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Literaturando: artigos, ensaios e contos - Vol. VI

2024, Instituto Quero Saber

Literaturando artigos, ensaios e contos Vol. VI Literaturando artigos, ensaios e contos Vol. VI Daniela Valentini José Dias Junior Cunha Organizadores © 2024 Instituto Quero Saber Gerente Editorial Ana Karine Braggio Conselho Editorial Carlos Renato Moiteiro Eliana Nogueira Brito Saturnino Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Produção Editorial Amanda C. Schallenberger Schaurich Mônica Chiodi Instituto Quero Saber www.institutoquerosaber.org editora@institutoquerosaber.org Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) L776 Literaturando: artigos, ensaios e contos. Vol. VI. / organizadores, Daniela Valentini, José Dias, Junior Cunha. 1. ed. e-book – Toledo, Pr.: Instituto Quero Saber, 2024. 134 p.: il. Modo de Acesso: World Wide Web: <https://www.institutoquerosaber.org/editora> ISBN: 978-65-5121-019-8 DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84 1. Literatura. 2. Poesia. 3. Conto. CDD 22. ed. 869 Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi – Bibliotecária CRB/9-1610 O teor da publicação é de responsabilidade exclusiva de seus respectivos autores. Um livro autêntico jamais é impaciente. Ele pode esperar séculos para despertar um eco vivificante. George Steiner Sumário Apresentação .................................................................. 9 Priscila Santos Artigos Annuario das Senhoras: modos de ser mulher no Brasil do século XX .................................................................. 15 Thiago Waldeyr Faria da Silva Antijesuitismo e encômio pombalino em O Uraguai: influxos estéticos e diálogos históricos na poética de Basílio da Gama ............................................................. 51 Jheniffer Maria Moraes dos Santos & Warley Rodrigues Pereira Ensaios A literatura infanto-juvenil como ferramenta de emancipação da criança e do adolescente ................... 89 Antonio Vinicius Tomacheski Contos A dama da noite ........................................................... 105 Giovanna Victória Pilotti Adelaide ....................................................................... 119 Ammy Lee Vitória Maldito espelho ........................................................... 123 Junior Cunha Os olhos verdes fascinantes de Giovanni, mio Romeo................................................................... 127 Andrielly Antunes da Silva & Giovanna Victória Pilotti Apresentação Priscila Santos Priscila Santos é Bacharel em Ciências Farmacêuticas pela Faculdade Anglo-Americano e Mestranda em Ciências Farmacêuticas pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Contato: prihps@gmail.com A Coleção Literaturando chega ao seu sexto volume, evidenciando que os estudos e produções literárias continuam a encantar, envolver e suscitar debates e Literaturando reflexões importantes. Também mostra que pesquisadoras 10 e pesquisadores, escritoras e escritores, leitoras e leitores não perdem o fôlego e persistem engajados no estudo e deleite de boa literatura. Como nos volumes anteriores, este novo marco do vigor da Coleção Literaturando também é divido em três seções: artigos, ensaios e contos. Mais uma prova da riqueza e amplitude que a literatura pode atingir, e assim o faz, primeiro, como um fruto do esforço árduo daqueles se que dedicam em romper com a barreira da página em branco; e, segundo, como um objeto de prazer daqueles que se encantam com o poder das palavras. No texto de abertura deste volume, o artigo Annuario das Senhoras: modos de ser mulher no Brasil do século XX, Thiago Waldeyr Faria da Silva analisa de que forma O Annuario das Senhoras, em seu primeiro ano de circulação, ‘constrói aquilo que seria próprio das mulheres na esfera social’. No segundo texto, o artigo Antijesuitismo e encômio pombalino em O Uraguai: influxos estéticos e diálogos históricos na poética de Basílio da Gama, Jheniffer Maria Moraes dos Santos e Warley Rodrigues Pereira expõem ‘o modo como o louvor a Pombal, o heroísmo do indígena e a retaliação jesuítica são estruturados nos fios do discurso histórico tecidos por Basílio da Gama no tear da via estética’. Em seu ensaio, A literatura infanto-juvenil como ferramenta de emancipação da criança e do adolescente, literatura infanto-juvenil, ‘sendo ela o lugar onde a criança se permite disfrutar do estado da arte, da estética e dar asas à sua imaginação’. Giovanna Victória Pilotti abre a seção de contos com A dama da noite, uma história intensa e cheia de reviravoltas, com personagens complexos e uma trama que explora temas como o amor, a paternidade, a doença e, por que não, a redenção. N sequência, Ammy Lee Vitória nos brinda com uma reflexão profunda sobre as complexidades da vida. O 11 artigos, ensaios e contos Antonio Vinicius Tomacheski destaca a importância da narrador de Adelaide expressa suas desilusões com o curso de sua vida, em contraste com as expectativas ingênuas de sua juventude. No conto Maldito espelho, Junior Cunha escreve sobre um exame introspectivo de um narrador, que se questiona sobre quem ou o que ele realmente é, confrontando-se com uma sensação de estranhamento ao Literaturando se olhar em um espelho. 12 Coroando a seção de contos, Andrielly Antunes da Silva e Giovanna Victória Pilotti apresetam uma narrativa romântica, que se passa na cidade de Genova durante o ano de 1800, em Os olhos verdes fascinantes de Giovanni, mio Romeo. Uma boa e prazerosa leitura! Artigos DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.01 Annuario das Senhoras: modos de ser mulher no Brasil do século XX Thiago Waldeyr Faria da Silva Thiago Waldeyr Faria da Silva é Acadêmico do Curso de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Contato: thiagowaldeir3456@gmail.com Literaturando 16 Resumo: A mulher sempre foi público-alvo de publicações impressas e de anúncios publicitários no mercado editorial brasileiro desde as primeiras publicações no país, com a implantação da Imprensa Régia, no início do século XIX. O Annuario das Senhoras foi um guia de consulta (para o ano inteiro) que circulou no Rio de Janeiro entre os anos de 1934-1958 e tratava especialmente de assuntos voltados para aquilo que se dizia ser do interesse das mulheres: o anuário trazia anúncios que ofereciam desde sapatos até objetos de decoração para o lar, matérias que tratavam da saúde e do comportamento no âmbito familiar e social da época. Pretendemos analisar de que forma o Annuario, em 1934, primeiro ano da sua circulação, constrói aquilo que seria próprio das mulheres na esfera social. Para tanto, pretendemos compreender o funcionamento do discurso tanto nas publicidades quanto nas matérias que retratavam as mulheres. Essa proposta fundamenta-se na análise do discurso de linha francesa sobre o discurso jornalístico/publicitário e a construção do que era próprio da mulher no primeiro guia desta publicação. Trata-se de pensar o discurso jornalístico/publicitário como formador de redes interdiscursivas, por meio de retomadas, atualizações e deslocamentos de sentidos. Diante disso, este estudo visa compreender, sobretudo, as Formações Discursivas e Imaginárias acerca daquilo que se dizia sobre/para as mulheres na esfera social ao longo do ano de 1934, a fim de que seja possível compreender a quais mulheres o Annuario se refere e os efeitos de sentidos sobre/paralelas na sociedade brasileira no século XX. Palavras-chave: Anuário das Senhoras. Modos de ser mulher. Brasil do século XX. Introdução O Annuario das Senhoras, revista que circulou no Rio de Janeiro entre os anos de 1934-1958, ao fazer circular alguns sentidos sobre/para as mulheres constrói aquilo que seria próprio desse público: estilo de vida, educação, saúde, comportamento familiar, consumo, comportamento social etc. Ao colocar em circulação determinados sentidos, naturaliza e padroniza comportamentos e sujeitos: 17 institucionalizando o que deveria ser próprio delas. Ao artigos, ensaios e contos naturalizar sentidos constrói um modelo de mulher, de comportamentos que devem ser seguidos por tantas outras mulheres no Brasil no século XX. Os discursos sobre ao falarem sobre um discurso de (discurso-origem), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral, representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão de conhecimento, já que o falar sobre transita na corelação entre o narrar/descrever um acontecimento singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes já reconhecido pelo interlocutor (Mariani, 1996, p.64, grifos meus). Esse discurso, pautado numa pretensa ilusão de naturalidade, de efeito de evidência, vai construindo a história dos sujeitos e (re)produzindo os sentidos (passados, presentes e futuros) a respeito deles e de sua relação causal com o lugar social do qual não conseguem se Literaturando desvincular. É como se os sentidos colassem e a 18 interpretação imobilizasse os sujeitos naturalizando a memória discursiva que circula sobre eles. O Rio de janeiro era habitado por aproximadamente um milhão de pessoas no início do século XX. Foi durante a primeira década deste século que a imagem como grande capital sul-americana, sonhada nas pranchetas dos arquitetos e dos engenheiros, ganhou visibilidade, marcando um tempo importante da história urbana da cidade (Azevedo, 2015). O Rio de Janeiro era o principal porto de exportação e importação do país e o terceiro em importância no continente, depois de Nova York e Buenos Aires. Mais que isso, como capital da República ela era a vitrine do país. Num momento de intensa demanda por capitais, técnicos e imigrantes europeus, a cidade deveria operar como um atrativo para os estrangeiros. Mas, ao contrário ela era acometida por uma série de endemias, que assolavam e vitimavam sua população local. (...)Por isso a cidade tinha, desde o século XIX, a indesejável reputação de ‘túmulo do estrangeiro (Sevcenko, 1998, p.15, grifos meus). Diante desta situação, as autoridades organizaram uma ação conjunta que reestruturaria a cidade em três instâncias, fazendo surgir a nova cidade. As medidas foram a modernização do porto, saneamento da cidade e a reforma urbana. Uma equipe foi nomeada pelo presidente Rodrigues Alves: “o engenheiro Lauro Müller para a reforma do porto, o médico sanitarista Oswaldo Cruz para o saneamento e o engenheiro urbanista Pereira Passos, 19 que havia acompanhado a reforma urbana de Paris, para a artigos, ensaios e contos reurbanização” (Sevcenko, 1998, p.23). As reformas se voltaram para o centro da cidade, onde havia muitos casarões em que moravam um grande número de pessoas pobres, que tiveram suas casas invadidas por equipes do sanitarista e derrubadas pelo reurbanizador. Um contingente enorme de pessoas foi posto na rua, migrando para os morros, iniciando essa nova ocupação. A Regeneração se completou no fim desse mesmo ano de 1904. Seu marco foi a inauguração da Literaturando 20 avenida Central, atual avenida Rio Branco, eixo do novo projeto urbanístico da cidade. As revistas mundanas e os colunistas sociais da grande imprensa incitavam a população afluente para o desfile de modas na grande passarela da avenida [...], nas mediações, as tradicionais festas e hábitos populares, congregando gentes dos arrabaldes, foram reprimidos e mesmo o Carnaval tolerado não seria mais o do entrudo, dos blocos, das máscaras e dos sambas populares, mas dos corsos de carros abertos [...], típicos do Carnaval de Veneza, tal como era imitado em Paris (Sevcenko, 1998, p.27, grifos meus). A reforma urbana da então capital se destinou à introdução no país de ideais de controle social, assim como em Londres e Paris, e São Petersburgo, para levar o país a alcançar a “modernidade” (Secnenko, 1998). Os valores da vida moderna ao impregnarem-se nas relações sociais desencadearam uma transformação acelerada de tudo. O novo substituiu o velho e tentou apagar naquele os sinais destes. Tudo foi destruído e reconstruído, impondo um estilo de vida mais urbano, de relação mais impessoal (Secnenko, 1998). O Rio de Janeiro começa, portanto, a exportar um estilo de vida e comportamento para o resto do país. Nessas condições de urbanização da cidade e da vida cotidiana na capital, a revista/anuário se refere a determinadas mulheres e a partir dessas referências constrói comportamentos sociais adequados e estilos de vidas que devem ser seguidos e passam a corresponder às novas exigências sociais da época. Nos perguntamos, a partir dessas considerações: a) Para quais mulheres o anuário se refere? b) Quais ficam de fora por não se identificarem com o que circula como modelo a ser seguido? c) O que circula como comportamento social adequado e aceitável no início do século XX sobre/para às mulheres? São algumas questões revista/anuário, do discurso jornalístico/publicitário, dos efeitos de sentidos da época postos em circulação nas páginas da primeira edição, de 1934. Esse processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro não está desvinculado, na passagem do século XIX para o século XX, com o que ocorreu em outras sociedades ocidentais influenciadas por correntes liberais, pautadas em ideais de liberdade individual e igualitarismo. Esse liberalismo era marcado pelo patriarcalismo: 21 artigos, ensaios e contos que nos guiam para compreender o funcionamento da Literaturando O patriarcado é o domínio social ou uma estrutura de poder social centralizada no homem ou no masculino. É baseada na própria ideia de paters, figura do pai. E relaciona instâncias públicas e privadas da vida social. É uma estrutura bastante comum na sociedade humana, mas é contestada por diferentes grupos sociais em vários momentos da história, devido à pouca ou nenhuma ação que impõe às mulheres. O patriarcado associa a biologia à cultura, no sentido de diferenciar os papeis sociais baseados em papeis sexuais (Aguiar, 2000, p. 303, grifos meus). feminismo, orquestrada por mulheres dos EUA e do Reino 22 Unido, brancas, de classe média e insatisfeitas com o seu Nessa época, surge a denominada primeira onda do estado de submissão e opressão. Nos EUA, o movimento culminou na aprovação, em 1919, da Décima Nona Emenda à Constituição americana, que concedeu às mulheres de todos os Estados o direito ao voto. No Brasil, em 1932, durante o governo de Getúlio Vargas, foi assinado o Decreto 21076, que assegurava às mulheres o direito de votar. No entanto, até 1965, o direito era estendido apenas às mulheres com profissões remuneradas (Aguiar, 2000). Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos explicita o rol de direitos humanos aceitos internacionalmente e garante o direito à participação política tanto para homens, quanto para mulheres. Diante do que circulava como as qualidades de boa mulher postas como evidência através das matérias veiculadas/propagandas publicitárias na revista/anuário, cabe-nos tratar da forma como as condições de produção, da época, produziram efeitos de sentidos nas páginas do Annuario das Senhoras. Além disso, precisamos também pensar na importância dos meios de comunicação nas grandes capitais ocidentais do mundo sobre/para as mulheres e seus etilos de vida. O que da primeira onda do feminismo movimento pauta os comportamentos postos como modelos? São questões que nos movimentam para compreender as Formações Discursivas e Imaginárias que se inscrevem no Annuario, corpus de nossa pesquisa. O discurso jornalístico se pauta, para discursivizar o mundo, nos mitos de neutralidade, imparcialidade, objetividade e verdade, como afirma Mariani (1998), para colocar em circulação alguns sentidos em detrimentos de outros. Ele funciona como um discurso pedagógico, ou seja, age como se observasse o mundo fora do ideológico 23 artigos, ensaios e contos (não) reverbera nos textos na revista? O que desse ou põe em circulação suas análises como se elas fossem o resultado de uma abordagem desinteressada (neutra, verdadeira, objetiva e imparcial). Dessa mesma forma, o discurso jornalístico construindo-se como se os fatos falassem por si, mascara as interpretações realizadas silenciando, dessa forma, a ideologia que se inscreve no discurso. Literaturando Segundo Payer (2005), a mídia interpela o sujeito a 24 partir do que ele produz e coloca em circulação, reforçando os mitos, citados acima, construídos em torno dele. Segundo ainda a autora, a força do discurso das mídias funciona de maneira muito similar à forma como o discurso religioso afetava o homem, na Idade Média: Tudo indica que um novo Texto vem adquirindo o valor de Texto fundamental na sociedade contemporânea. Este grande texto da atualidade, no meu modo de entender, consiste da Mídia, daquilo que está na mídia, em um sentido amplo, e em especial no marketing, na publicidade. O valor que a sociedade vem atribuindo à mídia - ou o poder de interpelação que a Mídia vem exercendo na sociedade(...). A mídia pode ser assim considerada como o Texto fundamental do Mercado na medida em que se compreende texto como a forma material do discurso, como propõe Orlandi (2001), como o lugar material em que a relação entre língua e ideologia produz seus efeitos (Payer, 2005, p. 15-16, grifos meus). Interessa-nos estudar os processos discursivos decorrentes das transformações da sociedade da informação/consumo e o modo como se articulam a língua/linguagem, os sujeitos e a ideologia a respeito da construção do que seja própria da mulher e os discursos sobre/para ela, no Brasil do século XX. O texto da mídia, sobretudo o que faz uso da imagem, opera com especial força pragmática sobre os indivíduos. A introdução da publicidade tem estatuto semelhante ou mais forte do que a invenção da imprensa especificas. Se todo discurso tem a propriedade de produzir evidências de real, esta capacidade é potencializada no discurso com base da imagem. Além disso, as imagens da mídia, como texto fundamental do Sujeito Mercado (Payer, 2005), são investidas de dimensões gigantescas, a exemplo de outdoors, constituindo-se em verdadeiros espetáculos textuais. Mais do que descrever a interpelação da Mídia e da imagem, queremos enfatizar que esta interpelação não se dá simplesmente pelas possibilidades empíricas das 25 artigos, ensaios e contos (Payer, 2005). As formas de interpelação da imagem são diversas materialidades dos textos, que por si já, são enormes. Esse poder de interpelação se exerce não apenas porque opera a partir da Formação Discursiva Mercantil, mas, sobretudo, porque opera na base de nova Formação Ideológica, a exemplo da ideologia religiosa e da ideologia jurídica (Payer, 2005). Sob a égide do Capitalismo Mundial e Integrado é que vemos configurar-se uma nova forma- Literaturando sujeito. 26 Na Formação Discursiva, depreendemos as regularidades dos enunciados (ordem discursiva, posições discursivas). Essas regularidades vão caracterizar uma Formação Discursiva que é o que determina o sentido que as palavras adquirem a partir de uma posição dada em uma conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes. Já a Formação Imaginária diz respeito a forma como os sujeitos são sempre-já significados, ou seja, como as suas imagens circulam como naturais: todo mundo sabe como se comportam... é a imagem que fazemos do outro, de nós mesmos, do discurso (Orlandi, 2005). Para as nossas análises, usam-se os pressupostos teóricos da análise do discurso de linha francesa, justamente por considerar que essa teoria dará suporte para compreender o funcionamento da ideologia que se inscreve no discurso e o funcionamento do discurso que se inscreve na língua em condições de produção específicas. A linguagem aqui não é entendida apenas como instrumento de comunicação, mas como efeito de sentido entre interlocutores. Assim, Brandão (1985, p. 12, grifos meus) afirma que: A linguagem passa a ser entendida como a mediação entre o homem e sua realidade. Como afirma Orlandi (2005, p. 15), “essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência/continuidade quanto o deslocamento/transformação do homem e da realidade em que ele vive”. Para a análise do discurso de linha francesa, a linguagem não é transparente e como ressalta Santaella (1996, p. 330, grifos meus), e em virtude disso, somente a 27 artigos, ensaios e contos A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa intencionalidade) e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. partir da compreensão da ideologia é possível compreender os sentidos que circulam: Literaturando As linguagens não são inocentes nem inconseqüentes. Toda linguagem é ideológica, porque ao refletir a realidade, ela necessariamente a refrata. Há sempre, queira-se ou não, uma transfiguração, uma obliqüidade da linguagem em relação àquilo a que ela se refere. 28 O objeto de estudo da análise do discurso é o discurso, que foge ao modo elementar de esquema da comunicação proposto por Jakobson, organizado a partir daquele que produz a informação (o emissor), daquele quem recebe essa informação (o receptor) e a maneira pela qual ela acontece (o código). Aqui, não se acredita nessa linearidade da mensagem e muito menos, como já falado, na transparência dos sentidos. Não tratamos de uma língua autossuficiente, mas do discurso porque neste observa-se um complexo processo de constituição de sujeitos e produção de sentidos. O nosso ponto de partida, então, se organiza a partir do deslocamento de língua (estrutura autossuficiente) para discurso (aquilo que liga o homem a sua realidade) como objeto de análise para permitir que se possa perguntar: como o texto significa? Cada texto tem uma materialidade simbólica própria e, por isso, não existe uma “verdade” dada antes daquele texto se constituir. O enunciado se materializa e seus efeitos são produzidos a partir das Formações Discursivas, Ideológicas e Imaginárias dos meios de comunicação que colocam determinados sentidos em circulação e não outros e não todos, de forma a evidenciar o seu lugar no processo de constituições de sentidos diante do objeto analisado. Assim, o discurso é o lugar onde se pode observar a relação entre a língua, o sujeito e a história para compreender como sujeitos e sentidos se constituem. constituem ao mesmo tempo (Orlandi, 2005). O funcionamento do discurso jornalístico/publicitário no Annuario das Senhoras Pretendemos, para a organização desta pesquisa, compreender o funcionamento do discurso jornalístico/ publicitário presente no Annuario das Senhoras de 1934, primeiro ano de circulação. São 317 páginas digitalizadas e disponíveis na no site Biblioteca Nacional. Este anuário é composto por matérias e propagandas publicitárias 29 artigos, ensaios e contos Dizemos em análise do discurso que sujeitos e sentidos se direcionas às mulheres durante os anos de 1934-958. Optamos por analisar apenas a primeira edição, 1934, do Annuario uma vez que ela se insere nas condições de produção bastante produtivas para a compreensão da ideologia, dos sentidos e dos sujeitos: o Rio de Janeiro no século XX, capital do país, em um processo de urbanização da cidade e das vidas cotidianas produzindo um modelo de Literaturando cidade/comportamento para o resto do país. 30 Em seguida, a partir desse corpus discursivo organizado, selecionaremos as sequências discursivas, usando como critério, as Formações Discursivas e Imaginárias construídas e postas em circulação pela revista sobre/para a mulher e aquilo que diz respeito ao seu comportamento no âmbito social: estilo de vida, consumo, comportamentos individuais e coletivos, classe social, raça etc. Pensamos que a partir disso poderemos compreender o funcionamento da ideologia, que se inscreve no discurso, das Formações Discursivas e Imaginárias presentes nas matérias/publicidades produzidas sobre os comportamentos das mulheres no ano de 1934, nesta revista/anuário. Em 1930, após Getúlio Vargas assumir a Presidência da Brasil, os espaços para algumas mulheres nos cargos públicos do estado vão se abrindo, dando a elas certa autonomia. No ano da primeira publicação do Annuario das Senhoras em 1934, “após uma acalorada discussão, os constituintes aprovam a igualdade de direitos políticos entre homens e mulheres, desde que maiores de 18 anos e alfabetizados” (Marques, 2019, P.92). Ao impedir as não alfabetizadas, os constituintes excluem uma parte considerável da população feminina uma vez que no século XX. De acordo com Romanelli, 2001, p. 128, grifos meus): Em virtude do pouco acesso das mulheres ao sistema educacional nos cursos secundários é possível que se depreenda na citação acima que mesmo os constituintes aprovando igualdade de direitos entre homens e mulheres 31 artigos, ensaios e contos O importante a notar é que, durante o século XIX e a primeira metade do século XX, a exclusão feminina dos cursos secundários inviabilizou a entrada das mulheres nos cursos superiores. Assim, a dualidade e a segmentação de gênero estiveram, desde sempre, presentes na gênese do sistema educacional brasileiro, sendo que as mulheres tinham menores taxas de alfabetização e tinham o acesso restringido aos graus mais elevados de instrução. já se partia de um desequilíbrio estrutural entre os gêneros: às mulheres não cabiam o acesso à educação formal, mas os cuidados com o lar. Algumas poucas mulheres, então, conseguem, uma conquista mais significante, agora quem tivera mais de 18 anos e também a alfabetização poderia exercer seu direito de votar, participando assim da vida pública do seu país, Literaturando estado e município. Mas não podemos perder de vista de 32 que eram os homens quem comandavam os lares, suas esposas e filhas impondo, muito provavelmente, o que podiam/deviam fazer. O corpus do nosso trabalho é voltado às indicações comportamentais que dizem sobre/para às mulheres em 1934. Colocando em circulação, desta forma, assuntos, sentidos que eram/podiam ser de interesse das mulheres. Nele é apresentado a seguinte propaganda: SD1. Não te esqueças de trazer um vidro de CUNHANDY, sim, meu querido? Terás a tua mulherzinha sempre vigorosa, sadia, fórte, satisfeita e carinhosa O CUNHANDY é o meu thesouro! (Annuario das Senhoras, n. 1, 1934, p.12, grifos meus). Vemos aqui uma propaganda de um produto, o Cunhandy. Percebe-se que a mulher, na sequência discursiva acima, SD1., mostra-se apta para agradar seu companheiro, isso também está presente nas caracterizações necessárias à mulher no anúncio em “vigorosa, sadia, forte, satisfeita e carinhosa” de forma que, então, ela deve estar apta a receber o seu marido, ou seja, todos estes adjetivos estão a serviço do homem para o seu bem-estar e à mulher cabe apreendê-los para a satisfação dele. A aquisição de produto é para a satisfação da mulher, da tua mulherzinha, como é possível ler no anúncio, no entanto, há também os sentidos que beneficiam o homem: adquirindo o produto terá uma mulher satisfeita e Apesar de algumas conquistas, uma delas o direito ao voto, os lugares reservados aos homens e mulheres fica bastante marcados na forma de circulação dos sentidos sobre os gêneros. Eni Orlandi (2020, p. 93-94, grifos meus), sobre o funcionamento do discurso, ressalta que: O sentido é história. O sujeito do discurso se faz (se significa) na/pela história. Assim, podemos compreender também que as palavras não estão ligadas as coisas diretamente, nem são o reflexo de uma evidência. É a ideologia que torna possível a relação palavra/coisa. Para isso têm-se as condições 33 artigos, ensaios e contos carinhosa. de base, que é a língua, e o processo, que é discursivo, onde a ideologia torna possível a relação entre o pensamento, a linguagem e o mundo, ou, em outras palavras, reúne sujeito e sentido. À mulher cabia, como disse acima, funções domésticas, atribuições não intelectuais na forma como apareciam no Annuario das Senhoras. Não estamos Literaturando afirmando, no entanto, que elas, na primeira metade do 34 século XX, já não estivessem no mercado de trabalho. Estavam. Mas, também como já dissemos, o Annuario não era produzido para todas elas, mas a algumas. Nesse sentido, no funcionamento discursivo do nosso corpus discursivo é fundamental pensar em classe, raça para saber a quais mulheres o anuário se reportava. Sobre raça, não foi possível encontrar qualquer anúncio ou texto que fizesse referência às mulheres negras. Elas não comparecem nas páginas do annuario, isso significa que a elas não eram endereçadas as matérias publicadas nas páginas deste annuario, nosso corpus discursivo. Em análise do discurso pecheutiana buscamos as regularidades enunciativas, os sentidos que estão circulando e são naturalizados, as formações discursivas e imaginárias que circulam sobre, no nosso caso, as mulheres leituras dessas publicações. A história não é estanque, os sentidos não surgem sem a relação com os sentidos que já estão circulando, para que uma palavra produza sentido, ela já está inscrita na história, ela já tem sentido (Orlandi, 1996). A Formação Discursiva (doravante, FD) depreendemos as regularidades dos enunciados (ordem discursiva, posições discursivas). Essas regularidades vão caracterizar uma Formação Discursiva que é o que determina o sentido que as palavras adquirem a partir de uma posição dada em uma conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e No jornal Echo das Damas, do século XIX, dedicado às mulheres, em circulação no ano de 1879, sob o comando de Amélia Carolina da Silva Couto 1, é possível compreender a naturalização desse funcionamento discursivo, nos meios de comunicação, sobre/para as mulheres: 1 Jornalista e feminista, atuou no Rio de Janeiro onde fundou o jornal Eco das Damas, que graças ao seu tino empresarial levou seu periódico a circular por 8 anos, publicando artigos dedicados aos interesses das mulheres. Fonte: http://www.mulher500.org.br/ amelia-carolina-da-silva-couto-sec-xix/. 35 artigos, ensaios e contos inscrita numa relação de classes. Literaturando SD2. Guiar os primeiros passos vacilantes de um ente novo que surge do nada; ensinar-lhe a balbuciaras primeiras palavras; fazer-lhe soletrar os primeiros princípios de uma moral sã, pura e racional; implantar-lhe no espírito incerto as noções de uma religião sublime, isenta de superstições banaes, grosseiras e odiosas: incutir-lhe no animo o amor da virtude, de tudo quanto é grande e bello, e o desprezo pelas vaidades e pelos vícios; formar enfim o futuro homem, é uma missão que, bem entendida, torna-se espinhosa e às vezes impossível (Echo das Damas, n. 1, 1879, p. 2, grifos meus). atribuição das mães circula no Echo das Damos, de 1879. 36 Cabem às mães a tarefa de preencher o vazio da criança, Na SD2, acima, observamos como àquilo que é todos os princípios da formação cidadã. Nada se diz da função paterna em relação à educação dos filhos. Diz respeito às mães exclusivamente a responsabilidade de preparar o futuro de seus filhos. Ou seja, a formação imaginária sobre o papel das mulheres no século XX, de acordo com o Annuario, não surge nele. São sentidos que já circulam sobre os lugares que podem/devem ocupar esses sujeitos: mães, pais, filhos. No quadro sobre as formações imaginárias abaixo criado por Pêcheux (Pêcheux; Fuchs, 1997, p. 83), isso é expresso como a “imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A” (“Quem é ele para que eu lhe fale assim?”). Esse lugar do outro organiza o lugar em que o falante coloca a si mesmo, na ilusão de “dono” do próprio discurso. Ao colocar em circulação determinados sentidos os meios de comunicação vão produzindo memórias do passado e do futuro sobre os tais lugares, sedimentando sentidos e colando o significante ao significado como se os sentidos só pudessem ser aqueles. Se no Annuario das Senhoras (n. 1, 1934, p. 5, grifos meus) encontramos os sentidos: “SD3. É dever da mãe alimentar o filho para conservá-lo sadio e robusto”. Nada se diz sobre a função paterna. Mas se na ausência também há sentidos, lemos, nessa sequência discursiva, que não cabe a ele nada que diz respeito à 37 artigos, ensaios e contos sobre determinados sujeitos e seus lugares enunciativos, formação, educação e cuidados com os filhos. Ou seja, é função e atribuição da mulher o cuidado com os filhos, sua Literaturando educação etc. 38 SD4. Da educação da mulher, assim o pensamos, depende a prosperidade de uma nação. Eduque-se, pois a mulher: quebrem-se de uma vez estes preconceitos estultos: de-se-lhe uma instrução solida e variada e teremos bons cidadãos e uma sociedade moralizada. (Echo das Damas, n. 1, 1879, p. 2, grifos meus). Ainda que se diga que dependa da mulher a prosperidade de uma nação, diz-se apenas dessa responsabilidade doméstica da educação, cuidados e alimentação. À mulher no social apenas os sentidos sobre bons costumes, beleza, delicadeza. Além disso, fala-se sobre moralização que cola ao sentido da educação formal: a instrução sólida, que era para poucas, tem uma relação causal com o bom cidadão e a moralização social. Marques (2020, p.15, grifos meus)), acerca desta questão, afirma que: Devido à ausência de uma política educacional séria, poucas mulheres recebiam instrução suficiente para desenvolver um ofício remunerado que não envolvesse servir, limpar ou cuidar de alguém. No casamento, eram submetidas aos maridos, que, por se julgarem superiores em intelecto, tratavam-nas como crianças. Tal situação também tornava inviável a integração das mulheres na vida política, porque elas chegavam à vida adulta despreparadas para formar opinião própria das questões públicas. As mulheres eram praticamente privadas da educação formal, apenas uma pequena parte conseguia se instruir formalmente. A maioria delas era suficiente conhecer as atribuições domésticas. Nos meios de comunicação aos quais tivemos acesso, nada se diz, além disso sobre elas na vida pública. Essa relação entre educação, classe e raça é bastante recorrente nos não-ditos trabalharam, as mulheres negras, e que não frequentavam as escolas porque educação era para em sua maioria as meninas brancas de classe média. Carlota Pereira de Queirós toma posse como a primeira mulher deputada no Brasil em 15 de novembro de 1933, segundo Marques (2020). Podemos afirmar que essa posse é um acontecimento discursivo, ou seja, uma ressignificação da memória sobre o que podia/cabia às mulheres. 39 artigos, ensaios e contos do annuario: nada se diz sobre às mulheres que sempre Por isso encontramos no Annuario das Senhoras (n 1, 1934, p. 12, grifos meus) trechos como este: SD5. SENHORAS as batatas possuem qualidades nutritivas xcepcionaes. Contendo phosphatos e saes básicos de pureza e de frescura, ellas substituem o pão, sendo muito aconselhadas no regime alimentar das creanças, dos adultos que padecem do estomago, e dos diabéticos. Literaturando É recorrente, no corpus analisado, os sentidos que o poder dos alimentos, os seus nutrientes, sobre uma boa 40 alimentação. Mulheres e batatas circulam com a mesma aproximam as mulheres dos afazeres domésticos (é uma relação causal): a relação era estritamente relacionada com naturalidade que circulam homens e trabalho. São essas as regularidades encontradas até o presente momento no corpus analisado por nós. O funcionamento do discurso jornalístico/publicitário que constrói o lugar social da mulher, no Rio de Janeiro, no século XX (e XIX), não desliza, não é ressignificado pois à mulher já circulam sentidos sobre aquilo que podem e devem fazer desse lugar que circulam: os sentidos de cuidar da casa, dos filhos e do marido; o papel materno solitário, uma vez que sobre a figura paterna nada é dito em relação a essas atribuições. A educação da mulher no Brasil no século XX a deixava com mais um empecilho à sua participação nos cargos públicos da sociedade, segundo Alves e Beltrão (apud Romanelli, 2009, p. 128, grifos meus): Durante o século XIX e a primeira metade do século XX, a exclusão feminina dos cursos secundários inviabilizou a entrada das mulheres nos cursos superiores. Assim, a dualidade e a segmentação de gênero estiveram, desde sempre, presentes na gênese do sistema educacional brasileiro, sendo que as mulheres tinham menores taxas de alfabetização e tinham o acesso restringido aos graus mais elevados de instrução. Elas aqui ficam mais longe dos lugares mais descreve, percebe-se o motivo dele tratar mulher como inferior ao homem. Sobre a educação da mulher, circula naturalmente que este jornal não foi feito para todas as mulheres do Rio de Janeiro do século XX. Segundo os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatísticas), os números de inscritos no ensino secundário e superior no Distrito Federal entre os anos de 1907 a 1912 a quantidade de mulheres matriculadas eram muito inferior ao dos homens tendo uma diferença de 75,3% para eles e 24,7% para elas artigos, ensaios e contos prestigiados da sociedade, desta forma, como nosso corpus 41 no primeiro ano se tratando de nível secundário, ao olhar ao nível superior daquela época a diferença é absurda pois apenas, observando o primeiro ano, 1,3% entravam em uma faculdade (Alves; Beltrão, 2009, p. 129) As barreiras postas a elas eram gigantes, no entanto, a busca por seus direitos vagarosamente iria se Literaturando aumentando, pois: 42 Durante muito tempo o direito de votar foi entendido como um privilégio de poucos, e estes poucos sendo exclusivamente do gênero masculino, brancos e possuidores de bens (Karawejczyk, 2014, p. 69) E, segundo a própria Karawejczyk (2014, p. 70, grifos meus), depois da conquista do direito ao voto: Deixou de ser considerado como meramente simbólico e passou a ser visto como a chave para grandes mudanças e as mulheres que almejavam participar do mundo político passaram a focar seus esforços para influenciar as decisões do Parlamento e sensibilizar seus participantes em reformar a lei em benefício das mulheres. Isso acontece por volta 1890 a 1900, em um momento em que se pautava sobre os direitos femininos a voto, no entanto, como vimos acima este direito só foi conquistado no ano de 1934, para todas as mulheres que tivessem 18 anos e fossem alfabetizadas. O problema se encontra aqui, pois para elas os estudos, anos anteriores, eram muitos restritos, com isso muitas delas ainda não poderiam votar. A alta classe daquela época, ou melhor, as mulheres de alta classe, detinham este privilégio, o Annuario das Senhoras era produzido para mulheres elitizadas, ele assim nos traz a seguinte menção: Na SD6, observa-se que o jornal menciona sobre o vestido de uma mulher que era famosa nos EUA daquela época evocando toda sua luxuria, aqui ele o tenta acertar o inconsciente das mulheres da alta classe que tinha ele em mãos, o casamento parecia ser necessário, mostrando mais uma vez a sua inferioridade ao homem. 2 Atriz e Cantora do teatro norte-americano (de 1903 a 1965) 43 artigos, ensaios e contos SD6. Um fio de perolas no farto véu de tulle de seda, dois fios á volta do pescoço; perolas bordando os sapatos e o vestido de crepe setim branco cuja saia em apanhado na frente se estende pra traz em pequena cauda- fazem de Jeannette Mac Donald 2 uma figura de noiva encantadora, branca e risonha à frente (Annuario das Senhoras, n. 1, 1934, p. 105, grifos meus). O patriarcado produz os sentidos que circulam como naturais sobre a mulher, nos dicionários, segundo Garcia (2017, p. 79): [...] não atribuem à mulher as características de inteligência, honra, honestidade. Esta é somente a fêmea e a meretriz. Sentidos esses que são mantidos e circulam nos grandes dicionários do século XX e XXI. Literaturando Evidencia-se aqui a sua inferioridade ao sexo 44 masculino. O nosso corpus não é feito para todas as mulheres do Rio de Janeiro do século XX, mas sim para as poucas que possuíam acesso à educação e aquelas que possuíam a capacidade financeira para assiná-lo anualmente, logo ele esquece das mulheres da baixa classe, analfabetas e as pretas do rio de janeiro no século XX Ao observar este ponto, o Annuario (n. 1, 1934, p. 140, grifos meus) nos diz: SD7. Sentar-se na cadeira, bem defronte do prato; desdobrar o guardanapo e collocal-o sobre os jelhos. Virá a sopa. Não se deve jámais agarrar a colher com toda mão. A palma fica livre. Ergue-se a colher delicadamente, como si fôra uma penna, entre o indicador e o pollegar, sujeitando-a com o dedo médio. Na SD acima temos os sentidos de como o nosso annuario sustenta os efeitos sobre a mulher, as formações imaginárias sobre elas, aqui ele as ensina, disciplina como um passo a passo em relação a como se portar à mesa: primeiro faça isso, em seguida aquilo, depois aquilo outro etc. Na SD1 vimos que a própria deveria estar vigorosa ao seu parceiro e na SD5 vimos que eram ensinadas a conservar os alimentos, como mostramos também que era dever dela cuidar do seu filho. As mulheres, neste periódico, eram retratadas como dona de casa e que seus afazeres eram cuidar dos cuidar de si, se dava para se mostrar vigorosa ao seu parceiro. Neste mesmo tempo as lutas femininas em busca do direito ao voto aconteciam e como vimos as mulheres conseguiram este direito no mesmo ano da primeira publicação deste jornal, mas ele não traz nem a luta feminina nem esta grande conquista em nenhuma das páginas do periódico, pelo contrário nos mostra: 45 artigos, ensaios e contos filhos, da casa e de seu marido e quando eram para ela SD8. Num canto de sala um jarro alto, de bonita fórma, simplesmente decorado de vermelho velho e azul brilhante, ou amarelo e pardo, o fundo pode ser o próprio barro, o que tornará ainda mais original o vaso guarnecido ainda de folhagens. À direita um prato de parede – para o mesmo “canto” pintado a “laque” um motive arabe (Annuario das Senhoras, n. 1, 1934 , p. 255, grifos meus). Claramente o nosso jornal não se preocupa com as Literaturando lutas femininas daquela época, mas procura, como na SD acima, ensiná-la a arrumar a sua casa deixando a mais bonita, aqui se evidencia, novamente, o papel da mulher no Rio de Janeiro do século XX, a de dona de casa. 46 Considerações finais Nossos objetivos, no desenvolvimento deste trabalho de iniciação cientifica, foram: a) Para quais mulheres o anuário se refere? b) Quais ficam de fora por não se identificarem com o que circula como modelo a ser seguido? e c) O que circula como comportamento social adequado e aceitável no início do século XX sobre/para às mulheres? No decorrer do nosso trabalho, percebemos, no corpus discursivo referente ao Annuario das Senhoras que circulou no Rio de Janeiro entre os anos de 1934-1958, que as formações imaginárias segundo as quais as mulheres eram pautadas/se pautavam não surge nesse periódico, como fonte desses sentidos, mas que já circulavam no social sobre os papeis que cabiam às mulheres no século XX, no Rio de Janeiro: o lugar de subalternação em relação ao homem e de privilégio destes em relação às mulheres de uma forma geral. Além disso nada se diz sobre raça ou classes sociais silenciando tudo o que não fossem as mulheres que tinham poder de consumo, eram Para aquelas, ou seja, para o público-alvo do annuario: os sentidos eram os de servir ao homem, à casa e aos seus filhos. O espaço era o privado uma vez que o annuario se referia quase que de forma geral aos afazeres domésticos, à higiene pessoas, aos cuidados com os filhos e o marido. Mesmo com as lutas importantes e conquista do voto que foi em 1934 no ano que também foi publicado a primeira edição deste jornal, nada se diz sobre isso nas 47 artigos, ensaios e contos escolarizadas e viviam no lar como mãe e esposa. edições analisadas, como se não fossem sobre essas mulheres a que o annuario se referia. Claramente o annuario não se preocupa com as pautas feministas daquela época, mas procura, ao contrário dos sentidos dessas pautas, naturalizar os sentidos sobre a vida privada, ou seja, como arrumar a sua casa deixando-a mais bonita. Este era o papel ou o perfil da Literaturando mulher no Rio de Janeiro do século XX. 48 O Annuario das Senhoras foi um jornal designado às mulheres que possuíam alguma educação formal, escolarização naquele tempo, no entanto, mesmo às que eram escolarizadas, os ensinamentos eram exclusivamente sobre o lar, sobre como se portar e se cuidar para o seu marido e filhos, sobre como cuidar dos filhos. Referências AGUIAR, Neuma. 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Contato: warley.pereira@unioeste.br Literaturando 52 Resumo: Este trabalho compreende o estudo de O Uraguai, de José Basílio da Gama, como esforço de exaltação, por meio da literatura, da figura política de Marquês de Pombal contra os jesuítas à época da Guerra Guaranítica, confronto armado em decorrência do Tratado de Madri que envolveu os índios Guaranis, das reduções jesuíticas, em oposição ao exército lusoespanhol. São ainda esforços de reconstrução da história brasileira à luz da Arcádia, uma vez que o discurso historiográfico se constitui como matéria-prima do poema épico de Basílio da Gama. O caminho metodológico dá-se a partir de uma investigação bibliográfica de base analítico-descritiva. Como aporte teórico, utilizam-se autores como Aristóteles (2005), Bosi (2022), Fischer (2022), Lukács (2000), Lugon (1977), Silva (2017) e White (2019). A análise exposta demonstra o modo como o louvor a Pombal, o heroísmo do indígena e a retaliação jesuítica são estruturados nos fios do discurso histórico tecidos pelo autor no tear da via estética. Palavras-chave: Marquês de Pombal. Guerra Guaranítica. Arcádia. Discurso historiográfico. Poesia épica. Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos Embora um dia a escura noite eterna. Tu vive e goza a luz serena e pura. (Canto V) Introdução O século XVIII representa um momento decisivo para a formação da literatura brasileira. Sob a ótica árcade, as tendências estéticas se voltaram para a harmonia dos clássica. Assim, a produção árcade constituiu-se na justaposição de contrastes, da poética do culto ao bucolismo ao momento ideológico, em cujo cerne se localiza a crítica da burguesia à nobreza e ao clero. Se há em Cláudio Manuel da Costa uma voz poética que ecoa nos prados sentimentais em busca da figura feminina pastoril, em Basílio da Gama o ciclo pombalino emerge da poética do encômio. Figura ambígua, o poeta mineiro cantou a violenta luta entre os luso-espanhóis, os missionários jesuítas e os índios guaranis pela conquista 53 artigos, ensaios e contos gestos temáticos e formais mediante ao retorno à cultura dos Sete Povos das Missões em O Uraguai, de 1769, obra pela qual o autor se destaca entre os árcades circunscritos na produção literária brasileira. Em cinco cantos e mil trezentos e setenta e sete versos brancos, Basílio da Gama constituiu um amplo panorama que inclui a louvação da figura de Marquês de Pombal e a bravura do indígena, vítima da perfídia e astúcia Literaturando de um inimigo a ser combatido: o jesuíta e sua ambição 54 desmedida. O presente artigo tem como objetivo analisar a poética de louvor aos feitos políticos de Pombal no que se refere à expulsão dos missionários jesuítas instalados na região dos Sete Povos, palco da luta retratada na obra, bem como os esforços de reconstrução do discurso historiográfico que constitui a base de O Uraguai. Para isso, este estudo encontra-se dividido em cinco seções, a contar da introdução: discute-se, na segunda, a consolidação do Arcadismo no Brasil com ênfase na produção literária de Basílio da Gama. Embasam essa discussão os estudos de Bosi (2022). Na terceira seção, discute-se a caracterização do gênero épico e, em seguida, na subseção, a tradição do gênero na literatura brasileira. Utilizam-se, como aporte teórico, autores como Lukács (2000), Aristóteles (2005) e Silva (2017). Na quarta seção, busca-se recuperar as condições históricas da Guerra Guaranítica como ponto de partida para a realização da análise de O Uraguai. Fundamentam essa discussão os estudos de Lugon (1977), Silva (2017) e Fischer (2022). Na quinta e última seção, apresenta-se uma perspectiva de análise do discurso historiográfico a partir dos estudos de White (2019). O Arcadismo no brasil A busca pelo natural, pela simplicidade e pela graciosidade segmenta características que marcam e definem o Arcadismo, movimento literário de origem até o ano de 1836 e sendo sucedido pelo movimento romântico. A tentativa de abandono das contradições, das tendências extravagantes e da linguagem rebuscada do movimento Barroco, assim como o resgate de tendências greco-latinas, conduziu os escritores do Arcadismo a um estilo mais harmônico, como assevera Bosi (2022, p. 57): “o que já se postulava no período áureo do Barroco em nome do equilíbrio e do bom gosto entra, no século XVIII, a integrar todo um estilo de pensamento voltado para o racional, o claro, o regular, o verossímil”. artigos, ensaios e contos europeia que predominou no século XVIII, vivendo seu auge 55 A temática da poesia pastoral e a valorização da vida bucólica se dão em contraste com a perspectiva do contexto histórico e social que estava ocorrendo no desenvolvimento urbano da Europa, assim como com o avanço técnico e tecnológico. Esse desenvolvimento acarretou a industrialização e posteriormente o êxodo rural. Teóricos como Bosi (2022) e Candido (2000) explicam Literaturando esse contraste a partir da relação de sentimentos que esse 56 desenvolvimento causou no âmbito da sociedade burguesa, gerando reações de frustração no convívio da cidade e perda da euforia e da felicidade. Ademais, como resultado da insatisfação com a vida urbana, ocorreu uma crescente valorização da vida rural, conforme evidenciado nas produções literárias do período. No Brasil, tem-se considerado como marco de início do Arcadismo as Obras Poéticas do mineiro Cláudio Manuel da Costa, publicadas em 1768, ainda que o autor as tenha publicado em Coimbra e não no Brasil, propriamente. Além do resgate dos poetas gregos e latinos, a poesia setecentista brasileira também se voltou aos escritores portugueses do período quinhentista, sobretudo Camões. O movimento teve forte influência do arcadismo europeu e do iluminismo francês, o que levou diversos autores a se envolverem em grupos com conotações políticas e libertárias, opostas ao governo português, como visto na Inconfidência Mineira. Tal movimento separatista, além de resultar na prisão e pena de exílio a diversos autores desse período, interveio em diversas temáticas das obras árcades, seja como meio de protesto contra o governo e os agentes portugueses, ou, posteriormente, como resposta à promulgação das penas. Os estilos dos escritos árcades brasileiros podem ser divididos em três vertentes: lírico, como os sonetos de Cláudio Manuel da Costa; satírico, como apresentado nas Cartas Chilenas, crítica política escrita de forma mais velada Alvarenga, em que se apresenta uma crítica política mais aberta; e épico, como nas obras Caramuru, de Santa Rita Durão, e O Uraguai, de Basílio da Gama. Basílio da Gama nasceu em 1741, em Minas Gerais, como diversos outros autores árcades. Estabeleceu contato com a Companhia de Jesus, estudando no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro. Após a expulsão dos jesuítas, seguiu para Roma e foi aceito na Arcádia Romana com a ajuda de seus mestres. Após viajar a Lisboa, Gama foi preso por suspeita de jesuitismo e condenado ao exílio, 57 artigos, ensaios e contos por Tomás Antônio Gonzaga, e no Desertor de Silva fato que o conduziu à produção de um Epitalâmio, que dedicou à filha do Marquês de Pombal. Sua astúcia e veemência na escrita não só o fizeram ser perdoado, como levou Pombal a protegê-lo, concedendo-lhe, posteriormente, a publicação da obra épica O Uraguai, em 1769, e o presenteando com a carta de fidalguia no ano de 1771. Outras obras do autor são: A Declamação Trágica Literaturando (1772), Os Campos Elísios (1776), Lenitivo da Saudade (1791) 58 e Quitúbia (1791). O poeta faleceu em Lisboa, em 31 de julho de 1795. O gênero épico No bojo das mais variadas manifestações literárias da tradição ocidental, o gênero épico suscita múltiplas compreensões no campo da literatura. De acordo com Silva (2017), o discurso épico é fundamentado a partir de uma dupla instância enunciativa, a narrativa e a lírica, o que o torna um discurso híbrido. Em outras palavras, a discursividade épica não pode ser definida a partir de uma instância única, mas somente articulada pela concatenação de cada um dos aspectos particulares que a constituem. Assim, a partir dessa dupla instância de enunciação, A epopeia, mesclando naturalmente o gênero narrativo com o lírico, apresenta de um lado os elementos específicos da narrativa literária, personagem, espaço, acontecimento e narrador, inseridos na estrutura verbal duma proposição de realidade, e de outro, os elementos específicos da lírica, eu lírico, espaço lírico e motivação lírica, inseridos na expressão subjetiva da experiência lírica (Silva, 2017, p. 14). Contudo, a distinção entre epopeia e narrativa ficcional faz-se necessária, pois embora seja aquela narrativa, difere-se desta em dois aspectos fundamentais, a saber: No tocante à proposição de estruturação da realidade, a epopeia engendra mito e vivência (real histórico), enquanto a narrativa de ficção propõe a relação do homem com o mundo sob as bases da fabulação. Assim: A narrativa de ficção, sendo uma elaboração imaginária da relação existencial do homem com o 59 artigos, ensaios e contos A epopeia apresenta um eu lírico que integra a expressão formal na estrutura narrativa (utilização do verso como unidade, exploração de recursos rítmicos e sonoros, uso das estrofação e da divisão em cantos), enquanto a narrativa de ficção tem apenas a voz narrativa, utiliza como unidade o período e divide-se, normalmente, em capítulos (Silva, 2017, p. 15). mundo, estrutura uma proposição de realidade ficcional. A epopeia, nutrindo-se do real e do mito fundidos na matéria épica, estrutura uma proposição de realidade histórica. A narrativa de ficção estrutura uma matéria romanesca, elaboração literária do real imaginário; a epopeia estrutura uma matéria épica, fusão do real histórico com o mito (Silva, 2017, p. 15). Silva (2017) assevera que a matéria épica parte da dimensão histórica para a mítica, as quais se fundem para Literaturando dar contornos a uma unidade indissociável. Essa matéria, ela reúne, originalmente, um conjunto de narrativas 60 míticas alinhadas a eventos monumentais, e o aspecto uma vez rearticulada a partir da forma poética da epopeia, recebe um acréscimo: a dimensão literária. Desse modo, literário somente ganha espaço quando tal matéria é recriada na epopeia. Pela fusão das três dimensões da epopeia — a histórica, a maravilhosa e a literária — a natureza épica vincula, no seio da historiografia literária, diversas motivações, entre as quais destacam-se: Aproveitar narrativas da tradição oral; versar sobre temas narrativos heroicos e nacionais, de cunho elevado e sublime, relacionados com feitos guerreiros; referir acontecimentos históricos do passado remoto, de feição lendária; exibir um herói de extraordinária compleição física e psicológica, capaz de realizar feitos memoráveis, inclusive sobrehumanos; inserir tema amoroso em episódios separados na trama narrativa; apresentar um maravilhoso criado pela intervenção de forças sobrenaturais na ação épica; apresentar partes distintas, proposição, invocação, narração e epílogo; realizar o enlace do nacional e do universal [...] (Silva, 2017, p. 18). Aristóteles 1 (2005) alude à necessidade de haver tanto na tragédia como na epopeia determinadas características semelhantes no que se refere às peripécias e à linguagem (devendo esta sempre prezar a excelência). Contudo, a epopeia, por ser narrativa, poderia representar opulência da obra. Para Aristóteles (2005, p. 24): A poesia épica emparelha-se com a tragédia em serem ambas imitação metrificada de seres 1 Anazildo Vasconcelos da Silva, em Formação Épica da Literatura Brasileira, toma o exame aristotélico sobre o discurso épico como uma manifestação de um corpus crítico delimitado, isto é, a epopeia grega. Para o autor, a referida posição crítica não se estende às manifestações vindouras a respeito do mesmo discurso. Não obstante, de acordo com Anazildo, a proposta de Aristóteles, quando tomada como padrão/referência de uma teoria épica do discurso, tornou a épica clássica um referencial teórico a partir do qual todas as demais manifestações de caráter épico foram analisadas, o que, em alguma medida, inviabilizou uma noção crítico-evolutiva da epopeia. artigos, ensaios e contos diversos episódios simultâneos, cuja pertinência elevaria a 61 superiores; a diferença está em que aquela se compõe num metro uniforme e é narrativa. Também na extensão; a tragédia, com efeito, empenha-se, quanto possível, em não passar duma revolução do sol ou superá-la de pouco; a epopeia não tem duração delimitada e nisso difere. Georg Lukács (2000, p. 25), na abertura de A teoria do romance, argumenta que são “afortunados os tempos Literaturando para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos 62 transitáveis e a serem transitados, e cujos ramos a luz das estrelas ilumina”. Para o crítico húngaro, esse era o mundo clássico, em cujo seio a Odisseia e a Ilíada foram gestadas. Na compreensão de Lukács, a existência de heróis como Ulisses e Aquiles é possível apenas na épica clássica, pois a ação do tempo sobre eles não vincula qualquer aspecto transformador, apenas engendra e atualiza a intervenção de uma ordem superior e ideal A épica no Brasil Em terras brasileiras, o percurso do gênero épico assinala uma expressão importante da produção literária. Para Silva (2017), o início da literatura brasileira se localiza no século XVI, a partir da inserção da tradição literária ocidental na produção renascentista, incorporada por José de Anchieta simultaneamente na lírica e na épica. Posteriormente, com a épica de Bento Teixeira e a lírica barroca do século seguinte, a consolidação da epopeia se tornou visível: O legado épico de Anchieta e Bento Teixeira sedimentaria a permanência da epopeia no curso da formação da Literatura Brasileira, marcando presença continuada em todos os períodos literários de sua história. A Literatura Brasileira fez da epopeia expressão legítima de sua formação literária desde o início, incorporando epicamente, em todas as fases de sua evolução, a expressão nacional do momento histórico na expressão artística do momento literário (Silva, 2017, p. 31, grifos nossos). Na compreensão de Silva (2017, p. 32), em 63 Anchieta, a escolha literária (épica) seguiu a inspiração artigos, ensaios e contos homérica, isto é, a noção “de que as culturas dos diferentes povos se erguem sobre uma identidade heroica fundadora de sua cosmologia”. No entanto, nos séculos posteriores, as motivações da epopeia estiveram ligadas a construção literária do ideal de brasilidade como resposta ao processo colonial. Assim, “a epopeia foi uma escolha deliberada de nossos poetas, já que, nutrindo-se do real e do mito, era a forma poética adequada à expressão literária do viés nacionalista da brasilidade” (Silva, 2017, p. 32). Permaneces, Uraguai Publicado pela primeira vez em 1769, O Uraguai, do mineiro José Basílio da Gama, é um dos textos mais importantes da literatura brasileira. Segundo Bosi (2022, p. 68), “o Uraguai lê-se ainda hoje com agrado, pois Basílio era poeta de veia fácil que aprendeu na Arcádia menos o Literaturando artifício dos temas que o desempeno na linguagem e do metro”. Em cinco cantos e mais de mil versos que variam entre o sáfico e o heroico, Basílio cantou a guerra em uma estrutura poética flexível se comparada às divisões regradas do poema heroico. 64 A matéria-prima do poema de Basílio, a Guerra Guaranítica, oferece uma das chaves de compreensão da obra: A equação tem que ser composta não entre dois impérios apenas, mas entre três (talvez quatro) forças: Portugal queria expandir sua fronteira sul ao máximo, de preferência até o rio da Prata; a Espanha queria empurrar Portugal para o norte, preservando para si o domínio daquele rio fundamental; a terceira força é a das Missões (que na verdade contém dois componentes conflitantes, índios e jesuítas), que por mais de cem anos se espraiou pelo miolo do território sul-americano e consolidou-se como uma verdadeira civilização, organizada, produtiva, próspera, integrada aos mercados, etc. (Fischer, 2022, p. 18, grifos do autor). Nesse contexto, o Tratado de Madri, assinado em treze de janeiro de 1750 entre Portugal e Espanha, marcaria o começo de uma história sangrenta. Pelo acordo, Portugal cederia a Colônia de Sacramento à Espanha e esta deveria entregar à Portugal a área ocupada pelos Sete Povo das Missões (margem esquerda do rio Uruguai). Segundo Fischer (2022, p. 19), “um daqueles três atores não foi consultado, as Missões Jesuíticas, que se vinculavam ao mundo espanhol, [...] pagavam tributos à Espanha, comerciavam nas praças das colônias espanholas e, não de deliberações objetivas, o acordo firmado entre as coroas de Portugal e Espanha explicitava as novas configurações territoriais a serem postas em prática: O Art.° 16 diz: “Quanto aos burgos e aldeias que Sua Majestade Católica cede na margem oriental do Rio Uruguai, os missionários abandoná-los-ão com seus móveis e bagagens, levando consigo os índios para que se estabeleçam em outras terras pertencentes à Espanha. Os ditos índios poderão igualmente levar seus bens, móveis e gados, as armas, pólvora e munições que possuam. Os burgos e aldeias serão entregues na forma prescrita à Portugal, com tôdas as 65 artigos, ensaios e contos menos importante, os padres eram espanhóis”. Por meio suas casas e edifícios, e a propriedade imóvel do terreno (Lugon, 1977, p. 284-285). Assim, cada um dos afetados pelo tratado encarou Literaturando as mudanças sob perspectivas distintas: 66 Para os guaranis das sete reduções condenadas, era a espoliação, a ruína e o infortúnio, a destruição do trabalho de muitas gerações, a deportação de mais de trinta mil pessoas, segundo as cifras mais modestas. Se se examinar um mapa, verifica-se que a República Guarani ia ser amputada de metade de seu território, abrangendo as estâncias, os yerbales, as florestas mais ricas e mais vastas, propriedades de onze reduções das duas margens do Uraguai (Lugon, 1977, p. 285). Já para os missionários: [...] a armadilha estava ferozmente armada. Era de prever que os guaranis reagissem. Se os padres os apoiassem, seriam considerados rebeldes. Se não se solidarizassem com seus fiéis, perderiam a confiança dêstes (Lugon, 1977, p. 285). Após várias tentativas frustradas em razão da resistência indígena e jesuítica, em maio de 1756 os exércitos de Portugal e Espanha invadiram as Missões. Fischer (2017), citando os números levantados na obra de Tau Golin 2, assinala: Para avaliar o tamanho da tragédia, vale citar um registro demográfico feito pelos jesuítas acerca dos Sete Povos em 1753, logo antes do processo de expulsão, morte ou fuga: neles haveria 6.144 famílias, num total de 29.052 pessoas. O menor dos povos era São Lourenço, com 1.838 pessoas; o mais populoso, São Miguel, contava com 6.898. Compararemos esses números com outros, do lado português: em 1780, quatro décadas depois, a mais antiga cidade sulina, Rio Grande, tinha 2.421 habitantes, e a aldeia de Porto Alegre contava 1.312 habitantes (Fischer, 2017, p. 22). O Uraguai, se lido sob a perspectiva das diversas 67 nuances históricas que o engendram, oferece ao leitor um artigos, ensaios e contos amplo panorama do Brasil do século XVIII. Para Silva (2017): Basílio da Gama, concebendo o epos nativo da saga heroica da colonização, inicia a narrativa literária de fundação da identidade heroica, inaugurando com O Uraguai uma nova etapa de formação da épica brasileira. [...] o poeta explora a contraposição das óticas culturais do colonizado e do colonizador, 2 GOLIN, Tau. A guerra guaranítica: como os exércitos de Portugal e Espanha destruíram os Sete Povos dos jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul (1750-1761). Porto Alegre/Passo Fundo: Editora da Universidade/Editora da UPF, 1998. inerentes à aderência mítica nativa e ao fato histórico, respectivamente, e refunde os referenciais históricos e simbólicos no curso épico do relato (Silva, 2017, p. 63). O campo de batalha representa, na obra, o esplendor do guerreiro que se transmuta, isto é, que faz a passagem do plano histórico ao mítico. Quanto à Literaturando identidade heroica no poema, Silva (2017, p. 64) ressalta 68 que: É no confronto bélico que o herói conquista a identidade épica, a batalha do Caiboaté era, portanto, o segmento heroico que consagraria os heróis da Guerra Guaranítica. O confronto de uma tropa militarmente adestrada, dispondo de poderosa artilharia, com uma tropa de índios despreparada, armada de arco e flecha na batalha do Caiboaté, evento culminante da guerra guaranítica, em que morreram cerca de mil e quatrocentos índios em apenas uma hora de luta, contra meia dúzia de feridos e apenas uma morte para cada um dos exércitos aliados, caracterizado do ponto de vista militar um deliberado massacre. Consequentemente, do ponto de vista épico, a batalha do Caiboaté consagra apenas os heróis indígenas que, combatendo a tropa inimiga com arco e flecha, conquistam a identidade heroica no campo de batalha. No que concerne à estrutura, a intenção épica pode ser percebida a partir dos elementos tradicionais como invocação, proposição, dedicação, narração e episódio lírico. A Guerra Guaranítica, que oferece as bases para a matéria épica, fundamenta as duas dimensões do poema heroico (real e mítica). Essa matéria é articulada pelo embate entre os índios das reduções, chefiados por Cacambo, e a tropa luso-hispânica, sob o comando de Gomes Freire de Andrade. O confronto armado no campo de batalha delimita-se pela alternância da ótica colonizador-colonizado na instância de enunciação. A abertura do poema, in medias res, reproduz o resultado da Fumam ainda nas desertas praias Lagos de sangue tépidos e impuros Em que ondeiam cadáveres despidos, Pasto de corvos. Dura inda nos vales O rouco som da irada da artilheria. (Gama, 2022, p. 35, grifos nossos). Com efeito, o força bélica do exército chefiado por Gomes Freire de Andrade é contrastada com o sangue derramado pelos guerreiros mortos no confronto. Ouve-se ainda o som da guerra, que ecoa, persistente e vívido, como símbolo funesto. Em seguida, o herói português (Gomes 69 artigos, ensaios e contos fatídica batalha que levou ao massacre indígena: Freire de Andrade) é louvado por subjugar os missionários jesuítas, freando, dessa forma, a expansão da Companhia de Jesus: Literaturando MUSA, honremos o herói que o povo rude Subjugou do Uraguai, e no sangue Dos decretos reais lavou a afronta. Ai tanto custas, ambição de império! (Gama, 2022, p. 35, grifos nossos). 70 No poema, a caracterização de vilania atribuída aos padres jesuítas é evidente. A Companhia de Jesus é descrita como gananciosa por desejar expandir o império para além das terras (reduções) em que estavam. Os padres são vistos como tirânicos pela influência que exercem sobre os indígenas, além de enganadores pôr os colocarem contra os portugueses e espanhóis a fim de usá-los na guerra. Tal caracterização é evidenciada na conversa que os líderes indígenas, Sepé e Cacambo, têm com o general português no Canto II: [...] Esse absoluto Império ilimitado, que exercitam Em vós os padres, como vós, vassalos, É império tirânico que usurpam. Nem são senhores, nem vós sois escravos. (Gama, 2022, p. 65, grifos nossos). A fala acima proferida por Gomes Freire Andrade destaca a posição em que os missionários são colocados na obra: recebem o papel de inimigos a serem combatidos e se revelam os verdadeiros culpados pelos conflitos e a guerra. Ao se referir aos padres como atuantes de um “império ilimitado” e “tirânico”, percebe-se a ideia de que eles possuem poder e influência e desejam governar, tendo como seus súditos e submissos “vós, vassalos”, ou seja, os indígenas. Esse perfil é mantido até o fim do poema, como, por exemplo, na descrição da pintura do teto do templo que pertencia aos jesuítas, presente no Canto V: 71 artigos, ensaios e contos [...] No alto sólio Estava dando leis ao mundo inteiro A Companhia. Os cetros, e as coroas, E as tiaras, e as púrpuras em torno Semeadas no chão. Tinha de um lado Dádivas corruptoras: do outro lado, Sobre os brancos altares suspendidos, Agudos ferros, que gotejam sangue. Por esta mão ao pé dos altos muros Um dos Henriques perde a vida e o reino. E cai por esta mão, oh céus!, debalde Rodeado dos seus, o outro Henrique, Delícia do seu povo e dos humanos. Príncipes, o seu sangue é vossa ofensa. Novos crimes prepara o horrendo monstro. Armai o braço vingador: descreva Seus tortos sulcos o luzente arado Sobre o seu trono; nem aos tardos netos O lugar em que foi mostrar-se possa. (Gama, 2022, p. 123-125, grifos nossos). Tal imagem funciona como comprovação final da ganância e dos objetivos obscuros dos jesuítas relatados na obra. Nos versos: “Os cetros, e as coroas, / E as tiaras, e as púrpuras em torno / Semeadas no chão” há a alegação das Literaturando futuras intenções dos jesuítas com relação não só as terras 72 que cercam o Rio Uruguai, pelas quais batalharam, mas também a outros países, objetivando tornarem-se dominadores desses também. Nos versos: “Por esta mão ao pé dos altos muros / Um dos Henriques perde a vida e o reino. / E cai por esta mão”, a imagem retratada faz referência à morte do rei francês Henrique III, assassinado por fr. Jacques Clemente, em 1589. Esses acontecimentos são apresentados na obra como algo almejado e planejado pelos jesuítas que estavam naquelas terras. Da mesma forma, os versos seguintes: “debalde / Rodeado dos seus, o outro Henrique, / Delícia do seu povo e dos humanos”, fazem alusão à morte de seu sucessor, Henrique IV, como também motivada por tais tiranos. O explícito “antijesuitismo” assumido na obra pode ser explicado como um artifício empregado por Basílio da Gama para conciliar o heroísmo do indígena e o encômio feito a Marquês de Pombal (Bosi, 2022). Tal louvação se sobressai no momento da visão mística que Lindoia tem com o auxílio da sacerdotisa Tanajura. Na cena, a indígena, já viúva, vê a cidade de Lisboa, antes destruída pela guerra, e agora reconstruída pelas mãos de seu salvador: As expressões grifadas acima se referem ao Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal (1769), a quem a obra é oferecida. Sobre os versos “Espírito Constante, / Gênio de Alcides” é interessante salientar que, na mitologia grega, “Alcides” é o nome de batismo dado ao herói Hércules. Dessa forma, tal escolha para fazer menção a Pombal expressa o objetivo do autor em descrevê-lo como alguém muito notável, passível de ser comparado a um dos maiores heróis gregos, alguém que, como parte de seus futuros e 73 artigos, ensaios e contos [...] Mas, do céu sereno Em branca nuvem, Próvida Donzela Rapidamente desce e lhe apresenta, De sua mão, Espírito Constante, Gênio de Alcides, que de negros monstros Despeja o mundo e enxuga o pranto à pátria [...] Já mais bela Nasce Lisboa de entre as cinzas — glória Do grande conde [...] (Gama, 2022, p. 97, grifos nossos). grandiosos feitos, expulsaria os jesuítas e reconstruiria a capital portuguesa (Fischer, 2017). A respeito do indígena, mesmo estando em posição oposta aos “heróis” portugueses e espanhóis, sua imagem é retratada como o “enganado” e o “inocente” em oposição às ambições e aos planos dos jesuítas. Suas principais figuras representantes na obra são Sepé e Cacambo, os Literaturando líderes. A qualidade de verdadeiro herói da obra recai sobre 74 o indígena, especificada inicialmente em Sepé e posteriormente na figura de Cacambo, pois eles lutam contra forças superiores às suas e têm entre suas características as do guerreiro honrado, corajoso e incansável, aquele que dá exemplo, ainda que não tenha sido vitorioso em sua luta: Jaz o ilustre Cacambo — entre os gentios Único que, na paz e em dura guerra, De virtude e valor deu claro exemplo. Chorado ocultamente e sem as honras De régio funeral, desconhecida Pouca terra os honrados ossos cobre. Se é que os seus ossos cobre alguma terra. Cruéis ministros, encobri ao menos A funesta notícia. (Gama, 2022, p. 93, grifos nossos). Há também no episódio da morte de Cacambo a desrealização do fato histórico e a realização épica. As ações e sentimentos encarnados pelos indígenas no poema mostram que eles são os únicos representantes do amor e da fidelidade, atendendo às características de heróis exemplares e honrados e expressando os sentidos de natureza e liberdade. Esses sentidos podem ser encontrados também nas cenas da morte dos indígenas Sepé e Lindoia, o primeiro morto em combate, defendendo sua terra, povo e direitos, e a segunda escolhendo morrer em nome do amor (ou, especificamente, em razão da perda dele). Isso ocorre em contraste com a má fé incumbida aos portugueses: MUSA, honremos o herói que o povo rude Subjugou do Uraguai, e no seu sangue Dos decretos reais lavou a afronta. (Gama, 2022, p. 35, grifos nossos). Nos versos do excerto acima, o militar português Gomes Freire de Andrade é descrito como o herói que deve ser louvado pelos seus feitos, isto é, por ter subjugado o povo rude do Uraguai. Entretanto, observa-se que as justificativas para atribuir a ele o título de herói não são as 75 artigos, ensaios e contos jesuítas e até mesmo com a grandiosidade ilustrada dos mesmas utilizadas para a caracterização do herói na tradição épica. Em relação aos militares portugueses, é possível encontrar no decorrer da obra intenções e práticas sanguinolentas que não condizem com o que se espera do herói épico. O exército português é engrandecido e exaltado no poema por ter derrotado os vilões jesuítas e seus seguidores indígenas, porém, em vista do exposto, Literaturando nota-se que esses feitos não permitem classificá-lo como 76 detentor de heroísmo épico na obra. Tessitura da história: caminhos e tramas A história é uma tapeçaria conjuntiva de formulações com elementos estruturais específicos a partir dos quais os historiadores tecem as narrativas. Dessa forma, o discurso de aspecto histórico caracteriza o ponto de vista, encadeia o espaço e organiza as figuras de enredo tal qual o discurso ficcional. No prefácio de Meta-história: a imaginação histórica do século XIX, Hayden White assinala que, no discurso histórico, [...] o historiador realiza um ato essencialmente poético, em que prefigura o campo histórico e o constitui como um domínio no qual é possível aplicar as teorias específicas que utilizará para explicar 'o que estava realmente acontecendo' nele. Esse ato de prefiguração pode, por sua vez, assumir certo número de formas cujos tipos são caracterizáveis pelos modos linguísticos em que estão vazados (White, 2019, p. 12). White (2019), partindo das categorias estabelecidas por Northrop Frye em Anatomia da Crítica, propõe quatro modos de elaboração de enredo mediante os quais o historiador pode “esculpir” os acontecimentos históricos, a saber: a estória romanesca, a tragédia, a comédia e a sátira. A estória romanesca “é fundamentalmente um drama de auto-identificação simbolizado pela aptidão do herói para transcender o 77 mundo da experiência, vencê-lo e libertar-se dele no final”, artigos, ensaios e contos como também “um drama do triunfo do bem sobre o mal, da virtude sobre o vício, da luz sobre a treva” (White, 2019, p. 24). A sátira, para o teórico, configura-se como um “drama da disjunção, drama dominado pelo temor de que o homem é essencialmente um cativo do mundo, e não seu senhor” (White, 2019, p. 24). A comédia oferece uma esperança temporária de vitória do homem sobre o mundo no qual ele está inserido. Nas palavras do autor, isso ocorre em razão da “perspectiva de reconciliações ocasionais das forças em jogo nos mundos social e natural” (White, 2019, p. 24). Por fim, a tragédia apresenta a “queda do protagonista e o abalo do mundo que ele habita”, e “para os expectadores da luta houve uma aquisição de conhecimento” (White, 2019, p. 24). Segundo a compreensão de Hayden White, na tessitura da história, os historiadores relacionam os eventos a uma dessas categorias, cujo resultado, um Literaturando trabalho que ambiciona a objetividade, constitui-se de 78 modo muito análogo ao discurso ficcional. A composição de O Uraguai, cuja matéria-prima de elaboração narrativa encontra-se na Guerra Guaranítica (1753-1756), parece corresponder à articulação da estória romanesca, uma vez que a luta do bem contra o mal, representado pelo embate afoito entre as forças luso-espanholas e os índios guaranis, permeiam a obra toda. Não obstante, a morte de Sepé 3 e 3 Em um dos momentos de maior tensão da obra, no fim do Canto II, o líder indígena é assassinado na batalha contra o exército lusoespanhol. Ao morrer na guerra, Sepé faz a passagem do plano histórico ao plano mítico, concretizando-se, dessa forma, a matéria épica. O texto de Basílio da Gama ressalta a bravura do herói indígena, cujo legado permanece vivo até hoje, mais de duzentos anos depois, no âmago da cultura rio-grandense, para a qual ele é uma espécie de herói da resistência: “fez proezas Sepé naquele dia. / Conhecido de todos, no perigo / Mostrava descoberto o rosto e peito, / Forçado os seus co’ exemplos e co’ as palavras” (Gama, 2022, p. 79). posteriormente e de Cacambo sinaliza a libertação do herói em relação ao mundo: [...] Rende-te ou morre, Grita o governador; e o tape altivo, Sem responder, encurva o arco, e a seta Despede, e nela lhe prepara a morte. Enganou-se esta vez. A seta um pouco Declina, e açouta o rosto a leve pluma. Não quis deixar o vencimento incerto Por mais tempo o espanhol e, arrebatado, Com a pistola lhe fez tiro aos peitos. Era pequeno o espaço, e fez o tiro No corpo desarmado estrago horrendo. Viam-se dentro, pelas rotas costas, Palpitar as entranhas. Quis três vezes Levantar-se do chão: caiu três vezes, E os olhos, já nadando em fria morte, Lhe cobriu sombra escura e férreo sono. Morto o grande Sepé, já não resistem As tímidas esquadras [...] (Gama, 2022, p. 81, grifos nossos). 79 batalha, representa a luta do herói contra as forças da desventura, o que corresponde, na perspectiva whiteana, à transcendência do mundo da experiência e à autolibertação em relação a ele. O mesmo ocorre com Cacambo que, após ter uma visão de Sepé o encorajando a artigos, ensaios e contos O desfecho de Sepé, assassinado cruelmente na lutar, incendeia o acampamento dos luso-espanhóis e retorna para juntos dos padres, quando é traído e Literaturando assassinado por Balda: 80 Mas não sabia que a fortuna entanto Lhe preparava a última ruína. Quanto seria mais ditoso! Quanto Melhor lhe fora o acabar a vida Na frente do inimigo, em campo aberto Ou sobre os restos de abrasadas tendas Obra do seu valor! [...] Ou foi que Balda, Engenhoso e sutil, quis desfazer-se Da presença importuna e perigosa Do índio generoso; [...] Tornar não esperado e vitorioso Foi todo seu delito. Não consente O cauteloso Balda que Lindoia Chegue a falar ao seu esposo; e manda Que uma escura prisão o esconda a aparte Da luz do sol. [...] até que à força De desgostos, de mágoa e de saudade, Por meio de um licor desconhecido, Que lhe deu compassivo o santo padre, Jaz o ilustre Cacambo — entre os gentios Único que, na paz e em dura guerra, De virtude e valor deu claro exemplo. Chorado ocultamente e sem as honras De régio funeral, desconhecida Pouca terra os honrados ossos cobre. Se é que os seus ossos cobre alguma terra. (Gama, 2022, p. 91-93, grifos nossos). Há em O Uraguai um discurso histórico que não deixa dúvidas quanto ao aspecto unívoco. A tirania do jesuíta, que exerce opressão pelo controle da ingenuidade do indígena, é um mal a ser combatido pelas forças portuguesas e espanholas. Ao tecer os fios da história na composição literária, Basílio da Gama tenta conciliar um jogo de forças distinto entre si com vistas a sobrepujar a imagem de Marquês de Pombal. Para Hayden White (2019, p. 24), o modo trágico vincula a “queda do protagonista e o abalo do mundo que efetivamente atinge os heróis: Cacambo, que se faz herói na morte, por meio da qual a realização épica toma forma, e Lindoia, cujo suicídio 4 após a morte de Cacambo eleva o prestígio do amor mediante à resistência diante das agruras sofridas: 4 O local da morte de Lindoia é caracterizado por meio do bucolismo e da exaltação da natureza, elementos comuns na produção árcade, como observável nos versos: “entram enfim na mais remota e interna / Parte do antigo bosque, escuro e negro, / Onde ao pé de uma lapa cavernosa / Cobre uma rouca fonte, que murmura, / Curva latada de jasmins e rosas” (Gama, 2022, p. 113). 81 artigos, ensaios e contos ele habita”, o que alude, em O Uraguai, à derrocada que Literaturando 82 Um frio susto corre pelas veias De Caitutu, que deixa os seus no campo; E a irmã por entre as sombras do arvoredo Busca co’ a vista, e teme de encontrá-la. Entram enfim na mais remota e interna Parte do antigo bosque, escuro e negro, Onde ao pé de uma lapa cavernosa Cobre uma rouca fonte, que murmura, Curva latada de jasmins e rosas. Este lugar delicioso e triste, Cansada de viver, tinha escolhido Para morrer a mísera Lindoia. [...] Mais de perto, Descobrem que se enrola no seu corpo Verde serpente, e lhe passeia, e cinge Pescoço e braços, e lhe lambe o seio. [...] Leva nos braços a infeliz Lindoia O desgraçado irmão, que ao despertá-la Conhece, com que dor!, no frio rosto Os sinais do veneno, e vê ferido Pelo dente sutil o brando peito. [...] Nos olhos Caitutu não sofre o pranto, E rompe em profundíssimos suspiros, Lendo na testa da fronteira gruta, De sua mão já trêmula gravado, O alheio crime e a voluntária morte. E por todas as partes repetido O suspirado nome de Cacambo. Inda conserva o pálido semblante Um não sei quê de magoado e triste, Que os corações mais duros enternece, Tanto era bela no seu rosto a morte! (Gama, 2022, p. 113-117, grifos nossos). Desse modo, a queda dos heróis indígenas na obra sinaliza grandeza e marca a resistência diante do abalo sofrido, motivado pelas forças que os compelem. Considerações finais O antijesuitismo e a louvação ao Marquês de Pombal e aos feitos portugueses são características claras e marcantes na obra O Uraguai, do poeta mineiro Basílio da Gama. Esse pendor pode ser analisado através da forma 83 pela qual o autor constrói os elementos da narrativa, dando artigos, ensaios e contos a cada parte envolvida um papel: o vilão, o louvado e o herói, enquanto se mantém dentro da estética épica e da compleição da historicidade. O fato de a obra se tratar de um poema épico permitiu que tais elementos fossem possíveis, já que os aspectos narrativo e lírico coexistem dentro de tal gênero literário, o que oportuniza a estruturação das dimensões histórica, maravilhosa e literária na narrativa. A temática da obra, com conotações políticas e críticas à instituição jesuítica, bem como a exaltação do bucolismo, demonstra a primazia do Arcadismo sobre a estética vigente no contexto da literatura brasileira da época. Dessa forma, O Uraguai trata o indígena como o verdadeiro herói, inocente e corajoso apesar da derrota sofrida, e o jesuíta como seu enganador, tomando a postura de vilão e inimigo, responsável pelo torpor da guerra e por todos os males apresentados na obra. Há Literaturando nesse artifício de atribuição de vilania à Companhia de 84 Jesus a possível conciliação dessas forças, assim como o encômio feito a Pombal e aos lusitanos, os vencedores do confronto final na obra. Na tentativa de conciliar essas forças distintas, Basílio da Gama reescreve, pela via estética, a história da Guerra Guaranítica à luz do Arcadismo, entre a qual encontram-se a transcendência do herói indígena em relação a seu mundo imediato e sua queda frente ao abalo desse mundo. Com efeito, Basílio cantou o fogo da guerra e os rumores da artilharia para que O Uraguai permanecesse e gozasse a luz serena e pura nos bosques da Arcádia e na história da literatura brasileira. Referências ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Trad. Jaime Bruna. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2022. CANDIDO. A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. FISCHER, L. A. O Uraguai: seu autor, seu contexto, suas virtudes. In: GAMA, B. O Uraguai. Porto Alegre: L&PM, 2022. GAMA, B. O Uraguai. Porto Alegre: L&PM, 2022. LUGON, C. A república "comunista" cristã dos guaranis. Trad. Álvaro Cabral. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. SILVA, A. V. Formação épica da literatura brasileira. São Paulo: Paco, 2017. WHITE, H. Meta-história: a imaginação histórica no século XIX. Trad. José Laurênio de Melo. 2. ed. 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Para início de entendimento, é importante destacar que o conceito de literatura infantil está intrinsecamente ligado ao que conhecemos por infância, ou melhor, ao sentido de infância e juventude construído ao longo das décadas em nossa sociedade. O conhecimento que temos hoje sobre ser criança e jovem é um processo que se iniciou há muito tempo e ainda se encontra em desconstrução, pois envolve múltiplos fatores, como veremos a seguir. Segundo, José Gregorin Filho (2010, p. 16): Literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, e a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível realização. São, portanto, textos capazes de provocar sentimentos que instigam a curiosidade no jovem leitor, transportando-o ao mundo da fantasia: lugar imaginário onde a criança pode ou não se identificar com personagens, espaços, histórias e acontecimentos. Nesse lugar fictício, espaço do imaginário, o jovem leitor exercita a criatividade a partir das expectativas que cria sobre determinada obra, bem como, a formulação de hipóteses e possíveis desfechos das narrativas que lê. Quanto a sua forma, o gênero infanto-juvenil está poesias, contos, fábulas, mitos, narrativas de ficção, histórias de fantasia, contos de fadas e histórias em quadrinhos. Em relação ao conteúdo desses textos, revelam um arcabouço de possibilidades que variam entre idades, gêneros e classes sociais de crianças e jovens leitores. A origem da Literatura destinada ao público infantil O nascimento de um gênero literário cujas características e estruturas textuais resultam na realização 91 artigos, ensaios e contos relacionado a tipologias tradicionais como poemas, mágica da leitura e na emancipação de crianças e adolescentes faz parte de um processo construtivo que vem se desenvolvendo desde sua origem entre os séculos XVII e XVIII. Segundo Regina Zilberman (2012, p. 22-23), pesquisadora de Literatura Infantil e autora de diversos Literaturando estudos sobre a relação entre literatura e infância: 92 Entre os gêneros literários existentes, um dos mais recentes é constituído pela literatura infantil, que apareceu durante o século XVIII, época em que as mudanças na estrutura da sociedade provocaram efeitos no âmbito artístico, mudanças que vigoram até os dias atuais. As mudanças ocorridas na estrutura da sociedade, comentadas pela teórica, referem-se à decadência de gêneros clássicos como a epopeia e a tragédia que narravam histórias mitológicas e apresentavam personagens da aristocracia. Esses e outros gêneros deram lugar a outras formas, por exemplo: o romance e o drama, para atender as mudanças da classe burguesa em ascensão, responsável pela formulação do conceito de infância que revigora até os dias atuais. É com o surgimento da burguesia que o conceito de infância ganha um significado, a partir daqui a criança passa a representar a imagem central do seio familiar, onde os pais têm a tarefa de zelar pela saúde e participar ativamente no processo de desenvolvimento intelectual de seus filhos. Entretanto: A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e manipulação de suas emoções. Literatura infantil e escola, inventada a primeira e reformada a segunda (Zilberman, 2012, p. 6). Se por um lado, o nascimento da burguesia possibilitou maior aproximação entre pais e filhos, por outro, criou formas de manipulação, subestimação, imposição de valores sociais e regras de comportamento à 93 criança por meio das histórias narradas nos textos a ela artigos, ensaios e contos dirigida. Tais medidas tomadas pela burguesia por meio da literatura visava o domínio intelectual do jovem em detrimento da manutenção de pensamentos tradicionais perpassados entre gerações. Outro acontecimento determinante para a origem e disseminação da Literatura Infantil está no avanço causado pela revolução industrial, que possibilitou a produção de livros em maior escola: [...] o progresso das técnicas de industrialização chegou à arte literária, facilitando a produção em série de obras e de materiais de fácil distribuição e consumo, fenômeno posteriormente designado como cultura de massa (Zilberman, 2012, p. 22). Desde então, as obras foram se tornando cada vez mais acessíveis para o público que já tinha acesso a elas, mas, principalmente para a maioria da população que não tinha direito ao conhecimento. Pela primeira vez pessoas Literaturando consideradas comuns puderam comprar livros para seus 94 filhos. Tal evolução permitiu que as classes sociais menos privilegiadas da época tivessem acesso à cultura e o direito a literatura. A Literatura como instrumento pedagógico Outro fator citado na obra de Zilberman, intitulada: A Literatura Infantil na Escola, fala sobre a natureza formativa do espaço educacional, que enxergou na literatura um forte instrumento para o ensino de valores. Segundo a mesma teórica: A aproximação entre a instituição e o gênero literário não é fortuita. Sintoma disso é que os primeiros textos para crianças são escritos por pedagogos e professoras, com marcante intuito educativo (Zilberman, 2012, p. 6). A princípio esses textos não tinham pretensão de emancipar as crianças no desenvolvimento da imaginação, da criatividade, da sensibilidade e da arte, do contrário. A literatura dirigida à infância possuía caráter educativo oriundos dos valores sociais tradicionais da época. Daí se deve também o nascimento do gênero infantil, ou seja, da aproximação da pedagogia, envolta nos processos de alfabetização dos pequenos leitores em formação. Segundo o pesquisador Edmir Perroti (1896), no campo educacional, torna-se necessário distinguir o utilitário do estético, isto é, deve-se pensar nas funções dos moralmente, dos que possuem caráter artístico e que, portanto, merecem ser lidos pelos pequenos. O papel do educador no processo de escolha dos textos No Universo da Literatura Infantil cabe ao educador selecionar os textos que serão trabalhados em sala. As temáticas envoltas nos materiais elaborados pelo mediador devem condizer com a faixa etária, bem como a identidade de cada turma escolar para ocorrer o processo 95 artigos, ensaios e contos textos, delimitando quais cumprem o papel de ensinar de leitura e para que a aquisição do conteúdo, por parte dos estudantes, se realize de maneira eficaz. Contudo, deve-se também pensar em obras que possibilitem ao estudante relacionar o texto à sua exterioridade, considerando fatores históricos, culturais e sociais para que exista uma ampla reflexão por parte dos Literaturando estudantes acerca de uma determinada obra: 96 Quem se vê na posição de mediador de leitura tem por dever ser bastante exigente e seletivo nos títulos que indica, não se deixando satisfazer com texto banais, didatizados, simplificadores, feitos de encomenda pelo mercado para atender a esta ou aquela faixa etária, a esta ou aquela série escolar, a este ou aquele tema da moda, por inserir-se nas diretrizes educacionais A, B ou C. (Ceccantini, 2011, p. 3). Ao observar esses aspectos, o educador seleciona obras de qualidade, textos que facilitam o surgimento de identificação do estudante com um personagem ou acontecimento ocorrido na narrativa por eles apreciada; evita obras superficiais que impedem o educador de explorar temas sensíveis. Até mesmo, obras feitas com o intuito de atender a um mercado específico visando somente o lucro capital. Do mesmo modo, deve se pensar em textos que desafiem os estudantes, deslocando-os da zona de conforto da leitura, segundo João Luís Ceccantini (2011, p. 3): É preciso não ter medo de colocar nas mãos das crianças, o quanto antes, textos literários densos, de maior complexidade, de ampla envergadura, textos cuja leitura deixe marcas profundas na personalidade de quem os lê. Cada vez mais, é preciso desafiar os jovens leitores a saírem da zona de conforto literária, buscando expandir seus horizontes, torna-se papel do educador desafiar os jovens leitores para conhecer o novo, o diferente. materiais, diz respeito a responsabilidade do professor em ter um bom repertório literário. É necessário que o educador seja um leitor assíduo: Essa postura desafiadora exige que o mediador de leitura/professor seja ele mesmo um leitor voraz; possua um amplo repertório de leituras, continuamente atualizado, de modo a poder escolher de fato a cereja do bolo e a não levar gato por lebre (Ceccantini, 2011, p. 5). artigos, ensaios e contos Outro fator importante a respeito da seleção de 97 É indicado que esse profissional possua amplo conhecimentos das obras com as quais irá trabalhar em aula. Ele deve construir critérios rigorosos e exigentes na seleção de textos que irá levar à sala de aula A Literatura como ferramenta de identificação do Literaturando jovem leitor 98 No capítulo 7, A geração 70, Impasses e Renovação, do livro O Texto Sedutor na Literatura Infantil, o professor aposentado e escritor, Edmir Perrotti, escreve sobre o discurso utilitário no ensino da literatura nas escolas, discurso que segundo o professor: “procurou sempre oferecer a crianças e jovens atitudes morais de conduta a serem seguidos” (1986, p. 2). E analisa, por meio de exemplos, obras que buscaram formas de se desprender do utilitarismo tradicional no uso de inovações semânticas. Uma mudança perceptível, ainda que tímida, nesse paradigma, está na obra infanto-juvenil escrita por Ana Maria Machado, em 1979, intitulada: Raul da Ferrugem Azul. Embora, segundo o autor, a obra se encaixe nos preceitos utilitários, consegue de alguma forma se desprender do modelo tradicional ao apresentar novos conteúdos como: 1) A valorização da emoção; 2) O reconhecimento de dificuldades psicológicas da criança (ignorado no modelo tradicional); 3) A valorização da criança ativa, participante de sua história; 4) A valorização da mulher, enquanto ser ativo. 5) O reconhecimento do saber popular como forma de libertação. Essas e outras inovações apresentadas nas demais obras analisadas no livro, apontam para as diferenças de percepções da realidade ao longo dos anos. Todas as mudanças de paradigma se apoiam na inserção de temáticas diversas nas histórias que antes não ganhavam espaço. É evidente a evolução que as histórias de literatura Histórias que questionam o preconceito racial e de gênero; histórias que apresentam personagens homossexuais superando conflitos pessoais e externos, construindo laços e participando ativamente da narrativa; histórias que conversam sobre diferenças entre classes sociais e econômicas etc. São exemplos de como a literatura que levamos as crianças servem como instrumento de representatividade. emancipação por meio da 99 artigos, ensaios e contos infanto-juvenil vêm passando desde a década de 70. Considerações finais Em síntese, o que conhecemos hoje por literatura infanto-juvenil se deve as transformações pelas quais o gênero literário passou desde seu surgimento. Destaca-se a atual inquietação na busca de uma definição para o conceito de literatura infantil e para o Literaturando papel importante que possui, sendo ela o lugar onde a 100 criança se permite disfrutar do estado da arte, da estética e dar asas a sua imaginação. Ao término deste ensaio, conclui-se que a literatura servindo unicamente com propósito pedagógico e pragmático na escola, no processo do desenvolvimento infantil, retira da criança a magia da apreciação; o caráter imaginativo; o estado da arte e a fantasia de fazer parte de um outro universo. A proíbe de realizar-se numa outra existência sendo ela igualmente ou mais complexa que sua realidade imediata, criada a partir do conhecimento de mundo individual, cuja influência das condições sociais nas quais vive, lhe permite sonhar Referências CECCANTINI, João Luís. Literatura Infantil: a narrativa. UNIVESP, 2011. FILHO, José Nicolau Gregorin. Literatura Infantil: múltiplas linguagens na formação de leitores. Melhoramentos, 2010. PERROTI, Edmir. O Texto Sedutor na Literatura Infantil. São Paulo: Icone, 1986. (Coleção Educação Crítica). ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global, 2012. 101 artigos, ensaios e contos 102 Literaturando Contos DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.04 A dama da noite Giovanna Victória Pilotti Giovanna Victória Pilotti é Acadêmica do Curso de Letras da Universidade do Oeste do Paraná. Contato: giovannapilotti660@gmail.com Em uma bela tarde de outono, um jovem rapaz estava sentado por mais um dia na mesa 9 de um café, já era de costume, às 15h a mesa estava aguardando sua Literaturando reserva de um dono de uma fábrica de tecidos para que, 106 assim pudesse tomar seu cappuccino acompanhado de um belo bolo enquanto lia o jornal. Arthur Rothgar, proprietário do Ateliê Rothgar, do qual foi herdado de seu pai após uma trágica morte devido a uma cardiopatia. Assim como o empreendimento, infelizmente, o rapaz também nasceu com tal doença e sabia que isso faria com que tivesse poucos anos de vida pela frente, isso fez com que o seu pensamento em relação a criar uma família mudasse, nada colocava em sua cabeça que um dia se casaria, além disso, sua aparência não contribuía. Diversas moças frequentavam seu negócio atrás da matéria prima de seus belíssimos vestidos, mas, nenhuma se encantava por tal. O rapaz, pelo qual todos tinham ciência de quem se retratava, era um grande frequentador de bordéis, buscava beber e aproveitar a vida através das festas das quais ele mesmo bancava. Segundo o pensamento dele, somente pagando conseguiria conquistar o prazer de uma mulher bela, porém, muitas das vezes nem o dinheiro que tinha pagava por isso, a fábrica estava falindo, então pouco dinheiro ainda lhe restava, da mesma forma, o homem gastava como um milionário. Certo dia, enquanto estava festejando num bordel, seus olhos deram de encontro com os de Ângela Courtenay, mesmo que ambas as belezas não fossem de muito agrado, algo entre eles ornou, foram de encontro um ao outro e começaram uma conversa um tanto quanto peculiar. Ângela era uma das mulheres que trabalhavam no cafetina, era a mulher que menos lhe dava lucro. O pouco de diálogo resultou em uma noite juntos, que tristemente acabou após três batidas na porta, a cafetina apareceu para a cobrança... — Bom dia, queridos pombinhos! Arthur, já está na hora de ir embora e deixar minha mocinha trabalhar, pode acertar sua conta no caixa lá embaixo. — Ah, bom dia, Bruna. Estou indo já, obrigado. — Respondeu assustado com a presença. 107 artigos, ensaios e contos bordel, estava quase à beira da rua, pois, segundo a Sendo assim, colocou suas roupas e seguiu até o caixa onde pagou com as últimas notas que restavam e assim seguiu até a fábrica, hoje seria mais um dia pelo qual passaria por apuros se não vendesse, não havia mais nada dentro de casa, a não ser uma garrafa de cachaça e suas roupas, boa parte de seus móveis estavam penhorados para arcar com as dívidas. Mas, pelo movimento da semana Literaturando que se passou, dificilmente venderia bem naquele dia, ao 108 abrir a loja notou-se que logo abaixo da porta havia no mínimo sete cartas de aviso de despejo, e em 48 horas se o aluguel não fosse pago, a ordem de despejo seria validada e os móveis recolhidos... Apesar de todos os problemas do qual o mesmo deveria resolver, na cabeça se passava um filme da noite anterior com Ângela, mesmo que não estivesse nenhum pouco sóbrio aquela dama teria mexido com o seu psicológico, ao deixar a cama, não a viu, e talvez não a visse tão cedo também. A venda daquele dia o surpreendeu grandemente, conseguiu o dinheiro do aluguel em um só dia, o que lhe restou foi o que garantia que sua fome seria cessada durante aquela noite, sem mais delongas foi até o mercado mais próximo e fez um macarrão à bolonhesa, do qual gostava tanto. Embora tivesse boa parte de seus maiores problemas resolvidos, algo faltava, sentia metade do seu ser esvaído, aquilo que antes de conhecer a moça nunca havia acontecido, será que uma paixão estaria ali se rebelando? Arthur sabia que dificilmente a encontraria pelas ruas ou até mesmo em sua fábrica, afinal, era moça da vida, das qual dificilmente saia do ambiente do qual trabalhava, até porque a classe não era respeitada. O medo da paixão era constante em seu coração, assim como a incógnita entre saber se ela estava pensativa assim como ele. Enquanto a reflexão de Arthur seguia em sua mente, a dama da noite estava em seus trabalhos, estranhas em seu corpo, o jovem teria sigo somente mais um dos seus clientes, ainda que, a vontade de seu coração era largar a vida miserável da qual estava vivendo, estava ali por pura precisão, seus pais faleceram quando ela havia apenas 10 anos, deixando uma irmã pequena para que criasse, não tendo sustento nenhum buscou a vida de prostituição, mas seu coração palpitava ao pensar em uma grande família. As mocinhas com os pais eram criadas afim de que conquistassem seus maridos naquela época, e ela logo quando pequena se tornou mãe de quem ao menos 109 artigos, ensaios e contos seguindo sua vida normalmente com algumas sensações pariu. Aos 10 anos, responsável pela vida de um ser humano, do qual precisa de amor, cuidados, sustento, sem que ela houvesse algo a se receber. Cerca de uma semana se passou, as vendas da fábrica aumentaram, mais tranquilo, infelizmente sabia que para ir atrás daquela que tomou conta de seus pensamentos seria necessário ir até o bordel onde ela se Literaturando encontrava. Ao chegar, não encontrou o brilho no olhar que 110 ela tinha após doses de bebida, viu um brilho diferente em seu olhar, talvez fosse sim uma grande paixão, mesmo que não a conhecesse, mesmo que não tivesse a beleza mais esperada do mundo, era naquele olhar que se encaixava, mas, sabia que se assumisse esse amor, possivelmente perderia sua credibilidade como pessoa da sociedade. Parou de ouvir seus pensamentos e foi até aquela que carinhosamente apelidou de “dama da noite”. — Olá, senhor Rothgar, a que devo sua presença!? — Disse Angela. — Olá, Ângela, como está você? Estive pensando em você durante a semana, queria poder te conhecer um pouco mais, não sei se realmente deveria contar isso a você, mas meu coração clama. — Respondeu Arthur de forma desengonçada. — Estou um pouco preocupada... Do que você está falando? Infelizmente, ao que a sociedade julga, não sou uma mulher descente para formar uma família, apesar de que já tenho a minha pequena... E, sinceramente, acho que preciso conversar com você, mas, precisamos conversar longe daqui, estou sentindo alguns enjoos desde que esteve aqui, você foi o único com quem me relacionei nos últimos meses, estou quase à beira da rua por não despertar a atenção de outros rapazes além da vossa senhoria. Tendo em vista que aquela conversa não poderia acontecer naquele lugar, tomaram a decisão de se foi feito, ao chegar, a mulher reparou que a casa não teria a estrutura prevista para um homem bem de vida do jeito que achou que ele era, logo, surpresa o perguntou: — Mas, o senhor disseste a mim que era dono de uma fábrica de tecidos, uma das mais reconhecidas, cadê o conforto desta casa? Não há móveis, não há nada. — Pois é, minha fábrica está falindo, desde que papai partiu, não tenho animo para nada, quem despertou minha vontade de viver foi a vossa companhia durante aquela noite. Não tenho dinheiro, o que me resta é a minha 111 artigos, ensaios e contos encontrarem na casa de Arthur na manhã seguinte, e assim moradia e por enquanto a fábrica que ainda está de pé, mas, não sei até quando. — respondeu o comerciante. — Tive certeza que seria o homem com o qual teria a minha família justamente por sua vida ser bem sucedida, até o ponto que eu sabia... Eu iria te enganar, mas, pelo visto, fui a repudiada da história, como você vai dar o sustento dos meus filhos se é você é pobre e ainda por cima Literaturando alcoólatra? E sem querer te entristecer ainda mais, mas, eu 112 não posso continuar trabalhando prenha. — Indagou a prenha — Você irá trabalhar até que complete seis meses de gestação, depois poderá trabalhar somente em casa, ainda sou o pai do bebê que está dentro de você e portanto, você vai. Enquanto ao golpe do qual quis me dar, bem feito! Não sou nada do que a vossa mocidade pensa assim como vossa mercê não é nada do que imaginei. Iremos manter tudo embaixo dos panos até que esse bebê nasça. — Assim Arthur encerrou a discussão. Diante daquilo que resultou o fim da discussão, a espertalhona moça seguiu a vida, mesmo que já tinha certeza de que o rapaz não era pai do bebê que estava gestando, o verdadeiro genitor era ainda mais medíocre. Enquanto isso, o comerciante tentava reerguer o seu negócio para que assim pudessem viver uma vida tranquilamente, já sabendo de todos os riscos que ambos estavam expostos, ressaltando principalmente a relação da prenha, como o pai do seu filho ordenou, continuou trabalhando, podendo facilmente ser pega de surpresa por uma doença sexualmente transmissível. Com meados de seus 5 meses começaram a aparecer algumas espécies de bolas por cima de sua pele, doíam de forma intensa, foi ai que sentiu a necessidade de ir até um médico procurar saber o que estava acontecendo, que riscos aquilo traria para a criança que estava em seu ventre, até que o doutor confirmou que aquilo que ela estava sofrendo era a passar para o feto durante a gestação. Depois da consulta foi imediatamente conversar com Arthur para avisá-lo que não poderia seguir trabalhando, precisava de repouso, contou sobre a doença e os perigos que ela e o bebê estariam correndo. Com isso, aquilo que estava até o presente momento por debaixo dos panos teve de ser afirmado como uma união, passando a moradia em conjunto e um possível casamento. Cada dia que passava, as dores pioravam, a doença espalhou pelo seu corpo rapidamente, não tinha forças, a 113 artigos, ensaios e contos chamada sífilis, sem cura e com grandes chances da doença dor ardia. Completaram as 39 semanas com muito sofrimento, mesmo em casa, seu dever era servir ao seu marido, quando chegasse a comida tinha que estar em cima da mesa, a casa deveria estar limpa e organizada, suas roupas limpas para um novo dia de trabalho, fazia seu serviço com êxito, até a dor de o parto manifestar-se. Na primeira troca de lua... Literaturando — Sinto que devo chamar a parteira, estou sentindo 114 o bebê chegar. — Exclamou Angela grunhindo de dor. — Não deveríamos consultar primeiro para ver se é isto!? Como saberíamos que está a chegar!? — Assustado, respondeu Arthur. — Pare de problematizar tudo, ao menos uma vez. Escute-me, chame a parteira o quanto antes, sinto a cabeça do bebê. Naquele dia, seu mundo mudaria por completo, agora seria pai, título que nunca havia passado pela sua cabeça antes, mesmo que, fora sem envolvimento de sentimento algum. Chamou a parteira enquanto sua agora esposa estava aos gritos no quarto. Segundo a parteira, a moça estava com uma grave hemorragia que complicaria ainda mais o parto, podendo ocasionar a morte do bebê e da própria moça. O parto deveria de acontecer da mesma forma, a dilação estava em 8 dedos já, até que com toda a força feita, nasceu! Ao mesmo som do choro da criança ouviam-se gritos da parteira vindo do quarto, Ângela se foi. A alegria e a tristeza mesclavam-se naquele ambiente, enquanto uma vida se fora outra chegara, um menino, do qual se chamaria Inácio Rothgar. Inácio cresceu escutando as histórias da sua mãe pela voz de sua irmã, Angelina, a garotinha que foi criada por Ângela após o falecimento dos seus pais. O menino não herdou a sífilis de sua mãe, porém, aos 15 anos já era alcoólatra, como seu pai, dizem que filho de peixe, peixinho é, a cardiopatia de seu pai estava presente em seu DNA. esteve acompanhado de Angelina, seu pai seguia o mesmo de sempre, festeiro e frequentador de bordéis, ao menos, conseguiram estabilizar a fábrica de tecidos novamente, quando seu filho completara 16 anos além de ensina-lo a trabalhar no meio das máquinas e na administração daquilo que lhe seria herdado, como ensinamento o levou até o bordel onde conheceu a sua mãe, para que realmente o menino fosse sua cópia completa, pois somente assim teria orgulho. 115 artigos, ensaios e contos Com o falecimento da sua mãe, Inácio sempre As atitudes do pai influenciavam de forma intensa nas atitudes do pequeno, a forma que pensava o modo com que tratava as mulheres, de forma robusta, assim como o seu pai. Apesar da grande igualdade entre o filho de Ângela e Arthur na forma de ser, ambos não tinham nenhuma semelhança física, o que fazia o próprio ter incerteza em relação à paternidade do menino, porém, nunca se foi Literaturando confirmada verdadeiramente, mas, naquela noite tudo 116 mudou... Ao chegar, Arthur com um grande sentimento de orgulho apresentou seu filho a todas as mulheres que estavam presentes, e logo soltaram um grito: — Este não é o filho de Ângela!? O mesmo que, cuja o pai a esperta deu o golpe do baú!? Pois deveria de ter descoberto já que nada lhe parece, tudo indica que o pai seja o engraxate que veio junto com o seu patrão dias antes do dono da fábrica de tecidos aparecer. Naquele momento, a face de ambos esbranquiçou, o choque da verdadeira história a ser escutada pela boca de outrem foi enorme, seu coração estava fraco o suficiente para resultar em uma morte súbita no momento do murmuro. Sendo assim, aquilo que fora um dia do até então pai do Inácio, agora era de sua responsabilidade, o jovem, solteiro, que não tinha pensamento algum para um dia formar uma família tornou-se molde, totalmente influenciado pela problemática em que se encontrava. Arthur foi de encontro à outra vida sem filhos, deixando apenas um bastardo como herdeiro de seu império. 117 artigos, ensaios e contos 118 Literaturando DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.05 Adelaide Ammy Lee Vitória Ammy Lee Vitória é Aluna de Ensino Médio no Colégio Integral de Toledo-PR. Contato: ammyleevitoriaa@gmail.com Cheguei aos 27 anos sendo tudo, exceto o que eu imaginei que seria. Quando saí da casa dos meus tios para encontrar a autêntica felicidade, ainda não tinha noção do Literaturando quanto essa ideia poderia ser inalcançável, especialmente 120 para uma pessoa ingênua e tola o bastante para acreditar no amor. Se eu soubesse quanto problema ia ter com a tal história, teria desistido logo no início. Porque uma coisa é dar um jeito em algo que pode ser ajeitado, a outra é bater a cabeça na parede. Oscilei um instante entre o horror e o humor, mas não pude evitar: ri. Senti que deveria me desculpar, mas não sabia pelo quê. Agora eu estava sozinha, e o único caminho era o que eu deixava atrás de mim. Esta vida é absurda e ilógica; e eu já tenho medo de viver, Adelaide. Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos amanhã, de que maneira havemos de nos contradizer diante deste mundo expressivo. Além do que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice anoitada qualquer... Ninguém compreende o que quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doida, tola, maníaca e a vida se vai fazendo irremediavelmente minuto após minuto. Adelaide, estou com medo, mas acho que o medo nunca nos abandona, não importa o quanto você cresça, assombrar. Tenho medo de pessoas confusas e de mentiras obscuras. Tenho medo de pessoas que se apaixonam rapidamente, mas também temo aquelas pessoas que se apaixonam com lentidão. Tenho medo de pessoas que trocam as pessoas como se não fossem nada e também de pessoas que mudam de opinião em um passe de mágica. Tenho medo de ser trocada, maltratada, humilhada. Eu tenho medo disso tudo e no final acho que só queria ser amada. 121 artigos, ensaios e contos amadureça, envelheça, ele sempre estará lá para Sou do tipo socialmente despreparada, Adelaide. E me sinto consumida pela sufocante exaustão. Por que nada faz sentido? Minha boca fala o que não se deve, meus pensamentos se engolem, próprios, se contradizem a cada minuto, vivem num debate, que só me resta esperar que se resolvam. Eu queria escrever alguma coisa de amor, mas para mim todo mundo é fingimento, para mim todo Literaturando fingimento é de verdade, eu finjo tanto que amo que amo 122 mesmo, eu vivo tantas histórias dentro da minha cabeça. Eu e meu amor de pensamentos. Sua boca ocupada com outras desculpas, minha culpa ocupada com outras mentiras. Droga de pensamentos milenares. DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.06 Maldito espelho Junior Cunha Junior Cunha é Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Bolsista CAPES). Mestre e Licenciado em Filosofia pela mesma instituição. Contato: juniorlcunha@hotmail.com Me vi em um maldito espelho. Atrevimento meu dizer que me vi. Não sei ao certo quem ou o que eu sou. Para todos os efeitos, gosto de me chamar de eu. Literaturando Colocarei da seguinte forma então: eu me vi em 124 maldito espelho. O curioso é que eu nunca havia notado quantas imperfeições posso ver só de me olhar em um espelho. Cada traço horripilante meu, ali, diante de meus olhos abatidos pelo cansaço de horas e mais horas de leitura de meus prolongados dias. Mas já que me olhei nesse maldito espelho, tentarei me compreender. Obviamente, não me aterei às minhas imperfeições físicas, quanto a isso, eu já deixei escapar o choque e o assombro de me ver. Todo espanto foi por demais pequeno se colocado ao lado de me observar interiormente. Quando me detive em me olhar profundamente, havia algo estranho. Uma enorme coisa. Uma absurda e estranha coisa! É certo que eu não sei quem ou que eu sou, mas me ver e perceber esta terrível e estranha coisa me leva a indagar: seria eu, esta estranha coisa? Em que momento de minha vida me tornei isto? Ou tenho sido sempre isto? Os lapsos de memória me impedem de ir muito além dos anos recentes, e dou por mim que não sei quando passei a ser essa estranha coisa. Devo me concentrar. Tentar olhar com mais atenção. Forçar as vistas, deve haver algo de compreensível nessa estranha coisa. Mas que maldito espelho. Não vejo nada além dessa estranha coisa. Só posso concluir que eu sou essa estranha coisa e sempre isto? Vamos lá. Mais um esforço. Devo me lembrar de quando passei a ser essa estranha coisa, como me tornei isto? Não, nada. Isto sou eu, uma estranha coisa. Maldito espelho. 125 artigos, ensaios e contos que não sei quando passei a ser isto. Mas e agora, eu serei 126 Literaturando DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.07 Os olhos verdes fascinantes de Giovanni, mio Romeo Andrielly Antunes da Silva Giovanna Victória Pilotti Andrielly Antunes da Silva é Acadêmica do Curso de Letras da Universidade do Oeste do Paraná. Contato: andrielly_Antunes2011@hotmail.com Giovanna Victória Pilotti é Acadêmica do Curso de Letras da Universidade do Oeste do Paraná. Contato: giovannapilotti660@gmail.com Após inúmeros dias de tempo nublado, o sol resolvera aparecer em meio às nuvens. O ano de 1800 mal começara e já pressagiava tempos conturbados em um Literaturando futuro próximo; mas este não é nosso foco nesta história, 128 caro leitor. Em dias de clima assim, em que o astro-rei agraciava Genova com seus raios cálidos, era comum que as pessoas se reunissem para passear pelos Parques de Nervi. Fora nesta tarde, aparentemente comum, de domingo, que os doces olhos esverdeados de Giovanni Marchetti encontraram pela primeira vez os olhos cor de mel decididos de Aurora Giordano. Enquanto a moça estava acompanhada de sua família — o pai e as irmãs mais jovens, o rapaz encontravase solitário, apenas observando a bela paisagem que se apresentava diante de si: as folhagens que caíram com a estação fria ainda podiam ser vistas sobrepostas sobre a grama, contrastando com as novas folhas crescendo nos galhos ressequidos das árvores, voltando à vida com a primavera crescente do mês de abril; além disso era também possível ouvir as ondas do Mar Ligure quebrando ao longe na costa. Com aquela troca de olhares, Aurora teve, em seu íntimo, a certeza de ter encontrado o homem com quem gostaria de passar o resto de sua vida, aquele que viria a ser seu amado e pai de seus filhos. Não sabia sequer seu primeiro nome, que dirá o de sua família, e a única pista que tinha para reencontrá-lo, além da esperança gritante em seu coração, eram os olhos encantadores que a prenderam. Notando o sutil brilho dourado que pintava as copas das árvores, indicando que a tarde se estava findando e o passeio também, o pai da moça, Piero Giordano, homem barão pelo rei Carlo Emanuele IV há alguns anos, chamou as três filhas, Aurora, Agnese e Alma, conduzindo-as para a carruagem para que pudessem retornar à casa da família. Perdida em devaneios, Aurora não deixou escorregar da memória, durante todo o caminho, a imagem gravada daqueles belos olhos verdes. Nem mesmo quando seu irmão mais velho Tommaso, jovem capitão na cavalaria do Real Exército Sardo-Piemontês, a incomodou com leves gracejos acerca de seu ar sonhador, a moça perdeu seu foco. 129 artigos, ensaios e contos influente na política sarda e grande comerciante, feito Depois de alguns dias entregue à sua ditosa utopia, foi a mãe quem a trouxe de volta à realidade. Laura Giordano, no alto de seus 39 anos, mãe de 4 belos filhos, ainda era um modelo de graça, fina elegância e delicada beleza aristocrática, contrastando com a rudeza dos traços do marido e sua diferença etária de 18 anos. A boa mulher recordou a filha da necessidade de comprar tecidos para Literaturando que se pudesse mandar fazer-lhe novos vestidos. Em meio 130 à fantasia amorosa, a moça quase esquecera-se que se aproximava, iminentemente, o momento em que seus pais escolheriam um pretendente com o qual ela deveria se casar. Desperta de seu desvario, rumou, então, apressadamente, até o ateliê no centro da cidade, onde, mal sabia ela, reencontraria aquele que apelidou, carinhosamente, de seu “amor à primeira vista”. Ao entrar na loja e notar a presença do jovem, ficara logo corada e Giovanni, notando a timidez em sua bela tez alva, adoravelmente rosada pela vergonha, cumprimentou-a e logo em seguida apresentou-se, fazendo a menina sentirse mais confortável ao responder à sua gentileza. Enquanto Aurora pedia ao jovem atendente quais tecidos gostaria de ver, este, por sua vez, sentindo-se tão à vontade com a presença da moça, contava boa parte de sua história de vida, como se a uma velha amiga. A verdade é que não fora só ela a afetada pelos olhares no parque, Marchetti ficara fascinado por seus olhos castanhos e já não trabalhava, comia ou pensava direito. Ela se mostrava cada vez mais interessada em tudo que ele lhe contava, sem fazer mais ideia de quanto tempo se passara ou quantos tecidos já havia visto; a conversa avançava de tal maneira que se uma multidão marchasse nas ruas, ambos não ouviriam. Naquele momento, só existiam os dois no mundo. Após selecionar os tecidos da melhor maneira precisa ir. Giovanni acompanha a nobre menina até a porta de sua carruagem, arrumando os tecidos e ajudando-a a subir no veículo. O breve e leve toque, assim como os olhares, povoaria as fantasias dos jovens amantes. Tornando à casa, Aurora, ao entrar, se depara com a família na sala de jantar à sua espera. Os olhos de seu pai não desviavam de seu rosto durante toda a refeição. Ele notava o brilho diferente nos olhos da filha e seu leve rubor, sabia o que isso significava. Limpou a garganta antes de começar, com a voz grave: 131 artigos, ensaios e contos possível, um pouco anestesiada com o momento, Aurora — Querida filha, minha bela Aurora. Gostaria de aproveitar nosso momento em família para lhe dizer que encontrei um bom homem com quem você deverá se casar. Lord Giuseppe Tontodimamma. Apesar de respeitarem grandemente o pai, foi inevitável conter a risada diante do sobrenome (“tonto da mamãe”). Literaturando — Ei! Crianças, mais respeito! – disse o pai, mesmo 132 estando tão perto do riso quando sua prole. Ele é dono de diversas fazendas, um homem de confiança na corte do Rei, é vantajoso para ambas as famílias que se faça essa união e ele está encantado com a sua beleza, querida. A notícia ceifou todo o brilho existente na garota. O casamento deveria acontecer em 6 meses, Aurora, prestes a completar 17 anos, já estava um pouco velha para casarse. Durante as 4 semanas seguintes a família se viu ocupada em preparar os últimos detalhes do enxoval de sua primogênita. Muitas foram as visitas ao ateliê em busca de tecidos e roupas, em uma das quais Giovanni, ciente do casamento próximo, declarara seu amor mais profundo. Aurora, encantada com as doces palavras, mas tímida em reproduzi-las, deixando-as passar por seus próprios lábios, falou ao rapaz apenas com os olhos e um belo sorriso. Ele compreendeu que era correspondido. Os amantes desafortunados encontravam-se às escondidas no jardim da família Giordano, no parque, nos passeios vespertinos. Giovanni cantarolava sobre sua janela nas noites sem lua para não se deixar ver, e a moça perguntava a si mesma se aquela Giulietta havia o seu Romeo. O presságio agourento da história do casal veronês a fazia ter calafrios. O tempo passava e as bodas aproximavam-se. Giovanni prometera a sua amada que resolveria tudo. Ele, com a alma inclinada à poesia e à arte, se viu infeliz, tendo sido reconvocado ao exército. Não havia mais tempo nem família da moça jamais o aceitaria, mas ele poderia sustentá-la honestamente em qualquer lugar com a força de seu trabalho. Poderiam casar-se em um convento franciscano a caminho da casa de sua família em Parma, e seriam bem aceitos pelos pais que sentiam faltam de seu único filho. Por mais que sentisse medo, a felicidade de finalmente viver seu amor fazia Aurora vibrar. Antes de partir deixou um bilhete de perdão à família, acompanhado de um post scriptum: 133 artigos, ensaios e contos preparativos a fazer: o casal deveria fugir o quanto antes. A “A despedida é uma dor tão suave que te diria ‘Boa Noite’ até o amanhecer...” Literaturando William Shakespeare. 134 Instituto Quero Saber www.institutoquerosaber.org editora@institutoquerosaber.org Informações técnicas formato: 14 x 21 cm tipografia: Corbel