FOUCAULT, SADE E AS LUZES
Phillippe Sabot (philippe.sabot@univ-lille3.fr)
Tradução de Alex Pereira de Araújo
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Resumo: Este artigo é dedicado aos usos que Foucault propõe da obra de Sade
(desde História da Loucura até A vontade de Saber), ou seja, de que forma estes
usos são suscetíveis de despertar um esclarecimento indireto sobre o status
equivocado que recebem as Luzes no pensamento foucaultiano. Aqui, encontramse explicitamente opostas à figura literária de um Sade transgressivo que se associa
à escrita e ao pensamento do “exterior”, e aquela de um Sade “sargento do sexo”,
provedor de um erotismo disciplinar que acompanha o desdobramento de uma
racionalidade instrumental.
Palavras-chave: disciplina; erotismos; Foucault; Sade; transgressão.
Introdução1
Se, em um de seus últimos textos, Foucault
pôde identificar completamente o projeto das
Luzes na figura de Kant e no pensamento
crítico, reelaborado em função da ontologia
histórica de nós mesmo, e nas condições que,
finalmente, permanecem discutíveis; não se
pode dizer, de imediato, que a Aufklärung2
tenha tomado em sua obra, a forma e o valor
de um acontecimento discursivo identificável
como tal, com a mesma carga de novidade e
de radicalidade, daquela que lhe é conferida
em 1984. Foucault, arqueólogo, se dedicou,
1
Este texto foi traduzido para ser discutido no curso “A
construção do sujeito em Kant: as Luzes de Foucault”,
promovido pelo LABEDISCO da UESB. O professor
Philippe Sabot, da Universidade de Lille III,
gentilmente autorizou a publicação desta tradução aqui
na REDISCO.
2
Die Aufklärung pode ser traduzida em português
como: as luzes, o iluminismo, iluminação, ilustração ou
esclarecimento; Estas formas aparecem nas várias
traduções do texto de Kant “Beantwortung der Frage:
Was ist Aufklärung?”, publicado no periódico
Berlinische Monatsschrift em 1784 (NT).
REDISCO
desde muito cedo, a mostrar a ambiguidade
das Luzes3, aquela de uma razão iluminada
que incansavelmente faz sobressair à parte
sombria, o lado obscuro, as margens
impensadas, mas, constitutivas. Lembramos a
este respeito que, do ponto de vista da
arqueologia, para retomar o título de um
capítulo de As palavras e as coisas, “os
limites da representação”, o momento
histórico das Luzes está inscrito entre a Idade
Clássica e a Modernidade; isto é, aí onde o
espaço ordenado está fraturado e deixa
aparecer na vertical deste quadro, uma
profundidade, uma dimensão história que
reconfigura completamente o saber empírico e
deixa emergir, no silencio do discurso, a
figura epistemológica do homem. Isto
3
Essa ambiguidade do momento histórico das Luzes
está, sem dúvida nenhuma, ligada ao gesto
arqueológico que implica em reescrever a história da
cultura ocidental, desprendendo-se das acentuações
habituais dos historiadores das ideias. Pelas Luzes, este
é, notadamente, o momento histórico da Revolução
Francesa que se encontra relativizado, por assim dizer,
contestado (Nota do autor).
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013
112
significa que, num dado momento, duas
formas concorrentes de racionalidade se
chocam. É justamente este choque que
confere às Luzes toda sua complexidade. Por
conseguinte, não é um destino qualquer da
razão ocidental que se realiza. Mas as Luzes
apagam, antes, sua “censura essencial”, seja
para interiorizar, seja para dissimular no
coração da racionalidade moderna, o princípio
de uma desordem ou de uma transgressão
possíveis, conduzindo a tensão entre razão e
desrazão sobre a qual se estabeleceu a ordem
clássica no seu bojo. Ao menos, é neste
sentido que as Luzes propõem, do ponto de
vista de sua injunção histórica, na perspectiva
arquestruturalista da arqueologia do saber. As
Luzes carregam a sua função filosófica
própria, quando faz valer o valor positivo de
sua ambiguidade, a dinâmica potencialmente
transgressiva da atitude autocrítica de
transformação em que esboçam o modelo.
Resta compreender então como se elaborou o
modelo
na
obra
de
Foucault
e,
particularmente, naquelas condições que ele
encontrou os esquemas da inteligibilidade de
um certo kantismo.
Nessa discussão, o problema será abordado
a partir de um ponto de vista em
deslocamento. Efetivamente, no início dos
anos de 1960 (com A história da Loucura) até
o meio dos anos de 1970 (com os textos
contemporâneos de Vigiar e punir e da
Vontade de Saber), a questão das Luzes não
aparece diretamente nem exclusivamente em
Foucault pelo viés tradicional cuja referência
é Kant; mas a partir de um certo
entrelaçamento constante e problemático de
Kant a Sade (ou melhor, de Sade a Kant).
Então, importa fazer, primeiramente, aparecer
de que maneira os usos que Foucault propõe
acerca da obra de Sade são suscetíveis de
conduzir a um esclarecimento indireto e novo
sobre o estatuto ambíguo que recebem as
Luzes no seio de sua reflexão. Mas se trata
também de compreender como estas leituras
foucaultianas de Sade refletem, e, talvez,
acompanhar o deslocamento do centro de
gravidade desta reflexão - da linguagem à
sexualidade e ao poder, renovando
profundamente a apreensão do momento
histórico e do alcance filosófico das Luzes. É
preciso, então, questionar por quais razões
REDISCO
ARAÚJO
Foucault se libertou de um certa relação com
a obra sadiana. Mais precisamente: em que
sentido esta libertação permitiu Foucault
reelaborar de novo a temática Aufklärung
apenas a partir de Kant, promovido à
condição de arauto moderno de um ethos
filosófico, propriamente inatual; já que se
refere menos ao conteúdo – doutrinal – de
uma atitude crítica que à própria forma de
nossa relação com o presente? Por meio
destes questionamentos, nós nos propomos a
compreender em qual sentido as leituras de
Sade feitas por Foucault correspondem, em
realidade, às interpretações concorrentes às
Luzes.
Sade na arqueologia
pensamento do exterior
do
saber:
um
Em uma primeira linha de interpretação, a
obra de Sade aparece como contraponto
insistente e fascinante do racionalismo
iluminado; lido a revelia de Kant, Sade é
como a sombra alcançada de uma ruptura de
paradigma que se realiza, antes de tudo, na
ordem da linguagem, sobre o plano do
discurso e de sua dissociação interna. As
luzes estão abertas sobre sua própria
incerteza, sobre seu próprio “jogo” entre
filosofia e literatura, ordem e desordem, razão
e desrazão.
A este respeito, pode se dizer que a obra de
Sade ocupa na arqueologia do saber um
espaço dobrado. Primeiramente, ela aparece
no âmbito local de acontecimento discurso,
situado e estritamente correlacionado a um
outro
acontecimento
discursivo
que
representa a emergência de um tema
transcendental em relação a Kant; mas ela
também funciona, em âmbito mais global,
como um operador transgressivo de uma
passagem do limite que ilustra as
potencialidades antidialéticas disto que
Foucault chama de “pensamento de externo” e
que ele associa ao esforço da literatura
moderna nascente para se opor aos avatares
filosóficos do “pensamento de dentro” ou do
Mesmo4, aquele que é, finalmente, tomado no
4
NT: Em filosofia, pode designar identidade (idêntico)
ou parte invariável do pensamento.
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013
FOUCAULT, SADE E AS LUZES
“círculo antropológico5” de uma autofundação da finitude. De imediato, vê-se
nascer aqui uma ambiguidade que faz toda
força e o valor desta obra, verdadeiramente,
inassinável. Com efeito, sobre o plano
estritamente arqueológico, ela se situa ao lado
do gesto crítico kantiano e não tem nem a
radicalidade nem o poder de abertura; mas, ao
mesmo tempo, situa-se ao lado deste gesto,
sobre o plano de uma “ontologia formal da
literatura”, uma vez que se opõe de maneira
resistente ao gesto de uma transgressão em
que a linguagem constitui o elemento
privilegiado, e que a sexualidade e o desejo
são o vetor manifestado. Desenha-se
simultaneamente, então, uma interpretação
paradoxal das Luzes divididas entre Sade e
Kant, e, sobretudo, fundadas sobre seus gestos
discursivos, distintos, mas complementares;
como também, a possibilidade de uma
herança filosófica das Luzes que alarga sua
ancoragem histórica. Estes dois aspectos são
postos claramente em valor por Foucault em
duas séries de textos contemporâneos; a
primeira série culmina na passagem,
explicitamente dedicada à obra de Sade, que
fecha a primeira parte de As palavras e as
coisas; a segunda série compreende os textos
escritos desde o início dos anos 60 (sessenta),
quando recapitula então as questões em uma
artigo sobre Blanchot, chamado “La pensée
du dehors” (O pensamento do externo6).
Ao procurar descrever “a mutação que, por
volta do final do século XVIII, se produziu
em toda epistémê ocidental”7, o que tornou
possível caracterizá-la, Foucault, em As
palavras e as coisas, atribui à obra de Sade a
fundação arqueológica de identificação crítica
de um limiar. Esta obra designa e, realiza, em
5
Este é o título do capítulo V da terceira parte da
História da Loucura, em que Foucault mostra como, a
partir do momento em que “a loucura sustenta [...] uma
linguagem antropológica” (p.509); ela encerra “uma
multidão de antinomias” (p. 512) que comandam toda
a reflexão sobre a loucura no século XIX e (p.514).
Ora, o jogo de antinomias encontra, no fim de As
palavras e as coisas, aplicado desta vez na ruminação
filosófica sobre o tema da finitude (O homem e seus
duplos - cf. FOUCAULT, 1966; 1981).
6
Conforme a tradução brasileira da coletânea, Ditos e
Escritos, organizada por Manoel Barros da Motta,
publicada pela Forense Universitária.
7
Cf. Foucault, 1981, p 285.
REDISCO
113
sentido, o fim do pensamento clássico. Por
quê? Pois ela marca justamente o limite
representativo, do discurso dedicado a colocar
em ordem e em palavras as coisas no
elemento
taxonômico
do
quadro,
manifestando a emergência de forças extrarepresentativas (a violência, a morte e a
sexualidade) dentro desta ordem de discurso.
Por consequência, os livros de Sade
interessam a arqueologia na medida em que
eles pertencem ainda ao espaço da
representação e que eles tiram força desta
situação no limite que os coloca em posição
de contestação interna da epistémê clássica:
essa obra incansável manifesta o precário
equilíbrio entre a lei sem lei do desejo e a
ordenação
meticulosa
de
uma
representação discursiva. A ordem do
discurso encontra aí seu Limite e sua Lei;
mas tem ainda a força de permanecer coextensiva àquilo mesmo que a rege
(FOUCAULT, 1981, p. 288).
De acordo com a leitura arqueológica de
Foucault, os romances de Sade encerram a
Idade Clássica nela mesma (e eles a
pertencem); além disso, eles não abrem uma
nova experiência da ordem. Isto aparece ainda
mais claramente na continuidade da passagem
da situação em que o limite (da ordem e da
desordem) desses romances torna exemplos
de uma parte da dissensão interna do
momento histórico das Luzes.
Na verdade, Justine8 e Juliette9 formam as
duas partes em que mediam uma transição
entre a Renascença e a época clássica “no
nascimento da cultura moderna”10, juntamente
com Dom Quixote11.
Apresentado
inicialmente como o herói ridículo do
Mesmo12, Dom Quixote acarreta similitudes,
postas em funcionamento, como muitas
miragens oferecidas de seu delírio
8
Justine ou les Malheurs de la vertu é o primeiro
Romance do Marquês de Sade, publicado em 1791, na
França (NT).
9
Romance publicado em 1797-1800 (NT).
10
Cf. Foucault, 1981, p. 290.
11
Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes
foi publicado em 1605. É uma das obras mais
conhecidas e lidas da literatura universal (NT).
12
Cf. Foucault (1981, p.63 ) “Ele é o herói do Mesmo”
(NT).
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013
114
interpretativo; com efeito, na segunda parte
do romance, ele mesmo se tornaria “pura e
simples personagem no artifício da
representação”; uma certa relação, imediata e
evidente, dos signos com as coisas, estava
entrecruzada deixando lugar para o “poder
representativo da linguagem”. Na outra ponta
da Idade Clássica, a relação da semelhança
com a representação se inverte em relação
com o desejo: “não se trata mais do triunfo
irônico da representação sobre a semelhança;
trata-se da obscura violência repetida do
desejo que vem vencer os limites da
representação” (FOUCAULT, 1981, p. 290).
Com Justine, heroína virtuosa, esta
violência permanece; todavia, contida na
“forma leve, longínqua, exterior e gelada da
representação”; apesar de tornar-se objeto de
uma representação, mostra sua verdade e sua
lei de existência, incluído no destino de um
livro a mesma forma que o herói de Cervantes
havia percorrido os signos. De maneira
simétrica e inversa, Juliette, encarnação
selvagem do vício, parece retornar os
primeiros errantes de Dom Quixote. Se seus
desejos “são retomados por inteiro na
representação que os funda arrazoadamente
em discurso e os transforma voluntariamente
em cena”; por sua vez, estes discursos e estas
cenas tornam ridículos como se enchessem de
um desejo que satura o espaço da
representação e ameaça transbordá-lo. Assim,
começa uma crítica interna da representação,
simétrica da semelhança iniciada na segunda
parte de Dom Quixote e que explora, a fundo,
os poderes até aparecer os limites. Estes
limites são aqueles de uma “nominação” que
não está mais submetida ao jogo da retórica,
mas que segue a proliferação indefinida das
possibilidades do desejo, surgindo a partir daí
sob a representação e irredutível de sua ordem
própria.
Contudo, este primeiro sistema de eco, que
assegura o fechamento da epistémê clássica
sobre seus próprios códigos discursivos, se
encontra duplicado por outra aproximação
que tem, desta vez, por função manifestar o
limiar constitutivo da epistémê moderna.
Assim, na topologia de Foucault, Sade e Kant
ocupam posições simétricas - e estritamente
contemporâneas, através das quais se
encontram demarcadas as duas margens,
REDISCO
ARAÚJO
interna e externa, de uma mesma ruptura
arqueológica, que conduz ao quadro
definitivo do saber e do pensamento fora do
espaço da representação, e da distinção crítica
empírica e transcendental. Aí onde os
romances de Sade desenham uma gramática
geral das perversões, submetendo a expressão
do desejo na rigorosa. De Juliette, “última das
narrativas clássicas”, à Crítica da razão pura,
um limiar epistêmico foi ultrapassado que
separa e une, às vezes, dois discursos das
Luzes, duas formas de racionalidade que,
manifestadamente, se excluem uma da outra,
se refletindo uma na outra.
É a tensão entre a razão e a desrazão,
iniciada e instituída pelo gesto da “grande
censura” no século XVII, já analisado por
Foucault, na História da Loucura, que, com
Sade,
“Iluminação
e
libertinagem
justapuseram no século XVIII, mas sem se
confundir”13; efetivamente, “um esforço da
razão para formular-se num racionalismo
onde toda insanidade assume o aspecto do
irracional”14; de um lado, as vicissitudes de
“um desatino do coração que dobra os
discursos da razão aos ditames de sua lógica
desatinada”; de outro, como os dois polos
construtivos de uma experiência histórica,
marcada pela partilha, formam a mesma
exclusão que autorize a prática de
internamento. Mas, como nota Foucault na
conclusão de sua História da loucura, apesar
desta inclinação da libertinagem para a
desrazão, a “razão de Sade” é esta razão
paradoxal que enuncia “as últimas palavras do
desatino15” (FOUCAULT, 1978, p. 578); ela
atravessa o muro da internação para
comunicar, em sua violência sem medida,
com o mundo moderno, com nosso mundo.
Deste ponto de vista, a escrita de Sade não
está então em falta, mas em excesso em
relação com a razão de Kant. Ela opõe a carga
transgressiva de um desejo impossível de
saciar senão que, em discurso de manifestação
e de demonstração, absolutamente livre de
toda referência a uma necessidade natural e
13
Cf. Foucault, 1972, p.114 (Edição Brasileira, 1978,
p. 100-101), grifo nosso.
14
Cf. Foucault, 1972, p. 144 (Edição Brasileira, 1978,
p.101).
15
No texto original em francês: “déraison” (desrazão),
na tradução brasileira, desatino.
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013
FOUCAULT, SADE E AS LUZES
conduzindo
irresistivelmente
cada
personagem à “abolição soberana de si
mesmo”. Sade está então num sentido
contemporâneo das grandes construções
filosóficas das Luzes, de toda esta
“verborragia sobre o homem e a natureza”16,
que possui integramente a partilha clássica da
razão e da desrazão, e que, de maneira irônica
e excessiva, põe em cena em seus romances;
seu discurso iluminado-obscuro, sua razão
atravessada por “uma lacuna [...] uma falta,
uma loucura” testemunha também, e de
maneira exemplar, deste “pensamento
externo”, que, na margem das Luzes, abre o
campo de uma experiência literária inédita
que associa a descoberta da sexualidade a um
certo apagamento do sujeito que deseja na
exterioridade da linguagem. Sade é nosso
contemporâneo (nosso “próximo” no dizer de
Klossowski17), seja contemporâneo de
Bataille e de Blanchot, no sentido em que por
meio de seus livros transmitem uma certa
maneira uma contra herança das Luzes, o
princípio oculto, e ocultado, deste que
permanece na desrazão – uma vez livre do
esquema dialético da alienação e rendido a
seu vigor trágico e explosivo:
É menos arriscado supor que a primeira
brecha por onde o pensamento do exterior
se revelou para nós está, paradoxalmente,
no monólogo repetitivo de Sade. Na época
de Kant e Hegel, no momento em que, sem
dúvida, a interiorização da lei da história e
do mundo jamais foi mais imperiosamente
requisitada pela consciência ocidental, Sade
só deixa falar, como lei sem lei do mundo, a
mudez do desejo. Foi na mesma época em
que na poesia de Hölderlin se manifestava
na ausência cintilante dos deuses e se
enunciava como uma nova lei a obrigação
de se esperar, perpetuamente, sem dúvida, a
ajuda enigmática que vem da “ausência de
Deus”. Poderíamos dizer sem exagero que,
16
Cf. Foucault, 1978, p. 579; original em francês de
1972, p. 552.
17
A partir do final dos anos de 1940 e até os anos 60,
Pierre klossowski, com “Sade, meu próximo”,
contribuiu intensamente com a redescoberta de Sade
(cf. KLOSSOWSKI, 1947; 1985). Um exemplo disto é
“Le secret de Sade”, análise, feita por Georges
Bataille, que testemunha este novo interesse por Sade
na França neste período (cf. BATAILLE, 1947, p. 140160). Esta análise aparece numa reedição
REDISCO
115
no mesmo momento, um pela descoberta do
desvio no murmúrio infinito do discurso, o
outro pela descoberta do desvio dos deuses
na falha de uma linguagem em vias de se
perder, Sade e Hölderlin depositaram em
nosso pensamento, para o século futuro,
mas de qualquer forma cifrada, a
experiência do exterior? Experiência que
devia permanecer então não exatamente
escondida, pois ela não havia penetrado na
densidade de nossa cultura, mas flutuante,
estranha,
como
exterior
à
nossa
interioridade, durante todo o tempo em que
se formulou, da maneira mais imperiosa, a
exigência de interiorizar o mundo, apagar
as alienações, superar o momento falacioso
da Entaüsserung, de humanizar a natureza,
naturalizar o homem e recuperar na terra os
tesouros que tinham sido gastos nos céus
(FOUCAULT, 2001, p. 222-223).
É menos arriscado supor que a primeira
brecha por onde o pensamento do exterior se
revelou para nós está, paradoxalmente, no
monólogo repetitivo de Sade. Na época de
Kant e Hegel, no momento em que, sem
dúvida, a interiorização da lei da história e do
mundo jamais foi mais imperiosamente
requisitada pela consciência ocidental, Sade
só deixa falar, como lei sem lei do mundo, a
mudez do desejo. Foi na mesma época em que
na poesia de Hölderlin se manifestava na
ausência cintilante dos deuses e se enunciava
como uma nova lei a obrigação de se esperar,
perpetuamente, sem dúvida, a ajuda
enigmática que vem da “ausência de Deus”.
Poderíamos dizer sem exagero que, no mesmo
momento, um pela descoberta do desvio no
murmúrio infinito do discurso, o outro pela
descoberta do desvio dos deuses na falha de
uma linguagem em vias de se perder, Sade e
Hölderlin depositaram em nosso pensamento,
para o século futuro, mas de qualquer forma
cifrada, a experiência do exterior?
Experiência que devia permanecer então não
exatamente escondida, pois ela não havia
penetrado na densidade de nossa cultura, mas
flutuante, estranha, como exterior à nossa
interioridade, durante todo o tempo em que se
formulou, da maneira mais imperiosa, a
exigência de interiorizar o mundo, apagar as
alienações, superar o momento falacioso da
Entaüsserung, de humanizar a natureza,
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013
116
naturalizar o homem e recuperar na terra os
tesouros que tinham sido gastos nos céus
(FOUCAULT, 2001, p. 222-223).
Ora, é essa experiência que reaparece na
segunda metade do século XIX e no âmago da
linguagem, que se tornou, embora nossa
cultura procure sempre nela refletir como ela
detivesse o segredo de sua interioridade, o
próprio brilho18 do exterior (FOUCAULT,
2001, p. 223).
Ao lado de Hölderlin, Sade aparece aqui
como o promotor, a contratempo (inatual?)
desta “experiência do exterior”, apesar dele
compreender, acima de tudo,
como
experiência de uma linguagem, sem sujeito,
submisso ao único imperativo de “tudo
dizer”; isto é, para caber em um único livro
todas as fórmulas do desejo e de aceitar à
“nomeação nua do que está no extremo do
que se pode dizer”19. Por esta razão, o
classicismo de Sade, que consiste em “fazer
entrar todas as potencialidades de seu desejo
em uma combinação que as esgota
absolutamente”20,
é
também
sua
modernidade, sua função crítica no presente,
de um Kant, que acaba por retornar o gesto
crítico do sujeito autônomo (ou de um Hegel
que recapitula o percurso reflexivo do
Espírito – o sujeito absoluto – interiorizando
dialeticamente o mundo e a história). Assim,
desenha-se, pela demonstração narrativa dos
excessos escandalosos de uma sexualidade
desnaturalizada, plenamente “absorvida no
interior da linguagem”, a figura paradoxal de
Sade “Aufklärer” que ilumina os limites deste
pensamento
moderno,
dialetizado
e
totalizante, que a literatura contemporânea
percorre em sua volta, acolhendo finalmente a
herança da “razão de Sade” (com Bataille,
Blanchot, Klossowski, o Novo Romance).
18
No original, em francês, “étincellement”: cintilante,
ou seja, “que emite intensos raios luminosos: sol
cintilante. Brilhante, resplandecente: cores cintilantes”.
Em As palavras e as coisas optou por cintilante ao
invés de brilho.
19
Em Distância, aspecto e origem, Foucault aproxima
explicitamente Sade e Mallarmé do ponto de vista do
gesto literário de
totalização e de abolição da
linguagem (Cf. FOUCAULT, 1994, p. 278-279; em
português: 2001).
20
Cf. Foucault, 1994, p. 375, (Le probleme de la
culture : un débat Foucault-Pietri).
REDISCO
ARAÚJO
Acabar com Sade: por um erotismo não
disciplinar
Ora, esta reconstrução arqueológica de
uma figura literária de Sade, pensador do
exterior, não é a última palavra de Foucault.
Assim, é possível identificar no interior da
obra, do filósofo, uma outra linha de leitura,
muito diferente da primeira, e até mesmo, em
um sentido inverso, que se desenha, desta vez,
na margem das pesquisas sobre o poder e a
sexualidade21. Mas, segundo este eixo de
interpretação, a “razão de Sade” vai aparecer
aos poucos como expressão do racionalismo
avançado das Luzes indo até aos seus
próprios limites e até as suas últimas
consequências: é o triunfo de uma razão
instrumental que faz de Sade a verdade oculta
do kantismo, a expressão de uma dialética da
razão em que se atesta seu poder de inversão e
de destruição por meio de sua lógica implícita
e inquietante - anteriormente inaceitável.
Dessa forma, o que importa é compreender
porque Foucault, ao invés de acolher com
interesse esta lucidez de Sade, como fizeram
Adorno e Horkheimer, em A dialética da
razão, procura aos poucos acabar com esta
figura literária de transgressão para propor um
outro modelo que ultrapasse os limites que o
reconduz a Kant.
Para melhor compreender a inversão que
se produz aqui e a articulação entre as duas
abordagens acerca das Luzes que estão em
jogo, é preciso assinalar que a literalização
do desejo marca, sem dúvida, a ponta do
racionalismo desatinado de Sade nas
fronteiras da Idade Clássica; mas realizando
de forma semelhante sobre o plano do
discurso o reino de uma “sexualidade
anônima sem um sujeito que goza”. Este
anonimato da combinação erótica sadiana
parece assim justificar para Foucault, nos
anos 60, a situação privilegiada de Sade no
campo do saber e numa história crítica das
figuras da racionalidade ocidental. Sade é
aquele que dá ao “pensamento do externo” a
21
Aqui, rejeitamos as observações de Sébastien
Charles que fala de uma “leitura bicéfala” (“lecture
bicéphale”) de Sade por Foucault, em seu artigo,
“Foucault lecteur de Sade: de l’infinité du discours à
la finitude du plaisir”, in: Sclippa, N. (org.), Lire Sade.
– Paris: L’Harmantan, 2004; p. 145-155.
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013
FOUCAULT, SADE E AS LUZES
forma de uma sexualidade anônima; se bem
que Os 120 dias de Sodoma poderiam ser
lidos no limite como “estruturas elementares
da sexualidade” (como uma estrutura “erótica
estrutural”) ou a transgressão da Lei provoca
a dissolução do homem que deseja, do sujeito
do gozo. Foucault relaciona outro lugar
explicitamente o programa sadiano de uma
análise estrutural pondo em crise a soberania
do sujeito:
Sade passe em revista todas as
possibilidades, todas as dimensões da
atividade sexual e as análises, elemento por
elemento, muito escrupulosamente. É um
quebra-cabeça de todas as possiblidades
sexuais, sem que as pessoas jamais sejam
outra coisa senão elementos nessas
combinações e nesses cálculos. [...] As
personagens são tomadas no interior de
uma certa necessidade coextensiva
a
descrição
exaustiva
de
todas
as
possibilidades sexuais. Aí, o homem não
participa. O que se propaga e se exprime é
a linguagem e a sexualidade, uma
linguagem sem pessoas que a fale
(FOUCAULT, 1994, p. 661, grifos do
autor).
Submetendo os corpos ao processo de
despersonalização em função de um desejo
calculado e de um “logos” aritmético, Sade
parece superar o imperativo da categoria
kantiana: ele inverte a fundação racional da
autonomia do sujeito moral pelo excesso
discursivo de uma combinação sexual em que
a pessoa não é mais considerada como pessoa
(a ser respeitada); mas, permanece apenas
como peça elementar (os simples meio) de
uma máquina infernal de produzir o sexo com
as palavras. Ora, este aspecto literário do
sadismo que tanto fascinou Foucault,
arqueólogo, nos anos 60 (sessenta), tornou-se
mais evidente a partir da década seguinte - ao
ponto de definir, para ele, a fórmula obscura e
transgressora das Luzes, à margem do
kantismo; o sintoma genealógico de uma
perspectiva generalizada do racionalismo
iluminado, cujos excessos sadianos deixam
aparecer no fundo à verdadeira cara, aquela de
uma indisciplinarização sem precedente na
sexualidade. Esta orientação sensível da
leitura de Sade por Foucault (que precede e
REDISCO
117
justifica o abandono puro e simples da
referência a Sade) não corresponde a uma
redescoberta banal do moralismo kantiano,
que seria proposto como um antídoto eficaz
ao veneno do erotismo sadiano. Ela se
inscreve exatamente no prolongamento das
teses defendidas por Adorno e Horkheimer
em A dialética da razão22, justamente
dedicada a estabelecer a contradição própria
do processo das Luzes, que esboça sobre a
elaboração de uma racionalidade instrumental
que se transforma em instrumento de
dominação e de destruição. Sem dúvida,
Foucault só tomou conhecimento das análises
da Escola de Frankfurt23 tardiamente. Mas,
se, na essência, sua interpretação crítica das
Luzes converge; suas posições divergem
quanto à subscrição da obra de Sade,
notadamente, em sua relação com Kant24.
Para Adorno e Horkheimer, efetivamente,
Sade e Nietzsche realizam, de certa maneira, a
obra das Luzes, exibindo os limites e o autodesabamento no exercício calculador de uma
crueldade metódica que se apoia sobre o
programa de uma autonomia radical do
sujeito25: a afirmação incondicional de si
passa, então, da mesma forma pela destruição
incondicional dos outros. Há, sem dúvida,
uma tese que Foucault extraiu do artigo
famoso que Lacan dedicou em 1963 à “Kant
com Sade”26. Encontra-se aí particularmente
22
Cf. Adorno ; Horkheimer, 1974.
A recepção da Teoria crítica na França data dos anos
70, quando aparecem as primeiras traduções francesas
dos livros de Horkheimer, de Adorno e de Habermas.
A revista Esprit dedicou, pela primeira vez, um número
especial, em 1978, à Escola de Frankfurt.
24
Sobre as convergências (e as divergências) entre a
Teoria crítica e Foucault, há notadamente a análise de
Axel Honneth, “Foucault et Adorno” – deux formes
d’une critique de la modernité (cf. Critique, nº 471472, août-septembre 1986), “Michel Foucault du
monde entier”(p. 800-815), assim como no texto,
“Foucault et l’École de Francfort,”, de Emmanuel
Renault (2006, p. 55-68).
25
Notamos que esta interpretação das Luzes radicaliza
aquele de Hegel tinha proposto em A fenomenologia do
Espírito (tradução francesa de Jean Hyppolite, Paris:
Aubier-Mantagne, 1941 - Cf. c) “L’Aufklärung ou Les
Lumières” e c) “La liberté absolut et la terreur”).
26
Para uma confrontação mais precisa do casamente
Kant/Sade na Teoria crítica e na psicanálise lacaniana,
ver “Kant avec (ou contre) Sade?” de Slavoj Zizek;
ver ainda “Sade et le projet des Lumières” de Marcel
Hénaff (p. 21-43).Notadamente, Hénaff insiste acerca
23
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013
118
posto em destaque o deslocamento da lei
moral até a figura do carrasco sadiano (ou
sádico); em consequência, o que custava para
manter a estrutura da injunção incondicional
(próprio da enunciação da Lei), mas lhe
atribuindo como conteúdo a singularidade a
mais patológica27 que seja. Desta maneira que
Lacan podia afirmar, em uma fórmula
surpreendente, que “Se alguma coisa saiu
fora, mantendo o direito, para encontrar nele
uma oportunidade para que São Paulo fala em
ser excessivamente pecador”. Neste sentido,
Foucault poderia partilhar o diagnostico
global de um Sade extra-lúcido que mostra
que há uma crueldade do imperativo
categórico, o formalismo kantiano implica no
limite que todos os seres humanos se reduzem
a ser apenas objetos de manipulação ao
serviço da “boa vontade” de um sujeito –
identificado no enunciador cruel da Lei.
Mas, aos olhos de Foucault, a autocrítica
das Luzes, a qual participa de maneira
exemplar a obra sadiana, não é suficiente para
salvá-la. Antes, ela remete esta obra a seus
próprios limites, aqueles que condicionam seu
pertencimento a um certo regime de poder e a
um certo modo de discurso sobre o sexo. De
acordo com uma completa inversão de
perspectiva, Sade deixa de ser encarado então
como a figura exemplar de escritor
transgressivo, abrindo para a linguagem
moderna novas possibilidades de expressão;
pelo menos suas transgressões são tomadas
daqui em diante nos limites estritos de um
erotismo disciplinar - em que se trata de fazer
o diagnóstico e com o qual se torna urgente
acabar com ele. Esta mudança de orientação
da análise é particularmente assinalada numa
entrevista que Foucault concede ao
Cinematographe em 1975, e, na qual se
discutia particularmente o “sadismo de alguns
filmes recentemente lançados”, entre os quais
figurava Salo ou os 120 dias de Sodoma de
Pasolin. A reação de Foucault às questões de
seu interlocutor é bastante explícita:
do retorno do imperativo ético das Luzes cristalizado
na fórmula kantiana do “Sapere aude” (ouse saber!)
por um contra-imperativo sadiano, cuja fórmula
poderia ser: “Audare sape” (saiba ousar!).
27
Cf. Zizek, « Kant avec (ou contre) Sade ? », Savoirs
et clinique, 2004/1 n.4, p. 94.
REDISCO
ARAÚJO
[...] eu não sou a favor da sacralização
absoluta de Sade. Afinal, eu estaria bastante
disposto a admitir que Sade tenha
formulado o erotismo próprio a uma
sociedade disciplinar: uma sociedade
regulamentada, anônima, hierarquizada,
com seu tempo cuidadosamente distribuído,
seus
espaços
quadriculados,
suas
obediências e suas vigilâncias. Trata-se de
sair disso, e do erotismo de Sade. É preciso
inventar com o corpo, com seus elementos,
suas superfícies, seus volumes, suas
densidades, um erotismo não disciplinar: o
do corpo em estado volátil e difuso, com
seus encontros ao acaso e seus prazeres
calculados. [...]Tanto pior então para
sacralização literária de Sade, tanto pior
para Sade: ele nos entedia, é um
disciplinador, um sargento do sexo, um
contador de bundas e de seus equivalentes
(FOUCAULT, 2001, p. 370).
A razão de Sade, tomada inicialmente
como um contra modelo, digno da
racionalidade iluminada das Luzes, está agora
exposta a uma dupla objeção. Aparecendo
primeiramente,
sob
o
pretexto
de
transgressão, a despersonalização de uma
nomenclatura sexual e de uma classificação
dos desejos, está, na realidade, solidária a
uma certa tecnologia do poder, tal qual
Foucault analisa a partir de Vigiar e Punir.
Deste ponto de vista, a escrita de Sade acolhe
bem a herança das Luzes, ao ponde de realizar
os desejos disciplinares. Por outro lado, Sade
teria confinado a experiência da sexualidade
ao interior da linguagem fazendo da tarefa “de
dizer tudo” sobre o sexo uma das molas
maiores de sua função provocadora. Ora,
trata-se aqui de um novo aspecto posto em
valor por Foucault que aproxima, desta vez,
as análises propostas no mesmo momento em
A vontade de saber. Num sentido, Sade
apenas relança e realiza o projeto, já antigo,
de uma “discursivização” integral do sexo.
Como ela está destinada ao “monólogo
decorado” do sexo que fala, então, sua obra
escandalosa não faz rupturas; mas se inscreve
na linha principal da pastoral cristã do século
XVII e do “grande assujeitamento” do sexo à
fala que se elabora por meio do processo
prescritivo da confissão e de seus usos
disciplinares.
Por
meio
de
sua
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013
FOUCAULT, SADE E AS LUZES
discursivização, a experiência corporal do
prazer é seguramente transformada em um
exercício apático, mecânico e frio: a
sexualidade sadiana, como sexualidade
discursiva, confissão integral dos desejos, é
insensibilizada, reduzida a uma série de
protocolos planificados em que não subsiste
nenhuma parcela de espontaneidade. Se a
obra de Sade carrega um certo esclarecimento
sobre a racionalidade das Luzes, é para fazer
aparecer finalmente, e sem se dar conta, os
mecanismos indissoluvelmente discursivos e
disciplinares: neste sentido, ela revela, no
meio de tantas outras, uma genealogia da
“scientia sexualis”, desta maneira que o
Ocidente tem refletido durante séculos as
relações do poder, da verdade e do desejo.
Por fim, pode-se interrogar sobre a
significação que tomam neste contexto as
fórmulas propostas por Foucault no final da
entrevista no Cinematógrafo: “sair [...] do
erotismo de Sade”, “inventar com o corpo [...]
um erotismo não disciplinar”. Trata-se
manifestadamente em contraponto do “dizer
tudo” sadiano que utiliza os corpos como
palavras para lhe fazer reconhecer seus
próprios códigos de funcionamento, de
esboçar um outro tipo de relação com a
sexualidade e com a verdade do sexo,
fundado não mais sobre o ritual discursivo e
disciplinar da confissão, mas sobre a “arte da
iniciação”; não mais sobre a exposição
regulada do desejo, mais sobre a
intensificação dos prazeres: não mais então
sobre o modelo da “scientia sexualis”, mas
sobre aquela de uma “ars erotica”, de uma
“outra economia dos corpos e dos prazeres”
que inventar nosso tempo e contra o
“dispositivo de sexualidade” no qual os
romances sadianos parecem no final ao lado
dos tratados de direção espiritual.
Deste ponto de vista, a referência a duas
figuras alternativas e inadequadas de Sade,
parece ter funcionado para Foucault como um
operador crítico, revelando a ambiguidade do
discurso das Luzes e talvez do discurso sobre
as Luzes, pois é preciso de uma certa maneira
de “sair” (como é preciso escapar à figura
inquietante de um “Sade sargento do Sexo”
que havia mascarado em um momento a
figura aparentemente estimulante de um Sade
pensador do exterior), isto é possível apenas
REDISCO
119
reativando contra os derivados disciplinares
de uma racionalidade liberta de si mesma, e
de um desejo elevado inconsideravelmente
entre lei incondicional da ação e do princípio
produtor de um discurso da verdade sobre o
sujeito, o “ethos” filosófico das Luzes, que
obriga, em termos foucaultianos, a um
paciente e incessante “ trabalho sobre nós
mesmos como seres livres”, precisamente em
1984. É lógico, então, que o trabalho de
Foucault sobre Sade, finalmente, passa da
referência à figura sadiana a evolução de sua
própria relação com as Luzes, desenhada, no
interior; assim, retorna melhor as Luzes e o
imperativo que prescrevem as figuras
ilusórias – perigosas da “libertação”, sob a
forma de uma “atitude limite” que consiste
em se desligar tanto quanto possível.
Referências
ADORNO,W.;HORKHEIMER,
M.
La
dialetique de la raison : fragments
philpsophiques. Traduction E. Kaufholz. –
Paris : Gallimard, 1974.
BATAILLE, G. Le secret de Sade. In:
Critique n.15-16 août/septembre, 1947, p.
147-160.
________. Le secret de Sade. In : Critique n.
17 octobre, 1947,
________. La littérature et les mal. – Paris:
Gallimard, 1957.
_________. La littérature e les mal. – Paris :
Gallimard, « col. Folio-Essais », 1990, p. 7796.
BLANCHOT, M.
Raison de Sade. In:
________. Lautréamont et Sade. – Paris:
Editions de Minuit, 1963.
CHARLES, S. Foucault lecteur de Sade: de
l’infinité du discours à la finitude du plaisir.
In: SCLIPPA, N. (dir.). ________. Lire Sade.
- Paris, l'Harmattan, 2004, p. 145-155.
FOUCAULT, M. Les mots et les choses: une
archeologie des Sciences Humaines. – Paris:
Gallimard, 1966. (edição francesa).
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013
120
_______. As palavras e as coisas. Tradução
de Salma Tannus Muchail. - São Paulo:
Martins Fontes, 1981. (edição brasileira).
_______. Histoire de la folie à l’Âge
Classique. - Paris: Gallimard, 1972. (edição
francesa).
_______. História da loucura na idade
clássica. Tradução de José Teixeira Coelho;
revisão de Antonio de Pádua Danesi. - São
Paulo: Perspectiva, 1978. (edição brasileira).
_______. La volonté du savoir. – Paris:
Gallimard, 1976, p. 29 (edição francesa).
_______. História da sexualidade I: a
vontade de saber. Tradução de Maria Theresa
da Costa Albuquerque e J. A. Guillon
Albuquerque. – Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1988. (edição brasileira).
_______. O que são as Luzes? In:
Arqueologia das Ciências e história dos
sistemas de pensamento (Ditos e Escritos II).
Organização e seleção de texto Manoel Barros
da Motta; tradução de Elisa Monteiro. – Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p.
364-365. (edição brasileira).
________.
Distance,
aspect,
origine.
In :________. Dits et écrits. Paris: Gallimard,
1994. t. 1, p. 278-279. (edição francesa)
_________. Distância, aspecto, origem.
In:________. Estética: literatura e pintura,
música e cinema (Ditos e Escritos III).
Organização e seleção de texto Manoel Barros
da Motta; tradução de Inês Autran Dourado
Barbosa. – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. (edição brasileira)
________. Préface à la transgression (1963).
In: ________. Dits et écrits. Paris: Gallimard,
1994. t. 1, p. 233-250. (Edição francesa)
________
Prefácio
à
transgressão.
In:________. Estética: literatura e pintura,
música e cinema (Ditos e Escritos III).
Organização e seleção de texto Manoel Barros
da Motta; tradução de Inês Autran Dourado
REDISCO
ARAÚJO
Barbosa. – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001; p. 45. (edição brasileira).
_______. Interview avec Michel Foucault
(1968). In :________. Dits et écrits. 19541988. Édition de Daniel Defert, François
Ewald e Jacques Lagrange. - Paris: Gallimard,
1994.
________. Linguagem ao infinito. In:______.
Estética: literatura e pintura, música e
cinema (Ditos e Escritos III). Organização e
seleção de texto Manoel Barros da Motta;
tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. –
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
________. La pensée du dehors. In:________.
Dits et écrits. 1954-1988. Édition de Daniel
Defert, François Ewald e Jacques Lagrange. Paris: Gallimard, 1994. p. 521
________. O pensamento do exterior.
In:______. Estética: literatura e pintura,
música e cinema (Ditos e Escritos III).
Organização e seleção de texto Manoel Barros
da Motta; tradução de Inês Autran Dourado
Barbosa. – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. (edição brasileira).
________. Sade, sargento do sexo.
In:_______. Estética: literatura e pintura,
música e cinema (Ditos e Escritos III).
Organização e seleção de texto Manoel Barros
da Motta; tradução de Inês Autran Dourado
Barbosa. – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. (edição brasileira).
________. “Les problèmes de la culture. Un
débat Foucault-Preti” (1972). In:________.
Dits et Écrits .III (n°109), 371–3. 15.
KLOSSOWSKI, P. Sade, mon prochain. –
Paris : Seuil, Pierres vives, 1947. (edição
francesa).
________. Sade, meu próximo. Tradução de
Armando Ribeiro - São Paulo: Brasiliense,
1985. (edição brasileira).
HEGEL, La phénoménologie de l’Esprit.
Traduction française de J. Hyppolite. – Paris :
Audier-Montaigne, 1941.
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013
FOUCAULT, SADE E AS LUZES
121
HÉNAFF, M. Sade et le projet des Lumières.
In : SCLIPPA, N. (dir.). ________. Lire
Sade. - Paris, l'Harmattan, 2004, p. 21-43.
LACAN, J. Kant avec Lacan. In: ________.
Écrits (1966). – Paris: Seuil (Points), 1971,
p. 147. (edição francesa)
_______. Kant com Sade. In:_______.
Escritos. Tradução de Vera Lúcia Avelar
Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
p. 775-803. (edição brasileira).
RENAULT, E. Foucault et l’École de
Francfort. In : CUSSET, Y. ; HABER, S
(dir.). Habermas et Foucault : percours
croisés, confrontations critiques. – Paris :
CNRS, 2006. p. 55-68.
Recebido em: 13 de junho de 2013
Aceito em: 02 de agosto de 2013.
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p. 111-121, 2013