária à índole da nação. Tratava-se, assim, de conferir distinção ao símbolo primordial em espaços notáveis de influência”. 139 98 1912, o primeiro promotor público do estado, Alcibíades Delamare Nogueira da Gama oficializou a presença da efígie do Crucificado em todos os tribunais, encerrando a questão. No ano de 1931, o debate sobre a presença do crucifixo em tribunais vem à tona novamente, por ocasião do protesto que jurados seguidores do positivismo de Augusto Comte fizeram sobre a presença desse símbolo.140 Em reação a isso, o então Consultor Geral da República, Levi Carneiro, exarou um parecer favorável à permanência da imagem do crucificado (Lins, 1967).141 Por seu turno, sabe-se que o crucifixo aposto no plenário do Supremo Tribunal Federal foi retirado pelo então presidente desse tribunal, Aliomar Baleeiro, quando de sua presidência, que se estendeu de fevereiro de 1971 a maio de 1975. Esse ministro era declaradamente agnóstico. Colocou no lugar do crucifixo um quadro do pintor Uragami, denominado Bandeirantes de Ontem e de Hoje. Com sua aposentadoria, o quadro foi retirado. Alguns anos depois, o crucifixo foi retirado novamente por decisão tomada por alguns ministros. O Jornal do Brasil em edição de 19 de dezembro de 1978, intitulada Cristo vence e sua imagem volta ao STF, noticia que em reunião reservada os ministros do STF decidiram recolocar a imagem. A questão teria sido votada pelos ministros sem que se soubesse exatamente por quantos e quais votos a tese de que o Cristo crucificado deveria voltar ao plenário saiu vitoriosa.142 Importa frisar que em todos esses casos descritos o protesto contra a existência da imagem do Cristo crucificado em tribunais de justiça parte de protestantes, 140 Os jurados positivas eram: Reis Carvalho, Luís Hildebrando Horta Barbosa e Paulo Carneiro (Lins, 1967). As lojas maçônicas brasileiras também protestaram, nesse ano, contra o “Cristo no Júri” através do boletim A Maçonaria emitido pelo Grande Oriente de São Paulo, conforme registro de Kloppenburg(1956). “Em ‘prancha’ circular, dirigida a todas as lojas do Brasil, declararam que a ‘presença de Cristo no Júri’ seria uma ‘indignidade’, seria ‘espezinhar a Constituição no que ela tem de mais nobre, que é justamente a outorga de nossa liberdade de pensar’. [...] Em moção de protesto, dirigida por esta mesma ocasião ao Presidente da República, exprimem os maçons seus verdadeiros temores: ‘Em pós desse ato viria o ensino religioso nas escolas, depois a oficialização da religião, e eis o Brasil lançado na mais horrenda das tragédias, eis o Brasil, cujos passos titubeantes e difíceis vêm conquistando terreno no mundo civilizado, recuando para o plano de qualquer republiqueta, sob a tirania de uma casta, eis a anarquia, enfim’.” (A Maçonaria apud Kloppenburg, 1956, p.177). 141 A matéria do Jornal do Brasil assim se refere a esse caso: “Conta-se que numa reunião reservada entre ministros, há alguns anos, o problema foi levantado, mas um deles, que ninguém identifica, apresentou a tese de que a imagem não poderia estar presente às sessões, porque no Brasil havia a clara separação entre o Estado e a Igreja” (Jornal do Brasil, 19 de dezembro de 1978, p.29). 142 99 positivistas e republicanos. Além disso, é central nesses debates a noção de idolatria143, algo que não ocorre nas controvérsias mais recentes sobre a presença de crucifixos em instituições estatais como será visto nos capítulos seguintes deste trabalho. Por outro lado, as denúncias contra a presença de símbolos religiosos católicos em locais públicos no alvorecer do regime republicano, parecem indicar que a laicização advinda da separação entre Estado e religião não foi tão contundente e eficaz. Nenhuma medida administrativa ou jurídica foi tomada, de maneira oficial, com a finalidade de remover as imagens religiosas católicas de espaços estatais. Desse modo, o fato de nenhum dos pedidos terem sido acatados pelas autoridades judiciais e políticas da época exprime sob determinado aspecto, a forte impregnação do catolicismo na mentalidade nacional e suas relações de proximidade com as instituições estatais, formalmente laicizadas. 3.4 O monumento do Cristo Redentor no Corcovado Em 12 de outubro de 1931144 é inaugurada no Rio de Janeiro a grandiosa estátua do Cristo Redentor, com a presença do então presidente da República Getúlio Vargas, de seus ministros, e de 45 bispos. Na ocasião o cardeal Dom Sebastião Leme consagrou, através de uma oração, o Brasil ao “Coração de Jesus” (Dias, 1996). Além disso, no discurso que proferiu nessa solenidade afirmou: “ou o Estado... reconhece o Deus do povo ou o povo não reconhecerá o Estado” (Della Cava, 1975, p.15). O Cristo Redentor foi concebido para ser um símbolo cívico e religioso, que expressaria a catolicidade da nação brasileira, e a reaproximação entre a Igreja Católica e o Estado (Giumbelli, 2008a). A campanha para o erguimento do Cristo Redentor foi lançada oficialmente no Congresso Eucarístico de 1922. Entretanto, antes mesmo dessa data já haviam tramitado outros projetos semelhantes, como o da Cruz da Ressurreição em 1917, a ser erguida no morro de Santo Antônio, ou de Cristo abençoando o Brasil do alto do Pão de Açúcar, em 1921. O projeto vitorioso do engenheiro Heitor da Silva Costa, que contou com a colaboração dos escultores Paul Landowski e Lelio Landucci, passou por modificações Acerca da noção de ídolo explica Gruzinski (2006, p.72): “[...] é inútil procurar num ídolo um significado específico ou um referente particular. Ou ele é pura materialidade ou, instrumento demoníaco, remete, de maneira inevitável, ao demônio. Quer se apresente sob a aparência de um sinal a ser destruído ou mesmo de um objeto raro, o ídolo não é uma representação para ser contemplada ou decifrada”. 143 144 No mesmo ano o Brasil foi consagrado à Nossa Senhora Aparecida. 100 entre os anos de 1924 e 1927, e é nesse período que, de acordo com Fabris (2000, p. 140), “se configura a imagem do Cristo com os braços abertos horizontalmente, de maneira a evocar o símbolo da cruz latina, e com o coração exposto ao longo da veste”. Contudo, a ideia da construção de uma estátua de Cristo no alto do Corcovado foi fortemente rechaçada por algumas denominações protestantes e setores laicistas. O consultor geral da República Rodrigo Octávio Langaard de Menezes, que já havia se manifestado sobre o caso do “Cristo no Júri”, em 1892, volta a emitir um parecer contrário ao erguimento da estátua no Corcovado. E, em seu arrazoado asseverava: Considerando o Cristo como símbolo religioso não pode o Poder Público deferir o pedido para sua colocação num logradouro, que é bem público e, como tal, de uso comum do povo e inalienável (Código Civil, arts. 66 nº 1 e 67). O Estado é leigo. A Constituição lhe veda manter com qualquer igreja ou culto relações de dependência ou aliança ou subvenção oficial. Bem certo o deferimento do pedido para permitir a ereção de uma estátua do Cristo num logradouro público não entra literalmente, em qualquer dos dispositivos constitucionais; mas para mim é incontestável que esse deferimento fere o seu espírito, porque sem dúvida importa na concessão de um favor do Estado em benefício de uma igreja, a concessão de uma parte de bem público para ereção de um dos seus símbolos mais significativos (Langaard de Menezes apud Lins, 1967, p.395) Por outro lado, o jurista Araújo Castro emitiu um parecer favorável à construção do Cristo Redentor quando da solicitação da comissão incumbida pela ereção do monumento. Nesse parecer, declarava que a liberdade religiosa era já um dogma para todas as sociedades civilizadas. Esclarecia que a proteção ou a assistência a determinada religião não implicava em negação da liberdade religiosa, mencionando o artigo 72, § 7º, da Constituição Federal de 1891, que se referia à separação entre Estado e religião, e ao Decreto 119- A, de 7 de janeiro de 1890, argumentava que o governo provisório não visava instalar no país o ateísmo; sendo assim, em seu impedimento estes não ignoravam que a religião é um elemento indispensável à vida do Estado. Em outro momento do parecer asseverava: “A separação entre a Igreja e o Estado não constitui um golpe desfechado contra a religião católica, cuja majestade se tornou, sem dúvida, maior com a quebra dos laços que a subordinavam ao Estado” (Araújo Castro, 1924, p.200). Para esse jurista, o Brasil era um país cristão: “A separação entre a Igreja e o Estado não importa nem podia importar a separação entre a Nação e o Cristianismo” (Araújo Castro, 1924, p. 202). Procurava, ainda, dar ao símbolo de Cristo um caráter mais universal e ecumênico, e mesmo humanista: Que os poderes públicos reconhecem esta verdade, prova o fato, bem recente, de ter sido declarado feriado nacional o dia do nascimento de Cristo (Decreto 101 nº 4. 497, de 19 de janeiro de 1922). Será possível que o assentimento á realização de tão almejado “desideratum” constitua, por si só, uma relação de dependência ou aliança da Igreja com o Estado? Cristo não é somente o símbolo da Igreja Católica; é o fundador do cristianismo, a cuja inspiração, ninguém o ignora, obedecem não somente a Igreja Católica, mas as diversas igrejas protestantes [...] . Se tal assentimento pudesse ser assim interpelado, é bem de ver que ele importaria aliança, não com uma igreja ou culto, mas com muitas igrejas ou cultos. Basta isso para repelir semelhante hermenêutica. Continua o parecer afirmando que em um país democrático deveria predominar a vontade da maioria. Destarte, não seria razoável que o desejo de uma minoria insignificante prevalecesse sobre o anelo da grande maioria que pretende prestar uma homenagem ao fundador da religião de seus pais. Acerca disso, assim se manifestava em seu arrazoado: Efetivamente, se a maioria pudesse impor a sua fé à minoria, claro é que desapareceria a liberdade de consciência. Por outro lado, se a minoria estivesse privada de exercer livremente o seu culto, não haveria liberdade religiosa. Mas, em que, porventura, a ereção de um monumento a Cristo restringe qualquer dessas liberdades? (Araújo Castro, 1924, p. 204). Finaliza seu parecer com as seguintes colocações: Como quer que se entenda, divino ou simplesmente humano, real ou imaginário, Cristo simboliza tudo o que há de mais elevado na humanidade. Cristo é o símbolo mais perfeito do belo, do amor, da caridade, da justiça, da igualdade, da fraternidade, da liberdade. Ora, se é certo que, em qualquer nação civilizada, se justifica plenamente a ereção de monumento que simbolize cada uma dessas entidades, como recusá-lo a Cristo, que simboliza todas elas ao mesmo tempo?[...] Seria singular que, na Terra de Santa Cruz, a constituição impedisse a ereção de um monumento ao glorioso fundador do cristianismo (Araújo Castro, 1924, p. 206). Apesar dessas colocações, os grupos protestantes viam o projeto da estátua como uma idolatria e cunharam o monumento como “Ídolo do Corcovado”. O jornal O Batista, publicado pela Convenção Batista Brasileira, assim se referiu a ideia de construção do Cristo Redentor, em sua edição de 22 de março de 1923: Já está constituída a grande comissão para levar avante o plano de erigir no alto do Corcovado a imagem de Cristo. Isto será a um tempo um atestado eloquente de idolatria da igreja de Roma e uma afronta a Deus. No dia em que tal crime se consumar, bom seria que todos os verdadeiros cristãos no Brasil se reunissem em culto penitencial, para pedir a Deus que não imputasse a todo o Brasil esse grande pecado, cuja responsabilidade deve recair sobre a Igreja Católica e sobre os governantes que não souberam ou não quiseram fugir à armadilha, preparada por ela com a isca do patriotismo. Deus tenha misericórdia de nós.145 145 Disponível em http://www.ultimato.com.br/?pg=show_artigos&secMestre=1340&sec=1372&num_edicao=303. Acesso em: 20/10/2009. 102 Em outra edição, de 13 setembro de 1923, os batistas voltam a criticar duramente o projeto: Os que tiveram a infeliz ideia de erigir o monumento a Cristo Redentor, não tiveram a intenção de honrar a Cristo, mas sim a de engrandecer o catolicismo romano, o paganismo. Se tivesse querido honrar a Cristo, procurariam erigir-lhe um monumento não no Corcovado, mas em cada coração. No coração é que Cristo quer reinar. Eles, porém, pretendem honrar a Cristo, desonrando-o, fazendo aquilo que ele terminantemente proibiu fazendo-lhe uma imagem.146 Os protestantes não aceitavam que se onerassem os cofres públicos com a construção desse monumento. O político evangélico Adolfo Bergamini assim se manifestou sobre essa questão na sessão do Conselho Municipal, no Rio de Janeiro, em 11 de setembro de 1923: Uma avalanche de senhoras, de moças, de raparigas e de homens [...] vem à rua, de sacola em punho [...] a mendigar, a pedir, a solicitar, por todos os lugares, nas calçadas, nas esquinas, nas casas comerciais, nas repartições públicas, nos bancos, por toda a parte, transformando a grande população do Rio de Janeiro num verdadeiro Cristo.147 Por sua vez, a Liga Anticlerical148 divulgou uma nota em um jornal do Rio de Janeiro, por volta de 1923, convidando ateus, espíritas, teosofistas, protestantes e outros setores anticlericais para oporem uma forte resistência à construção da estátua do Cristo Redentor. Os protestantes sugeriram que ao invés da construção do Cristo fosse planejada a elaboração de um hospital para crianças no Rio de Janeiro. Todavia, o ponto alto da resistência protestante ocorreu em 16 de setembro de 1923, quando mais de seiscentos evangélicos pertencentes às denominações metodistas, congregacionais, batistas e presbiterianos reuniram-se no pavilhão da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, para elaborar um plano de ação contra o erguimento do monumento. Esse plano previa fundamentalmente o envio de abaixo-assinados e telegramas ao Conselho Municipal, ao Senado e ao presidente da República, e manifestações na imprensa de rechaço ao projeto do Cristo Redentor. O protesto foi formalizado por meio da entrega 146 Disponível em http://www.ultimato.com.br/?pg=show_artigos&secMestre=1340&sec=1372&num_edicao=303. Acesso em: 20/10/2009. 147 Disponível em http://www.ultimato.com.br/?pg=show_artigos&secMestre=1340&sec=1372&num_edicao=303. Acesso em: 20/10/2009. 148 Organização fundada no Rio de Janeiro, em 21 de fevereiro de 1911. 103 de um documento ao então presidente da república da época Artur Bernardes, em 22 de novembro de 1923. No documento constava a seguinte passagem: Nós, abaixo assinados, vimos respeitosamente protestar, em nome da Lei de Deus no Decálogo e da Constituição Republicana, contra o atropelo da liberdade religiosa, com a apropriação indébita de dinheiro e logradouros públicos, para colocação de símbolos religiosos, como a estátua de Cristo no Corcovado, que fere a consciência de milhares de brasileiros. 149 Cabe aqui frisar que a construção do monumento do Cristo Redentor era parte do projeto de “restauração católica”, empreendida pelos bispos brasileiros nas décadas de 1920 e 1930, como foi visto no segundo capítulo deste trabalho. Além desse monumento católico, erguido no Rio de Janeiro, muitos outros foram construídos nessa época. No Estado do Rio Grande do Sul, durante as décadas de 1920, 1930 e 1940, diversas igrejas, colégios, seminários, grutas, estátuas, bustos e outros símbolos e imagens católicas foram erigidos. Como exemplos podem-se citar: a inauguração do monumento ao Padre Roque Gonzales150 em um colégio jesuíta localizado em São Luiz Gonzaga no ano de 1937, no Dia da Bandeira; na cidade de Encantado, em 1932, foi construída uma praça com duas grutas onde foi colocada a imagem de Nossa Senhora de Lourdes e Santa Terezinha; em Porto Alegre, é inaugurada no começo da década de 1930 a gruta da cascatinha com a colocação da imagem de Nossa Senhora de Lourdes; em setembro de 1935 é inaugurado o busto de Dom Feliciano Rodrigues Prates151 na praça matriz de Gravataí; por volta de 1930 é construído o busto de Dom Sebastião Laranjeiras152 nos jardins internos da Cúria Metropolitana; no final da década de 1930 começa a ser construída uma réplica do Cristo Redentor, com 8 metros de altura, no seminário Cristo Rei de São Leopoldo (Doberstein, 2002).153 149 Disponível em http://www.ultimato.com.br/?pg=show_artigos&secMestre=1340&sec=1372&num_edicao=303. Acesso em: 20/10/2009. Conforme Doberstein (2002, p. 252): “O mártir jesuíta aparece na condição de tutor apostólico-cultural dos guaranis, simbolizados na criança indígena que se ajoelha diante da figura protetora do apóstolo que levanta a cruz para o alto”. 150 151 Foi o primeiro bispo da então província de São Pedro do Rio Grande do Sul, nomeado por decreto imperial em 5 de maio de 1851. 152 Bispo no Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX. Segundo Doberstein (2002, p. 266): “Essa colocação de imagens religiosas nos espaços públicos tiveram uma ampla continuidade nas décadas de 40 e 50, Staege executou dezenas de estátuas, grupos e figuras monumentais em diversas cidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Entre as maiores delas estão o Cristo-Rei de São Leopoldo (8 metros de altura), o monumento torre de Nossa Senhora de 153 104 Na década de 1930, caracterizada pela reaproximação entre Estado e Igreja Católica, verifica-se uma intensificação de campanhas pela afixação da imagem de Cristo crucificado em lugares públicos, conforme atesta Azzi (1981, p. 38): [...] faz-se uma campanha para que o Crucifixo seja entronizado nos lugares públicos de reunião, como símbolo da presença e do domínio de Cristo. Nos tribunais de júri, nas assembleias e câmaras, nas escolas e quartéis o Crucifixo passa a ocupar um lugar de honra. Por sua vez, acerca da importância política e cívica do simbolismo da cruz e do crucifixo nessa época, esclarece Steil (1996, p.235): O catolicismo oficial se reapropria da cruz, enriquecida com a piedade popular, apresentando-a como o símbolo de um Brasil que era preciso reinventar. Como escrevia Segura, citando um artigo da época, publicado pela imprensa: “Os dois crucificados que balisam o nordeste são: o Senhor Jesus do Bom fim, alargado sobre o litoral, em face do Atlântico, o gesto compassivo dos seus braços mortos e roxos, e o Senhor do Bom Jesus da Lapa, ampliando sobre os sertões, em face do caudaloso São Francisco, a caridade dos seus braços paternais e sangrentos: ambos consolando, reunindo, prometendo e arrimando pela vida afora e através dos séculos as multidões que os não abandonaram. Cabe o Brasil inteiro entre aquelas duas cruzes. O Brasil velho e sempre renovados dos avós”(1937:198).[...] Para o clero romanizador tratava-se de afirmar a hegemonia da Igreja Católica na integração do país, através das imagens dos crucifixos que estendiam seus braços sobre o território inteiro, juntando sertão e litoral no seio da tradição católica. 3.5 O Cristo nos parlamentos Na década de 1940, na esteira do projeto de neocristandade, um partido político o PRP (Partido de Representação Popular),154 propôs com sucesso a colocação da imagem do crucifixo em diversas assembleias legislativas estaduais, câmaras municipais e até mesmo na Câmara Federal. Vale ressaltar que este era um partido político de orientação conservadora, cristã e nacionalista, criado pelo líder do integralismo, Plínio Salgado.155 A base doutrinária do PRP era então a doutrina integralista que fundia elementos do espiritualismo de Farias Brito, do nacionalismo de Fátima de Cruz Alta (21 metros), o Cristo Redentor da Vila Maria, próximo de Passo Fundo (5 metros), o Cristo Redentor de Descanso, Santa Catarina (6 metros), a Nossa Senhora da Glória, de Laguna (8metros) e, com seis metros de altura cada uma, as figuras de Jesus Cristo e São João em Imaruí, Santa Catarina”. 154 Para maiores detalhes sobre o PRP, ver Gilberto Calil (2001), O Integralismo no Pós-Guerra: A formação do PRP (1945-1950). 155 Um estudo pormenorizado da doutrina da Ação Integralista Brasileira é efetuado por Rosa Maria Feiteiro Cavalari (1999) no seu livro Integralismo: ideologia e organização de um partido de massa no Brasil (1932-1937). 105 Alberto Torres e do catolicismo social.156 A iniciativa de colocação do crucifixo nos parlamentos coadunava-se assim com a filosofia política desse partido que pretendia recatolizar e recristianizar a nação brasileira. “Cristo e Nação” eram as palavras de ordem dos políticos populistas.157 A proposta inicialmente apresentada na III Convenção Nacional do PRP158, realizada de 27 a 30 de abril de 1947, no Rio de Janeiro, tornou-se uma resolução oficial deste partido. O mentor da iniciativa foi o deputado estadual de São Paulo, Loureiro Júnior. Em realidade, o primeiro ato desse deputado foi requerer a entronização de Cristo na assembleia paulista. A ideia foi expressa em artigo escrito por Loureiro Júnior no Jornal Idade Nova 159, em 1947. O artigo intitulava-se “Cristo no Parlamento”. Nesse texto denunciava de modo contumaz o materialismo do mundo moderno. Em sua ótica a civilização ocidental encontrava-se em uma grave crise espiritual que conduziria à anarquia social e intelectual, vigorando em nosso tempo a “impiedade” e o mais vulgar individualismo. Essa crise seria resultado do esquecimento dos princípios do cristianismo. Desse modo, seria necessário relembrar aos homens à mensagem de Cristo: [...] Jesus Cristo é o Rei das nações como é o Rei dos indivíduos, é o legislador dos povos como dos homens e o seu Evangelho é o código da vida pública como da vida privada. Numa Assembleia Legislativa, onde se decidirá de toda a vida de um Estado, é preciso que o Cristo presente seja a lembrança cotidiana de nossos deveres. Dele terão de advir às leis a que se subordinará o povo, pois, a doutrina fundamental não poderá ser rejeitada sob pena de todas as outras periclitarem. A negação de Jesus Cristo levará a todas as outras negações: a da ordem, a da justiça, a da propriedade, da liberdade, da família e mesmo a negação da Pátria (Jornal Idade Nova, 12/06/1947, p.3) Como se pode notar nessa passagem, a mensagem cristã não deveria estar circunscrita ao âmbito privado, mas precisaria pautar também a vida pública. A moral, o direito, as leis, a política, a cultura e a economia teriam que se sujeitar ao religioso para 156 Este se fundamentava basicamente nas encíclicas papais Rerum Novarum (1891), de Leão XIII, e na Quadragésimo Ano de (1931) de Pio XI. 157 Eram assim conhecidos e chamados na época os seguidores do PRP. 158 Já no livro sobre os protocolos e os rituais da Ação Integralista Brasileira, em seu artigo 88º, havia uma referência à entronização do crucificado nas sedes desse movimento: “Será permitida a colocação nas sedes da imagem de Cristo Crucificado, como símbolo do sacrifício por um ideal, devendo essa colocação ser feita sem nenhum cerimonial devendo nesse caso ocupar o lugar de honra” (Protocolos e Rituais, 1937, p. 28). 159 Era o jornal oficial do PRP. A maior parte das informações e citações que aqui serão apresentadas foram colhidas em edições desse jornal. 106 o bem estar e a harmonia da nacionalidade. Ao final do mesmo artigo declara seu compromisso com os valores do cristianismo e com o nacionalismo: Eis porque, achamos que nesta hora de afirmações supremas, nós os que batalhamos sob a insígnia “Cristo e Nação”, contra os que arvoram a bandeira das negações absolutas, não poderíamos deixar de levantar bem alto o cetro com que o Divino Mestre governa: a sua Cruz (Jornal Idade Nova, 12/06/1947, p.3) Muitas das ideias, concepções e palavras de ordem usadas por Loureiro Júnior nesse artigo também serão utilizadas e desenvolvidas pelos políticos do PRP em seus discursos de celebração da medida da afixação da imagem do crucifixo em assembleias estaduais e municipais. Detenho-me agora na exposição destas peças oratórias. Fundamentar as leis e normas em preceitos cristãos é um dos elementos centrais nesses discursos. Por exemplo, o deputado estadual populista pelo Maranhão, padre Joel Barbosa Ribeiro, declarava: “Os povos que ditaram suas leis sob a influência dos ensinamentos de Cristo, poderão estar certos de conduzirem o facho luminoso da verdade. Com o Cristo os homens serão sempre mais humanos e as leis mais sábias” (Jornal Idade Nova, 22/05/ 1947, p.4). Desse modo, Cristo é concebido como o “grande legislador” e “o guia espiritual das nações”, devendo sua presença nos parlamentos orientar a atuação política e inspirar a criação das leis. Essa tentativa de fazer com que as leis sejam baseadas na mensagem dos evangelhos é reiterada pelo deputado estadual pelo PRP da Bahia, Rubem Nogueira, quando do seu discurso na solenidade de colocação do crucifixo no parlamento baiano: Digo que também é este um dos mais ditosos momentos da minha vida, porque vejo, em lugar de honra no recinto da Assembléea Legislativa do Estado, segundo foi requerido, a imagem do Cristo crucificado. A imagem DAQUELE que efetivamente deve inspirar todas as atitudes do homem, todas as concepções políticas, todos os empreendimentos dos governantes e legisladores. O mundo tem urgente necessidade de submeter-se aos preceitos cristãos, sob pena de não resistir à formidável pressão das correntes totalitárias, fundadas no materialismo histórico, as quais se empenham, por toda a parte, na aventura da transformação catastrófica da sociedade (Jornal Idade Nova, 21/08/1947, p.4). Além do ordenamento legal, os próprios regimes políticos deveriam ter um conteúdo cristão. A religião nortearia a democracia; é dentro deste contexto que surge a defesa de uma democracia cristã. Um regime político agnóstico, desprovido de elementos religiosos conduziria as sociedades ao caos e ao niilismo. Por consequência, advogavam uma maior aproximação entre a esfera estatal e o religioso, como se pode notar na oração do deputado estadual Padre Joel Ribeiro: 107 O Estado que não se firma em Cristo, que não vier de Cristo, e que não for para Cristo transforma-se-á necessariamente na mais odiosa forma de opressão. [...] A autoridade religiosa, o outro Poder espiritual que harmoniosamente deve de existir ao lado do temporal, no mútuo respeito às peculiares esferas de ação, sente-se alegre por deixar com as bênçãos da Igreja, nesta augusta Assembleia, a imagem do Salvador pregado na Cruz, o símbolo, o modelo, o protótipo do sacrifício, da abnegação, do devotamento, virtudes de que carecem os homens que decidiram lutar em bem da coletividade (Jornal Idade Nova, 22/05/1947, p.4) Além disso, um dos pontos fulcrais da doutrina integralista que se refere a necessidade de uma revolução interior, ou seja, de uma espécie de transformação espiritual que faça nascer um “homem novo”, é frisada pelo deputado estadual Rubem Nogueira, da Bahia, quando o crucifixo é entronizado na assembleia desse estado160: O Crucificado é a eterna inspiração de humanidade e dedicação, virtudes raras hoje em dia, mas de que muito precisamos a fim de poder realizar a difícil missão de mandatários do povo. O problema fundamental de hoje como tem sido o de todos os tempos - é menos de instituições que de homens. Pouco importa modificar estruturas políticas, se o homem que as anima, não faz a sua própria reforma interior. E para esta a inspiração está no Cristo. Que desça, pois, sobre nós a Sua luz e que, com o Seu favor, a Bahia se eleve, para a grandeza do Brasil e “maior glória de Deus” (Jornal Idade Nova, 21/08/1947, p. 4). Com uma argumentação mais sofisticada e acusando a resistência de determinadas correntes ideológicas à proposição de entronização do crucifixo nos parlamentos, o deputado estadual pelo Ceará, Raimundo Aristides Ribeiro161, assim discursou acerca das relações entre Estado e religião: De modo que essa atitude louvável dos nossos legisladores, favorável ao ingresso de Cristo no recinto dos seus trabalhos, o firma na convicção de que esta entrada triunfal não contraria a ordem legal estabelecida no país, como objetou um deputado comunista baiano, contaminado de preconceito antiteológico, visto como a nossa Constituição Federal de 1946 afastou-se bastante daquela concepção de Estado substancialmente agnóstico e irreligioso, que se erguera sobre os princípios definidos pelos constituintes de 1891, conforme se verifica pela referência feita a Deus no preâmbulo da Carta, pelas disposições referentes relativas ao ensino religioso nas escolas, à assistência às classes armadas e nos estabelecimentos de internação coletiva. Na verdade Srs. Deputados, o novo Estatuto Político Brasileiro, dessa maneira exprime o reconhecimento, por parte dos Representantes do Povo, que a “independência dos Poderes Civil e Religioso não significa que a ordem temporal se desinteresse pela ordem espiritual, porque está é também para os homens, e os governantes têm deveres espirituais como homens, da mesma forma que tem direitos como autoridade: deveres esses que são o respeito e o acatamento à personalidade humana e ao livre arbítrio, 160 Sobre a discussão que ocorreu por conta desse fato esclarece o jurista Nelson de Souza Sampaio (1960, p.79): “Nos seus doze anos de funcionamento, o debate que provocou maior afluência de público e maior calor foi o da entronização de Jesus Crucificado na sala de sessões”. 161 O requerimento pela afixação do crucifixo na assembleia estadual cearense partiu do deputado populista Francisco de Assis Arruda Furtado. 108 pertencentes à ordem espiritual: e direitos que lhe são exclusivos, e tão exclusivos, que a ordem espiritual os reconhece, e neles não interfere”. A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus, segundo o luminoso conceito do Divino Mestre (Jornal Idade Nova, 20/11/1947, p. 5-6). Outro aspecto importante que se revela nessas peças oratórias é a multiplicidade de sentidos e concepções atribuídas à imagem do Cristo crucificado afixada nos parlamentos. O símbolo é concebido como: fonte de inspiração, amor, santidade e sabedoria, sinal de advertência e lembrança, bem como arma e proteção contras as forças maléficas. Na cerimônia de entronização do crucifixo na Câmara Municipal de Ponta Grossa/PR, o vereador do PRP Amadeu Puppi falou sobre o significado dessa imagem: “Que esta Câmara e os seus legisladores, ao erguerem os olhos para o Crucificado, saibam ser dignos sempre de tanto saber e de tanto amor, que possui e representa o Cristo, para a glória de Ponta Grossa, do Paraná, e do Brasil” (Jornal Idade Nova, 29/07/1948). Por sua vez, o deputado estadual do Ceará, Raimundo Aristides Ribeiro, ressalta outro papel exercido pelo símbolo do crucificado quando posto no parlamento: “[...] se Cristo deve reinar nas almas e nos corações, também deve imperar, com o fulgor da sua majestade no recinto das sessões da nossa Assembleia legislativa, aclarando a razão e a consciência dos legisladores cearenses, na elaboração das leis que vão reger a vida do Estado” (Jornal Idade Nova, 20/11/1947, p.5-6). Para o vereador Victor Biassuti, propositor da afixação do crucifixo na Câmara Municipal de Santa Tereza/ES, a imagem de Cristo na cruz é uma arma, uma força orientadora e uma advertência: Cristo nesta casa, por sua Imagem, estará sempre em nossos pensamentos, abençoara nossos trabalhos, habitará em nossos corações e, quando as forças do mal nos quiserem levar a trilharmos pelas veredas do erro, a agirmos contra nossas consciências, senhores vereadores, por certo há de nos advertir porque Ele é o guia seguro, o piloto alerta e infalível, para quem, nos momentos de dúvida e desfalecimento se voltarão tranquilos os olhares de todos nós. [...] Em Cristo está à salvação! Ao seu lado devemos lutar e nada temer. Sua Cruz será nossa arma, nosso estandarte, nossa vitória (Jornal Idade Nova, 02/12/1948, p.2). Como se pode perceber, para os católicos leigos do PRP a imagem do Cristo crucificado não era uma mera representação do divino, mas a presença viva e sensorial do transcendente. Conforme acentua Birgit Meyer (2006), para os fiéis as imagens religiosas não são apenas a simbolização de algo, mas a incorporação de uma presença espiritual. Destarte, os objetos e os ícones religiosos expressam a dimensão estética e material das religiões, seu regime sensorial que procura modular de determinada forma 109 as subjetividades.162Os símbolos religiosos são saturados de qualidades afetivas que impregnam de emoção determinados comportamentos e atitudes. Funcionam, assim, como uma espécie de recurso cultural que serve para a educação sentimental dos indivíduos (Delgado, 2001). A medida de afixação do crucifixo defendida pelo PRP intencionava dotar o espaço público de uma casa legislativa de uma aura religiosa. Tratava-se de uma estratégia de territorialização do espaço, “carregando-o de uma força carismática e salvífica” (Delgado, 2001, p.68). Procurava-se projetar e imprimir o religioso na materialidade e no espaço físico. Por consequência, as concepções e valores do catolicismo não deveriam ser apenas objeto de discurso, ou então restringir-se à subjetividade dos indivíduos, mas precisariam estar presentes fisicamente tendo assim uma dimensão espacial que se expressava na aposição de objetos, símbolos, imagens e monumentos. Sublinho que os políticos populistas também eram os propositores da colocação da bandeira nacional e das bandeiras estaduais em suas respectivas casas legislativas.163 Era bastante comum que no dia em que ocorria a solenidade de entronização do crucifixo fosse também colocada a bandeira nacional e estadual. Nos discursos realizados por conta dessas ocasiões, buscava-se associar e vincular a noção de pátria com a ideia de religião. Os símbolos do catolicismo e da nação deveriam inspirar os legisladores na construção de uma pátria cristã. Acerca disso acentuou o vereador Isidoro Moretta, de Caxias do Sul/RS: A Cruz de Cristo e a Bandeira Nacional são no Brasil, o símbolo da união e não se concebe a separação das duas ideias. [...] A promulgação da nossa Lei Orgânica não podia ser feita sob melhores auspícios e nem melhores tutelas: o Pavilhão Nacional e a Cruz de Cristo, o binômio sagrado e indestrutível que cristalizam toda nossa formação heróica e será sempre o esteio inabalável e a garantia suprema de nossa união pela grandeza imperecível de nossa pátria e de nossa gente (Jornal Idade Nova, 06/05/1947, p.7). 162 Birgit Meyer (2006) aponta que as organizações religiosas podem ser caracterizadas por ter distintos regimes sensoriais que fazem desenvolver determinadas sensibilidades, e por consequência, induzem à formação de uma identidade particular. Essa autora usa o conceito de “sensational form” para destacar que os crentes não somente visualizam e contemplam as imagens religiosas, mas são de algum modo envolvidos por uma sensação de estar sendo tocados por ela. 163 Interessante ressaltar que até hoje, no Regimento Interno da Câmara Municipal de Itapira, no Estado de São Paulo, há uma menção à presença do símbolo religioso e dos símbolos cívicos no ambiente legislativo. O artigo 132 desse regimento afirma que na sala das sessões deverão estar permanentemente presentes e hasteadas, respectivamente o crucifixo, as bandeiras do Brasil, São Paulo e de Itapira. 110 Pode-se notar que no nacionalismo cristão do PRP não apenas a imagem de Cristo tinha um halo de santidade, pois a bandeira nacional era também vista e concebida como um símbolo sagrado. Essa atribuição de sacralidade ao pavilhão nacional é enfatizada de modo contundente e com tonalidade mística na fala do deputado estadual Luiz Compagnoni, quando da entronização do crucifixo e do símbolo da nação na assembleia gaúcha: A entronização da Bandeira do Brasil é a reafirmação da nossa fé inquebrantável no misterioso desígnio da providência que deu a nossa Pátria esta imensidão geográfica para que pudesse conter uma nação marcada com uma indefinível, mas inegável destinação de grandeza. [...] Que a entronização da Bandeira da Pátria seja o sinal das grandes definições da nacionalidade. Que nos faça sentir verdadeiramente a alma da nação. Que ao contemplar esta Bandeira, misteriosa vibração produza o frêmito do mais puro patriotismo, transfundindo-se em todos os brasileiros que vibram ao mesmo instante na extensão infindável de nossas terras verdejantes (Jornal Idade Nova, 29/07/1949, p.2). A cerimônia de colocação da bandeira brasileira e do crucifixo em casas legislativas era percebida pelos populistas como uma reiteração, senão mesmo uma atualização, da célebre afixação da cruz e da realização da primeira missa nas areias de Porto Seguro. Esse aspecto é exposto pelo vereador Pedro Monteiro da Silva, de Araraquara/SP: Quão significativo ver-se essa Santa Imagem ladeada pelo símbolo da Pátria, nascida sob o signo da Cruz [...]. Aqui estamos nós, senhores, no ano de 1948 a celebrar uma cerimônia cívico-religiosa nos mesmos moldes daquela que foi celebrada no longínquo mil e quinhentos na histórica enseada de Porto Seguro. Aqui como lá, estão os apóstolos de Jesus a apoiar o poder temporal com as suas bênçãos e os seus ensinamentos. [...] Saibamos conservar a ideia de Pátria sempre ligada à ideia de Deus (Jornal Idade Nova, 16/10/1948). Os populistas se percebiam como “soldados de Cristo e da Nação”, defensores dos valores espirituais e da nacionalidade. Caracterizavam-se pela defesa de um cristianismo combativo e militante. Procuravam assim santificar a atividade política, dando a ela um sentido apostolar e de missão. Destarte, não havia para estes uma nítida disjunção entre o político e o religioso. Em realidade, a política encontrava seu sentido último na religião. Suas posturas, proposições e discursos são exemplos cabais de “nacionalismo religioso”. Há nessas peças oratórias uma colusão entre o nacionalismo e a religião. Confluem dois processos: sacralização da nação e nacionalização do sagrado (Haupt, 2008). Assim sendo, os símbolos religiosos cristãos e católicos são apropriados e usados por correntes políticas leigas para construir e fortalecer a nação. Desse modo, ao contrário do que pretende certa teoria do nacionalismo que o associa com a 111 modernidade e com o secularismo164, percebe-se aqui uma articulação entre a ideia de nação e a religião católica.165 De um modo geral, afirma-se nesses discursos uma imagem católica da nação brasileira. Por outro lado, as tentativas republicanas e positivistas de criação e consolidação de um imaginário e de uma simbologia secular se mostraram fracassadas em nosso país. Exemplo histórico é a mal-sucedida tentativa dessas correntes ideológicas seculares de substituir a imagem de Maria por Clotilde de Vaux na representação da nação. De maneira esclarecedora explica José Murilo de Carvalho (2007, p.94) o malogro dos positivistas: Por problemática que também seja a capacidade da Aparecida de representar a nação, ela sem dúvida supera em muito a de qualquer outra figura feminina, ou mesmo de quase todos os símbolos cívicos. Além de deitar raízes na profunda tradição católica e mariana, apresenta a vantagem adicional de ser brasileira e negra, a léguas de distância da francesa e branca Clotilde. Nem mesmo a princesa Isabel lhe poderia fazer frente. A batalha pela alegoria feminina terminou em derrota republicana. Mais ainda, em derrota do cívico perante o religioso. Importa ressaltar que o crucifixo é entronizado no Palácio Tiradentes, antiga Câmara Federal com sede no Rio de Janeiro, devido a uma proposição de autoria do deputado federal Goffredo da Silva Telles Júnior166 do PRP. O requerimento foi apresentado em 20 de maio de 1947. 167 Na sua justificativa, Goffredo Telles Júnior afirmava que a política nacional não poderia mais andar divorciada dos grandes temas 164 Como observa Van der Veer (1994) a concepção de um Estado-nação secular, laico, como expressão da modernidade deve ser vista como uma noção ideológica resultante do Iluminismo. Para esse autor, há que se desconstruir a relação entre modernidade, secularismo e nacionalismo defendida por teóricos do nacionalismo como Ernst Gellner e Benedict Anderson. Como observa o citado pesquisador, na Índia como em outros países do sul da Ásia o discurso nacionalista conflui com o discurso religioso. Sendo assim, a religião é um aspecto axial da identidade nacional. 165 Lomnitz (2001) também questiona a posição de Benedict Anderson que associa nacionalismo com secularismo. Examinando o nacionalismo nas repúblicas da América Hispânica e mais particularmente no México, demonstra os contatos e aproximações entre nação e religião. Outro autor que contesta Benedict Anderson é Silla (2003), que demonstra que o nacionalismo na América Latina nem sempre substituiu a religião, pelo contrário em muitas oportunidades se apoiou nela. Além disso, esse vínculo entre nação e religião não é somente defendido pelas elites e grupos de poder, mas pela própria população que em alguns casos exige que a religião interfira nos processos políticos. Acerca desse vínculo entre nação e religião ainda afirma: “Anderson esqueceu-se da emergência, em toda a América Hispânica durante a colônia, de um sincretismo religioso expresso na arte barroca e nas mariologias coloniais; e do surgimento de símbolos religiosos de identidade plural (hispano-indígena) que, com o tempo, se transformariam em poderosos instrumentos de afirmação das nacionalidades, como a Virgem de Guadalupe no México, Santa Rosa no Peru e Caacupé no Paraguai. A importância política desses fenômenos pareceu residir na geografia sagrada e política que simultaneamente conseguiram inventar” (Silla, 2003, p.153). Acrescento o caso de Nossa Senhora Aparecida no Brasil. 166 167 Professor da Faculdade de Direito da USP. Em 1947, o senador Andrade Ramos sugeriu a colocação do crucifixo na sala de sessões do então Senado Federal. Sua indicação foi aprovada. Infelizmente não obtive maiores informações sobre como tramitou sua proposta. 112 da política universal. Acrescentava que o mundo moderno dividia-se entre espiritualistas e materialistas, e que a nação brasileira apresentava uma velha tradição de espiritualismo e de respeito aos direitos fundamentais do homem. Por fim, declarava: Requeiro a Vossa Excelência que ouvida a Casa, se digne de providenciar no sentido de que seja entronizado nesta Sala da Câmara dos Deputados, em sessão extraordinária a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado, para que esse augusto símbolo, inigualável lição de humildade, compreensão e amor, indique ao mundo a atitude do Brasil diante de seu destino (Diário do Congresso Nacional, maio de 1947, p. 1901). Contudo, não foi sem resistências, tensões e impasses que o requerimento tramitou no parlamento nacional. Os populistas alegavam que a proposta tramitava muito lentamente, sendo relegada ao esquecimento. Além disso, arguiam que tinha sido remetida à mais “anti-teológica” das comissões, a Comissão de Finanças. Entendiam que o requerimento era sabotado por “poderosa corrente”, que impedia que o assunto fosse levado a plenário e assim aprovado. Desse modo, Goffredo Telles Júnior entrou com um pedido de urgência solicitando que sua proposta fosse logo discutida. Asseverava que o assunto não era de ordem técnica inexistindo então necessidade de ser examinado por várias comissões. Além da Comissão de Finanças o assunto foi analisado pela Comissão Executiva e pela Comissão de Constituição e Justiça. Por seu turno, tal questão deveria ser decidida com urgência, pois dizia respeito a uma tomada de posicionamento diante de problemas fundamentais da vida. Esse requerimento apresentaria assim um caráter excepcional, versando sobre o “[...] Princípio de todos os princípios, à Causa de todas as causas, ao Autor do céu e da terra. Não façamos a Deus, Senhores Deputados, a injúria de considerá-lo em segundo lugar (Diário do Congresso Nacional, maio de 1947, p.1944). Na ocasião, alguns deputados manifestaram-se contra o pedido de urgência, dentre eles o deputado Guaraci Silveira. Declarava o deputado evangélico que a proposta partia de um partido vinculado ao integralismo, de “totalitários da direita”, que defendiam uma doutrina de cunho fascista. Ademais, essa agremiação utilizaria as religiões para fins políticos. Em outro momento de sua intervenção afirmou: Passamos Sr. Presidente cinquenta anos sem a efígie de Cristo na Assembleia. Os deputados cristãos trouxeram Cristo em seus corações para este ambiente, e agiram aqui com dignidade, sem necessidade de imagens. Os que são cristãos, dignos desse nome, continuam a agir sem necessidade de símbolos. É incrível que a presença de uma imagem possa transformar o coração dos ímpios, dos adúlteros, dos imorais, dos perdidos pela sua simples presença num recinto. Se tal acontecesse eu seria o primeiro a votar para que imagens fossem colocadas no Brasil em todas as repartições. Trazer, porém, a imagem, que dizem de Cristo, para presidir tantas incongruências e assistir 113 conversações que às vezes ferem os nossos ouvidos, não parece justo (Diário do Congresso Nacional, maio de 1947, p.1944). Nota-se que sua postura estava em consonância com a teologia protestante que condenava o culto das imagens. O deputado Campos Vergal, espírita, também interveio no debate com uma interessante colocação: “os católicos em geral já têm um grande Cristo no alto do Corcovado, a 600 metros de altura, com os braços abertos, e a entronização da imagem de Jesus na Câmara seria um capitis diminutio ao Cristo do Corcovado” (Diário do Congresso Nacional, maio de 1947, p.1944). Ressalto que um deputado católico, Luiz de Toledo Piza Sobrinho, foi contra o requerimento, manifestando-se acerca dessa discussão em outra sessão da Câmara dos Deputados. Para ele, a imagem de Cristo deveria ser colocada apenas nos templos e não em locais mundanos, seculares e profanos como uma casa legislativa. De certo modo, a colocação e exibição do objeto/imagem crucifixo nos parlamentos representaria para este deputado uma espécie de sacrilégio e profanação. Acerca disso arguia: Sou cristão e católico e, por sê-lo, não quero ver a sagrada imagem do Redentor dos Homens fora dos templos onde é venerada e onde levo o fervor das minhas orações. O recinto da Câmara dos Deputados, por certo, não é lugar adequado para ostentar a divina figura de Cristo Crucificado. Aqui se encontram representantes de todos os credos e sem credo algum. De acordo com os dispositivos constitucionais, eles não devem ser constrangidos a manifestações de um culto que se em verdade é o da maioria dos Senhores Deputados, não é de todos. Reservemos a externação dos íntimos sentimentos de nossa fé religiosa para nossas casas e para os templos de nossa religião. Acresce que não é lícito, não é honesto, não é de bom cristão e de perfeito católico, usar do símbolo divino de nossa fé no tumulto das paixões das assembleias políticas (Diário do Congresso Nacional, março de 1948, p.1867). Apesar da oposição por parte de alguns deputados socialistas, comunistas, liberais e de positivistas o requerimento foi aprovado. Sendo assim, em 3 de maio de 1948 ocorre a solenidade de entronização do crucifixo no Palácio Tiradentes. Nesta ocasião, Goffredo da Silva Telles Júnior em seu discurso referiu-se ao significado da presença da imagem de Cristo no parlamento nacional: Lição de humildade, compreensão e amor - tal é o sentido da sacrossanta imagem que hoje entronizamos nesta sala. Em nenhum lugar senhores, estaria ela melhor do que aqui. Diante de nós uma viva, vivíssima advertência: “legisladores do Brasil a vaidade humana crucificou o mais justo de todos os homens. Houve quem dissesse que este não era o lugar para a imagem de Cristo crucificado. Triste engano, lamentável engano. A política, a autêntica política se subordina a moral e moral dos brasileiros se chama cristianismo. Ao verdadeiro cristão não é lícito governar como se Deus não existisse (Jornal Idade Nova, 6/05/1948, p. 7). 114 Em outro momento do discurso asseverou acerca do vínculo entre a política e a religião: “A atividade política é antes de tudo uma tomada de posição diante do sentido fundamental da vida. Eis por que afirmo, sem medo de engano - cada vez me convenço mais desta verdade - as soluções políticas são decorrências de soluções religiosas” (Jornal Idade Nova, 6/05/1948, p.7). Nessa passagem como em outras aqui citadas, verifica-se que para os seguidores da doutrina integralista era basilar que os valores da tradição católica e cristã orientassem a vida nacional. Em realidade, rebelavam-se contra uma ordem social secular por demais afastada de aspectos religiosos. Quando a Câmara Federal transferiu-se para Brasília, na década de 1960, o deputado Plínio Salgado, líder máximo do partido, requereu a afixação do crucifixo na referida casa legislativa. Importa destacar o pronunciamento de Plínio Salgado na Câmara Federal, em 13 de junho de 1960. Nessa data dissertou sobre as relações entre Estado e Igreja, “César e Deus”, bem como acerca da crise espiritual que vive o mundo moderno. Asseverou, também, sobre a importância da simbologia para a preservação da memória nacional: [...] desde que nos transferimos para Brasília e me sentei na minha cadeira nesta Casa, notei que nos faltava alguma coisa. Já há dias, conversando com um ilustre magistrado, observava ele o mesmo fato no Palácio Judiciário. Falto-nos alguma coisa, falta-nos a simbologia, para manter vivo nosso civismo, nosso amor à Pátria, o senso das nossas responsabilidades, a dedicação do trabalho pelo bem do Brasil. Nestas paredes nuas, ante o aspecto grandioso das arquibancadas, das galerias, sentimos algo frio e mesmo gélido (Salgado, 1982, p.54). O deputado Plínio Salgado enfatizava a necessidade de “Cristo” para a superação das angústias e incertezas da modernidade: “Neste instante precisamos de Cristo, da visão de Cristo, da permanência de Cristo em nós” (Salgado, 1982, p. 55). No mesmo discurso, procurava sublinhar os limites de atuação do Estado e da Igreja. Para o líder integralista, não poderia haver uma mistura entre as “coisas que são de César das coisas que são de Deus”, entretanto, o poder político responsável pelo governo do mundo temporal deveria ser orientado pelas “Leis de Deus”: Jamais César deverá penetrar os umbrais da consciência de seus dirigidos, como estes jamais deverão transpor os arcanos da consciência de César, pois, no fundo da consciência, o homem pertence exclusivamente a Deus (Salgado, 1982, p. 59). 115 O requerimento de Plínio Salgado foi visto com bons olhos pela maioria do parlamento. O deputado Campos Vergal, do Partido Social Progressista168, espírita praticante, foi um dos poucos deputados a se manifestar contra a aposição do crucifixo. Em sua objeção declarava: Sou espírita militante, praticante. Entretanto, nos meus templos, nos meus centros e de meus confrades, não temos o hábito de colocar a imagem de Cristo nas paredes. Nós outros preferimos colocá-la no coração, o que é muito difícil. Com um pouco de música, discursos brilhantes, eleva-se a imagem de Cristo nas alturas, mas é preciso senti-lo e vivê-lo em nosso próprio coração (Campos Vergal apud Salgado, 1982, p. 61). Respondendo a essa colocação, o deputado do PRP dizia ser fundamental para o homem a presença de símbolos que evocassem a morte de Cristo: [...] precisamos realmente ter Cristo no coração, em nossa alma, no fundo de nosso espírito, na prática de nossos atos e na fuga dos atos maus. Mas, nós, somos humanos, inquinados pelo mal e tendentes, de tal maneira, à prática daquilo que no meu livro, aqui citado, chamo de “flauta de Pan da morte”, isto é, o pecado, a tocar a sua avena para destruir-nos, chamando-nos; e nos sentimos tão miseráveis e pequenos e tão incapazes de corresponder ao amor de Cristo, que precisamos de sugestões oculares, vê-lo na sua dor, pregado na sua cruz, derramando seu sangue, para que possamos amolecer nossos corações duros como pedra e nos aproximar-nos d’ Ele (Salgado, 1982, p.62). Acrescentava ainda ao final de seu discurso: [...] desejo ver Cristo, para que ele seja visto por todos nós e possamos, ao menos, distraídos pelos interesses materiais do mundo na hora em que nossos olhos pousarem sobre aquela imagem, lembrar-nos de que precisamos tê-lo no fundo do coração, como quer o Deputado Campos Vergal (Salgado, 1982, p.62). Na época houve a manifestação de alguns deputados solicitando a deliberação e autorização do plenário para a realização da solenidade de entronização da imagem de Cristo no parlamento nacional. O deputado federal Ranieri Mazzili, entendia que era indispensável um ato religioso conduzido por sacerdotes da Igreja Católica para entronizar o crucifixo. Desse modo, se fazia necessário o pronunciamento do plenário sobre essa questão, determinando uma data específica para essa cerimônia: “[...] não se trata apenas de fazer a fixação como uma peça histórica ou artística compondo um conjunto, mas com a liturgia indispensável à entronização, e esta evidentemente é sim ato religioso que dependerá de autorização do plenário” (Diário do Congresso Nacional, junho de 1960, p. 4105). Por sua vez, o deputado Humberto Lucena declarou ser desnecessário um novo pronunciamento da Câmara acerca dessa matéria. Para esse 168 Campos Vergal falava também em nome dos teosofistas, protestantes e evangélicos. Entre suas propostas estava aquela que pretendia a instituição de uma cadeira de parapsicologia nas universidades. 116 deputado, já havia uma deliberação da antiga Câmara Federal, localizada então no Rio de Janeiro: Desde que a Câmara se transferiu com todos os seus pertences, não há razão para estarmos aqui a pensar em nova deliberação, pois, houve apenas, uma mudança de localização de sua sede, mas a imagem de Cristo, que é a inspiração durante os seus trabalhos, deve continuar a presidir o recinto do plenário da Câmara dos deputados (Diário do Congresso Nacional, junho de 1960, p. 4105). Outrossim, o deputado Arruda Câmara, padre da Igreja Católica, reiterou que não se tratava de uma nova entronização da imagem de Cristo no plenário, mas apenas de no máximo sua reposição com a necessária benção a ser feita por um clérigo. Conforme o referido deputado, o ato de entronização do crucifixo já tinha sido realizado outrora. Dessa forma, a imagem seria somente transferida de um local para outro. Acerca disso afirmou: Haverá , quando muito, a benção da imagem nova, se ela não foi benta ainda, e se já o foi apenas a transferência de um palácio para outro, da imagem do Cristo Crucificado, que já estava entronizado por deliberação soberana da Câmara. Uma nova votação será como que a revisão de ato jurídico perfeito e acabado de uma deliberação que já produziu seus efeitos durante vários anos (Diário do Congresso Nacional, junho de 1960, p. 4.105). Durante esse período, começo da década de 1960, duas outras curiosas questões foram levantadas a propósito da presença do crucifixo nesta casa legislativa. Em 1963, o marechal Tito foi homenageado pela Câmara Federal, quando de sua vinda ao Brasil. Por conta disso, o deputado Abel Rafael do PRP, solicitou que o crucifixo fosse coberto por um crepe em atenção ao sentimento religioso do povo brasileiro e devido ao fato de o ditador Tito ter sido excomungado pela Igreja Católica. Sendo assim, de acordo com o Direito Canônico e na interpretação do deputado populista, nenhum indivíduo católico ou objeto religioso ligado ao catolicismo poderia manter contato com o líder comunista. Trouxe esse deputado, quando de seu pronunciamento, um interessante exemplo sobre a relação do comunismo com os símbolos religiosos com o fito de fortalecer sua sugestão: Ainda lembro aquele episódio ocorrido há pouco tempo, quando morreu o embaixador da Rússia. Seu corpo ia sendo transportado no carro mortuário, no Rio de Janeiro, e a Embaixada exigiu que se lhe raspassem as cruzes, porque um símbolo cristão não podia acompanhar à sepultura um membro de uma doutrina materialista. Nestas condições, como um respeito ao sentimento geral do povo brasileiro, requeiro a V.Ex.ª que mande cobrir de crepe aquele crucifixo, para que o Cristo dali não arranque os cravos de suas mãos, como o Cristo de D. Camillo, desça da cruz, e saia, profanado, deste plenário (Diário do Congresso Nacional, setembro de 1963, p. 6827). 117 O deputado Brito Velho contestou a proposta de Abel Rafael. Definindo-se como cristão afirmou que ao invés de ocultar e encobrir o símbolo de Cristo deveria a Câmara deixar a imagem em seu lugar para que todos percebessem o que aquela casa legislativa defendia e exaltava: [...] estranho seria que tivéssemos nos modificar para recebermos qualquer. Nós, exatamente porque cristãos, exatamente porque adeptos da mensagem evangélica, nós, exatamente porque entronizamos nesta Casa o símbolo da redenção, temos não apenas o direito como também o dever de deixar bem claro nas paredes desta Casa aquele símbolo que move a nossa vida e conduz os nossos passos. Estranho seria, dizia eu, que nós ocultássemos aquilo que para nós é glória, aquilo que para nós, é sinal (Diário do Congresso Nacional, setembro de 1963, p. 6.827). Pelo que consta, a proposta do deputado federal Abel Rafael não obteve sucesso, sendo rechaçada. A outra questão diz respeito ao pedido do deputado Mendes de Morais, no ano de 1964, para que fosse colocado outro crucifixo de maiores proporções no plenário. De acordo com Mendes de Morais, o crucifixo existente era de proporção diminuta e assim desproporcional ao tamanho do plenário, ficando quase que oculto pela bandeira brasileira. Esse deputado solicitava que um novo crucifixo, “mais antigo e artístico”, fosse afixado em posição mais elevada. Segundo sua reclamação, já tinham se passado 14 meses desde que esse outro crucifixo mais imponente tinha sido adquirido; entretanto, o mesmo ainda encontrava-se no depósito da Câmara. O presidente da Câmara dos Deputados naquele período, Ranieri Mazzilli, respondeu a reclamação de Mendes de Morais arguindo primeiramente que o crucifixo de marfim existente no parlamento nacional fora doado pelo deputado Carvalho Sobrinho, quando da transferência dessa casa legislativa do Rio de Janeiro para Brasília. Depois disso, afirmou que o crucifixo de maior dimensão, obtido pelo deputado Mendes de Morais ainda não tinha sido colocado no plenário, pois o crucifixo de marfim precisava de um local para ser afixado. Esse novo local ainda estava sendo preparado e era o gabinete da Presidência da Câmara dos deputados. Após essa mudança, o crucifixo do deputado Mendes de Morais foi aposto no parlamento. 3.6 A cerimônia de entronização do crucifixo Ao longo deste capítulo, fiz menção em vários momentos à cerimônia de entronização da imagem do Cristo crucificado em recintos estatais. Esta cerimônia deita suas raízes no período colonial e imperial. Trata-se de uma tradição do catolicismo ibérico trazida ao Brasil pelos portugueses. Como será visto agora, essa solenidade 118 apresentava uma dimensão cívica e religiosa. Seguia um protocolo próprio com algumas formalidades, tendo assim um caráter performático. O periódico populista descrevia essa cerimônia como uma “imponente reunião cívico-religiosa”, majestática “expressão de fé e civismo”. De maneira geral, esse ato solene era presidido por um sacerdote da Igreja Católica. Em muitas ocasiões tinha como ponto de partida a realização de uma missa em uma importante igreja da cidade em que iria transcorrer a cerimônia. Após a missa, o crucifixo era levado em procissão até o local onde era afixado. Desfiles militares, bandas de música e fogos de artifício precediam e/ou sucediam o cerimonial de entronização que contava, também, com a intensa mobilização e participação da população. Autoridades civis, militares e eclesiásticas compareciam ao ato discursando sobre a importância do acontecimento. Em alguns casos a imagem de Cristo era benzida por um clérigo na igreja local; em outros no recinto estatal onde era colocada. A solenidade ocorrida em São Bento do Sapucaí/SP, cidade de nascimento de Plínio Salgado, é assim descrita pelo periódico do PRP: Às 10 horas realizou-se a missa do dia, logo após a missa importante procissão percorreu a cidade, cujas ruas estavam lindamente enfeitadas. As famílias ornamentavam as janelas e fachadas com tapetes e expuseram imagens. O cortejo religioso após percorrer longo percurso dirigiu-se a Igreja Matriz para benção, entrando sob forte salva de bombardas e foguetes, enquanto os sinos replicavam. Às 14:30 teve lugar na Câmara Municipal a solenidade de entronização com presença de autoridade e importantes pessoas da localidade. Aberta a sessão pelo Sr. José dos Reis Coutinho, presidente da Câmara Municipal, procedeu-se a seguir à benção da imagem do Cristo Crucificado, feita pelo Padre Pedro do Vale Monteiro, dd. vigário da paróquia. O revmo Padre fez breve alocução alusiva ao ato. Após a benção o presidente da mesa convidou o dr. Genésio Pereira Filho a colocar a imagem no local que fora reservado para sua permanência, o que foi feito sob grande salva de palmas (Jornal Idade Nova, 23/06/1949, p.3). Cabe lembrar que essa cerimônia não era realizada somente em casas legislativas, mas também em tribunais de justiça e em outros espaços públicos e estatais como escolas, universidades, hospitais, aeroportos etc. Hoje, com maior raridade, e de forma mais simples, a solenidade é ainda feita. Como ilustração trago três exemplos. Em maio de 2004, no Estado de Sergipe, foi entronizado o crucifixo no plenário onde são realizados os julgamentos do Tribunal de Contas daquele Estado. O ato contou com a participação do presidente do Tribunal, de conselheiros e de um padre que conduziu a solenidade, como se pode verificar na imagem abaixo. 119 FIGURA 4. Cerimônia de entronização do crucifixo no Tribunal de Contas do Estado do Sergipe. 169 Interessante notar que nessa mesma ocasião houve neste local a celebração da Festa da Páscoa dos servidores do Tribunal de Contas, com a realização de uma missa solene rezada pelo mesmo padre que entronizou o símbolo de Cristo. No começo de 2009, a imagem do crucifixo é entronizada no centro do novo plenário do Tribunal de Justiça do Paraná. O presidente do TJ paranaense na época, Desembargador Tadeu Marino Loyola Costa, discursou nessa sessão solene repetindo as palavras proferidas pelo Papa João Paulo II na missa celebrada em 30 de junho de 1980 na catedral de Brasília: “Símbolo da fé, a cruz é também o símbolo do sofrimento que leva à glória, da paixão que conduz a ressurreição”.170 O padre Henrique Pereira Filho, capelão do TJ/PR, benzeu a imagem, como mostra a foto abaixo. 169 Imagem retirada da revista do Tribunal de Contas do Estado do Sergipe, ano 2, nº9, mai/jun, 2004. 170 Disponível em: http://www.tj.pr.gov.br/noticia_mostra.asp?idnoticia =888. Acesso em: 25/02/2009. 120 FIGURA 5. Benção do crucifixo no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. 171 Finalmente, no segundo semestre de 2009, na 2ª e na 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraíba foi afixado o crucifixo com a presença de magistrados e eclesiásticos. O diácono Fabiano Moura de Moura pronunciou um breve discurso quando dessa celebração: Nós estamos envolvidos por esse momento em que o Judiciário está recebendo a presença do nosso Arcebispo, onde nós vamos viver um ato muito significativo para nós. É preciso que vivamos e vivenciamos aquilo que cremos. Os valores essenciais do evangelho estão, justamente, naquilo que se deseja da Justiça: a honestidade, a dignidade, o respeito e a paz; em suma é isso. Então, com alegria vamos hoje viver a benção desse espaço e também do crucifixo. Do Cristo crucificado. A vitória para que sirva muito mais do que inspiração para nós, mas que tenhamos sempre a lembrança a quem nós servimos (Diário da Justiça-TJ/PB, 22 de agosto de 2009, p.8). A cerimônia foi conduzida pelo Arcebispo da Paraíba, Dom Aldo Di Cillo Pagotto. Antes de benzer a imagem declarou: Para nós, defensores da vida e da esperança, a cruz nos enseja um caminhar longo, ou mais ou menos longo, rumo à vida plena, eterna. E isto imbrica-se, incide nas nossas relações, nos nossos afazeres, nos nossos deveres, nas nossas responsabilidades, nos nossos compromissos e na nossa missão. 171 Imagem disponível em: http://www.tj.pr.gov.br/portal/noticias/noticia_mostra.asp?idnoticia=888 Acesso em: 10/03/2010. 121 Então, vemos não como um sinal de derrota, e sim, de vitória (Diário da Justiça-TJ/PB, 22 de agosto de 2009, p.8). Enquanto fazia a benção do crucifixo perante os magistrados, o Arcebispo da Paraíba dizia as seguintes palavras: A nossa proteção está no nome do Senhor. Procedamos à benção dessa cruz, veneremos com fé os eternos desígnios do Pai, que fez do mistério da cruz o sacramento da misericórdia divina. Ao contemplar a cruz, nos lembramos que nela se realiza o mistério do amor com que Cristo ama toda a humanidade (Diário da Justiça-TJ/PB, 22 de agosto de 2009, p.8). Outras expressões e palavras de cunho ritual que tinham como finalidade destacar a importância e o sentido do símbolo do Cristo crucificado seguiam o ato de bendição efetuado por esse sacerdote católico. Essa solenidade cívica e religiosa é uma maneira de consagração da imagem, sendo através desse ato de investidura que a imagem parece adquirir seu poder e eficácia. De algum modo, ela é animada ritualmente, a consagração dá a ela vida. Por meio desse rito haveria uma mudança no status da imagem, que se converteria então em objeto que poderia ser venerado e com a capacidade de produzir determinados efeitos (Freedberg, 1992). Dessa maneira, não se está diante de uma cerimônia desprovida de valor, meramente mecânica e formal. Além disso, como ressalta Van der Veer (1994), a definição e controle do espaço e do território são elementos centrais do nacionalismo religioso. Seguindo esse autor, entendo que práticas rituais como a entronização do crucifixo em locais públicos são mecanismos que servem para imprimir um ar de santidade e austeridade a estes espaços. Busca-se, de algum modo, cristianizar e assim inscrever uma cosmovisão particular nos espaços públicos por meio da aposição de imagens, símbolos e monumentos. Como conclusão deste capítulo gostaria de fazer algumas observações pontuais. Primeiramente, quando o crucifixo é entronizado ao lado da bandeira nacional aquele adquire uma inegável dimensão cívica. Outros símbolos, como o Cristo Redentor e Nossa Senhora Aparecida também carregam esse aspecto de identificação com a nação, ou ao menos com um determinado projeto de nação. Em realidade, os Estados nacionais se apropriam da simbologia religiosa para mobilizar a comunidade nacional e criar um espírito de unidade e identidade. No entanto, a feição cívica desses símbolos não acarreta a total anulação da sua dimensão religiosa, que pode a qualquer momento ser acionada. Como qualquer símbolo e imagem, as cruzes, crucifixos e outros objetos sofrem transformações e “ressemantizações” com o decorrer do tempo. 122 Por fim, concordo com Sullivan (2010) que assinala que a persistência e a proliferação de símbolos e imagens religiosas em espaços públicos e estatais manifesta, sob determinado aspecto, os limites do secularismo e da noção de um Estado-nação puramente secular. Por outro lado, se outrora os protestos contra a presença de símbolos religiosos em locais públicos eram esparsos e eventuais, como foi visto neste capítulo, nas últimas décadas eles têm se intensificado, o que se deve em parte ao fortalecimento de agentes sociais identificados com o ideário secularista, ao crescimento dos sem religião e à expansão de outras religiões, não cristãs, bem como do pentecostalismo. Essas manifestações e protestos serão objeto de descrição e análise nos próximos capítulos. 123 4 SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM DISCUSSÃO: O CONGRESSO DE MAGISTRADOS NO RIO GRANDE DO SUL, EM 2005 Após algumas décadas o debate em torno da presença de símbolos religiosos em repartições públicas veio novamente à tona. Essa discussão ocorreu no 6º Congresso de Magistrados Estaduais172, realizado na cidade de Santana do Livramento, no Estado do Rio Grande do Sul, entre os dias 29 de setembro a 1º de outubro de 2005. Na ocasião, o juiz Roberto Arriada Lorea, da 2ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central de Porto Alegre, propôs uma moção que sugeria a retirada do crucifixo e de outros símbolos religiosos das salas de audiência da justiça gaúcha. Sua “tese” arguia que a presença de imagens religiosas em espaços jurídicos feriria o princípio republicano de separação entre Estado e Igreja, e afrontaria a liberdade religiosa. Um acontecimento que suscitou a proposta do juiz foi o julgamento da prática “ritual” de sacrifício de animais por parte de seguidores das religiões afro-brasileiras.173 O julgamento transcorreu em um ambiente do poder judiciário de Porto Alegre que possuía a imagem do Cristo crucificado. A tese levantada pelo juiz Roberto Lorea foi a mais debatida das 14 apresentadas no congresso. A moção foi votada três vezes no congresso de magistrados estaduais, devido a dúvidas quanto ao resultado. Ao final da terceira votação, a juíza aposentada Maria Isabel Pereira da Costa, que coordenava os debates, anunciou o empate na contagem dos votos. Pouco tempo depois, a juíza Suzana Viegas, que se opunha à retirada dos símbolos religiosos, conseguiu trazer para a sala de votação o desembargador Carlos Marchionatti, que então votou contra a moção de Lorea. Apesar da presença de cerca de 150 magistrados no congresso, apenas 49 estavam presentes quando da votação acerca dos símbolos religiosos. Dessa forma, 25 foram contra a moção e 24 a favor. Assim, a tese que argumentava pela retirada do crucifixo e de outros símbolos religiosos dos tribunais foi derrotada. A parte que moveu o pedido foi representada pelo presidente da AJURIS (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul) na época, Carlos Rafael dos Santos Júnior, pois o juiz Roberto Lorea estava fora do país. Por sua vez, os juízes que eram contrários à tese da retirada dos símbolos religiosos foram representados pela magistrada Suzana Viegas que sustentou o 172 173 Trata-se de um congresso realizado bienalmente. Ari Oro (2005b), examina esse caso em seu artigo O sacrifício de animais nas religiões afrobrasileiras: análise de uma polêmica recente no Rio Grande do Sul. 124 argumento de que a presença de ícones religiosos, e principalmente dos crucifixos, em órgãos do poder judiciário não é algo ofensivo para pessoas de outras confissões religiosas, estando de acordo com a fé da grande maioria dos brasileiros. O presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul naquele período era o desembargador Osvaldo Stefanello, que desdenhou da proposta, declarando: “O Judiciário tem coisas mais importantes com que se preocupar do que com símbolos nas paredes”.174 A discussão extrapolou os limites da magistratura gaúcha, ganhando espaço nos jornais175, em rádios e na televisão, em âmbito regional e nacional. Algumas lideranças religiosas gaúchas se manifestaram sobre o caso. O padre Roberto Paz176 que, na época, exercia as funções de vigário do Tribunal Eclesiástico e de coordenador do Vicariato de Cultura da Arquidiocese de Porto Alegre, afirmou: “O símbolo religioso no tribunal nos lembra que qualquer decisão judicial tem Deus por testemunha. Não é apenas para os cristãos que Cristo é um referencial”. 177 Por sua vez, o pastor Walter Altmann, presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, não via a necessidade da retirada do crucifixo dos tribunais, pois estes não influenciariam as decisões: “A presença de símbolos religiosos nos tribunais não impede de forma nenhuma que os procedimentos legais e as decisões dos tribunais ocorram de forma isenta. Nem a sua ausência garante que isso assim será”.178 Outro representante de um segmento religioso no Rio Grande do Sul que declarou não se incomodar com a presença do crucifixo em repartições públicas foi o rabino Abrahão Finkelstein, que presidia a Federação Israelita desse Estado, sobre o debate que surgiu, por conta do congresso, asseverou: “O Brasil é um país cristão. Estive em um hospital com crucifixo sobre a cama e não me senti incomodado. Nunca ouvi ninguém da 174 Disponível 20/02/2009. em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u113161.shtml. Acesso em: 175 O articulista da Folha de São Paulo, Hélio Schwartzman, escreveu sobre o tema na edição de 6 de outubro de 2005, desse jornal. O artigo tinha o título Carregando a cruz. 176 O bispo de Santa Cruz do Sul, Sinésio Bohn, também manifestou seu rechaço à proposta de retirada dos símbolos religiosos, em artigo publicado no Jornal Zero Hora de 23 de setembro de 2005, com o título O ranço do magistrado. 177 Disponível em: http://www.diariodonordeste.com.br/edicao/2005/09/17/nacional.htm. Acesso em 03/02/2009. 178 Disponível em: http://www.diariodonordeste.com.br/edicao/2005/09/17/nacional.htm. Acesso em 03/02/2009. 125 comunidade judaica dizer que se sente constrangido com a presença desses símbolos”.179 Por outro lado, a então vice-presidente da Federação Espírita do Rio Grande do Sul, Gladis Pedersen de Oliveira180, concordou com a moção apresentada pelo magistrado Roberto Lorea: “O juiz está correto. De certa forma, a presença de símbolos cristãos nos tribunais revela preconceito em relação às outras religiões”. 181 Como se pode notar a presença do crucifixo em espaços do poder judiciário parece ter fragmentado uma mesma comunidade, denotando uma das propriedades do símbolo, que é justamente a de dividir. Há em todo o símbolo uma “função agregante” e uma “função excludente”. A primeira das propriedades tem o escopo de unir os membros de uma determinada comunidade enquanto que a segunda separa e divide aqueles que não se reconhecem em determinado símbolo. Isso deriva da própria etimologia da palavra símbolo, originário do grego syn-ballein, significando reunir, colocar junto. Contudo, o mesmo símbolo pode ter também um caráter “diabólico”, no sentido original grego de dia-ballein, que significa separar, dividir (Pacillo, 2004). Em realidade, os símbolos e objetos religiosos são tão familiares para os crentes católicos que se tornam praticamente imperceptíveis e “mudos” quando expostos em ambientes estatais. No entanto, adquirem visibilidade pública, quando são motivos de polêmicas, emergindo, nesses casos, como forças disruptivas (Göle, 2010). Detenho-me agora no debate que emergiu sobre esta controvérsia, na esfera jurídica, como será visto no item a seguir. 4.1 Religião e Laicidade no Poder Judiciário Gaúcho: “O ponto de vista nativo” Motivado por essa polêmica que se instaurou no judiciário gaúcho, procurei entrevistar alguns dos “profissionais do direito” que participaram dessa discussão. Objetivo aqui evidenciar o posicionamento destes atores acerca da controvérsia em tela, além de outras questões correlatas, como a existência de feriados religiosos oficiais e a 179 Disponível em: http://www.diariodonordeste.com.br/edicao/2005/09/17/nacional.htm. Acesso em 03/02/2009. 180 O presidente da Confederação Espírita Pan-Americana, Milton Medran Moreira, saudou a iniciativa do juiz Roberto Lorea em artigo publicado no Jornal Zero Hora, de 20 de setembro de 2005, com o título Em defesa do Estado laico. 181 Disponível em: http://www.diariodonordeste.com.br/edicao/2005/09/17/nacional.htm. Acesso em 03/02/2009. 126 invocação do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988. Busco, também, explicitar as diferentes concepções de laicidade acionadas por esses atores e suas percepções acerca do lugar e do papel da religião na vida social. 4.2 Os personagens envolvidos e seus argumentos - Roberto Lorea O juiz Roberto Arriada Lorea182, autor da moção que arguia a necessidade da retirada de símbolos religiosos de espaços do poder judiciário, declara que o estímulo para a formulação desse pedido nasceu de seu contato com os temas abordados pelo professor Ari Pedro Oro na disciplina Religião e Sociedade, oferecida pelo programa de pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Importante sublinhar que Roberto Lorea é mestre e doutor em Antropologia Social pela UFRGS. Sua tese de doutorado, intitulada Cidadania Sexual e Laicidade: Um estudo sobre a influência religiosa no Poder Judiciário, foi defendida em 2008, e versa sobre a influência de concepções religiosas nas decisões tomadas por magistrados em questões envolvendo os direitos sexuais e reprodutivos. Lorea é um dos representantes no Brasil da Rede Iberoamericana por las Libertades Laicas. Trata-se de um projeto que congrega uma série de acadêmicos e militantes envolvidos com o tema da laicidade. Essa organização tem sua base de operações no México, mais particularmente na Cidade do México, e é apoiada pela Fundação Ford e El Colegio Mexiquense. Roberto Lorea também coordena o núcleo de estudos em Direito e Religião, na Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul. Lorea revela que antes de propor a questão no congresso de magistrados, em 2005, iniciou o debate em uma lista de discussão na internet, restrita aos magistrados gaúchos. O debate virtual foi acirrado. Entretanto, muitos juízes temiam levar a discussão para um congresso, não desejando entrar em conflito com a Igreja Católica. O magistrado queixa-se dessa postura: “Então, isso foi importante para mim na época para me convencer de que a gente vive em um regime de opressão religiosa, num ambiente de opressão religiosa”. Foi perguntado ao juiz gaúcho, autor da moção contra os símbolos religiosos, se ele professa alguma crença religiosa, ou se é ateu ou agnóstico, 182 Entrevista realizada em 24 de março de 2009. 127 ao que respondeu, utilizando uma frase do sociólogo mexicano Roberto Blancarte: “sou um homem de boa vontade, a quem Deus não concedeu a graça da fé”. Afirmou que “nada tem contra a religião”, e que esta cresce onde há ausência do Estado. Asseverou ainda que as religiões e os líderes religiosos podem ter voz e espaço na vida social, porém, dentro de certas limitações: O líder religioso é um ator social, ele tem voz, liberdade de expressão religiosa, ele pode fazer passeatas, o que não pode é querer impor a sua religião a todos. Então não confunda liberdade de expressão religiosa com liberdade de opressão religiosa. Para esse magistrado, a presença de símbolos religiosos, como o crucifixo, em repartições públicas é uma agressão para com aqueles que seguem outras crenças religiosas: [...] o uso de símbolos religiosos, no caso o crucifixo no Tribunal agride muita gente, não a maioria, mas existe um percentual de pessoas que podem se sentir agredidas. Acho que é uma afronta. [...] Se tu tens uma religião que não é aquela, e eventualmente sua igreja não admite o princípio religioso de adoração de imagens pode se sentir constrangido. E tem outras situações que podem pesar um pouco mais, por exemplo, a pessoa é Pai de Santo, está sendo processada por perturbação de sossego, chega perante o Juiz e tem um crucifixo. Lorea acredita que o símbolo religioso pode influenciar, de maneira subliminar, a decisão do juiz: O fato de que o juiz não perceba isso já está revelando no mínimo uma incapacidade, uma falta de sensibilidade, uma incompreensão, e isso pode decidir o porquê sim ou porquê não da sua própria decisão, de achar que o batuque da religião afro é perturbação de sossego e o sino de igreja não [...]. E outro argumento que eu ouvi foi que nunca ninguém reclamou, e isso se fala muito, então temos dois aspectos, primeiro se o cara é réu num processo ali na frente do juiz a última coisa que ele vai fazer é reclamar do juiz e segundo que na frente do juiz eles estão nervosos, ansiosos, preocupados. Ninguém está ali pra reclamar do juiz [...]. Pobre, réu num processo, chega ali e vai reclamar do juiz, isso não existe. Contudo, ressalta a diferença entre a existência do símbolo religioso no gabinete do juiz, e em uma sala de julgamento: Então tem essa distinção muito nítida, por exemplo, tu chega numa repartição e vê um indivíduo com um crucifixo, tu não compartilha aquele espaço. Agora tu chega numa repartição e tem um crucifixo na parede, daí não, isso é diferente, e isso compromete a isenção. O funcionário do Estado ter uma religião é uma coisa, outra coisa é o Estado se posicionar. O referido magistrado não aceita o argumento de que a existência de símbolos religiosos em repartições públicas é já um costume, uma tradição. Ele alega: 128 [...] eu digo assim, mais arraigado na nossa cultura do que a escravidão. E foi base da nossa formação social, e ela teve que ser extirpada. Da mesma forma eu digo assim, nós tivemos o monopólio da Igreja Católica durante quatro séculos no Brasil, e isso a ferro e fogo, não era por adesão voluntária. Em relação à existência de feriados religiosos oficiais, porém, faz uma ressalva, afirmando que alguns feriados como o Natal perderam seu sentido religioso original; tendo sidos “aculturados”. Roberto Lorea também tem escrito textos em jornais e na internet sobre a questão da laicidade e a polêmica em torno dos símbolos religiosos presentes em ambientes estatais. Em artigo publicado na internet com o título O controle religioso do poder judiciário: o uso do crucifixo como símbolo nacional pelo STF 183 , chama a atenção para a inadequação do Supremo Tribunal Federal ostentar em seu plenário o crucifixo, tendo em vista que o Estado brasileiro não tem religião oficial. Para Lorea, nada justifica o fato de que nossa mais alta corte de justiça represente simbolicamente apenas uma religião. Além disso, assevera: [...] não deveria haver qualquer representação religiosa no espaço público do Poder judiciário. Trata-se, o STF, do Tribunal no qual serão submetidas a julgamento, em última instância, muitas dessas questões ora debatidas entre os atores sociais envolvidos no embate supramencionado, campo no qual a Igreja Católica tem ocupado um lugar de destaque (2003, p.4). Lorea refere-se nessa passagem aos embates jurídicos envolvendo os direitos sexuais e reprodutivos, que vêm sendo analisados pelo STF nos últimos anos. Em outro momento, deste mesmo texto, declara que de acordo com o artigo 13,§ 1º, da Constituição Federal do Brasil, apenas a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais, símbolos cívicos, devem representar o Estado brasileiro. Acerca dessa relação entre os símbolos nacionais e o crucifixo Lorea ainda afirma: Cabe indagar se a utilização do símbolo religioso em questão, no plenário do Supremo Tribunal Federal, ao lado, porém acima, das armas nacionais, reflete uma aliança com uma religião, ou diferentemente, se pode essa situação ser interpretada como uma colaboração de interesse público, abrigada pela exceção prevista no dispositivo constitucional [...] (2003, p. 8). Nessa passagem, ao contrário do que assevera em outros lugares, Lorea declara que a presença do crucifixo ao lado dos símbolos nacionais pode indicar o regime de cooperação recíproca entre Estado e religião previsto na carta magna de 1988. 183 Disponível 24/06/2010. em: www.brasilparatodos.org/wp-content/uploads/artigo-lorea.doc. Acesso em: 129 No artigo Por um Poder Judicário Laico: o significado do uso do crucifixo no plenário do Supremo Tribunal Federal184, também publicado na internet, Roberto Lorea argumenta que a independência do Poder Judiciário fica comprometida devido à presença do crucifixo em tribunais. Novamente ressalta que a colocação desse símbolo religioso no STF e em outros tribunais de justiça revela a aliança do Estado brasileiro com a Igreja Católica. Destaca, ainda, que o crucifixo é sobretudo um símbolo religioso que representa os católicos, não sendo assim um mero ornamento ou uma obra de arte: Conquanto se possa arrolar o crucifixo como uma obra de arte, parece evidente que uma tal destinação, mero ornamento, seria desrespeitosa aos cristãos que veem no crucifixo a imagem de Cristo pregado na cruz, com todo o simbolismo daí decorrente. Do mesmo modo, pretender que essa imagem possa estar representando religiões como o Budismo, o Judaísmo ou o Islamismo, além do Espiritismo, Religiões Afro-brasileiras, Pentecostais e Neo-pentecostais (estes se posicionam veementemente contra a utilização de qualquer objeto de adoração) dentre tantas outras, é ignorar que o crucifixo não tem representatividade senão para um grupo restrito de religiões, aquela parcela que admite imagens sacras, marcadamente a Igreja Católica (2004, p.2). Aqui o juiz gaúcho define o sentido primeiro do símbolo em discussão. Tratarse-ia, primordialmente, de um símbolo religioso ligado à tradição católica. É este, em seu entendimento, um símbolo sectário, particularista, que não é reconhecido por outras tradições religiosas. O magistrado Roberto Lorea volta a escrever sobre essa controvérsia em 24/09/2005 na coluna tendências e debates do Jornal Folha de São Paulo. Nesse texto declara que a exibição do crucifixo nos tribunais é inconstitucional e ilegítima. Assevera que quando o Poder Judiciário afixa o crucifixo em seus espaços acaba por aderir a um conjunto de valores que não são compartilhados por todos os brasileiros. Entende que em um Estado laico as decisões judiciais devem estar baseadas em pressupostos razoáveis e não em uma crença religiosa particular. Por fim, enfatiza o poder do símbolo em discussão: “[...] quanto menos percebido for (enquanto tal) um símbolo, maior é a sua eficácia simbólica (Folha de São Paulo, 24/09,2005)”. Sobre esse ponto é necessário fazer aqui uma breve digressão. Segundo Giumbelli (2010), a força e a “sacralidade” dos crucifixos quando expostos em recintos estatais está justamente em sua invisibilidade. Em realidade, esse objeto religioso não é notado pela maioria das pessoas que 184 Disponível em: http://magrs.net/?tag=estado-laico. Acesso em: 24/06/2010. 130 frequentam os locais onde ele é ostentado. Os crucifixos parecem “agir” quando não são vistos. Dessa maneira: [...] as demandas pela sua retirada têm necessariamente um efeito revelatório. Por outro lado, os argumentos que defendem a permanência do crucifixo são sempre reativos; ou seja, precisam ser provocados para se articularem, obrigados que são a saírem, eles também, da sua invisibilidade (Giumbelli, 2010, p.19). Os defensores da permanência dos crucifixos procuram mostrar que este objeto religioso não incomoda e não ofende ninguém, haja vista que se trataria de um mero adorno estético ou então de um símbolo que não é unicamente religioso, como será visto com mais cuidado a seguir. Essa justificativa é de algum modo sintetizada por Vattimo (2004, p.127): O crucifixo [....] se transformou em nossa sociedade num sinal quase óbvio, ao qual se presta menos atenção, que deixa subsistir a laicidade, conferindolhe apenas uma origem religiosa que se desenvolveu no sentido da secularização. É justamente com base neste seu significado, genérico mas igualmente “aberto” e possibilitador, que ele pode reinvindicar o direito de ser aceito como símbolo universal em um sociedade leiga. Em outro momento afirma Vattimo (2004, p.127): [...] os cristãos não podem ao mesmo tempo reivindicar o direito de expor o crucifixo nas escolas e assumi-lo como sinal de uma religião particular intensamente dogmática. Ou ainda: pode-se continuar a celebrar o Natal como uma festa de todos, mas não haverá sentido lamentar-se, depois, que se tornou uma festa por demais leiga, mundana, privado do seu significado originário. De maneira geral, seguindo a linha de pensamento desse autor, a ostentação do crucifixo e a celebração pública de festas religiosas cristãs somente seriam legítimas se houvesse um reconhecimento de sua dimensão não religiosa, laica. O elemento confessional, particularista e sectário, dessas manifestações simbólicas deveriam ser deixados de lado quando expressos em âmbito público. Retorno agora aos argumentos acionados pelo magistrado Roberto Lorea. No jornal eletrônico mpd Dialógico (v. 5, n.22, janeiro, 2009)185, em edição dedicada ao tema da laicidade, publicado pelo movimento Ministério Público Democrático, o magistrado, em artigo intitulado Conselho Nacional de Justiça e a Laicidade critica a decisão favorável à manutenção dos crucifixos em espaços estatais proferida pelo CNJ. Para Lorea, a postura adotada pelo CNJ “traduz inaceitável sectarismo religioso, 185 Disponível em: http://www.mpd.org.br/ArticleAction.php?action=mostrar&id=16. Acesso em: 27/06/2010. 131 incorrendo em odiosa hierarquização de credos, valorando uma religião em detrimento de outras” (2009, p.28). Em outro momento afirma: “O fato de os tribunais não serem locais de culto pode servir como premissa para revelar o acerto da retirada dos crucifixos [...]” (2009, p.29). Em linhas gerais, Roberto Lorea advoga uma postura própria do ideário liberal e republicano. De acordo com esse ideário, o espaço público e o espaço privado são campos autônomos e separados, regidos por lógicas distintas. Desse modo, a interferência da religião na arena política e jurídica é vista com desconfiança, eis que ela pode perturbar a ordem democrática e as liberdades individuais (Asad, 2003; Casanova, 1994). Em consonância com essa postura, a argumentação do magistrado gaúcho procura defender o distanciamento da esfera jurídica e estatal de qualquer vínculo com o religioso. - Carlos Rafael dos Santos Júnior O magistrado Carlos Rafael dos Santos Júnior186, representou a tese levantada pelo juiz Roberto Lorea no Congresso de 2005. Na época ele era o presidente da AJURIS (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul). Atualmente é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Carlos Rafael dos Santos Júnior187 teve formação religiosa católica em sua infância, mas define-se hoje como católico não praticante, “agnóstico talvez”. Afirma que a religião é uma força social que impede o progresso das sociedades: “Acho que a religião é conservadora em essência e, portanto, ela não contribui para avanços [...]”. Sobra o tema da laicidade, assevera que o Estado brasileiro é laico apenas formalmente: No Brasil, embora nossa constituição pela leitura seja uma constituição laica, estabeleça o Estado laico, eu tenho para mim que isto não acontece. Exatamente isto se demonstra pela simbologia que existe nos próprios órgãos públicos que representam de um modo ou outro o Estado, onde nós encontramos símbolos católicos.[...] O Estado brasileiro é laico, juridicamente é laico, culturalmente não é laico, ele é católico. 186 187 Entrevista realizada em 13 de agosto de 2009. Esse magistrado vem de uma família de políticos; seu pai, Carlos Rafael dos Santos, foi vereador em Porto Alegre. 132 Aqui Carlos Rafael dos Santos Júnior distingue o plano jurídico e constitucional, observando a existência de dispositivos laicos e o plano cultural. Nesse plano e na realidade concreta nota uma forte influência do religioso, influência que seria, sobretudo, católica. Sendo assim, o desembargador não aceita a presença de simbologia religiosa em órgãos públicos. Ademais, para esse magistrado, a presença de um símbolo religioso como o crucifixo é uma agressão aos fiéis de outras confissões religiosas. Declara, também, que o argumento de que os símbolos religiosos em repartições públicas é algo já parte de nossa cultura não se sustenta: A cultura de um Estado não laico. Claro que é cultural, eu concordo sim, é cultura, mas é a demonstração de que o Estado não é laico, inclusive ele está com seus órgãos públicos copulando com uma única religião, esse é um exemplo evidente. O Estado ao ostentar imagens religiosas como o crucifico estaria se colocando a serviço de determinada religião em detrimento de outras. Expressaria, assim, uma preferência e um privilégio por determinado credo o que atestaria sua parcialidade e, dessa forma, sua não neutralidade. Contudo, diferentemente da posição de Roberto Lorea, não acredita que a existência de determinado símbolo religioso possa influenciar uma decisão jurídica: [...] a decisão jurídica ela vai ser na minha visão, muito mais influenciada pela crença pessoal de quem decide do que pelo fato de existir um crucifixo lá numa sala de audiência. A simbologia é mais externa, os valores pessoais isto sem dúvida nenhuma influencia. Por outro lado, no que concerne aos feriados religiosos, declara que estes são mais uma expressão de que o Estado brasileiro, de fato, não é laico. Importa ao magistrado o fato de que a maioria dos feriados religiosos e dos símbolos religiosos presentes em repartições públicas sejam católicos: [...] nós não temos, por exemplo, feriado de nenhuma outra religião, somente da católica. Nós não temos o dia de agradecimento à Meca, acho que isso talvez seja uma das maiores simbologias do Estado não laico. A invocação do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 é, para o desembargador, mais uma afronta ao princípio republicano de separação entre Estado e religião, entretanto, ressalta: [...] aquele Deus eu leio como uma entidade superior, e serve para mim que aquele Deus pode ser Alá, aquele Deus poder ser Cristo. Cada um escolhe quem é aquele Deus, mas de qualquer forma nós temos que lembrar que isso é uma visão que atenderia a maioria que tem alguma crença em alguma 133 entidade superior, mas também desatenderia aqueles que não crêem na existência de uma entidade. A divindade invocada na carta magna teria um sentido ecumênico, senão mesmo inter-religioso, porém sua colocação no texto constitucional violaria a consciência dos não crentes, de ateus e agnósticos. Sua invocação, portanto, não justificaria a existência de feriados religiosos e de imagens religiosas em espaços públicos. - João Ricardo dos Santos Costa O juiz João Ricardo dos Santos Costa188 esteve no congresso de magistrados de 2005 e participou dos debates sobre a polêmica dos símbolos religiosos em órgãos públicos. Seu interesse pelo tema da laicidade surge de seu envolvimento com a questão dos Direitos Humanos e de sua própria carreira jurídica, já tendo decidido casos envolvendo a temática religiosa. Importa frisar que João Ricardo dos Santos Costa foi criado dentro do catolicismo, chegando a ser coroinha. Hoje , porém, se define como um católico não praticante. No que tange ao tema dos símbolos religiosos em ambientes do poder judiciário, o magistrado João Ricardo dos Santos Costa acredita que a presença dos mesmos exprime o poder da Igreja Católica sobre o Estado: [...] a Igreja Católica exerce um poder sobre o Estado. A existência dos símbolos é a demonstração de que a Igreja Católica ainda exerce um poder muito forte no Estado e não conseguimos conter e tirar esses crucifixos. Para a Igreja Católica, a retirada dos crucifixos significa perder esse poder sobre o Estado [...]. Para João Ricardo dos Santos Costa, a presença do crucifixo, símbolo religioso católico, pode gerar algum tipo de desconforto para alguém de outra religião: Eu acho que a pessoa que tem uma consciência religiosa e exerce essa religião conscientemente deve se sentir desconfortada diante do símbolo de outra religião, num ambiente em que suas questões estão sendo colocadas. Em um ambiente que vai ser decidido alguma coisa importante para ela, e ali tem um símbolo religioso que não expressa a convicção religiosa dela ou expressa exatamente o contrário do que ela acredita, isso pode gerar em algumas pessoas uma situação de desamparo talvez, de que se está em um ambiente que não tem a isenção necessária. 188 Entrevista realizada em 24 de março de 2009. 134 Nesse sentido, o ambiente judicial deixaria de ser neutro, a partir do momento em que exibe uma imagem religiosa específica. Porém, não concorda com a opinião de que a presença do símbolo religioso possa influenciar a decisão do magistrado: Eu não creio que isso aconteça. Acho que a questão do crucifixo é mais um simbolismo de envolvimento do Estado e de ausência crítica do Estado dessa separação entre religião e Estado. O símbolo não vai influenciar a decisão do juiz, mas a crença sim, o que influencia é a crença. Muitas vezes um juiz que é de outra religião ou de nenhuma, não se importa, não percebe que tem um símbolo religioso ali. É que nós somos criados a ter um crucifixo em todos os ambientes, na escola pública, hospitais, então só faz parte da decoração, é como se fosse um ornamento só. Com essa colocação, João Ricardo dos Santos Costa prioriza a crença pessoal do juiz em detrimento do poder do símbolo religioso; porém, destaca que este pode gerar algum tipo de constrangimento aos fiéis que não nutrem qualquer tipo de culto a essa simbologia. Há uma certa ambiguidade em sua argumentação, pois ao mesmo tempo em que enfatiza que o crucifixo pode constranger o crente de outra religião, concebe-o como mera parte da decoração quando encontrado exposto em órgãos estatais. O magistrado não aceita a ideia de se colocar ao lado do crucifixo, símbolos religiosos de outras crenças: Eu acho mais razoável não deixar nenhum símbolo, porque as religiões não são três, quatro ou cinco. Então a expressão da liberdade religiosa seria um espaço totalmente laico, que não sugerisse nenhuma manifestação religiosa. Dessa forma, para este magistrado, um espaço laico é um espaço desprovido de qualquer referência religiosa, não sendo possível para o Estado contemplar todas as religiões com a colocação de seus símbolos e objetos em espaços públicos. De acordo com o juiz João Ricardo dos Santos Costa, há ainda algum tipo de interferência da Igreja Católica no poder judiciário. Acerca disso ele traz um interessante exemplo que se refere à presença de um padre na inauguração do Fórum de Taquari, no Rio Grande do Sul, em 1995. O sacerdote católico abençoou o novo prédio público: Tu vai à inauguração de um prédio público tem um padre, não um pai de santo. Tu vê um padre abençoando a obra. [...] quando inaugurei o Fórum de Taquari o padre foi lá abençoar, inclusive o Tribunal, isso em 1995 ou 96 por aí. 135 Cabe aqui frisar que tradicionalmente são clérigos da Igreja Católica e não representantes de outras crenças religiosas que se fazem presentes nessas cerimônias.189 Nesse caso, o religioso busca sacralizar o que é concebido como secular. Por sua vez, em festas religiosas como a tradicional procissão anual de Nossa Senhora dos Navegantes, realizada em Porto Alegre, políticos e outras autoridades civis sempre estão ao lado de líderes religiosos, conforme observa Oro e Dos Anjos (2008, p36): As mais importantes autoridades civis e um certo número de políticos do Estado se fazem presente nessa procissão, e isto ocorre de longa data. Sabese, por exemplo, que Getúlio Vargas, então Presidente do Estado, em 1930, dela participou; Brizola, na condição de prefeito de Porto Alegre, em 1956, e como governador do Estado, em 1961 1962, também compareceu, bem como nos anos seguintes os governadores do estado, prefeitos da cidade e muitos outros políticos, o que ocorre até o presente. Nesse caso, o político busca aproximar-se do sagrado com a finalidade de buscar algum tipo de legitimação “superior” procurando, também, estar de acordo com o sentimento religioso popular, agradando os crentes e os clérigos. Não apenas em festas religiosas, mas também em missas, sagrações de bispos, consagrações de templos e em outros rituais religiosos, as autoridades públicas se fazem presentes (Azevedo, 1981). No que concerne aos feriados religiosos, o juiz percebe-os mais como uma manifestação cultural do que religiosa: [...] eu não sei até que ponto o feriado religioso extrapola, ele faz parte de uma outra cultura que já está se desvinculando da sua origem religiosa. Nós temos aí o Carnaval, cada vez mais se mistura um festejo popular com algumas outras influências culturais que se desvinculam da religião. O Natal e esses eventos religiosos mais significativos no Nordeste, já tem um aspecto incorporado na música, na dança, na literatura dos locais entende. [...] agora nós tivemos no Rio Grande do Sul, aqui em Porto Alegre, o dia da Consciência Negra, que foi objeto de uma ação judicial que não foi considerado um feriado religioso. O dia da Consciência Negra mostra como se confunde a questão religiosa com a questão cultural, porque ali nós estamos tratando de um movimento quilombola que marcou um período histórico e que gerou uma data simbólica que não tinha inserido apenas religiosidade, mas a luta de um povo escravizado. Então há essa mistura cultural com religião. Então sobre os feriados eu acho complicado sustentar uma separação, por esse aspecto cultural. Segundo Thales de Azevedo (1981, p.116): “Uma velha tradição explica que o Estado prestigie e partilhe da celebrações litúrgicas da Igreja e que se valha desses mesmos ritos para a solenização de atos oficiais. Os regimes de união e amalgamação com a Igreja durante o período colonial, sob o padroado pontifício, e no Império, debaixo do padroado real e regalista, estabeleceram a norma da celebração religiosa de datas e eventos governamentais, dado que o Estado não tinha rituais seculares próprios. Era por meio de missas solenes, Te Deums, procissões, bênçãos, exéquias com encomendações e missas fúnebres que se exaltava a significação de datas cívicas, de aniversários, nascimentos, casamentos ou falecimentos de figuras da realeza, de vitórias nas guerras e revoluções, de posses de governos e bispos... De tal maneira se imbuiu o Estado desse costume que, mesmo secularizado, no regime republicano continua a proceder de maneira parecida”. 189 136 Destarte, João Ricardo dos Santos Costa diferencia os feriados religiosos dos símbolos religiosos. Os primeiros são vistos como detentores de uma dimensão mais cultural do que religiosa. O cultural, no caso dos feriados religiosos, parece englobar e preponderar sobre o religioso, ao contrário do que ocorre na questão dos símbolos religiosos em ambientes estatais, em que o sentido religioso teria primazia. Por fim, o magistrado destaca o aspecto conservador das religiões, principalmente das denominações pentecostais: Eu vejo a religião como eu vejo a sociedade, têm religiões que são mais permissivas outras são mais enérgicas. Em alguns casos a religião opera dentro da sociedade como fator de retrocesso em matéria de avanços. Na questão do casamento, por exemplo, o próprio judiciário avançou bastante no reconhecimento da união homoafetiva, da paternidade socioafetiva, na abolição do princípio da culpa na ruptura da sociedade conjugal. Todos esses avanços acabam sendo reprimidos pelo fundamentalismo religioso que vem nascendo principalmente nas grandes massas. A religião, principalmente o que a gente tem observado nas pentecostais tem trazido de volta essa questão de não admitir o divórcio, recriminar a pessoa divorciada. É uma coisa que a própria Igreja Católica já não estava mais dando bola pra isso. Isso é um fator de conservadorismo muito grande na sociedade que ressurge. É, assim, no campo da moralidade sexual privada, em que se acentuariam as posturas conservadoras de determinados grupos religiosos. Essas organizações obstaculizariam importantes conquistas no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. - Gliberto Schäfer O juiz Gilberto Schäfer190 atua na Comarca de Guaíba, cidade localizada na grande Porto Alegre. Schäfer é mestre e doutorando em Direito Público pela UFRGS, ministra aulas de Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado em uma faculdade particular de Porto Alegre. É um interessado e estudioso das relações entre Estado, Direito e religião. Para ele, a religião tem uma dimensão pública: “ela não é só um ato privado”. Nesse sentido, em sua visão, o Estado laico não pode deixar totalmente de lado o aspecto religioso: [...] esse Estado laico é permeado por diversas manifestações culturais, e a religião não deixa de ser uma manifestação cultural do povo, e ela permeia simbolicamente o próprio Estado, desde pequenas questões que ninguém questiona, por exemplo, feriados e dias santos. O Natal é uma festa eminentemente cristã, e é o grande feriado do ocidente. É evidente que as outras culturas acabaram também dando significados diversos, etc. Mas como uma manifestação cultural, o Estado alberga e dá destaque pra isso[...]. 190 Entrevista realizada em 23 de junho de 2009. 137 Aqui o religioso é concebido como parte da cultura, como um elemento da vida social, devendo então o Estado reconhecer e abrir-se a esse tipo de manifestação. Entretanto, o magistrado de Guaíba não consente com a presença de símbolos religiosos em repartições públicas: Nesse tema eu tenho uma visão simples. Eu acho que os espaços públicos não deveriam ter qualquer símbolo religioso. Uma das primeiras comarcas que eu fui atuar tinha uma grande cruz na sala de audiência, em Cerro Largo. Eu até sabia que tinha cruz lá, sei que nos lugares que atuei sempre tinha uma cruz. Qual era a minha postura? Eu não retirei aquela cruz, embora não gostasse dela ali. Para Schäfer, a existência de símbolos religiosos em ambientes do poder judiciário, como uma vara judicial, lhe causa algum incômodo, pois acredita que esse não é um espaço adequado para a permanência de imagens e objetos religiosos. Contudo, não vê nenhum impedimento para que o juiz, em seu gabinete particular, ostente qualquer simbologia: [...] eu não veria problema nenhum que em seu gabinete, que é um lugar que embora público é um lugar público reservado, o magistrado ter o símbolo que quiser. Se quiser ter a foto do Che Guevara, se quiser ter a foto de Jesus Cristo, que tenha ou que não apele e que utiliza um pequeno símbolo do Che Guevara ou Jesus Cristo, eu até acho que isso representa uma expressão individual [...]. O porte de símbolos religiosos e outros objetos pelos indivíduos que exercem uma função pública tende a ser visto como uma expressão de sua individualidade e como uma consequência do princípio da liberdade religiosa, enquanto que a colocação de imagens religiosas em espaços estatais é concebida como algo que se opõe aos preceitos de um Estado secular. Em realidade, pode-se notar a recorrência desse argumento que distingue entre a legitimidade da afixação de símbolos religiosos nos gabinetes privativos dos juízes e a ilegalidade da existência destes mesmos símbolos quando expostos em uma sala de julgamento. Os gabinetes também são locais públicos; no entanto, são lugares públicos privativos, ou seja, não são acessíveis ao grande público, conforme observa Sarmento (2008, p.197): Embora estes locais também pertençam ao Estado, neles há uma identificação muito mais direta e pessoal entre o espaço físico e a autoridade que o ocupa, de forma a diluir a associação simbólica entre os objetos que o guarnecem e o Estado. Daí porque, parece a princípio ser mais aceitável a presença de um símbolo religioso no gabinete de um juiz, ao lado de outros objetos de cunho pessoal, do que, por exemplo, numa sala de audiência. 138 Diferentemente da posição de Lorea, o juiz Gilberto Schäfer não percebe a presença do crucifixo em tribunais como uma expressão de uma aliança simbólica entre o Estado brasileiro e a religião católica: [...] aliança seria uma palavra muito forte. Eu acho que existem algumas pessoas dentro do judiciário que tem uma ligação afetiva com a religião e que querem expressar isso. É essa a questão, não se trata de uma aliança em hipótese alguma. Interessante sublinhar que o magistrado de Guaíba estudou em colégio de padres, um semi-internato católico, durante sete anos. Seus pais são católicos praticantes. Atualmente percebe-se como um agnóstico. Apesar disso, Schäfer, reconhece na religião aspectos positivos: Eu às vezes penso que não se precisaria de uma religião, que efetivamente não há necessidade, mas as pessoas se reúnem ali e etc. E o fato de estar ali, você não pode fazer um julgamento de que aquelas pessoas estão equivocadas ou completamente equivocadas. Elas buscam vivenciar valores, e aí está à força delas. Elas proporcionam um sentimento de irmandade, de fraternidade muito grande, portanto um sentimento de comunidade, de grupo. No pós-modernismo que nós vivemos ainda a religião é um fator de agregação bastante forte. A religião transmitiria, dessa forma, importantes valores sociais, cultivando o espírito comunitário e a solidariedade. Seria, assim, uma barreira ao individualismo da modernidade. Em relação à invocação do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, o magistrado Gilberto Schäfer não vê nisso uma violação ao princípio da laicidade. Porém, afirma que essa expressão não precisaria estar presente em nossa Carta Magna: [...] qual foi a intenção do constituinte quando ele colocou ali? Ele estava dizendo que ele fez a constituição com os melhores propósitos, só isso. Os que acreditavam em Deus evocaram a presença daquele ser que estava ali porque acharam que foi um bom propósito. Quem não acredita, vai dizer que é uma palavra vazia de conteúdos, então ela realmente não tem conteúdo normativo nenhum. Mas claro, eu acho que certamente seria uma daquelas palavras dispensáveis no texto, não haveria necessidade de estar no texto. [...] Mas aquele Deus que esta ali não é um Deus específico, não é um Deus A, B ou C. Eu acho que até poderia ser lido como uma força da natureza, até poderia ser desdeificado, então eu não veria um problema. O que estou vendo com isso? Que isso não pode ser argumento pra dizer que não há separação entre Igreja e Estado [...]. - Maria Emília Corrêa da Costa Maria Emília Corrêa da Costa191 trabalha como procuradora federal em Porto Alegre. Em 2005 defendeu dissertação de mestrado em Direito, na Pontifícia 191 Entrevista realizada em 5 de dezembro de 2009. 139 Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), sobre o tema da liberdade religiosa, intitulada Liberdade Religiosa como Direito Fundamental. A procuradora federal participa das reuniões do grupo Liberdades Laicas Brasil, do qual também faz parte o juiz Roberto Lorea. No seu entendimento, a laicidade estatal no Brasil não é ainda um fato concreto, mas algo em construção: Eu acho que a laicidade, como a democracia, são elementos em construção. O Estado brasileiro é democrático, ele é em muitas coisas e em outras não, nós estamos construindo a democracia. Ele é laico? Em tese ele é, isso a constituição diz, mas nós estamos construindo uma ideia de laicidade [...]. A procuradora não aceita a existência de símbolos e imagens de qualquer confissão religiosa em prédios públicos: [...] em prédios públicos, na Administração Pública, no Poder Judiciário, Legislativo, Executivo, não pode ter símbolo religioso. Não é aquela questão que as pessoas dizem, tem que ter todos os símbolos, tem uma cruz, tem que ter uma estrela de Davi e uma lua crescente simbolizando os muçulmanos, não tem que ter nenhum, porque ali é um prédio público, ele não se presta a esse tipo de manifestação [...]. [...] quanto mais o símbolo for discreto, eu acho que é pior, porque ele é muito subliminar, o símbolo muito expresso até agride num primeiro momento, e a pessoa toma uma posição a respeito daquilo, agora um símbolo mais discreto faz parte do cenário, ele praticamente se amolda. Então o juiz está fazendo uma audiência e tem uma cruz discreta ao lado, e aquilo faz parte daquele cenário, eu acho que é muito mais, passa uma ideia, ainda que seja subliminar, muito discreta, mas daquela carga religiosa que está ali. Para Maria Emilia Corrêa da Costa, a presença de uma determinada simbologia religiosa pode ser ofensiva às pessoas que seguem outras crenças, devendo então o Estado, nos seus prédios e ambientes, expressar uma postura de total neutralidade: A questão religiosa não faz parte daquele cenário enquanto motivação para decisões judiciais, motivação para qualquer tipo de lei. Ela não pertence aquele espaço público, estatal. Então na verdade qualquer um que vai ser julgado seja um católico, um evangélico, que vai entrar numa audiência que tenha aqueles símbolos das religiões afro, assim como alguém que seja afro ou que seja judeu praticante, e tenha ali uma cruz, que imagem que aquilo passa, que ideia, de que o Estado de alguma forma está mesclado com a religião, e que a religião vai fazer parte das decisões que vão ser ali tomadas. Então, na verdade qualquer símbolo dentro desse espaço público, estatal, acaba sendo ofensivo, é ofensivo ao próprio Estado, que é um Estado laico, e que tem o dever de zelar por todas as religiões, se ele tem o dever de zelar pela liberdade religiosa de todos, então ele não pode se associar simbolicamente a uma só seja qual for. Óbvio que a gente tem uma cultura religiosa ligada ao cristianismo e a religião católica, uma cruz nos agride menos, agora se tivesse um orixá provavelmente ia agredir mais [...]. 140 Com essa colocação, ao mesmo tempo em que chama a atenção para a base cristã e católica de nossa cultura, procura diferenciar a esfera jurídica da esfera religiosa. O direito e a religião formariam assim domínios particulares que não poderiam confundir-se e imbricar-se. Igualmente, caberia ao Estado não mesclar-se com o religioso. Nesse sentido, existe certo receio da intrusão de referências religiosas nos espaços sociais vistos e idealizados como seculares. Além disso, pode-se perceber nessa fala, como em outras aqui expostas, uma preocupação por parte de alguns desses agentes em definir o religioso e delimitá-lo. A própria procuradora declara que sente um desconforto quando percebe a existência de elementos religiosos em espaços do poder judiciário: Causa-me uma estranheza, um desagrado. Eu ter que fazer uma sessão com aquela cruz e eu sou religiosa, assim no sentido que eu acredito em Deus, então eu até posso falar, me desagrada muito. Eu fui substituir uma procuradora há uns anos atrás numa posse em um Tribunal Militar. Um ou dois integrantes desta corte fizeram uma oração, pediam as luzes do Espírito Santo, outros dois pediram ajuda ao Supremo Arquiteto do Universo, eram maçons, veio o capelão, fez uma oração, tudo isso na cerimônia pública. Porém, a procuradora não concebe como negativo o porte de um determinado símbolo religioso por parte do agente público: Nos gabinetes, usar uma burca, um véu ou uma cruz, não estou atendendo o público, na minha sala não faço atendimento ao público. Até acho que nesses espaços restritos as pessoas até podem, porque as pessoas não podem ser proibidas de expressar sua opção religiosa. Maria Emília Corrêa da Costa relata um interessante caso envolvendo a colocação de um presépio, símbolo religioso cristão, no prédio da Procuradoria em Porto Alegre: No ano passado os funcionários montaram um presépio no salão da Procuradoria. O procurador-chefe até pediu para falar com a funcionária para ver o que podia fazer ou não, uma boa parte achou ótimo e outros funcionários e procuradores não acharam bom, feria essa questão da laicidade. Eu particularmente achava que não deveria ter, e conversei, expliquei para os funcionários. Só que no fim das contas a gente achou questão de bom senso que tinha que manter, já que uma vez foi colocado lá, e retirar naquele momento daria uma ênfase maior [...]. [...] o procurador chefe, pelo que eu sei, está pensando em dar um espaço, agora com a questão do presépio, na data dos feriados religiosos judeus, tudo bem, é o entendimento dele, eu acho que não tinha que colocar em nenhuma hipótese, nenhum símbolo [...] acho que não é aqui o espaço. Acerca disso, cabe aqui frisar que a justiça dos Estados Unidos tem decidido nas últimas décadas casos envolvendo a colocação de presépios em locais públicos. Em 1984, a Suprema Corte desse país decidiu, na querela Lynch v. Donelly, pela 141 constitucionalidade da exibição da cena da natividade em um parque localizado na cidade de Pawtucket, localizado no Estado de Rhode Island. Importa destacar que junto com o presépio havia outros símbolos não confessionais, como a árvore de Natal, as renas, centenas de luzes coloridas, elefantes, ursos e outras decorações associadas com o Natal. Os juízes da Suprema Corte argumentaram que a colocação desse símbolo tinha, sobretudo, um propósito secular. A exibição do presépio e dos símbolos natalinos “deveria ser percebida sob a ótica artística, como uma amostra de arte sacra, e também sob a ótica econômica, por estimular o comércio [...]” (Pinheiro, 2008, p.44). Destarte, não se configuraria o favorecimento do Estado a uma particular crença religiosa. Entretanto, em outra decisão, versando sobre a colocação de presépio nas escadarias de uma corte de justiça, a Suprema Corte entendeu que a presença desse símbolo violaria a separação entre Estado e religião. O Estado, ao ostentar em um dos seus ambientes centrais tal imagem religiosa estaria endossando uma determinada mensagem religiosa, favorecendo um credo específico. Em contraste com o caso anterior não havia junto ao presépio símbolos “seculares”. O sentido religioso do símbolo, nesse caso, teria primazia, sendo, também, religioso o efeito primário do símbolo sobre determinado observador (Collen, 1995). O conteúdo religioso do símbolo não é esmaecido, pois não é circundado por outras imagens ou objetos. Ressalto que a procuradora federal Maria Emília Corrêa da Costa teve formação religiosa católica, estudou em colégio católico e seus pais são católicos praticantes. A procuradora federal acredita que a religião deve ter garantida juridicamente seu espaço na vida social: A religião faz parte, ela é um dos elementos. Ela já foi o elemento formador da maioria das opiniões, das ideias e tal, hoje ela é um dos, e como sendo um dos, ela dever ter um espaço mais amplo possível, desde que não fira o direito dos outros. Então ela tem que ter esse espaço, às vezes às pessoas dizem que absurdo esses evangélicos na televisão e tal, tem muito preconceito, eles estão exercendo a liberdade religiosa deles, dentro do espaço que é social [...]. Todavia, manifesta seu descontentamento com a presença de feriados religiosos em nosso país, mas acredita que é bastante improvável a sua eliminação de nosso calendário. Da mesma forma, contesta a invocação do nome de Deus na Constituição Federal de 1988: O fato de eles terem colocado ali é como se fosse assim uma exaltação, ele não tem força normativa nenhuma [...]. Eu acho que não tinha que ter colocado. Eu como constituinte posso estar atuando sob a proteção de Deus, 142 eu posso rezar para que o Espírito Santo me ilumine para tomar boas decisões, agora eu como constituinte estou fazendo a Constituição Brasileira, quando no texto da constituição diz que o Estado é laico, eu não poderia colocar. Não sei o que se passou, acho que é até uma coisa meio supersticiosa de se colocar ali. Mais uma vez a procuradora federal estabelece uma distinção entre o funcionário público, o agente estatal, ter uma crença e expressá-la e o Estado preconizar uma concepção religiosa. A ilegalidade e a ilegitimidade estão presentes quando o Estado, abandonando sua atitude laica e secular, identifica-se com uma visão religiosa de mundo. - Suzana Viegas A magistrada Suzana Viegas192, que trabalha na Comarca de Pelotas, representou formalmente, no congresso de 2005, a tese que defendia a manutenção de símbolos religiosos em espaços do poder judiciário. Para ela, isto já é parte de nossa tradição, um traço de nossa cultura. Nesse sentido, a magistrada de Pelotas expressa uma concepção um pouco diferenciada acerca da laicidade estatal: [...] que um dos itens que coloquei naquele congresso, em relação à tese que pretendia a proibição do uso do símbolo religioso é de que nós temos que ter um pouco de coerência, que nós temos já consagrados os feriados religiosos, temos que ser coerentes se o Estado é laico, então nos teríamos que abolir os feriados, só isso, é uma questão de coerência. [...] outro item que coloquei lá no congresso, é que o fato de não possuir o símbolo, não significa que o juiz não tenha alguma vinculação. Pode não ter o crucifixo no ambiente de trabalho, e ele tem o entendimento de acordo com a fé que ele professa, qualquer que seja, cristã ou não, então o símbolo em si não é tão importante [...]. A magistrada de Pelotas parece equiparar os símbolos religiosos em espaços públicos com os feriados religiosos oficiais. A existência de feriados religiosos justificaria a afixação de imagens religiosas em repartições públicas. A presença dos símbolos e feriados religiosos não colocaria em questão a laicidade do Estado brasileiro. Suzana Viegas revela que durante o congresso um magistrado chegou a levantar a tese de proibir o uso pessoal de qualquer símbolo religioso. Contudo, essa posição foi duramente rechaçada como uma afronta à liberdade de expressão religiosa. Por sua vez, a juíza Suzana Viegas não aceita a posição de que a presença do crucifixo é uma forma de constrangimento e discriminação para com os seguidores de outras religiões. Declara que sempre teve em sua sala de julgamento um crucifixo e que nunca houve qualquer 192 Entrevista realizada em 2 de setembro de 2009. 143 tipo de reclamação por conta disso. Além disso, para a juíza a imagem do Cristo crucificado em uma vara judicial tem um efeito salutar: [...] então eu imagino assim, a pessoa chega a um ambiente, digamos para ser julgado, nós tínhamos no salão do Júri, lá nós tínhamos um crucifixo muito grande, foi sempre uma tradição ter, e a pessoa chega ali e tem a sensação de que o juiz não se sentirá onipotente. Isso eu acredito que passa também subliminarmente, então a pessoa olha, vê aquele símbolo e pode receber esse tipo de mensagem. O juiz assim imagina que ele não é o rei do mundo. Nessa colocação a magistrada ressalta a agência do símbolo, sua capacidade de atenuar a suposta onipotência do julgador. Ademais, leva em consideração o local em que o símbolo é afixado. A imagem do Cristo crucificado é avaliada em seu contexto. Desse modo, seu significado relaciona-se com o lugar em que se encontra (Sullivan, 2010). Semelhante argumento é utilizado pela magistrada para defender a inclusão do nome de Deus na Constituição Federal de 1988: Eu acredito que seja dentro daquele espírito que te falei que se constata quando as pessoas encontram um símbolo religioso, de que não somos onipotentes. Acho que está dentro desse princípio, que o homem reconhece que existe ao lado um valor maior do que ele, ele não se sente como um deus, ele respeita algo maior [...]. Importante destacar que a juíza Suzana Viegas é católica praticante. Durante a entrevista portava um colar com uma cruz prateada, e em sua mesa de trabalho havia uma pequena imagem de Nossa Senhora. Em sua sala de audiência há um crucifixo. A juíza Suzana Viegas ressalta que um dos grandes males de nosso tempo é o enfraquecimento dos valores religiosos: “Olha eu acho que o religioso, no sentido de religioso como relação com Deus, de respeito às pessoas, deveria haver mais, porque nas culturas orientais, eles têm muito presente isso, a questão do desapego”. No entendimento da magistrada, as religiões abrigariam valores humanistas que poderiam ajudar a frear o tecnicismo e o individualismo presentes em nosso tempo. Sendo assim, para a magistrada de Pelotas, a religião deveria ter um maior espaço e influência na vida pública, servindo como um princípio norteador para o comportamento moral e para a ação política. - Daniel Berthold 144 O juiz Daniel Berthold193, que atua na Comarca de Rio Pardo, foi um dos magistrados que se manifestou fortemente pela manutenção de símbolos religiosos em repartições do poder judiciário. Ele chegou a elaborar um texto, apresentado no congresso, sobre esta questão. Obtive com ele esse texto, que procura apresentar as inconveniências e contradições da proposta de Lorea. Destaco brevemente aqui algumas passagens. Em um determinado momento de seu arrazoado Berthold expressa a inconveniência de retirar o crucifixo quando o país atravessa uma grave crise ética e institucional: A aprovação da proposta é inconveniente em face do grave momento de crise ético-institucional que vivemos. Quando vemos, diariamente, acusações de envolvimento de altas autoridade com corrupção e uso do poder em benefício próprio (infelizmente, até mesmo do Poder Judiciário, incluindo membros das mais altas cortes do País), voltaremos nossa preocupação para, como disse o Presidente do Tribunal de Justiça do nosso Estado, o que está pendurado nas paredes dos edifícios? Certamente se a proposta for aprovada, o Congresso Estadual será visto, pela mídia, como o encontro em que os magistrados resolveram retirar o crucifixo, nada mais. Busca, assim, com essa assertiva desqualificar a proposta apresentada pelo magistrado Roberto Lorea, declarando que se trata de algo sem maior importância. Outro aspecto levantado por Berthold nesse texto sugere, que tal proposta gerará um desnecessário atrito com a Igreja Católica: Decidir pela retirada dos crucifixos, certamente, gerará atrito com a Igreja Católica. Todos têm amplo direito de ter qualquer conceito em relação à Instituição mencionada, mas não podemos negar duas coisas: ela tem imenso poder (inclusive de comunicação) e, em muitos assuntos, é aliada do Poder Judiciário, participa dos nossos esforços em prol de uma vida melhor. Destaca com esse argumento o poder político da Igreja Católica, vendo nisto uma das razões para não se entrar em desacordo com essa organização religiosa. Percebe-a, ainda, como parceira e não como adversária do Poder Judiciário. Além disso, em determinada passagem o juiz de Rio Pardo afirma que a retirada dos crucifixos seria um ato de discriminação contra os católicos: A retirada dos crucifixos é uma discriminação contra a Igreja Católica ou contra os que consideram que tais objetos são símbolos sagrados. Não ouvi ninguém propondo, por exemplo, que se altere a denominação do nosso sistema informatizado por ele se chamar Themis (uma deusa da mitologia grega), o que poderia, na mesma linha de raciocínio da tese ora enfocada, melindrar os que não acreditam na mitologia grega, que poderiam sentir-se perseguidos porque, em vez de serem julgados por um cristão, um espírita, um adepto do judaísmo, terão de ser julgados [...] por um sistema que tem o nome de uma deusa - na acepção cristã um ídolo -. 193 Entrevista realizada em 10 de junho de 2009. 145 Derradeiramente, Berthold defende a permanência de símbolos religiosos em repartições públicas com base no fato de que nossa Carta Magna foi promulgada em nome de Deus. Na entrevista, esse magistrado ressaltou que a retirada dos símbolos religiosos é parte de um projeto maior que visa erradicar a presença da religião na vida pública: A constituição proíbe a aliança ou a subordinação entre a Igreja e o Estado, mas eu penso também que nós vivemos, nós atuamos dentro de um contexto geográfico e histórico. Então nós não podemos romper isso de uma forma absoluta, pois, se nós fizéssemos isso em relação à religião católica, nós teríamos que fazer em relação, também, a outras religiões e segundo fazer isso em relação a outros temas. Por exemplo, se nós não reverenciamos símbolos que foram importantes para a história da população, também poderia se questionar até situações de municípios que tem nomes de personalidades. Então também teria que rever porque aquela pessoa que dá o nome ao município ou a uma determinada localidade [...]. E outro aspecto é que a pura e simples retirada dos símbolos religiosos seria apenas a ponta do iceberg, pois, nós temos três estados da federação com nomes relacionados com a fé cristã ou com a Igreja Católica: Santa Catarina, Espírito Santo e São Paulo, então nós teremos também que mudar os nomes desses estados, começar a trabalhar no Natal e Sexta-feira Santa e nos demais dias [...]. Importa destacar que o juiz Berthold não é católico, mas protestante. Ele pertence à Igreja Evangélica Congregacional do Brasil, que não cultua imagens. Sua religião utiliza a cruz desnuda, sem a imagem de Cristo, mas não venera o crucifixo, ou seja, a imagem de Cristo crucificado. Para Berthold, a presença do crucifixo não influencia a decisão do juiz, e como exemplo, para apoiar seu argumento, traz à tona o julgamento sobre o sacrifício de animais por parte de seguidores de religiões afro-brasileiras: [...] porque eu acredito sinceramente que ninguém hoje julgue uma causa ou julgue uma pessoa porque exista ou não exista um crucifixo na sala onde ela está. Uma das coisas que tinha acontecido por aquela época era o julgamento pelo Tribunal de Justiça sobre uma Lei Estadual que proibia ou dificultava o sacrifício de animais nos rituais das religiões afro-brasileiras, e alguém até comentou isso, como eles iriam se sentir se o Tribunal julgar a causa deles com um crucifixo. Mas nenhum desembargador julgou pelo menos de forma aberta, declarada nesse sentido e certamente também nem de forma implícita, tanto é verdade que a decisão acabou sendo favorável as questões afrobrasileiras. Ou seja, o crucifixo, vamos dizer assim, não impediu que se tomasse uma decisão favorável a outra crença. E um outro aspecto é que a simbologia não tem uma imposição, nós não temos no Brasil, por exemplo, a obrigação das testemunhas jurarem sobre a Bíblia, elas não precisam prometer em nome de Deus que vão dizer a verdade, então não há uma agressão a consciência das pessoas. Aquelas que não quiserem ou que não sentirem reverência por esses símbolos não precisam se curvar diante deles. 146 O magistrado de Rio Pardo entende que o símbolo religioso presente em um tribunal de justiça, ou em um hospital pode servir como um amparo espiritual para o indivíduo: Os fóruns são lugares em que as pessoas procuram ter os seus anseios de justiça atendidos, mas certamente as pessoas se sentem mais fragilizadas e mais necessitadas de um amparo espiritual. Do meu ponto de vista particular, o recurso deveria ser a Cristo, mas as pessoas têm diversos entendimentos, diversas formas de religião e de buscar a paz espiritual. Parece-me que em hospitais seja um ponto bem importante que as pessoas tenham um local para recorrer, para se fortalecer, capelas ou mesmo imagens nas paredes, pelos corredores, ou algo assim. Acho que isso é importante principalmente para mostrar que as pessoas também são acolhidas do ponto de vista espiritual. Acerca dessa afirmativa vale a pena aqui chamar a atenção para a observação do historiador Peter Burke de que as imagens religiosas católicas tiveram ao longo da história um importante papel no consolo aos doentes, moribundos e aqueles que seriam executados: Na Roma do século 16, por exemplo, era o dever dos irmãos leigos da Arquifraternidade de São Giovanni Decollato [...] acompanhar criminosos ao local de execução, mostrando-lhe pequenas pinturas da Crucificação ou da retirada de Cristo na cruz. A prática foi descrita “como uma espécie de narcótico visual para entorpecer o medo e a dor do criminoso condenado durante sua terrível caminhada ao cadafalso”. Também é importante enfatizar que a imagem encorajava o condenado a identificar-se com Cristo e seus sofrimentos (Burke, 2004, p. 64). O juiz Berthold acredita que a religião, mais particularmente o cristianismo no Brasil, deveria fundamentar a vida social: Como cristão, eu penso que a fundamentação da sociedade deve ser vinculada à palavra de Deus, ao mandamento de Cristo [...]. Há uma diferença bastante clara entre o ocidente, pelo que se noticia, eu conheço só o Brasil então é só por noticiário mesmo a observação, mas, por exemplo, os muçulmanos, hindus e outros, eles têm uma vinculação muito maior da sua vida social com a vida religiosa, enquanto que no ocidente isso é algo odioso ou errado. Então as pessoas procuram afastar muito essa questão, a minha vida espiritual é uma coisa e a minha vida social é outra bem diferente [...]. Nessa afirmativa exprime uma postura de valorização da dimensão religiosa e, dessa forma, de rechaço à tese de que a religião deve ser assunto meramente privado. A distinção entre o espaço público e a esfera privada e entre a religião e a demais esferas da vida social é criticada por esse magistrado. Nesse sentido, em seu entendimento, a religião cumpre um importante papel social de promoção da paz, da harmonia e da solidariedade, devendo por consequência ocupar um papel mais central nas sociedades 147 modernas ocidentais, percebidas pelo magistrado como distanciadas do elemento espiritual. A respeito da invocação do nome de Deus na Carta Magna de 1988, o magistrado Berthold percebe nisso a tentativa dos parlamentares de demonstrarem a importância de Deus para a nação: “Parece que se a maioria dos parlamentares, representantes em tese da maioria da população professa a fé cristã, é uma forma de demonstrar que Deus ainda é importante para a nação”. Histórico e cultural é, também, para o juiz de Rio Pardo, o fato da existência dos feriados religiosos em nosso calendário. Destaca, ainda, a capacidade do povo brasileiro de conviver com a diversidade de manifestações religiosas: Eu penso que a existência de símbolos religiosos e feriados religiosos se inserem dentro de um contexto, dentro de uma população no Brasil que consegue se relacionar bem com aqueles que têm fé diferente da sua. Aqui mesmo, isso me parece um exemplo bem significativo, sendo o feriado municipal de Nossa Senhora dos Navegantes, as religiões afro-brasileiras celebram Iemanjá nesse mesmo dia, e isso não acontece só aqui. Existem outros lugares do estado que isso também acontece e não fazem uma data diferente para si e aproveitam a própria data. Às vezes a festividade acaba sendo em conjunto ou uma sucede a outra e aqui até o próprio corpo de bombeiros cede carro para levar a imagem de uma ou de outra das procissões, seja da católica Nossa Senhora dos Navegantes, seja de Iemanjá. Então isso parece que seja um bom exemplo [...]. Parece-me que a existência de feriados vinculados à Igreja Católica, não implica que o poder público daquele município seja vinculado ou subordinado à Igreja Católica, pois, se assim fosse, no caso de Rio Pardo, certamente a Prefeitura não poderia colaborar com a festa de Iemanjá, menos ainda no dia de Nossa Senhora dos Navegantes por que daí seria um sacrilégio. - Carlos Francisco Gross O juiz Carlos Francisco Gross194 atua em uma vara penal do Fórum Central de Porto Alegre. É um rígido defensor da presença de símbolos religiosos em espaços públicos. Católico praticante, Gross percebe uma “tendência conspiratória na vida moderna que se volta justamente sobre essa presença cristã”, entretanto, no seu parecer essa trama contrária à religião cristã não é planejada e consciente: “[...] eu vejo como uma conspiração hipócrita e uma conspiração que não vê as consequências do que está sendo feito, são ações inconsequentes como essa relacionada aos crucifixos”. 194 Entrevista realizada em 13 de agosto de 2009. 148 Para esse magistrado o crucifixo comunica uma importante mensagem para aqueles que estão sendo julgados: [...] o crucifixo tem um significado muito importante para o cristianismo e para toda a sociedade cristã que a gente conhece. Ele permite um diálogo entre o próprio sofrimento pessoal e aquele sofrimento de Cristo na cruz [...]. Ele é usado na sala de audiência ali atrás do juiz para passar uma ideia [...] porque a situação de ser parte de um processo é uma situação muito sofrida, a pessoa que perde acha que estava no direito e a que ganha sabia que estava com direito, [...] ninguém sai daqui satisfeito, não é local da satisfação, é um local pesado, onde o sofrimento humano aparece [...].195 Gross não acredita que o crucifixo possa ofender crentes de outras religiões: Os não cristãos então também se sentem lesionados, constrangidos, quando passam na frente de uma igreja. Até onde isso é uma lesão real que eles sofrem, até onde isso é criado, porque até hoje nunca ouvi alguém dizer ‘Me sinto agredido por aquele crucifixo’ ou será que isso não representa em última análise uma instigação de que aquele próprio símbolo religioso faz para questões mal resolvidas dessa pessoa? Ver o símbolo cristão não faz ela se lembrar da distância que ela criou com Deus? Isso não faz com que ela mesma se sinta culpada dessa realidade? Porque o comportamento normal que se espera de um ateu professo é a absoluta indiferença diante de um símbolo religioso. Se essa pessoa vê um símbolo religioso e questiona, e fica agredida por isso, significa que ela não é tão ateia assim. Por outro lado, o juiz Carlos Gross entende que a existência do crucifixo em uma vara judicial em nada influencia a decisão do magistrado. Assevera que não afixa em sua sala de julgamento o crucifixo e que não será a presença desse símbolo que o auxiliará na tarefa de tomar uma determinada decisão judicial. Gross enfatiza que a cultura ocidental e boa parte dos princípios constitucionais que regem as sociedades modernas têm um fundamento cristão e que, dessa forma, a própria concepção de Estado laico deve ser relativizada: A própria ideia de Estado laico é pra mim um pouco corrompida. Se nós olharmos para a Constituição Federal, que consagra esse Estado laico, ela vem recheada de doutrina cristã, por exemplo: o fundamento de dignidade da pessoa humana, solidariedade, bem comum, isso são argumentos que foram pela primeira vez lançados e ordenados em encíclicas papais. Esses próprios fundamentos do dito Estado laico são totalmente cristãos. Interessante notar que o magistrado teve formação protestante, seus pais são luteranos, mas converteu-se ao catolicismo depois de passar por várias crenças religiosas. Para Gross, a religião transmite importantes valores morais que servem como Para Caiuby Novaes (2008, p.465): “Imagens favorecem, mais do que o texto, a introspecção, a memória, a identificação, uma mistura de pensamento e emoção. Imagens, como o próprio termo diz, envolvem, mais do que o texto descritivo, a imaginação de quem as contempla. Elementos visuais têm a capacidade de metáfora e sinestesia – relação subjetiva espontânea entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente”. 195 149 um guia para a vida dos indivíduos e das coletividades. Em consonância com essa afirmativa, Gross adverte que a invocação do nome de Deus na Constituição Federal de 1988 é mais uma expressão de nossa cultura cristã: “A invocação do nome de Deus na constituição é uma decorrência da sociedade cristã onde a gente vive. Isso nega inclusive essa dita laicidade, é mais um obstáculo a isso”. Igualmente, o juiz Carlos Gross assevera a importância de feriados religiosos: Dos feriados religiosos, eu acredito que mesmo os ateus acabam praticando, não consideram isso uma festa religiosa e acabam praticando seu Natal. Pessoalmente eu nunca vi alguém que se dissesse ateu nesse dito Estado laico reclamar de um feriado religioso, até pelo contrário são pausas nessa sociedade de consumo onde a gente está, acaba-se vivenciando um momento que vai ter outra expressão [...]. - Benedito Felipe Rauen Filho O juiz aposentado Benedito Felipe Rauen Filho, que chegou a ser vicepresidente da AJURIS, entende que a ideia de Estado laico não pode ser tomada como um princípio absoluto. Assim sendo, não percebe como uma violação à laicidade estatal a presença de símbolos religiosos nos espaços públicos: Eu acho que o Estado laico é um princípio constitucional e não só do Brasil, mas dos países ocidentais, todos eles têm isso como princípio. Eu só não o vejo como um princípio absoluto, no sentido de que se o Estado é laico, o agente também deva ser na exteriorização da sua crença, eu acho que é liberdade de expressão, pensamento e concepção religiosa, tem que se conviver. É claro que o agente não pode decidir, agir e executar suas funções estatais com base na sua formação religiosa, isso não. Agora o fato de ele ter no seu gabinete um crucifixo, uma estrela de Davi, lua crescente, seja lá qual for o símbolo, eu acho que não há problema nenhum nisso [...]. Rauen Filho acredita que a existência de símbolos como o crucifixo em varas judiciais já é parte de nossa tradição. Porém, faz uma interessante ressalva: Desde que seja usado discretamente, com proporcionalidade, que não agrida o cidadão que vai usar desse serviço público. Por exemplo, numa sala de audiência um pequeno crucifixo eu não vejo problema, uma pequena estrela de Davi, não vejo problema, agora algo assim desproporcional, agressivo, daí não pode. Como se pode notar, importa para Rauen Filho a discrição e a proporcionalidade do objeto ou imagem religiosa utilizada, o que contrasta com a opinião do juiz Roberto Lorea e da procuradora Maria Emília Corrêa da Costa, que asseveram que quanto mais discreto o símbolo maior sua eficácia simbólica e sua capacidade de influenciar subliminarmente os julgados e o julgador. Além disso, o magistrado aposentado compartilha a ideia de que nas salas de audiência não haja símbolos religiosos, mas não aceita a sua proibição nos gabinetes particulares de juízes e promotores: 150 Se fosse avançar na individualidade de cada agente político ou de cada agente público acho que seria uma intolerância. Ressalvo que aceito que as salas de audiência, as salas de seções, não tenham símbolo religioso. Mas eu acho que os gabinetes dos juízes, do promotor, em sua lapela, assim como ele pode ter um símbolo da sua associação, da maçonaria, ele pode ter da sua religião. Em fevereiro de 2009, Rauen Filho publicou um pequeno artigo no site Judiciário e Sociedade196 contestando a decisão do novo presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Desembargador Luiz Zveiter197, de retirar o crucifixo que existia na sala do órgão especial daquele tribunal, e de desativar a capela católica que ficava no andar da presidência; nesse andar foi criado um espaço ecumênico. No artigo Rauen Filho qualifica o ato de Zveiter como intolerante, declarando ainda: Se ninguém pode ser obrigado a usar símbolos religiosos, sejam eles cristãos, afros, budistas, islamitas, judeus ou quaisquer outros, sem dúvida também ninguém pode ser proibido de usá-los em seu local de trabalho como forma de expressar sua crença religiosa, embora deva fazê-lo de forma discreta e de modo a não agredir aos que pensam diversamente. Proibir o uso é evidente agressão a direito fundamental e à dignidade da pessoa, agravada pelo fato de partir de alguém que deveria ser um dos primeiros defensores de tais direitos198. Segundo Rauen Filho, o artigo publicado gerou forte reação, tendo recebido muitos emails,alguns criticando e outros saudando seu posicionamento. O próprio desembargador Luiz Zveiter enviou um email para Rauen Filho, ao qual tive acesso, por ocasião da entrevista, assim se manifestando sobre o caso: Li com atenção seu artigo a respeito da suposta determinação de "retirar os crucifixos existentes em diversas salas daquela corte". Esclareço que não dei tal determinação. Havia uma capela ao lado da Sala de Sessão do Órgão Especial, em lugar de acesso restrito a Desembargadores e Juízes, com espaço para 15 pessoas, onde eram realizadas missas católicas coordenada pelo Desembargador Roberto Guimarães. Um grupo enorme de colegas evangélicos que faziam também suas orações teve seu espaço retirado pelo ex-Presidente Murta Ribeiro sob o pretexto de realização de obras no local. Após vencer as eleições fui procurado pelos colegas evangélicos, capitaneados pelo Desembargador Ademir Pimentel, indignados com aquela situação quando me pediram que arrumasse um local para que voltassem a praticar seus cultos. Em face disto resolvi criar um espaço ecumênico onde todos pudessem realizar suas orações em um clima de paz, harmonia e muita fé. Este local comporta 100 pessoas. Quanto ao crucifixo, existia um na Sala de Sessão do Órgão Especial, que é composto por 25 Desembargadores que professam religiões diversas. Entendi, então de colocálo neste espaço ecumênico. Não mandei retirar nada de lugar nenhum. Todos os Magistrados têm liberdade para colocar os símbolos religiosos de sua religião nas dependências de suas salas. 196 Disponível em: http://magrs.net/?p=1807#more-1807. Acesso em 20/10/2009. 197 O desembargador Luiz Zveiter tomou posse em 3 de fevereiro de 2009. 198 Disponível em: http://magrs.net/?p=1807#more-1807. Acesso em 20/10/2009. 151 Cabe destacar que Rauen Filho se define como católico não praticante. Mas, para ele a religião tem um importante papel moralizador: Eu sou uma pessoa de convicções religiosas sem prática, mas eu acho positivo porque há muita ligação entre religião e moral. Às vezes até sistema de freios decorrem muito mais de um sentimento religioso do que o sentimento da pretensão política do Estado. Freia-se mais, se contém mais, se cumpre mais por forças de sentimentos religiosos. Apesar de afirmar a positividade da religião como freio moral, o magistrado aposentado, por outro lado, sublinha o conservadorismo de determinadas religiões em discussões envolvendo os direitos sexuais e reprodutivos: [...] são conservadoras e avançam muito lentamente. Essa questão, por exemplo, do uso de preservativo, isso aí realmente há nas igrejas um exagero na interpretação das normas religiosas, como se sabe nós temos situações não só de crescimento populacional, mas também de doenças. Para Rauen Filho, outro perigo, para as democracias encontra-se na mistura entre religião e política: [...] não há povo e nem país sem religião, seja ela qual for todos têm suas crenças. O que tem que se tomar cuidado, e me parece que isso está acontecendo, é uma mistura de religiosidade e poder político. [...] essas igrejas ditas pentecostais que têm bancadas no congresso, se movimentam, conseguem concessão de televisão ou de rádio, em nome da religião eles estão tendo alguns poderes perante a sociedade um tanto que demasiados. O magistrado aposentado parece não aceitar a politização da religião. Esta pode ferir a liberdade de consciência e a necessária neutralidade da esfera pública. Desse modo, se, por um lado, Rauen Filho procura uma aproximação entre a moral pública e a religião, vendo nesta uma espécie de mecanismo de controle social, por outro, alerta para a danosa mistura entre a religião e a política, advogando de maneira implícita a separação entre essas esferas. Por sua vez, o mesmo argumento relacionado à tradição histórica que é utilizado por Rauen Filho para justificar a presença de símbolos religiosos em repartições públicas, é acionado para defender os feriados religiosos: É uma tradição, não só brasileira, mas ocidental. E acredito que também o oriente deva ter isso, faz parte da história. O Natal é uma festa que poucos sabem que é em razão do nascimento de Cristo, a maioria entende que o Natal é aquela festa do Papai Noel. A Páscoa é a festa do coelhinho, é isso que a maioria das pessoas pensa já se arraigou na população. Com essa asserção o magistrado sublinha que o sentido originalmente religioso de determinados feriados como o Natal e a Páscoa se enfraquece, tornando-se assim 152 uma mera comemoração ou festividade “profana”. Surgem assim outros significados não religiosos em relação a esses feriados. No que concerne à invocação do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, o juiz aposentado acredita que isso foi mais uma jogada política das bancadas religiosas. Contudo, esse enunciado não teria valor normativo algum: “hoje em dia ninguém mais decide ou interpreta a Constituição com base nisso.” - Wambert Gomes Di Lorenzo O advogado e professor de Direito da PUC-RS, Wambert Gomes Di Lorenzo199, escreveu no Jornal Zero Hora, de 20 de setembro de 2005 um artigo no qual criticava duramente a proposta do magistrado Roberto Lorea. O texto O crucifixo e a democracia define o ato de Lorea de totalitário. Para Wambert Di Lorenzo, o Estado é laico, mas a sociedade brasileira é religiosa. Devido a essa publicação, e a outras intervenções públicas, em que ele expressa uma postura de contestação ao “laicismo” da sociedade moderna decidi entrevistá-lo. Já no início da entrevista, Wambert Di Lorenzo estabelece uma distinção entre laicidade e laicismo: Dois conceitos que nós temos que distinguir é laicidade e laicismo. O Estado laicista é um Estado que propõe inimizade com a religião, por exemplo, o Estado francês. O Estado brasileiro não é um Estado laicista, é um Estado laico, significa apenas que o Estado não tem uma religião oficial. Por outro lado, o Estado não é um ser em si mesmo. O Estado é um instrumento da sociedade, está a serviço dela, o Estado é laico, a sociedade não. Não existe, jamais existiu e jamais existirá uma sociedade laica. E o Estado, então, tem que ser um retrato da sociedade da qual ele se origina e da qual ele está a serviço. Wambert Di Lorenzo utiliza-se de duas noções diferenciadas. A primeira, a laicidade, que expressaria a justa separação e autonomia entre a instância estatal e o campo religioso; e a segunda, o laicismo que sinalizaria um afastamento excessivo, um divórcio absoluto entre o Estado e a religião, tendo este um conteúdo antirreligioso. Em verdade, esse posicionamento baseia-se na doutrina social da Igreja Católica e se assemelha à noção de “sã laicidade”, pregada pelo Papa Bento XVI. Ademais, parece conceber o Estado laico como um Estado não-confessional, destituído de religião oficial. 199 Wambert Di Lorenzo é mestre em Direito do Estado e doutor em Direito, com ênfase em Filosofia do Direito, pela UFRGS. 153 Por sua vez, o advogado gaúcho define o Deus do preâmbulo da Constituição Federal de 1988 como uma divindade cristã, além de frisar os princípios cristãos presentes nesse documento jurídico: [...] como explicar Deus no preâmbulo da constituição? Digo mais, Ulisses Guimarães no discurso de promulgação da Assembleia Nacional Constituinte, disse que a nossa constituição tem substância cristã, porque tem substância cristã? Porque aquela ideia que está no artigo terceiro da nossa constituição, que é uma ideia originalmente genuinamente cristã, que é a ideia de dignidade da pessoa humana é uma antropologia judaica e cristã, bem como os princípios que daí decorrem: bem comum, solidariedade, tem aí um complexo teórico todo fundado na filosofia cristã. Então primeiramente o Estado brasileiro é laico e não laicista, [...] não só convive, como também pode estimular manifestações religiosas que estejam de acordo com a construção cultural e histórica do povo. Veja bem, o povo brasileiro é um povo cristão. [...] Tem gente até que tenta ser relativista, diz que aquele Deus da constituição é uma ideia abstrata e genérica, é um absurdo, aquele é um Deus cristão. Aquilo não é Alá, não é Brahma, aquilo é um Deus cristão, porque essa sociedade é cristã. Deus está no preâmbulo porque essa sociedade é cristã. Diga-se de passagem, o Brasil já foi chama Terra de Santa Cruz e foi o primeiro, e pelo menos que eu saiba o único Estado, que teve como primeiro ato de Estado uma missa. Novamente enfatiza, nessa passagem, o caráter religioso e principalmente cristão da sociedade brasileira. Essa herança cristã teria reflexos em nosso ordenamento jurídico e em nossa organização política. Sendo assim, o Estado deveria até mesmo apoiar o religioso. Revela-se aqui a noção de cooperação recíproca200 presente na Constituição Federal de 1988. Wambert Di Lorenzo considera uma obsessão a demanda pela retirada dos símbolos religiosos de ambientes públicos: Quem fica obcecado com símbolos religiosos é porque tem algum problema com religião, é um intolerante. Eu vejo um tipo de intolerância, o sujeito vive numa sociedade e fica indignado com os valores dessa sociedade. Crucifixos e símbolos religiosos encarnam os valores dessa sociedade, o sujeito vive nela e vive inconformado, quer dizer, uma minoria, só falta agora a minoria ditar o estilo de vida dela para a imensa maioria da sociedade. Por outro lado, para o professor Wambert Di Lorenzo, símbolos como os crucifixos não possuem apenas um sentido religioso; são símbolos culturais que servem para lembrarmo-nos de uma das maiores injustiças da história do Ocidente, a crucificação de Jesus Cristo: Acerca dessa noção, afirma Maria das Dores Campos Machado (2008, p.146): “No caso específico do Brasil, a despeito da separação jurídica entre Estado e Igreja promulgada na Constituição republicana de 1891, o princípio de colaboração recíproca introduzida na Constituição de 1934 sugere que as linhas demarcatórias entre a religião e política são por demais escorregadias e que existem diversas possibilidades de arranjos entre essas duas esferas”. 200 154 [...] esses símbolos são mais que religiosos, são símbolos culturais. O crucifixo em particular, ele primeiro, expressa o povo. Ele lembra um símbolo que representa a sociedade, ou seja, o Estado está a serviço da sociedade, lembra a sociedade, com seus valores desse corpo social que dá legitimidade ao Estado. Então quando no prédio público se encontra um crucifixo, a primeira coisa que se lembra é que aquele Estado ou aquele ambiente estatal está a serviço daquela sociedade. Segundo, nos tribunais em particular, o crucifixo lembra uma das maiores injustiças da história do ocidente, um julgamento que marcou a história, alias dividiu a história, antes e depois dele. E digo mais, enquanto ocidentais que somos, se um dia tirássemos o crucifixo, eu ia propor de colocar o busto de Sócrates, que é o segundo paradigma de julgamento injusto que nós tivemos. Então o crucifixo lembra constantemente o juiz que ele tem que ser justo, que ele tem que praticar a justiça, que ele não pode cometer o mesmo erro que ali foi cometido. Então, a quem defenda de se retirar o crucifixo, que se coloque o Sócrates, porque nós não devemos cair no niilismo que foi o que aconteceu na Alemanha depois da primeira guerra, total niilismo e relativismo, e nós sabemos o que aconteceu se tira a cruz e se coloca uma suástica [...]. Com essa afirmativa, acaba chamando a atenção para o deslizamento de sentidos no símbolo em discussão, seu caráter ambíguo, instável e indeterminado. De certo modo, o sentido das imagens e símbolos tende a ser variável, dependendo do contexto social em que se encontra e do lugar físico onde é exibida (Burke, 2004). Outrossim, para esse advogado não é por acaso que o símbolo que se encontra afixado nos tribunais de justiça seja o crucifixo. Destarte, um dos papéis “clássicos” das imagens, a de auxiliar da memória, é destacado em sua asserção. Em realidade, a tradição católica, desde Tomás de Aquino e São Boaventura, tem justificado o uso das imagens por três motivos principais: primeiro, como um meio de instruir os iletrados e as pessoas simples; segundo, as emoções se estimulariam de modo mais eficaz com as coisas vistas do que com as coisas ouvidas; e terceiro o mistério da encarnação e os exemplos dos santos perdurariam mais firmemente na memória vendo-os representados ante os nossos olhos diariamente (Freedberg, 1992).A imagem do Cristo crucificado 201 exposta em espaços do poder judiciário teria assim um aspecto mnemônico, fazendo-nos recordar de um acontecimento crucial e paradigmático. Acerca desse ponto há uma interessante passagem do livro “Eles, os Juízes, vistos por um Advogado”, escrito pelo consagrado jurista italiano Piero Calamandrei: 201 Um dos mais conhecidos defensores do culto das imagens, São João Damasceno, em uma célebre passagem de sua Oratio, sublinha a força do ícone de Cristo: “Quando erigimos uma imagem de Cristo em um lugar qualquer, apelamos aos sentidos, e sem dúvida santificamos o sentido da vista, que é o primeiro dos sentidos da percepção, do mesmo modo que o discurso sagrado nos leva a santificar o sentido do ouvido. Uma imagem é resumidamente um recordatório: constitui para os iletrados o que é um livro para os cultos, e palavra significa para o ouvido o que a imagem é para a vista”(João Damasceno apud Freedberg, 1992, p.447). 155 O crucifixo não compromete a austeridade das salas dos tribunais; eu só gostaria que não fosse colocado, como está, atrás das costas dos juízes. Desse modo, só pode vê-lo o réu, que, fitando os juízes no rosto, gostaria de ter fé na sua justiça; mas, percebendo depois atrás deles, na parede do fundo, o símbolo doloroso do erro judiciário, é levado a crer que ele o convida a abandonar qualquer esperança – símbolo não de fé, mas de desespero. Dir-seia até que foi deixado ali, às costas dos juízes, de propósito para impedir que estes o vejam. Em vez disso, deveria ser colocado bem diante deles, bem visível na parede em frente, para que o considerassem com humildade enquanto julgam e nunca esquecessem que paira sobre eles o terrível perigo de condenar um inocente (Calamandrei, 1995, p.327). Segundo Wambert Di Lorenzo, a proposta de retirada de símbolos religiosos de espaços públicos não é uma pauta da sociedade, do povo brasileiro, mas de “uma minoria de intelectuais militantes”. Se essa proposta se concretizasse, outras da mesma índole, iriam vir à tona: [...] pra começar tinha que rasgar a bandeira, porque o lema da bandeira é de uma religião, veja só, eu nunca vi nenhum cristão querer mudar a bandeira do Brasil. Eu nunca vi um movimento de cristãos mobilizados para mudar a bandeira do Brasil. A bandeira do Brasil tem um lema religioso, que é da religião positivista [...]. Teríamos que mudar o nome do Estado de Santa Catarina, São Paulo e do Espírito Santo. Teria que mudar nomes de cidades também, São Paulo, São Bento, tem que mudar. Veja que isso daí é uma obsessão racionalista, um tipo de neoiluminismo, que gerou o que gerou na França, violência e morte, sangue derramado. Que foi o que aconteceu na França, até o nome dos meses foram mudados, queriam mudar até o calendário. Então, é impor a toda uma sociedade um modelo de vida que não é dela e valores que não são dela, então é um movimento totalitário e não democrático. A mesma contundência na argumentação é utilizada pelo advogado Wambert Di Lorenzo para defender os feriados religiosos: Isso é da natureza da própria sociedade brasileira, imagina o Brasil sem o Natal? O Brasil sem a Páscoa? Se a gente radicalizar tem que acabar com a Páscoa. E se acabar com a Páscoa, tem que acabar com o Carnaval também, o Carnaval é uma data religiosa. O Carnaval é a festa da carne, que faz parte da quaresma, que é o período de jejum. Então veja que são valores culturais, estão impregnados na sociedade, o que essa gente laicista tem que fazer é fazer como os totalitários fazem matar, dizimar os 190 milhões de brasileiros, e sobra só eles, um país só pra eles, podiam fazer isso. Assim como os símbolos religiosos colocados em espaços públicos, os feriados religiosos também são percebidos como tendo uma dimensão cultural. Importante sublinhar que o professor e advogado Wambert Di Lorenzo é católico praticante. Converteu-se ao catolicismo aos 17 anos. Em sua opinião, o cristianismo foi um elemento central na formação da civilização ocidental: O Ocidente é o que é graças à Igreja, as universidades nasceram nas sacristias [...]. Quem segurou, quem protegeu no tempo obscuro da Idade Média a 156 cultura, e manteve a cultura do Ocidente foi a Igreja. As maiores bibliotecas do mundo estavam nos mosteiros. A centralidade do cristianismo no ocidente parece legitimar para Wambert Di Lorenzo uma maior presença da religião no espaço público: A religião tem seu espaço público, porque existe um direito constitucional de liberdade religiosa e liberdade de culto também. Em Estados totalitários comunistas, por exemplo, as procissões estão restritas dentro da igreja. Eu estive em Cuba certa vez, passei doze dias em Cuba, e lá as procissões, Corpus Christi, por exemplo, eles ficam dando voltas dentro da igreja, isso é uma violência. Veja que recentemente foi aprovada no Rio Grande do Sul uma lei autorizando sacrifício de animais nos cruzamentos de ruas, além de controversa, demonstra o seguinte, que a religião se dá num espaço público que é um espaço social. A religião é um fenômeno social, e ela tem que se dar no espaço público. É dever do Estado não só autorizar, mas garantir que o espaço público seja público, ou seja, um espaço de manifestação de todas as tradições culturais, evidentemente, todas aquelas que não comprometem o bem comum [...]. 4.3 Tecendo considerações finais sobre o “ponto de vista nativo” Uma primeira observação geral a ser feita é que nenhum dos atores entrevistados nega de forma direta e explícita a noção de laicidade. Importa sublinhar que a própria defesa da permanência dos crucifixos em tribunais e varas judiciais não é seguida de um ataque ao conceito de Estado laico (Giumbelli, 2010). Todavia, os profissionais do direito que são contrários à afixação de ícones religiosos em ambientes judiciais parecem partir de uma concepção mais rígida e precisa da relação entre Estado e religião, procurando restringir e limitar às manifestações religiosas no espaço público. Qualquer forma de suporte ou auxílio do Estado ao religioso é rejeitada. Conforme essa postura, o religioso só pode participar da esfera pública quando está de acordo com os princípios liberais da liberdade de consciência e do inviolável direito à privacidade (Casanova, 1994). Além disso, advertem que no Brasil o Estado laico é mais uma formalidade jurídica, um preceito constitucional, do que uma realidade concreta. Dessa forma, parecem partir do pressuposto de que para que uma sociedade seja moderna e democrática precisa ser necessariamente secular e ter um Estado verdadeiramente laico (Asad, 2003). A noção de liberdade religiosa também é empregada de forma diferenciada pelos defensores da permanência dos símbolos religiosos e por aqueles que se opõem a eles. Os primeiros concebem-na sobretudo como um direito de exprimir publicamente a religião. Já para os opositores dos símbolos religiosos, essa noção é vista como o direito 157 de escolher determinada crença religiosa, ou até mesmo de seguir o ateísmo ou o agnosticismo, sem que haja qualquer tipo de imposição ou constrangimento externo. Tanto os opositores quanto os defensores da presença do crucifixo em ambientes do poder judiciário enfatizam a centralidade do catolicismo na história brasileira e em nossa formação cultural. Contudo, os primeiros tendem a perceber essa centralidade como negativa, enquanto que os segundos destacam as virtudes e os efeitos salutares da influência cristã e católica em nossa cultura. Desse modo, os que são contrários à existência do ícone cristão em órgãos do poder judiciário concebem o religioso, via de regra, como uma força conservadora. Entretanto, não negam que a religião possa transmitir alguns valores positivos. Por sua vez, os que defendem a permanência dos símbolos religiosos percebem a religião como um elemento fundamental da vida social. Procuram, também, ressaltar as bases cristãs da civilização ocidental. Ademais, acusam o materialismo da modernidade, defendendo uma maior presença da religião na vida dos indivíduos e das coletividades. De algum modo, esses posicionamentos exprimem o que Sullivan (2005) chama de duas faces de “Janus” da religião na modernidade. Uma das faces da religião é associada com o irracional e o selvagem, devendo manter-se assim separada dos demais domínios da vida social. A outra face da religião é considerada como a matriz de princípios morais e éticos, indispensáveis para o bom funcionamento de uma sociedade. Os que são contrários à afixação de crucifixos e outros símbolos religiosos em espaços jurídicos, contudo, reconhecem o poder dos símbolos religiosos, sua capacidade de atuação, o que se pode chamar de “agência” das imagens. Além disso, entendem que não há inconveniente algum em que o magistrado ou qualquer outro funcionário público porte pessoalmente, ou em seu gabinete particular, um símbolo religioso, surgindo o problema quando o símbolo religioso encontra-se em local de atendimento público, como uma vara judicial ou no plenário de um tribunal de justiça. Entretanto, concebem o crucifixo como um símbolo religioso particularista, sectário, não adequado à formação de um cidadão secular. Sendo assim, tendem a enfatizar a dimensão religiosa do símbolo em discussão. Importante ainda sublinhar que os profissionais do direito que advogam uma esfera pública neutra e laica tiveram formação religiosa católica. Contudo, hoje não possuem filiação religiosa alguma: Lorea é ateu, Carlos Rafael dos Santos Júnior 158 agnóstico, Gilberto Schäfer, agnóstico, João Ricardo dos Santos Costa define-se como católico não praticante, mas que acredita em algo transcendental, e Maria Emília Corrêa da Costa é católica não praticante mas, declara ter fé em uma força superior. Nota-se uma contradição na argumentação de alguns profissionais do direito que advogam a permanência de imagens religiosas em ambientes estatais, pois, ao mesmo tempo em que procuram mostrar que o símbolo é um mero objeto sem qualquer capacidade de ação, afirmam que as imagens religiosas transmitem uma idéia de conforto e auxílio para o réu. Outra questão que merece uma melhor reflexão, e que parece problemática, diz respeito ao fato se um crente não católico se sentirá afetado positivamente diante da imagem de um crucifixo, conforme declaram alguns dos entrevistados que são favoráveis à permanência desse símbolo religioso. Para esses profissionais do direito, símbolos como o crucifixo tem na atualidade uma dimensão mais cultural que religiosa. O crucifixo, quando exposto em um tribunal de justiça, teria um caráter não sectário, universalista e inclusivo, portanto, um sentido “mais que religioso” (Sullivan, 2010). Dessa forma, ao contrário dos opositores à presença do crucifixo em tribunais de justiça que destacam prioritariamente o sentido religioso desse símbolo, os defensores da permanência do crucifixo declaram que ele apresenta sentidos variados. Além disso, tendem a conceber o Estado laico como um Estado não confessional, não vinculado a uma determinada religião, aceitando, dessa forma, a presença de referências religiosas na esfera pública. Um elemento que precisa ser destacado é que esse grupo tende a justificar a presença de símbolos religiosos em órgãos públicos argumentando que nosso principal documento jurídico, a Constituição Federal de 1988, foi promulgada em nome de Deus. Ainda ressaltam que muitos dos valores e princípios que estão presentes em nossa Carta Magna têm origem na tradição cristã. Diferenciam ainda a laicidade do laicismo, destacando que a primeira não é inimiga da religião e que, dessa forma, o Estado laico não é um Estado ateu. O laicismo, por sua vez, é anticlerical procurando banir a religião da esfera pública. Em síntese, assumem uma postura que procura aproximar a religião da vida pública, defendendo uma maior cooperação entre o Estado e as instâncias religiosas. Trata-se, em suma, de um discurso que articula e estreita as relações entre o religioso e o secular. Por seu turno, em linhas gerais, os entrevistados que são contrários à presença de símbolos 159 religiosos em recintos estatais defendem a noção de que um Estado laico deve ser neutro e imparcial em matéria religiosa, mantendo-se, assim, equidistante de qualquer crença religiosa. Como conclusão deste capítulo gostaria de sublinhar que o argumento de que a civilização ocidental tem uma base cristã e de que por consequência muitos dos princípios políticos, jurídicos e éticos que regem a sociedade moderna originam-se dessa tradição, argumento utilizado pelos defensores da permanência do crucifixo em ambientes do poder judiciário, guarda semelhanças com a tese de Vattimo (2004), que estabelece uma relação de continuidade entre a modernidade ocidental e a mensagem judaico-cristã. Conforme esse autor: [...] o Ocidente só pode ser definido hoje, de forma unitária, como cristianismo secularizado, mas também que o cristianismo de hoje só é autenticamente encontrado como Ocidente. Em termos mais claros e provavelmente escandalosos, pretendo afirmar, que o Ocidente inteiro, como terra do crepúsculo e do enfraquecimento, é hoje a verdade do cristianismo (Vattimo, 2004, p.102). Para Vattimo (2004), valores morais como a fraternidade, a liberdade e a igualdade, centrais na modernidade ocidental, nada mais são do que valores cristãos secularizados. A própria noção de direitos humanos, a concepção política de Estado democrático de direito e a distinção entre a esfera pública e a esfera privada teriam origem na tradição cristã.202 Nesse sentido, a secularização, que marcaria a modernidade no ocidente, não se caracterizaria por um distanciamento ou abandono da matriz religiosa, mas como um processo de interpretação, aplicação e especificação enriquecedora dessa base religiosa. 202 Seguindo Max Weber, Gianni Vattimo (2004, p.85) relaciona a constituição e o desenvolvimento da ciência moderna com o cristianismo: “Podemos, contudo, facilmente evocar à maneira weberiana a importância do monoteísmo para o desenvolvimento de uma visão científica do mundo, mas também de ideias como aquela da tarefa, que segunda a escritura Deus confiou ao homem, de dominar a terra”. 160 5 OS JULGAMENTOS DOS CRUCIFIXOS E OUTRAS SITUAÇÕES CONFLITIVAS ENVOLVENDO SÍMBOLOS CATÓLICOS EM LOCAIS PÚBLICOS Neste capítulo analiso uma série de situações, bem como processos judiciais e administrativos ocorridos entre os anos de 1991 a 2012 envolvendo a presença de símbolos religiosos católicos em espaços públicos. Como será visto, na grande maioria dos casos quem pleiteia a remoção dos ícones religiosos de repartições públicas é o engenheiro paulista Daniel Sottomaior Pereira, criador da campanha “Brasil Para Todos”, o qual advoga a separação entre Estado e religião e a democratização dos espaços e serviços públicos. Por consequência de seu destacado protagonismo nesses embates trato, também, sobre as iniciativas e campanhas criadas por esse personagem e alguns aspectos de seu perfil de militante laicista. Dos casos e processos examinados a seguir, grosso modo, emergem dois posicionamentos contrastantes. O primeiro que assevera que a existência de símbolos religiosos em ambientes públicos, fundamentalmente o crucifixo, é já um costume, e constitui, um reflexo da herança cultural cristã e católica. Desse modo, os símbolos, imagens e estátuas católicas, expostos em espaços públicos, representariam os valores e as crenças do grupo religioso hegemônico. Assim sendo, não ofenderiam os crentes de outras religiões, e estariam de acordo com a fé da maioria da população. Além disso, os defensores da permanência de símbolos religiosos em locais públicos afirmam que a laicidade estatal caracterizar-se-ia pela tolerância às manifestações religiosas, não podendo o Estado manter-se cego frente ao fato religioso, de importância central em qualquer comunidade política. O segundo, com uma postura contrária à exibição de imagens religiosas em ambientes públicos, expressa nesses casos e processos, alega que o crucifixo e outros símbolos religiosos católicos existentes em espaços públicos transmitem uma mensagem, produzindo efeitos, podendo ofender e excluir os não católicos. Ademais, os crucifixos expostos em tribunais e parlamentos podem influenciar, subliminarmente, as decisões judiciais e políticas. A noção de laicidade é acionada profusamente nos textos examinados. Em um Estado laico seria inadmissível a presença de ícones religiosos em espaços públicos, pois indicariam a preferência por determinada confissão religiosa. As 161 sociedades modernas laicas e seculares deveriam separar a esfera privada da esfera pública, sendo legítimas as referências religiosas somente no espaço privado. Na verdade, ambos os lados partem de uma determinada imagem de Estado, de comunidade política, e da constituição da paisagem cívica. Ambos percebem como um “sacrilégio” a ação e as motivações de um e de outro, seja a remoção de símbolos que expressam a herança cristã, ou “então a saturação dos espaços públicos seculares, por ídolos sectários” (Howe, 2008, p. 436). Por último, vale sublinhar a multiplicidade de significados atribuídos ao crucifixo nesses documentos. Ele é concebido como uma obra de arte, como símbolo religioso, como símbolo cultural, como ícone que evoca princípios morais e éticos e também como emblema cívico. 5.1 A Decisão do Conselho Nacional de Justiça Em 2007, Daniel Sottomaior Pereira moveu quatro pedidos de providência203 ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ)204, requerendo a retirada de crucifixos afixados em salas de tribunais, mais particularmente nos plenários e salas dos tribunais de justiça do Ceará, Minas Gerais, Santa Catarina e do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª região. O argumento central desses pedidos era que a presença de símbolos religiosos em repartições públicas se choca com o princípio da laicidade consagrado no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal de 1988. Para o requerente, o símbolo religioso, nesses tribunais, está colocado em local proeminente, acima da própria bandeira nacional, não se tratando assim de mero adorno. Dessa forma, a ostentação desse símbolo estaria sugerindo que os servidores públicos submeter-se-iam a outros princípios, que não aqueles que norteiam a administração pública. Os pedidos de providência foram inicialmente analisados pelos conselheiros do CNJ, em sessão realizada em 29 de maio de 2007. O conselheiro-relator Paulo Lobo em seu voto assim se manifestou sobre o tema: Duas teses razoáveis parecem emergir da matéria, relativamente à existência de símbolos religiosos em dependências de órgãos públicos: a) seriam 203 204 PPs 1344, 1345, 1246 e 1362. Órgão criado no ano de 2004, com sede na capital federal (Brasília) de natureza administrativa, sem atribuição jurisdicional. Tem por objetivo o controle da atuação administrativa e financeira do poder judiciário. 162 símbolos meramente culturais e tradicionais, ou que expressariam a religiosidade do povo, sem comprometimento da liberdade de religião ou afronta ao Estado Laico; b) indicariam preferência por determinada confissão religiosa, em detrimento das demais, violando os princípios do laicismo do Estado brasileiro(separação do Estado e da igreja, art. 19, I, da CF-88) e a 205 liberdade de religião. Sugeriu esse conselheiro a abertura de audiência pública para que os interessados nessa temática pudessem se manifestar e oferecer subsídios para a decisão. Por outro lado, o conselheiro Oscar Argollo, em seu voto, ressaltou que a presença do crucifixo em tribunais não torna o Estado e o Poder Judiciário clerical, vinculado a uma determinada confissão religiosa. Conforme o conselheiro, a afixação de crucifixo em repartições públicas trata-se de um costume e de uma tradição: A cultura e tradição - fundamentos de nossa evolução social - inseridas numa sociedade oferecem aos cidadãos em geral a exposição permanente de símbolos representativos, com os quais convivemos pacificamente, v.g.: o crucifixo, o escudo, a estátua, etc. São interesses, ou melhor, comportamentos individuais inseridos, pela cultura, no direito coletivo, mas somente porque a esse conjunto pertence, e porque tais interesses podem ser tratados coletivamente, mas não para serem entendidos como violadores de outros interesses ou direitos individuais, privados e de cunho religioso, que a tradição da sociedade respeita e não contesta, porque não se sente agredida ou violada. Entendo, com todas as vênias, que manter um crucifixo numa sala de audiências públicas de Tribunal de Justiça não torna o Estado - ou o Poder Judiciário - clerical, nem viola o preceito constitucional invocado (CF.art. 19, I), porque a exposição de tal símbolo não ofende o interesse público primário (a sociedade), ao contrario, preserva-o, garantindo interesses individuais culturalmente solidificados e amparados na ordem constitucional, como é o caso deste costume, que representa as tradições de nossa sociedade.206 Desse modo, de acordo com essa passagem, o símbolo em questão é um mero reflexo de uma herança cultural cristã e católica. Ele representa uma tradição, não afetando e nem constrangendo os fiéis de outras crenças. Ademais, o conselheiro Oscar Argollo argumentou que não há, no ordenamento jurídico nacional, qualquer proibição para o uso de símbolos religiosos em ambientes do Poder Judiciário. A decisão de expor ou não um símbolo ou imagem religiosa é uma “atribuição eminentemente administrativa”, desfrutando o poder judiciário de autonomia: Não cabe, pois, ao Egrégio Conselho o controle administrativo sobre a exposição e disposição de objetos ou símbolos religiosos nas dependências da Justiça, face à autonomia administrativa que possuem [...]. Ainda no campo do direito administrativo há aqueles que aludem sobre a presença de símbolos 205 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_jurisprudencia&Itemid=464. Acesso em: 20/10/2008. 206 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_jurisprudencia&Itemid=464. Acesso em: 20/10/2008. 163 religiosos em dependências de órgãos públicos como sendo uma apropriação indevida do espaço público por interesses privados, porque o interesse particular pode fazer tudo que a lei não proíbe, mas a Administração Pública só pode fazer aquilo que a lei determina. No particular, data maxima venia,entendo que a interpretação não tem lugar, porque não há no ordenamento qualquer norma jurídica vigente que determine a colocação de símbolo religioso - que seria uma negação ao Estado laico, como também não há lei que proíba tal colocação. Prevalece, portanto, o princípio fundamental do interesse público, de garantir direitos individuais e, ao mesmo tempo, coletivos, uma vez que todos são iguais perante a lei e "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (CF. art. 5º, 11).207 Enfatiza, em seu voto, o já referido conselheiro, que a presença do crucifixo em um espaço público, como um tribunal de justiça, representa uma forma de homenagem e respeito a esse ambiente e à nobre atividade do magistrado: O costume de expor, eventualmente, em dependências ou ambiente de órgão público a imagem de um crucifixo corresponde sem embargos, a uma necessidade jurídica, de acordo com as homenagens devidas a Justiça. Tratase da representação, ainda que religiosa, do respeito devido àquele local. O crucifixo é um símbolo que homenageia princípios éticos e representa essencialmente a paz. Afinal a luta pelo Direito é o meio para alcançar a Paz, conforme ensinou Ihering em seu famoso opúsculo proferido em Viena em 1872.208 Assim, o crucifixo expressaria princípios morais e éticos, veiculando uma determinada mensagem. Para Argollo, o Estado não tem o direito de intervir nos costumes e tradições do povo brasileiro, sendo a religião elemento fundamental de nossa cultura: Estado não tem o direito de se imiscuir nos costumes e tradições reconhecidos moralmente pela sociedade. Portanto, se costume é a palavrachave para a compreensão dos conceitos de ética e moral, a tradição se insere no mesmo contexto, uma vez que deve ser vista como um conjunto de padrões de comportamentos socialmente condicionados e permitidos. E não podemos ignorar a manifestação cultural da religião nas tradições brasileiras, que hoje não representa qualquer submissão ao Poder clerical. A manifestação cultural, forjada pela tradição, de exposição de crucifixo em dependência ou ambiente de Tribunal de Justiça, como elemento representativo do interesse público secundário (vontade do órgão público), tem exemplo na sala do Plenário do Excelso Pretório, quando se vê, ao fundo, no painel construído em mármore bege-bahia, pelo artista plástico Athos 207 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_jurisprudencia&Itemid=464. Acesso em: 20/10/2008. 208 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_jurisprudencia&Itemid=464. Acesso em: 20/10/2008. 164 Bulcão, acima do escudo de armas brasileiro, um crucifixo confeccionado em pau-brasil, obra de Alfredo Ceschiatti. 209 Aqui, o conselheiro do CNJ defende uma visão liberal do Estado, pois não caberia a este intervir nas manifestações culturais e religiosas da sociedade. Destarte, um Estado verdadeiramente laico e neutro deveria se abster de tomar posição em tudo que se refere a temas religiosos. No momento em que o Estado define o que é religioso e o regulamenta, perderia seu caráter neutral (Asad, 2006). Refere-se, no final da passagem acima citada, ao crucifixo existente no Supremo Tribunal Federal (STF) para legitimar a presença desse símbolo religioso em outros tribunais de justiça. Segundo o conselheiro, a presença do crucifixo nos tribunais não representa uma forma de discriminação ou constrangimento àqueles que seguem outras confissões religiosas. No final de seu voto discorda do pedido de audiência pública requerida pelo relator Paulo Lobo: Pedindo vênia, ao eminente conselheiro Relator, ouso discordar da proposta, para dispensar qualquer Consulta Pública - até porque, a meu juízo, inócua face à cultura cristã brasileira - para votar no mérito, no sentido da total improcedência da pretensão.210 À primeira vista desponta, nesse trecho, uma concepção essencialista e exclusivista de cultura. Contudo, Steil (2004) aponta para a existência de um catolicismo difuso que se sedimentou na cultura ocidental, e que deixou sua marca em nossa configuração do espaço e do tempo. Importante lembrar que esse catolicismo cultural não pode ser confundido com a instituição Igreja Católica. O catolicismo cultural e difuso é mais abrangente. Nesse sentido, a argumentação de Argollo parece indicar que mais do que uma religião, o catolicismo no Brasil seria já um traço incontornável de nossa sociedade. Sanchis (1994), por sua vez, chega a falar em uma “cultura católica brasileira” ao examinar o campo religioso brasileiro. Ainda, se pode ver nesse catolicismo uma forma de religião cívica, instrumentalizada pelo poder 209 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_jurisprudencia&Itemid=464. Acesso em: 20/10/2008. 210 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_jurisprudencia&Itemid=464. Acesso em: 20/10/2008. 165 político para legitimar a ordem social, e como elemento fundamental na transmissão de valores cívicos e morais (Azevedo, 1981). Na sessão de 29 de maio o relator Paulo Lobo não proferiu seu voto, pois afirmou estar em dúvida sobre o tema. Assim, o julgamento não foi concluído nessa sessão. O tema foi analisado novamente na sessão de 6 de junho, na qual o relator Paulo Lobo foi o único conselheiro que se manifestou a favor da retirada dos crucifixos, asseverando que o Estado laico deve separar o privado do público, cabendo unicamente à esfera privada a manifestação religiosa. Os demais conselheiros presentes seguiram o voto do conselheiro Oscar Argollo, decidindo indeferir os pedidos de providência movidos por Daniel Sottomaior, entendendo que o crucifixo é já um símbolo próprio da cultura cristã brasileira, não influenciando e interferindo na neutralidade e universalidade do Poder Judiciário. Vale ressaltar que o presidente do Tribunal de Justiça do Ceará, Fernando Luiz Ximenes Rocha, manifestou-se, por meio de um ofício, sobre a presença do crucifixo no Plenário da Corte desse Estado, respondendo ao questionamento do conselheiro Paulo Lobo do CNJ. Conforme o magistrado cearense, o aludido símbolo religioso sempre esteve afixado nas dependências daquele tribunal e em outros edifícios públicos. Além disso, declara: [...] no moderno Estado laicizado, apartam-se formalmente os vínculos entre este e religião, mas se a população continua religiosa, pelo menos quanto a eventual credo majoritário, acabam sempre as instituições permeadas por tal vivência popular, já que é inevitável na ação de cada indivíduo a reverberação das suas crenças, ou pulsões de cunho espiritual (fl.1). Com essa colocação, o magistrado cearense lança mão do argumento de que é justificável e democrático a presença de ícones religiosos católicos em lugares públicos, por ser católica a maioria da população brasileira. Em realidade, as noções de maioria e minoria são recorrentes na polêmica em torno da presença de crucifixos em repartições públicass, sobre o que comenta Giumbelli (2010, p.13): Os defensores da permanência do crucifixo tendem a argumentar em favor da noção de maioria, o que corresponde a uma destituição política das minorias. Estas têm o direito de existir, mas devem se acomodar (“tolerar”) o que seria a vontade das maiorias. Já os defensores da retirada do crucifixo têm em vista uma sociedade composta de minorias, na qual a maioria tenha um papel politicamente limitado. Essa distinção é recoberta por categorias que são semanticamente distintas: de um lado, cultura, maioria, nação; de outra, democracia, minoria, Estado. 166 O presidente do Tribunal de Justiça do Ceará insinua motivações iconoclastas nos pedidos de providência de Daniel Sottomaior, e acrescenta que os problemas sociais que afetam nosso país não serão solucionados com a retirada de imagens religiosas: Não admito, também, que os que não tratam iconoclastamente a ostentação do crucifixo estarão “submetidos a outros princípios que não aqueles que regem a administração pública no Brasil”, como não cortesmente é afirmado. E, é oportuno lembrar: os talibãs, assumindo revolucionariamente o poder no Afeganistão, destruíram seculares imagens do Ícone Maior talhadas nas montanhas, para afirmar novo tempo em seus territórios. Seria esse o caminho para a redenção a ferro e fogo ali buscada? [...] De qualquer modo, não é retirando imagens de Cristo nos auditórios que se redimirá o País dos seus problemas e se elevará o nível da cidadania, como preconiza a representação sob resposta (fl. 2). 5.2 Outros casos controversos Juntamente com os pedidos de providência examinados pelo CNJ, Daniel Sottomaior enviou representações ao Ministério Público de Minas Gerais, Santa Catarina e Rio de Janeiro, solicitando a remoção de crucifixos existentes no Tribunal de Julgamentos Criminais de Minas Gerais, no Tribunal de Justiça de Santa Catarina e no plenário da Câmara Municipal de Florianópolis, bem como no Tribunal Marítimo do Rio de Janeiro. O promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, Julio Cesar Luciano, decidiu pelo arquivamento da representação de Daniel Sottomaior. Em seu parecer datado de 31 de outubro de 2007, afirmou: “Justo e democrático, pois, que a maioria de uma nação seja contemplada com uma legislação que leve em conta sua cultura e legítimas tradições, sejam elas sociais ou religiosas”(fl.3). Segundo o promotor mineiro, as tradições religiosas da maioria do povo brasileiro devem ser respeitadas e protegidas pelo Estado. Dessa maneira, traça um paralelo entre os símbolos religiosos e os feriados religiosos, argumentando que estes não ferem a laicidade do Estado brasileiro: Desse modo, não afronta o princípio do Estado laico as festas religiosas católicas incluídas na lista de feriados oficiais, sobretudo por referir-se a uma manifestação cultural da população católica. Não teria sentido incluir como feriado uma festividade budista, v.g., uma vez que estaria ele desprovido de real significado simbólico-cultural para a esmagadora maioria dos brasileiros. Por outro lado, a instituição da solenidade de Nossa Senhora Aparecida como feriado nacional no Brasil, para citar um caso mais polêmico, não só corresponde aos anseios da maioria, como não representa ofensa alguma aos que não aprovam seu culto, uma vez que, com a oficialização dessa data, não se está obrigando a reverenciar a Padroeira, mas tão somente dando-se 167 ouvidos à voz majoritariamente representativa católica ou de inspiração cultural católica. Nada, em matéria religiosa, poderia ser tão democrático (fl.9). Assim sendo, de acordo com esse entendimento o Estado não deve ser neutro e indiferente, mas precisa na verdade espelhar os valores e crenças da maioria da população. Caberia ao Estado apoiar determinados traços da cultura nacional. O promotor de Minas Gerais ainda sublinha os pontos de contato entre o Estado brasileiro e a religião, destacando que a Constituição Federal de 1988 foi promulgada em nome de Deus, e que a mesma garante o ensino religioso nas escolas públicas e a assistência religiosa nas entidades civis e militares. Ao final de seu parecer declara: Mutatis mutandi, como ocorre com os feriados religiosos, referido raciocínio é o mesmo para a análise da vexata quaestio, afinal o crucifixo é um sinal religioso que caracteriza a fé cristã, que é vocação da maioria, o qual não viola, agride, discrimina, perturba ou tolhe os direitos e ação de outrem, inexistindo, pois, razão para a eliminação do local onde se encontra (fl.12).211 Por sua vez, o Promotor de Justiça do Ministério Público de Santa Catarina também arquivou a representação de Daniel Sottomaior Pereira. No seu arrazoado212 declarou que a afixação de crucifixo não viola a laicidade estatal: [...] porquanto não caracteriza a instituição de qualquer culto religioso ou igreja, muito menos embaraça o funcionamento de quaisquer deles. Outrossim, convém ressaltar que laicidade estatal(Estado leigo) presente em nosso país não se confunde com ateísmo (falta de crença em Deus) (fl.1). Trata-se, evidentemente, de uma concepção de laicidade “positiva” ou “aberta” que não exclui a religião da arena pública. O Estado laico não seria um Estado ateu, hostil e inimigo do religioso. Além disso, para esse promotor o símbolo em questão pode apresentar um sentido religioso ou artístico: “Assim, não viola o caráter leigo da Federação a afixação de um objeto, que tanto pode ser considerado religioso, como também decorativo (fl.2)”. Acerca da representação à Procuradoria da República do Estado do Rio de Janeiro, contra a existência de um crucifixo afixado no plenário do Tribunal Marítimo desse Estado (vide foto abaixo), a procuradora Márcia Morgado Miranda declarou em 211 O promotor mineiro define o referido símbolo como um sinal cristão. Porém, é fundamental esclarecer aqui que o crucifixo não é um símbolo cultuado por todos os cristãos. A imagem do Cristo crucificado é objeto de veneração apenas dos católicos. As denominações protestantes históricas e os pentecostais até aceitam a utilização do símbolo da cruz desnuda, sem a imagem de Cristo, mas não utilizam e nem cultuam o crucifixo. Assim, para a maior parte dos seguidores do protestantismo, o crucifixo é um ídolo que pode então ofender e perturbar. 212 O parecer desse promotor data de 28 de fevereiro de 2007. 168 seu parecer que enviaria um ofício ao presidente do Tribunal Marítimo, a fim de que este respondesse a objeção de Daniel Sottomaior, sobre a existência de manifestação religiosa naquele ambiente devido à ostentação do referido símbolo católico. FIGURA 6. Crucifixo no Tribunal Marítimo do Rio de Janeiro. 213 O presidente do Tribunal Marítimo do Rio de Janeiro afirmou que os servidores do tribunal se preocupam apenas em cumprir suas tarefas, tendo total liberdade para escolher, praticar e cultuar a religião que quiserem, não havendo, desse modo, qualquer imposição do catolicismo aos servidores ou cidadãos atendidos nesse tribunal. Além disso, asseverou que o crucifixo é um símbolo encontrado tradicionalmente em varas judiciais, em tribunais federais, estaduais e mesmo no STF. A explicação disso é que o crucifixo não seria apenas um símbolo religioso, mas uma imagem que evocaria a lembrança de um erro judiciário que conduziu um inocente à pena capital. Por seu turno, em seu arrazoado, a procuradora Márcia Morgado Miranda afirmou que a simples existência de um crucifixo afixado na parede do plenário do Tribunal Marítimo do Rio de Janeiro não é uma violação à laicidade estatal, declarando ainda: [...] se trata de tradição do Poder Judiciário brasileiro, sem qualquer cunho religioso. Destaca-se, dentre o material extraído da internet sobre o tema, anexado ao procedimento, a informação do Ministro Cesar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, de que a existência de um crucifixo sobre o Plenário do Supremo é uma tradição cultural, e que tal matéria, inclusive, já foi objeto de discussão naquele Tribunal há muitos anos, chegando-se à conclusão de que o fato não representa a tomada de posição religiosa (fl.2).214 213 214 Imagem disponível em: http://www.brasilparatodos.org/?page_id=15. Acesso em: 27/08/2010. Este parecer data de 28 de março de 2007. 169 Por esse motivo a procuradora da República do Estado do Rio de Janeiro promoveu o arquivamento desse procedimento administrativo. O criador da campanha “Brasil Para Todos” ainda entrou com representações no Ministério Público de São Paulo pleiteando a retirada de crucifixos existentes no plenário da Câmara Municipal de Campos do Jordão e da Câmara Municipal de São Paulo (abaixo foto do crucifixo presente no plenário da Câmara de Vereadores de São Paulo). Ambos os pedidos não alcançaram sucesso, sendo arquivados. FIGURA 7. Crucifixo na Câmara de Vereadores de São Paulo (SP). 215 O promotor de justiça de Campos do Jordão, Sebastião José Pena Filho216, assim manifestou-se sobre o caso em tela: Sem a mínima pretensão de sistematizar a questão, expor um crucifixo numa parede de um prédio público não consubstancia manifestação ostensiva ou contrária ao senso comum. Sob o primeiro aspecto, o ato silencioso e discreto não agride o público. Diversa seria a hipótese se fossem utilizados recursos sofisticados de iluminação ou letreiros luminosos. Imagina-se, também, se expusessem uma miniatura da estátua do Cristo Redentor, com dois metros de altura, no principal saguão de um prédio público, impondo ao visitante um mínimo de esforço para contorná-la. Nesses casos, o caráter ostensivo da manifestação não seria condizente com a finalidade do edifício. Quanto ao senso comum de moralidade, a afixação de um crucifixo não é radical, no sentido de que não se afasta do que é tradicional ou usual, não é antiética e não é mundana. Ao revés, é representativa de valor moral e espiritual, além de aderente à inspiração religiosa da maioria da população brasileira (fl.2). 215 Imagem disponível em: http://www.brasilparatodos.org/?page_id=15 . Acesso em: 27/08/2010. 216 O parecer deste promotor data de 27 de fevereiro de 2007. 170 No caso do crucifixo afixado na Câmara Municipal de São Paulo, o reclamante Daniel Sottomaior Pereira afirmou no seu pedido: O símbolo está ali como ícone máximo e representativo da própria casa... Não compõe decoração acidental, mas sugere enfaticamente que ele literalmente paira acima dos símbolos e valores locais, que a ele se subordinam e imiscuem (fl.1). Daniel Sottomaior ressalta o lugar estratégico em que se localiza o símbolo religioso, destacando também o poder e a agência das imagens. O crucifixo não é um mero adorno, um ornamento sem valor e importância. Em contraste com esse posicionamento, o 9º promotor de justiça da cidadania, Saad Mazloum, em seu parecer emitido em 2 de março de 2007, indeferiu essa representação declarando: Não há dúvidas que o Brasil é um Estado Laico. No entanto, o crucifixo na parede do plenário da Câmara nem de longe traz o significado que quer lhe emprestar o autor da representação. Significa sim, a crucificação de Jesus Cristo, e é também um símbolo da fé cristã (fl.2). Para esse promotor, a existência do crucifixo em órgãos públicos não representa ofensa ou discriminação para seguidores de outras crenças. Além disso, em seu entendimento, a afixação da imagem de Cristo crucificado em órgãos públicos não é uma forma de divulgação de crenças religiosas: A presença do crucifixo também não sugere “que seus servidores [da Câmara] estão submetidos a outros princípios que não aqueles que regem a administração pública...”. E nem, é verdade que cause constrangimento “nos cidadãos que professam diferentes filosofias de vida”, afirmação feita pelo autor da representação como se fosse ele o porta-voz dos que professam outras religiões ou filosofias de vida. Pois, como dito, cidadãos de diferentes credos jamais mostraram-se incomodados, ou vítimas de preconceito religioso, com a presença da imagem, um símbolo que também representa a paz(fl.2). Conforme o parecer do promotor Saad Mazloum, a tolerância às diferentes crenças religiosas e filosóficas é uma característica positiva da cultura brasileira, que estaria ameaçada com propostas como essas que visam eliminar símbolos religiosos de espaços públicos: A vingar pretensões como a do autor da representação, não será difícil prever novos movimentos, ou os próximos passos, mais arrojados: em breve serão os terços e colares com crucifixos. Depois os crucifixos no alto das igrejas, e depois as próprias igrejas. Depois será a vez do quipá usado por judeus. Suas sinagogas. E as masbahas dos que fizeram o haj, a peregrinação para Meca. Por fim, teremos movimentos mais ousados ainda: alguém, ou uma espécie de talibã tupiniquim, sugerirá ou representará pela implosão da estátua do 171 Cristo Redentor. E então, finalmente, atingiremos o “baluarte da liberdade nacional”, seremos um país verdadeiramente democrático (fl.3). Outrossim, o conselheiro-relator Walter Paulo Sabella217 não aceitou o pedido de Daniel Sottomaior, que solicitava a remoção do crucifixo presente no plenário da Câmara Municipal de São Paulo. Em seu entendimento, a ostentação de símbolo religioso em prédio público não torna o Estado menos laico, e sua remoção não garante a laicidade estatal: De outra parte, pretender que da exposição do crucifixo no local apontado se possa inferir relação de dependência ou aliança com organização religiosa constituiria ilação demasiado elástica e arbitrária. A aceitação de semelhante raciocínio por tratar-se o local de um prédio público levaria, simetricamente, à mesma conclusão em face do fato de achar-se a estátua do Cristo Redentor em terras públicas, no Rio de Janeiro (fl. 2). De acordo com Walter Sabella, a religião é um fato social. Destarte, elementos de sua doutrina, valores e símbolos migram do religioso para “os domínios mais vastos do cultural, do consuetudinário, da tradição, num processo de amálgama, de entronização ou, mais apropriadamente, de cristalização” (fl.6). Acerca disso ainda afirma: Do fato mesmo de ser a religião um fato social, emerge, ipso facto, a ingente dificuldade de distinguir, em fronteiras nítidas, se as coisas tidas como da religião, como seus símbolos, pertencem apenas aos domínios do campo religioso, ou se amalgamam e difundem pelos domínios da cultura, da tradição, do costume (fl. 4). Nesse sentido, o conselheiro do Ministério Público de São Paulo ressalta o caráter polissêmico dos símbolos: A propósito, nesta sala mesma, do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo, numa das paredes, aliás bem atrás da cadeira deste relator,ostenta-se belíssimo crucifixo com a imagem de Jesus de Nazaré, em linhas carregadas de influência bizantina, presente ofertado ao Conselho por seu ilustre membro, Conselheiro Draúsio Barreto. Símbolo religioso ou obra de arte? Para uns, figura do mais purificado espírito que trilhou os caminhos ásperos do Planeta; para outros, a face humana do próprio Deus; para outros, obra de arte, iluminada pelos traços seculares das civilizações helênicas, romana, persa e armênia, legado à posteridade pela cultura multirracial da cidade às margens do Bósforo que, de tão múltipla, teve mesmo vários nomes: Bizâncio, Constantinopla, Istambul. Como se vê, se há tema árduo é o caráter polissêmico dos símbolos; e os religiosos não escapam a essa tormentosa tarefa. A própria cruz, em suas múltiplas variações, um dos símbolos mais antigos da civilização humana, já teve e tem significados plúrimos, ora simbolizando o homem e a mulher, o superior e o inferior, o tempo e o espaço, a dor ou a fraternidade. Já foi símbolo pagão, de religiões politeístas, e de religiões monoteístas, de seitas esotéricas, de sociedades secretas e nações A interpretação dada a um símbolo por uma parcela dos 217 Parecer emitido em 27 de agosto de 2007. 172 membros de uma sociedade não lhe retira a imanente polissemia, e essa constatação há sempre de funcionar como conselheira da tolerância e da indulgência na interação social (fl. 4). O promotor Walter Sabella exprime, com essa colocação, uma arguta observação antropológica. Antropólogos têm ressaltado a polissemia e multivocalidade dos símbolos. Conforme Victor Turner (2008), os símbolos condensam múltiplos significados, que podem se transformar ao longo do tempo e dependendo do contexto. Ademais, os grupos sociais e os indivíduos atribuem diferentes sentidos a um mesmo símbolo. Dessa forma, o significado de um símbolo nunca é único e definitivo. Com o fito de apoiar sua argumentação em defesa dos símbolos religiosos nos espaços públicos, Walter Sabella chama a atenção, como já fizeram outros juristas, para o fato de que na Constituição Federal de 1998 há a menção a Deus: A adoção do rígido ângulo de análise do nobre recorrente poderia levar à conclusão de que o próprio preâmbulo da Constituição Federal se mostra atentatório à liberdade de crença, pois ali se proclama que a Lei Maior do país é promulgada sob a proteção de Deus. Ora, se a liberdade abrange tanto o direito de professar uma fé religiosa como o de não professar fé alguma, resultaria que, em respeito aos ateus, a proteção divina não deveria ser invocada (fl.5). Vale lembrar aqui que o crucifixo exposto na sala da presidência da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo foi retirado no ano de 1991 por Carlos Apolinário, então presidente deste parlamento, sem ouvir o plenário. Carlos Apolinário era ligado a uma igreja evangélica, mais precisamente a Assembleia de Deus.218 Esse acontecimento ensejou a impetração de um Mandado de Segurança219, por um deputado estadual, contra o ato do presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo. O Mandado de Segurança foi examinado pelos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo ainda em 1991. Para o relator Rebouças de Carvalho, a matéria em tela é de âmbito estritamente administrativo, sendo assim, a colocação ou a retirada de um crucifixo da sala da presidência da Assembleia Legislativa é um ato inócuo que não contraria o que esta definido no inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal, que se refere à liberdade religiosa. Declarou ainda que não há qualquer dispositivo legal que subordina a colocação ou a retirada desse objeto religioso da sala da presidência da Assembléia à Em entrevista à revista Defesa da Fé, assim afirmou sobre essa atitude: “Aprendi, desde criança, que não devemos adorar imagens, porque: têm boca, mas não falam, têm ouvidos, mas não ouvem, têm pés, mas não andam, têm mãos, mas não apalpam. Além disso, não poderia deixar em minha sala um ‘Cristo’ morto, que nada mais era do que um símbolo católico”. Disponível em: http://www.icp.com.br/77entrevista.asp. Acesso em: 10/10/2010. 218 219 Mandado de Segurança n. 13.405-0. Impetrante: Antônio Carlos de Campos Machado. 173 votação, consulta ou aquiescência dos demais deputados estaduais. Afirmou, também, que a presença desse símbolo religioso no plenário ou na sala da presidência não é condição fundamental para o pleno exercício do mandato de deputado. Ao final de seu arrazoado, asseverou: Pode-se até lamentar ao ato praticado, dentro de determinada ótica, católica no caso, mas tal não enseja, nem possibilita o uso do presente remedium júris, que diante de flagrante carência, fica decretada o extinto feito, sem exame de seu merecimento [...] (RJTJESP, 134/371, 1992). Como se pode notar, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pela carência da ação, de modo que o ato de remoção do crucifixo foi considerado legítimo, pois não há qualquer obrigação de se colocar esse objeto religioso na sala da presidência da Assembleia Legislativa (Leite, 2008). Interessante observar o voto vencido do desembargador Francis Davis, que assim declarou: O crucifixo existente na Presidência da Augusta Assembleia Legislativa é uma exteriorização dos caracteres do Povo de São Paulo. É a representação de um Povo religioso, que está, também, em perfeita correspondência com o preâmbulo da própria Constituição deste Estado, outorgada com invocação da “proteção de Deus”. É ainda, a exteriorização de um Povo que, como deve, cultua sua história, tendo sempre presente que o Brasil, desde o seu descobrimento, é o País da Cruz. Isto é, a Ilha de Vera Cruz, e depois, a Terra de Santa Cruz, indicação, em última análise, de um povo espiritualista, nunca materialista (RJTJESP, 134/374, 1992). Em um primeiro momento, chama a atenção nessa colocação o emprego de termos como exteriorização e representação. O desembargador Francis Davis pretende demonstrar que o crucifixo existente naquele recinto reflete e expressa a religiosidade e a cultura católica do “povo”. Por sua vez, procura argumentar que o crucifixo é mais que um símbolo religioso; já é um símbolo cívico. Além disso, nota-se que mais uma vez o argumento da invocação do nome de Deus no preâmbulo constitucional, no caso em questão o Deus invocado na Carta Magna do Estado de São Paulo, é empregado para justificar a ostentação do crucifixo. O voto vencido do desembargador Bueno Magno também apresenta alguns elementos interessantes. Primeiramente, enfatiza que a presença da imagem de Cristo no referido recinto é dispensável. No entanto, alega, também, a convicção religiosa dos constituintes que invocam a proteção de Deus no intróito da Constituição Estadual como ponto de partida para a defesa do crucifixo. Afirma que Cristo não é apenas um símbolo local, mas universal, presente no coração de todos os povos, independente de 174 igrejas. Argumenta que o deputado estadual autor do mandado de segurança tem total legitimidade em sua iniciativa, haja vista que esta visa anular um ato agressivo contra um símbolo incorporado à cultura humana, com valor transcendente, sendo já parte do patrimônio público. Sobre isso, ainda assevera: O ato gratuito e sua justificativa, do eminente Presidente da Câmara, retirando da parede de seu Gabinete a imagem de Cristo, não só feriu o sentimento religioso, mas um símbolo espiritual incorporado ao patrimônio público, já que foi colocado naquele local. Nessa conjuntura, face à inércia da Mesa, cumpre a qualquer Deputado defender valor altamente religioso, incorporado ao patrimônio público (RJTJESP, 134/375, 1992). Ao final do seu voto, em um exercício de hermenêutica, versa sobre a semântica do símbolo religioso em debate: Todos sabem que a Imagem de Cristo na parede do Gabinete não causa prejuízo político, conforme afirma o impetrado; também não estimula o animismo nem a adoração da imagem, condenada pela Bíblia, porém atua como coadjuvante simbólica, para propiciar entendimento e diálogo, em relação às pessoas que visitam o local, dispondo todos para o consenso e elevação espiritual, pois tudo que eleva faz convergir. Nem queira se reduzir a imagem na acepção material - o metal- como que integra o patrimônio público, pois este é ancoradouro e hospedagem do valor, na acepção da filosofia culturalista, do símbolo, daquilo que representa outro, como salienta a filosofia tradicional (RJTJESP, 134/376, 1992) De forma clara e precisa declara, nessa passagem, que o crucifixo não é um mero objeto material, “metal”, mas uma imagem que atua, age, condensando valores e servindo como suporte para a elevação interior e a harmonia social. Ademais, sublinha novamente que esse objeto é um patrimônio público, procurando assim diluir seus aspectos confessionais e particularistas. Em 2007, ano em que foram examinados os pedidos de Daniel Sottomaior pelo CNJ, foi removido da sala de espera da clínica odontológica da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo um crucifixo, a pedido do cidadão Vicente Ciccone, depois do recebimento de ofício da Promotoria de Justiça de São Paulo. O 5º promotor de justiça da cidadania, Sérgio Turra Sobrane, assim declarou em seu parecer de 4 de janeiro de 2007: Cabe ao Estado - e a seus agentes - proporcionar o cumprimento das disposições constitucionais, garantindo a liberdade de fé reconhecida no inciso VI do art. 5º da Constituição de 1988. Em razão disso, não podem os agentes estatais se valerem dos próprios públicos para manifestação de suas convicções religiosas, como se as estivessem apregoando aos cidadãos que buscam a prestação de um serviço público (fl.3). 175 Igualmente, em maio de 2008, o Ministério Público Federal foi informado, por meio de um ofício expedido pela Procuradoria da República no Estado de São Paulo que a Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Adalgisa Pereira Prado, localizada no município de Nova Granada/SP, interrompeu o horário normal das aulas do período da manhã para recebimento de uma estátua de culto católica, mais especificamente, a imagem de Nossa Senhora. Diante disso, o Ministério Público Federal, através do procurador da República Eleovan César Lima Mascarenhas, emitiu uma recomendação ao prefeito de Nova Granada, padre Aparecido Donizete Mertelli, que se abstivesse de fazer “qualquer manifestação religiosa em repartições públicas, tais como a ocorrida com a peregrinação da imagem de Nossa Senhora, no período de 19/05/2008 a 09/06/2008” (fl.3). Na recomendação, o procurador da República justificava seu posicionamento com base nos artigos 5º, inciso VI, e artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, que tratam respectivamente sobre a liberdade de consciência e a separação entre Estado e religião. Em determinado momento de seu arrazoado, argumentou: Considerando que, por ser o Brasil um estado laico, religião alguma poderá exercer pressão ideológica junto aos cidadãos livres porque não há verdadeira democracia sem liberdade religiosa, isto é, sem igualdade dos cidadãos perante a lei também no exercício das crenças religiosas” (fl.2). Mais uma vez a agência do símbolo é destacada quando o procurador assevera que nenhuma religião pode exercer pressão ideológica. Com isso, ele parece indicar que a imagem de Nossa Senhora produz efeitos, transmite uma mensagem e pode, assim, denegrir e excluir os não católicos. Guardando similitudes com o caso anterior, em outubro de 2007, a iniciativa do juiz federal do Estado do Pará, Daniel Santos Rocha de receber nas dependências da Justiça Federal Paraense, pela primeira vez em 40 anos de funcionamento, a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré foi contestada judicialmente. Vale lembrar que a recepção dessa imagem religiosa integrou-se às festividades do Círio de Nazaré e era parte de uma série de eventos que marcaram a comemoração dos 40 anos de atividade da Justiça Federal do Pará. Na programação desse evento, constava que a imagem chegaria ao prédio da justiça às 15 horas do dia 4 de outubro, sendo homenageada na área do estacionamento com chuva de papel picado. Posteriormente, seria realizada uma missa no auditório da Justiça Federal. Na saída da imagem do prédio, uma servidora da justiça cantaria a “Ave Maria” de Gounod. 176 A representação contra o ato do citado juiz federal foi formulada por Roberto Alves de Almeida. Segundo notícias publicadas na imprensa paraense na época esse cidadão teria vínculos com a campanha “Brasil Para Todos”. Na representação220, é arguido que o Estado brasileiro é laico e dessa forma neutro, estando assim as autoridades estatais impedidas de expressar favorecimento a qualquer crença religiosa. Afirma que o Estado e suas repartições devem estar acima de quaisquer convicções particulares, pois pertencem a toda a população. Destarte, não seria lícito que os magistrados, no exercício de suas funções públicas, colocassem em prática as suas crenças religiosas. Com base nesses argumentos, requereu liminarmente que o trajeto de peregrinação do Círio de Nazaré não se realizasse nas dependências da Justiça Federal do Pará. No seu parecer sobre o caso, o Desembargador Jirair Aran Meguerian julgou improcedente a representação, indeferindo o pedido de liminar de Roberto Alves de Almeida. Inicialmente fundamenta seu parecer na decisão proferida pelo CNJ em 2007, favorável à exibição de crucifixos em recintos estatais. Declara que a festa do Círio de Nazaré, realizada no segundo mês de outubro, é já uma festa enraizada na cultura do Estado do Pará. Assim, seu prestígio transcenderia aspectos religiosos específicos do culto de uma igreja determinada, equivalendo em importância às festas de Natal e Réveillon. Ainda assevera: [....] as festividades do Círio de Nazaré transcendem o significado meramente religioso, evidenciando-se contornos do verdadeiro evento de confraternização e folclore, que atinge proporções grandiosas de massificação de costumes e atitudes, com inegáveis reflexos no folclore e na cultura popular. Não podendo se olvidar, outrossim, que é um evento incluído no calendário turístico da região. Dessa forma, não obstante os argumentos apresentados na Representação sob exame, a verdade é que a peregrinação do Círio de Nazaré pela sede da Secção Judiciário do Pará não viola o preceito constitucional inscrito no artigo 19, inciso I da Carta Magna, ao contrário, tal evento assegura a preservação das tradições culturais do povo paraense cuja proteção compete ao Estado, nos exatos termos do art. 215 da mesma Carta.221 Finaliza sua decisão afirmando que a visita da imagem peregrina pela Justiça Federal do Pará não viola, agride ou discrimina os direitos dos cidadãos que querem participar do evento.Os membros da Corte do Tribunal Regional Eleitoral do Pará, presidido na época pela desembargadora Raimunda Noronha, saudaram a decisão. Afirmou essa desembargadora: 220 Representação nº 2007100991-PA, distribuída no Tribunal Federal da 1º Região. 221 Disponível em: http://conjur.com.br/static/text/60175,1 . Acesso em: 10/09/2009 177 O Círio de Nazaré é uma festa religiosa e secular aqui no Pará. Nossa Senhora de Nazaré no Pará é Chefe de Estado. A festa do Círio é uma festa prestigiada não só pelos habitantes de Belém, mas pelas pessoas do Pará inteiro, de outros estados e até do exterior, é inclusive patrimônio cultural do Estado [...] O que eu proponho à Corte é um voto de cumprimento à decisão do Desembargador Federal Jirair Meguerian, que numa atitude digna, rechaçou a medida judicial requerida.222 Por sua vez, declarou o juiz federal José Alexandre Franco: O desembargador Jirair, quando rejeitou a representação, deixa muito claro que ao lado da liberdade religiosa nós também temos a proteção constitucional às manifestações culturais. E eu, como um mineiro que chegou aqui no Pará já me sinto contagiado por todo esse clamor do Círio de Nazaré. A questão do Círio transcende a manifestação meramente religiosa, ela contagia a população, ela contagia as pessoas e a gente se sente envolvido nisso tudo. Respeitamos a liberdade de religião de todos, mas há um outro princípio constitucional, que é o da manifestação da cultura. 223 Desse modo, a imagem de Nossa Senhora de Nazaré e a própria festa do Círio no Pará, são percebidos como algo mais do que um símbolo religioso católico. Apresentam-se na visão desses atores sociais, como uma espécie de ícone cultural, o que legitimaria o Estado a albergar tal manifestação cultural. Aqui como em outros casos e situações, nota-se como assinala Casanova (2007d), uma mútua penetração da religião pelo secular e do secular pela religião. As fronteiras entre esses domínios são difusas, não sendo tão claro onde a religião começa e o secular termina. Além dos casos aqui expostos, observa-se nos últimos anos o surgimento de uma série de outras situações conflitivas envolvendo a exibição de símbolos religiosos católicos em locais públicos. Procurarei, agora, apresentar e descrever de forma sucinta estes eventos. Esboço aqui uma espécie de inventário dessas situações. No final de 1998 o vereador Carlos Francisco Signorelli (PT-SP), da cidade de Campinas, entrou com uma representação junto à Promotoria de Justiça dos Direitos Constitucionais dos Cidadãos. Noticiava a reclamação224 feita à Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Municipal de Campinas acerca da existência de crucifixos afixados nas paredes da Escola Municipal de Educação Infantil Perseu Leite 222 Disponível em: www.trepa.gov.pa.br/conteudo.php?titulo=noticias&pagina=noticiaseventos/ultimasnoticias/corpo/corpo. php&CodigoNoticia=10420071505. Acesso em: 20/11/2008. 223 Disponível em: www.trepa.gov.pa.br/conteudo.php?titulo=noticias&pagina=noticiaseventos/ultimasnoticias/corpo/corpo. php&CodigoNoticia=10420071505. Acesso em: 20/11/2008. 224 A representação deu origem ao protocolo nº 37.069/98. 178 de Barros. Alegava na representação que esse fato configuraria prática de discriminação religiosa. A questão foi examinada pelo promotor de justiça Rodrigo de Mesquita Pereira, que em sua manifestação argumentou que a identidade étnica e a auto-estima de uma criança não são colocadas em risco por elas enxergarem numa parede um crucifixo ou outro símbolo religioso. Também destacou que o papel principal de uma escola é propiciar a formação cultural e cívica da criança. Por consequência: “[...] desavenças de fundo religioso devem se limitar ao âmbito dos templos onde se professam as [...] crenças (fl. 2).” Asseverou ainda: [...] no que tange à liberdade de convicção religiosa, o que constitucionalmente se garante é a ausência de supremacia de um credo sobre outro e não a obrigatoriedade de se situar, nas paredes de uma escola pública os símbolos de todas as crenças professadas (fl.2). Com essas colocações, decidiu pelo arquivamento do processo. Em fevereiro de 2003, Carlos José Pedroso de Oliveira, ligado a uma igreja batista e residente na cidade de Adamantina/SP, moveu uma ação popular contra o exprefeito dessa cidade, José Laércio Rossi, e a Mitra Diocesana de Marília/SP por envolverem-se diretamente na construção e implantação de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida no trevo de acesso à cidade. Nessa ação popular, afirmava-se que a instalação de tal monumento representava um desvio da prefeitura de sua finalidade eminentemente administrativa, causando prejuízo ao erário público. Declarava-se ainda que esse monumento privilegiava apenas o catolicismo, e que nem a população adamantinense e nem mesmo representantes eleitos à Câmara Municipal, foram consultados acerca dessa obra. Desse modo, o autor da ação requeria a cobertura ou a retirada do monumento, além da devolução aos cofres públicos da importância gasta na sua confecção e instalação. No final de 2007, o então juiz da 1ª Vara Judicial da Comarca de Adamantina/SP, José Roberto Canducci Molina, acatou o pedido constante na ação popular, determinando a retirada da imagem em até 30 dias, sob pena de multa diária no valor de dez salários mínimos. Ademais, condenou o ex-prefeito e a Mitra Diocesana de Marília/SP a restituírem a quantia gasta na construção e instalação do monumento. Na sentença, o juiz José Canducci asseverou que a alegação usada pela defesa de que o Brasil é o maior país católico do mundo não justifica a construção desse monumento. Sobre isso ainda acrescentou: Não são somente os templos religiosos católicos que aqui existem, muito embora sejam os que ocupam posições privilegiadas. [...] Conclui-se racionalmente que a imagem plantada no trevo de ingresso à cidade não o foi 179 ao arrepio dos interesses católicos romanos, posto que até mesmo missa de inauguração foi celebrada, e muito menos em atenção ao interesse das demais religiões que, quando não evocam outro messias, rejeitam o direito canonizador de reconhecimento dos santos praticado pela Igreja Católica. Em palavra direta, os santos estão diretamente ligados à cultura cristã romana, mas não às demais religiões ainda que cristãs anglicanas ou germânicas. 225 Diante da decisão desse juiz, os advogados da Prefeitura de Adamantina/SP e da Mitra Diocesana de Marília/SP solicitaram a reforma da sentença que determinou a retirada da imagem. Nos recursos alegaram que o autor da ação popular pertence a outra religião, o que caracterizaria interesse pessoal, e não o interesse coletivo que deve pautar uma ação popular. A Mitra argumentou que a imagem de Nossa Senhora Aparecida é ponto de peregrinação e adoração de todos aqueles que chegam e saem da cidade. Por sua vez, os advogados da prefeitura declararam que o monumento já é parte integrante da paisagem urbana. Além disso, enfatizaram que boa parte da população desse município é católica e que, dessa forma, a retirada da imagem poderia provocar uma comoção social. Sendo assim, entediam que todo o imbróglio seria encerrado com o pagamento aos cofres públicos do dinheiro gasto na construção e instalação da imagem. Os desembargadores da 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo analisaram os recursos no final de 2008. Decidiram por dar parcial provimento aos recursos. A retirada da imagem seria desnecessária, cabendo somente ao ex-prefeito e à Mitra Diocesana de Marília/SP restituírem aos cofres públicos o valor desembolsado na confecção e implantação do monumento. O desembargador e relator desse caso no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Urbano Ruiz, assim se manifestou na decisão em 2ª instância: O município não podia desembolsar dinheiro público para o custeio das despesas referidas. Não se tolera o desvio de finalidade. [...] Desnecessário, entretanto, a remoção da imagem, do monumento. Assente-se, nesse ponto, que parcela expressiva da comunidade admitiu a iniciativa, o local é frequentado e já se integrou ao ambiente, sem que precise ser removido, mesmo porque monumentos como este são frequentes em cidades, não só de santos, mas de ícones ou símbolos de outras religiões. 226 225 Disponível em: http://oimparcial.uol.com.br/site/nossaregiao-ver.php?codigo=8980. Acesso em: 02/10/2009. 226 Disponível em: http://osvaldocruz.com.br/?pg=noticia&id=3164. Acesso em: 03/10/2009. 180 FIGURA 8. Imagem de Nossa Senhora Aparecida em Adamantina /SP. 227 FIGURA 9. Imagem de Nossa Senhora Aparecida em Adamantina /SP, com fiéis. 228 Em janeiro de 2005, no início de seu mandato, o prefeito da cidade mineira de Ponta Nova, Luís Eustáquio Linhares (PSB-MG), espírita, determinou a retirada de todas as imagens religiosas presentes em repartições públicas. Como exemplo concreto 227 Disponível em: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=816240&page=4. Acesso em: 08/03/2009. 228 Disponível em: http://www.gruponoticia.com.br/view/?id=456. Acesso em: 08/03/2009. 181 dessa determinação foi removido um oratório com a imagem de Nossa Senhora na mais importante escola municipal da cidade. Igualmente, foi retirada uma imagem de São Francisco e um quadro de Jesus Cristo existentes no gabinete da chefia do executivo. A medida provocou uma grande comoção na comunidade local. Até mesmo o Jornal Nacional, da Rede Globo de televisão, noticiou o ocorrido em sua edição de 18 de janeiro de 2005. O prefeito espírita assim justificou sua medida: “Queremos incutir a noção do social, do uso do espaço coletivo, do respeito. Entendemos que os espaços públicos não podem ser utilizados por facções (Jornal o Tempo, 20/01/2005)”. Por outro lado, diversas lideranças religiosas católicas locais se manifestaram sobre o caso, criticando duramente a atitude do prefeito mineiro. Não foi possível obter maiores informações sobre esse caso, contudo, pode-se especular que a forte reação da comunidade e de determinadas autoridades políticas e religiosas deve ter feito o prefeito recuar em sua medida. Ainda no ano de 2005, a secretária municipal de educação da cidade de Ourinhos, no Estado de São Paulo, Maura Balbinot, determinou a retirada de símbolos religiosos presentes em escolas municipais.229 Afirmou que sua ação tinha amparo na Constituição Federal: O que houve foi uma orientação da secretaria para que seja respeitado o artigo 5º da Constituição, que estabelece a livre manifestação de pensamento. Antigamente havia um número bem menor de religiões e hoje há uma proliferação delas. Temos que assegurar pluralidade, o direito das pessoas de optar.230 Ao tomar conhecimento dessa medida o bispo da diocese de Ourinhos, Dom Salvador Paruzzo, reuniu-se com o prefeito e a secretária da educação, convencendo-a a voltar atrás em sua decisão. O bispo consultou a CNBB, o secretário estadual de educação de São Paulo na época, Gabriel Chalita, e o presidente da Câmara Municipal de Ourinhos a fim de saber se havia alguma lei estadual ou municipal que determinasse a retirada dos símbolos religiosos. Por sua vez, afirmou que ao invés de removerem-se símbolos religiosos católicos de ambientes públicos, deveria haver uma conscientização da importância da mensagem de Cristo para a humanidade: “Não é retirando sinais religiosos que ajudamos os alunos a serem mais cidadãos. O que deveríamos explicar é 229 Também determinou a suspensão das aulas de ensino religioso nas escolas públicas. 230 Disponível em: www2.uol.com.br/debate/1266/regiao/regiao02.htm. Acesso em: 29/07/2010. 182 qual a mensagem que esse sinal representa”.231 Defendeu, ainda, a permanência de imagens religiosas católicas, asseverando que o brasão da cidade de Ourinhos possui como símbolos, além do trem, dos rios, do café e da cana-de-açúcar, a coroa de espinhos e a palma do senhor Bom Jesus, que é o padroeiro do município. Acerca da peculiaridade da presença de símbolos religiosos como os crucifixos em espaços públicos como escolas, sublinho aqui, a título de ilustração e como contraponto do que ocorre no Brasil, a decisão do Tribunal Constitucional da Alemanha em 1995, que declarou a inconstitucionalidade da exibição de crucifixos em salas de aulas do ensino público fundamental. Sobre essa decisão comenta Leite (2008, p.363): [...] o Tribunal diferenciou o confronto proporcionado pela cruz em sala de aula daquele que ocorre no dia-a-dia, fora do âmbito escolar, com símbolos das mais variadas orientações religiosas. As diferenças identificadas pela Corte referem-se ao fato de que este tipo de confronto, fora do âmbito escolar, ‘não é provocado pelo Estado, mas conseqüência da propagação de diferentes convicções e comunidades religiosas na sociedade’ e ao fato de que ‘este tipo de confrontação não encerra o mesmo grau de inevitabilidade’. O Tribunal ainda ressaltou que, em ‘razão da duração e da intensidade o efeito das cruzes nas salas de aula é maior que o seu efeito nas salas de tribunal’[...]. Enquanto o encontro com símbolos religiosos nas ruas e em outros ambientes públicos, é fugaz, na escola ele é diário. Além disso, a decisão judicial ainda enfatiza que esse encontro se dá quando as crianças e os jovens estão em um momento essencial de sua formação, sendo mais suscetíveis a qualquer tipo de influência doutrinária. Diferentemente do que ocorre no Brasil, a jurisprudência europeia e norte-americana tem levado em conta o local, o contexto espacial, em que se situa determinado símbolo ou monumento religioso. Como já comentei rapidamente em capítulo anterior, em fevereiro de 2009 o novo presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), Luiz Zveiter, decidiu pela retirada do crucifixo presente no plenário do Órgão Especial do referido tribunal e a desativação da capela católica que foi transformada em um espaço ecumênico, tendo o crucifixo sido transferido para esse novo local. Luiz Zveiter, que é de origem judaica, mas seguidor do espiritismo e maçom, justificou sua decisão dessa forma: Se você tem um local com 25 pessoas julgando, cada uma com sua profissão de fé, não precisa ter um símbolo de uma determinada religião. Ali não é lugar de oração. É lugar de julgamento. Na capela, que agora é um espaço 231 Disponível em: http://www2.uol.com.br/debate/1266/regiao/regiao02.htm. Acesso em: 29/07/2010. 183 ecumênico, é lugar de oração, e quem frequenta o local, leva seu crucifixo, e o que mais desejar, e depois guarda para que outros possam utilizar o espaço.232 O espaço ecumênico já foi inaugurado. Nas quartas-feiras são realizados cultos evangélicos e nas quintas-feiras missas católicas; os demais dias estão disponíveis para outros grupos religiosos. Zveiter declara que a criação do espaço ecumênico era uma antiga reivindicação de desembargadores evangélicos. Contudo, a decisão do novo presidente do TJ-RS provocou reações. Alguns desembargadores católicos, e outros que não apoiaram Luiz Zveiter na candidatura à presidência, contestaram a medida.233 O desembargador José Mota Filho, católico, ingressou com um pedido de providências234 junto ao CNJ, ainda em 2009. Pretendia que o CNJ determinasse ao presidente do TJRJ, que este submetesse a julgamento do Órgão Especial da citada corte a decisão sobre a retirada do crucifixo. Em se tratando de assunto de ordem interna e considerando a relevância do tema, a questão deveria ser votada. Asseverou que formulou esse pedido ao presidente da corte, Luiz Zveiter, que, entretanto, o indeferiu. A conselheira-relatora Andreá Pachá, em decisão monocrática, arquivou o pedido de providência. Em seu arrazoado argumentou que a matéria não é prevista no Regimento Interno do TJ-RJ. Afirmou, também, que não se configura no caso ato administrativo ilegal a ser controlado e que ensejaria a atuação do CNJ. Ainda declarou no parecer: Não seria razoável considerar que a retirada do crucifixo da sala de sessões e a recolocação em sala distinta seja de matéria de análise obrigatória pelo Órgão Especial da Corte. O respeito às diferentes crenças religiosas e convicções é garantia constitucional. No entanto, a decisão de retirar o crucifixo da sala de sessões não indica qualquer ofensa a esse direito, notadamente diante da laicidade do Estado (fl.2). A conselheira citou a decisão do CNJ sobre os pedidos de providência movidos por Daniel Sottomaior. Apesar disso, enfatizou a diferença entre os casos com a 232 Disponível em: www.ofluminense. com.br/noticias/231072.asp?pStrLink. Acesso em: 29/09/2009. 233 Houve setores que aplaudiram Zveiter, como é o caso da Associação de Ateus e Agnósticos(ATEA) que assim se manifestou sobre o caso: “De um jeito ou de outro, a posição do juiz é notável no mar de religiosidade e religiocentrismo alavancadas pelo Estado que vivemos no Brasil desde sempre, a despeito de qualquer legislação em contrário. Por isso sugerimos a todos que mandem suas congratulações ao juiz”. Disponível em: http://www.atea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=84:tribunal-de-justica-do-riode-janeiro&catid=923:dia-a-dia&Itemid=104. Acesso em: 20/09/2009. O deputado federal Arolde de Oliveira (DEM-RJ), evangélico, também saudou a iniciativa de Zveiter em pronunciamento na Câmara dos deputados. 234 Pedido de providências nº 20090000018590. 184 seguinte asserção: “A hipótese era distinta e preservou-se a possibilidade da manutenção dos símbolos, mas não a sua obrigatoriedade (fl.3)”. Contudo, o desembargador José Motta Filho ingressou com um recurso administrativo contra a decisão. O plenário do CNJ apreciou o processo dando provimento ao recurso. Dessa maneira, a decisão da relatora Andréa Pachá foi anulada. Entenderam os conselheiros que era plausível a pretensão do requerente, afirmando: “Assim, a retirada ou manutenção de crucifixo nas salas de sessões insere-se dentro do conjunto de ‘assuntos de ordem interna’(fl.2)”235. Importa notar que os conselheiros declararam que não estava em julgamento no pedido de providência e no recurso a questão de saber se os crucifixos podem ou devem ser removidos ou mantidos em recintos estatais do poder judiciário, mas se tem o presidente de um tribunal o direito de deixar de submeter decisão sua ao exame do Órgão Especial, a partir de uma provocação individual ou coletiva de desembargadores. Sendo assim, no entendimento do CNJ a medida do presidente do TJ-RJ deveria ter sido discutida pelos demais desembargadores. Em maio de 2009, no Estado do Piauí, quatorze entidades da sociedade civil protocolaram uma representação ao Ministério Público daquele estado solicitando a retirada de símbolos religiosos católicos como crucifixos e imagens de santos, bem como a desativação de capelas e oratórios existentes em órgãos públicos (vide abaixo foto de capela católica no Centro Administrativo que abriga várias secretarias estaduais, foto de crucifixo presente no plenário do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí e de capela católica existente no Tribunal de Justiça do Piauí). As organizações religiosas e leigas que subscreveram a representação são as seguintes: Associação dos Evangélicos do Piauí; Católicas pelo Direito de Decidir; Grupo Matizes; Liga Brasileira de Lésbicas; Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase; Rede Estadual de Cultos Afro-brasileiros do Piauí em Saúde; União das Mulheres Piauienses; Articulação Brasileira de Lésbicas; Ação de Missionários Itinerantes; Gênero Mulher e Desenvolvimento para a Cidadania (GEMDAC); União da Juventude Socialista; Nós Tudinha; Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV/AIDS e Movimento de Apoio à Inclusão Social (MAIS). A representação foi assinada quando da realização do 4º Seminário sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos que teve como tema: “Estado Laico: 235 Parecer emitido pelo conselheiro Antonio Umberto de Souza Júnior em 12 de junho de 2009. 185 garantia de direitos das mulheres”, que ocorreu nos dias 16 e 17 de maio em Teresina, tendo sido organizado pelas entidades Católicas pelo Direito de Decidir, Matizes e Liga Brasileira de Lésbicas. Importante sublinhar que acerca da capela católica presente no TJ-PI, o CNJ, no ano de 2009, em relatório de inspeção236 constatou que esta ocupa um espaço excessivo, cerca de ¼ do segundo andar do edifício do TJ-PI, recomendando a destinação de “um espaço comum, menor, para práticas religiosas e ocupe o espaço da Capela com unidades integrantes da estrutura do Tribunal (fl.257).” Segundo informação de Marinalva Santana, coordenadora do grupo Matizes, os símbolos religiosos católicos foram retirados da capela. O espaço está sendo readequado para abrigar um setor do Poder Judiciário. Curiosamente realizam-se hoje no local da antiga capela casamentos civis. Além disso, ficou constando que um militar ocupa a função de capelão do TJ-PI, recebendo gratificação por cumprir essa atividade. O relatório do CNJ recomendou a dispensa do militar ou seu aproveitamento em funções previstas em decreto. FIGURA 10. Capela Católica no Centro Administrativo do Estado do Piauí. 237 236 O relatório do CNJ tem um caráter mais amplo, apontando uma série de ilegalidades como nepotismo direto, pagamento indevido de diárias e ajuda de custo a magistrados, excesso de cargos comissionados e demora na tramitação de processos. 237 Imagem disponível em: http://www.cidadeverde.com/mp-proibe-capelas-em-orgaos-publicos-40361. Acesso em 11/11/2009. 186 FIGURA 11. Crucifixo no Tribunal Regional Eleitoral do Estado do Piauí.238 FIGURA 12. Capela católica no Tribunal de Justiça do Estado do Piauí. 239 Cabe ressaltar que juntamente com as organizações feministas, GLS 240 e afrobrasileiras, o pastor Robson Marcelo da Silva da Associação Evangélica do Piauí, é um 238 Imagem disponível em: www.portalaz.com.br/noticia/geral/138938_mpe_ajuizara_acao_contra_santos_em_orgaos_publicos.html . Acesso em 20/11/2009. 239 Imagem Disponível em: http://www.cidadeverde.com/catolicos-e-evangelicos-acionarao-juiz-contracapelas-em-orgaos-37778 . Acesso em: 20/11/2009. 187 dos principais protagonistas neste caso. Em sua opinião, não é justo que capelas construídas para serem ecumênicas, em ambientes estatais, ostentem somente símbolos católicos. Sobre isso, ainda, declara: [...] elas foram construídas com o dinheiro público e com isso elas pertencem a todas as religiões e um único credo não pode ocupar um lugar que é espaço de todos, então esse é o motivo que estamos levantando essa questão para que as capelas ecumênicas sejam limpas de toda e qualquer religião. 241 Instado por essa iniciativa, o Ministério Público do Piauí, realizou uma audiência pública para discutir o tema em 30 de junho de 2009, no auditório da ProcuradoriaGeral de Justiça em Teresina. A audiência coordenada pelos promotores de justiça Edilsom Farias242 e Hugo Cardoso, contou com a participação de representantes da sociedade civil, organizações religiosas e autoridades públicas, transcorrendo em um clima de tensão e com debates acalorados, conforme testemunha a coordenadora do grupo Matizes, Marinalva Santana. No encerramento da audiência pública, o promotor de justiça Edilsom Farias, propôs a redação de um Termo de Ajustamento de Conduta que obrigará os órgãos públicos a retirar os símbolos religiosos católicos. A assinatura desse termo por parte dos gestores públicos havia sido programada para ocorrer na 1ª quinzena de novembro de 2009; contudo ela não foi realizada até o presente momento devido a forte resistência das autoridades públicas243 e de setores da Igreja Católica.244 240 No ano de 2007, organizações feministas e GLS do Estado do Pernambuco e de Goiás, ingressaram com representações ao Ministério Público dos referidos Estados solicitando a retirada de símbolos religiosos, fundamentalmente católicos, de recintos estatais. Também nesse ano uma cruz afixada na entrada principal da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP, campus de Presidente Prudente, foi removida por conta de ofício enviado pelo diretório acadêmico da unidade à direção do campus. No local, temporariamente, foi colocada pelos estudantes um bandeira do movimento GLBT, a conhecida bandeira com as cores do arco-íris que apresentava os seguintes dizeres: “por um mundo sem machismo, racismo e homofobia”. 241 Disponível em: http://6r.com.br/ntgospel/noticias/257-no-brasil-e-no-mundo/1488-pastor-continuaprotesto-contra-santos-nas-igrejas-ecumenicas-do-piaui.html. Acesso em: 14/11/2009. 242 O promotor de justiça Edilsom Farias é favorável à iniciativa da remoção dos símbolos católicos. Em artigo publicado em setembro de 2009 no Le Monde Diplomatique Brasil com o título Uma separação de interesse público externa sua visão sobre a polêmica. 243 O governador do Piauí, Wellington Dias (PT), condenou a atuação do Ministério Público Estadual nesse caso, declarando que não obrigará os secretários de Estado a desativar capelas presentes em órgãos públicos e remover imagens católicas. Em sua opinião: “O Estado é laico, mas eu não posso transformar essa interpretação numa situação em que o Estado seja o acirrador de disputas religiosas”. Disponível em: www.cidadeverde.com/txt.php?id=46672. Acesso em: 22/10/2009. 244 O padre João Gomes, capelão da Assembleia Legislativa do Piauí, disse que a proposta de fechamento das capelas é uma provocação dos evangélicos. Além disso, afirmou: “Será que agora, também vamos ter que tirar as imagens dos cemitérios para os evangélicos visitarem?”. Disponível em: www.meionorte.com/cintialages. Acesso em: 22/11/2009. 188 Detenho-me agora na apresentação da representação enviada ao Ministério Público e no Termo de Ajustamento de Conduta, os quais obtive com Marinalva Santana, coordenadora do grupo Matizes. A representação datada de 17 de maio de 2009 inicia com a citação do artigo 5º, XXXIV, alínea “a”, e do artigo 19, inciso I, ambos da Constituição Federal 1988. Após, é feita uma transcrição de um comentário do ministro do STF Celso de Melo sobre o princípio da laicidade. Mais adiante se destaca a necessária neutralidade do Estado em assuntos religiosos: Em que pese a vedação do art.19, I, bem como as decisões judiciais no sentido de que o Estado deve se manter neutro, sem demonstrar simpatia ou antipatia por qualquer religião ou crença, observa-se com contumácia a presença de capelas e/ou santuários em órgãos da Administração Pública, sendo que, em alguns deles ocorrem celebrações de missas dentro do próprio órgão, inclusive em horário de expediente. Em outros, os servidores interrompem suas atividades laborais para reverenciar santos ou santas (fl.2). Aqui, como em outros momentos, a noção de neutralidade é utilizada para definir a laicidade do Estado. O Estado laico, formalmente neutro em matéria de crença, deveria se abster de promover e demonstrar simpatia por qualquer grupo religioso. É dito que os agentes estatais não podem utilizar o espaço público para manifestar suas crenças religiosas, pois em um Estado laico a fé deve ser uma questão privada. Por fim, as entidades signatárias da representação apresentam os seguintes requerimentos: I) Seja investigado se houve (ou está havendo) dispêndio de recurso públicos para subvencionar cultos religiosos, autorizado por algum(a) agente público do Estado do Piauí ou do Município de Teresina. Caso seja comprovada a existência de alguma despesa dessa natureza, que se adotem as medidas visando à devolução aos cofres públicos do montante gasto; II) Que todos os agentes públicos, de órgãos estaduais ou do município de Teresina, que patrocinam ou aquiescem com a realização de cultos religiosos nos órgãos em que dirigem, ou que mantêm espaços ocupados com oratórios, sejam instados a se abster desses atos de simpatia com uma determinada religião ou culto (fl.3). O Termo de Ajustamento de Conduta, por sua vez, leva a assinatura dos promotores de justiça Hugo Cardoso e Edilsom Farias, que presidiram a audiência pública. Novamente os artigos constitucionais referentes à liberdade religiosa e à separação entre Estado e religião são citados. Em seguida é dito que após a representação formulada por diversas organizações da sociedade civil constatou-se o dispêndio de recursos públicos para a subvenção de cultos religiosos, com a autorização de agentes estatais. Ademais, afirma-se que a liberdade de crença e consciência é parte da vida privada do cidadão, implicando que no âmbito da esfera pública o Estado não 189 terá religião, devendo, por outro lado, tratar com igualdade todos os credos. Ressalta-se também: [...] que a separação entre Estado e religião foi uma das grandes conquistas da cultura ocidental nos últimos séculos e que a cultura laica emancipada desse distanciamento muito contribui para inúmeras e relevantes conquistas que se mantêm até os dias atuais, tais como: o respeito à dignidade da pessoa humana, a inviolabilidade dos direitos fundamentais, a aceitação do pluralismo religioso e político (fl.2). Expostos esses argumentos, é elencada uma série de compromissos a serem seguidos pelos agentes públicos, tais como: abster-se de patrocinar e manter espaços ocupados com oratórios e/ou imagens religiosas nos órgãos de sua responsabilidade; não aquiescer com a realização de cultos religiosos quando estes comprometerem a prestação eficaz do serviço público; admite-se a existência de espaços na administração pública para a realização de manifestações culturais e até mesmo religiosas, desde que não ostentem preferência por determinada religião; na hipótese da existência de capela ligada a uma única confissão religiosa, caberá ao agente público realizar os devidos ajustes para adaptá-las em espaços ecumênicos ou destiná-las a uma finalidade pública, no prazo de até seis meses, cabendo ao Ministério Público no caso do descumprimento das cláusulas previstas no termo, a cobrança de multa diária pelo descumprimento da obrigação, no valor de R$ 1.000, a ser revertida ao Fundo Penitenciário do Estado do Piauí. Como o Termo de Ajustamento de Conduta não foi obedecido pelas partes envolvidas no imbróglio, o Ministério Público do Piauí, por meio do Promotor de Justiça Edilsom Farias, resolveu apresentar uma Ação Civil Pública.245 Nessa ação, o já referido promotor assevera que a liberdade de crença é colocada em jogo quando a administração pública patrocina ou até mesmo tolera que suas dimensões físicas sejam utilizadas como espaço para a propagação de credos religiosos particulares: “[...] afixar símbolos religiosos em repartições públicas equivale a transformar estes espaços públicos em postos de práticas religiosas ou mesmo fazer propaganda religiosa” (fl.8). Edilsom Farias declara que em um Estado laico as questões religiosas dizem respeito à intimidade dos indivíduos, cabendo unicamente ao Estado respeitar e se abster de interferir na esfera religiosa. Sendo assim, os espaços da res publica devem ser neutros e desvinculados de qualquer credo religioso. Em outro momento dessa ação enfatiza-se que ao longo da história da formação do Estado brasileiro sempre existiu uma forte 245 Essa ação data de 26 de outubro de 2010. 190 confusão, senão mesmo uma promiscuidade entre o público e o privado. Decorrências dessa confusão seriam práticas como o nepotismo, o patriarcalismo/paternalismo e o patrimonialismo, bem como a presença de símbolos religiosos de uma tradição religiosa particular em âmbito público: “[...] as imagens sacras existentes em inúmeros espaços públicos, a toda evidência, são um claro sintoma da sobredita confusão (fl.11).” Acerca desse ponto ainda acrescenta o promotor piauiense: [...] a atual geração tem assistido a demonstrações de mudança que revelam a insustentabilidade, do ponto de vista jurídico, do desvirtuamento da res publica, relegando-a a espaço de manifestações de um ou outro querer particular. A presente demanda assoma-se a tais investidas pelo redimensionamento da fronteira entre o público e o privado, trazendo o poder estatal para uma posição de neutralidade (fl.12). Ao final dessa ação é requerida a retirada e a posterior não-fixação de símbolos religiosos em repartições públicas do Estado do Piauí e do município de Teresina. O pedido liminar, também, exige que em caso descumprimento da sentença proferida seja fixada multa de R$ 1,00 para cada símbolo religioso indevidamente fixado. Em 12 de novembro de 2010 essa ação foi apreciada pelo juiz da 2ª Vara dos Feitos e da Fazenda Pública, Reinaldo Araújo do Santos, que negou a liminar, mas decidiu seguir com o processo. Na sentença o magistrado afirmou que este caso não se enquadra no pedido de urgência para uma liminar, pois, a matéria não traz prejuízos imediatos. O juiz vai ouvir a prefeitura de Teresina e o governo do Estado para o julgamento do mérito.246 Em agosto de 2011, o juiz emitiu sua sentença autorizando o uso de símbolos religiosos nas repartições públicas. Em novembro de 2010, uma ordem de serviço assinada pelo comandante do Corpo de Bombeiro de Tatuí/SP, capitão José Natalino de Camargo, determinava a retirada de crucifixos e imagens de santos católicos presentes nas unidades sob seu comando. Declarava, nessa ordem, que a existência desses símbolos religiosos poderia causar constrangimento para as pessoas que seguem outras crenças religiosas. Além disso, assinalava que as imagens expostas em repartições do Corpo de Bombeiros fazem apologia da religião católica, contribuindo também para a “manutenção da falsa crença de que aquela religião seria a única detentora da benesse estatal” (Estado de São Paulo, 17/11/2010). Afirmava, ainda, que a Constituição Federal estabelece a laicidade do 246 A nova presidente do Conselho Regional de Serviço Social do Piauí, Maria José do Nascimento, determinou a retirada de todos os símbolos religiosos existentes na sede da entidade. Conforme notícia do site cidadeverde.com, ela é a primeira mulher negra a presidir essa entidade. Tomou posse em 14 de maio de 2011. 191 Estado brasileiro, de modo que a presença de imagens religiosas em locais públicos seria ilegal e inconstitucional. Essa ordem de serviço foi encaminhada aos postos de bombeiros sob o comando do Grupamento de Tatuí/SP para que fosse imediatamente cumprida. A medida foi fortemente criticada. A Câmara de Vereadores de Tatuí/SP, aprovou por unanimidade uma moção de repúdio, alegando que este era um ato arbitrário e desrespeitoso para com a religião católica. Para os vereadores dessa cidade, o ato era intolerante, ferindo o princípio constitucional da liberdade de crença, e por conseqüência o direito dos funcionários católicos de externar sua fé religiosa em âmbito público. O interessante nesse caso é que todos os símbolos e imagens católicas foram retiradas. Na principal unidade do Corpo de Bombeiros dessa cidade, logo na entrada do quartel, na parede onde por muitos anos esteve aposta a imagem de São Floriano, padroeiro dos Bombeiros, só avistava-se agora a marca do prego. Segundo informações de funcionários do Corpo de Bombeiros, até mesmo imagens que estavam em mesas de trabalho particular foram retiradas por determinação pessoal do capitão José Natalino de Camargo. O Comando do Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo repudiou a decisão desse capitão e comunicou às unidades do Grupamento de Tatuí/SP que as imagens religiosas fossem imediatamente recolocadas. Ademais, informou que seria aberto um procedimento administrativo para apurar o caso, podendo redundar em uma punição. Em nota divulgada à imprensa, o Comando do Corpo de Bombeiros asseverou que esse foi um ato isolado, não representando a opinião da corporação. Na nota, também é afirmado: O Corpo de Bombeiros de São Paulo respeita a Constituição Federal onde está especificada a liberdade de crença, tanto da instituição quanto de seus membros. Cada profissional possui a sua crença, tanto da instituição quanto de seus membros. Cada profissional possui a sua crença, sem a interferência da instituição (O Progresso de Tatuí, 21/11/2010). Em janeiro de 2011, a presidente recém eleita Dilma Roussef, em sua primeira semana de trabalho, fez algumas alterações em seu gabinete no Palácio do Planalto, retirando a Bíblia da mesa e o crucifixo da parede. A atitude gerou certo incômodo em determinados setores ligados à Igreja Católica. Por conta disso, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República divulgou uma nota explicando que o crucifixo foi apenas entregue ao seu dono o ex-presidente Lula. Em relação à Bíblia, a nota da secretaria declara que a mesma permanece na sala contígua ao gabinete presidencial, em cima de uma mesa. 192 Em fevereiro de 2011, o presidente da Câmara Municipal de João Monlevade/MG, Carlos Roberto Lopes, retirou o crucifixo existente no plenário logo após ter assumido o cargo. A iniciativa do vereador tem provocado protestos por parte dos católicos e de outros vereadores que pressionam para que o crucifixo seja novamente colocado no plenário. Ressalta-se que o vereador Carlos Roberto Lopes é pastor da Assembleia de Deus. Ao ser questionado sobre sua atitude, declarou que age em respeito à Constituição Federal de 1988. Na reunião ordinária da Câmara de Vereadores, de 23 de fevereiro desse ano, um grupo de católicos esteve presente no plenário protestando contra a atitude do vereador. Cartazes e símbolos católicos eram ostentados pelos fiéis. Uma semana depois da manifestação, uma representante da paróquia São Luiz de Maria de Montfort, durante o intervalo da reunião ordinária dirigiu-se até o vereador Carlos Lopes e encostou um crucifixo em seu rosto. Pretendia com esse ato sensibilizar o vereador para que fizesse retornar o crucifixo à Câmara de Vereadores. Padres da cidade reuniram-se com o vereador tentando convencê-lo a desfazer sua decisão, não conseguiram, porém, lograr sucesso. Por consequência, uma carta assinada por sete párocos foi distribuída na cidade. Nessa carta, classifica-se a atitude do vereador Carlos Lopes como “arbitrária”. Ademais, afirma que esse seria um caso exemplar de “intolerância religiosa”. Derradeiramente, declaram no documento: “Sim, o Estado é laico, mas não antirreligioso! Não é confessional, mas também não é intolerante”.247 Como em outros casos, a polêmica em João Monlevade acabou sendo judicializada. Em liminar expedida em 5 de março do referido ano, o juiz da comarca desta cidade, Evandro Cangussu Mello, determinou que o presidente da Câmara Municipal recolocasse o crucifixo no plenário no prazo de 24 horas. A liminar foi concedida devido a uma ação popular movida por um advogado de João Monlevade. 247 Disponível em: http://www.ipatinganoticias.com.br/2011/03/crucifixo-abre-polemica-religiosa-na.html . Acesso em: 08/03/2011. 193 FIGURA 13. Protesto a favor da permanência do crucifixo na Câmara de Vereadores de Monlevade (MG). 248 Por fim, em novembro de 2011, um conjunto de organizações feministas e ligadas à defesa dos direitos dos homossexuais entregou à Câmara de Vereadores de Porto Alegre/RS, à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e ao Tribunal de Justiça desse mesmo Estado um pedido de retirada de símbolos religiosos presentes em recintos estatais. Em realidade, o pedido é de iniciativa da Liga Brasileira de Lésbicas/RS, contando com o apoio de outras entidades como a Marcha Mundial das Mulheres; Nuances - Grupo pela Livre Orientação Sexual; Rede Feminista de Saúde; Somos - Comunicação Saúde e Sexualidade, e Themis - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. Esses grupos querem impedir que a moral religiosa seja imposta ao conjunto da população. Entendem que se faz necessário retirar os símbolos religiosos de ambientes como casas legislativas e tribunais de justiça onde atualmente são discutidas e debatidas questões ligadas ao casamento homossexual, criminalização da homofobia, aborto, etc., sendo essa medida vista como um importante passo para excluir a religião dessas discussões. A presidenta da Liga Brasileira de Lésbicas/RS, Ana Maiara Malavolti, afirmou: Não podemos aceitar que no mesmo local onde nossos projetos são analisados e que sofrem resistências, muitas vezes, haja símbolos que possam indicar um pré-posicionamento. Estado e religião não devem estar juntos neste caso, ainda mais no Brasil, onde existem mais de 200 tipos de crenças.249 248 www.paulopes.com.br/.../sou-evangelico-e-sou-contra-retirada-de.html 249 Disponível em: http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/?Noticia=357527. Acesso em: 10/11/2011. Disponível: 10/05/2011. Acesso em: 194 Na petição entregue à Câmara de Vereadores de Porto Alegre/ RS é asseverado que o Estado brasileiro em termos constitucionais não é teocrático. Em outro momento ainda afirma-se acerca da existência de símbolos religiosos em espaços estatais: Este nos parece um caso clássico de associação do Estado com uma religião“pseudo-oficial”, desmerecendo e diferenciando-a das demais crenças e ferindo, desta forma, a laicidade do Estado. Se não é assim, por que os dirigentes destes órgãos ficam tão incomodados em retirar estes símbolos das paredes, cumprindo a separação preconizada pelo princípio constitucional da laicidade do Estado, referido acima? Somente séculos de obscurantismo e tutela religiosa da moral coletiva podem explicar tamanha inércia e desconforto. Séculos de colonização religiosa, séculos de educação para uma moral construída sobre os pilares de uma única fé que hoje atenta contra os direitos individuais e coletivos, demonizando e perseguindo teorias modernas sobre direitos sexuais e reprodutivos de grupos específicos como as mulheres e a população LGBT, promovendo um novo processo de inquisição do Século XXI, restringindo o uso da ciência, condenando os avanços na educação para a diversidade, perpetrando, desta forma sua influência sobre a consciência de todos e todas, a despeito das demais religiões ou da fé de cada pessoa (fl.3). Cabe sublinhar que tanto na petição entregue à Câmara de Vereadores de Porto Alegre/RS como na endereçada ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul são citados escritos e manifestações de Daniel Sottomaior. Reagindo a esse pedido, o padre Leonardo Padilha, da pastoral da comunicação da Arquidiocese de Porto Alegre/RS, declarou que a existência de imagens religiosas em recintos estatais possibilita que os políticos, juízes e outros atores sociais reflitam sobre “algo maior”, acrescentando ainda: “Acho meio complicado que, em uma sociedade já tão desumanizada, tire-se a presença de Deus. Deve existir diálogo em uma sociedade, entre pensamentos diferentes. Mas ninguém consegue fazer diálogo no vazio” (Jornal Zero Hora, 30/10/ 2011). No final de janeiro de 2012 o parecer emitido pelo juiz assessor Antonio Vinicius Amaro da Silveira, acatado pelo então presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Léo Lima, manifestou-se pelo indeferimento do pedido de retirada do crucifixo e demais símbolos religiosos de espaços do poder judiciário gaúcho. O principal argumento usado pelo magistrado para sustentar a constitucionalidade da aposição de símbolos religiosos em locais públicos é de que a Constituição Federal de 1988 refere-se a Deus em seu preâmbulo. Não contente com a decisão a Liga Brasileira de Lésbicas requereu a reconsideração da questão argumentando, dentre outras coisas, que “[...] os crucifixos não são apenas um símbolo do predomínio católico, mas antes de tudo uma apropriação 195 privada da coisa pública para a manifestação de crenças pessoais” (fl.3). Desse modo, a questão foi analisada pelo Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em sessão ocorrida em 6 de março de 2012. Nesta ocasião, decidiu-se pelo acatamento do pedido feito pela Liga Brasileira de Lésbicas em conjunto com outras entidades. Sublinho que a decisão foi unânime, todos os quatro desembargadores presentes seguiram o voto do desembargador-relator Cláudio Baldino Maciel. Em seu voto, o referido magistrado, ressaltou a importância do tema em debate. Além disso, reportou-se a alguns casos recentes nos Estados Unidos e na Europa, em que instâncias judiciais manifestaram-se a favor da exclusão de símbolos religiosos existentes em recintos estatais. Ao final de seu voto expressou sua discordância em relação à anterior decisão do Conselho Nacional de Justiça, favorável a permanência do crucifixo em ambientes judiciais: [...] conquanto o CNJ já tenha decidido pontualmente que a presença de símbolos religiosos em ambientes judiciários não revela inadequação censurável, estou certo, data vênia, de que se resguardar o espaço público do Judiciário para o uso somente de símbolos oficiais do Estado é o único caminho que responde aos princípios constitucionais republicanos de um Estado laico, devendo ser vedada a manutenção de crucifixos e outros símbolos religiosos em ambientes públicos dos prédios do Poder Judiciário no Estado do Rio Grande do Sul. Ademais, especialmente na época atual em que tantos temas de interesse religioso estão sendo trazidos à decisão judicial (aborto de feto anencéfalo e uniões homoafetivas, por exemplo) e sobre os quais as Igrejas manifestam e lutam publicamente pela defesa de uma determinada solução com base em sua doutrina religiosa, o julgamento feito em uma sala de tribunal sob um expressivo símbolo de uma Igreja e de sua doutrina não me parece a melhor forma de se mostrar o Estado-juiz eqüidistante dos valores em conflito ( fl.8). É bastante provável que um ato formal será expedido determinando a retirada de todos os crucifixos existentes em salas de julgamento de tribunais gaúchos. A decisão foi saudada pelo Liga Brasileira de Lésbicas do Rio Grande do Sul. Para Ana Naiara Malavolta, presidenta da Liga, a decisão é “histórica”, acrescentando: “ Por trás de um simples símbolo, há toda uma ideologia que trava um embate muito desleal com diversos segmentos, como o dos homossexuais”.250 Esta decisão é inédita, pois até então nenhum Tribunal de Justiça Estadual tinha determinado a retirada de todos os símbolos religiosos presentes em espaços judiciais. A ironia deste caso é que a decisão ocorreu em uma sala do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul onde se podia avistar a presença de um crucifixo. O caso em questão deve suscitar interessantes desdobramentos e fortes reações. 250 Disponível em: http://sul21.com.br/jornal/2012/03/tj-rs-determinada-retirada-de-simobolos-religiososdos-predios-da-justiça-gaucha. Acesso em: 10/03/2012. 196 Como se pode notar, nas situações aqui expostas o crucifixo é o principal símbolo religioso católico que desencadeia as polêmicas. Além disso, se contesta principalmente sua exposição em repartições públicas como tribunais de justiça e parlamentos. No entanto, outros símbolos católicos como imagens de santos e de Nossa Senhora são também alvo de discussões. Outrossim, protesta-se contra a presença de símbolos religiosos católicos em ambientes como escolas públicas e universidades. Saliento, ainda, o protagonismo de atores identificados com grupos religiosos evangélicos nesses casos. Por seu turno, os casos ocorridos no Rio de Janeiro e no Piauí, em 2009 tem uma maior amplitude envolvendo a contestação não apenas do crucifixo e de outros símbolos religiosos, mas ainda da existência de capelas católicas instaladas em órgãos públicos. No caso piauiense, a denúncia parece ser mais “grave”, pois insinua-se a realização de cultos religiosos em órgãos públicos. O curioso nesse caso é a união de evangélicos com grupos feministas, GLS e afros, para questionar a presença de símbolos católicos. Acerca da questão das capelas presentes em ambientes estatais volto a tratar sobre isso no sétimo capítulo desse trabalho. O caso de Porto Alegre/RS, por sua vez, ressalta mais uma vez certo protagonismo de organizações feministas e GLS na questão, justamente em um momento em que estes atores sociais lutam pelo reconhecimento e pela garantia de determinados direitos em esferas e espaços que exibem e ostentam imagens religiosas. As situações de Nova Granada/SP e Belém do Pará apresentam algumas particularidades, porque se trata de imagem católicas de Nossa Senhora, que “peregrinam” por recintos estatais e que são objeto de culto e devoção religiosa. Os símbolos católicos não estão afixados em órgãos públicos, mas transitam temporariamente por motivo de algum festejo de cunho religioso. O caso de Adamantina/SP é também peculiar na medida em que se contesta a construção de um monumento católico em via pública. Conforme Angón e Mazarío (2007), de um modo geral é necessário distinguir e diferenciar um conjunto de situações que embora próximas e semelhantes devem ser analisadas de maneira individualizada, como: a presença de símbolos religiosos em manifestações organizadas pelos poderes públicos, a presença de poderes públicos em atos ou manifestações organizadas por confissões religiosas, a presença de símbolos religiosos em atos de natureza pública e ,por último, a presença de símbolos religiosos 197 em centros ou recintos estatais. Por seu turno, examinando tais controvérsias sob um ângulo estritamente legal e jurídico, Leite (2008, p.357) faz uma importante observação: É justamente em razão da complexidade destas questões que não parece possível identificar uma resposta objetiva acerca da legalidade da presença de (quaisquer) símbolos religiosos em (quaisquer) locais públicos, devendo-se verificar sempre determinadas peculiaridades em relação a cada caso, que podem apontar tanto para a legalidade como para a ilegalidade da situação. Ainda em 2009, outro processo judicial envolvendo símbolos religiosos em locais públicos veio à tona. Devido à sua importância e à forte repercussão na opinião pública, destaco esse em um item específico, a seguir. 5.3 Ação Civil em São Paulo contra símbolos religiosos No final de julho de 2009, o Ministério Público Federal por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Estado de São Paulo, ajuizou Ação Civil Pública requerendo a remoção de símbolos e imagens de qualquer religião de locais de ampla visibilidade e de atendimento ao público, mais especificamente, de repartições públicas federais no Estado de São Paulo. Cabe destacar que a ação da procuradoria teve origem na representação movida por Daniel Sottomaior no ano de 2007, quando esse declarou sentir-se ofendido com a ostentação de um crucifixo presente na sede do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. O procurador regional dos direitos do cidadão, Jefferson Aparecido Dias, afirmou em seu arrazoado251 que a ação tem como finalidade promover a liberdade religiosa, baseando-se nos princípios da laicidade estatal e da isonomia, bem como no princípio da impessoalidade da Administração Pública e no princípio processual da imparcialidade do Poder Judiciário. De acordo com esse promotor, a liberdade de crença individual dos servidores públicos não pode ser ostentada quando eles estão a serviço do Estado. Desse modo, o princípio da liberdade religiosa não é tomado como absoluto pelo promotor, pois se é verdade que todos os indivíduos têm garantida, constitucionalmente, a livre manifestação de suas crenças religiosas, essa não pode interferir no direito à liberdade religiosa dos demais. Nesse sentido, caberia ao Estado zelar por todas as manifestações religiosas, não tomando partido de nenhuma delas. Porém, acrescenta o procurador Jefferson Dias: 251 Sua petição data de 31 de julho de 2009. 198 [...] o que se tem notado é que o Estado, ao prestar seus serviços públicos, tem adotado postura tendente a privilegiar uma religião em detrimento das demais ao ostentar símbolos, imagens e sinais religiosos (v.g. crucifixo). E ainda, quando o Estado ostenta um símbolo religioso declara sua predileção pela religião que o símbolo representa, o que resulta na discriminação das demais religiões professadas no Brasil, afrontando as disposições previstas na Constituição Federal, em especial o disposto no artigo 5º, “caput” (fl.5). De acordo com o procurador, o Estado identifica-se com determinada confissão religiosa ao exibir, em suas repartições, ícones que são próprios dessa religião. Com isso, a ostentação do símbolo religioso católico pode atingir, agredir, ferir, constranger e alienar os seguidores de outras crenças. O procurador aponta aqui para um aspecto já salientado por outros juristas como Jónatas Machado (1996) de que a existência de determinado símbolo religioso pode favorecer a criação de um ambiente coercitivo em torno de um indivíduo que não segue a religião representada pelo símbolo. Isso poderia produzir uma espécie de “lesão estigmática”, como resultado do fato de que o símbolo religioso em questão enviaria uma mensagem simbólica de exclusão e discriminação a determinados indivíduos a tal ponto de comprometer seu status de membros plenos de direito de uma comunidade política. Conforme Jefferson Dias, o Estado laico não deve promover uma convicção religiosa entre outras, mas deve ser “sim a condição primeira da coexistência entre todas as convicções no espaço público. Não se pode conceber a proeminência de uma, representada por símbolos religiosos, em prejuízo das demais” (fl.6). Em outro momento de sua petição, o promotor afirma que, de acordo com os princípios da impessoalidade da Administração Pública e da moralidade administrativa, cabe ao Poder Judiciário tratar com isonomia todos os cidadãos. Acerca da necessária imparcialidade da justiça, ainda assevera: Também devemos lembrar que o Poder Judiciário, nos últimos anos, assumiu papel decisivo no cenário político e social do país, com decisões determinantes nos conflitos políticos, morais e religiosos. Desta forma, a laicidade e imparcialidade do Judiciário devem ser seguidas à risca com postura neutra diante do povo. Postura esta que deve ser apresentada nos locais públicos e nas salas de audiência, sem a ostentação de qualquer sinal tendente a determinada religião (fl. 7). No entendimento do promotor, um símbolo religioso não é um mero adereço: “O símbolo religioso ostentado em local de ampla visibilidade ou em local de atendimento ao público não é mero objeto de decoração mas, sim predisposição para a religião que o símbolo representa” (fl.7). 199 Ao final da ação, Jefferson Dias determina que a União promova dentro de no máximo 120 dias após a decisão, a retirada de todos os símbolos religiosos de locais proeminentes, de ampla visibilidade e atendimento ao público, como os existentes em prédios públicos. Caso a União não cumpra o determinado, deverá pagar multa diária no valor de R$ 1,00. Essa ação foi distribuída na 3ª Vara Cível Federal de São Paulo. A União, ré no processo, respondeu a manifestação do Ministério Público Federal. A Procuradoria Regional da União da 3ª Região, órgão da Advocacia Geral da União, alegou, na defesa, que os símbolos religiosos já pertencem à cultura e à tradição. Sustentou, também, que a exibição de crucifixos e outros objetos religiosos em ambientes públicos não torna o Estado clerical, devendo ser respeitada a religiosidade dos indivíduos. A juíza federal Maria Lúcia Lencastre Ursaia, da 3ª Vara Cível Federal de São Paulo, acolheu os argumentos da Advocacia Geral da União, indeferindo o pedido de retirada dos símbolos religiosos feito por parte do Ministério Público Federal. Na sua sentença, exarada em 20 de julho de 2009, a juíza declara que o Estado laico não é um Estado inimigo da religião: [...] O Estado laico não deve ser entendido como uma instituição antirreligiosa ou anticlerical. Na realidade o Estado laico é a primeira organização política que garantiu a liberdade religiosa. A liberdade de crença, a liberdade de culto e a tolerância religiosa foram aceitas graças ao Estado laico e não como oposição ele.252 De acordo com a magistrada Maria Lúcia Lencastre, o Estado laico é fundado na soberania popular, e, destarte, deve tolerar as manifestações religiosas do povo, mesmo em âmbito estatal: O Estado laico pode ser definido como a instituição política legitimada pela soberania popular em que o poder e a autoridade das instituições do Estado vêm do povo, tal conceito está intimamente ligado à democracia e a respeito dos direitos fundamentais. Assim sendo, a laicidade não pode se expressar na eliminação dos símbolos religiosos, mas na tolerância aos mesmos.253 Para essa juíza é natural que num país com formação histórica e cultural cristã, haja símbolos religiosos como o crucifixo em espaços públicos, não havendo dessa forma ofensa ao princípio da liberdade religiosa. Ademais, afirma: “[...] eis que para os agnósticos ou que professam crença diferenciada, aquele símbolo nada representa, 252 Disponível em: www.jfsp.gov.br . Acesso em: 25/08/2009. 253 Disponível em: www.jfsp.gov.br . Acesso em: 25/08/2009. 200 assemelhando-se a um quadro ou escultura, adereços decorativos”.254 A magistrada parece naturalizar a presença de símbolos religiosos em ambientes públicos. Além disso, não reconhece que as imagens e símbolos têm importância, classificando-os como “adereços decorativos”. Derradeiramente, em sua sentença, legitima a manutenção de símbolos religiosos em órgãos públicos, asseverando que a Lei Maior foi promulgada em nome de Deus: “Desta forma, o legislador constituinte, invocando a proteção de Deus, ao promulgar nossa Constituição Federal, demonstrou profundo respeito ao “Justo” para conceber a sociedade justa e solidária a que se propôs”.255 Esse caso mereceu considerável atenção por parte da imprensa secular e religiosa. Muitas reportagens, editoriais e artigos foram publicados em revistas, jornais256 e em sites na internet. As redes de televisão ,também, noticiaram o caso.257 Por sua vez, algumas lideranças religiosas e juristas expressaram publicamente sua opinião acerca desse embate judicial. A Igreja Católica, por meio de seus bispos, foi a primeira entidade a reagir à proposição do Ministério Público Federal. O cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, comentou que a remoção de símbolos religiosos de espaços públicos poderia provocar um “choque na população”.258 Para o presidente da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Geraldo Lyrio Rocha, a ação contra os símbolos religiosos em prédios públicos é uma violência: “Querer, apelando para a questão do Estado laico e da sociedade pluralista, apagar todos os 254 Disponível em: www.jfsp.gov.br . Acesso em: 25/08/2009. 255 Disponível em: www.jfsp.gov.br . Acesso em: 25/08/2009. 256 O colunista da Folha de São Paulo, Hélio Schwartsman, publicou em 05/08/ 2009, artigo sobre o tema com o título França detém vanguarda da laicidade. Em 13/08/2009, volta a publicar na Folha de São Paulo, um novo artigo sobre o tema intitulado Crucifixos na berlinda. Ambos são favoráveis à remoção de símbolos religiosos de repartições públicas. Com parecida postura o promotor de justiça em São Paulo, Roberto Livianu, escreve para o mesmo jornal um artigo com o título Sagrada laicidade. Criticando de forma veemente a posição do MPF sobre o caso, o juiz federal William Douglas publica no site Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), o texto Ação contra crucifixos mostra intolerância. 257 O programa Entre Aspas exibido no canal Globo News e capitaneado pela jornalista Mônica Waldvogel, dedicou-se ao assunto em sua edição de 6 de agosto de 2009, contando com a presença do arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, e da professora da faculdade de educação da USP Roseli Fischmann. Esse programa está disponível no You Tube: http://www.youtube.com/watch?v=KXMi1WBIF0A&feature=related. 258 Disponível em: http://noticias.cancaonova.com/noticia.Acesso em 11/09/2009. 201 elementos que estão incorporados na cultura brasileira é uma violência que se faz”259. Dom Geraldo Rocha ainda ressaltou que a maior parte da população brasileira é católica, e que a história do país é marcada pela presença da Igreja Católica. Para o bispo, aceitar a existência de símbolos religiosos é um exemplo de tolerância por parte de praticantes de outras crenças. Seguindo semelhante postura, o padre e doutor em Direito Canônico, Salmo de Souza, teme a intolerância religiosa implícita nessas ações contrárias à presença do religioso na vida pública: “O Estado não poderia adotar uma ideologia que seria o princípio leigo no aspecto negativo, ou seja, uma intolerância para qualquer sinal religioso”.260 Interessante notar que o bispo e o padre católico se servem da noção de tolerância, própria da retórica liberal, para defender a ostentação de ícones religiosos em ambientes estatais. Boa parte dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo defendeu a manutenção de símbolos religiosos em repartições públicas. Segundo o desembargador Roberto Antonio Vallim Bellochi, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, a presença do crucifixo em sessões de julgamento “não exalta a religião católica, mas lembra um dos piores julgamentos da história.”261 O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, ironizou e contestou a ação do Ministério Público Federal. Para o ministro, há muito mais coisas a fazer do que se preocupar com essa temática. De forma irônica comentou: “Tomara que não mandem derrubar o Cristo Redentor.”262Afirmou, ainda, que essa medida tomada pelo MPF é exagerada: Se aprofundarmos essa discussão e formos radicais, vamos rever o calendário? Nós estamos no ano de 2009, que significa 2009 depois de Cristo. Vamos colocar isso em cheque? A Páscoa, o Natal? Muito daquilo que se diz que é algo religioso, uma expressão de símbolo religioso, na verdade é uma expressão da civilização ocidental cristã 263. 259 Disponível em: http://www.novoeste.com/news_851_Acao-judicial-contra-simbolos-religiosos-empredios-publicos-e-viol%EAncia,-diz-CNBB.html. Acesso em: 23/08/2009. 260 Disponível em: http://www.novoeste.com/news_851_Acao-judicial-contra-simbolos-religiosos-empredios-publicos-e-viol%EAncia,-diz-CNBB.html. Acesso em: 23/08/2009. 261 Disponível em: http://www.jt.com.br/editorias/2009/08/10/ger-1.94.4.20090810.1.1.xml Acesso em: 10/09/2009. 262 Disponível: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2009/08/11. Acesso em: 10/09/2009. 263 Disponível: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2009/08/11. Acesso em: 10/09/2009. 202 Importante lembrar que o procurador Jefferson Dias, autor da ação contra os símbolos religiosos, declara-se católico praticante. Afirma ele: “comungo e confesso”.264 O procurador não é contra o servidor público colocar em sua sala de trabalho uma imagem religiosa: “Minha ação restringe-se aos ambientes de atendimento público. Nada contra o funcionário público ter uma imagem de santa, por exemplo, sobre sua mesa de trabalho.”265 Em boa parte das situações aqui descritas os aparatos estatais, legais e jurídicos são acionados para definir e distinguir o que é religioso e o que é secular. Porém, ao contrário do que ocorreu na França, onde o Estado determinou e definiu que o véu islâmico e outros signos ostensivos (kipá judaica e cruz cristã) são estritamente religiosos e dessa forma não podem ser utilizados nas escolas públicas, no Brasil, de um modo geral, os tribunais de justiça e outros agentes estatais não têm definido e percebido o crucifixo como um símbolo religioso, ou melhor, este não é visto e tomado como unicamente e meramente religioso, e assim sua afixação é permitida no âmbito público. Grosso modo, as decisões judiciais e administrativas aqui elencadas não concebem o crucifixo presente em um tribunal ou parlamento como algo estritamente religioso. Tratam e concebem este símbolo e outros originários do catolicismo como objetos ligados à cultura, ou então como algo já costumeiro e tradicional. Desse modo, Asad (2006a) parece ter razão quando observa que é o Estado e suas instituições e agentes que determinam prioritariamente o significado dos símbolos, declarando se estes são ou não religiosos. Sendo assim, o Estado “laico e secular” é seguidamente chamado a definir o que é verdadeiramente religioso, sendo ele quem estabelece o espaço que é considerado como legitimo e legal para a manifestação do religioso. 264 Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-ago-11/retirada-crucifixos-discussao-pirotecnicaintolerante. Acesso em: 10/10/ 2009. 265 Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-ago-11/retirada-crucifixos-discussao-pirotecnicaintolerante. Acesso em: 10/10/2010. 203 5.4 A iniciativa “Brasil para Todos” e a ATEA: guerra de símbolos e imagens? A campanha “Brasil para Todos” foi criada em 17 de janeiro de 2007, congregando uma série de lideranças religiosas, juristas266, políticos, artistas, acadêmicos, militantes sociais e ONGs que defendem o Estado laico e uma arena pública secular distanciada de valores, instituições e símbolos religiosos. Os líderes religiosos que apoiam essa iniciativa são os seguintes: Iyalorisa Sandra M. Epega - Presidente da ONG Respeito Brasil Yorubá; Pai Celso de Oxaguián; Monja Coen Sensei - Missionária da Tradição Soto Shu do Zen Budismo; Mahesvara Caitanya Das - sacerdote Vaishnava; Padre Djalma Rosa Torres - Igreja Batista Nazareth; Reverendo Cristiano Valério - Igreja da Com. Metropolitana de São Paulo; Ricardo Mário Gonçalves, PhD, monge budista; Monge Genshô, Diretor-Geral do Colegiado Budista Brasileiro; Jagannatha Dhama Dasa - sacerdote hinduísta Vaishnava e Milton Medran Moreira - Presidente da Confederação Espírita Pan-Americana. Como se pode notar, a maior parte dessas lideranças religiosas não é cristã. Por outro lado, chama a atenção o número de representantes de tradições orientais. É importante, também, elencar as ongs que são favoráveis a essa campanha: Católicas pelo Direito de Decidir; Observatório da Laicidade do Estado; Umbanda Fest; Movimento Chega! Guerreiros do Axé; Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde de São Paulo; Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis; Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo; Instituto Patrícia Galvão; Instituto Edson Neris; Grupo Gay da Bahia; Grupo E-JOVEM de Adolescentes Gays, Lésbicas e Aliados; Associação Goiana de Gays, Lésbicas e Travestis; Um Outro Olhar e Grupo Dignidade. Aqui se destaca o número de organização Glbts. A “Brasil Para Todos” não possui uma sede fixa, sendo atualmente dirigida pelo engenheiro civil Daniel Sottomaior, autor dos pedidos de providência junto ao Conselho Nacional de Justiça. Além dos pedidos de providência analisados pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a iniciativa já elaborou representações ao Ministério Público requerendo a retirada dos crucifixos de tribunais de justiça e casas legislativas de 266 O juiz Roberto Arriada Lorea, autor da moção debatida no Congresso de Magistrados de 2005, que arguia a necessidade da remoção de símbolos religiosos de ambientes do poder judiciário, apoia a campanha. 204 diversos estados da federação. Algumas delas foram examinadas anteriormente. “Brasil Para Todos” possui um site na internet267 e disponibiliza um modelo de representação a ser encaminhada ao Ministério Público solicitando a retirada do crucifixo e de outros símbolos religiosos de repartições públicas. Para os defensores da iniciativa, a manutenção de símbolos religiosos católicos em repartições públicas é uma forma de preconceito e discriminação contra todos aqueles que não comungam da fé católica. A religião e suas manifestações devem estar circunscritas à esfera privada: [...] as atividades religiosas e a ostentação de símbolos de adoração e veneração pertencem à vida privada dos cidadãos, não à sua atuação como governantes, autoridades e demais servidores públicos. O Estado e suas repartições estão acima de convicções particulares e pertencem a todos. É fácil entender que é errado afixar símbolos de partidos políticos nas repartições públicas porque o Estado existe para homens e mulheres de todos os partidos, independentemente de quem foi eleito ou designado para cada cargo. Da mesma maneira acontece com os símbolos religiosos. 268 Em outra ocasião, mas com semelhante argumentação, o criador da campanha “Brasil Para Todos” declara: Laicidade significa apenas que tanto a opção entre quaisquer formas de pensamento místico-religioso ou visão racional como formas de visão de mundo dos cidadãos deve ser matéria de foro íntimo. Não cabe ao Estado propor a primazia de qualquer um deles sobre o outro e, no tocante à exibição de símbolos, a única maneira de fazer com que o Estado não promova nenhuma corrente acima das demais é com paredes limpas. 269 Pretende-se, assim, a “purificação” dos espaços públicos, purgando-os de qualquer referência religiosa. A ostentação de ícones religiosos em órgãos públicos como escolas, universidades, casas legislativas e cortes de justiça seria, sobretudo, “uma profanação” dos espaços públicos seculares. Espaços esses que, contudo, são de alguma forma sacralizados pelo ideário secularista (Howe, 2008, 2009). É nas escolas, universidades, e nas cortes de justiça que os valores e as normas seculares são transmitidos e afirmados. 267 www.brasilparatodos.org 268 Disponível em: http://www.brasilparatodos.org/?page_id=5. Acesso em: 20/11/2008. 269 Disponível: http://www.jusbrasil.com.br/noticias/1845436/artigo-o-estado-verdadeiramente-laico-e-aretirada-dos-simbolos-religiosos-de-reparticoes-publicas. Acesso em: 11/06/2011. 205 A presença de um único símbolo religioso, como o crucifixo, em escolas, hospitais, casas legislativas e tribunais de justiça, representaria uma afronta ao pluralismo e ao princípio da igualdade, fundamentos de uma sociedade democrática e secular: Se existe símbolo da religião de uns, mas não da religião de outros, nem da ausência de religião, então não há igualdade. Uma sociedade fraterna deve reconhecer que os indivíduos têm os mesmos direitos independentemente de serem minoria ou maioria. Uma sociedade de um único símbolo religioso não é pluralista, pois não reconhece nem respeita as diferenças entre seus cidadãos.270 Nesse trecho, diferentemente da passagem anterior, o objetivo da iniciativa “Brasil para Todos” é de teor pluralista. Trata-se da defesa de uma arena pública plural, aberta a todas as crenças e valores. Procura-se, com a remoção dos símbolos religiosos, fundamentalmente católicos, enfraquecer a religião dominante. É importante ressaltar que essa campanha não visa à eliminação de símbolos como o Cristo Redentor, e do porte de cruzes e estrelas de Davi: Esta iniciativa diz respeito somente a repartições públicas. Isso naturalmente exclui símbolos como o Cristo Redentor, Crescentes em mesquitas, pingentes de Estrela de Davi no pescoço dos fiéis, etc. porque não estão em repartições públicas. Não se pede - e repudiamos - a destruição de símbolos religiosos: nossa demanda é tão-somente para sua retirada das repartições públicas. Este movimento visa à tolerância religiosa - respeitando os membros dos demais credos que não têm seus símbolos exibidos nas repartições públicas. É, assim, exatamente o oposto da ação talibã que impôs sua lei religiosa a todos os cidadãos do Afeganistão. Por último, mas igualmente importante, o salto da retirada de símbolos religiosos das repartições públicas para a eliminação completa dos símbolos em outras esferas não possui sustentação lógica. Se aceitássemos como razoável essa progressão descabida, deveríamos considerar com igual peso a ideia oposta: se se permite a exibição de símbolos religiosos nas repartições públicas hoje, amanhã a permissão se tornará obrigação da exibição e por fim a obrigação do uso deles por todos os cidadãos. Percebe-se, desse modo, que qualquer tipo de progressão a situações extremas é fantasiosa.271 O texto enfatiza que não se pretende a destruição de símbolos religiosos a fim de não se identificar com intenções iconoclastas. Entretanto, se é verdade que a remoção e o deslocamento de ícones religiosos de lugares públicos não se configura como uma forma clássica de iconoclasmo, parece-me que essas ações podem ser entendidas como uma espécie de “iconoclasmo secular”. O iconoclasmo secular se caracteriza pela eliminação e a retirada de ícones religiosos de espaços públicos por meio da lei e de 270 Disponível em: http://www.brasilparatodos.org/?page_id=5. Acesso em: 20/11/2008. 271 Disponível em: http://www.brasilparatodos.org/?page_id=5. Acesso em: 20/11/2008. 206 medidas jurídicas ou administrativas. Dessa forma, a utilização destes mecanismos, pelos laicistas, tem como finalidade intervir e remodelar a paisagem social e o espaço (Howe, 2009). Há, então, uma nítida e inconteste intenção de secularizar os espaços públicos ou, ao menos, “descatolizar” esferas e ambientes estatais. Contrariando a tese arguida pelo Conselho Nacional de Justiça de que a colocação de símbolos religiosos nos tribunais é um ato administrativo, os propugnadores dessa campanha declaram: [...] um dos reflexos do princípio da igualdade é o princípio da impessoalidade da administração pública, expresso no art. 37 da Constituição Federal, que assegura que a neutralidade tem que prevalecer em todos os comportamentos da administração pública e veda a adoção de comportamento administrativo motivado pelo partidarismo. Custeada com dinheiro público, a atividade da Administração Pública jamais poderá ser apropriada, para quaisquer fins, por aquele que, em decorrência do exercício funcional, se viu na condição de executá-la. O mesmo artigo também estabelece o princípio da legalidade da administração pública, segundo o qual os poderes públicos somente podem praticar os atos determinados pela lei. E não há nenhuma lei, norma, determinação ou política pública que peça a afixação de símbolos religiosos. Na verdade, segundo o art. 13 da Constituição Federal, “são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais”, disposição que é seguida analogamente em todas as constituições estaduais do país, de modo que nenhum símbolo religioso não pode se afigurar como símbolo oficial.272 Conforme essa declaração, os símbolos da República seriam os únicos oficiais e permitidos em ambientes públicos. Assim, cabe frisar que os próprios Estados laicos, supostamente neutros, também lançam mão de um aparato simbólico e litúrgico. Segundo Asad (2006a), os sinais e emblemas são importantes para toda autoridade política, sendo necessários para que o Estado moderno, uma abstração, represente a si mesmo. Os símbolos e imagens cívicas em muitas ocasiões históricas substituem, competem ou, até mesmo, se amalgamam com os símbolos religiosos. De acordo com os defensores da iniciativa, a existência do crucifixo ou de outros símbolos religiosos expressaria a adoção de um comportamento confessional, particularista, por parte da administração pública. Nesse sentido, no espaço público somente seria justificável e legal a presença dos símbolos nacionais (bandeira, hino, armas e selos nacionais), pois esses são previstos constitucionalmente. 272 Disponível em: http://www.brasilparatodos.org/?page_id=5. Acesso em: 20/11/2008. 207 Em agosto de 2008, Daniel Sottomaior criou a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA).273A ATEA é uma entidade sem fins lucrativos, de caráter assistencial, filantrópica e educacional, que busca promover o ateísmo, o agnosticismo e a laicidade do Estado. A ideia de criação dessa entidade surgiu de listas de discussão sobre ateísmo e secularismo na internet, a mais importante delas estava alocada no site da Sociedade da Terra Redonda (STR), ong criada em 4 de maio de 1999 que defendia a divulgação do pensamento científico, do ceticismo e da separação entre Estado e religião.274 Destaco que atualmente a ATEA conta com cerca de dois mil membros. Os objetivos principais da ATEA são os seguintes: congregar ateus e agnósticos, defendendo seus interesses e direitos, em todo o território nacional, bem como nos países ou Estados independentes onde o Estado brasileiro possua representação diplomática; combater o preconceito e a desinformação a respeito do ateísmo e do agnosticismo, dos ateus e dos agnósticos; auxiliar a auto-afirmação dos ateus e agnósticos frente ao preconceito e à rejeição sociais; apontar o ateísmo e o agnosticismo como caminhos filosóficos viáveis, consistentes e morais; promover sistemas éticos seculares; promover a laicidade efetiva do Estado, combatendo em todas as esferas legais qualquer tipo de associação que seja contrária ao descrito na Constituição da República Federativa do Brasil; promover o pensamento crítico e o método científico; e defender os direitos legais de ateus e agnósticos podendo participar e contribuir com as instituições democráticas legalmente descritas e fundamentadas na Constituição da República Federativa do Brasil, fazendo sugestões, participando de discussões sociais e representando ações públicas ou privadas sempre com base nos objetivos descritos e fundamentados no estatuto dessa entidade. Conforme Daniel Sottomaior Pereira, criador e presidente da ATEA, a associação visa dar visibilidade aos ateus no Brasil e impedir o preconceito para com as pessoas que não acreditam em Deus e nas religiões: Não queremos mais ser discriminados e para isso precisamos influenciar a sociedade. Para muitas pessoas, a opção de ser ateu não está colocada na mesa, queremos dizer que essa possibilidade existe.275 273 A ATEA possui um site na internet: http://www.atea.org.br/. 274 www.str.com.br. 275 Disponível em: www.otempo.com.br/otempo/noticias. Acesso em 09/09/2009. 208 No entendimento do presidente da ATEA, “muitos têm vergonha de se declarar ateus por causa da rejeição”.276 Até o presente momento, o principal meio de divulgação das ideias da ATEA vem ocorrendo por meio de seu site na internet. Contudo, outras atividades estão sendo planejadas. Em dezembro de 2010, a ATEA planejou uma campanha publicitária com a finalidade de combater o preconceito contra os ateus e agnósticos. A campanha consistiria em quatro peças de propaganda que seriam acompanhadas de imagens e frases com afirmações como estas: “Somos todos ateus com os deuses dos outros”, “Religião não define caráter”, “A fé não dá respostas. Só impede perguntas” e “Se Deus existe, tudo é permitido”. Os propositores da campanha assim se manifestaram sobre os seus objetivos: A campanha do ônibus não procura fazer desconversões em massa. Nossos objetivos são conseguir um espaço na sociedade que seja proporcional aos nossos números, diminuindo o enorme preconceito que existe contra ateus, e caminhar rumo à igualdade plena entre ateus e teístas, que só existe quando o Estado é verdadeiramente laico - o que está muito, muito longe de acontecer.277 278 FIGURA 14. Campanha ATEA 2010/2011. 276 Disponível em: www.terra.com.br/istoe/ediçoes/2046/artigo123913-2.htm. Acesso em: 12/09/2009. 277 Disponível em: http://www.atea.org.br/. Acesso em: 20/12/2010. 278 Disponível em: http://www.atea.org.br/. Acesso em: 20/12/2010. 209 279 FIGURA 15. Campanha ATEA 2010/2011. 280 FIGURA 16. Campanha ATEA 2010/2011. 281 FIGURA 17. Campanha ATEA 2010/2011. Essas peças publicitárias seriam veiculadas na parte posterior de dez ônibus em Porto Alegre/RS e de cinco ônibus em Salvador/BA, durante um mês. Entretanto, a 279 Disponível em: http://www.atea.org.br/. Acesso em: 20/12/2010. 280 Disponível em: http://www.atea.org.br/. Acesso em: 20/12/2010. 281 Disponível em: http://www.atea.org.br/. Acesso em: 20/12/2010. 210 campanha acabou sendo vetada. Em Porto Alegre/RS, no último momento, a Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP) barrou a exibição das mensagens alegando que elas violariam o Decreto Municipal nº 11.460 de 1996, que estabelece em seu artigo 1º que é vedada a veiculação de anúncios que estimulem algum tipo de discriminação social, racial ou de credo religioso. O mesmo ocorreu em Salvador/BA, a empresa contratada para o serviço justificou que o contrato infringiria o Decreto Municipal nº 12.642 de 2000, que tem o mesmo teor do decreto gaúcho. Importa ressaltar que inicialmente a ideia era também exibir os anúncios no metrô de São Paulo. A ATEA contratou uma empresa de mídia para lançar a campanha publicitária, mas esta negou-se a veicular as mensagens quando tomou conhecimento do seu real teor e conteúdo, afirmando que a empresa de metrô de São Paulo/SP proíbe campanhas com assuntos polêmicos e temas religiosos. Diante disto, o presidente da ATEA, examina a possibilidade de acionar judicialmente as partes. A ATEA solicitou, em seu site, ajuda financeira para a concretização desta campanha, que se inspira em iniciativa levada a cabo na Inglaterra em outubro de 2009, quando então foram colocados anúncios em ônibus com frases como: “Provavelmente, Deus não existe. Agora, pare de se preocupar e curta a vida”. A campanha contou com o apoio da British Humanist Association, grupo que promove o ateísmo e o secularismo nesse país, e do cientista Richard Dawkins autor do livro “Deus, um delírio.”282 Outro plano é a criação e a oficialização do dia do Orgulho Ateu, a ser comemorado no dia 12 de fevereiro, data de nascimento de Charles Darwin. Além disso, propõe-se a comemoração do “Newtal”, em 25 de dezembro, em homenagem ao dia do nascimento do cientista Isaac Newton. Sobre essas iniciativas comenta Daniel Sottomaior: Assim como o dia do orgulho ateu, há outras propostas ligadas ao calendário para as pessoas que não têm religião. Judeus e muçulmanos, por exemplo, têm seu próprio calendário, e não é difícil entender por que é difícil aceitar um calendário que celebra a crença de que o universo surgiu magicamente há dez mil anos, como é o caso da cronologia judaica. Esse é um erro de um milhão de vezes, semelhante a imaginar que a distância daqui ao Sol é de 150 quilômetros, ao invés de 150 milhões de quilômetros. Mas isso não os impede de continuar celebrando, e a mídia de continuar cobrindo o fato regularmente sem qualquer menção crítica. Por que então não deveríamos criar o nosso próprio calendário? Essa é a ideia da Universal Atheist Calendar, que propõe como zero o início real do universo como o que se baseia no ano de publicação da primeira edição da Origem das Espécies, em 1859. Há mais outras alternativas, é claro. Seja qual for o calendário, ele pode comportar as mais diferentes celebrações seculares. Uma das 282 Sobre o fortalecimento do neo-ateísmo na contemporaneidade ver Gordon (2011). 211 possibilidades é o Newtal, a comemoração do nascimento de Newton, no dia 25 de dezembro. Podemos continuar usando a árvore, mas pendurando maças para nos lembrarem da lenda sobre a formulação da lei da gravitação universal. E deixar uma cópia da sua obra-prima Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, aberta logo abaixo, para nos lembrar de grandes conquistas intelectuais da humanidade. Já existe até uma comunidade do Orkut dedicada à data,que surgiu originalmente em países de língua inglesa como Newtomas.283 Charles Darwin e Isaac Newton são erigidos como novos símbolos e “heróis fundadores” de uma ordem cultural e política secularizada. Um novo calendário é proposto, e o livro basilar de Newton é tomado como uma espécie de nova Bíblia ou texto sagrado. Há nessas passagens e intenções uma série de elementos que conformam uma religião política secular que surge como uma espécie de sucedâneo das religiões tradicionais. Nesse caso, o ateísmo secularista apresenta-se com um projeto cultural abrangente, metapolítico, com seus próprios símbolos, discursos e práticas. Sendo assim, o secularismo não objetivaria apenas a construção de um espaço público neutro e laico, pois é defendido por atores sociais com interesses específicos, que batem-se por um conjunto de valores e uma particular visão de mundo. Com a malograda tentativa de colocar os anúncios nos ônibus, a solução foi afixar essas mensagens publicitárias como outdoors convencionais. Eles começaram a ser instalados em 5 de julho de 2011, em algumas ruas da cidade de Porto Alegre/RS.284 Quatro cartazes foram afixados, com gasto estimado em R$ 7.000,00, financiado por simpatizantes da ATEA. Outras cidades brasileiras podem, também, ter esses cartazes instalados, tudo a depender de outras doações. O mais interessante e significativo nessa campanha é a estratégia da utilização de imagens e símbolos para combater as crenças religiosas. Símbolos e imagens “laicas” são usadas para desmascarar e contrapor-se à imagética religiosa. Penso que há nesse caso uma “guerra” de imagens e símbolos. Em realidade, na modernidade ocidental os movimentos políticos e ideológicos de teor secularista nunca rechaçaram a comunicação por meio de sistemas simbólicos complexos (Delgado, 2002). Nesse sentido, ao se 283 Disponível em: http://www.atea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=81&Itemid=94. Acesso em: 20/06/2011. 284 Os cartazes foram instalados nos seguintes locais: bairro Bela Vista na Avenida Carlos Gomes nº 1229; bairro Jardim Botânico na Avenida Ipiranga nº3859;bairro Chácara das Pedras na Avenida Carlos Berta, em frente ao Mc Donald’s do Shopping Center Iguatemi; e bairro Petrópolis na Avenida Protásio Alves, em frente ao Hospital Petrópolis. 212 eliminar, destruir ou substituir as imagens e ícones religiosos, são criadas novas imagens. Latour questiona essa nova profusão de imagens (2008a, p.114): [...] por que é que todos os destruidores de imagens, esses “teoclastas”, esses “iconoclastas”, “ideoclastas”, geraram também uma fabulosa população de novas imagens, de ícones frescos, mediadores rejuvenescidos: maiores fluxos de mídia, ideias mais poderosas, ídolos mais fortes? As atitudes iconoclastas, sejam aquelas de fundo religioso ou secular, frequentemente procedem por meio da substituição de um conjunto de imagens por outro aparato iconográfico. Dessa maneira, o iconoclasmo não é tanto um desejo de libertar-se das imagens, mas antes de tudo uma estratégia de substituição (Morgan, 2003). Acerca dessa constante histórica, comenta Freedberdg (1992, p. 433): Durante a Revolução francesa, as Virgens também foram depostas. Tinha que ser assim, pois, nelas repousa o símbolo da realeza. Os novos símbolos procediam de fontes diversas, mas uma vez mais está Diana, com seus companheiros da antiguidade clássica. De fato, as festas da razão que substituíram as festas religiosas, a destruição de imagens deu lugar a uma nova e inovadora iconografia, onde, entre outros aspectos, se recuperaram temas da história clássica “pagã” [...]. Com a Revolução russa, as estátuas dos czares desapareceram e foram devidamente substituídas pela dos heróis da revolução.285 Busca-se assim apagar todos os traços e vestígios simbólicos e institucionais de uma ordem política e cultural vista como antiquada, retrógada, sectária e irracional com o fito de criar uma nova ordem social por meio da construção de um aparato de imagens que possam inculcar na coletividade uma outra cosmovisão. Desse modo, mesmo os adversários dos símbolos religiosos reconhecem a força pedagógica e persuasiva das imagens. A ATEA também tem participado seminários sobre temas envolvendo religião e Estado laico, como, por exemplo, o realizado em 17 de agosto de 2009 no auditório da Ação Educativa em São Paulo, que debateu a questão do ensino religioso e a concordata entre o Brasil e a Santa Sé. Esse seminário contou com a participação de acadêmicos, políticos e militantes sociais. Além disso, o presidente da ATEA, Daniel Sottomaior, tem participado de reuniões e debates sobre o acordo entre o Estado brasileiro e a Igreja 285 No caso brasileiro houve explicitamente algo semelhante durante os primeiro tempos da República conforme observação de José Murilo de Carvalho (2007, p. 10): “Aprofundando a investigação, verifiquei que, embora em escala menor do que no caso francês, também houve entre nós batalha de símbolos e alegorias, parte integrante das batalhas ideológica e política. Tratava-se de uma batalha em torno da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos”. 213 Católica, chegando até a estar presente em audiências realizadas no Congresso Nacional sobre esse assunto. Igualmente, tem elaborado representações ao Ministério Público em casos em que há flagrante violação do princípio da liberdade religiosa. Um desses casos, em que houve a intervenção da ATEA, por meio da apresentação de uma Notitia Criminis e pedido de instauração de inquérito policial, refere-se à recusa, por parte de um adolescente de 17 anos, de retirar seu boné e realizar um ritual religioso, oração católica em horário normal de aula, em uma escola pública do interior do Estado de Minas Gerais. O adolescente foi repreendido reiteradas vezes por professores e pelo diretor da escola pública por não participar das orações. Em muitas ocasiões ficava fora da sala de aula até que terminasse o ritual religioso. Segundo consta, o inquérito policial sobre esse caso ainda está em andamento. 5.5 Perfil de um militante laicista O criador da campanha “Brasil para Todos” e da ATEA, Daniel Sottomaior Pereira, tem 41 anos, é engenheiro com mestrado na área e especialização em jornalismo científico. Foi batizado na Igreja Católica e durante sua infância frequentou por alguns anos um colégio marista. Seus pais, por sua vez, também tiveram formação católica, mas hoje não frequentam mais essa religião, apesar de terem ainda algum tipo de “religiosidade”, de acordo com Daniel. É casado com uma agnóstica e tem uma filha de seis anos que procura manter distanciada de qualquer credo religioso. Declara o criador da campanha “Brasil para Todos” que nunca foi religioso, acrescentando: “Todo mundo nasce ateu. Deus não surge espontaneamente nos lábios das crianças".286 Para ele, é o meio social e cultural cristão em que vivemos que faz as pessoas tornarem-se cristãs e religiosas. Define-se, publicamente, como ateu “roxo, raivoso e militante”287. Daniel Sottomaior é irônico, e chegou a criar uma espécie de “oração” dos ateus que se encontra em sua página no Orkut: Obrigado, senhor, porque me deu de comer hoje, apesar de ter esquecido as centenas de milhares de crianças que morrem de fome todos os anos, por mais que elas e seus pais também tenham orado!Obrigado, senhor, por 286 Disponível em: http://www.lucianopires.com.br/idealbb/view.asp?topicID=11893 . Acesso em: 09/01/2010. 287 Disponível em: http://www.lucianopires.com.br/idealbb/view.asp?topicID=11893 . Acesso em: 09/01/2010. 214 atender minhas preces quando peço para meu time ganhar e também por não atender as preces de milhares de pessoas que imploram pela paz diariamente! Obrigado, senhor, porque você salva a vida de uma pessoa no meio de um desastre com milhares de vitimas fatais!288 No mesmo site, Sottomaior demonstra sua incredulidade em relação à existência histórica de Jesus: Não comemoro o natal porque não comemoro o nascimento de Jesus, um personagem de existência mais que duvidosa e que é encarado como o ápice da moral sem jamais ter dito uma única palavra original, apesar de ter sancionado a escravidão que vigorava em sua época e a despeito de ter originado um culto sanguinário que ainda hoje discrimina mulheres e homossexuais.289 Em entrevista que realizei com ele, afirmou que “as religiões são um dos principais males que afligem a humanidade”. Concebe as religiões como algo anacrônico, conservador, irracional e contrário às liberdades e direitos individuais. Sobre o papel da religião na sociedade moderna, declara: A religião cumpre muitos papéis: dá sentimento de pertencimento a um grupo, oferece cosmovisões, sustenta e enriquece alguns à custa da ilusão de muitos, gera um estoque infinito de homens-bomba e motivos para a guerra, fomenta a intolerância e a irracionalidade, se opõe ao conhecimento científico, luta contra liberdades democráticas essenciais [...]. 290 Conforme o criador da ATEA, os grupos religiosos, principalmente cristãos, opõem-se ao Estado laico e à formação de um espaço público secular. No que concerne particularmente ao debate sobre a presença de símbolos religiosos em repartições públicas, afirma: Essa presença é uma silenciosa justificativa de todo tipo de orientação cristã nas ações desses poderes. Ela cria um ambiente que ao mesmo tempo induz e legitima o enviesamento dessas decisões em favor dos credos que representa.291 Daniel Sottomaior tem participado seguidamente de programas de rádio e televisão, de seminários e congressos, advogando em favor da laicidade estatal e criticando duramente o discurso religioso. No seminário “Estado, Religião e Desenvolvimento: a intolerância religiosa nas veias do Estado Laico”, promovido pela 288 Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#FullProfile?rl=pcb&uid=11296082563580046465 Acesso em: 03/02/2010. 289 Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#FullProfile?rl=pcb&uid=11296082563580046465 Acesso em: 03/02/2010. 290 Entrevista realizada em 24 de agosto de 2009. 291 Entrevista realizada em 24 de agosto de 2009. 215 Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, em 8 de agosto de 2008, apresentou uma comunicação intitulada “Lições sobre a Laicidade: Ministério Público, Dioceses Particulares”. Em determinado momento de sua exposição, que tratava sobre os objetivos da iniciativa “Brasil para Todos”, afirmou que a presença de símbolos religiosos em tribunais de justiça que julgam casos que envolvem direitos sexuais e reprodutivos coloca sob suspeita tais julgamentos, pois expressaria uma aliança tácita entre o Estado brasileiro e o grupo religioso hegemônico: É público e notório o fato de que tais símbolos estão associados a doutrinas de negação dos direitos mais elementares como a liberdade de casamento e divórcio, direitos sexuais e reprodutivos, e o respeito à dignidade humana sem quaisquer formas de discriminação, entre muitos outros. Sua presença no alto dos recintos mais importantes do país prepara e predispõe à violação de direitos, e contribui decisivamente para a perpetuação e institucionalização do preconceito, da injustiça, do racismo, do sexismo, da homofobia e do obscurantismo nas decisões judiciais, nos atos do legislativo e no trato do executivo com a população. Para ser bem claro: que mensagem está posta aos juízes do país inteiro quando vão julgar causas envolvendo direitos de homossexuais, sabendo que o símbolo universalmente presente em todas as varas é também o maior veículo da homofobia do planeta? O julgamento de todas as cortes do país está sob suspeição, e poucas coisas poderiam ser mais danosas a nossa democracia do que isso. E que dizer do acesso ao planejamento familiar e à camisinha em hospitais coalhados de ícones que simbolizam a sua proibição? Como fica o acesso dos povos de terreiro a esses mesmos hospitais quando seus símbolos dizem que os deuses deles são deuses falsos, e suas religiões são religiões falsas? Os símbolos religiosos minam os direitos de mulheres, negros, indígenas, GLBTs e todos aqueles 292 que não se vêem representados por esses símbolos. Daniel Sottomaior acredita que a presença de símbolos religiosos em tribunais de justiça influencia e interfere na tomada de decisões por parte dos juízes. Para o mentor da iniciativa “Brasil para Todos”, a predominância dos valores religiosos cristãos (católicos e evangélicos principalmente) em diversas esferas da sociedade brasileira, é o principal obstáculo na garantia e efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos. Outra importante intervenção de Daniel Sottomaior ocorreu quando da realização, em Porto Alegre, do curso Fomentando o conhecimento das Liberdades Laicas.293 Nessa ocasião realizou uma palestra com o título Articulação e mobilização laica.294 Acompanhei com atenção sua exposição que foi sem dúvida, a mais comentada de todo o curso, sendo carregada de provocações, com fala vibrante e tom inflamado. 292 Disponível em: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/posicionamentos7-3.html. Acesso em: 10/02/2009. 293 Curso realizado em Porto Alegre/RS, de 13 a 24 de setembro de 2010. 294 Palestra realizada em 22 de setembro de 2010. 216 Sobretudo, sua palestra teve um caráter revelador, pois trouxe à tona as fissuras e divergências existentes no interior da militância laicista. Iniciou sua fala enfatizando a necessidade de um ativismo laico. Sendo assim, para Daniel Sottomaior, o ativismo deve privilegiar a prática efetiva que visa à transformação da realidade social: “Especular não é ativismo, ativismo é um termo próximo de mobilização, que é o título da minha apresentação. Não é só observação, é transformação da realidade”. Em seguida, enumerou algumas vias de ativismo, como lobby, ações judiciais, proselitismo, ações educativas, boicote, protestos, passeatas e eventos. Outro ponto abordado por esse militante laicista referiu-se à questão da comunicação, pois entende que dela depende fundamentalmente o sucesso de uma causa. Nesse sentido, a forma mais eficaz e produtiva de comunicação é aquela que é feita através de imagens. Nesta passagem, o poder das imagens é novamente destacado: Comunicação mais eficaz é curta e visual, esse é um problema especialmente grande para nós, se você quer salvar as baleias mostre uma baleia. Se você quer laicidade como você vai mostrar isso? É um desafio enorme, mas é um desafio que precisamos encarar não adianta ficar só mostrando frases, precisamos de imagens, de imagens! [...] Se você quer mudar o mundo precisa de comunicação, você quer boa comunicação, você precisa de imagem, com isso você consegue a notícia, com notícia você consegue divulgação, com divulgação você muda corações e mentes. Em outro momento de sua exposição ressalta as especificidades do ativismo laico, bem como a pouca preocupação do grande público com o tema da laicidade: Em caso de ativismo laico quais são as particularidades. Temos alvos fixos e temos interesses convergentes. Quais são os alvos fixos, primeiro o Estado e segundo as religiões. Os interesses convergentes são grupos LGBT, minorias religiosas e não religiosas, a comunidade científica e todos os beneficiados pelas suas pesquisas, ou seja, todo mundo, mulheres pelos seus direitos sexuais e reprodutivos, e homens. Ou seja, potencialmente nós podemos atingir todo mundo, mas até agora nós não tivemos competência para ir atrás dessas pessoas, o que nós temos em comum, aquilo é o que temos de diferente do resto do ativismo. O que temos em comum são uma causa extremamente impopular na sociedade e entre o legislativo, executivo, o judiciário e a mídia, ninguém quer saber. De acordo com Daniel Sottomaior, é primordial a organização da militância laicista em uma entidade formalizada e que tenha como objetivo único a luta pela laicidade: [...] temos que nos organizar, estamos falando de ativismo, de ação. Bom tem que ter uma entidade formalizada, pessoa jurídica, organização registrada, entidade com estatuto, presidente. [...] Tem que ser claramente só laicidade, laicidade e direitos sexuais, tudo bem, mas aí já está saindo do foco, tá puxando a sardinha para alguém, é importante, sim, mas quantas entidades defendem a laicidade como ativismo, nenhuma, como vai mudar assim se a 217 laicidade está só a reboque. Aí vêm as mulheres que querem advogar pelo aborto, daí a laicidade para justificar o aborto. Laicidade não pode ser secundária, se vocês querem mudar alguma coisa a laicidade tem que estar em primeiro plano, tem que ser laicidade pela laicidade, o que vier com ela é lucro. E hoje em dia, é uma queixa muito séria que eu faço, tenho muitos parceiros no movimento feminista, afro-brasileiros, LGBT, me convidam para falar num monte de lugares, mas a laicidade está sempre a reboque precisamos de uma única organização que fale só sobre laicidade seja como for, sem isso não vamos para frente. Em seguida, abordou algumas questões que devem ser combatidas pelos seguidores da causa: Casos da constituição brasileira aos quais nós temos que lutar, tem o preâmbulo, o artigo 19, que é o artigo da laicidade, mas é horrível, tem o artigo que fala do ensino religioso, horrível também. O artigo 226, que fala do casamento religioso tendo efeito civil e união estável entre homem e mulher. Essas são as questões constitucionais que temos que atacar na laicidade. Têm muitas outras, temos duas concordatas com o Vaticano, símbolos religiosos em repartições púbicas, dinheiro aos montes que o Estado dá. Cerimonial, Deus seja louvado com o nosso dinheiro, orações nas escolas públicas, no legislativo, no executivo, no judiciário, cargos que vão para os religiosos, monumentos religiosos com mensagens religiosas [....]. Por fim, descreveu algumas atitudes práticas que os militantes podem levar a cabo. Uma destas seria a construção de uma réplica do painel do STF, mas sem a presença do crucifixo, que seria colocada na frente do próprio Supremo Tribunal Federal, ou mesmo nas proximidades do Congresso Federal. Nessa ocasião realizar-seia uma enquete com a pergunta: Esta parede ofende você? Outra atitude muita mais desafiadora foi sugerida com tom sarcástico por Daniel Sottomaior: No Brasil, grande parte dos tribunais e salas de audiências tem um símbolo religioso, aqui a minha ideia é de desobediência civil. Você vai entrar num tribunal, pode ser um réu seja quem for, peça para retirar o símbolo. Pode ser uma parte, mas você tem direito de solicitar isso, o juiz se nega, então você vira de costas, ok fico aqui, mas de costas. O que o juiz pode fazer, no máximo ele vai tentar te tirar de lá, ou ele vai te prender, te multar por desacato. Eu adoraria ser preso por desacato por ter ficado de costas para um crucifixo, por que isso é uma causa que eu acredito e certamente vai dar notícias. Então, toda vez que você for e tiver um crucifixo, peça para retirar, se não foi atendido, eu só fico aqui dentro de costas para esse símbolo. Ao findar sua palestra, tratou novamente sobre a questão dos símbolos religiosos, mais propriamente acerca dos crucifixos existentes em repartições públicas: [...] você vai lá numa audiência pública e está lá aquele enorme crucifixo num lugar privilegiadíssimo de propaganda, é isso que acontece, é isso que os crucifixos estão fazendo. Então isso tem um valor comercial, qualquer coisa que você exponha num local público tem valor comercial de propaganda, eu queria saber qual é o valor comercial de propaganda da cruz que está no Senado, no Supremo, no gabinete do presidente, qual é o valor, isso tem valor. Eu quero contratar uma empresa de marketing que faça esse levantamento para me dar esse número e depois eu vou fazer uma coletiva de 218 imprensa e olha “isso aqui é quanto à Igreja Católica está recebendo em subsídios de propaganda do Estado brasileiro”. O discurso inflamado e provocativo de Daniel Sottomaior provocou desconforto no ambiente. Ao longo de sua exposição muitos ouvintes deixaram a sala aborrecidos. Outros exprimiram verbalmente sua indignação, como foi o caso de dois participantes do curso que cunharam o palestrante de “fascista”, “anti-intelectualista” e “anti-acadêmico”. Estes, também, declararam que as assertivas do expositor eram superficiais e simplistas. Em suma, sua apresentação entusiasmada estimulou reações contrárias e discordâncias. Além disso, ilustrou que a militância laicista não é homogênea nem uniforme. Mesmo aqueles que defendem aguerridamente a laicidade do Estado partem de posições e utilizam meios e estratégias diferenciadas. Concluo, a partir dos posicionamentos do criador da campanha “Brasil para Todos” e da ATEA, que esse militante parte da defesa de uma laicidade de combate, anticlerical, e, desse modo, francamente hostil ao religioso. Assim, nesse caso particular, a laicidade acaba por redundar em laicismo, transmutando-se de um instrumento jurídico em uma espécie de religião política secular. Entretanto, sublinho novamente que muitos dos agentes envolvidos com a defesa do Estado laico e de uma arena pública secular não necessariamente advogam esse laicismo de teor antirreligioso. Nesse sentido, evidencia-se, mesmo no interior da militância laicista, diversas e contrapostas noções de laicidade. 219 6 A INVOCAÇÃO DO NOME DE DEUS NAS CONSTITUIÇÕES E A EXIBIÇÃO DA BÍBLIA NOS PARLAMENTOS E EM PRAÇAS PÚBLICAS Uma das principais razões apresentadas para justificar e legitimar a presença de símbolos religiosos nos espaços públicos é de que a Carta Magna de 1988 foi promulgada em nome de Deus. Na realidade, a invocação de Deus no preâmbulo295 das constituições federais é algo recorrente, presente em todas as cartas constitucionais republicanas, com exceção da Constituição Federal de 1891, de forte teor laicista, e da Constituição Federal de 1937, as quais não fizeram essa menção.296 Interessante notar que a Constituição Imperial de 1824, elaborada em um período em que ainda vigorava o regime de união entre Estado e religião católica, foi promulgada em nome da “Santíssima Trindade”. Ademais, o monarca Dom Pedro I jurou a Constituição em cerimônia realizada na catedral do Rio de Janeiro. Seguindo a Constituição Federal de 1934, que reintroduziu o nome de Deus, todas as constituições estaduais de 1934/1935, fizeram de alguma forma referência a Deus. Cada Estado da federação utilizou, porém, uma expressão em particular, conforme assevera Thales de Azevedo (1981, p.84): Importa muito como isso foi verbalizado. Certo é que a locução “em nome de Deus”, às vezes “em nome de Deus todo-poderoso”, repete-se em diversos casos; aparecem frequentes “confiantes em Deus” e “pondo a confiança em Deus”. Somente num caso (Sergipe) se faz uma explícita referência de fidelidade “aos princípios espirituais da religião e obediente a Deus”, tudo a evidenciar que Deus é mencionado genericamente como a fonte primeira do direito que poucos poderiam recusar, superior aos homens. A colocação do nome de Deus nas constituições federais quase sempre gerou discussões.297 Durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1933/1934, alguns Segundo Pontes de Miranda (1963, p. 306): “Os Preâmbulos ou palavras introdutórias das Constituições enunciam alguma coisa dos seus propósitos [...]”. 295 296 Com a exceção dos Estados da Bahia, Paraíba, Minas Gerais, as demais constituições estaduais, seguiram a Constituição Federal de 1891, não fazendo menção a Deus. Por sua vez, a constituição do Rio Grande do Sul, de 14 de julho de 1891, foi promulgada em “nome da Família, da Pátria e da Humanidade”, refletindo a influência positivista (Azevedo, 1981). 297 Somente na constituinte de 1967 não são encontrados enfrentamentos e embates sobre essa questão, o que talvez isso se deva ao fato de que a Constituição Federal de 1967, tenha sido elaborada durante o regime militar. O preâmbulo dessa constituição reproduz a formula “sob a proteção de Deus”. Segundo Sarasate (1967), o projeto da Constituição foi apresentado pelo presidente Castelo Branco, tendo o Congresso Nacional sido convocado para discuti-lo, votá-lo e promulga-lo no período de 12 de dezembro de 1966 até 24 de janeiro de 1967. A Constituição de 1967 foi elaborada pelo ministro da Justiça, Carlos Medeiros Silva. 220 deputados se ergueram contra essa medida, que juntamente com outras “emendas religiosas”, intencionava reconquistar para a Igreja Católica privilégios perdidos. O autor da emenda que anunciava o nome de Deus nessa constituinte foi o deputado federal Mário Ramos, que na justificativa do preâmbulo assim declarou:298 Satisfará, naturalmente, a alma cristã brasileira, trabalhadora, bondosa e pacífica que haja no preâmbulo da sua Constituição uma palavra de pensamento no Criador embora se escreva nas tábuas da sua lei: a independência dos dois poderes espiritual e temporal e em obediência ao próprio princípio do livre arbítrio: a liberdade dos cultos e das consciências (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume III, Imprensa Nacional/1935, p.12). Uma das mais fortes resistências à emenda foi conduzida pelo deputado Tomaz Lôbo. Em um dos seus pronunciamentos sobre essa matéria, afirmou que a mesma era a mais absurda e antiliberal das reivindicações da Liga Eleitoral Católica, pois tratar-se-ia de uma violência à consciência individual. O preâmbulo violaria o próprio texto constitucional quando este fazia menção à liberdade de que todos desfrutariam de seguir qualquer credo religioso, filosofia ou corrente científica. Em outro momento de seu pronunciamento, alegava: Julgo que poderia assinar a nossa Carta Política com um dispositivo instituindo a religião do Estado, mas fazendo a devida ressalva. Poderia, nas mesmas condições, assiná-la ainda que estabelecesse o ensino religioso obrigatório nas escolas, mas não posso e não devo assinar Constituição em que se estabelece que todos nós, pondo a nossa convicção em Deus, a promulgamos (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume XVI, Imprensa Nacional/1936, p.80). O deputado Leôncio Galrão299 reagiu a essa colocação asseverando que a invocação do nome de Deus não era propriamente uma reivindicação, estando presente em boa parte das constituições estaduais. Ademais, segundo esse deputado, não haveria crença religiosa que não partisse da ideia de Deus, sendo este um ente superior que está além de religiões específicas. Em resposta, o deputado Tomaz Lobô afirmou que não estava em discussão a existência ou inexistência de Deus e por, consequência, não combatia aqueles que acreditavam em alguma divindade. Contudo, concebia como negativa a mistura entre religião e política, devendo a crença em Deus e sua afirmação Esse projeto de preâmbulo era assim redigido: “Nós, os representantes do Povo Brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, e reunidos em Assembleia para o fim de estabelecer um regime democrático destinado a garantir a liberdade, assegurar a justiça, desenvolver a educação e preservar a paz, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil” (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume 3, Imprensa Nacional/1935, p.12). 298 299 Cônego baiano chegou a ser senador da república. 221 estar circunscrita às consciências individuais e aos templos: [...] “que Deus tenha alguma coisa que ver com esses atos do poder temporal, com a obra terrena da organização política e civil do Estado, parece-me absurdo” (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume XVI, Imprensa Nacional/1936, p.80). Para Tomaz Lobô, essa medida, assim como outras “emendas religiosas” pretendiam enfraquecer se não mesmo aniquilar o regime republicano de separação entre Estado e religião. Os deputados favoráveis à emenda, por sua vez, asseguravam que a presença do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1934 não sinalizava o retorno da união entre o poder temporal e a autoridade espiritual. Argumentava o deputado Tomaz Lobô que os católicos buscavam colocar o Estado sob a tutela da Igreja Católica: Na Monarquia estava a Igreja submetida ao poder temporal, com o beneplácito e o recurso à Coroa, de maneira que os Bispos não podiam publicar bulas e breves nem executá-los sem o beneplácito do governo. Agora, o que se quer é uma religião de Estado, sem nenhuma peia imposta pelo poder temporal (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume XVI, Imprensa Nacional/1936, p.82). Esse constituinte arguia que a existência de uma religião oficial de Estado era um resíduo do paganismo, incompatível com o moderno regime democrático. A defesa de uma religião de Estado partiria do pressuposto de que o religioso seria de natureza pública e ligado à política. Desse modo, caberia ao Estado fazer com que seus súditos seguissem um determinado credo, impondo-o a todos. Ainda neste pronunciamento Tomaz Lobô asseverou que era um defensor da laicidade e não do laicismo, definindo o primeiro desses conceitos: Declaro que não sou partidário do laicismo: sou partidário da laicidade. É uma atitude de imparcialidade do Estado, no interesse da paz pública, em face de uma dualidade ou de uma multiplicidade de credos. Só se pode admitir uma atitude parcial do Estado quando há unidade de crença religiosa e ninguém poderá afirmar, por mais temerário que seja, que no Brasil temos unidade de crença (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume XVI, Imprensa Nacional/1936, p.86). Entendia esse deputado federal que a invocação de Deus no preâmbulo da Carta Magna de 1934 era uma manifestação forçada de crença religiosa que contrariava o princípio da liberdade de consciência: [...] sou contrário à emenda que visa estabelecer uma invocação ao nome de Deus no preâmbulo de nossa Carta Constitucional. Essa invocação envolve necessariamente uma confissão de crença, é um ato de fé e de amor a Deus, que se pretende impor a todos os deputados desta Assembleia [...]. [...] As 222 manifestações de crença religiosa, no regime de liberdade espiritual da nossa lei, e da lei de todas as democracias modernas, é um ato individual da consciência, da esfera do poder eclesiástico, que nada tem que ver com a organização política e social dos povos, do domínio do poder temporal (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume XVI, Imprensa Nacional/1936, p.89). Outro constituinte que se manifestou de forma veemente contra a inclusão do nome de Deus na Constituição Federal de 1934 foi Zoroastro Gouveia. Em seu pronunciamento sobre essa questão atacou a intolerância e o autoritarismo da Igreja Católica. Afirmou que o Deus invocado na Constituição era o Deus sectário e zeloso do Antigo Testamento: Também para o Brasil, Sr. Presidente, começa de raiar a verdadeira democracia: organização do Estado por forma tal, que todas as crenças, todas as aspirações, todas as atitudes comunguem no direito de coexistência, ombreando uma com as outras, em fraternidade civil para o trabalho, para o saber, para a felicidade, para a justiça, sem que se entredevorem os homens nas competições econômicas ou nas lutas religiosas do passado. O Deus, que se pretende invocar no preâmbulo da Constituição, todavia, é o Deus que divide, o inexorável monarca sectário do “Deuteronômio” e dos “Evangelhos”, a indicar de contínuo seus adversários ao furor e á perseguição dos crentes (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume XIV, Imprensa Nacional/1936, p.103). Cabe sublinhar que Tomaz Lobô foi o autor de uma emenda que buscava suprimir o discutido preâmbulo. Compreendia que a colocação do nome de Deus referia-se e agradaria apenas aos católicos, desrespeitando os seguidores de outras crenças religiosas ou filosóficas. Os deputados federais Edgard Sanches e Homero Pires também elaboraram uma emenda supressiva, assinalando que a inserção do nome de Deus no preâmbulo constitucional era uma grave contradição da doutrina jurídica que garante o Estado leigo e a liberdade de consciência. Outros deputados, porém, procuraram substituir o preâmbulo que fazia menção a Deus por outro alusivo às palavras de ordem da doutrina positivista e do liberalismo. Esse preâmbulo era redigido da seguinte forma: Nós os Representantes do Povo Brasileiro, reunidos em Assembleia Constituinte para consagrar um regime de fraternidade e de liberdade, que concilie a ordem com o progresso, decretamos e promulgamos, em nome da Família, da Pátria e da Humanidade, a seguinte Constituição [...] (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume X, Imprensa Nacional/1936, p.18). Embora houvesse algumas posições contrárias, boa parte dos deputados federais era favorável à inclusão do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1934. O deputado Arruda Falcão assim se manifestou sobre essa contenda: 223 Aqueles que não quisessem assinar essa invocação por motivos de crença, deveriam fazê-lo por patriotismo. Os primeiros papéis públicos redigidos no Brasil pelos revolucionários republicanos de 1817, começavam pelo nome de Deus (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume XII, Imprensa Nacional/1936, p.189). Por seu turno, o deputado Augusto Viegas acreditava que a invocação do nome de Deus não tinha caráter normativo. Além disso, a mesma não contrariava o princípio republicano de separação entre Estado e religião: Sou dos que pensam que há na separação entre Igreja e o Estado um grande benefício para ambos, como demonstram mais de 40 anos de República. Mas, certo é também que a ideia de Deus é mais ampla do que a própria Igreja e, dela compreensiva; brota espontânea dominadora na inteligência do homem, universal e benéfica no seio das coletividades. Demais, com a invocação do nome de Deus não se estabelece uma norma a que seja alguém juridicamente obrigado, nem se firma um preceito a que fique moralmente adstrito. É apenas uma enunciação, uma invocação que relembra a fonte de onde promana a sã energia para as melhores realizações humanas [...] (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1933/1934, volume XII, Imprensa Nacional/1936, p.189). Já na constituinte de 1946, o deputado federal do partido comunista, Caires de Brito apresentou uma emenda que procurava eliminar a menção à divindade, pois considerava que a Lei Maior deveria ser um documento neutro e aberto a todos os homens. Além disso, argumentava que a menção seria inócua e pretensiosa. Ele, não foi o único a levantar-se contra a proposta. O deputado Guaraci Silveira também discordava da inclusão do nome de Deus, argumentando que apesar de ser cristão e estar sempre pedindo o auxílio de Deus em sua atividade política, não via necessidade de que em uma carta política houvesse uma declaração formal de confiança em Deus por parte daqueles que a confeccionaram, pois, a fé em Deus seria uma questão íntima. Alegava que foi eleito para trabalhar em um parlamento e não em um sínodo ou concílio eclesiástico: “Os códigos, os estatutos, os regulamentos e as ordenações, nada lhes importa quanto a crença dos que a confeccionaram, ou daqueles que por eles se regerão” (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1946, volume XIX, Imprensa Nacional/1948, p.264). Por seu turno, o deputado socialista Hermes Lima, rígido defensor do Estado leigo, não percebia qualquer ilegalidade e ilegitimidade na inclusão do nome de Deus na Constituição de 1946. Disse o deputado: Desde que a Constituição assegure ao indivíduo o direito de ser ateu, é indiferente. Foi por isso que não propus emenda supressiva. Desde que a Constituição me assegure o direito de não acreditar em Deus, parece-me indiferente que invoque seu nome (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1946, volume XIII, Imprensa Nacional/1948, p.314). 224 Na ocasião, o então deputado Gilberto Freyre defendeu a menção a Deus, destacando a profunda influência do catolicismo na cultura brasileira: De modo que sociologicamente ou culturalmente, é natural que a Constituição de um povo como o brasileiro seja no seu espírito e na sua forma cristã ou católica e não anticristã ou sequer acatólica. Sendo assim, não me parece que o nome de Deus esteja deslocado na Constituição de uma gente ou de um país, onde os próprios ateus são capazes de dar graças a Deus por um sucesso, como o ateu da anedota célebre (Freyre apud Nóbrega, 1998, p.33). O deputado Augusto Viegas relacionou em um dos seus discursos a presença de Deus no preâmbulo constitucional com o simbolismo da cruz, inserido na paisagem nacional desde muito tempo: Inscrita no texto inicial de nossa Lei magna tão sublime invocação ao Criador, constituirá ela, desde logo, a reafirmação solene de que na Terra de Santa Cruz, onde o sagrado símbolo do cristianismo se levantou refletindo o cruzeiro que fulge no céu de nosso hemisfério, imperam não os grosseiros materialistas que pregam exóticas ideologias, mas os ensinamentos do Grande Legislador, que ao alto da montanha ditou aos séculos a lei que todo bem encerra, a lei que é equidade e que é justiça, que é sabedoria e que é bondade (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1946, Tomo III, Imprensa Nacional/1947, 300). Destaco que a referida proposta partiu do deputado Goffredo da Silva Telles, do PRP, que também foi o autor do requerimento pela entronização do crucifixo no Palácio Tiradentes. Para ele, a invocação do nome de Deus no preâmbulo constitucional expressava o sentimento espiritualista e cristão do povo brasileiro. Uma carta política agnóstica implicaria em traição às raízes históricas cristãs da nação. Diante da iminente ameaça do comunismo materialista e ateu, urgia afirmar o compromisso com os valores espirituais e rogar o auxílio da divindade para a reconstrução da pátria. Como outros constituintes, Goffredo da Silva Telles associava a menção a Deus na Carta Magna com a imagem do crucifixo e da cruz cristã: O Brasil nasceu sob o símbolo do supremo sacrifício. Sob esse símbolo, e sob sua inspiração, formamos uma civilização em progresso e preservamos a unidade da pátria. Que sob tal sentimento prossigamos nossa marcha batida para o futuro. [...] Cristo e Nação, Deus e Pátria, sejam nossos lemas. Com eles encontraremos nossa redenção nacional, e estaremos aptos para formar a grande nacionalidade de nossos ideais (Jornal Idade Nova, 17/8/1946, p.2). O principal opositor da proposta foi o deputado Café Filho, do Partido Social Progressista (PSP), que era declaradamente agnóstico. Sua posição ficou evidenciada quando elaborou uma emenda supressiva do preâmbulo, e também em sua contundente manifestação contrária à inclusão do nome de Deus ocorrida no dia da votação desta questão. Nesse pronunciamento, asseverou que haveria uma contradição em citar Deus 225 no preâmbulo e depois declarar na mesma Constituição a separação entre Estado e religião. Concebia essa menção como uma imposição da maioria crente sobre a minoria de ateus e agnósticos. Apesar das discussões, a tese que defendia a colocação do nome de Deus na Constituição Federal de 1946 foi vitoriosa.300 Na constituinte de 1987/1988, o debate surgiu quando o deputado federal José Genoino (PT-SP), marxista e ateu, apresentou emenda supressiva de nº 000523/87, com a finalidade de retirar do preâmbulo constitucional a expressão “reunidos sob a proteção de Deus”301. Para tanto, fundamentou sua tese no Direito Comparado, asseverando que as constituições da Itália, França e Estados Unidos não fazem referência a Deus. Ainda acrescentou em sua justificativa: Sr. Presidente, para concluir esse encaminhamento, é com uma visão aberta ao pluralismo ideológico, filosófico, ético e moral, à modernidade dos nosso dias, que defendemos a supressão da expressão sob a proteção de Deus (Genoino apud Nóbrega, 1998, p.33). A emenda supressiva, de autoria de José Genoino, foi votada na Comissão de Sistematização, sendo derrotada por 74 votos contrários e apenas um voto favorável. Haroldo Lima (PC do B-BA) foi o autor do voto favorável, arguindo posteriormente na Câmara Federal que este não era um problema religioso ou filosófico acerca da existência de Deus, mas um problema político, pois a Constituição Federal deveria ser um documento para todos os brasileiros e não para uma facção, ainda que majoritária. Acrescentou, ainda, que esta seria uma utilização oportunista, desrespeitosa e “farisaica” do nome de Deus, que serviria apenas para fins políticos e demagógicos. Derradeiramente afirmou: Para que a separação entre o Estado e a Igreja prevalecesse, para que ninguém fosse obrigado a assinalar texto contrário as suas convicções, para que não se evocassem poderes divinos para documentos políticos, relativos e temporários que servem mais a uns que a outros, para que não parecesse, enfim, que se estava utilizando Deus como cabo eleitoral é que votamos, na Comissão de Sistematização, pela supressão da expressão “sob a proteção de O preâmbulo da Constituição Federal de 1946 ficou com a seguinte redação: “Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos sob a proteção de Deus, em Assembleia Constituinte, para organizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição dos Estados Unidos do Brasil” (Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1946, volume XXI, Imprensa Nacional/1949, p.36). 300 Diz o preâmbulo da Constituição Federal de 1988: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil” (Constituição da República Federativa do Brasil, 2005, p.5). 301 226 Deus” do preâmbulo da Constituição. Como o nosso voto, o voto do PC do B foi o único contrário, e como não temos disponibilidade de emendas a apresentar no plenário, deixamos de encaminhar essa proposta de retirar a expressão “sob a proteção de Deus” da referida Constituição. Aproveitamos, entretanto, a oportunidade para reafirmar a nossa posição, o que agora aqui faço (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 28 de janeiro de 1988, p. 6633). O pronunciamento do deputado Haroldo Lima foi contestado por vários deputados federais. Dentre eles, destaca-se a reação do deputado batista Fausto Rocha (PFL-SP), que defendeu a invocação do nome de Deus com o argumento de que a maioria da população brasileira é cristã; o mesmo argumento usado no caso dos crucifixos: É claro que nem toda a Nação brasileira é constituída de cristãos, mas o Brasil é a maior Nação cristã do mundo. Se outros países colocam em suas constituições e até na moeda que circula na mão de cada um o respeito, a admiração e a aceitação de que Deus é Senhor, de que estão debaixo daquele que orienta suas vidas, queremos, como a maior Nação cristã do mundo evangélicos, católicos, diversas denominações - ter a honra, o orgulho e o privilégio, como maioria, de ver cumprida essa nossa aspiração (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 28 de janeiro de 1988, p.6634). O argumento da maioria cristã também foi acionado pelo deputado José Maria Eymael, do Partido Democrata Cristão (PDC), um dos mais ferrenhos defensores da proposta. Ele ainda acentuou em sua manifestação que a invocação do nome de Deus não era uma mera formalidade: “[...] a democracia cristã não considera um aspecto meramente adjetivo, decorativo ou formal a implantação do apelo a Deus para que ilumine esta Assembleia Nacional Constituinte. Ao colocarmos essa premissa fazemos eco a História [...]” (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 28 de janeiro de 1988, p.6635). Como se pode perceber, razões extrarreligiosas, de ordem histórica e cultural principalmente, são utilizadas para justificar a invocação do nome de Deus no preâmbulo constitucional. Outrossim, o deputado Jorge Abage (PDS/PA) criticou duramente a tentativa de retirar a expressão “sob a proteção de Deus” do preâmbulo da Constituição, alegando que isso seria um indício da crise de fé e da decadência moral em que se encontra a sociedade brasileira. Enfatizava que enquanto alguns deputados preocupavam-se em defender o divórcio, o aborto e a legalização dos jogos de azar, poucos eram os que voltavam sua atenção para a conservação dos valores fundamentais que alicerçariam as famílias. Entendia que o Estado brasileiro deveria ser temente a Deus e seguidor dos preceitos cristãos. Em determinado momento de sua exposição, declarou: 227 [...] não podemos esconder a forte perplexidade que um propósito dessa natureza gerou no âmbito social de um país que foi descoberto sob o signo da Cruz, cultivador de expressiva maioria católica, apostólica e romana e que tem como sua excelsa padroeira Nossa Senhora Aparecida (Diário do Congresso Nacional, 29 de setembro de 1987, p. 2992). Importante frisar que o deputado Roberto Freire (PCB-PE) foi contra a emenda supressiva de José Genoino, apesar de se declarar ateu. Disse, em seu voto, que não iria desrespeitar o sentimento teísta e religioso do povo brasileiro. Atualmente todas as constituições estaduais, com a única exceção da Constituição do Estado do Acre, fazem referência a Deus, imitando a Constituição Federal. Esta ausência do nome de Deus na constituição estadual do Acre motivou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), proposta pelo Partido Social Liberal (PSL)302, contra a Assembléia Legislativa deste estado. Na ação, examinada pelo STF, declarava-se que a Constituição acreana afrontava a Constituição Federal de 1998 por não mencionar Deus. Em um determinado momento, os autores da ação afirmavam: “Ademais, ao ser incorporado ao texto constitucional, Deus é projetado no ordenamento constitucional, transformando-se, automaticamente, num referencial jurídico dos mais expressivos” (fl. 6). Acrescentavam, ainda que o Deus incluído no preâmbulo da Constituição Federal é ecumênico: O Deus do chamamento preambular da Constituição Federal é ecumênico, tendo em vista que nossa sociedade é pluralista. O fato de encontrar-se no pórtico da carta da República não lhe retira o valor jurídico, porquanto o preâmbulo é parte integrante da mesma. Ofende a norma constitucional federal por omissão, a lei máxima estadual que omite a súplica preambular “sob a proteção de Deus”. Trata-se de ato normativo de supremo princípio básico com conteúdo programático e de absorção compulsória pelos Estados (fl.9). A questão foi analisada pelo STF em 15 de agosto de 2002, sendo julgada improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade promovida pelo PSL acreano. No entendimento do relator da ação, ministro Carlos Velloso, o preâmbulo da Carta Magna não cria direitos e deveres, não tendo força normativa, refletindo somente a posição ideológica do constituinte. Sustentava, ainda, o ministro Carlos Velloso: [...] essa invocação, todavia, posta no preâmbulo da Constituição Federal, reflete, simplesmente, um sentimento deísta e religioso, que não se encontra inscrito na Constituição, mesmo porque o Estado brasileiro é laico, consagrando a Constituição a liberdade de consciência e de crença(C.F., art.5º), certo que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (C.F., art. 5º, VIII). A Constituição é de todos, não distinguindo entre deístas, agnósticos ou 302 Esta petição data de 29 de setembro de 1999. 228 ateístas. A referência ou invocação à proteção de Deus não tem maior significado, tanto que Constituições de Estados cuja população pratica, em sua maioria, o teísmo, não contém essa referência. Menciono, por exemplo, as Constituições dos Estados Unidos da América, da França, da Itália, de Portugal e da Espanha.303 Em que pese esse dispositivo constitucional não ter força normativa, é inegável seu forte conteúdo simbólico. Conforme Zubrzycki (2006), o preâmbulo é um lugar simbólico por excelência, onde a nação é explicitamente definida. Expressa algo do modelo de relação entre Estado, religião e sociedade no Brasil, eis que sinaliza para a importância do religioso em nossa configuração jurídica, social e política. Acerca desse ponto, o jurista Aloisio Cristovam dos Santos Júnior faz uma interessante observação: Quando os constituintes invocam a proteção de Deus deixam claro que nossa ordem jurídica constitucional não adota a separação extremada entre Estado e religião, da espécie a que os doutrinadores europeus denominariam “laicismo”. Ainda que não pretendamos atribuir um conteúdo principiológico ao preâmbulo da Carta Magna, a invocação da proteção divina não é destituída de significado. Tanto isso é verdade que a sua inclusão no texto constitucional provocou acaloradas discussões e polêmicas durante os trabalhos da Assembleia Constituinte. Com efeito, a referência a Deus está a revelar que o Estado brasileiro tem em relação ao transcendente, ou seja, à fé religiosa, uma atitude de respeito e valorização (Santos Júnior, 2007, p.71). É inimaginável a referência a Deus no principal documento político e jurídico de sociedades e Estado laicistas ou ateus, como no caso da França da era jacobina ou então, nos países que estiveram sob o domínio da ideologia marxista. Essa presença afirma não só a religiosidade dos constituintes, e da própria sociedade, como também certa preocupação por parte dos legisladores de confeccionarem normas éticas e jurídicas que estejam embasadas na existência de um ser supremo. Parece existir ainda em boa parte dos agentes sociais, em sociedades impregnadas pelo religioso, a associação de que as leis feitas pelos homens devem refletir as leis de Deus. Nesse caso, como em outros a ordem política, jurídica e moral busca no religioso um ponto de apoio e uma força legitimadora, orientadora e inspiradora de teor não apenas temporal e secular. Além disso, a referência a Deus no preâmbulo constitucional pode exprimir o que Droggers (1987)304 conceituou como “religiosidade mínima brasileira”. Esta tem como aspecto central a fé em Deus, manifestando-se publicamente em contextos tidos como seculares, sendo desprovida de rituais, sacerdotes, instituições e escrituras 303 Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 20/08/2008. Segundo Droggers (1987) expressões populares como “Deus me livre”, “ Graças a Deus”, “Se Deus quiser” são manifestações cabais dessa religiosidade mínima. 304 229 sagradas, tendo na política e nos políticos leigos um os seus principais porta-vozes. Este Deus seria uma divindade nacionalizada: Mas, afinal, quem é este Deus da RMB305? Antes de mais, Ele é brasileiro. É o mais ilustre compatriota. Com a sua onipotência e providência divina. Ele ajuda a fazer do Brasil uma potência mundial, da qual os brasileiros podem se orgulhar. Ele cria um sentimento de communitas que une os brasileiros numa corrente pra frente de fé no seu país (Droggers, 1987, p.84). Penso que mais uma vez, como no caso da aposição do crucifixo em locais públicos, símbolos e referências religiosas originalmente cristãs e católicas são utilizados principalmente por atores leigos com finalidades políticas e seculares. Derradeiramente, o fato de a nossa Constituição Federal invocar o nome de Deus em sua abertura e não fazer qualquer menção ao conceito de laicidade ou Estado laico, apesar de garantir a separação formal entre Estado e religião, não é destituído de significado. 6.1 A exibição da Bíblia nos parlamentos Outro interessante debate que surgiu na Constituinte de 1987/1988 refere-se à exibição da Bíblia na mesa da Assembleia Nacional Constituinte. O deputado federal Antônio de Jesus306, pastor da Assembleia de Deus e membro do PMDB de Goiás, propôs por meio da Emenda nº 681, a colocação da Bíblia na mesa da Assembleia Nacional Constituinte. O parlamentar evangélico enfatizava naquela ocasião, com o fito de justificar sua proposta, que a Bíblia não é apenas um livro religioso, mas tratava-se do primeiro livro a ser impresso no mundo ocidental, sendo um símbolo da imprensa de Gutemberg, no século XV, além de ser um texto de consulta e pesquisa para historiadores, antropólogos, juristas e todos aqueles interessados na história da humanidade. Essa emenda foi aprovada, originando o artigo 46 do Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte, que declarava: “A Bíblia Sagrada deverá ficar, sobre a mesa da Assembleia Nacional Constituinte, à disposição de quem dela quiser fazer uso” (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 29 de janeiro de 1988, p.6.665). 305 306 Sigla usada por esse autor para referir-se à religiosidade mínima brasileira. Em sessão realizada na Câmara dos Deputados em 4 de dezembro de 2009, dedicada à comemoração do Dia da Bíblia, Antônio de Jesus esteve presente, relembrando sua proposta. 230 Na justificativa do Projeto de Resolução nº 49, de 1988, que incorporou ao Regimento Interno o dispositivo referente à colocação da Bíblia sobre a mesa do plenário da Câmara dos Deputados, foi asseverado que esse livro serviria como fonte de inspiração e subsídio de ordem espiritual na tarefa de elaboração das normas e leis. Além do mais, foi relacionada a presença da Bíblia com a inclusão do nome de Deus na Constituição: “[...] mais uma vez, as consciências cristãs que promulgaram a nova Constituição “sob a proteção de Deus”, terão regozijo ao ver sobre a Mesa da Câmara dos Deputados um exemplar da Bíblia Sagrada” (Diário do Congresso Nacional, 27 de outubro de 1988, p.3.722). Em outro pronunciamento sobre essa questão o deputado evangélico Antônio de Jesus afirmou que alguns tentaram convencê-lo dos inconvenientes dessa proposta: Quando apresentei a emenda para colocação da Bíblia sobre a mesma da Assembleia Nacional Constituinte tentaram dissuadir-me de tal propósito. Alguns alegavam que não se devia misturar religião com política. Outros diziam que tal ato poderia ser interpretado como folclórico. Eu não dei ouvidos a nada disso, porque sabia que, no mínimo, a presença da Bíblia nos levaria a refletir sobre a nossa condição de Constituintes, até porque não se deve confundir a Bíblia com religião, posto que ela é a revelação de Deus aos homens (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 26 de junho de 1987, p. 2922). Há nessa passagem a tentativa de legitimar a colocação da Bíblia no parlamento nacional, argumentando que este não é unicamente um livro religioso, sendo assim mais que religião. A mesma argumentação é usada na questão dos crucifixos e na invocação do nome de Deus no preâmbulo constitucional. De alguma maneira, na ótica dos personagens envolvidos nessas contendas, esses elementos, símbolos e objetos podem participar do espaço público secular quando revestem-se de características e valores extrareligiosos. Procuram, desse modo, neutralizar o sentido religioso de tais objetos. O relator do regimento, o então senador Fernando Henrique Cardoso, rejeitou em um primeiro momento a emenda; porém, posteriormente aceitou a proposição afirmando: Não me foi difícil chegar a um acordo com o deputado Luiz Henrique a respeito da questão da Bíblia, até porque o deputado Manoel Moreira, que pertence à Assembleia de Deus, chamou minha atenção para o fato de que temos um Crucifixo na Sala. Embora o Estado seja laico, como já temos um Crucifixo, me pareceu que seria muito justo tivéssemos também a Bíblia. Não houve nenhuma dificuldade de minha parte acolher esta proposta [...] (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 11 de março de 1987, p.708). 231 Como no caso da invocação do nome de Deus no preâmbulo constitucional, o deputado federal José Genoino (PT/SP) manifestou-se contra esta medida, defendendo a liberdade religiosa e a laicidade do parlamento: “[...] esta instituição parlamentar deve ser laica e plural [...]” (Diário do Congresso Nacional, 29 de setembro de 1989, p.10.802). Em outro momento acrescentou: Tenho respeito pelos que professam a sua filosofia, mas não concordo, em nome da liberdade de religião, que se vincule uma instituição estatal a determinada religião. Há os que não têm religião, há os espíritas e outras profissões religiosas que não podem necessariamente ser vinculadas a único tipo de religião. Em nome do pluralismo, da plena liberdade, manifestei-me em relação à colocação da Bíblia Sagrada na mesa. Fiz isso em forma de emenda. Perdi na Câmara dos Deputados, como perdi na Constituinte. Acho que foi um erro vincular-se o nome de Deus à Constituição. Em respeito a Seu nome é que eu não queria que fosse colocado no texto da Carta Magna (Diário do Congresso Nacional, 29 de setembro de 1989, p. 10.803). Os deputados da Assembleia de Deus, Manoel Moreira, Salatiel Carvalho, Orlando Pacheco, Matheus Iensen, conceberam a aprovação dessa emenda como a primeira grande vitória do grupo evangélico na Assembleia Nacional Constituinte. Para o deputado federal Matheus Iensen, todas as nações que tomaram como base os ensinamentos contidos na “Bíblia Sagrada” tornaram-se grandiosas e poderosas. Por sua vez, o deputado Orlando Pacheco destacou que a Bíblia é o livro que representa a primeira, a melhor e a maior Constituição que o mundo já teve, sendo ainda esse um livro de caráter universalista que serve para todos os homens, independente de sua crença religiosa ou filosófica: “É um livro que serve a todos os credos, raças e níveis sociais. Aqueles que procurarem pautar-se por ele serão felizes [...]” (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 14 de março de 1987, p.763). Cabe aqui ressaltar que a Assembleia Constituinte de 1987/1988, contou com 32 deputados evangélicos, a maior participação de constituintes dessa corrente religiosa em toda a história brasileira. Juntamente com a defesa da exibição da Bíblia, os políticos evangélicos batiam-se contra o aborto, o homossexualismo, as drogas, o feminismo e a pornografia. A sua principal bandeira era sem dúvida a defesa intransigente da moral cristã e dos “bons costumes” (Pierucci, 1996).307 Eles não escondiam seus propósitos, como se pode notar nesta manifestação do deputado Salatiel Carvalho (PFL/PE): Segundo Pierucci (1996, p.178): “Antes de mais nada, verifica-se que eles não são conservadores sem o dizerem; eles se dizem conservadores. A retórica é religiosa, moralista e explicitamente bíblica: a Bíblia diz, preceito bíblico, Sodoma e Gomorra... Os símbolos são bíblicos e patriarcais: a família, o sexo, a mulher em seu lugar, o corpo da mulher, o estupro, o feto”. 307 232 A nossa estratégia é agregar à bancada evangélica outros Constituintes não evangélicos e formarmos um bloco para votarmos unido em defesa das questões de maior relevância para que possamos garantir uma Constituição limpa e justa, baseada nos princípios cristãos e que possa honrar a Nação brasileira, bem como garantir ampla liberdade para que o Evangelho continue sendo pregado com todo vigor (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 16 de maio de 1987, p.3.313). Este discurso revela um dos objetivos da entrada dos evangélicos na arena política, destacada por Oro (2005), que é de “religiogizar o político”, ou seja, trazer para esse campo da vida social doutrinas e símbolos próprios das cosmovisões religiosas. A defesa da moralidade e dos valores do cristianismo se cristalizam e ficam representados de forma patente com a colocação da Bíblia no parlamento, que não por acaso encontrase no lado oposto, em posição paralela onde está colocada a Constituição Federal (vide abaixo foto do crucifixo e Bíblia na mesa do plenário). Desse modo, a Constituição política, secular, é ladeada e de alguma maneira deve refletir a “Constituição divina”. O texto político-jurídico arquitetado pelos homens deve inspirar-se no texto sagrado. FIGURA 18. Crucifixo e Bíblia na Câmara Federal.308 Em 25 de março de 1987, o deputado Antônio de Jesus entregou ao presidente em exercício daquela sessão, Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), o exemplar da Bíblia doado pela Sociedade Bíblica Brasileira acompanhada de um atril, que até hoje se 308 Foto tirada pelo autor da tese em 20 de julho de 2010. 233 encontra colocada no plenário da Câmara dos Deputados (Pinheiro, 2008). Trata-se evidentemente de uma Bíblia evangélica. Vale lembrar que o atual Regimento Interno da Câmara Federal309 repete em seu artigo 79, o artigo 46 do Regimento da Assembleia Nacional Constituinte, que determina a exibição da Bíblia. Ademais, é dito que presente no parlamento a décima parte dos deputados, o presidente declarará aberta a sessão proferindo as seguintes palavras: “Sob a proteção de Deus e em nome do povo Brasileiro iniciamos nossos trabalhos”.310 A exposição da Bíblia não ocorre apenas na Câmara Federal, mas também em diversas Assembleias Legislativas Estaduais e Câmaras Municipais. No Estado do Amapá, por exemplo, existe uma resolução do ano de 1994311, que dispõe acerca da colocação de duas Bíblias nas dependências do prédio da sede da Assembleia Legislativa. Uma devendo estar no centro da sala do hall da entrada principal e a outra na sala que antecede o acesso ao plenário. Além disso, a Constituição desse Estado estabelece que a Bíblia será colocada em todas as repartições públicas no vestíbulo dos prédios, para o uso de quem assim o desejar. Há, ainda, a colocação obrigatória da expressão “Feliz a Nação Cujos Deus é o Senhor, e o povo que ele acolheu por herança”, na página que antecede o sumário constitucional.312 Em muitas casas legislativas há algum tipo de dispositivo regimental que determina a leitura de um trecho da Bíblia ao iniciar as sessões. Na Assembleia Legislativa da Paraíba, por exemplo, além da leitura de um versículo é realizada uma reflexão de cinco minutos sobre o trecho lido. Essa lei é de autoria de um deputado evangélico ligado à Assembleia de Deus.313O Regimento Interno da Câmara Municipal de Carazinho, cidade localizada no Rio Grande do Sul, afirma em seu artigo 88, Capitulo V, referente ao expediente: “O Presidente determinará a um vereador, em sistema de rodízio a leitura 309 Foi publicado no Diário do Congresso Nacional em 22 de setembro de 1989. 310 Disponível em: www.camara.gov.br/internet/.../regimento_interno/.../RegInterno.pdf. Acesso em: 10/12/2008. 311 Essa resolução é de autoria do deputado estadual Adonias Trajano. 312 A Constituição do Estado do Amapá é do ano de 1991. Esse dispositivo sobre a Bíblia encontra-se no Título X – Ato das disposições constitucionais transitórias. 313 A lei é de autoria do deputado Nivaldo Manoel (PPS) tendo sido aprovada por unanimidade no ano de 2009. 234 de um trecho da Bíblia [...].”314 Essa determinação foi contestada por alguns vereadores no começo de 2010, deixando então de ser lida por um tempo. O vereador Erlei Vieira (PSBD), que é contrário à leitura obrigatória da Bíblia declarou: “Levei tanta rasteira de colega este ano, que acho contraditório ler a Bíblia e depois acontecer isso” (Jornal Zero Hora, 6 de fevereiro de 2010). Foi o padre João Gheno Neto, da paróquia Nosso Senhor Bom Jesus, dessa cidade, que sugeriu a prática de leitura de trechos da Bíblia nessa Câmara Municipal, há mais de quarento anos. Porém, só foi em torno de dez anos atrás que a medida foi incluída no Regimento Interno. Em conversa informal com o Padre João Gheno315, este revelou-me que realizou há muitos anos uma semana da Bíblia, introduzindo o livro em hospitais e na Câmara de Vereadores. Seu objetivo era divulgar e popularizar a Bíblia como “ciência, como livro da vida, na Bíblia há diversos assuntos, todas as áreas de conhecimento”. Segundo o sacerdote, alguns vereadores queriam suprimir a leitura da Bíblia sem consultá-lo, alegando que o texto era difícil de ler e entender. Tendo ciência desse fato, foi até a Câmara de Vereadores e verificou que a Bíblia por ele doada já não estava mais na mesa de trabalho. Apesar dessa contestação, os vereadores voltaram a expor e a ler trechos da Bíblia nas sessões legislativas. No entendimento do Padre João Gheno, a Bíblia deve servir de parâmetro e direção para o trabalho dos legisladores. Por outro lado, ressaltou que a resistência local reflete e se insere em um contexto mais amplo e global. Sobre isso declarou: Hoje vigora um espírito laico. Veja o que acontece na Europa, querem tirar os símbolos de Deus, o crucifixo, o véu islâmico. Há uma inversão de valores e da humanidade nos dias de hoje. O homem é um todo, não apenas homo faber, mas homo religiosus também. Não obstante a manifestação do sacerdote católico, o promotor Cristiano Ledur, do Ministério Público Estadual de Carazinho, afirmou que o regimento da Câmara Municipal desrespeita a Constituição Federal de 1988. “A Carta, segundo Ledur, diz claramente que o país é laico (um Estado sem religião oficial) e por isso não se pode impor o ritual” (Jornal Zero Hora, 6 de fevereiro de 2010). Enfatizo que na Câmara Federal foram apresentados, no ano de 1999 dois projetos de resolução por parte de deputados evangélicos que exigiam a leitura de uma passagem da Bíblia presente na mesa de trabalho. O Projeto de Resolução nº 4, de 4 de março de 1999, apresentado pelo deputado Magno Malta (PTB/ES), alterava o artigo 66 314 Disponível em: http://www.camaracrz.rs.gov.br/?menu=historico. Acesso em: 10/01/2011. 315 Conversa realizada em 6 de agosto de 2010. 235 do Regimento Interno referente à exibição da Bíblia, incluindo um inciso que dispunha que na abertura da sessão seria feita a leitura de um versículo da Bíblia. Na justificativa do projeto asseverou as origens cristãs da nação, o que é simbolizado pela cruz: O Brasil é um país que nasceu sob a égide da cruz cristã. A leitura de um versículo da Bíblia não implica em atrelamento religioso ou manifestação por qualquer religião; sabemos que a Igreja e o Estado são independentes, mas todos somos dependentes de Deus. Não representa qualquer discriminação ou subserviência a leitura de um versículo da Bíblia, que pelos seus ensinamentos seculares só podem acrescer mérito aos nossos trabalhos. Nós pertencemos a um país cristão; a quase totalidade desta Casa é cristã. Porque não dar um testemunho público disso? (Diário da Câmara dos Deputados, 27 de março de 1999, p.12.379) Destaco nesse trecho o uso da expressão “ensinamentos seculares”. O deputado evangélico realça o valor do texto bíblico não por suas mensagens religiosas, mas porque transmitiria princípios universais, válidos para todos, independente de suas crenças religiosas. Esse tipo de discurso, que procura desvincular a Bíblia da tradição cristã, apresentado-a como um livro de teor universalista, é quase que uma constante. Ademais, são acionadas motivações e intenções seculares para justificar pretensões de fundo religioso. A colocação da Bíblia, assim como a invocação do nome de Deus e afixação do crucifixo, não buscariam evangelizar e transmitir elementos puramente religiosos, mas tornar o ambiente e a atividade legislativa mais humana e elevada. Por seu turno, o Projeto de Resolução nº 6, de 16 de março 1999, de autoria do deputado Glycon Terra Pinto (PL/MG), também pretendia alterar o Regimento Interno determinando que ao iniciar a sessão o presidente da Câmara convocasse um deputado para ler um trecho do novo testamento da Bíblia Sagrada. Na justificação desse projeto o deputado procurou esclarecer sua constitucionalidade: Não há como se aventar a possibilidade de afronta aos princípios consagrados constitucionalmente sobre matéria religiosa, quais sejam, o da nãointervenção estatal, o da laicidade do Estado, ou, ainda, o da liberdade religiosa. Observe-se que se nenhum desses princípios foi atingido pelas exigências normativas já contidas no Regimento Interno, tampouco o seria agora com a simples leitura de um texto bíblico. Todas as prescrições normativas, a exemplo de nossa Lei Maior, intentam a busca de orientação divina para correção e instrução em justiça. Ademais, no que tange à supremacia do ideário democrático, há que se considerar que a nossa proposta não atenta contra direitos, nem gera qualquer constrangimento, considerando-se que esta Casa representa um contingente populacional de 92% (noventa e dois por cento) de cristãos, conforme o Anuário Estatístico do IBGE de 1996 (Diário da Câmara dos Deputados, 27 de março de 1999, p.12381). 236 Ambos os projetos foram em um primeiro momento arquivados e posteriormente desarquivados e apensados ao Projeto de Resolução nº 202/2009, o qual foi apresentado pelo deputado federal Francisco Rossi em 26 de agosto de 2009. Declara-se na ementa: “Revoga o § 1º do art. 79 do Regimento Interno da Câmara dos deputados, que torna obrigatória a presença da Bíblia Sagrada sobre a Mesa durante os trabalhos da Casa”.316 Na justificação apresentada para esse projeto, o deputado Francisco Rossi afirmou que a presença da Bíblia Sagrada sobre a mesa da Câmara Federal constitui-se em uma inobservância do preceito constitucional previsto no artigo 19, inciso I, que visa garantir a laicidade do Estado brasileiro. Ainda ressalta que essa presença imposta pelo regimento transgride o inciso III do artigo já citado, pois cria distinções entre brasileiros ou preferências entre eles, o que declara na justificação ao projeto: “Com efeito, a presença da Bíblia constitui inequívoca preferência para quem dela se socorre. Eis por que não é elemento essencial aos atos legislativos onde todos os parlamentares devem estar igualmente contemplados”.317 Ao final, ainda sublinha que a invocação do nome de Deus no preâmbulo constitucional não pode ser usada para legitimar a exposição da Bíblia no parlamento: [...] trata-se neste caso de uma exceção ofertada pelo legislador originário que não permite outras deduções. Foi uma homenagem que prestaram à tradição cristã no país os constituintes de 1988, muitos dos quais nem sequer participam ou participavam da fé cristã. Esse fato, porém, a invocação de Deus no preâmbulo, não destitui a Constituição do seu Caráter profundamente laico, cujo inafastável corolário é remeter a dimensão do sagrado para esfera privada.318 Até o presente momento esse projeto não foi apreciado pela Câmara Federal. Todavia, no mesmo ano de 2009, o deputado federal apresentou outro projeto de resolução determinando à retirada do crucifixo existente no plenário da Câmara dos Deputados. Esse projeto, bem como outros afins, serão descritos e examinados no próximo item. 316 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=423950. Acesso em: 10/11/2010. 317 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=423950. Acesso em: 10/11/2010. 318 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=423950. Acesso em: 10/11/2010. 237 6.2 Projetos de Lei sobre imagens religiosas em estabelecimentos públicos na Câmara Federal No segundo semestre de 2009, o deputado federal Francisco Rossi entrou com um projeto de resolução319 que determina a retirada do crucifixo presente no plenário da Câmara dos Deputados. Na justificação do projeto asseverou que a sociedade brasileira não é mais monolítica do ponto de vista religioso, mas marcada hoje pelo pluralismo de crenças. Desse modo, em sua visão não é mais admissível que hoje o Plenário da Câmara exiba o símbolo religioso que representa apenas um determinado segmento da população brasileira. Em seu pronunciamento sobre essa questão no Congresso Nacional320, afirmou que de acordo com a norma constitucional que prevê a separação entre Estado e religião e em respeito às minorias religiosas, o crucifixo e a Bíblia deveriam ser retirados. Para ele, a prática religiosa é uma escolha pessoal, pertencendo à vida privada das pessoas. Além do mais, declara que hoje arrepende-se de ter votado a favor da colocação da Bíblia: Quero frisar, deixar bem claro, que em obediência à Lei Magna deste País, respeito - como todos os brasileiros devem respeitar - os símbolos religiosos que não podem ser vilipendiados. Professo hoje a fé evangélica, não tenho nenhuma formação teológica, não ocupo nenhuma posição eclesiástica, sou apenas membro de uma Igreja Evangélica. Teria até todos os motivos do ponto de vista religioso para aplaudir a exibição da Bíblia Sagrada sobre a mesa da Presidência, porém não se trata de uma questão religiosa. Confesso minha tristeza e constrangimento por ver esse Livro sendo tratado apenas como um objeto neste plenário, nesta Casa, um simples livro sobre essa mesa. Nesses 2 anos que tenho aqui estado, vi pouquíssimas vezes esse Livro sendo compulsado por alguém. Está ali, quase abandonado, páginas amareladas pelo tempo e exposição à luz, folhas intactas pelo pouquíssimo uso, apenas um objeto como outro qualquer, talvez a mesma Bíblia da Constituinte. Que bom que as pessoas mudam, são transformadas pelas experiências da vida, mudam de posições. Se pudesse voltar no tempo, com certeza, mudaria meu voto na Constituinte e seria contra a exibição sobre essa mesa daquele Livro, que é um símbolo religioso e que, por não ser plural, discrimina outros segmentos religiosos afrontando o princípio constitucional estabelecido nos arts. 19 e 3º, incisos I e III, e no caput do art. 37.321 319 PRC n º 205/2009, apresentado em 01/10/2009. 320 Pronunciamento realizado em 18/06/2009. 321 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/SitaqWeb/TextoHTML.asp?etapa=5&nuSessao=151.3.53.O&nuQuart o=34&nuOrador=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=15:39&sgFaseSessao=GE&Data=18/06/2009&txA pelido=FRANCISCO ROSSI, PMDB-SP . Acesso: 14/11/2009. 238 O deputado Francisco Rossi confessa que durante seu mandato como prefeito da cidade de Osasco/SP usou e abusou de símbolos religiosos para fins políticos: Ainda católico, distribui no recinto da Prefeitura e em vários pontos próprios da Prefeitura Bíblias Sagradas, versículos que eu colocava nas fachadas tanto da Prefeitura como em alguns monumentos inaugurados na minha administração. Eu distribuía muitas Bíblias Sagradas. E sabem por que eu fazia isso? Porque percebi que, longe de ser uma prática religiosa pessoal minha, isso dava voto. Usei também do expediente de me servir de expressões verbais e corporais que me identificassem com essa ou aquela religião. E esse crucifixo encimando a cabeça do Presidente desta Casa? Não obstante mereça todo o meu respeito, esse crucifixo, que, repito, merece o meu respeito como símbolo religioso, representa apenas uma religião, que, embora professada pela maioria do povo brasileiro, não é um símbolo plural. Algum Parlamentar evangélico poderia argumentar: quem sabe não seria o caso de substituir esse crucifixo por apenas uma cruz, sem imagem, que satisfaria tanto evangélicos quanto católicos.322 Essa manifestação sofreu contestações. O deputado evangélico João Campos (PSDB/GO), no mesmo dia, argumentou que o autor da proposta deveria refletir melhor sobre essa questão, devido a sua condição de cristão e evangélico. Questionou a sessão especial na Câmara Federal em homenagem à Marcha de Jesus: “Se invocarmos o princípio de que o Estado é laico, e há uma separação entre o Estado e a Igreja, então sequer esta sessão poderia estar sendo realizada. Uma sessão para homenagearmos Jesus em razão de uma marcha?”.323 Em outra sessão, o presidente da Câmara Federal, deputado Inocêncio de Oliveira324 também reagiu aos projetos de Francisco Rossi. Para ele a decisão de colocar a Bíblia sobre a mesa do plenário não foi feita com base na ideia de que ela seria um símbolo religioso e cristão, mas de ser um livro sagrado de todos e que é lido para meditação. Acerca da retirada do crucifixo afirmou que nunca ouviu alguém reclamar da sua presença, e, além disso, sustentou que todos aqueles que contestam coisas dessa natureza não seriam muito felizes em sua vida privada e profissional. O deputado 322 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/SitaqWeb/TextoHTML.asp?etapa=5&nuSessao=151.3.53.O&nuQuart o=34&nuOrador=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=15:39&sgFaseSessao=GE&Data=18/06/2009&txA pelido=FRANCISCO ROSSI, PMDB-SP . Acesso: 14/11/2009. 323 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/SitaqWeb/TextoHTML.asp?etapa=5&nuSessao=152.3.53.O&nuQuart o=12&nuOrador=1&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=17:39&sgFaseSessao=HO&Data=18/06/2009&tx Apelido=JOÃO CAMPOS, PSDB-GO. Acesso em: 14/11/2009. 324 Manifestação feita em 01/10/2009. 239 Miguel Martini PHS/MG, católico, também se mostrou contrariado.325 Questionou qual seria o malefício de existir um crucifixo e uma Bíblia no plenário. Disse não compreender um projeto daquela natureza e prometeu lutar de todas as formas contra sua aprovação. Contudo, alguns deputados apoiaram o referido projeto, destacando-se aqui a manifestação do deputado federal Lincoln Portela (PR/MG)326, de confissão batista, que enfatizou que o Estado brasileiro é laico, devendo manter-se laico. Acrescentou que a existência de imagens e símbolos religiosos em locais públicos serve como um grande merchandising religioso: [...] já deixei aqui posicionamentos meus acerca da existência de símbolos religiosos em espaços governamentais ou públicos, tais como do Poder Legislativo ou do Poder Executivo. Há, por exemplo, uma Bíblia evangélica sobre a mesa, e eu sou contra; há também um crucifixo católico no plenário, e eu sou contra. Não podemos fazer merchandising de religião, seja ela qual for: espírita, católica, budista, xintoísta, hinduísta. Não podemos usar espaços pagos, por lei, por todos os contribuintes, para fazermos isso.327 Sublinho que o PRC nº 205/2009, de autoria de Francisco Rossi, parece ter sido elaborado para contrapor-se ao PRC nº156/2009328, cujo autor é o deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ), que altera o parágrafo 1º do artigo 79 do Regimento Interno da Câmara, referente à colocação da Bíblia, para assegurar a fixação do crucifixo existente no plenário. O parágrafo ficaria com a seguinte redação: “A Bíblia Sagrada deverá ficar, durante todo o tempo da sessão, sobre a mesa, à disposição de quem dela quiser fazer uso, assim como o crucifixo na parede posterior à mesa, com visibilidade de todo plenário”.329 Na justificativa do projeto declarou que a par da indiscutível liberdade religiosa que deve orientar as normas legais das sociedades modernas, o que implica no respeito e na tolerância até mesmo ao ateísmo, não se deveria permitir que o sentimento das minorias impusesse normas a serem seguidas pela grande maioria das pessoas. Em outro momento do mesmo documento afirma: 325 Manifestação feita em 12/112009. 326 Manifestação feita em 02/07/2009. 327 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/SitaqWeb/TextoHTML.asp?etapa=5&nuSessao=193.3.53.O&nuQuart o=33&nuOrador=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=10:04&sgFaseSessao=BC&Data=06/08/2009&txA pelido=LINCOLN PORTELA, PR-MG. Acesso em? 04/05/2009. 328 329 Projeto apresentado em 18/02/2009. Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=423950. Acesso em: 04/05/2009. 240 Entendo que a manutenção do atual crucifixo existente na parede posterior à mesa da Câmara deve ter sua manutenção assegurada no Regimento Interno, por se tratar do símbolo do cristianismo, seguido por quase totalidade do povo brasileiro.330 Interessante notar que o projeto contrário ao crucifixo foi apensado ao PRC nº 156/2009, de autoria do deputado Jair Bolsonaro. Por sua vez, esse projeto foi juntado ao PRC nº 4/1999 e ao PRC nº 6/99, que se referem à leitura obrigatória da Bíblia nas sessões da Câmara Federal. Isso demonstra o estreito vínculo e as disputas simbólicas existentes entre tais projetos. Ademais, há a preocupação por parte desse deputado de garantir regimentalmente a presença do crucifixo no plenário diante das investidas dos políticos evangélicos e dos laicistas que contestam esse símbolo religioso. Ressalto, porém, que até o presente momento nenhum dos projetos foi apreciado pelo plenário. Anteriormente, outros projetos que visavam à proibição de imagens religiosas em locais públicos tramitaram na Câmara dos Deputados, os quais foram apresentados por deputados vinculados a igrejas evangélicas. Começo pelo PL, nº 4259/2001, de autoria do deputado Paulo de Velasco, pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. Ele tinha a seguinte redação: “Dispõe sobre a proibição da exposição de símbolos, ícones, imagens, inclusive crucifixos em órgãos e entidades da administração pública direita e indireta”.331O projeto determinava, ainda, que as imagens religiosas existentes em locais públicos seriam retiradas e seu destino decidido pelos administradores de cada edifício ou dependência respectiva. Acrescentava que o servidor que desobedece essa determinação estaria sujeito à pena de advertência e no caso de reincidência, suspensão de até 30 dias. Argumentava-se na justificativa desse projeto que as dependências públicas deveriam ser neutras, desprovidas, desse modo, de qualquer simbologia religiosa. Após ser examinado por várias comissões o projeto acabou sendo arquivado. Em 1999, o deputado federal Marcos de Jesus (PTB/PE) apresentou três projetos relacionados à afixação de imagens religiosas em repartições públicas. O primeiro deles, o PRC nº 30/1999332, dispunha sobre a vedação de imagens e símbolos 330 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=423950 . Acesso em: 04/05/2009. 331 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=26630. Acesso em: 10/02/2009. 332 Apresentado em 23/06/1999. 241 religiosos no plenário, bem como nas dependências de uso comum do edifício da Câmara dos Deputados. Na justificação desse projeto de resolução, declarou o deputado Marcos de Jesus, usando curiosamente uma linguagem que mescla expressões de teor secular com uma palavra advinda da tradição judaico-cristã: [...] entendemos que esta Casa, nascedouro das liberdades, tabernáculo do Direito e fórum do pluralismo social deve dar o exemplo e restaurar o seu caráter laico, retirando de suas dependências de uso comum todos os símbolos e imagens religiosas (Diário da Câmara dos Deputados, 14 de setembro de 1999, p.41046). Apesar de receber parecer favorável por parte do relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, esse projeto de resolução acabou sendo arquivado. Por seu turno, o Projeto de Lei nº 1306/1999333, determinava que fosse vedada a afixação de imagens e símbolos religiosos em capelas de hospitais públicos. Contudo, o artigo 2º desse PL permitia a utilização de locais de cultos religiosos de hospitais públicos por qualquer entidade religiosa. Na justificação desse projeto, o deputado Marcos de Jesus argumentou que o mesmo visava assegurar o direito fundamental de liberdade de religião. Em seu entendimento, esse direito envolvia também o livre exercício de cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e as suas liturgias. Em outro momento da justificação acrescentou: O Estado brasileiro não pode adotar religião oficial, ou ainda patrocinar ou manter determinada crença religiosa às custas do erário público. A revés, cabe ao nosso Estado, de opção laica, proteger o pluralismo religioso, mantendo-se afastado das ideologias das religiões e seus nacionais (Diário da Câmara dos Deputados, 10 de setembro de 1999, p. 40679). A esse projeto foi apensado o PL nº 1551/1999334, que vedava a exposição de imagens ou símbolos religiosos nas repartições públicas federais. O seu parágrafo único determinava que fossem incluídos nas disposições dessa lei os hospitais e postos de saúde públicos, que poderiam, entretanto, manter áreas destinadas exclusivamente para fins de meditação ou consagração espiritual.335 Afirmava-se na justificativa desse PL que a proposição fundamentava-se no princípio da laicidade do Estado brasileiro, sendo 333 Apresentado em 24/06/1999. 334 Apresentado em 24/08/1999. Dispunha o artigo 2º deste PL: “A infração do dispositivo desta lei acarretará aos responsáveis a perda do cargo ou função pública que exerçam” (Diário da Câmara dos Deputados, 5 de outubro de 2000, p. 49728).” 335 242 assim caberia uma acentuada e definida divisão entre o Estado e a Igreja. O Estado deveria desempenhar o duplo papel de provedor e garantidor das liberdades religiosas: [...] faz-se mister que se mantenha à margem do fato religioso, sem incorporá-lo de nenhuma forma a sua ideologia política. A liberdade religiosa e o decorrente pluralismo religioso restarão ameaçados, sempre que o Estado adotar posição de favoritismo ou protecionismo a uma determinada religião, seja de forma ostensiva ou disfarçada sob a veste da tradição popular ou expressão cultural336. Os dois projetos foram avaliados conjuntamente pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e pela Comissão de Seguridade Social e de Família (CSSP). Na CSSF a relatora designada, deputada Lídia Quinan, votou pela aprovação do PL nº 1306/99 e pela rejeição do PL nº 1551/99. De acordo com essa deputada o primeiro projeto buscava impedir o uso de recursos públicos para favorecer algum credo religioso, principalmente no âmbito dos hospitais públicos que atendem todos os segmentos sociais: [...] entendemos que, nos hospitais públicos, os espaços destinados à consagração religiosa não devem ser exclusivos dos que seguem uma determinada religião, mas, sim, ser abertos a todos os cultos. Devem ser espaços ecumênicos, onde cada um possa recolher-se segundo a sua crença e onde entidades religiosas, dos diferentes credos, em perfeito entendimento, possam realizar suas atividades (Diário da Câmara dos Deputados, 5 de outubro de 2000, p. 49730). O parecer da deputada federal Lídia Quinan saiu vencedor na CSSF, com apenas um voto contrário.337 Por sua vez, na CCJC, o relator, deputado federal Odair, votou pela rejeição de ambos. No relatório338 afirmou que os projetos atingem e cerceiam o direito de expressar e manifestar a fé religiosa: As capelas e hospitais públicos são e sempre foram locais públicos, colocados à disposição de quem quer que queira ali entrar para fazer sua oração, seu culto a Deus, independente da religião a que estejam ligados. O 336 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=16894. Acesso em: 10/06/2009. O voto contrário partiu da deputada federal Alcione Athayde que ao final de seu voto declarou: “O Autor parece confundir o favorecimento de grupos religiosos com a manifestação pessoal de preferência religiosa. A primeira é inadmissível quando se trata de gerir recursos do povo. A segunda é inevitável imune a qualquer espécie de reprimenda ou manifestação desairosa (Diário da Câmara dos Deputados, 5 de outubro de 2000, p. 49732). 337 338 Esse relatório foi apresentado em outubro de 2003. 243 fato de no local ter uma imagem, não é forma de dizer que ali se cultua uma religião, mas transparece sim,o exercício de uma liberdade, que por sua vez, é resguardada pela Constituição Federal.339 Nesse relatório ainda enfatizou o deputado federal Odair: Se determinada religião se manifesta através de imagens, tal ato encontra proteção constitucional. Senão, chegaríamos ao absurdo de, para aquelas religiões que não utilizam imagens, mas somente a pregação, proibir que se fale sobre religião em próprios públicos, sob pena de apologia à religião. [...] Ora, como entender a proibição de manifestação religiosa através de imagens se não como um embaraço a tal manifestação? 340 O parecer da CCJC pela inconstitucionalidade dos projetos foi decisivo, sendo estes posteriormente arquivados.341Como se pode notar, até o presente momento nenhum dos projetos que buscam impedir a exibição de imagens e símbolos religiosos em locais públicos que tramitaram na Câmara Federal foram aprovados. O que importa destacar é que todos esses projetos partiram de políticos evangélicos. Contudo, os políticos evangélicos, em sua grande maioria, defenderam a colocação da Bíblia na mesa de trabalho da Câmara Federal e buscaram tornar obrigatória a leitura de um trecho da mesma. Grosso modo, para Pinheiro (2008), a exibição da Bíblia na Câmara Federal parece contrapor-se à presença do crucifixo no mesmo local. Os deputados evangélicos sentiam-se discriminados em relação aos católicos que desfrutavam de privilégios, como a entronização de imagens religiosas em repartições públicas, o feriado oficial de 12 de outubro e capelanias nas Forças Armadas: A recorrência ao símbolo bíblico, - por meio de citações, indicações, ou ritualizações - fazia do crucifixo um signo menos visível na luta simbólica 339 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=16894. Acesso em: 10/06/2009. 340 Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=16894. Acesso em: 10/06/2009. 341 Em nível estadual e municipal, outros projetos de lei semelhantes a estes foram apresentados. Em 2001, na cidade de Porto Alegre, o vereador Almerindo Filho, pastor de uma Igreja Evangélica, apresentou um projeto que visava proibir a exposição de imagens religiosas em prédios públicos. O mesmo ocorreu em Taboão da Serra/SP, no ano de 2005, por iniciativa do vereador Marco Porta, pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, e em Fortaleza, por meio projeto que partiu do Vereado Elpídio Nogueira (PSB), em 2007. Em São Paulo, em 2007, o deputado estadual José Bittencourt (PDT) elaborou um projeto de lei que determinava a proibição da colocação de símbolos religiosos ostensivos nas repartições públicas e autarquias no Estado de São Paulo. Em 2011, José Bittencourt apresenta novamente esse projeto de lei. Ressalto que nenhum desses projetos foi aprovado. Em reação a este proposta, o deputado Orlando Morando Júnior (PSDB), da já citada casa legislativa, apresentou um projeto de lei que obriga as escolas públicas a ostentar o crucifico em lugar de fácil visualização. Justificou o projeto afirmando que o crucifixo representa a moralidade do povo brasileiro que de acordo com esse parlamentar vem sendo corroída. Esse projeto ainda não foi objeto de votação em plenário. 244 por afirmação no campo religioso. Desse modo, a partir do momento em que a Bíblia passou a ser exibida na mesa do Plenário, a reivindicação por sua presença deu lugar à vigilância de sua permanência (Pinheiro, 2008, p.37). Desse modo, objetivam ser tratados com isonomia pelo Estado brasileiro, defendendo a sua laicidade em determinadas situações e em outras se batendo pelos mesmos direitos e privilégios assegurados aos católicos. Acerca disso esclarece Mariano (2010, p.29): Embora o recurso à defesa da laicidade constitua importante instrumento jurídico-político empregado pelos pentecostais desde a Constituinte (e pelos protestantes desde as últimas décadas do Império) na defesa de sua liberdade e de seus interesses institucionais, sua prioridade política tem consistido em estender sua ocupação religiosa do espaço público e ampliar seus próprios privilégios. Daí que seu ativismo político tem efeitos ambíguos: age tanto em detrimento da própria laicidade quanto, em contraste, da hegemonia católica e de sua privilegiada e tradicional relação com o Estado brasileiro. Cabe aqui, rapidamente, traçar um paralelo com a querela dos crucifixos. Há, apesar de algumas semelhanças, diferenças fundamentais entre os dois casos. Diferentemente do que ocorre com a exposição da Bíblia em casas legislativas, não há qualquer dispositivo normativo, de caráter administrativo e regimental, que determine e assim obrigue a aposição do crucifixo ou de outro símbolo originário da tradição católica em recintos estatais. Além disso, não se realiza diante do crucifixo qualquer tipo de culto ou devoção. O crucifixo não é manejado, tocado e raramente é mencionado. O contrário ocorre no caso da Bíblia, que não apenas é manuseada, mas também é, em algumas casas legislativas, feita a leitura de trechos seus por determinação regimental. Penso, ainda, que a Bíblia aposta na Câmara Federal não é apenas um livro, um texto, “a palavra sagrada”, mas também um ícone, sendo na verdade um ícone-texto. Esse livro tem, em realidade, um caráter icônico. Segundo Watts (2004), todos os livros são ícones, pois, são representações simbólicas de uma determinada cultura. Ainda conforme o autor, e essa observação parece inteiramente válida para o caso em questão, o uso e a colocação de livros e textos sagrados em determinados ambientes tidos como seculares servem como um mecanismo de legitimação da autoridade política. É uma forma de legitimação extrapolítica. Além disso, a presença da Bíblia nos parlamentos não apenas simboliza determinada crença religiosa, mas também representa os interesses e objetivos políticos dos evangélicos. Trata-se, conforme acentua Pinheiro (2008), de uma estratégia de afirmação de uma identidade religiosa específica. Destarte, materializasse uma espécie de “guerra de símbolos e imagens” entre católicos e 245 evangélicos na arena política. Uma disputa entre um símbolo evangélico, a Bíblia Sagrada, e uma imagem católica, o crucifixo. Assim, outras imagens religiosas, não apenas originárias do catolicismo, são apostas em ambientes públicos, exprimindo a perda da hegemonia católica no campo religioso brasileiro. Todavia, evangélicos e alguns segmentos católicos convergem na defesa de uma ampla e profunda reforma moral e espiritual dos indivíduos, que tenha como ponto de partida e alicerce a mensagem religiosa de Cristo e da Bíblia. A salvação dos indivíduos e da própria nacionalidade encontrar-se-ia na religião cristã. Delineia-se assim o que Nobrega (2004) cunhou de “mito da regeneração nacional”, presente no apostolado político-religioso dos setores evangélicos e de alguns segmentos do catolicismo. De acordo com esse “mito”, os mais diversos males que afetam nossa coletividade só seriam extirpados por meio de uma revolução interior, de uma verdadeira conversão, que faria surgir um novo tipo humano, livre do egoísmo e do materialismo. Esse novo homem cristianizado, mais do que novas instituições e reformas políticas e econômicas, construiria um novo país, ordeiro, justo e civilizado. Desse modo, o denominador comum que une evangélicos e católicos na esfera política não é apenas a defesa da moral tradicional, mas também a crença em valores espirituais e, sobretudo, a noção de que o Estado deve submeter-se aos ditames da providência divina. Divergem, porém, em alguns casos, na imagem que deve representar essa subordinação a um princípio superior de ordem espiritual, se a Bíblia ou o Cristo crucificado. Derradeiramente, sublinho que a Bíblia não é exibida somente em casas legislativas, mas ainda em escolas342, universidades, hospitais, e em praças públicas na forma de monumento. Esse último modo de representação da Bíblia será abordado no item seguinte. 6.3 Os monumentos à Bíblia em praças públicas Em 1987, o deputado federal Antônio de Jesus (PMDB-GO) requereu junto ao Governo do Distrito Federal, a liberação de uma área, em local visível e de fácil acesso ao público, para a construção do primeiro monumento à Bíblia de Brasília. Em um 342 Lorea (2008) analisa a querela instaurada na cidade de Entre-Ijuís/RS, no ano de 2006, por conta de uma lei municipal que determinava que as escolas municipais dessa cidade deveriam adotar a leitura da Bíblia antes do início das aulas. 246 discurso pronunciado na Assembleia Nacional Constituinte, o deputado falou da importância de um monumento de tal natureza: Falta, em nossa Capital, esse importante monumento. Importante porque a Bíblia se revelou, através dos séculos, um livro fundamental ao desenvolvimento do ser humano. O conjunto de seus livros sagrados, incluindo o Antigo e o Novo Testamento, tem transmitido por gerações ensinamentos de dignidade, humildade, fé, caridade, solidariedade, perdão e amor ao próximo. A Bíblia já é, por si só, o maior monumento da História em prol da liberdade e da valorização da pessoa humana. Todas as nações que a acolheram e souberam reverência-lá, desfrutarão e desfrutam ainda de grande prosperidade e desenvolvimento (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 15 de outubro de 1987, p. 5426). O pedido do deputado Antônio de Jesus foi atendido pelo então Governador do Distrito Federal, José Aparecido de Oliveira. Em realidade, nota-se nas últimas décadas a construção de monumentos à Bíblia em diversas cidades brasileiras. Esses monumentos encontram-se instalados em praças públicas, que em muitos casos levam o nome de “Praça da Bíblia”. Apresentam os mais variados formatos, dimensões e aspectos, como se pode observar nas fotos abaixo. Todavia, predomina a estrutura de uma grande Bíblia aberta sob um pedestal com a inscrição de um determinado versículo. FIGURA 19. Monumento à Bíblia na Praça 7 de setembro em Tubarão/SC. 343 343 Imagem disponível em: http://monumentoabiblia.net/OutrosMonum/Tubarao.htm. Acesso em: 20/10/2009. 247 FIGURA 20. Monumento à Bíblia instalado na cidade de Ribeirão Preto/SP.344 FIGURA 21. Monumento à Bíblia em Campo Lindo Paulista/SP. 345 344 Imagem disponível: http://monumentoabiblia.net/OutrosMonum/RibeiraoPreto1.htm. Acesso em: 20/10/2009. 345 Imagem disponível em: http://monumentoabiblia.net/OutrosMonum/CampoLindo.htm. Acesso em: 20/10/2009. 248 Algumas praças públicas onde existem esses monumentos são dotadas de palcos, jardins, playgrounds, quiosques, estacionamentos, salas de reuniões e até mesmo de batistérios. São apostos em uma localização privilegiada e estratégica. A título de ilustração pode-se citar o monumento à Bíblia de Porto Alegre/RS (vide foto abaixo), que se encontra em uma praça situada quase em frente ao Fórum Central dessa cidade. Foi doado à comunidade pelos jovens Adventistas do Sétimo Dia, e inaugurado em 5 de agosto de 1978. FIGURA 22. Monumento à Bíblia em Porto Alegre /RS. FIGURA 23. Monumento à Bíblia em Porto Alegre /RS. 347 346 Foto tirada pelo autor da tese. 347 Foto tirada pelo autor da tese. 346 249 A construção e a instalação do monumento à Bíblia ocorrem por meio de uma solicitação ou proposição legislativa ao poder executivo municipal ou estadual, e parte na maior parte dos casos de políticos evangélicos. A inauguração do monumento é realizada através de uma solenidade que conta com a participação de autoridades políticas e religiosas, estas últimas vinculadas às denominações evangélicas. Nessa ocasião é sublinhada a importância simbólica do monumento. Quando da cerimônia de inauguração do monumento à Bíblia na cidade de Santa Rita de Cássia/BA, em 2 de agosto de 2010, o prefeito dessa cidade, Romualdo Setubal, declarou: “A inauguração da Bíblia tem um significado muito especial para Santa Rita de Cássia, porque ela simboliza a unidade dos planos espiritual e material pelo bem comum da cidade”(Jornal Nova Fronteira, 10/09/2010). Por sua vez, afirmou o prefeito de Imbituba/SC, por ocasião de semelhante cerimônia realizada em 2009: “Este é um símbolo sagrado, que representa todas as religiões”.348 Como no caso da Bíblia exposta nos parlamentos, procura-se sublinhar o caráter universalista e não unicamente cristão desse ícone-texto. Outrossim, vale também destacar um trecho do discurso do pastor Wilson, da Igreja Koinonia, proferido no dia 22 de março de 2009, data em que foi feita a inauguração da Praça da Bíblia no Bairro de Itaim Paulista, localizado na zona lesta da cidade de São Paulo: Tem uma igreja abençoada bem aqui ao lado, agora a coisa se expandiu, saiu de dentro do espaço da Igreja, está na rua e atinge não só este quarteirão, mas todo nosso bairro que é abençoado por este dia, porque todos ficarão sabendo que o Itaim Paulista é um dos únicos espaços de São Paulo, que tem um lugar onde o dedo de Deus está apontando [...].349 Por seu turno, asseverou o então subprefeito Celso Capato: “Aqui tem um símbolo, um marco da Bíblia sagrada que tem regras não só para a comunidade Evangélica, mas para todos [...]”.350Nesse sentido, a “palavra de Deus” representada nesse monumento deve pautar a conduta de toda a coletividade. Assim, reitera-se a noção de que a religião cristã deve ser a fonte básica dos direitos e normas morais. As leis humanas devem encontrar inspiração e serem baseadas nas leis divinas. 348 Disponível 10/11/2010. em: http://www.imbitubagospel.com.br/capa/?tag=monumento-biblia. Acesso em: 349 Disponível em: http://www.itaimpaulista.com.br/portal/index.php?secao=news&id_noticia=859. Acesso em: 10/12/2010. 350 Disponível em: http://www.itaimpaulista.com.br/portal/index.php?secao=news&id_noticia=859. Acesso em: 10/12/2010. 250 Por outro lado, importa ressaltar que a ereção desses monumentos é uma estratégia de apropriação do espaço público urbano com a finalidade de afirmar e fortalecer determinada identidade religiosa. É um modo de marcar e deixar um vestígio, no espaço público, que exterioriza os anseios e os ideais de um grupo social específico. Desse modo, monumentos dessa natureza não são apenas objetos estéticos, mas também são intencionalmente dotados de um sentido político (Corrêa, 2005). Corroborando com essa reflexão, assinalo que nesses espaços públicos são realizados cultos, celebrações e batismos, como se pode perceber nas imagens abaixo. FIGURA 24. Monumento à Bíblia em Quatá/SP. 351 FIGURA 25. Monumento a Bíblia em Ceilândia/DF.352 351 Disponível em: http://www.pastorbreder.com.br/. Acesso em: 04/03/2011. 352 Disponível em: http://www.pastorbreder.com.br/. Acesso em: 04/03/2011. 251 As praças da Bíblia são, dessa forma, espaços onde são realizados eventos e concentrações de cunho religioso. Em algumas situações isto é definido constitucionalmente. A Constituição do Estado do Amapá define que o poder executivo fica autorizado a construir, na capital do Estado, a Praça da Bíblia, com respectivo monumento, que se destinará a realização de festividades religiosas. Lembro que essa Constituição também determina a colocação da Bíblia em todas as repartições públicas e em local de destaque. Por seu turno, a Lei Orgânica do município de São Miguel do Guaporé/RN353 declara em seu artigo 154, que fica aprovada a construção de um monumento à Bíblia em uma praça da cidade, em homenagem ao cristianismo e ao povo cristão da localidade. O parágrafo 1º§ desse dispositivo acrescenta que em frente ao monumento será construída uma área com cobertura e livre para pregações e concentração pública de qualquer denominação religiosa. Destaco, ainda, que o artigo 153 dessa Lei Orgânica declara que o presidente da Câmara Municipal deverá manter a Bíblia sagrada no plenário.354 Um exemplo concreto do uso desses locais para fins religiosos foi a celebração do Dia da Bíblia, ocorrida na cidade de Pinheiral/RJ, em 13 de dezembro de 2009. Nessa data os evangélicos realizaram uma caminhada pelas ruas da cidade, partindo do monumento à Bíblia em direção a uma praça em uma região central. A cidade foi declarada como pertencendo ao “Senhor Jesus” e posteriormente ungida.355 Já na cidade de Paulo Afonso/BA, no dias 10 e 11 de dezembro de 2005, realizaram-se encontros e celebrações na Praça da Bíblia dessa cidade, conforme destaca o jornal Folha Sertaneja: Dia 10/12, sábado, foi realizada uma passeata, saindo da Praça 28 de Julho (Libaneza) às 8 horas e percorrendo as principais ruas do centro comercial de Paulo Afonso até a Feira Livre onde houve concentração, apresentação de coreografias e teatro,culto, distribuição de literatura evangélica. No mesmo dia, às 20 horas, foi realizado um Culto Evangelístico, na Praça da Bíblia, na Avenida Getúlio Vargas, centro comercial de Paulo Afonso. Dia 11 de dezembro, Dia da Bíblia, foi realizada uma programação especial na Praça da Bíblia, com a apresentação de bandas, grupos de coreografia e cantores evangélicos no Louva Paulo Afonso e às 21 horas foi realizado o Culto 353 O texto desta lei é datado de 27 de março de 1990. Em alguns municípios a “Praça da Bíblia” é gerida por pastores evangélicos, o que se dá, por exemplo, em Araraquara/SP, onde a Ordem dos Pastores Evangélicos de Araraquara (OPEARA) administra o espaço. 354 355 Informações retiradas desse site: http://www.spacegospel.com/2009_12_13_archive.html. 252 Oficial do Dia da Bíblia com a participação de pastores, lideranças e membros de várias igrejas evangélicas de Paulo Afonso.356 Em contraste com o que ocorre com o caso dos crucifixos, poucas são as manifestações contrárias á existência de monumentos à Bíblia em praças públicas. Para este trabalho foi encontrada uma única Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADIN) de autoria do procurador-geral de justiça do Estado de São Paulo, Fernando Grella Vieira, datada de 9 de maio de 2008. Nela, o referido procurador contesta a Lei nº 2.607/2001, do município de Campos do Jordão/SP, que dispõe sobre a denominação de logradouro público. O artigo 1º dessa lei municipal declara que fica denominada de Parque da Bíblia o logradouro existente na confluência de determinadas avenidas da citada cidade. O artigo 2º afirma que fica o executivo municipal autorizado a firmar convênio, por prazo determinado, com o Conselho de Pastores Evangélicos de Campos do Jordão, para a construção de uma concha acústica e monumento da Bíblia. O parágrafo 1º deste artigo dispõe que o Conselho de Pastores Evangélicos de Campos do Jordão fica responsável pela conservação e manutenção da praça e da concha acústica, pelo prazo que perdurar o convênio.357 Na ADIN, o procurador Fernando Grella assevera que essa lei municipal afronta a Constituição do Estado de São Paulo ao permitir a construção e manutenção de concha acústica e monumento da Bíblia à pessoa determinada e sem licitação. Logo a seguir, em seu parecer, acrescenta: Apesar dessa área visar fins religiosos em um Estado laico (art. 19, inc I da Constituição Federal), o legislador local, com o consentimento do Executivo, deu em verdadeiro comodato área pública sem que se submetesse ao necessário procedimento licitatório, como lhe era exigido segundo a regra inscrita o art. 117, da Constituição do Estado de São Paulo (fl. 4). Para o procurador paulista, essa legislação municipal feriu os princípios da igualdade, impessoalidade e moralidade ao permitir que pessoas determinadas fossem contempladas com o recebimento, em comodato, de área pública, bem de uso comum de todo o povo, e não somente daqueles que professam uma determinada religião: É de conhecimento geral que o Poder Público age em nome do Estado, não podendo favorecer quem quer que seja, sob pena de invalidade dos atos que produzir. [...] E nesse caso, o administrador quis e o legislador municipal permitiu que a área pública fosse entregue ao Conselho de Pastores Evangélicos de Campos do Jordão, como expressamente constou do art. 2º do ato normativo objeto de controle. Em consequência, não só a impessoalidade foi quebrada, mas também a isonomia, pois o favorecimento de alguns em 356 357 Disponível em: www.folhasertaneja.com.br/evangelico. Acesso em: 01/02/2011. Em outro dispositivo dessa lei afirma-se que o parque da Bíblia ficará aberto vinte quatro horas por dia, e em todos os dias da semana. 253 detrimento de outros importa no descumprimento dos mais comezinhos princípios constitucionais, que é de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais (fl. 5). Diante disso, a ADIN visou impugnar a eficácia dessa lei municipal. Porém, ao ter ciência que a lei questionada fora revogada pela Lei Municipal nº 3.188, de 4 fevereiro de 2009, de autoria da prefeita Ana Cristina Machado Cesar, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu pela extinção do processo sem julgamento do mérito. É bastante provável que a prefeita tenha tomada a decisão de revogar a lei por conta do processo iniciado pelo procurador Fernando Grella. Se, por um lado, os políticos evangélicos, pentecostais e neopentecostais, fundamentalmente, são os mais ardorosos defensores e propugnadores da colocação de monumentos à Bíblia em praças públicas, por outro insurgem-se e protestam com veemência contra a existência de monumentos católicos e afro-brasileiros em espaços públicos.358 Os monumentos afros, principalmente, são objeto não apenas de protestos, mas também de ataques físicos. Líderes evangélicos procuram associar a presença de monumentos católicos e afros com a idolatria, relacionando em muitas oportunidades a simbologia das religiões afro-brasileiras, aposta em locais públicos, como coisa do “demônio”, “magia negra” e “macumba”. Declaram-se discriminados pelo fato de o espaço público ser utilizado para privilegiar unicamente um segmento religioso e chamam a atenção para a inadequação de manifestações religiosas no local. Por consequência, insistem em afirmar que a existência desses monumentos e símbolos religiosos em locais públicos é uma agressão à liberdade religiosa e à laicidade do Estado. Contudo, não apenas símbolos e monumentos católicos e afros são alvo dos evangélicos; também representações de outras tradições espirituais e filosóficas ,como a maçonaria, são contestadas. Como ilustração é trazido o caso ocorrido em Dourado/MS, no ano de 2009, quando o Conselho de Pastores Evangélicos de Dourados (CONPED) enviou uma nota à imprensa repudiando a instalação do monumento “O Aprendiz”, situado no trevo de saída para a cidade de Ponta Porã/MS, o qual foi instalado pela maçonaria da cidade de Dourado/MS. Os pastores afirmam na nota: O Conselho de Pastores Evangélicos de Dourados vem a público manifestar seu descontentamento com a colocação de monumentos de qualquer seguimento da sociedade em locais públicos. Imaginemos como ficaria a 358 Para uma análise de uma polêmica envolvendo esculturas relacionadas à tradição afro-brasileira em local público ver Sansi (2005). Sobre as motivações doutrinárias dos ataques neopentecostais aos símbolos afros, ver Silva (2007). Indico também o estudo de Vallado (2008) sobre as estátuas de Iemanjá e as festas públicas realizadas perante esse símbolo na costa brasileira. 254 nossa cidade se cada seguimento social colocasse em algum lugar público um monumento que representasse alguma ideologia particular, calculando o imenso número de segmentos religiosos, sociais, filantrópicos, livres pensadores, entre outros, com certeza faltaria espaço físico público para se colocar tantos monumentos. Citamos ainda a questão da poluição visual que tantos monumentos trariam à nossa cidade. Enquanto as grandes cidades estão na direção da limpeza visual, nós estamos na contra mão da ideia enchendo nossa cidade de monumentos. Sugerimos que qualquer segmento da sociedade colocasse monumentos que expressem suas ideias ou pensamento em área particular e não pública deixando de agredir assim as demais instituições municipais.359 Ademais, reclamam de modo contundente quando alguma autoridade política obstaculiza suas manifestações religiosas em âmbito público, como se pode ver nesta manifestação de um jornalista evangélico, ocorrida no ano de 2009, que acusa de ateísmo o prefeito de Cachoeiro do Itapemerim/ES, por esse dificultar a realização da semana da Bíblia: Primeiramente, tem sido a maior dificuldade para os evangélicos, acredito, católicos também, de promoverem sua marcha para Jesus Cristo no final do ano nas ruas e praças públicas. A Prefeitura alega que dezembro só o estado tem direito a exultar a programação de Natal. Um crime! Uma falácia!Quem entende de programação natalina, com suas diferenças, são os cristãos e não o Poder Público que deveria ser laico. Até construir igrejas tem sido martírio para os religiosos, enquanto bares proliferam como ervas daninhas sem qualquer censura,incentivando violência doméstica e social. Os evangélicos querem marchar pelo centro da cidade como sempre fez, pacificamente e com aprovação da população, e se concentrar na Praça da Bíblia, perto da Prefeitura. Mas, os assessores do prefeito, supõem-se, com aquiescência do mandatário, não autorizam. Aberração! A Secretaria de Trânsito e Segurança com má vontade, enquanto deveria incentivar e ainda oferecer segurança, como fazem em programações mundanas, paradas gays,etc...Assim não dá! E o prefeito Carlos Casteglione que se diz católico deveria deixar de proceder como ateu. O Estado não precisa ajudar, mas também não pode atrapalhar. Esta história de ordem na cidade, impedindo a pregação das Escrituras ao ar livre, como sempre aconteceu nos logradouros públicos do Município, pode ser interpretada como perseguição e discriminação religiosa. A Constituição Federal garante essa manifestação. E a marcha vai acontecer com ou sem a autorização do prefeito. Cristão não é covarde!Todo dia tem manifestação, algumas de sessão besteirol na Praça Jerônimo Monteiro. Quando se vai promover algo transformador para o bem da sociedade, como exposição de bíblias – proibida pelo prefeito -, o cristianismo é surpreendido por um capacho do demônio, ou de assessores a serviço dele [....] (Folha do Espírito Santo, 28 de novembro de 2009).360 Diante do exposto neste capítulo, cabe frisar que do ponto de vista da laicidade do Estado e da secularidade do espaço público a presença da Bíblia em locais públicos seria algo mais grave do que a exposição dos crucifixos. A Bíblia exposta em recintos 359 Disponível em: http://www.msmacom.com.br/maconaria_ms/modules/news/article.php?storyid=129. Acesso em: 23/08/2010. Esse artigo foi escrito pelo jornalista Jackson Rangel e leva o título “O prefeito Carlos Casteglione virou ateu?” 360 255 estatais é lida e manuseada. Além disso, há dispositivos normativos que obrigam a afixação da Bíblia em casas legislativas e em outras áreas públicas. Acrescenta-se ainda o fato de que nas “Praças da Bíblia” realizam-se cerimônias religiosas, e algumas dessas praças são administradas por organizações evangélicas. Ainda, o gasto do poder público com a construção de um monumento da Bíblia e/ou de uma “Praça da Bíblia” é inegavelmente superior ao da colocação de um crucifixo ou símbolo de origem católica em um determinado recinto estatal.361 Em que pesem tais questões, uma das razões pelas quais não existem significativas manifestações contra a colocação de monumentos à Bíblia em praças públicas reside está no fato de que eles estão em áreas públicas abertas e não em órgãos estatais. Ou seja, não se encontram apostos nos “templos” de um Estado laico como as universidades, escolas, tribunais e parlamentos. Além disso, esses monumentos são circundados por uma multiplicidade de imagens de cunho secular que, dessa forma, neutralizam a mensagem religiosa do monumento religioso (Collen, 1995). O fato de estarem em áreas urbanas, “na rua”, no meio de uma multiplicidade de elementos visuais e objetos, minimizaria seu aspecto estritamente religioso. Um aspecto curioso é que apesar de a Bíblia estar exposta nos mais diversos ambientes públicos, ela não costuma encontrar-se em tribunais de justiça ou varas judiciais, o que pode indicar certa relação entre esse espaço público e o símbolo do Cristo crucificado, que, como se sabe, encontra-se profusamente afixado em ambientes judiciais. Além disso, os monumentos públicos, mesmo os religiosos, podem ser objeto dos mais variados usos e apropriações, que fogem à finalidade e proposta original de seus idealizadores e criadores; com o tempo e o passar dos anos revestem-se de novos valores e significados. Sobre o que esclarece Sansi (2005, p. 76): Se por um lado os objetos públicos, e os monumentos em particular, parecem as formas mais explícitas e objetivadas de imposição de um discurso, de uma hegemonia, de um poder, por outro lado, o fato mesmo de serem públicos 361 Sobre a presença de monumentos e símbolos religiosos em locais públicos, Leite (2008) faz uma interessante reflexão: “[...] é possível sustentar a legitimidade de um símbolo religioso em local público quando a sua presença justifica-se a partir de uma homenagem histórica e secular a determinado grupo religioso, que não seja compreendida como um endosso estatal a determinada crença. Seria legítima, por exemplo, a hipótese de um símbolo judaico erguido em praça pública em memória às vítimas do holocausto. A legitimidade desta situação, por outro lado, restaria comprometida se o símbolo fosse erguido, ainda que com o mesmo propósito, na sala de audiência de um Tribunal, eis que o local seria, sem dúvida, inapropriado à finalidade. Também seria questionável a legitimidade se o símbolos fosse erguido em diversas praças na mesma cidade, colocando em dúvida o propósito de mera “homenagem” (Leite, 2008, p.371). 256 torna esses objetos extremamente vulneráveis às viagens particulares do habitante da cidade, muito mais abertos aos prazeres da imaginação, às vezes, nas formas mais irônicas e absurdas. O que parece inegável, contudo, é que o uso do nome de Deus, a exposição de Bíblias, de crucifixos e de outros símbolos religiosos nunca estiveram cingidos no Brasil ao restrito âmbito privado e às igrejas. Tem e sempre tiveram uma dimensão pública, o que pode sinalizar para um modelo próprio de relação entre Estado, religião e sociedade neste país, em verdade uma laicidade peculiar, à brasileira. Há, também, certos paralelismos e semelhanças entre a campanha pela afixação de crucifixos em locais públicos levada a cabo outrora por católicos leigos de orientação conservadora, e as mais recentes e atuais mobilizações de políticos evangélicos a favor da presença da Bíblia em parlamentos e outros órgãos públicos, bem como a defesa por parte deles da ereção de monumentos à Bíblia em praças públicas. Ao contrário do que ocorria em outros tempos, hoje se presencia um embate entre católicos e evangélicos pela ocupação dos espaços públicos. Iniciativas referentes à exibição desse ícone-texto e outras parecidas são consequência e resultado do ativismo e da mobilização política dos segmentos evangélicos e de sua crescente expansão nas mais diversas arenas da vida social, reflexo da incontornável pluralização do campo religioso que resulta, por sua vez, da laicização do Estado brasileiro. Por fim, a proliferação de monumentos à Bíblia em praças públicas, sua exposição em casas legislativas e em outros recintos estatais, revela a tensão entre a ênfase na palavra, própria da tradição protestante e pentecostal, e a tendência quase que universal de representação de doutrinas e princípios religiosos por meio de símbolos e imagens. Os evangélicos que historicamente mostraram-se contrários à representação material do divino, voltam-se agora para a utilização de objetos e simbologias que expressem suas crenças. A centralidade da “palavra de Deus” não impede que a mesma assuma um aspecto icônico, sendo materializada de algum modo por meio de monumentos. 257 7 DE CAPELAS CATÓLICAS A ESPAÇOS ECUMÊNICOS: SIMBOLIZANDO O PLURALISMO RELIGIOSO NOS ESPAÇOS PÚBLICOS Como foi visto em outros capítulos deste trabalho é comum a presença de capelas católicas no interior de instituições públicas como escolas, universidades, hospitais, parlamentos, tribunais, prisões, quartéis e até mesmo aeroportos. A existência dessas capelas católicas constitui um resíduo dos tempos em que vigorava a união entre Estado e religião no Brasil. Isso, porém, não ocorre apenas em nosso país, mas também em outros de forte tradição católica, onde se observa uma forte impregnação do religioso em múltiplos campos da vida social como destaca Jónatas Machado (1996, p. 93): Durante séculos, o discurso teológico dominou todas as esferas da vida social. O poder político e militar, o direito, a ciência, a educação, a cultura etc., eram concebidos e unificados através do discurso teológicoconfessional. Todas essas esferas de ação social eram colocadas ao serviço de um ideal transcendente, fato que garantia a sua legitimidade. Desse passado chegaram até nos vários vestígios, ainda presentes aqui ou ali, em maior ou menor medida, mesmo nas democracias liberais. É o caso, designadamente, da realização de cerimônias religiosas ou da presença de autoridades eclesiásticas em importantes eventos públicos, da existência de capelanias ou da presença de símbolos religiosos em instituições públicas. Associada às capelas católicas há a tradicional instituição das capelanias e da assistência religiosa. Estas são exercidas ainda hoje em instituições como hospitais, prisões e estabelecimentos militares, sendo no interior dessas “estruturas de segregação” que se realiza a chamada assistência religiosa. Esses ambientes são assim cunhados porque, neles alguns indivíduos sofrem limitações no exercício de sua liberdade religiosa. Em realidade, a assistência religiosa é exercida em instituições marcadas por uma especial disciplina interna que acaba por restringir a liberdade física dos indivíduos. Importa lembrar que no Brasil a assistência religiosa em instituições de internação coletiva é garantida pela Constituição Federal de 1988.362 Ademais, a Lei Federal nº 9.982, de 14/07/2000, dispõe sobre a prestação de assistência religiosa nas entidades hospitalares, públicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares. O artigo 1º dessa lei assegura aos religiosos de todas as confissões o 362 Um interessante estudo detalhado sobre a assistência religiosa nas forças armadas da Argentina, relacionado com o tema da laicidade é feito por Esquivel (2008). 258 acesso aos hospitais públicos e privados e aos estabelecimentos prisionais, para atendimento religioso aos internados, desde que em comum acordo com estes ou com seus familiares, no caso de doentes que já não mais estejam em condições mentais de decidir pela assistência. Conforme Leite (2008, p. 299), nossa legislação acerca desse tema em particular é coerente e equilibrada, garantindo uma igual liberdade religiosa: A um só tempo, garante o direito subjetivo à assistência espiritual, bem como o direito à sua recusa, e confere tratamento igualitário às religiões sem se envolver diretamente ou remunerar nenhuma delas por uma atividade que, afinal, é de interesse do indivíduo e não do Poder Público. No entanto, saliento que há quem veja com desconfiança a existência das capelanias, e por consequência de capelas exclusivamente católicas em instituições públicas. Para Machado (1996, p. 383), deve-se impedir a adoção e imposição, nas capelas, de símbolos que façam referência unicamente a um grupo religioso em particular. Além disso, é fundamental a vedação da utilização de meios e mecanismos de pressão ou coerção religiosa: [...] a instituição da capelania entrou irremediavelmente em crise, quando o constitucionalismo moderno, com as suas exigências de liberdade religiosa e de separação das confissões religiosas do Estado, veio minar os seus pressupostos materiais e organizatórios. Associada à realização de uma particular concepção de bem comum, a capelania era inerentemente exclusivista, coerciva e discriminatória. Em sentido contrário, o constitucionalismo vem obrigar a instituição da capelania a uma reconceptualização e a um redimensionamento consentâneos como as exigências do pluralismo social. O constitucionalista português vincula a instituição da capelania com o período em que vigorava o regime de união entre Estado e religião, sendo principalmente a Igreja Católica a responsável pelo surgimento dessa atividade, já que foi esse grupo religioso que criou os primeiros hospitais no mundo ocidental. O mesmo vale para as capelanias militares, pois elas surgem na época em que havia uma íntima relação entre o trono e o altar, a cruz e a espada. No Brasil ainda há no âmbito do exército a figura do capelão. Este é considerado um funcionário, com cargo próprio e remuneração por seu serviço. A capelania militar ou castrense tem como finalidade prestar assistência religiosa aos militares, aos civis das organizações militares e as suas famílias, assim como atender a encargos vinculados com as atividades de educação moral realizadas nas Forças Armadas. Desse modo, há uma distinção entre essa instituição e a assistência religiosa propriamente dita. A assistência religiosa é um serviço esporádico, procurando atender a uma necessidade 259 religiosa daquele que se encontra em uma “estrutura de segregação”, enquanto que a capelania castrense tem caráter permanente, sendo criada pela instituição militar (ISER, 2010). O capelão militar dever ser ministro religioso, padre ou pastor, ter formação em teologia e ser aprovado em um concurso público. Contudo, nota-se de forma mais intensa nos últimos anos a transformação de capelas católicas existentes em locais públicos em espaços ecumênicos e interreligiosos. Em alguns casos as capelas ecumênicas são criadas em espaços onde até então não havia qualquer local reservado para práticas religiosas.363 Trata-se de um modo próprio de lidar com o crescente pluralismo religioso da sociedade brasileira, sendo, também, sob determinados aspectos, um reflexo desse pluralismo e uma demanda de certos grupos religiosos que buscam ser tratados com isonomia junto a instituições ligadas ao Estado. Presencia-se assim uma tentativa de regular a ocupação religiosa de espaços públicos (Mariano, 2010). Em que pese essa tendência algumas ambiguidades e paradoxos são encontrados nestes ambientes. Como exemplo pode-se citar o caso do espaço ecumênico do prédio da Justiça Federal da Bahia. Quando foi formada uma comissão de funcionários para tratar da inauguração de um espaço religioso o projeto inicial era que nele houvesse uma capela católica em homenagem a Santo Antônio. Um dos integrantes da comissão chegou a oferecer uma imagem de Santo Antônio para ser colocada no local, e um juiz federal, por sua vez, doou um crucifixo. Uma missa católica foi agendada para inaugurar o espaço. Entretanto, devido a alguns pedidos decidiu-se que o local seria um espaço ecumênico, não sendo assim construído em seu interior uma capela católica. Apesar disso, o espaço ecumênico foi inaugurado com uma missa católica, em 13 de maio de 2005. Ao final da cerimônia o tradicional pãozinho de Santo Antônio foi oferecido aos presentes.364 As capelas e espaços ecumênicos e inter-religiosos encontram-se em instituições públicas absolutamente centrais para um Estado laico moderno, como os tribunais de 363 Um exemplo disso é a capela ecumênica construída no Tribunal de Justiça de Santa Catarina em 2001. Ela está localizada em frente do prédio do Tribunal de Justiça catarinense em Florianópolis. Nela encontram-se as relíquias da padroeira do Estado, Santa Catarina de Alexandria. No seu interior há um altar com uma cruz e uma Bíblia Sagrada. Nessa capela são realizadas cerimônias religiosas como casamentos e batizados. 364 Todas essas informações foram colhidas no Jornal da Justiça Federal da Bahia, em sua edição nº 2.714 de 2005. 260 justiça, parlamentos, escolas, universidades e hospitais. Além disso, esses espaços estão localizados em ambientes onde os indivíduos deparam-se com “situações-limite”, como a doença, a morte, o sofrimento, o medo etc. De alguma maneira, a presença das capelas nesses espaços públicos serve como conforto e amparo espiritual. Detenho-me agora na exposição e no exame de três casos em que ocorre a transição de capelas católicas para espaços inter-religiosos no interior de instituições públicas. 7.1 Resistência católica na capela do Hospital de Clínicas de Porto Alegre/RS Em junho de 2010, um intenso e controverso debate instalou-se no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. A proposta de transformar a capela católica 365 existente nesse hospital em um espaço de espiritualidade gerou uma forte resistência por parte dos católicos. Tudo começou quando o frei capuchinho Marion Kirchner, então capelão do hospital, foi avisado pelo presidente da instituição de que o convênio com a Associação Literária Boaventura, de Caxias do Sul, responsável pela administração da capela, seria rompido. Sendo assim, teriam que liberar o local onde se encontrava a capela católica até o dia 30 de junho do citado ano, removendo todos os objetos e símbolos religiosos. Para tornar pública sua decisão, a diretoria do hospital colocou na porta de entrada da capela um cartaz onde se afirmava que em breve naquela local seria instalado um espaço de espiritualidade, aberto a todas as crenças e religiões. A ideia de transformação da capela em um espaço de espiritualidade partiu da bióloga Marcia Mocellin que, na época, integrava o Comitê de Bioética e a Comissão de Ética Pública do referido hospital. Ademais, coordena atualmente o grupo Liberdades Laicas/Brasil. Um importante evento que trouxe primeiramente a público esse projeto se deu quando da palestra do pesquisador mexicano Daniel Gutiérrez Martinez, ligado ao grupo Libertades Laicas/México, ocorrida em 7 de abril de 2010 no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Nessa palestra, intitulada Espiritualidade e diversidade: ter sua crença e respeitar a do outro, o professor Daniel Gutiérrez chamou a atenção para a importância dos princípios da liberdade de consciência, pensamento e crença. Destacou 365 Essa capela existe no Hospital de Clínicas de Porto Alegre há mais de 30 anos, sendo nela realizada cerca de cinco missas por semana. 261 a necessidade de se criar um ambiente de tolerância e de inclusão no interior das instituições. Desse modo, em seu entendimento, a própria infra-estrutura física das empresas privadas e instituições públicas deveria ser adequada, mantendo espaços de convivência que incluíssem todos os credos e religiões. FIGURA 26. Porta de entrada da capela do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. 366 Conforme Márcia Mocellin, a proposta é criar um espaço de espiritualidade que contemple a todos, inclusive ateus e agnósticos. Esse espaço não terá qualquer objeto ou símbolo religioso e não fará referência a uma religião em particular. Nele, também, não será realizada qualquer celebração religiosa específica, sendo um espaço para que as pessoas que frequentam o hospital possam encontrar paz interior e meditar. A bióloga ainda declara: “Temos pacientes ciganos, indígenas, ateus, agnósticos. Assim, insisti muito em um centro de espiritualidade. O presidente gostou da ideia, mas alguns diretores católicos não aceitaram”.367Apesar de algumas resistências internas e externas o presidente do hospital e outros importantes funcionários ligados à atual direção apoiaram a iniciativa. A assessora de comunicação do Hospital de Clínicas afirmou que a proposta está de acordo com outras iniciativas e tendências que procuram privilegiar a diversidade cultural e religiosa: “Sabemos que hoje existe uma tendência mundial em 366 Foto tirada pelo autor da tese em 20/10/2010. Registro pessoal da palestra de Marcia Mocellin intitulada “Bioética e Laicidade”, realizada em 23 de setembro de 2010, por ocasião do curso “Fomentando o conhecimento das Liberdades Laicas”. 367 262 privilegiar a diversidade. Temos cerca de 5 mil funcionários de diversos credos, era natural que isso acontecesse”(Jornal Zero Hora, 22/06/2010). Reagindo a essa iniciativa fiéis católicos que frequentam a capela organizaram uma manifestação de repúdio. Aproximadamente 30 fiéis reunidos na capela durante a tarde de 22 de junho solicitaram que a direção do hospital revisasse a decisão. Por sua vez, duas comitivas, uma formada por um grupo de vereadores e a outra por devotas, estiveram em reunião com o chefe de gabinete da presidência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Jair Ferreira. Os vereadores propuseram a substituição da capela por um espaço ecumênico. FIGURA 27. Interior da capela do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. 368 Ao tomar ciência do imbróglio o arcebispo de Porto Alegre/RS, Dom Dadeus Grings, interveio prontamente. Primeiramente, ordenou ao frei capuchinho Mario Kirchner, capelão e administrador da capela, que não retirarsse os objetos e símbolos religiosos, deixando-os nesse local. Em um segundo momento, manifestou sua indignação na impressa. Em um dessas intervenções afirmou: “Não nos avisaram, simplesmente despejaram. Tiraram a nossa liberdade lá dentro para colocar a nova era” (Jornal Zero Hora, 23/06/2010). Para o arcebispo Dom Dadeus Grings, a autorização 368 Foto tirada pelo autor da tese em 20/10/2010. 263 para o fechamento da capela deve partir da Mitra Diocesana e não da diretoria do HCPA. Sobre o que asseverou: O Hospital de clínicas de Porto Alegre obteve, há mais de 30 anos, o privilégio de uma capela. Naquela ocasião,ofereceu um recinto apropriado para oferecer a devoção de seus usuários. Em junho, correu voz de que a direção do hospital teria mandado desativar este lugar sagrado, privando-o da característica cristã. Até hoje, porém, a direção não fez chegar um documento oficial neste sentido. Portanto fica tudo apenas na notícia jornalística. A única pessoa competente para desativar a capela católica, erigida sob sua direção, a pedido da direção do hospital de então, é o arcebispo. Portanto, se a atual direção do hospital julgasse inoportuna a permanência da capela, não lhe caberia mandar aos seus funcionários desativá-la. Deveria dirigir um ofício a Mitra Arquidiocesana expondo suas razões para um eventual diálogo. É o que não foi feito. A capela é de competência do arcebispo. Mandar descaracterizá-la, tirando-lhe sua característica própria, sem consultar a Mitra, constitui um afronta (Jornal do Comércio, 01/07/2010).369 Em outro momento, Dom Dadeus declara que se concretizada a transformação da capela católica em um espaço de espiritualidade isso causará uma profunda mágoa à população porto-alegrense que já criou uma relação de afeto com o local. Além disso, ele insurge-se contra a suposta substituição de símbolos cristãos por elementos da religiosidade “ Nova Era” no espaço onde há a capela: O fato de substituir, no hospital ou em qualquer repartição pública, o Cristianismo, que plasmou nossa nacionalidade, com seus símbolos, por uma religião oriental, conhecido por Nova Era – em inglês, New Age – não é democrático nem coerente. Na verdade, não se trata de conceder liberdade religiosa, que não está em questão, mas privilegiar uma religião praticamente inexistente entre nós e que em nada influiu em nossa cultura (Jornal do Comércio, 01/07/2010). Finda suas observações com a seguinte colocação: “O que mais dói no caso do Hospital de Clínicas não é o desrespeito para com a Igreja Católica, nem a exclusão das imagens, mas a expulsão de Cristo, presente no sacrário, do seu recinto” (Jornal do Comércio, 01/07/2010). Estive visitando à capela no ponto alto da controvérsia, mais precisamente no final da tarde de 23 de abril de 2010, um dia posterior à manifestação dos fiéis, pôde-se verificar que as pessoas naquele dia e em outros subsequentes estavam sendo proibidas de entrar na capela. Os funcionários da portaria não permitiam o acesso sob a alegação de que ela estava desativada, o que não era verdadeiro. Consegui entrar, pois, identifiquei-me como pesquisador da UFRGS, o que chamou a atenção logo na porta de Esse é um trecho do artigo publicado por Dom Dadeus Grings com o título “A capela do Hospital de Clínicas”. 369 264 acesso a capela é o comunicado que lá estava afixado, no qual declarava-se textualmente o seguinte: No dia 22 de junho de dois mil e dez uma comitiva composta por funcionários do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, de Agentes de Pastoral de Saúde e de Pessoas da comunidade reuniu-se com o Arcebispo de Porto Alegre, Dom Dadeus Grings, para expressar suas inconformidades com o fato anunciado pelo Presidente do Hospital de Clínicas pelo fechamento da Capela Católica. Considerando o acordo firmado entre a Igreja e o Estado, do qual são signatários o Presidente da República Federativo do Brasil, o Ilmo.Sr. Luiz Inácio Lula da Silva e o Papa Bento XVI, “assegura-se a possibilidade da Igreja Católica, manter atendimento religioso nas Instituições Públicas Brasileiras, particularmentes nas Instituições de Internação Católica.” Desta maneira, a comunidade da Capela Católica do Hospital de Clínicas, não irá proceder à desocupação voluntária do espaço que vem sendo utilizado para fins de fomentar a espiritualidade no ambiente hospitalar, há mais de trinta anos. Não procederemos à remoção de imagens e ou outros objetos sacros de devoção, até em orientação em contário de nosso Arcebispo. Ao adentrar a capela foi possível perceber o clima de tensão e inconformidade. Naquele momento realizava-se uma missa com a presença de um bom numero de fiéis e uma emissora de televisão filmava o interior da capela. Nessa oportunidade ouvi o depoimento da irmã Rita Büttenberger, que já trabalha há mais de vinte anos como enfermeira no HCPA, atuando também como voluntária na capela há acerca de quinze anos, afirmou estar muito doente e magoada com a situação. A irmã Rita enfatizava a todo momento que “fomos despejados daqui”370 e de que teme que alguns funcionários “venham aqui durante a noite e retirem tudo”. Durante o depoimento chorou algumas vezes e com tom de desabafo declarou: “Ainda se fosse ecumênico seria melhor, mas vai ser um espaço de espiritualidade”. Em outro dia retornei a capela e conversei com o frei Marion Kirchner, administrador da capela, revelou-me que o contrato com o hospital tinha terminado, disse que em conversa com o presidente do HCPA tentou modificar a posição do direitores acerca da construção de um novo espaço, mas que este foi irredutível. Inconformado, o frei manifestou-se sobre o destino das imagens religiosas e do crucifixo: O fato é que nós vamos ter que tirar as imagens. As paredes vão ficar brancas e não sabemos ainda o que vamos fazer com elas. As imagens não tem tanto problema assim, o dificil é tirar o Cristo que tem mais de trinta anos dentro da capela.371 370 Depoimento colhido em 23/06/2010. 371 Conversa informal realizada em 02/07/2010. 265 Por outro lado, a bióloga Márcia Mocellin declarou-se surpresa com a forte reação dos católicos a sua proposta: Decidimos não renovar o convênio e houve uma revolta, temi pela minha integridade física. Levaram para o lado pessoal. A capela começou a ter muita gente, como não tinha antes. Perguntaram-me como vou rezar, bem pode rezar no espaço de espitiritualidade. Recebemos muitas mensagens contra e a favor. Então, pedimos que tirassem seus objetos e a sacristia, não queriamos dessacralizar o local.372 O debate mobilizou alguns setores da sociedade porto-alegrense. Artigos, cartas e outras manifestações ocorreram na imprensa escrita e na internet. O magistrado e militante laicista Roberto Lorea, saudou a iniciativa. Em seu entedimento, medidas como essas visam democratizar o espaço público, servindo assim ao maior número de pessoas sem qualquer forma de exclusão. Em outro momento, asseverou: [...] faz-se justiça ao contribuinte, cujos impostos é que sustentavam – dentro de um hospital público – um espaço reservado exclusivamente para fiéis católicos. A Constituição Federal, em seu artigo 19, I, veda ao Estado subvencionar cultos religiosos, cabendo indagar se o Ministério Público de Contas não deveria apurar o quanto foi indevidamente gasto no período em que ali se realizavam missas, às expensas do erário.373 Para esse magistrado, quando o Estado manifesta sua preferência por um crença religiosa particular acaba por discriminar a todos aqueles que não compartilham essa preferência. Por consequência, haveria uma violação do princípio republicano da igualdade entre os cidadãos. Ao final de suas observações parabeniza e julga como exemplar a atitude do HCPA: Portanto, a iniciativa do Hospital de Clínicas merece o aplauso da sociedade ao romper com uma tradição de tratar desigualmente as religiões professadas no Brasil, pois demonstra seriedade no trato da coisa pública e dá exemplo a outras instituições, inclusive ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Por seu turno, o arcebispo Dom Dadeus Grings novamente intervém na discussão classificando a atitude do HCPA como antidemocrática. Disserta sobre a questão do Estado laico, ressaltando que a laicidade do Estado significa somente que o governo deve pertencer aos cidadãos e não aos religiosos. Em sua visão, a laicidade não deve negar a identidade da nação, pelo contrário, deve sim respeitar sua cultura: Registro pessoal da palestra de Marcia Mocellin intitulada “Bioética e Laicidade”, realizada em 23 de setembro de 2010 por ocasião do curso “Fomentando o conhecimento das Liberdades Laicas”. 372 Artigo publicado no Jornal O Sul, edição de 28 de junho de 2010, com o título: “Hospital de Clínicas dá exemplo”. 373 266 O Brasil é reconhecidamente um país católico. O maior país católico do mundo. Nasceu sob o signo do Cruzeiro do Sul e de uma Missa. Traz a marca da Igreja Católica em todos os seus ambientes. Querer tirar-lhe esta identidade é depojá-la de sua cultura e destruir sua nacionalidade.374 Concluindo suas asserções, especula que medidas desse tipo procuram dissociar a identidade nacional do catolicismo: Destoa desta índole que uma pequena minoria, ao arrepio da Constituição e do acordo firmado, contrariando nossa cultura, queira descaracterizar a nação de sua catolicidade, privando-a de sua identidade. Junto ao menosprezo dos símbolos católicos vem a desvalorização de nossa nacionalidade, com seus símbolos. O historiador Sérgio da Costa Franco estranha o fato de que em pleno século XXI ainda exista em um hospital público um “templo” exclusivo para a Igreja Católica. Trata-se, em seu entendimento, de um privilégio para os católicos: A capela do Hospital de Clínicas era estritamente ligada ao catolicismo, com imagens incompatíveis com outros cultos, mesmo cristãos. Isso caracterizava uma situação de privilégio oficial, dado que seria impossível consagrar, naquele hospital público, os espaços próprios para cada uma das confissões existentes na comunidade. Não há reparos a fazer à atitude da direção do Hospital, que obedeceu estritamente à regra constitucional. Se, no passado, houve concessões indevidas e inobservância de regras legais, isso não gera direitos nem cria prerrogativas especiais em favor de ninguém. 375 Reagindo a esse artigo o arquiteto e escritor Percival Puggina, ligado a organizações católicas, percebe no posicionamento do HCPA um certo viés totalitário. Em sua opinião a ideologia que motiva tais atitudes é de teor anticlerical e ateísta. Essa visão de mundo não reconheceria os “valiosos tesouros” transmitidos pelo cristianismo à civilização ocidental. Sobre isso declara: Quase todos os totalitarismos, aliás, dos bolcheviques aos barbudinhos de Fidel, foram acometidos de igual fobia à religiosidade em geral e a cristianismo em particular. Criaram monstrengos em nome de uma igualdade antagônica à verdadeira justiça. Então, aqui no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, põe-se a Constituição sobre o altar e cria-se uma capela new age, franqueada ao terrível silêncio da matéria. 376 Nessas colocações há, por um lado, a defesa do princípio republicano da igualdade e, dessa forma, o rechaço por uma situação de privilégio que desfrutaria a Artigo publicado no Jornal O Sul, edição de 3 de outubro de 2010, com o título: “Medidas antidemocráticas”. 374 Artigo publicado no Jornal Zero Hora, edição de 27 de junho de 2010, com o título: “Imparcialidade religiosa”. 375 Artigo publicado no Jornal Zero Hora, edição de 4 de julho de 2010, com o título: “A inconstitucionalidade da capelinha”. 376 267 Igreja Católica ao ter em uma instituição pública um espaço reservado apenas para sua crença. Por outro lado, percebe-se a tentativa por parte de alguns católicos de tachar a medida como intolerante. Além disto, estes incomodam-se com o fato de uma capela católica ser transformada em um local aberto a uma religiosidade que é vista como sem vínculos com a história nacional, no caso a “Nova Era”. Apesar de todas essas discussões, o fato é que a capela católica do HCPA continua a existir até o presente momento, sem qualquer modificação em sua estrutura física. Mesmo com o rompimento do contrato entre o hospital e a associação caxiense, responsável pela administração da capela, o frei capuxinho Marion Kirchner, assim como outros sacerdotes e freiras, continuam a prestar assistência espiritual e utilizar o espaço para celebrações e reuniões. Contudo, importa frisar que o frei Marion Kirchner não é mais considerado oficialmente como capelão do hospital, não recebendo assim qualquer remuneração. O trabalho dos sacerdotes e freiras é voluntário. A diretoria do HCPA entrou com uma representação ao Ministério Publico para que esta instituição possa mediar e tomar uma decisão acerca dessa contenda. O que chama a atenção nesse caso é o conflito de competências e autoridades que se instaura entre a cúria metropolitana e a diretoria do hospital. De um lado o arcebispo de Porto Alegre/RS declara que a competência para desativar a capela é da Igreja Católica; de outro, a diretoria do HCPA alega que pelo fato de a capela estar situada no interior do hospital, que é uma instituição pública, cabe a este decidir acerca do seu destino. Aqui uma instituição religiosa enfrenta uma instituição pública concebida como secular, para preservar seu espaço. Ademais, um aspecto que vem sendo enfatizado nessa discussão é de que um hospital público é um local para a prática da medicina e não para a religião. A crença religiosa, no entendimento daqueles que se opõem à existência da capela, tem seus espaços próprios que são os templos e as igrejas. Por consequência, a criação de um espaço de espiritualidade visa neutralizar o aspecto religioso-confessional próprio de uma capela. A própria expressão “espaço de espiritualidade” possui um caráter mais genérico e difuso. 268 7.2 Espaços inter-religiosos sem símbolos religiosos Em contraste com o que está ocorrendo no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a transformação de capelas católicas em espaços inter-religiosos nos hospitais que compõem o Grupo Hospital Conceição (GHC)377 tem se dado praticamente sem grandes resistências e embates. A iniciativa para a criação dos espaços inter-religiosos partiu da Comissão Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR), que é uma das quatro comissões que integram o Centro de Resultados Participação Cidadã (CRPC) do Grupo Hospitalar Conceição. A CEPPIR, que atua desde 2003, promove políticas de ação afirmativa, visando implementar no GHC a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e Indígena. Entre as principais iniciativas dessa comissão está justamente a criação do espaço inter-religioso com a inserção das religiões de matriz africana nesse espaço. Saliento que originalmente foram construídas capelas católicas no interior do Hospital Cristo Redentor, no Hospital Conceição e no Hospital Fêmina. Com o tempo, a capela católica do Hospital Conceição e do Hospital Fêmina tornou-se uma capela ecumênica. Todavia, em 2008, a capela ecumênica do Hospital Cristo Redentor passou por uma reformulação física, dando origem a um espaço inter-religioso. Trata-se de um espaço bastante simples, com paredes brancas, algumas cadeiras e uma pequena mesa de trabalho. Não há nele, atualmente, qualquer objeto ou símbolo religioso. Contudo, até o ano de 2009 havia um pequeno crucifixo afixado na parede. Devido a reclamação de alguns seguidores e líderes de religiões não cristãs, o crucifixo foi retirado por ordem da administração do hospital sob a alegação de que em um espaço inter-religioso não deveria haver qualquer símbolo religioso que fizesse referência a uma determinada religião. Hoje participam desse espaço os seguintes grupos religiosos: Assembleia de Deus, Afro-brasileiros, Igreja Batista Palavra Viva, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Católica, Espíritas e Seicho-No-Ie. Cada um desses grupos religiosos possui um representante no hospital, que tem em algum dia da semana o privilégio de ocupar o espaço para a realização de atendimentos espirituais, celebrações, palestras e reuniões. 377 O grupo compõe-se de quatro hospitais: Hospital Cristo Redentor, Hospital Conceição, Hospital Criança Conceição e Hospital Fêmina. 269 FIGURA 28.Calendário de atividades do Espaço inter-religioso do Hospital Cristo Redentor, de Porto Alegre/RS.378 Ao que consta, a iniciativa do GHC de incluir os grupos religiosos afrobrasileiros em um espaço inter-religioso de um hospital público é inédita no país. Desse modo, com a finalidade de celebrar a inserção das religiões afro-brasileiras no espaço inter-religioso do Hospital Cristo Redentor, realizou-se no dia 17 de outubro de 2008, o I Encontro das Religiões de Matriz Africana no GHC. Participaram do evento importantes líderes religiosos afros locais, além de diretores e funcionários do hospital. Nesta ocasião foi realizada no referido espaço um “toque de tambor” e a apresentação de um grupo de crianças que dançaram ao redor de uma mesa cheia de alimentos que foram oferecidos aos orixás.379 Por sua vez, em 11 de maio de 2010 foi inaugurado o espaço inter-religioso do Hospital Fêmina. Nessa data as religiões afro e umbandistas iniciaram suas atividades nesse espaço celebrando um encontro que contou com a participação de líderes religiosos e uma exposição de fotos sobre a trajetória das religiões afro no GHC. Além disso, lá também houve “toque de tambor” e a apresentação do grupo de dança afro do GHC. 378 379 Foto retirada pelo autor da tese em 10/08/2010. O Jornal Zero Hora de 13 de maio de 2011 noticia que em São Miguel das Missões/RS, por decisão do Ministério Público, os índios da aldeia Alvorecer ganharam o direito de receber atendimento médico e tratamento do líder espiritual nas dependências do hospital da cidade. Uma estrutura física foi montada para receber os índios. Nesse local após o exame do médico o pajé pode realizar rituais de cura com cachimbo, orações e ervas. 270 Como se pode notar na foto abaixo, o espaço inter-religioso do Hospital Fêmina é também bastante simples. Caracteriza-se por ter paredes brancas e uma pequena mesa de trabalho. Não há nele qualquer imagem ou símbolo religioso. FIGURA 29. Espaço inter-religioso do Hospital Fêmina em Porto Alegre/RS. 380 No Hospital Conceição, a capela católica continua intacta. É uma capela de grandes dimensões com uma ampla diversidade de imagens, estátuas e vitrais. ela tem já de um sentido histórico para o hospital e para alguns funcionários, onde já se realizaram batizados, casamentos, aniversários e velórios de funcionários. FIGURA 30. Capela católica do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre.381 380 Foto tirada pelo autor da tese em 10/08/2010. 271 Contudo, apesar de ser uma capela católica, com toda a simbologia e a imagética desta religião, realizam-se nela os mais diversos tipos de cerimônias religiosas. Logo na entrada da capela há dois cartazes, um indicando o dia e horário das missas e o outro com um cronograma de atendimentos que especifica o dia e o horário que a capela pode ser usado para encontros e cultos para outras religiões. No cronograma consta que se trata de uma “capela ecumênica do Hospital Conceição”, sendo que os seguintes grupos religiosos utilizam o espaço físico da capela para suas celebrações e encontros: Assembleia de Deus, Seicho-No-Ie, Umbanda, Igreja Nova Jerusalém, Sociedade Espírita Dom Thomé,Igreja Batista Palavra Viva e Igreja Universal do Reino de Deus. O espaço da capela é ainda utilizado para outras atividades, como a realizada pelo grupo de apoio à cirurgia bariátrica. Conforme Dorislaine Rodrigues de Oliveira, funcionária do GHC e integrante da CEPPIR, mesmo as religiões afro, historicamente discriminadas e vítimas de toda sorte de estigmatizações, realizam no interior da capela católica rituais ligados a sua religião: O que eu sei te dizer é que esse espaço está aberto e que os religiosos de matriz africana entram para dentro da capela e levam suas ervas, suas espadas de São Jorge, seus perfumes, suas águas cheirosas e lá dão seus passes para quem quiser receber.382 Não deixa de ter um certo caráter de pioneirismo o fato que em uma capela católica, de um hospital público ligado a um Estado laico, se realizem cerimônias religiosas ligadas aos grupos afro-brasileiros. 7.3 Um espaço público com uma pluralidade de objetos e símbolos religiosos Além da existência de capelas católicas e ecumênicas que apresentam símbolos cristãos, e espaços de espiritualidade e inter-religiosos desprovidos de qualquer imagem religiosa, há exemplos de espaços que contemplam uma série de objetos e símbolos religiosos, como é o caso do espaço inter-religioso do Aeroporto Internacional Salgado Filho de Porto Alegre. O espaço inter-religioso desse aeroporto foi inaugurado em 14 de março de 2002 com uma celebração inter-religiosa. Nessa ocasião, representantes de oito 381 Foto tirada pelo autor da tese em 10/08/2010. 382 Entrevista realizada em 10/08/2010. 272 tradições religiosas estiveram presentes, doando ao aeroporto um objeto ou símbolo que representa sua religião. Tais objetos foram colocados em um nicho protegido por um vidro nas paredes laterais do espaço inter-religioso. Como se pode notar nas fotos abaixo, atualmente dez são os nichos com símbolos que representam os seguintes grupos religiosos: afros, anglicanos, budistas, hindus, muçulmanos, judeus, luteranos, espíritas, católicos e evangélicos. FIGURA 31. Placa indicando o espaço inter-religioso no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre.383 Importa ressaltar que a iniciativa para a construção deste espaço partiu da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária (Infraero), em conjunto com o grupo de Diálogo Inter-Religioso de Porto Alegre.384 O espaço é de pequenas dimensões, com cadeiras dispostas ao lado dos nichos com os objetos religiosos e com paredes pintadas de azul. As cadeiras estão direcionadas para uma espécie de pequeno altar onde encontra-se um vaso com uma flor. O espaço não apresenta qualquer tipo de hierarquização; os objetos e símbolos religiosos estão colocados em uma mesma altura e o altar, como se pode notar, não ostenta qualquer objeto religioso em particular. 383 384 Foto tirada pelo autor da tese em 31/08/2010 . Esse grupo surge no ano de 1996, inicialmente composto apenas por integrantes das religiões monoteístas. Atualmente outras organizações religiosas fora do âmbito da tradição abraâmica compõem o grupo. 273 FIGURA 32. Interior do espaço inter-religioso do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre.385 386 FIGURA 33. Interior do espaço inter-religioso do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Diferentemente do que ocorre com o espaço inter-religioso do GHC, no espaço do Aeroporto Salgado Filho não há qualquer cronograma de atividades para cada religião. Raras são as ocasiões em que lá ocorrem celebrações ou reuniões. Entretanto, encontros religiosos podem ocorrer no espaço, desde que seja feita uma solicitação oficial remetida ao setor de comunicação social. Para Nathalie Graziani, gerente regional de marketing e comunicação social da Infraero e uma das idealizadoras desse espaço, trata-se sobretudo de um local para recolhimento e meditação. Em seu entendimento, esse é um espaço único, que procura contemplar todas as religiões: “[...] esse espaço é ao contrário de outros espaços que não 385 Foto tirada pelo autor da tese em 31/08/2010. 386 Foto tirada pelo autor da tese em 31/08/2010. 274 têm símbolos, este têm símbolos para todos”.387 Em outro momento Nathalie Graziani enfatiza novamente o caráter plural do local: “Minha militância é que todos os credos são válidos. Por isto, minha preocupação era não fazer deste espaço um espaço unicamente católico”. Entretanto, a gerente de comunicação social da Infraero relata um fato interessante que parece indicar a resistência de certas pessoas à forma como o espaço está organizado: O lado negativo é que de tempos e tempos é necessário abrir os nichos e retirar algumas coisas que as pessoas colocam nos espaços dos outros como, por exemplo, esses santinhos católicos, eles colocam nos nichos das outras religiões. Além disso, no final do ano é uma época onde as pessoas colocam muitos pedidos ali onde está a flor. Não obstante esse fato, o espaço inter-religioso do aeroporto Salgado Filho pode ser tomando como um exemplo concreto de uma laicidade plural. Esse conceito fundamenta-se nas observações do cientista social italiano Silvio Ferrari (2006) que percebe a laicidade como um instrumento jurídico e político que garante o pluralismo religioso e a liberdade para que cada cidadão possa afirmar de modo efetivo a sua crença. Para Ferrari (2006), esse modelo de laicidade plural difere do modelo da laicidade enquanto um programa político e ideológico que procura informar com seus valores seculares e universais a sociedade em sua totalidade, fazendo abstração de qualquer identidade particular. A laicidade enquanto instrumento jurídico e não enquanto programa ideológico se caracteriza por garantir juridicamente a existência de um espaço público aberto e plural. Trata-se, então, de uma atitude de abertura à diversidade religiosa, que não se identifica com um conjunto de valores seculares abstratos e universais, mas que possibilita e permite a que os valores e símbolos particulares de cada comunidade de crença contribua para compor o quadro dos princípios comuns a toda comunidade estatal. Dessa forma, esse modelo de laicidade plural anima e sustenta, por exemplo: o ensino de várias e múltiplas religiões na escola; propícia o regime de alimentação diferenciada na mesa das instituições públicas, de acordo com as instruções dietéticas de cada religião; possibilita dividir e repartir os espaços do cemitério público de acordo 387 Entrevista realizada em 31/08/2010. 275 com as religiões e finalmente entre a alternativa da exposição de um único símbolo religioso nas repartições públicas e a retirada de qualquer símbolo religioso, inclina-se pela exposição de múltiplos e variados símbolos religiosos (Ferrari, 2006). Em síntese, diante da alternativa de excluir e eliminar a presença de agentes, valores e símbolos religiosos da esfera pública, principalmente daqueles que remetem ao grupo religioso hegemônico, aventa-se a possibilidade de uma abertura maior dos espaços públicos para outras confissões religiosas. Para outros cientistas sociais como Blancarte (2011), contudo, o surgimento de espaços ecumênicos no interior de instituições estatais que anteriormente abrigavam capelas católicas, pode ser visto como uma situação que cristaliza não a afirmação de um Estado laico, mas a constituição de um poder público e, por consequência, de espaços públicos pluriconfessionais. Nesse sentido, ao invés de afirmar-se a desconfessionalização da esfera pública, perceber-se-ia nos países latino-americanos um esquema de pluriconfessionalidade, com privilégios para os grupos religiosos mais importantes e com maior capacidade de ação política. Acerca disso comenta Blancarte (2011, p.204): Em países como Brasil, Chile ou inclusive Peru, a pressão das minorias e o cortejo eleitoral que estas fazem junto a muitos políticos vem conduzindo a uma lógica de distribuição de favores e prebendas clientelares. Desta maneira, em lugar de eliminar os privilégios ancestrais e a influência política da igreja majoritária, o que agora se está observando é o outorgamento destes privilégios a outras igrejas com capacidade representação e mobilização política, ainda que deixando sempre a outras igrejas e religiões fora deste esquema e perpetuando o trado desigual e não equitativo. Assim, enquanto que no Brasil se formam as “bancadas evangélicas”, no Chile se duplica o “Te Deum” e os espaços concedidos as igrejas, enquanto que em lugares como o Peru ou na América Central à confessionalidade do Estado unicamente se pluraliza mas não se laicizam as instituições públicas.388 Entendo que as colocações desse sociólogo mexicano precisam ser problematizadas. Há nessas asserções, implicitamente, a tentativa de opor de modo absoluto a laicidade com a presença da religião na esfera pública. O que se pode notar historicamente e empiricamente é que a laicidade estatal foi e vem sendo construída no Brasil, assim como em outros países da América Latina, sem que conjuntamente houvesse uma secularização significativa das diversas esferas sociais e do espaço público. Ainda, penso que uma total laicização das instituições públicas é uma tarefa irrealizável no contexto das sociedades ibero-americanas. A força cultural e o poder de 388 Tradução livre feita pelo autor da tese do espanhol para o português. 276 impregnação das imagens, valores e princípios religiosos nessas culturas, deixou uma marca indelével que dificilmente poderá de todo ser extirpada. Acrescento, também, que não vejo como um problema a inserção de outros grupos religiosos na vida pública. O problema se dá quando esta é monopolizada por um único segmento religioso. O surgimento e a inserção de outras religiões no campo político, midiático, educativo e na própria paisagem urbana, é uma decorrência natural da própria expansão da diversidade religiosa e do acirramento da disputa entre as diferentes crenças, que não buscam apenas atrair novos fiéis, mas também conquistar espaços na arena pública. Em suma, o ideal de um Estado completamente distanciado e indiferente ao religioso, bem como de espaço públicos desconfessionalizados e imunes à intervenção de forças religiosas é mais um modelo político, um projeto de organização societal que dificilmente pode ser concretizado. Importa lembrar que especificamente em relação à laicidade à brasileira, o principal mentor de nosso modelo de relação entre Estado, religião e sociedade, o jurista Rui Barbosa buscou inspiração como já destaquei em capítulo anterior, no modelo norte-americano, caracterizado pela existência de um Estado não confessional, mas por uma marcante presença da religião nos diversos campos sociais. Sobre isso e em relação ao que foi discutido nestes parágrafos, me parecem esclarecedoras algumas palavras de Rui Barbosa (1960) que em um dos seus discursos depois de elencar as diversas situações em que o religioso é parte integrante da vida pública na nação norteamericana, conclui: Ali não se divisa nesses fatos o mínimo agravo à secularidade legal das instituições. O que lá não se toleraria, nem a nossa constituição tolera, é estabelecer distinções legais entre confissões religiosas, sustentar a instrução ou culto religioso à custa de imposto, obrigar à freqüência dos templos ou à assiduidade nos deveres da fé, criar embaraços de qualquer natureza ao exercício da religião, contrariar de algum modo a liberdade de consciência, a expressão das crenças, ou a manifestação da incredulidade, nos limites do respeito às crenças e à liberdade alheias (Barbosa, 1960, p. 662). Retomando agora a temática principal deste capítulo, é necessário frisar que enquanto as capelas católicas e os espaços ecumênicos existentes em aeroportos parecem não sofrer qualquer tipo de contestação, as capelas localizadas em escolas, colégios e universidades públicas são objeto de problematizações e contendas. Como ilustração cito o que ocorreu no estado em uma Universidade paranaense, onde em dezembro de 2010 o Ministério Público proibiu a celebração de missas e de qualquer outro tipo de celebração religiosa na capela ecumênica daquela instituição de ensino. 277 Ademais, na visão de alguns juristas, como Angón e Mazarío (2007) há que se distinguir entre a presença de símbolos religiosos em locais destinados a cerimônias religiosas, como capelas, e a afixação desses símbolos em outros espaços, como salas de aulas. No primeiro caso, a presença de símbolos religiosos estaria de acordo com o direito da liberdade de consciência, pois os indivíduos não estariam obrigados a frequentar as capelas. No segundo caso, a afixação de símbolos religiosos na parede ou em outros locais de uma escola ou universidade pública impregnaria de seu significado esses espaços. Expressaria, ainda, uma inequívoca vontade do Estado de colocar a religião simbolizada no centro do universo, como se fosse uma verdade absoluta. Ademais, enfatizam os citados juristas: A presença de símbolos religiosos na escola pública apresenta uma problemática específica, por diferentes razões: como consequência do especial contexto educativo em que se exibem os símbolos religiosos, porque se trata de um espaço tutelado pelos poderes públicos (a escola pública), e devido aos sujeitos receptores da mensagem que transmitem os símbolos religiosos, já que se tratam de alunos que carecem de plena capacidade de discernir entre o que é um adorno e o que é um símbolo religioso, o que pode lesar seu direito a liberdade de consciência (Angón, Mazarío, 2007, p.47). Em que pesem essas observações, lembro que pode haver cerimônias e práticas religiosas em recintos públicos desprovidos de qualquer tipo de simbologia religiosa ou de uma capela.389Por outro lado, a existência de uma capela em um ambiente público como uma escola ou universidade pode apresentar algumas ambiguidades em determinadas situações específicas e concretas. Para ilustrar minha afirmação acerca desse ponto, transcrevo agora um trecho de meu diário de campo, quando da minha visita ao Instituto de Educação General Flores da Cunha, tradicional colégio público de Porto Alegre/RS: [...] Comecei a circular pelos longos corredores e logo me deparei com uma pequena capela próxima a entrada principal. Nesta capela, pode-se ver um imponente crucifixo de madeira e uma pequena estátua de Nossa Senhora e de dois santos que não consegui identificar. Perguntei a professora Adriana, se ali se realizava algum tipo de cerimônia religiosa e ela me respondeu taxativamente afirmando que não. As paredes do colégio estão bastante pichadas e sujas. Ao longo da caminhada, a professora Adriana queixou-se do descaso do Estado em contribuir com a reforma do colégio. Entrei em várias salas de aula, e fui bem recebido pelos professores e alunos. [...] Não percebi nas salas de aula a presença de qualquer símbolo ou imagem religiosa, havia sim várias bandeiras do Rio Grande do Sul e meninas vestidas de prenda em homenagem a semana Farroupilha. Visitei o teatro, a sala de informática, a creche e a sala de ex-alunos da instituição. Chamou-me 389 Lorea (2008b) comenta o caso de um secretário de segurança pública do Estado do Rio Grande do Sul, que a cada segunda-feira reunia durante cinco minutos em um local da Secretaria de Segurança Pública os funcionários para ouvir uma citação bíblica e rezar o Pai- Nosso de mãos dadas. 278 a atenção a sala de reunião dos professores, pois lá há um busto de Júlio de Castilhos e um tapete com a bandeira do Rio Grande do Sul, além de uma série de medalhas e quadros com fotos de antigos alunos. Ao entrar na sala de pais e mestres observei na parede duas orações afixadas em um mural, uma oração para os professores e outra oração para a benção do local, que tinham palavras e expressões próprias da tradição cristã. Subindo ao segundo piso do colégio, pela longa e majestática escadaria percebe-se ao alto três belíssimos quadros que foram encomendados pelo então governador do Estado Borges de Medeiros, quando da construção do Palácio do Piratini. Uma das telas é de autoria de Lúcio de Albuquerque e é intitulada “Garibaldi e a Esquadra Farroupilha”, pronta no ano de 1919. [...] No corredor do segundo piso, observa-se a existência de bustos de antigos professores, sendo que alguns destes foram danificados por alunos do colégio. Ao entrar na biblioteca visualizei dois crucifixos, os únicos que vi no colégio (Diário de campo, 20/07/2009). O aparente paradoxo está no fato de que um colégio público fundado por um governo de inspiração positivista e republicana, abrigando em seu interior um busto do pai do positivismo neste Estado, Júlio de Castilhos, possua também uma capela católica e símbolos religiosos católicos em sua biblioteca. Símbolos positivistas e seculares convivem pacificamente com imagens religiosas, sem que qualquer tipo de culto ou devoção sejam prestado a elas. A coexistência e mesmo o amálgama entre elementos religiosos e seculares é demonstrada por José Murilo de Carvalho (2007). Conforme explicita esse autor, alguns símbolos, imagens e alegorias criadas pelos positivistas quando do surgimento da nova ordem política republicana incorporavam elementos religiosos tradicionais. A figura de Tiradentes, que foi criada para ser o ícone do grande herói cívico do regime “laico” republicano, era representada em quadros, litogravuras e em outras diversas obras de arte com traços muito semelhantes ao Cristo crucificado:390 A simbologia cristã apareceu em várias outras obras de arte da época. No quadro Martírio de Tiradentes, de Aurélio de Figueiredo, o mártir é visto de baixo para cima, como um crucificado, tendo aos pés um frade, que lhe apresenta o crucifixo, e o carrasco Capitania, joelho dobrado, cobrindo o rosto com a mão. É uma cena de pé-da-cruz. Mesmo na representação quase chocante de Pedro Américo, a alusão de Cristo é inescapável. Seu Tiradentes esquartejado, de 1893, mostra os pedaços do corpo sobre o cadafalso, como sobre um altar. A cabeça, com longas barbas ruivas, está colocada em posição mais alta, tendo ao lado o crucifixo, numa clara sugestão da semelhança entre os dois dramas. Um dos braços pende para fora do cadafalso, citação explícita da Pietá de Michelangelo (Carvalho, 2007, p. 65). A bandeira republicana combinou elementos positivistas com outros ligados à tradição imperial e ao cristianismo. Juntamente com a divisa positivista “Ordem e Progresso” colocada em uma faixa que representa o zodíaco foi tomada da bandeira 390 Essa questão bem como outras conexas, são examinadas amplamente por Giumbelli (2010). 279 imperial o fundo verde, o losango amarelo e a esfera azul. Excluíram da nova bandeira os emblemas imperiais, ou seja, a cruz, a esfera armilar, a coroa, os ramos de café e o tabaco. As estrelas que circulavam a esfera foram deslocadas para dentro da calota. Porém, a cruz de certo modo permaneceu na bandeira republicana através do Cruzeiro do Sul, uma “cruz leiga” (Carvalho, 2007). Um dos líderes do apostolado positivista, Teixeira Mendes, reconhecia a necessidade de juntar símbolos que fizessem referência à antiga ordem católica e monárquica com um simbolismo que representasse a nova ordem republicana: Este símbolo corresponde a tudo quanto o outro tinha de essencial. Ele lembra naturalmente a fase do Brasil colônia – nas cores azul e branca que matizam a esfera, ao mesmo tempo que esta recorda o período do Brasil reino – por trazer a memória a esfera armilar. Desperta a esperança da fé gloriosa dos nossos antepassados e o descobrimento desta parte da América não já por meio de um sinal que é atualmente um símbolo de divergência, mas por meio de uma constelação, cuja imagem só pode fomentar a mais vasta fraternidade; porque nela o mais fervoroso católico contemplará os mistérios insondáveis da crença medieva, e o pensador mais livre recordará o caráter subjetivo dessa mesma crença e a poética imaginação de nossos avós (Teixeira Mendes, Diário Oficial, 29 de novembro de 1890). A observação etnográfica citada, as investigações de José Murilo de Carvalho (2007), bem como o relato da funcionária do GHC, de que na capela católica do Hospital Conceição se realizam cultos e cerimônias religiosas das mais diversas crenças, revela um aspecto característico da sociedade brasileira, apontado por DaMatta (1985) que é o de relacionar valores contrastantes, de conciliar, juntar e misturar ideologias e símbolos opostos e diferenciados. Porém, tal harmonização de opostos sempre implica uma relação hierárquica, havendo um elemento dominante na relação que subordina os demais. Em alguns casos o religioso, principalmente em sua forma cristã, é o dominante; em outros o elemento englobador é o secular. Em suma, tradição e modernidade, hierarquia e igualitarismo, liberalismo e autoritarismo, secular e religioso se relacionam e se interpenetram em nossa configuração societal.391 Além do mais, o catolicismo em determinados casos tende a se apresentar como uma espécie de metacultura, que acaba por absorver e incorporar a heterogeneidade, a diversidade e a diferença. Essa incorporação da multiplicidade no interior de um núcleo central católico pode levar a uma relativização da diversidade cultural e religiosa com a consequente absolutização da cultura católica (Ludueña, 2009). Todavia cabe aqui enfatizar que o sincretismo hierárquico que sempre marcou a cultura brasileira, principalmente no 391 Paulo Mercadante (1965), em A consciência conservadora no Brasil demonstra como o espírito de conciliação e ecletismo é uma constante na história política nacional. 280 campo religioso, vem sofrendo nas últimas décadas, um forte questionamento como decorrência do avanço pentecostal. Assim sendo, um determinado modelo de pluralismo religioso sincrético-hieráquico, que harmoniza e combina o não exclusivismo com a aceitação da hegemonia católica, tende a se enfraquecer. O pentecostalismo rejeita a hegemonia do catolicismo e apresenta uma alternativa ancorada em um pluralismo competitivo (Freston, 2010). Grosso modo, nas três situações expostas neste capítulo verifica-se a tentativa de agentes públicos de administrar e gerenciar o pluralismo religioso. Em realidade, a criação de capelas e espaços ecumênicos e inter-religiosos insere-se em um movimento mais amplo que procura acolher e reconhecer publicamente a diversidade de crenças presente na sociedade brasileira. Trata-se de um modo particular de incluir a multiplicidade religiosa no interior de instituições públicas. Verifica-se, então, uma redistribuição e reestruturação do espaço público (Poulat, 2003). Sob determinado aspecto, há certos paralelismos e semelhanças entre a questão das capelas ecumênicas e o ensino religioso nas escolas públicas. Como já destaquei em outra ocasião nesse trabalho, a disciplina de ensino religioso nas escolas públicas brasileiras historicamente apresentou uma feição confessional cristã, predominantemente católica. Contudo, nas últimas décadas por força de ajustes legais o ensino religioso passou a revestir-se de um caráter plural e supraconfessional. Há assim a passagem de um modelo particularista, confessional, para um modelo pluralista e “macro-ecumênico”. Da mesma forma isso ocorre em relação às capelas em locais públicos, que tradicionalmente eram cristãs e católicas, mas que nos últimos anos vem transformando-se em espaços inter-religiosos. Essas transformações são consequência da crescente diversificação do campo religioso brasileiro. Há desse modo uma crescente demanda de outros grupos religiosos, não apenas cristãos, de participar e ocupar espaços na arena pública. Essas duas situações atestam um novo modo do Estado brasileiro de lidar com o religioso. Outrossim, os espaços ecumênicos e inter-religiosos consistem numa concretização da noção de pluralismo paritário, que conduz ao tratamento igualitário de todos os grupos religiosos. Dessa forma, o pluralismo paritário opõe-se ao critério histórico-quantitativo, que acaba por dar relevância e privilegiar a religião católica, devido à maior difusão numérica desse grupo religioso (Olivetti, 2009). Como foi visto 281 ao longo deste trabalho, o critério histórico-quantitativo foi e ainda vem sendo largamente acionado por nossa jurisprudência como um instrumento de legitimação da afixação do crucifixo em ambientes estatais. Destarte, parece-me que a tendência atual das capelas ecumênicas em recintos públicos representa uma novidade e uma forma particular de lidar com a diversidade do campo religioso brasileiro. Aqui há novamente uma modalidade de presença e reconhecimento do religioso no espaço público que dialoga com princípio da laicidade (Giumbelli, 2008b). Nesse sentido, seja um crucifixo, uma bíblia ou mesmo uma capela ecumênica, o que cabe destacar é que em nosso país a esfera pública não é de forma alguma um espaço despido de referências religiosas. 282 CONCLUSÃO A presença de símbolos religiosos em espaços públicos aponta para a existência na sociedade brasileira de uma dupla dinâmica de difusão e de diluição do religioso.392 Se, por um lado, o religioso se espraia para além dos templos e das igrejas, estando praticamente em todos os lugares, por outro, pode haver uma perda e um enfraquecimento de suas qualidades primordialmente religiosas quando este encontra-se fora de seu âmbito tradicional, como, por exemplo, em recintos estatais. Nessas situações há uma incontornável simbiose, interação e mesmo uma sobreposição entre o secular e o religioso. Desse modo, um dos objetivos principais deste trabalho foi problematizar a distinção e diferenciação entre o religioso e o secular, como se eles fossem duas substâncias e entidades autônomas e plenamente distintas. Por conta de sua eficácia e inegável força mobilizadora, as imagens e símbolos religiosos muitas vezes são apropriados com a finalidade de construir, integrar e fortalecer a comunidade nacional. Verifica-se, assim, uma nacionalização de alguns símbolos religiosos quando estes são expostos em espaços públicos, existindo dessa forma, uma confluência nesses casos, do cívico e do religioso. No Brasil, o nacionalismo e a construção da identidade nacional não levaram a uma substituição da religião tradicional por uma religião política secular. A construção da nacionalidade não conduziu e não se caracterizou por uma aberta e direta confrontação com a religião hegemônica, mas sim por uma profunda vinculação entre nação e catolicidade. Ocorreu aqui uma espécie de nacionalização do religioso. Não é por acaso, por mero acidente histórico ou coincidência fortuita, que em muitas ocasiões o símbolo religioso dominante, o crucifixo, encontra-se próximo ou ao lado de nosso principal símbolo cívico, a bandeira nacional. Conforme Zubrzycki (2006), símbolos e narrativas religiosas proveram um vocabulário e uma gramática para falar da nação e de sua missão. Por sua vez, nos processos judiciais e administrativos examinados e descritos nesta tese percebe-se, de um modo geral, que nosso aparato jurídico e estatal não tem concebido e definido o crucifixo e outros símbolos religiosos como algo estritamente e Segundo Hervieu-Léger (2008, p.23): “O religioso é uma dimensão transversal do fenômeno humano, que trabalha de modo ativo e latente, explícito ou implícito, em toda a extensão da realidade social, cultural e psicológica, segundo modalidades próprias a cada uma das civilizações dentro das quais se tenta identificar sua presença”. 392 283 unicamente religioso. Estes são muitas vezes percebidos como símbolos culturais, já arraigados e vinculados à formação histórica da nação. Símbolos religiosos são assim definidos como ícones que representam a identidade nacional, e que expressam determinados valores morais, são tomados como fundamentais para o bem estar coletivo e a harmonia social. Destarte, o cristianismo, e mais particularmente o catolicismo tornam-se, até certo ponto uma espécie de religião civil, de guardião da memória coletiva e da tradição. Essa tradição religiosa é concebida como um elemento essencial de nossa identidade histórica e fonte original de nossos principais valores, normas e direitos. De algum modo, como observa Pacillo (2007),393 esse fato assinala um duplo processo: por um lado, a afirmação de um “cristianismo secularizado” e, de outro, a consolidação de um “Estado secular cristianizado”. Ademais, todo o debate em torno dos símbolos religiosos em espaços públicos exterioriza aquilo que Charles Taylor (2010) observou como as duas importantes formas pelas quais a religião se reveste nos dias atuais: como parte integrante da identidade política e pela percepção de que é um baluarte crucial da civilização e da moralidade. O crucifixo é o principal foco irradiador dos conflitos e debates, posto que ele é o “símbolo dominante”394 que ainda encontra-se nas instituições centrais do Estado. Assim sendo, a defesa contumaz desse símbolo em locais públicos por determinados atores sociais procura fortalecer e reviver uma visão da nação que nas últimas décadas vem sendo objeto de contestações e questionamentos. É em um contexto de expansão do pluralismo religioso e de surgimento de novos movimentos sociais de feição laica como feministas, grupos Glbs e organizações que reinvindicam o direito de outras minorias, que emerge a polêmica sobre os crucifixos em espaços públicos. Em consequência desses desenvolvimentos recentes, a visão de nação que relaciona-a com o 393 Esse importante estudioso italiano das relações entre Estado e religião fundamenta essa observação com base na realidade europeia e mais especificamente com o que vem ocorrendo na Itália. Penso que suas colocações podem ser válidas para o Brasil. Em relação à Itália assevera: “No decorrer dos últimos anos, um interessante fenômeno pode ser apontado: por diversas razões, no ordenamento jurídico italiano a fé cristã está a se tornar uma referência tal qual uma ‘religião civil’. Essa transformação é possível graças a um processo, em nível institucional, desde o confessionalismo antigo – a expressar a procura por um reconhecimento especial e público da fé cristã – até o reconhecimento da fé cristã: 1) como um elemento essencial para a promoção do ‘bem comum’(como demonstrado pelas últimas formas de concordatas); 2) como a raiz original da identidade histórica nacional e europeia. Pode ser listadas como demonstrações desse processo, que continua a sua marcha: o debate sobre a provável menção de um ‘herança cristã’ no Preâmbulo da Constituição Europeia; a progressiva e oficialmente inspirada legitimação de alguns símbolos cristãos (como o crucifixo) como símbolos europeus; o modo como vários filósofos políticos se referem a fé cristã, algo que era difícil imaginar em um passado recente”. 394 Utilizo aqui a definição de Victor Turner (2005) que concebe os símbolos dominantes como algo que representa e se refere a valores que são considerados como cruciais em determinada comunidade. 284 catolicismo é colocada em xeque. Esses atores identificam a presença de símbolos religiosos em locais públicos como uma atitude de parcialidade e preferência do Estado brasileiro por uma específica crença religiosa Ademais, na controvérsia acerca da presença de símbolos religiosos em espaços públicos há uma série de premissas implícitas que quase nunca aparecem de modo evidente e com nitidez, mas que permeiam todas as argumentações e posturas. Elas dizem respeito, grosso modo, a divergentes concepções acerca do Estado, da organização da comunidade, dos valores que devem informar a vida social e, assim, serem inculcados na coletividade, bem como uma distinta visão acerca do que é o homem e o seu papel na ordem social. Quero enfatizar com isso que tal contenda revela, expressa e dramatiza questões cruciais de ordem moral, política e antropológica, que podem passar despercebidas para um observador desatento. Nesse sentido, para boa parte dos militantes laicistas o Estado dever manter uma atitude de neutralidade em termos de religião e moralidade. Sendo assim, não albergando e inculcando determinada visão acerca do homem, do mundo e da vida, mas apenas respeitando e protegendo juridicamente a multiplicidade de bens e visões de mundo existentes em determinada coletividade. Para outros agentes cabe ao poder público defender um conjunto específico de valores e de bens, que são percebidos como centrais para a vitalidade da comunidade. Sob outro aspecto, a vigorosa ocupação dos mais variados espaços públicos por crucifixos, Bíblias e pelo “nome de Deus” lança um desafio a certo paradigma da secularização. Sobretudo, contesta a noção de uma privatização do religioso e sinaliza para uma constante imbricação do religioso com as múltiplas e variadas esferas da sociedade brasileira. Historicamente, como foi visto no segundo capítulo deste trabalho, sempre houve uma interpenetração entre o religioso e o secular, de modo que a desconfessionalização do Estado não redundou em total descristianização da nação e, por consequência, não conduziu a uma ampla e profunda secularização da própria cultura, que sempre foi e ainda é impregnada de valores e símbolos religiosos. Neste país, as fronteiras entre o religioso e o secular são difusas, permeáveis e frágeis. Não é algo evidente e cristalino onde uma começa e a outra termina. Em muitos casos nota-se uma amálgama senão mesmo uma confluência entre esses dois aspectos ao longo de nossa história religiosa e política. A constante interpenetração entre Estado e religião, 285 entre as instituições concebidas como seculares e as organizações eclesiásticas, é destacada por Thales de Azevedo (1981, p. 25): [...] o Estado tende a apropriar-se e a usar os princípios e o espírito de determinada fé, dando-lhes uma expressão temporal e profana. Ou a criar a própria transcendência, alheia e, não raro, avessa a concepção preternatural e religiosa. Os gestos, as manifestações religiosas do poder temporal, podem, assim, destinar-se a obter uma legitimação sacral dos governos, dos regimes e dos planos políticos pela opinião pública, bem como pelas instituições e hierarquias eclesiásticas, quando umas e outras possam importar para o êxito dos órgãos do poder. Outrossim, de acordo com Sullivan (2010), a aposição de ícones religiosos em locais públicos revela os limites do secularismo e assim da própria noção de um Estadonação secular e laico. Para essa autora, a incapacidade dos símbolos nacionais para substituir os símbolos religiosos sugere o fracasso na construção da religião civil e da própria secularização. Por exemplo: no Brasil, a bandeira nacional, bem como outros símbolos cívicos, parece nunca ter adquirido um halo de santidade como em outros países. Como observou José Murilo de Carvalho (2007, p. 141), as correntes republicanas e positivistas, laicas, fracassaram rotundamente em suas ambiciosas tentativas de criar uma iconografia e uma simbologia cívica de teor secular: “não foram capazes de criar um imaginário popular republicano. Nos aspectos em que tiveram algum êxito, este se deveu a compromissos com a tradição imperial ou com valores religiosos”. Os símbolos religiosos, principalmente os cristãos e católicos, tiveram e sob certo aspecto continuam tendo uma grande força e poder no imaginário popular. Os crucifixos, as cruzes e cruzeiros, os monumentos à Bíblia, o Cristo Redentor no Rio de Janeiro e Nossa Senhora Aparecida, são ícones que inegavelmente possuem maior identificação com a comunidade nacional do que qualquer imagem republicana e positivista.395 Baseando-me em Zubrzycki (2006), entendo que nunca houve no Brasil uma efetiva sacralização de ideais, instituições e símbolos políticos, com a consequente criação de uma religião política secular. O que aqui ocorreu foi um outro processo: símbolos e imagens religiosas foram em um primeiro momento secularizados e então ressacralizados como nacionais, adquirindo uma dimensão cívica. Em suma, aqui se deu uma sacralização nacional de símbolos religiosos que se tornaram ícones que Sobre a imagem de Nossa Senhora Aparecida, comenta José Murilo de Carvalho (2007, p.141): “ talvez seja ainda a imagem da Aparecida a que melhor consiga dar um sentido de comunhão nacional a vastos setores da população. Um sentido que, na ausência de um civismo republicano, só poderia vir de fora do domínio da política. Tiradentes esquartejado nos braços da Aparecida: eis o que seria a perfeita pietá cívico-religiosa brasileira. A nação exibindo, aos pedaços, o corpo de seu povo que a República ainda não foi capaz de construir”. 395 286 representam a nação. A laicidade, ainda, não é o mito fundador da cultura brasileira; ela nunca foi tomada como um princípio central, orientador, e regulador da vida social. Nossas imagens e símbolos míticos e primordiais não apresentam um caráter estritamente secular. Os mitos e símbolos nacionais fundadores e primevos, permeados e prenhes de elementos religiosos, estruturaram determinadas possibilidades e desenvolvimentos históricos e culturais. Desse modo, os símbolos, as imagens e os mitos, são como forças ativas que operam sobre a realidade, e não meros epifenômenos ou adornos estéticos desprovidos de qualquer poder e força. Seguindo a lição de Turner (2005), entendo que os símbolos são elementos que instigam e induzem indivíduos e coletividades à ação social. Símbolos dominantes como cruzes e crucifixos relacionam normas éticas, morais e religiosas com elementos com fortes aspectos e apelos emocionais. O polo sensorial do crucifixo, concebido aqui como um símbolo dominante, está intimamente ligado à própria forma externa do símbolo. Esse polo concentra um conjunto de qualidades que provocam o despertar de sentimentos, desejos e emoções. A visualização do crucifixo pode assim conduzir o crente ou mesmo um leigo a experimentar sensações e lembranças ligadas à dor, ao sofrimento e consolo espiritual. Por seu turno, o polo ideológico do crucifixo refere-se a aspectos de ordem moral e normativa, normas religiosas que orientam e controlam a vida de uma dada comunidade. Ao perceber o crucifixo em um ambiente sacral ou secular, o fiel e mesmo alguém não vinculado ao catolicismo e/ ou cristianismo tende a associar esse símbolo com princípios e valores religiosos.396 O que parece inegável, contudo, é que no caso brasileiro nunca ocorreu uma efetiva privatização da simbologia católica, ou seja, esta nunca esteve apenas circunscrita ao âmbito particular das igrejas e do lar. Os símbolos católicos não foram banidos dos locais públicos, mesmo com a separação jurídica entre Estado e religião, e com as medidas secularizantes implementadas nos primeiros anos do regime republicano. Oratórios, ermidas, santuários, capelas, cruzeiros, cruzes, crucifixos e imagens de santos e de Nossa Senhora sempre permearam os mais diversos espaços públicos e recintos estatais. A simbologia católica apresenta no Brasil uma dimensão e um caráter público, transitando pelos mais diversos domínios sociais. 396 Os conceitos de polo ideológico e polo sensorial dos símbolos dominantes foram criados e desenvolvidos por Victor Turner (2005). 287 Procurando estar além da discussão se é ou não legítimo em um Estado laico a afixação de símbolos religiosos em repartições públicas, o que foge à missão de um antropólogo, é necessário, contudo, levar em conta o contexto, o local onde se encontra o símbolo religioso.397 O significado, o uso e a função do crucifixo em um espaço estatal, como um tribunal, parecem não ser o mesmo quando este objeto encontra-se situado em uma igreja, capela ou outro lugar de adoração. Via de regra, um crucifixo aposto em uma repartição pública não tem uma função litúrgica, ritual ou devocional. Porém, a pergunta que precisa ser feita é se espaços públicos como escolas, tribunais e casas legislativas são os locais apropriados para a afixação de símbolos religiosos. A par disso, o que chama a atenção é a quase onipresença dos símbolos religiosos, que não se encontram somente em instituições vinculadas ao Estado, mas nos mais diversos espaços. Sobre isso comenta Carlos Rodrigues Brandão (1988, p.52): [...] os símbolos e significados do catolicismo invadem praticamente todos os espaços e domínios da cultura brasileira. Democrática e anarquicamente eles estão nas Igrejas e nas cortes de justiça. Mas estão também nos bares e nos prostíbulos, nos campos de futebol e nos blocos de carnaval. A beata e a puta podem ser, cada um a seu modo, católicas, assim como o rezador e o bandido. Além disso, os símbolos devem ser examinados em sua relação com outros símbolos e na forma como são evocados e mobilizados. Em realidade, o sentido de um símbolo é quase sempre objeto de disputas e embates entre diferentes grupos, conforme destaca Zubrzycki (2006, p.27): O significado dos símbolos é radicalmente indeterminado e contestado, e sua contestação é profundamente ideológica, no sentido de que serem conscientemente “trabalhados” por diferentes grupos e para diferentes objetivos políticos. Mas os símbolos não são apenas racionalmente construídos; eles são também historicamente constituídos por meio de narrativas e eventos chaves. As imagens e os ícones religiosos não estão unicamente apostos em uma esfera sagrada, perfeitamente delimitada pelas instituições e os agentes eclesiásticos. Diante disso, poderia se estar diante de um uso profano dos símbolos religiosos, de uma profanação dos mesmos. O crucifixo, e outras imagens religiosas, estão apostos fora dos templos. Não são assim vistos e tomados como “tabus”, ou seja, objetos sagrados que são separados e guardados à distância do olhar do vulgo. Assim sendo, alguém poderia 397 Uma interessante reflexão e indagação acerca da legitimidade desses símbolos é feita por Leite (2008, p. 356): “Como evitar que a religiosidade de uma parcela expressiva da sociedade se reflita no espaço público? Por outro lado, até que ponto seria legítimo impedir tal expressão a fim de não se confundir a separação com hostilidade à religião?”. 288 alegar que haveria de alguma maneira uma profanação dos mesmos, que seriam afixados e usados fora dos recintos sagrados, estranhos à religião. O profano e o ato de profanar se afirmaria nessas situações, pois este é o tipo de ato que ocorre fora do templo, como indica o significado etimológico dessa expressão, no exterior e além do espaço sagrado das igrejas e santuários.398 A pergunta que se faz é, então, a seguinte: Para os crentes a santidade dos mais diversos ícones e objetos religiosos não é violada quando estes encontram-se em lugares “profanos”? É curioso e revelador que praticamente em nenhum momento esse tipo de observação tenha sido levantada nas contendas aqui examinadas. Apesar da predominância de símbolos religiosos católicos em ambientes públicos e em nossa paisagem social, vale sublinhar que se pode observar também, em menor grau, o erguimento, nas últimas décadas, de monumentos e estátuas que representam outras tradições religiosas, principalmente os chamados monumentos à Bíblia, geralmente construídos em praças públicas, como foi visto ao longo deste trabalho. Acrescenta-se a isso a transformação paulatina que vem ocorrendo nas últimas décadas de capelas católicas existentes em locais públicos em espaços ecumênicos e inter-religiosos. Sob determinado aspecto, esses fatos expressam e ilustram o enfraquecimento da hegemonia católica no campo religioso brasileiro e a dilatação do pluralismo de crenças. A Bíblia aposta em casas legislativas, escolas, universidades, hospitais e praças públicas, por iniciativa de agentes vinculados a denominações evangélicas, atesta o inegável fortalecimento desse grupo religioso e, por consequência, sua ambição de conquistar e ocupar os mais diversos espaços públicos. Do mesmo modo que os pentescostais se afastaram do tradicional apolitismo, adentrando na esfera política, é inconteste a penetração de objetos, símbolos e monumentos ligados a esse segmento religioso nos mais diversos espaços públicos e na própria paisagem urbana. Destarte, distanciaram-se de suas posturas iniciais de caráter subjetivista, concebendo e praticando a religião como algo apenas ligado à consciência individual e à esfera privada do lar e dos templos. Diante do exposto nestas considerações finais e ao longo deste trabalho, pode-se afirmar que a laicidade à brasileira, título principal deste trabalho, caracteriza-se fundamentalmente pela relação privilegiada do catolicismo com o Estado brasileiro. Há, 398 A palavra profano é composta do latim pro, que significa ante, mais a expressão fanum que significa templo. 289 por parte do arcabouço jurídico brasileiro uma valoração positiva do religioso, particularmente em sua expressão católica e/ou cristã, que possibilita até mesmo parcerias que objetivem o bem comum entre instâncias estatais e organizações religiosas. As aproximações, contatos e compromissos entre o aparato estatal e a religião católica não se expressam apenas por meio de prerrogativas e privilégios a esse grupo religioso, mas também por meio de uma certa identificação da própria nação com ele. Há por aqui um reconhecimento da dimensão pública do religioso sem que exista um Estado confessional, jurídica e formalmente vinculado a uma religião em particular. Ressalto, também, que a noção de uma laicidade à brasileira busca matizar e “dessencializar” o próprio conceito de laicidade. A asserção de uma noção universal, de um modelo único, essencial e exemplar de laicidade é assim colocada em xeque. Desse modo, há em realidade não uma laicidade, mas laicidades, diversas e variadas, que estão intimamente relacionadas com a particular história religiosa, política e jurídica de cada nação. Nesse sentido, existem múltiplos e distintos padrões de laicidade e, por consequência, diversificados arranjos nas relações entre Estado e religião. Tais arranjos variam desde a existência de religiões oficiais de Estado, Estados teocráticos e clericais, até uma mais estrita e rígida separação entre Estado e religião, da conhecida e paradigmática laicidade francesa. Ademais, conforme comenta Bader (2011), não há no mundo ocidental atualmente sociedades e culturas totalmente secularizadas, bem como Estados absolutamente laicizados. Cabe ainda acrescentar que mesmo em Estados nacionais explicitamente comprometidos com o ideário secularista, e assim caracterizados por um forte grau de laicização, pode ocorrer que a sociedade e a cultura não sejam secularizadas, do que é exemplo disso a Turquia a partir da liderança de Mustafa Kemal Atatürk, na década de 1920 até os dias atuais. A ampla secularização da esfera política e do aparato jurídico e estatal não implica em secularização da vida cultural, bem como de outros campos sociais (Bilgrami, 2011). Todavia, importa sublinhar mais uma vez, que a relação de proximidade do Estado brasileiro com a religião dominante vem sendo fortemente criticada, contestada e mesmo enfraquecida nas últimas décadas. Em parte isso se deve ao crescimento e ao fortalecimento de outros grupos religiosos, principalmente as igrejas pentecostais, e pela intensificação de atores laicistas que pleiteiam uma efetiva secularização dos espaços públicos e uma concreta e total laicização do Estado. A multiplicação de demandas pela retirada de imagens religiosas de locais públicos é uma expressão cabal do 290 fortalecimento desses grupos. A imagem pública de um Brasil católico é cada vez mais objeto de questionamentos e críticas. Como esclarece Oro (2011), o pentecostalismo desafia e interpela cada vez mais a hegemonia católica no campo religioso brasileiro e a sua exclusividade na demarcação religiosa da esfera pública. A marcante presença pentecostal na esfera política, midiática, bem como na própria paisagem urbana e em recintos estatais, questiona as próprias bases e fundamentos da cultura católica brasileira. Com fundamento nos discursos e posicionamentos dos diversos personagens imbricados na polêmica examinada ao logo desta tese, é possível estabelecer agora, sinteticamente, uma tipologia da laicidade: a) A laicidade é muitas vezes identificada com a noção de aconfessionalidade de Estado, ou seja, do Estado sem religião oficial. Nesse sentido, a separação formal entre Estado e religião é vista como o elemento central da laicidade. O Estado laico não deveria ser confundido com Estado ateu ou anticlerical. Por consequência, essa separação formal, não impediria a presença da religião no espaço público. Há nesse posicionamento uma valoração positiva do religioso, como uma dimensão fundamental para a construção da identidade individual e coletiva. Vários adjetivos são acionados para qualificar essa laicidade como: “laicidade positiva”, “sã laicidade”, “laicidade de reconhecimento” e “neutralidade benevolente”. Via de regra essa concepção é defendida por aqueles atores que são favoráveis à existência de símbolos religiosos em locais públicos. b) Uma segunda noção relaciona a laicidade com a neutralidade estatal, e, sobretudo, com a imparcialidade do Estado em questões religiosas. Caberia ao Estado uma atitude de isonomia para com todas as crenças religiosas. Sendo assim, exige-se uma clara e nítida separação entre as instâncias estatais e o religioso. Por consequência, afirma-se a necessidade de uma disjunção entre a ordem jurídica, a razão de Estado, e as convicções morais e religiosas. Nesse sentido, os valores e símbolos religiosos devem estar circunscritos à esfera privada. Outrossim, sublinha-se que no Brasil o Estado é apenas formalmente laico, urgindo a construção de um Estado e de uma arena pública realmente laica. Em geral, tal posicionamento é advogado por aqueles atores que são contrários à existência de crucifixos em recintos estatais. 291 c) Uma terceira noção de laicidade é própria daqueles atores que concebem o religioso como um entrave ao progresso social e moral, bem como relacionam os valores religiosos com a irracionalidade e o anacronismo. Trata-se, então, da defesa de uma laicidade de combate e militante, hostil ao religioso, que procura impedir por meio de uma série de regulamentações, procedimentos judiciais e normas, a penetração do religioso no espaço público. Busca-se, assim, a total privatização do religioso. Esse posicionamento é esgrimido, por exemplo, pelo ativista Daniel Sottomaior. d) Há, ainda, atores que defendem o reconhecimento e o acolhimento no interior dos estabelecimentos estatais e de outros espaços públicos da diversidade de crenças religiosas. Parecem partir da noção de uma laicidade plural e inclusiva. Isso também poderia caracterizar o surgimento de um Estado multiconfessional ou pluriconfessional. Para esses personagens o Estado deve abrir-se e garantir a pluralidade de manifestação religiosas, não se cingindo unicamente a promover uma determinada confissão religiosa, mas possibilitando efetivamente que o espaço esteja aberto a todos os agrupamentos religiosos. Dessa maneira, o que se contesta não é a presença da religião no espaço público, mas a ocupação exclusiva e monopolista do espaço público por um único grupo religioso. Evidencia-se, como se pode notar, uma confrontação entre diferentes agentes sociais em torno da mais adequada e correta definição da laicidade. Conforme comenta com propriedade Mariano (2011, p.253): [...] apesar de serem demasiado diversificadas e divergentes as propostas e intervenções visando demarcar, definir e manipular a laicidade estatal, fixar suas fronteiras, atualizar, corrigir e regular sua aplicação pelo Estado, os agentes religiosos e seculares em disputa no Brasil, em geral, alegam respeitá-la e defendê-la. Desse modo, entendo que o conceito de laicidade tem um caráter problemático e ambíguo. Não é um conceito unívoco, estável e autossuficiente. Essa categoria traz dentro de si e implica o próprio conceito de religião; não é possível pensar um sem o outro. Além disso, origina-se historicamente no interior do universo religioso. Dessa maneira, a ambiguidade do conceito de laicidade possibilita que esta categoria possa ser empregada de formas diversas e até mesmo de modo conflitante. De maneira mais geral, pode-se concordar com Burity (2008) acerca da necessidade de “desdramatizar” a presença da religião no espaço público. A entrada de 292 atores e valores religiosos na arena pública não significa necessariamente uma contaminação desse espaço por princípios irracionais, anti-democráticos e anacrônicos. A intervenção de atores religiosos na esfera pública pode significar um fortalecimento e uma dinamização para a ordem democrática. Acerca disso comenta Habermas (2007, p. 157): Enquanto os cidadãos seculares estiverem convencidos de que as tradições religiosas e as comunidades religiosas constituem apenas uma relíquia arcaica de sociedades pré-modernas, mantidas na sociedade atual, eles considerarão a liberdade de religião apenas como uma proteção cultural para espécies naturais em extinção. Na sua visão, a religião não possui mais uma justificação interna. Nesta linha de raciocínio, o próprio princípio da separação entre Igreja e Estado só pode ter o sentido laicista de um indiferentismo preservador. No modo de ler secularista, é possível prever que as visões de mundo religiosas dissolver-se-ão luz da crítica científica e que as comunidades religiosas sucumbirão às pressões de um modernização social e cultural, a qual é cada vez mais intensa. É evidente que não se pode exigir de cidadãos que assumem tal enfoque epistêmico em relação à religião que levem a sério contribuições religiosas para disputas políticas nem que examinem o conteúdo – na perspectiva de uma busca cooperativa da verdade – qual poder ser eventualmente expresso numa linguagem secular e justificado num discurso fundante. Por sua vez, de acordo com Marcel Gauchet (2004), os atores religiosos precisam ser admitidos publicamente como componentes constitutivos da sociedade civil. Nesse sentido, as identidades religiosas devem ser publicamente reconhecidas como parte integrante do conjunto social. Assim sendo, deve ser assegurada aos atores religiosos a liberdade para se manifestar e se posicionar nas deliberações públicas. Ainda segundo este autor, é necessário reconhecê-las enquanto sistemas de sentido, em sua notável capacidade de responder aos problemas existênciais, morais e espirituais. Em suma, as crenças e práticas religiosas são uma incontornável dimensão constitutiva da identidade pessoal e coletiva. Isto não significa um retorno a um quadro históricocultural onde o religioso era o elemento estruturante e englobante da vida social, mas apenas a aceitação da legitimidade do atual protagonismo e visibilidade dos mais diversos grupos religiosos no espaço público.399 Em uma democracia verdadeiramente pluralista e inclusiva as visões de mundo religiosas e seculares, bem como seus porta-vozes devem ter liberdade e legitimidade para participar da arena política e, dessa forma, das grandes discussões públicas. Como 399 Diante do atual cenário de intensa participação de atores religiosos no espaço público das democracias ocidentais, urge conforme Burity (2011, p. 221) uma “reconsideração do juízo excessivamente generalizado do republicanismo sobre o papel corrosivo da identidade religiosa sobre a assertividade e autonomia dos cidadãos e de recusa do projeto secularista de higienização ou imunização do espaço público de qualquer presença religiosa.” 293 explicita Chantal Mouffe (2005), o que caracteriza o político é justamente o confronto e o conflito entre posicionamentos e ideias. Nesse sentido, o que se intenciona em uma democracia agonística, marcada pelo embate entre múltiplas visões de mundo, não é relegar ou eliminar as paixões, crenças e valores religiosos para a esfera privada, com a finalidade de estabelecer um suposto consenso racional na esfera pública. Visa-se, antes, mobilizar essas paixões para fins democráticos. Em realidade, o confronto agonístico é a condição de possibilidade e a força vital de uma democracia madura. São as crenças, os valores e as paixões, sejam religiosas ou seculares, que levam os indivíduos a participar ativamente na política. Enfatizo assim a necessidade do dissenso, que possibilita que outros sentidos, verdadeiramente diferentes, diversos e alternativos, sejam colocados em jogo e em discussão nos foros democráticos. O diálogo sincero e a confrontação real de argumentos e opiniões se dão a partir das identidades particulares e não do ocultamento e silenciamento das mesmas. Como é possível deliberar e realizar escolhas e decisões políticas em uma comunidade deixando de lados as crenças e as paixões particulares? É positivo e viável que os atores políticos deixem em casa, e de preferência no espaço mais recôndito de suas consciências, suas particularidades religiosas, étnicas e de gênero? Conforme determinada perspectiva secularista, as paixões, os valores e as crenças religiosas são forças disruptivas, provocadoras de divisões e fissuras quando presentes na esfera pública, devendo assim ser alocadas no foro íntimo. No entanto, tal posicionamento tende a enfraquecer e desestimular a vida pública, pois, ao acantonar as crenças e os valores morais, ideológicos e religiosos na esfera privada, e ao percebê-los como sem importância para os grandes debates públicos, empobrecemos a própria discussão política e cívica, além de desencorajar os atores sociais a intervir e participar com denodo da arena política, pois é a defesa desses princípios e crenças que o animam a adentrar e tomar parte das discussões políticas. É na comparação e na confrontação de perspectivas e visões de mundo, seculares e religiosas, que se constrói uma arena pública concretamente diversa e pluralista. Além disso, a abertura do espaço público para a multiplicidade de posturas e concepções de mundo coloca à disposição dos cidadãos de uma comunidade uma real possibilidade de escolha entre múltiplas alternativas, oportunizando, assim, a que os atores religiosos e seculares partilhem, discutam e justifiquem seus posicionamentos publicamente, e não apenas no restrito âmbito do lar ou dos templos. Contudo, há que se estar atento se a participação dos 294 atores religiosos na esfera pública, e também de outros atores sociais, está de acordo e obedece às regras do jogo democrático e da ordem constitucional estabelecida. Por seu turno, a existência de um Estado laico não é de per si condição para a democracia. O secularismo e/ou laicismo, como formas radicais de laicização, podem conduzir ao surgimento de religiões políticas com feições autoritárias e, até mesmo, totalitárias. No caso histórico do comunismo soviético e do socialismo maoísta, para ficar só em dois exemplos, não só foram erigidos Estados oficialmente ateus como ocorreu uma deliberada hostilidade para com as religiões tradicionais, mais especificamente, com o cristianismo e o judaísmo na União Soviética e com o budismo tibetano, o taoísmo e outras religiões minoritárias na China comunista. Finalmente, como foi comentado neste trabalho, o próprio Estado laico, de teor liberal e republicano, não parte de uma neutralidade axiológica. Este defende determinados valores éticos e políticos, como a liberdade individual, a igualdade de todos perante a lei e os direitos humanos. Malgrado a pretensa indiferença e a imparcialidade dos chamados Estados laicos no que se refere a questões religiosas e morais, não há como desvinculá-los de uma particular doutrina compreensiva400, sob pena de despolitilizá-los por completo e, assim, reduzi-los á função de meros gestores ou administradores. Querendo ou não, implícita ou explicitamente, qualquer Estado moderno expressa e representa um conjunto de princípios vistos como fundamentais. Destarte, mesmo os Estados laicos não são somente os guardiões de uma dada ordem jurídica, mas portadores de uma ideia-força que justifica e legitima o próprio ordenamento legal e constitucional. Em geral, mesmo os Estados liberais, seculares, tendem a intervir nas mais diversas esferas da vida social e, até mesmo, no âmbito do espaço privado. Assim, por meio de mecanismos e procedimentos legais, jurídicos e administrativos, procuram controlar e regular o religioso. Além disso, sob determinado aspecto o recuo e o enfraquecimento da moral religiosa tradicional como elemento de controle e regulação social, foi substituído pelo Estado moderno e o aparato jurídicolegal que busca ordenar a vida social por meio de um amplo conjunto de regras e leis positivas. 400 Essa expressão é utilizada no sentido empregado por John Rawls (2000). 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