DOI: https://doi.org/10.47456/en.v14i2.43694
ESTUDOS NIETZSCHE
VOL. 14 - N. 02
ISSN 2179 - 3441
Nietzsche e Foucault: sobre o problema da verdade cínica1
Nietzsche and Foucault: on the problem of cynical truth
Clademir Luís Araldi
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo.
Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas
Pelotas, RS, Brasil.
Contato: clademir.araldi@gmail.com
Resumo:
Investigaremos neste artigo a retomada do cinismo antigo por Foucault e por Nietzsche, a partir do
problema da verdade. Foucault valoriza sobretudo a parresía, a coragem da verdade dos cínicos, ao mostrar
a relação forte entre o estilo de existência e a manifestação da verdade. Questionamos a superestimação de
Foucault da manifestação da verdade nos cínicos, pois no modo escandaloso de vida dos cínicos não são
desveladas verdades propriamente. Nesse sentido, a compreensão dos cínicos por Nietzsche nos ajuda a
problematizar a verdade cínica, à medida que questionamos se a arte do desmascaramento dos cínicos
opera no terreno do niilismo, da desvalorização da verdade e dos valores tradicionais.
Palavras-chave: Parresía. Verdade. Cinismo. Coragem. Niilismo.
Abstract:
In this article we will investigate Foucault's and Nietzsche’s return to ancient cynicism, starting from the
problem of truth. Foucault values above all the parresía, the courage of truth of the cynics, by showing the
strong relationship between the style of existence and the manifestation of truth. We question Foucault’s
overestimation of the manifestation of truth in the Cynics, because in the Cynics’ scandalous way of life,
truths are not properly revealed. In this sense, Nietzsche’s understanding of the cynics helps us to
problematize cynical truth, as we question whether the cynics’ art of unmasking operates on the terrain of
nihilism, the devaluation of truth and traditional values.
Keywords: Parresía. Truth. Cynicism. Courage. Nihilism.
Este artigo foi possível graças ao apoio do CNPq. Desenvolvi aspectos da retomada do cinismo antigo por
Foucault e por Nietzsche no livro publicado Nietzsche, Foucault e a arte de viver (Pelotas: Ed. UFPel/NEPFIL,
2020), que foram utilizados para este artigo.
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Foucault se dedicou nos últimos cursos ministrados no Collège de France a
retomar o cinismo antigo2, principalmente no último curso, A coragem da verdade (O
governo de si e dos outros, II), de 1984. Entretanto, ele é muito contencioso ao tratar das
manifestações do cinismo ao longo da história ocidental e em seu tempo. Na aula de 29
de fevereiro de 1984, Foucault analisa algumas hipóteses acerca da posteridade do
cinismo, de modo despretensioso, na forma de um excurso:
O que vou lhes propor agora não é nada mais que um passeio, um excurso, uma
errância. Imaginem que pudéssemos trabalhar em grupo ou que quiséssemos
escrever um livro sobre o cinismo como categoria moral na cultura ocidental; o
que faríamos? Eu teria de projetar previamente um estudo como este e diria mais
ou menos o seguinte... Da próxima vez voltaremos ao cinismo histórico (o da
Antiguidade), mas me deu vontade agora, um tanto excitado com o cinismo no
decorrer destas últimas semanas, de propor o seguinte a vocês. (FOUCAULT,
2014, p. 155.)
O que Foucault propõe, como um projeto possível, é “uma história do cinismo da
Antiguidade até nós”. Reforçando que se trata de um movimento que já era marginal na
filosofia antiga, o cinismo já possuía traços negativos, com práticas desprezadas, mas
possuía também um núcleo positivo que merece ser salvo. Esse núcleo positivo estaria
no modo de existência dos cínicos, implicado na coragem da verdade. Do mesmo modo
que o estoicismo e o epicurismo, o cinismo foi transmitido – desde a Antiguidade até
nosso tempo – não tanto como doutrina, mas “essencialmente como uma atitude, uma
maneira de ser” (FOUCAULT, 2014, p. 156). Até 1984 havia poucos trabalhos
consagrados à análise da longa história do cinismo. Entretanto algumas pesquisas
relevantes nas últimas décadas, como as de P. Tillich (1953), de K. Heinrich (1966), de
A. Gehlen (1969) e de P. Sloterdijk (1983) mereceriam ser consideradas3. Segundo esses
autores haveria uma descontinuidade marcante entre o cinismo antigo (visto de modo
positivo) e o cinismo moderno (de valor negativo). Foucault quer mostrar que houve
uma história contínua do cinismo, ao longo da qual os diferentes estilos de existência
marcaram a persistência de um movimento na cultura europeia, que poderíamos
Acerca das reflexões de Foucault sobre a parresía e o cinismo anteriores ao curso de 1984, cf. CHAVES,
2013, p. 21-25.
3
Ernani Chaves destaca, além dos modos como Foucault se apropriou das obras desses quatro autores, a
importância do livro de H. Niehues-Pröbsting (1979), Der Kynismus des Diogenes und der Begri der
Zynismus. Foucault menciona esse livro somente na aula seguinte, de 7 de março de 1984, como um “livro
muito mais interessante, muito mais documento” do que os de Gehlen, Heinrich e Tillich. Segundo Chaves,
Foucault valoriza nesse livro de Niehues-Pröbsting principalmente três aspectos: 1) de que haveria já no
cinismo antigo uma valoração positiva e uma negativa do cinismo; 2) as críticas às interpretações de
Tillich e de Heinrich, e 3) a reconstrução do confronto de Nietzsche com o cinismo, em que Nietzsche é
denominado “neo-cínico” (Cf. CHAVES, 2013, p. 62-64).
2
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chamar de o cinismo. Outro ponto de divergência é a ênfase no individualismo. Foucault
não nega que o cinismo valorizou a existência em sua “extrema singularidade”,
enquanto afirmação do individualismo e da existência natural e animal. Não se pode
perder de vista, contudo, o que seria o cerne do cinismo: o vínculo das formas de vida
com a manifestação da verdade.
A forma de existência como escândalo vivo da verdade, é isso, me parece, que
está no cerne do cinismo, pelo menos tanto quanto o tal individualismo que se
tem o costume de encontrar com tanta frequência a propósito de tudo e de
qualquer coisa. (FOUCAULT, 2014, p. 158)
Apesar de não tratar diretamente da parresía na segunda hora da aula (29 de
fevereiro de 1984), na primeira hora Foucault já havia afirmado que a parresía é a
característica mais destacada do cínico. Por isso, é preciso uma breve reconstrução de
como Foucault considera Diógenes o modelo da parresía cínica, a partir de Sócrates.
Sócrates, Diógenes e a parresía cínica
Ao se esforçar por reconstruir a “história da filosofia como movimento da
parresía”, Foucault (2010, p. 318) precisou marcar bem o contexto de surgimento da
parresía na filosofia, por meio de Sócrates. Sendo uma noção bastante usada na vida
cultural, política e filosófica da Grécia, a parresía assume nos séculos V e IV a. C. uma
série de formas, que sofreram deslocamentos e transformações, até atingirem uma
configuração filosófica com Sócrates4.
É a filosofia que concentra o “essencial da prática parresiástica” (FOUCAULT,
2010, p. 308). Não é qualquer filosofia, mas é um certo modo de filosofar, enquanto
“livre coragem de dizer a verdade”. Firmando-se com Sócrates, o exercício da parresía
foi desenvolvido em formas ainda mais radicais pelos cínicos. É justamente esse outro
modo de construir a história da filosofia como um movimento corajoso do
dizer-a-verdade, que constituirá a linha histórica e temática que Foucault chama de
“estética da existência”. As duas correntes principais dessa peculiar história da
filosofia estariam enraizadas em Platão, constituindo duas formas de cuidado de si.
4
No curso O governo de si e dos outros (1982-1983), Foucault analisou detidamente as formas de exercício
da parresía política, na democracia ateniense (em Péricles, Sólon, Políbio e Eurípides, entre outros), no
tempo de Sócrates, em que a democracia passa por uma série de crises, no período helenístico - até o
período Imperial romano (Cf. FOUCAULT, 2010, especialmente as aulas de 12, 19 e 26 de janeiro, e as aulas
de 2 e 9 de fevereiro de 1983).
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No diálogo Alcibíades, Platão inauguraria a “metafísica da alma” (FOUCAULT,
2014, p. 137), segundo a qual o cuidado de si se concentra no cuidado da psyché. O
conhecimento de si e a prática das virtudes estariam voltados para a cura e para a
purificação da alma, a saber, das paixões sensíveis e violentas que ameaçam a saúde da
alma. Nessa metafísica dualista, a alma é vista como a parte incorruptível, que é preciso
cuidar, sendo superior ao corpo e aos sentidos. Nesse aspecto, tanto Nietzsche quanto
Foucault buscarão nos cínicos elementos da prática filosófica para se contraporem a
essa metafísica da alma.
No diálogo Laques, contudo, Platão introduziria um novo movimento para a
filosofia, que Foucault chama de “estética da existência”. É uma forma diferente de
cuidado de si, pois não se trata de purificar a alma, mas de cuidar da vida (bíos) em sua
concretude no corpo, e na integração entre os aspectos somáticos e psíquicos na forma
individual de vida. Teríamos nesse diálogo os elementos para a constituição do
indivíduo como bíos, como modo de vida (FOUCAULT, 2014, p. 137-140). Essa
preocupação e cuidado para consigo mesmo assume, segundo Foucault, a forma de
uma parresía ética, que resultou numa forma marcante em Sócrates. Nessa genealogia
das práticas de si, a filosofia é considerada principalmente como uma prática, e não
como elaboração teórica e discursiva de cunho ontológico e epistemológico. No Laques,
Foucault enfatiza aspectos desprezados pela tradição filosófica. Ao abordar o tema da
coragem, importa ressaltar em Sócrates que o modo de vida (bíos) é o objeto do cuidado
de si, e não tanto a terapia da alma. A coragem para a verdade de Sócrates faria dele um
“técnico do cuidado”, um mestre qualificado para ensinar os jovens a cuidarem de si
mesmos e de seus modos de vida (FOUCAULT, 2014, p. 111-112).
A parresía socrática, portanto, tem um cunho ético. Sócrates não é o defensor de
um individualismo inconsequente, pois o cuidado de si está relacionado com os deuses,
com a verdade e com os outros. E Sócrates tinha a convicção de possuir uma missão
divina: de cuidar dos outros. Por isso, ele protegia e cuidava de si mesmo, em prol dos
interesses da pólis. Esse foi o motivo pelo qual Sócrates não participaria das
assembleias e discussões políticas: pois ele seria logo banido e condenado, por dizer a
verdade aos seus concidadãos. Não foi por covardia que ele não exerceu a parresía
política, pois Sócrates preferiu, enfim, a morte, a ter de renunciar a seu modo de vida e
de pensamento. Foucault ressalta bastante esse aspecto: as provas e os exercícios de
Sócrates perfaziam o “jogo da verdade”, ou seja, eram formas de proteger o “discurso
verdadeiro”, para o bem da cidade, para o “governo de si e dos outros” (FOUCAULT,
2014, p. 78 e 253).
A parresía ética de Sócrates está, portanto, intimamente relacionada ao cuidado
de si, ao modo de vida. De modo semelhante a uma sinfonia, a vida (bíos) tem de estar
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em consonância com o discurso. Sócrates foi o modelo exemplar dessa coerência, pois
seu estilo de vida se harmonizava com sua fala franca:
E o modo de vida aparece como o correlativo essencial, fundamental, da prática
do dizer-a-verdade. Dizer a verdade na ordem do cuidado dos homens é
questionar o modo de vida deles, é procurar pôr à prova esse modo de vida e
definir o que pode ser validado e reconhecido como bom e o que deve, ao
contrário, ser rejeitado e condenado nesse modo de vida. É nisso que vocês veem
se organizar essa cadeia fundamental que é a do cuidado, da parresía (da fala
franca) e da divisão ética entre o bem e o mal na ordem do bíos (da existência).
(FOUCAULT, 2014, p. 130)
Essa inflexão de Sócrates no interior da prática da parresía teve importantes
desdobramentos na história da filosofia. Se a própria história da filosofia pode ser vista
como uma prática determinada do dizer-a-verdade, os cínicos merecerão a atenção de
Foucault, pois neles se manifesta com mais veemência e escândalo a coragem da
verdade. É justamente no modo de retomar os cínicos que encontraremos semelhanças
e diferenças marcantes entre Foucault e Nietzsche. Questionaremos, nesse sentido, se a
parresía de Diógenes ainda possui um cunho ético.
Assim como Sócrates, também Diógenes acreditaria que sua missão filosófica
havia sido atribuída por um deus. Com isso, Foucault não trata Diógenes como um ateu
proeminente no mundo antigo. Ao retomar um texto de Epiteto (Conversações, III, 22), o
pensador francês ressalta que (nesse texto) a vida cínica não seria uma opção que se
faria por si mesmo, mas seria confiada por um deus. A radicalidade da “militância” na
vida filosófica dos cínicos, com seus escândalos, humilhações e excentricidades, era
uma missão recebida de deus. Por isso, ela devia ser exercida no sentido do franco falar,
da prática da parresía.
A vida cínica, [tal como] apresentada aqui por Epiteto, transforma essa ideia da
filosofia como pura opção, em oposição às missões e encargos recebidos. Epiteto
não descreve o kynízein (o fato de ser cínico, de levar a vida cínica) como uma
opção que você faria por si mesmo, ao contrário. Falando dessas pessoas que se
põem a levar uma vida cínica (usando um manto grosseiro, dormindo no chão),
ele diz que todas essas opções de existência, essas práticas voluntárias que elas
impõem a si mesmas, não podem constituir o verdadeiro kynízein (a prática
cínica). (FOUCAULT, 2014, p. 258)
Entretanto, mesmo que a missão de Diógenes tenha sido confiada por um deus,
não se pode negar que ele próprio tenha tomado a decisão radical de assumir essa
forma escandalosa de vida, como testemunho da verdade. Ou seja, o cinismo de
Diógenes é uma “certa forma de parresía”, de inspiração socrática, ligada intimamente
a um modo de vida, que ele escolheu e cultivou. É por testemunhar a verdade em seu
próprio estilo de vida militante, agressivo e despojado, que Diógenes se tornou a
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Nietzsche e Foucault: sobre o problema da verdade cínica
encarnação da vida cínica. Nesse sentido, fica evidente que Diógenes e o movimento
cínico em geral não se referem a formas lógicas e epistemológicas de verdade5. Mas,
fica a pergunta: estava Diógenes qualificado para dizer a verdade e para anunciar a
“verdadeira vida”? Foucault entende que sim, à medida que o Cínico propunha mudar o
valor da moeda. Essa seria uma tarefa muito cara também a Nietzsche, qual seja, a de
transvalorar os valores, de mudar a relação que temos com as normas e leis. Os cínicos
foram combatentes, assumiram sua missão como um combate a ser travado em todos
os dias, para criticar as leis e costumes vigentes e, com isso, propiciar a mudança dos
valores (Cf. FOUCAULT, 2014, p. 200 ss). Mas poderíamos, antes disso, questionar se
Diógenes propriamente se propunha a testemunhar a verdade. Entendo que “mudar o
valor” da moeda não tem relação com a coragem da verdade, mas é mais uma
falsificação, um desprezo pelas leis e convenções (até para tirar proveito delas) do que
uma mudança de valores, no sentido da transvaloração proposta por Nietzsche. A
moeda falsificada6 não teve mais valor depois da descoberta da falsificação, quando
Diógenes (ou seu pai) foram expulsos de Sinope. Nessa prática de falsificação não
encontramos a verdadeira vida cínica. Foucault não questiona esses aspectos, mas
certamente Nietzsche desprezaria a missão do cínico, se ela tivesse sido atribuída por
um deus.
Foucault ressalta o caráter singular da militância cínica. Os cínicos assumem sua
missão como um combate polêmico e belicoso contra tudo o que tem valor e poder no
mundo. O “confronto” de Diógenes com Alexandre, o Grande, e com seu pai, Filipe da
Macedônia, ilustram bem essa coragem combativa (FOUCAULT, 2010, p. 260). Com
isso, Foucault ressalta que no cinismo a parresía está ligada ao dizer-a-verdade na
prática política. O pensador francês oscila, no entanto, em relação às tarefas políticas
do filósofo. Por um lado, a militância cínica, a coragem para dizer a verdade na e sobre a
política é importante para Foucault, principalmente no modo como foi retomada no
militantismo revolucionário do séc. XIX, de modo mais combativo pelos anarquistas.
Por outro lado, ele parece mais preocupado em concentrar as tarefas da filosofia na
É nesse sentido que Ernani Chaves delimita a verdade cínica: “Não se trata, portanto, do estabelecimento
claro e distinto, como nas análises da ‘estrutura epistemológica’, do que é verdadeiro ou falso, do que é
senso comum e ciência, do que é passado ‘ultrapassado’ e passado ‘atualizado’, conforme Bachelard”.
(CHAVES, 2013, p. 48s.)
6
No contexto da discussão com K. Heinrich, Ernani Chaves enfatiza um aspecto gramatical importante, em
alemão, na relação “entre ‘falsificar’, ‘falsificação’ (umprägen, Umprägung) e ‘transvalorar’,
‘transvaloração’ (umwerten, Umwertung), qual seja, o prefixo ‘um’, que indica, grosso modo, uma radical
mudança na natureza de um objeto, de uma coisa ou ainda de um valor” (CHAVES, 2013, p. 54). Para
Chaves, desse modo, o que une Nietzsche aos cínicos antigos é a falsificação de verdades concebidas pela
tradição. Entretanto, considero que esse elo “necessário” entre verdade e erro (ilusão) afasta Nietzsche
dos cínicos antigos, pois no contexto do niilismo moderno, a desvalorização da verdade como uma espécie
de erro, necessário para a vida, ocorre num horizonte de desvalorização dos valores, à diferença de
Diógenes, o Cínico, com seu modo de vida que se bastava com um mínimo de “verdade”.
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parresía ética, distanciando-se da prática política. É o que ele chama de “exterioridade
rebelde da filosofia em relação à política” (FOUCAULT, 2010, p. 321). O mau
funcionamento da parresía democrática, em outras palavras, as desilusões em relação à
política, na Antiguidade e no século de Foucault, propiciariam a emancipação da
parresía ética.
O cinismo, esse movimento marginal da filosofia antiga, desenvolveria o núcleo
mais importante dessa estética da existência, na forma de uma ética do cuidado, da
provocação e do escândalo. Nesse sentido, “a parresía de Diógenes está em seu próprio
modo de vida, e também em seu discurso de insulto” (FOUCAULT, 2010, p. 260). Essa
prática da parresía seria essencial para a vida filosófica, não só nos Antigos, mas
também para os Modernos: “A filosofia como ascese, como constituição do sujeito por
si mesmo, é talvez o que, no ser moderno da filosofia, retoma o ser da filosofia antiga”
(FOUCAULT, 2010, p. 321). Nesse sentido, Foucault tende a divergir de Epiteto, à medida
que ressalta ser a vida cínica uma opção por um modo de vida filosófico, que comporta
renúncias voluntárias (FOUCAULT, 2010, p. 311) e a decisão por configurar a
“verdadeira vida”, um modo de vida como manifestação da verdade.
Por isso, Foucault valoriza a “reversão cínica da verdadeira vida” (FOUCAULT,
2014, p. 237). A parresía dos cínicos ocorreu como “manifestação escandalosa” da vida
outra. É essa transformação da vida na coragem da verdade em “vida outra”, na
imanência desse mundo, que constitui o cerne da vida filosófica cínica:
Vida nua, vida mendicante, vida bestial, ou ainda vida de impudor, vida de
despojamento e vida de animalidade: é isso tudo que surge com os cínicos, nos
limites da filosofia antiga [...]. O cinismo aparece em suma como o ponto de
convergência de alguns temas totalmente correntes, e, ao mesmo tempo, essa
figura da vida outra, da vida desavergonhada, da vida de desonra, da vida de
animalidade, é também o que, para a filosofia antiga, para o pensamento antigo,
a ética e a cultura antiga inteira, também é o mais difícil de aceitar. (FOUCAULT,
2014, p. 238)
O paradoxo da vida cínica, segundo Foucault, consiste justamente nisso: para
consumar a verdadeira vida é preciso dar conta da dura exigência ética ao sujeito, a
saber, de transformar sua vida numa vida “radicalmente outra”. Mas essa
transformação seria a promessa de um novo prazer, do gozo de estar em posse de si
mesmo. O tema da vida soberana é retomado pelos estoicos, principalmente por Sêneca
(De brevitate vitae), nos esforços de “ter posse de si mesmo”, de “se possuir, ter a si
mesmo”, de “ser seu, tornar-se seu”. O prazer nessa relação consigo mesmo consiste
numa forma específica de autossuficiência, na qual o gozo e a posse de si mesmo
dependem da atitude corajosa do indivíduo. Pois a vida (bíos), a individualidade do
modo de existir, é o material que o cínico possui para moldar. É uma atitude corajosa
em relação a si mesmo, que se abre também à relação com os outros, por meio da
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Nietzsche e Foucault: sobre o problema da verdade cínica
disposição de cuidar, ajudar e socorrer os outros, no caso, o amigo ou o aluno.
(FOUCAULT, 2014, p. 239). Mas Foucault está falando ali da coragem da verdade dos
estoicos, que se depreende da prática das virtudes e do domínio de si. A vida totalmente
outra dos cínicos, na pura animalidade, não comporta virtudes e valores morais
compartilhados; o desprezo de todas as convenções sociais é também um
despojamento de si mesmo, um afastamento da valoração de si na prática da virtude e
na afirmação de valores legitimados socialmente. No caso extremo de Diógenes, o Cão,
são poucas as técnicas que o cínico possui para moldar a si mesmo, se a coragem da
verdade se restringe à “vida de despojamento e de animalidade”.
À diferença de Nietzsche, que acaba por relativizar a importância das
experiências éticas antigas, Foucault possui uma relação mais positiva com uma
vertente da ética antiga, ao menos, com a que ele chama de “estética da existência”. É
nesse sentido que afirma Paul Veyne: “Foucault, para quem o passado era o cemitério
das verdades, não concluiu amargamente com a vanidade de todas as coisas, mas com a
positividade do devir [...]” (VEYNE, 2008, p. 66)7. Assim, Foucault escava no
“cemitério” do passado, retornando da ética da Antiguidade com preocupações
distintas das de Nietzsche. A investigação da posteridade do cinismo na cultura
ocidental, contudo, aproxima-o de Nietzsche, no sentido da construção de novas
formas de vida de cunho ético-estético.
As três formas principais de manifestação do cinismo na história da Europa
Até o início da era cristã o núcleo positivo (forma de vida) do cinismo foi
valorizado pelos estoicos, como vimos, e até por alguns cristãos. De modo que Foucault
(2014, p. 159) ressalta que até o séc. V, Agostinho ainda considerava possível
compatibilizar a vida cristã com o modo de vida cínico. Mas é a partir da Europa cristã
medieval que ele tratará da posteridade do cinismo:
Pois bem, se aceitássemos [...] enfocar a longa história do cinismo a partir desse
tema da vida como escândalo da verdade, ou do estilo de vida, da forma de vida
como lugar de emergência da verdade (o bíos como aleturgia8), me parece que,
Ao adotar o modelo cínico como forma privilegiada de retorno a si, como problematização da relação do
sujeito com a verdade – no espaço aberto pelo cuidado de si –, Foucault precisa deixar de fora os céticos,
pois estes se oporiam à construção de modos de subjetivação dos discursos verdadeiros, que seriam
necessários para as práticas de liberdade e para as lutas de resistência.
8
Ernani Chaves defende que, com a compreensão de verdade como aleturgia, Foucault não possui uma
compreensão epistemológica da verdade, muito menos no sentido ontológico de Heidegger, como aletheia
ou desvelamento do Ser: “A análise das ‘formas aletúrgicas’, já dizia Foucault na 1ª aula deste curso, de 01
de fevereiro de 1984, se opõe às análises da ‘estrutura epistemológica’, uma vez que se dirige ao conjunto
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nesse caso, poderíamos fazer aparecer algumas coisas e seguir algumas pistas.
Veríamos pelo menos três fatores, três elementos que puderam, na longa
história da Europa, transmitir, sob formas mais uma vez diversas, o esquema
cínico, o modo cínico de existência na Antiguidade cristã, primeiro, e no mundo
moderno. (FOUCAULT, 2014, p. 158)
O primeiro fator de transmissão do modo cínico de ser ocorreu nas práticas de
ascetismo institucionalizadas na Europa cristã. Essa transmissão ocorreu desde os
primeiros séculos de nossa era, com os mártires cristãos (Peregrino é um exemplo),
passando pelo século de Santo Agostinho, com o movimento monacal, até os
numerosos movimentos espirituais da Idade Média, com destaque para as ordens
mendicantes a partir do século XI. Os franciscanos e dominicanos seriam encarnações
mais radicais do cinismo, por serem modos de vida de um despojamento completo,
como escândalo da verdade.9
O cinismo teve um segundo fator de transmissão nos movimentos
revolucionários do século XIX. Passamos das práticas religiosas às práticas políticas,
mantendo o traço básico do cinismo, como “forma de vida no escândalo da verdade”.
Foucault reconhece que muitos movimentos revolucionários “tomaram muitos
empréstimos das diferentes formas, ortodoxas ou não, da espiritualidade cristã”
(FOUCAULT, 2014, p.161).10 A tese de Foucault é que os projetos revolucionários da
Europa moderna, mais do que projetos políticos, foram principalmente formas de vida.
Foram três formas de vida através das quais se manifestou a atividade revolucionária:
1) a vida revolucionária em sociedades secretas, concentradas mais no início do século
XIX, e perseguindo metas milenaristas; 2) O militantismo das organizações sindicais e
dos partidos políticos, com projetos revolucionários (no último terço do século XIX), e
3) O militantismo “como testemunho de vida, na forma de um estilo de existência”.
Embora essa forma de vida seja bastante valorizada por Foucault, por desenvolver o
tema da verdadeira vida e por romper com os valores e convenções sociais, ela é pouco
desenvolvida. A vida revolucionária como testemunho e escândalo da verdade aparece
mais em movimentos da segunda metade do século XIX, como o niilismo russo, o
anarquismo europeu e americano, o terrorismo11, e em autores como Dostoievski. No
século XX, o estilo de vida revolucionário e escandaloso teve algumas manifestações no
de procedimentos que tornam possível a manifestação da verdade: ‘Aleturgia’ diz respeito, portanto, aos
procedimentos, aos rituais, que estão em jogo na produção da verdade, e não ao ‘desvelamento do Ser’”.
(CHAVES, 2013, p. 48)
9
Essas práticas vivas e intensas se manifestaram ao longo de toda a história do cristianismo, segundo
Foucault, inclusive no tempo da Reforma Protestante e da Contrarreforma (Cf. FOUCAULT, 2014, p. 160).
10
Foucault cita a obra de Norman Cohn, Les fanatiques de l’Apocalypse (Paris: Julliard, 1962. A edição
original é de 1957: The pursuit of the Millenium: Revolutionary Millenarians and Mystical Anarchists of the
Middle Ages. Londres: Oxford University Press). Nessa obra, Cohn defende a tese de que movimentos sociais
e políticos revolucionários dos séculos XV a XIX, inclusive o próprio marxismo, foram influenciados por
formas heterodoxas de ascese e práticas cristãs, principalmente dos séculos XII e XIV.
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Dificilmente um pensador defenderia hoje, a partir das experiências do primeiro quartel do século XXI,
que o terrorismo é “testemunho e escândalo da verdade”.
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Nietzsche e Foucault: sobre o problema da verdade cínica
esquerdismo (por exemplo, o Partido Socialista e o Partido Comunista na França), mas
se enfraqueceu por se enrijecer em estruturas e formas de conduta tradicionais:
Na situação atual, todas as formas, todos os estilos de vida que poderiam ter o
valor de uma manifestação escandalosa de uma verdade foram banidos, mas o
tema do estilo de vida continua sendo, apesar de tudo, absolutamente
importante no militantismo do Partido Comunista Francês, na forma da
injunção, de certo modo revertida, de ter de retomar e valorizar, em seu estilo de
vida, obstinada e visivelmente, todos os valores recebidos, todos os
comportamentos mais habituais e os esquemas de conduta mais tradicionais
(FOUCAULT, 2014, p.163).
O cinismo enquanto prática revolucionária no escândalo da verdade se opõe à
submissão dos indivíduos aos partidos “revolucionários”. A conclusão de Foucault em
relação à prática política é um tanto desanimadora, pois as formas de vida cínica foram
banidas da política. Se Foucault ainda estivesse vivo depois da queda do Muro de
Berlim, suas conclusões seriam ainda mais desanimadoras para o projeto de reavivar o
cinismo na política. É um tema que ele não desenvolve, pois se despede das práticas
políticas modernas para abordar a “vida artista”.
O modo de vida cínico pode ser encontrado também na arte, afirma Foucault. E
de uma forma muito especial. Se a arte de viver cínica constituiu uma trama histórica
complexa na religião e na política, não é diferente com a arte, pois
[...] houve na Antiguidade uma arte e uma literatura cínicas. A sátira, a comédia
foram frequentemente atravessadas por temas cínicos e, melhor ainda, elas até
certo ponto constituíram um lugar privilegiado de expressão para os temas
cínicos. Na Europa medieval e cristã, haveria sem dúvida a considerar todo um
aspecto da literatura como sendo uma espécie de arte cínica. Os fabliaux
pertenceriam sem dúvida a ela, assim como toda essa literatura que Bakhtin
estudou, referindo-a sobretudo à festa e ao carnaval, mas que, também penso,
pertence certamente a essa manifestação da vida cínica: o problema das relações
entre a festa e a vida cínica (a vida no estado nu, a vida violenta, a vida que
escandalosamente manifesta a verdade). Haveria uma intersecção com muitos
temas sobre o carnaval e a prática carnavalesca. (FOUCAULT, 2014, p. 163s.)
Por mais sugestiva que seja a vinculação do modo de vida cínico com a arte e com
o carnaval, consideramos pouco promissor ver no carnaval uma forma de manifestação
escandalosa da “verdade”. A provocação e o escândalo, por si mesmos, não implicam a
manifestações de verdades, pois poderiam expressar também ilusões e enganos. Assim,
a reconstrução foucaultiana das manifestações da vida cínica na arte antiga e medieval
é tendenciosa, pois projeta retrospectivamente no passado uma forma de manifestação
de verdade que não é o traço principal dessas artes.
Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
Clademir Luís Araldi
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Mais promissora é a aproximação feita por Foucault do cinismo com a arte
moderna. Concordamos com ele, no sentido de que a arte moderna foi um “veículo”
muito importante do modo de ser cínico, no modo como articulou o estilo de vida com a
manifestação da verdade, por meio do escândalo e da afronta.
A “vida artista” (vie artiste) constituiu algo “totalmente singular”, desde o final
do século XVIII. Essa convicção de que o artista tem de ter uma vida singular,
furtando-se completamente das normas ordinárias e convenções sociais, é uma
construção do Romantismo. É um tema que Foucault não desenvolve, pois analisa
outras fontes. Entretanto, foram os Românticos (alemães, principalmente) do final do
século XVIII e do início do século XIX, que criaram uma nova forma de vida artística, na
perspectiva de uma estetização total da existência e do mundo. Os irmãos Schlegel,
Novalis, E.T.A. Ho mann e Lord Byron são nomes representativos desse movimento
romântico. E os românticos foram também os que consolidaram a boemia como traço
importante nesse modo singular de vida artístico.
Em que consiste propriamente a vida de artista no século XIX? Foucault aponta
dois princípios básicos:
Primeiro, a arte é capaz de dar à existência uma forma em ruptura com toda
outra, uma forma que é a da verdadeira vida. E, depois, outro princípio: se ela
tem a forma da verdadeira vida, a vida, em contrapartida, é a caução de que toda
obra, que se enraíza nela e a partir dela, pertence à dinastia e ao domínio da arte.
Creio que essa ideia da vida de artista como condição da obra de arte [...] é uma
maneira de retomar, sob uma outra luz [...] esse princípio cínico da vida como
manifestação de ruptura escandalosa, pela qual a verdade vem à tona, se
manifesta e toma corpo. (FOUCAULT, 2014, p. 164)
É muito promissora essa retomada do modo de vida cínico a partir da arte
moderna. O modo de vida do artista moderno é condição para sua obra de arte: a
“ruptura escandalosa” aparece tanto em seu modo de vida quanto em sua arte. Além
disso, Foucault vê nas artes modernas (pintura, música, literatura) um outro elo forte
com o cinismo: a arte moderna visa a um desnudamento e desmascaramento da
realidade, um movimento de “redução ao elementar da existência”. É nesse ponto que
Foucault destaca três artistas, literatos e poetas do século XIX: Baudelaire, Flaubert e
Manet. Esses três autores foram magistrais na arte de expressar aquilo que estava
soterrado na cultura europeia. O grande escândalo que as obras desses autores
causaram se deve ao seu antiplatonismo (não mais imitar o real), que se insurge como
arte: “a arte como lugar de irrupção do elementar, desnudamento da experiência”
(FOUCAULT, 2014, p. 165).
Esse tipo singular de artista moderno do século XIX se recusa a seguir as
convenções sociais e os padrões estéticos tradicionais. Com o antiaristotelismo da arte
moderna (a rejeição das formas adquiridas), chegamos a um movimento de anticultura.
Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
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Nietzsche e Foucault: sobre o problema da verdade cínica
É uma forma moderna de parresía, de coragem de verdade, a saber, a coragem do artista
de expressar verdades “bárbaras”: “A arte moderna é o cinismo na cultura, é o cinismo
da cultura voltada contra ela mesma” (FOUCAULT, 2014, p. 165). Foucault conclui suas
considerações sobre a vida artista, afirmando que é no domínio da arte que se
concentram as formas “mais intensas” do dizer-a-verdade corajoso. Não somente a
arte do século XIX, mas também a arte do tempo de Foucault e, porque não dizer
também, de nosso tempo. A coragem da verdade dos artistas, de modo semelhante aos
cínicos antigos, assumiria as consequências de seus atos, do escândalo, do risco de ferir
e desagradar. Lamentavelmente, Foucault interrompe suas “anotações e sobrevoos”,
dizendo que são apenas indicações para um trabalho futuro (que ele não teve tempo de
desenvolver). Nas aulas seguintes, Foucault retoma a história do cinismo, com o
distanciamento de um professor erudito do Collège de France, deixando em segundo
plano a atualização da arte da vida cínica no tempo atual e em sua própria vida.
Cinismo e niilismo
Foucault não expõe na aula de 29 de fevereiro de 1984 um trecho, com dois
parágrafos, do manuscrito preparatório, no qual ele tratava de questões filosóficas
muito relevantes e atuais, mas que ele não teria condições de analisar detidamente,
pois na aula seguinte (de 7 de março) ele retornaria a suas análises do cinismo antigo.
[...] haveria evidentemente muitas questões a elaborar em torno disso tudo: a
própria gênese dessa função da arte como cinismo da cultura. Ver em O sobrinho
de Rameau os primeiros sinais precursores desse processo que se tornará notável
no decorrer do século XIX. Escândalo em torno de Baudelaire, Manet (Flaubert?);
a relação entre o cinismo da arte e a vida revolucionária: proximidade, fascínio
de um pelo outro (perpétua tentativa de ligar a coragem do dizer-a-verdade
revolucionário à violência da arte como irrupção selvagem do verdadeiro); mas
também uma insuperponibilidade essencial, que se deve sem dúvida ao fato de
que, enquanto essa função cínica está no próprio cerne da arte moderna, ela é
simplesmente marginal no movimento revolucionário desde que este foi
dominado pelas formas organizativas; [...] (FOUCAULT, 2014, p. 166).
Essa primeira questão, acerca da relação entre o cinismo da arte e a vida
revolucionária, é um desdobramento das considerações sobre a posteridade do cinismo
na aula de 29 de fevereiro. Considerando que no século XIX temos manifestações fortes
do cinismo na arte da segunda metade do século (com os três artistas/poetas/literatos
franceses citados), Foucault (2014, p. 166) aponta para a incompatibilidade entre o
ethos próprio da arte moderna e o ethos específico da prática política, mesmo dos
Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
Clademir Luís Araldi
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movimentos revolucionários que se fossilizam na organização dos partidos políticos.
Assim, a ênfase na vida artista é um modo de tentar salvar o cerne do modo de vida
cínico, já que as perspectivas de atualizar o cinismo na prática política estavam sempre
mais limitadas no decorrer da década de 1980, e ficarão ainda mais a partir de 1989,
com a morte de muitas utopias políticas do séc. XX.
Entretanto, Foucault destaca que o cinismo está no cerne da arte moderna, como
“irrupção selvagem do verdadeiro”. O problema da ética da verdade inquietava bastante
Foucault, justamente nas questões mais candentes de sua época. Temos uma inflexão
muito importante no primeiro parágrafo, quando é expressa uma diferença marcante
do cinismo dos séculos XIX e XX em relação ao antigo, por meio de uma nova questão:
como o cinismo, que parece ter sido um movimento bastante difundido na
Antiguidade, se tornou nos séculos XIX e XX uma atitude ao mesmo tempo
elitista e marginal, importante em nossa história, muito embora o termo
cinismo não remeta de modo algum a valores negativos. Acrescentar mais uma
coisa: o cinismo pode ser aproximado de outra forma de pensamento grego: o
ceticismo. (FOUCAULT, 2014, p. 166)
Foucault pouco investigou o ceticismo antigo, como estilo e maneira de ser
próximos ao cinismo, mesmo que tenha feito menções a ele nos últimos meses de vida.
Aqui, o interesse é tratar do ceticismo e do cinismo como duas atitudes éticas em
relação à verdade, sendo que o primeiro é uma atitude desenvolvida de modo
sistemático no domínio do saber (FOUCAULT, 2014, p. 166). A preocupação de Foucault,
contudo, é com a imbricação do cinismo com o niilismo nos séculos XIX e XX. No século
de Nietzsche (cujas investigações fazem confluir ceticismo e niilismo), essa imbricação
“foi um princípio de ‘niilismo’”. O termo niilismo aparece entre aspas, mas também é
compreendido como maneira de ser e atitude em relação à verdade. Tocaríamos aqui
num problema essencial da cultura ocidental contemporânea, de modo que Foucault
logo em seguida procura libertar o “niilismo” da estreiteza de algumas interpretações
desse termo:
É preciso perder o hábito de nunca pensar o niilismo senão sob o aspecto como é
encarado hoje: seja na forma de um destino próprio de um mundo ocidental,
destino de que não poderíamos escapar a não ser voltando àquilo cujo
esquecimento tornou possível essa mesma metafísica; seja na forma de uma
vertigem de decadência própria de um mundo ocidental incapaz de acreditar
doravante em seus próprios valores. Primeiro o niilismo deve ser considerado
uma figura histórica bem precisa nos séculos XIX e XX, o que não quer dizer que
não se deva inscrevê-lo na história longa do que o precedeu e preparou:
ceticismo, cinismo. (FOUCAULT, 2014, p. 166)
É evidente a referência a Heidegger e a Nietzsche, quando Foucault pensa o
niilismo nos séculos XIX e XX, quando ele trata do destino do mundo e da metafísica
Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
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Nietzsche e Foucault: sobre o problema da verdade cínica
ocidental, e da decadência dos valores. De modo direto, contudo, o pensador francês
quer se libertar da interpretação dos dois filósofos alemães, aliás, dos que ele mais
estimava. Por um lado, o niilismo seria um episódio, um fenômeno historicamente
situado, com uma crítica radical aos valores e à verdade e com um estilo de existência
semelhante ao cinismo e ceticismo. Assim, Foucault não assume as investigações de
Nietzsche do niilismo moral, da desvalorização dos valores superiores. Por outro lado,
ele se afasta da interpretação do niilismo de Heidegger12, a partir da História do
esquecimento do Ser e do destino niilista da metafísica ocidental. Apesar disso,
Foucault coloca aqui como hipótese que o niilismo poderia ser inserido na “longa
história” do cinismo e do ceticismo, que o teriam precedido e preparado. Não podemos
dizer que essa hipótese é assumida e desenvolvida pelo autor, pois esse parágrafo
sequer foi lido na aula em questão. É um apontamento para uma pesquisa possível,
como vários temas da aula lida, mas que não foram desenvolvidos posteriormente (até
porque Foucault faleceu poucos meses depois dessa aula). O que não quer dizer que eles
não tenham valor ou não mereçam ser desenvolvidos.
Interpretar o niilismo nos séculos XIX e XIX como um “cruzamento” dos
movimentos cínicos e céticos seria uma interpretação um tanto estreita e arbitrária, se
o seu autor não determinasse o sentido em que ele coloca a questão. Para Foucault, a
perspectiva com que ele quer abordar o problema do niilismo como central na cultura
ocidental é através da relação entre “vontade de verdade e estilo de existência”. Aqui
aparece o termo nietzschiano “vontade de verdade”, e não “manifestação da verdade”,
como ocorre em outras formulações. A relação para com a verdade aparece em sentido
positivo, em atitudes como “coragem”, “manifestação”, “vontade”. Esses traços são
mais nítidos no cinismo, em que teríamos a “irrupção violenta da verdade”. Isso
porque os cínicos simplesmente aceitariam alguns “princípios fundamentais”, como a
animalidade da existência. Nos céticos, principalmente nos pirrônicos, a relação entre
verdade e estilo de existência é bem mais problemática, e não serão investigadas neste
artigo. Interessa-nos aqui é levar adiante essa questão em um sentido bem específico, a
saber, sobre a atitude do niilista em relação à verdade.
Foucault está ciente da dificuldade de estabelecer o vínculo entre o “cuidado da
verdade” e a estética da existência, devido aos desafios enormes para efetivar essa
coragem escandalosa da verdade na arte moderna, nos modos de existência
Heidegger pensa a essência do niilismo como a própria História do Ser, de modo que o obscurecimento
do mundo para os homens modernos é um evento que ocorre no extremo esquecimento do Ser (cf.
HEIDEGGER, 1998, p. 358 ss.). Assim, a devastação niilista que ocorre no núcleo mais íntimo do humano é
uma privação da Verdade do Ser. Essa “verdade” não é acessível ao entendimento objetivador nem à
subjetividade humana que estabelece valores, como seria o caso da vontade de poder nietzschiana. Essa
privação da “verdade”, desse modo, não teria causas objetivas a serem descritas, mas constitui o
‘mistério’ ligado ao afastamento do Ser.
12
Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
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contemporâneos e em sua própria filosofia. Para tanto, é preciso afastar o risco niilista
de uma desvalorização completa da verdade, nos domínios teóricos e práticos. A
estratégia de Foucault é deslocar a questão para a prática, até porque a “verdade
cínica” só ocorre enquanto atitude e situada em um modo de vida, de animalidade e de
escândalo. Assim se colocaria a questão para o niilista contemporâneo: “onde o cuidado
da verdade questiona essa sem cessar, qual é a forma de existência que possibilita esse
questionamento, qual é a vida necessária a partir do momento em que a verdade não
seria necessária?” De modo mais direto: “se nada é verdadeiro, como viver?”
(FOUCAULT, 2014, p. 166). Dostoievski não fornece uma resposta positiva a essa
questão em seus romances, pois desqualifica os tipos niilistas e suas práticas
destrutivas. É diferente em relação a Nietzsche, que justamente se empenha em
construir novas formas de vida após anunciar a morte de Deus e o fim da verdade como
valor superior.
Após colocar várias questões sobre os vínculos entre cinismo, ceticismo e
niilismo, Foucault parece estar convencido que a “coragem da verdade” dos cínicos é a
atitude mais promissora frente à verdade e às artes de existência, em meio às crises da
cultura ocidental. No sentido de uma história das artes da existência, os modos de
existência dos cínicos teriam um inestimável valor:
Neste Ocidente que inventou tantas verdades diversas e moldou artes de
existência tão múltiplas, o cinismo não para de lembrar o seguinte: que muito
pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente e que
muito pouca vida é necessária quando se é verdadeiramente apegado à verdade.
(FOUCAULT, 2014, p. 166)
Neste ponto, em que Foucault trata da invenção de verdades e de configurações
de novas artes de existência no Ocidente, trazemos Nietzsche para a questão da
valoração da verdade cínica.
O valor do modo de vida cínico em Nietzsche
Nietzsche concorda com Foucault no sentido de que o modo de vida do cínico
estaria na autossuficiência de uma felicidade do animal, ou seja, na naturalidade da
existência animal, como fica bem expresso na segunda Consideração Extemporânea:
Se uma felicidade, se a ânsia por uma nova felicidade é de algum modo aquilo
que mantém o vivente na vida e o impele a viver, então talvez nenhum filósofo
tenha mais razão do que o cínico: pois a felicidade do animal, como o cínico
perfeito, é a prova viva da justeza (Recht) do cinismo. A menor felicidade, quando
existe ininterruptamente e faz feliz, é sem comparação mais felicidade do que a
Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
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Nietzsche e Foucault: sobre o problema da verdade cínica
maior, que surge apenas como um episódio, como que um capricho, por assim
dizer, como uma ideia louca, entre o puro desprazer, o desejo e a carência. (HV 1)
Mas essa é a felicidade do “rebanho a pastar”, em completo esquecimento e
imersão nos leves prazeres e desprazeres do instante, em oposição ao sobrepeso de
sentido histórico do homem moderno, com seu caráter fraco, em luta contra o pesado
fardo do passado. De modo irônico, Nietzsche caracteriza o cínico perfeito como aquele
ser de “felicidade do animal”. Ainda em relação ao que é mais importante para os
humanos se manterem na vida, ele coloca como suposição se uma felicidade ínfima e
ininterrupta, como a dos cínicos, não seria o melhor modo de lidar com as dores,
carências e com a satisfação dos desejos humanos. Nessa moldura um tanto
schopenhaueriana, o valor da vida cínica seria ínfimo, pois consiste na busca por
felicidades tangíveis e medíocres. De modo que o cínico não perceberia a ausência de
valor da existência como um problema: “A ausência de valor da vida é reconhecida no
cinismo, mas ela ainda não se voltou contra a vida. Não: muitas pequenas superações e
uma boca frouxa satisfazem ali!” (FP 1883, 7[222]). Os cínicos não teriam se voltado
contra a vida (não seriam niilistas), pois valorizavam e se contentavam com pequenas
coisas, renunciando a quase tudo o que os homens da vida ativa valorizavam.
Nietzsche retorna ao cinismo com outra ênfase quando elabora sua filosofia do
espírito livre, desde a época de elaboração de Humano, demasiado humano. Ele
considera ali o epicurismo como uma alternativa mais adequada para a paixão do
conhecimento do espírito livre. Mas há uma valoração do cinismo pela renúncia radical
ao mundo civilizado e pela ataraxia. O sentimento de liberdade e o fortalecimento de si
pressupõem nos cínicos uma renúncia abrupta ao mundo da cultura:
Cínicos e epicuristas. – O cínico percebe o nexo entre as dores mais numerosas e
mais fortes do homem superiormente cultivado e a profusão de necessidades; ele
compreende, portanto, que a pletora de opiniões sobre o belo, o conveniente,
decoroso, prazeroso, deveria fazer brotarem ricas fontes de gozo, mas também
de desprazer. Em conformidade com tal percepção ele regride no
desenvolvimento, ao renunciar a muitas dessas opiniões e furtar-se a
determinadas exigências da cultura; com isso ganha um sentimento de liberdade
e de fortalecimento, e aos poucos, quando o hábito lhe torna suportável o modo
de vida, passa realmente a ter sensações de desprazer mais raras e mais fracas
que os homens cultivados, e se aproxima da condição do animal doméstico. (HH
I, 275)
Novamente, mais ironias: o cínico é um “retardado”, em relação às exigências
culturais modernas, regredindo até a condição de um animal doméstico, com poucas
sensações de desprazer, mas com uma redução drástica dos desejos e aspirações.
Nietzsche admite que o modo de vida filosófico dos cínicos comporta muitas renúncias.
Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
Clademir Luís Araldi
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Não vê o principal traço dessa vida na coragem da verdade, mas no afastamento
resignado das dores e das complicações da vida em sociedade. Na filosofia do espírito
livre há uma alta estima pelo retiro dos epicuristas, na autossuficiência do jardim e nos
pequenos prazeres da vida. O modo de vida epicurista seria mais apropriado para o
espírito livre moderno, pois seu “temperamento” o mantém integrado à cultura
superior:
- O epicurista tem o mesmo ponto de vista do cínico; entre os dois existe, em
geral, apenas uma diferença de temperamento. O epicurista utiliza sua cultura
superior para se tornar independente das opiniões dominantes, eleva-se acima
destas, enquanto o cínico fica apenas na negação. Aquele anda, digamos assim,
por caminhos sem vento, bem protegidos, penumbrosos, enquanto acima dele as
copas das árvores bramem ao vento, denunciando-lhe a veemência com que o
mundo lá fora se move. O cínico, por outro lado, vagueia nu na ventania, por
assim dizer, e se endurece até perder a sensibilidade. (HH I, 275)
O cínico, desse modo, permanece na negação, numa askesis um tanto hostil aos
sentidos. Apesar disso, podemos perceber o fascínio de Nietzsche pelo modo de vida
despojado dos cínicos. Tanto é que uma das principais virtudes do espírito livre é a
honestidade. A honestidade (die Redlichkeit) do espírito livre revela seu parentesco com
a parresía dos cínicos. Em Aurora (456), Nietzsche afirmou que a honestidade não era
considerada como virtude nem no socratismo nem no cristianismo. Mas ela seria uma
nova virtude, em fase de desenvolvimento, para os espíritos livres. A crença dos antigos
filósofos na unidade da virtude e da felicidade seria apenas um grau de veracidade
(Wahrhaftigkeit)13. Entendo que a parresía dos cínicos está próxima à honestidade dos
espíritos livres: ser honesto consigo mesmo é uma virtude que também os cínicos
desenvolviam em seu modo de vida, na transformação da vida na pouca pretensiosa
vida “verdadeira” (felicidade do animal), por meio de exercícios ascéticos. Nesse
sentido, questionamos a colocação de Foucault acerca do parentesco da parresía com a
“veracidade”.
Nessa medida, para essa palavra parresía, que era, em seu uso restrito à direção
de consciência, traduzida por “fala franca”, poderemos, creio eu, se [dela]
dermos essa definição um tanto ampla e geral, propor [como tradução] o termo
de “veridicidade” (véridicité)14. O parresiasta, aquele que utiliza a parresía, é o
homem verídico, isto é, aquele que tem a coragem de arriscar o dizer-a-verdade
e que arrisca esse dizer-a-verdade num pacto consigo mesmo, precisamente na
medida em que é o enunciador da verdade. Ele é o verídico. E (poderemos talvez
voltar a isso, não sei se vou ter tempo) me parece que a veridicidade nietzschiana
é uma certa maneira de fazer agir essa noção cuja origem remota se encontra na
Nietzsche entende que afirmações ou crenças como essa foram feitas de modo ingênuo, com boa
consciência. Mas não com “plena honestidade”. Isso porque a “veracidade” está muito longe da verdade,
por ser “uma máscara, sem a consciência da máscara” (FP 1882, 1[20]).
14
Wahrhaftigkeit, em alemão. Consideramos ser “veracidade” uma tradução melhor para o português.
13
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Nietzsche e Foucault: sobre o problema da verdade cínica
noção de parresía (de dizer-a-verdade) como risco para quem a enuncia, como
risco aceito por quem a enuncia. (FOUCAULT, 2010, p. 64)
Consideramos que a hipótese de Foucault (não desenvolvida posteriormente)
seria mais promissora se ele considerasse a honestidade (die Redlichkeit) nietzschiana
como uma retomada da parresía antiga. Pois é a honestidade (e não a veracidade ou
veridicidade) o que constitui o traço principal da paixão do conhecimento do espírito
livre. O próprio Nietzsche reconheceu em Além do bem e do mal ser a honestidade a
principal virtude dos espíritos livres, ou melhor, a única que lhes restou!
A honestidade – supondo que esta seja a nossa virtude, da qual não podemos
escapar, nós, espíritos livres – bem, então vamos esmerá-la com toda a malícia
e amor, e não cansar de nos “perfeccionarmos” em nossa virtude, a única que
nos resta: que o seu brilho possa um dia pairar, como uma dourada, azul,
sarcástica luz do entardecer, sobre essa cultura minguante e sua seriedade opaca
e sombria! (BM 227)
Sem dúvida, o espírito livre nietzschiano possui essa qualidade da “fala franca”.
Essa qualidade se expressa de modo enfático em A gaia ciência (livro V, de 1887),
quando o filósofo de espírito livre mobiliza a fala do cínico. “Fala o cínico” – eis o título
do parágrafo 368 da Gaia ciência, que trata das objeções fisiológicas à música de
Wagner. Não importa aqui o alcance efetivo das críticas de Nietzsche à música de
Wagner. Importa o fato de que Nietzsche se assume como cínico, ao falar com
franqueza, deixando que seu “corpo inteiro” se expresse contra as “convulsões e
êxtases morais” da arte dramática wagneriana.
Assumindo a posição do cínico, Nietzsche fala francamente, defendendo o
indivíduo dos perigos de uma perda de si na cultura de massa, nos valores da multidão.
Vários órgãos, funções orgânicas e membros do cínico falante se revoltam: o pé, o
estômago, o coração, a circulação, as vísceras... O pé, em particular, anseia da música
“as delícias inerentes ao bom andar, caminhar, saltar, dançar”. Nesse contexto de
defesa da individualidade singular, o cínico assim fala ao wagneriano:
Seja um pouco mais honesto consigo mesmo: nós não estamos no teatro. No
teatro se é honesto apenas enquanto massa; enquanto indivíduo se mente,
mente-se para si mesmo. O indivíduo deixa a si mesmo em casa quando vai ao
teatro, renuncia ao direito de ter a própria escolha, a própria língua, ao direito a
seu gosto, mesmo a sua coragem [...]. (GC 368).
Seria de fato instigante imaginar um “moderno Diógenes” (AS 18) assistindo um
drama musical de Wagner. Sem dúvida, ele não sucumbiria à “magia niveladora” da
Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
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massa, aos encantos dessa unificação com o “povo”, com o “público”, ao contágio dos
valores modernos, como a compaixão e a democracia. Provavelmente, o cínico
Diógenes faria uma intervenção escandalosa, se estivesse em meio a tal espetáculo. O
estômago e os nervos de Nietzsche, no entanto, não suportariam esse espetáculo
repugnante. Notemos a distância entre o público inebriado por esses dramas musicais,
e Nietzsche, que se contrapõe a eles com repugnância e sarcasmo cínico. Mas ele não
faz um escândalo público, pois se refugiou no silêncio de sua solidão. É como se ele
interrompesse num certo ponto a fala do cínico para mergulhar no silêncio – e, como
um espírito livre moderno, considerar-se como um dos “últimos estoicos”. Entre as
qualidades desse último estoico estão a honestidade e a coragem para construir seu
modo próprio de vida. Mas não se trata de uma coragem da verdade, pois no último ano
de produção filosófica Nietzsche deixa em segundo plano a paixão do conhecimento do
espírito livre, para afirmar a arte como valor superior à verdade. Após a Genealogia da
moral, Nietzsche subsume toda vontade de verdade como uma expressão doentia do
ideal ascético, que contagiou todas as filosofias até agora. De modo que não é mais
possível compatibilizar a vontade de verdade com a vontade de poder afirmativa, se a
arte é uma antagonista bem mais séria que a ciência ao ideal ascético. Ou seja, a
vontade de verdade ainda é uma forma de vontade de poder, mas uma forma
decadente, que serve a meios imorais e à desvalorização das aparências (FP 1888,
14[103]). Assim, a vontade de verdade é considerada como forma de degenerescência
(FP 1888, 16[40]), e assim continuará operando mesmo nas formas de vida filosóficas
mais espirituais. É por isso que Nietzsche hesita em abandonar a busca da verdade,
para afirmar a arte como modo de vida mais apropriado ao filósofo que assume como
seu grande projeto a transvaloração dos valores. Ao desqualificar a “vontade de
verdade, de efetividade, de ser” como uma mera forma da “vontade de ilusão” (FP
1888, 14[24]) Nietzsche ainda se serve dos cínicos como os filósofos que possuem
formas de ascese adequadas à sua tarefa de transvaloração.
O “ascetismo dos fortes” (der Asketismus der Starken) é uma forma radical de
exercer o cinismo, não como fim em si mesmo, mas como meio para a grande tarefa
valorativa que Nietzsche coloca a si mesmo, como seu destino autoimposto:
Do ascetismo dos fortes.
Tarefa desse ascetismo, que é apenas um aprendizado passageiro, não um
objetivo: libertar-se dos antigos impulsos de sentimentos [Gefühls-Impulsen]
dos valores tradicionais. Passo a passo, aprender a seguir seu caminho para o
“Além do Bem e do Mal”.
Primeira etapa: Manter atrocidades / cometer atrocidades
Segunda etapa, a mais pesada: Suportar condições miseráveis / cometer
miserabilidades, incluindo como exercício preliminar: tornar-se ridículo, fazer o
papel de ridículo. (FP 1888, 15 [117])
Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
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Nietzsche e Foucault: sobre o problema da verdade cínica
São duas etapas, no caminho da libertação (dos antigos valores e de seus hábitos
herdados, os sentimentos de impulsos) para chegar além do bem e do mal, ou seja, são
condições para estabelecer novos valores e formas de vida não morais. A segunda etapa
é a mais pesada, pois incluiria passar por longos exercícios de autodesprezo,
autorrebaixamento e autodissimulação, nos modos como são expressos no final desse
fragmento póstumo. Em sua existência solitária Nietzsche poucas vezes exerceu esse
ascetismo dos fortes. Não há mais menções diretas em sua obra a Diógenes, o Cínico,
desde 1885. Entretanto, nos últimos meses de sua existência lúcida, Nietzsche exerceu
a coragem cínica em suas obras, principalmente em Ecce homo. Essa coragem é
expressa na carta a Georg Brandes, de 20 de novembro de 1888:
– Ah, se você soubesse o que eu teria escrito justamente quando sua carta me fez
uma visita...
Eu me contei a mim mesmo então, com um cinismo que se torna
histórico-universal: o livro se chama “Ecce homo” e é um atentado, sem a
mínima consideração ao crucificado: ele termina com trovões e tempestades
contra tudo o que é cristão ou está infectado de cristianismo, com os quais
perecem um ver e um ouvir. Enfim, sou o primeiro psicólogo do cristianismo e
posso, como velho artilheiro que sou, preparar meu canhão pesado, do qual
nenhum adversário do cristianismo supunha sequer a existência. – O todo é o
prelúdio da Transvaloração de todos os valores, a obra que já está pronta diante de
mim: eu juro a você que em dois anos teremos a terra inteira em convulsões. Eu
sou uma fatalidade. –15
As autoencenações de Nietzsche em Ecce homo são feitas com cinismo, que é um
meio bem poderoso para a transvaloração e para os efeitos que Nietzsche espera dela.
Mas é uma forma de cinismo distinta da que foi esboçada no ascetismo dos fortes, pois
a megalomania e a superestimação de si são traços básicos do autor de Ecce homo.
Assim como os demais livros de Nietzsche, Ecce homo seria também um livro
perturbador, refinado, que alcança “aqui e ali o mais elevado que se pode alcançar na
Terra, o cinismo” (EH, Por que escrevo livros tão bons 3).
Limitamo-nos aqui a colocar a hipótese de que há irrupções significativas do
cinismo nos últimos meses de produção filosófica de Nietzsche, mas em sentidos bem
diferentes do que é enfatizado por Foucault. Na referida carta, Ecce homo é um prelúdio
da transvaloração; o cinismo perfeito seria o meio mais elevado para essa tarefa
destruidora, mas não é o fim, visto que é somente meio para a transvaloração. Mas
Nietzsche não tem mais verdade alguma em que se agarrar, exceto ao colocar como
critério de sua nova “verdade” a “vontade de poder da vida ascendente” (FP 1888
Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1888,1151 Acesso em 16 de janeiro de
2024.
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Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
Clademir Luís Araldi
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16[86]). O foco estaria na maximização do poder e nos novos valores e formas de vida
que dali brotariam. O problema ocorre justamente quando Nietzsche se pergunta, no
sentido da intensificação do poder, se a mentira pode se configurar como um poder
superior à verdade.
Com a experiência de radicalização do niilismo, Nietzsche coloca o problema
decorrente da dissolução do valor superior da verdade: a arte é o antídoto, para não
perecermos com a “verdade”, a saber, com o niilismo16. A verdade é vista como algo
negativo, essencialmente niilista. Em última instância, não é possível viver com a
verdade. Foucault está mais próximo dos cínicos antigos ao se perguntar pelo quão
pouco de verdade é necessário para quem quer “viver verdadeiramente”. Ou seja, o
modo de vida do cínico, valorizado por Foucault, transcorre na coragem da verdade,
enquanto a posição de novos valores afirmativos da vida (em Nietzsche) não ocorre no
elemento da verdade, mas na ilusão, no erro, na arte. A questão para Nietzsche seria: se
a verdade não possui nenhum valor, o quão portentosa deve ser a arte, para configurar
valor na existência humana.
Nietzsche atribuiu à arte a função suprema de afirmar a existência e de
transfigurar as dores do mundo, em face da ameaça niilista da perda de todos os valores
e sentidos no mundo moderno. À diferença de Foucault, ele não valorizou a arte
moderna do século XIX (que ele avalia no registro da décadence) como manifestação
escandalosa da verdade, mas ainda vê na arte trágica grega a forma mais triunfante de
afirmação da vida que já existiu. Assim, mesmo em suas manifestações artísticas, o
mundo moderno estaria esvaziado niilisticamente, pois Nietzsche não tem um novo
pensamento, arte ou modo de vida trágico a nos propor. O que nos importa, ao final
dessas considerações, é a relação da arte com a verdade. Para Nietzsche, a arte é a
“santificação” das mentiras e das ilusões. Através da arte e das formas artísticas de
vida, o ser humano conseguiria transfigurar os sofrimentos inerentes à sua existência.
Para isso, o artista teria de ser honesto o bastante, para admitir que não está mais
preocupado com a verdade, mas sim com a afirmação artística da vida, para dar conta
do niilismo da ausência de sentido. O filósofo Nietzsche, contudo, não consegue
estabelecer um novo modo de vida, no abandono de todas as formas de verdades
inventadas pela tradição ocidental.
Em Foucault, o niilismo não é uma preocupação central em sua estética da
existência. De modo que ele vê manifestações promissoras da vida cínica na política e,
principalmente, na arte de seu século, e do século de Nietzsche. Entretanto, o
desenvolvimento sobre o cinismo da arte moderna e sobre as relações entre cinismo,
niilismo e ceticismo mostra que há um sério problema que incomodava Foucault: o
problema da verdade em face do niilismo. Diante da percepção da enormidade desse
problema, o pensador francês se limita a restringir o niilismo a um fenômeno datado
Como é formulado também no FP 1888 16[40]: “A verdade é feia: nós temos a arte, para não perecermos
com a verdade”.
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Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
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Nietzsche e Foucault: sobre o problema da verdade cínica
(do século XIX), para que a verdade do cinismo ainda pudesse se manifestar em seu
tempo e nos séculos vindouros. Foucault pode ter exagerado a importância da parresía,
do dizer-a-verdade corajoso no modo de vida cínico e na “vida artista”, mas esse
“exagero” nos parece ser uma estratégia de enfrentamento das questões mais
prementes de sua atualidade. Ao passo que as últimas incursões cínicas de Nietzsche
pretendem confrontar a modernidade com o seu mais sinistro hóspede: o niilismo, que
se aloja no cerne do problema da verdade.
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Recebido: 04/01/2024
Aprovado: 31/01/2024
Estudos Nietzsche, Espírito Santo, v. 14, n. 02, jul./dez., 2023.
Received: 04/01/2024
Approved: 31/01/2024