Mobilidade Humana
no mundo contemporâneo
trabalho, direitos e identidades
Marcelo Alario Ennes & Silvia Regina Paverchi
Organizadores
Marcelo Alario Ennes & Silvia Regina Paverchi
Organizadores
Mobilidade Humana
no mundo contemporâneo
trabalho, direitos e identidades
São Cristóvão-SE, 2024
© Editora UFS, 2024. Direitos para esta edição cedidos à Editora UFS. Qualquer parte desta publicação poderá ser utilizada e transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico
ou mecânico, desde que citada a fonte. Obra selecionada e publicada com recursos públicos advindos do Edital 001/2020 do Programa Editorial da UFS. Este livro segue as normas do Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.
*Ilustração com redesign para capa e sumário com auxílio de Inteligência Artificial Dall-E 2 em https://labs.openai.com/, no mês de nov. de 2023, com o descritivo: “imagem digital 3d do calçadão
das Laranjeiras com João Pessoa em Aracaju descrevendo "Mobilidade humana no mundo contemporâneo: trabalho, direitos e identidades", essa imagem pode retratar pessoas num calçadão
da Rua João Pessoa em Aracaju mostrando uma cena movimentada de pessoas, cadeirantes, comerciantes”.
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������ | Valter Joviniano de Santana Filho
����-������ | Rosalvo Ferreira Santos
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����������� ������� | Luís Américo Silva Bonfim
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Alfredo Dias de Oliveira Filho
Ana Beatriz Garcia Costa Rodrigues
Flávia de Ávila
José Vieira da Cruz
Kelly da Silva
Luís Américo Silva Bonfim
Márcia Regina Pereira Attie
Maria Cecília Pereira Tavares
Mariana Bracks Fonseca
Renata Ferreira Costa Bonifácio
Telma de Carvalho
Vitor Curvelo Fontes Belem
(Presidente do Conselho)
���������� � ������� | Sandra Archila Ennes e Juliana Cecci Silva
������� �������, ���������� ����������, ���� | Carlos Tadeu Santana Tatum
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
M687m
Mobilidade humana no mundo contemporâneo : trabalho, direitos e
identidades / Marcelo Alario Ennes, Silvia Regina Paverchi (orgs.). São Cristóvão, SE: Editora UFS, 2024.
333 p. : il.
ISBN nº 978-85-7822-728-9
1. Sociologia urbana. 2. Mobilidade social. 3. Memória coletiva. 4.
Casamento. 5. Emigração e imigração. 6. Identidade. 7. Cultura. I.
Ennes, Marcelo Alario. II. Paverchi, Silvia Regina. III. Título.
CDU 316.334.56
CRB-5 1666/6 Cristina de Assis Carvalho
Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos”,
Jardim Rosa Elze.
CEP: 49100-000 São Cristóvão - Sergipe
Contatos: +55 (79) 3194-6920 Ramais 6922 ou 6923 e-mail: editora.ufs@gmail.com
www.ufs.br/editora
Obra selecionada e publicada
com recursos públicos advindos do Edital 001/2020 do Programa Editorial da UFS.
01
MEMÓRIA E IMAGINÁRIO COLETIVO
ARMÊNIOS: UMA ARMÊNIA ATEMPORAL
NOS CANTOS DE GOGHTEN
Edisio Pereira da Silva Luz Júnior, Maria de Fátima de Almeida Baia, Silvia Regina Paverchi
Neste estudo, com o intuito de colaborar com a investigação acerca da relação entre memória e imaginário coletivos armênios, abordamos os cantos de
Goghten, presentes no período armênio do século VI a.C. até século V d.C. Esses
cantos são característicos da literatura armênia falada e carregam um teor mitológico, histórico-épico, dramático e humorístico (Camargo, 1997). Nosso
intuito é explorar o inconsciente coletivo e a cultura com base na Psicologia
Analítica e sua abordagem para contos e mitos (Jung, 1964; von Franz, 1990).
Ademais, traçamos paralelos com questões de memória e identidade, conforme
Halbwachs (2008), autor que entende a memória coletiva como uma “recomposição mágica do passado”. Em termos analíticos, debruçando em análise sobre
os contos, é comum nos depararmos com representações da experiência com os
arquétipos sombra, animus e anima, expressas nas figuras paternas e maternas.
Essas representações datam, muitas vezes, de milhares de anos, permanecendo
um conto inalterado ao longo dos tempos. Essas narrativas podem, portanto,
contribuir imensamente com a aproximação da totalidade psíquica e dos aspectos inconscientes, referenciando o conceito de arquétipo junguiano, de acordo
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com Von Franz (1990, p. 11) o “[...] arquétipo e imagem arquetípica, sendo o
arquétipo a disposição estrutural básica para produzir uma certa narrativa
mítica, a imagem específica sob a qual o arquétipo toma forma, sendo denominada ‘imagem arquetípica’”. Dessa maneira, pretendemos mostrar como é tênue
a linha que separa o que chamamos de imaginário coletivo (inconsciente coletivo em termos junguianos) da memória coletiva, como também explorar o
quanto que essa oralidade escrita vem contar não apenas sobre uma determinada nação, mas sim sobre a humanidade.
Considerações sobre a literatura Armênia e o papel do alfabeto
A história da Armênia, sua produção cultural e aspectos sociais estiveram
diretamente relacionados com o contexto de disputas territoriais, por isso temos como objetivo apresentar um apanhado desse processo, considerando a
própria literatura oral (Cantos de Goghten) e a construção de um alfabeto. Religião e literatura, assim como outras expressões de um povo, constroem uma
identidade social. Para salvaguardá-las, houve, na história da Armênia, empenho e algumas dificuldades na construção de um alfabeto armênio, o qual só
teve de fato sua consolidação algum tempo depois, figurando por muito tempo
a importante literatura falada conhecidos como os Cantos de Goghten. Estendendo-se pelo alto planalto sul do Cáucaso e pela parte oriental da Anatólia,
mais precisamente entre o mar Cáspio e tendo o mar Negro a oeste, em suas
montanhas as nascentes de rios como o Araxes e o Eufrates, tendo como referencial – e símbolo – o monte Ararat (Menz Massis), é onde se localizava a
Antiga Armênia (Etchebèhére Jr.; Lepinski, 2007).
Por essa sua localização, tornou-se via de comunicação, favorecendo as
diferentes invasões que assolaram a Armênia por muito tempo, repercutindo
em sua vida política, econômica, social e religiosa. De acordo com Etchebèhére
Memória e imaginário coletivo armênios: uma Armênia atemporal nos cantos de Goghten
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Jr. e Lepinski (2007), o povo armênio lutou contra diversos invasores, conseguindo sobreviver através de resistências, sejam bélicas ou passivas. Martins
(2007) aponta que em três milênios de história, a Armênia enfrentou diversos
períodos de opressão, e alguns curtos de liberdade. De acordo com a autora, o
maior desses momentos curtos foi a partir do governo de Tigranes II – O Grande
(94-56 a.C.). Um outro aspecto, tem a ver com a mudança da religião oficial da
Armênia, que se relaciona com o contexto de invasões, neste caso, a adoção do
Cristianismo com o intuito de proteção territorial. De acordo com Patulo
(2001), a adoção da religião cristã pela Armênia ocorreu no início do século IV,
no ano de 301 d.C., motivada, principalmente, pelo desejo de proteção de Roma,
com relação aos interesses territoriais da Pérsia.
A literatura armênia tem suas origens dispersas no tempo. Antes de Cristo, as criações literárias foram produzidas e transmitidas de geração a geração
através da expressão oral, tendo no milênio que antecedeu a cristianização uma
imensa criatividade literária em versos (Camargo, 1997). Segundo Redgate
(2000), a experiência armênia com o sagrado se aproxima não apenas no século
em que ocorreu a adoção do Cristianismo, mas sim de suas origens como povos
estabelecidos no monte Ararat.
De acordo com Baia, Aguiar e Bockorni (2018), a criação do alfabeto da
Armênia, o qual consiste em 36 grafemas, e se deu entre os anos de 404 e 406
a.C. Esse alfabeto representa os fonemas da língua, representando o idioma falado e, portanto, resolvendo o problema de escritas anteriores que não
representavam bem os aspectos falados da língua. Segundo as autoras, existe
Memória e imaginário coletivo armênios: uma Armênia atemporal nos cantos de Goghten
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uma lenda de que o criador do alfabeto, Mesrop Mashtots2 (360-440), teria sonhado com pássaros desenhando os grafemas.
Dessa maneira, não tem como pensar na criação literária armênia sem
considerar o surgimento da escrita do alfabeto da nação. Camargo (1997) apresenta a divisão dos períodos armênios, apontando a existência de diversas
escritas utilizadas nesse recorte temporal: 1°) Pré-histórico – 5° milênio até o
séc. X a.C.; 2°) Pré-armênio – do séc. X a VI d.C.; e 3°); Armênio – séc. VI a.C.
ao séc. V d.C. A autora ainda aponta que, especificamente, no 3° período houve
a utilização das diversas escritas, que mal adaptadas à fonética do idioma estavam suscetíveis a influências externas. Nesse sentido, revelam-se as condições
inadequadas para a criação de uma literatura de alcance nacional, assim como
para transmitir algo em idioma dos antepassados.
Etchebèhére Jr. e Lepinski (2007) indica a utilização de diversas escritas,
que inclusive estavam em uso quando produzido o alfabeto nacional. Segundo
os autores, algumas fontes assírias e babilônicas citam o povo Armen e Arminiya, usando caracteres cuneiformes. Ademais, aramaico, grego e latim, por
exemplo, exerceram influência considerando o contexto de disputa territorial e
religiosa. Diante do cenário de guerras e dominações nos quais a Armênia passou, a criação de uma literatura escrita, ou mais precisamente a criação do
alfabeto armênio, ganha um lugar de importância (Patulo, 2001). Considerando
as contribuições em nível de cultura, mas também a resistência diante de invasões, por sua localização e aspectos comerciais, o alfabeto contribuiria para a
formação de uma identidade nacional, adaptado às condições fonológicas e peculiaridades do idioma armênio (Patulo, 2001).
2
Trabalhou como militar, posteriormente dedicando-se a vida de eremita, e é nessa que se destaca como membro
da elite eclesiástica preocupada com o povo. Mesrop, percebendo a inacessibilidade dos conhecimentos (em
outros idiomas como o persa) do povo, cria o ideal de construção de um alfabeto armênio.
Memória e imaginário coletivo armênios: uma Armênia atemporal nos cantos de Goghten
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Tendo em vista essa necessidade apresentada, Patulo (2001) expõe o
questionamento sobre quais maneiras a Armênia poderia se proteger de cenários de destruição, considerando sua identidade nacional. É nessa conjuntura
que Mesrop Mashtots defendia que a rica cultura, propagada no interior dos
mosteiros, não era acessível para o povo, idealizando a criação de um alfabeto
armênio. Portanto, a criação de um alfabeto armênio, além de diminuir os riscos a que estavam sujeitas as identidades cultural e política, contribuiu para o
enriquecimento da literatura armênia (Patulo, 2001).
Após diversas tentativas frustradas de instituir um alfabeto que fosse capaz de compreender as inflexões dos armênios, Mesrop, em um retiro em
solidão, cria e consegue adaptar graficamente o alfabeto fonético. Dessa maneira, “[...] a passagem dos séculos não pode dissolver as letras criadas por
Mesrop; nem catástrofes, nem ocupações, nem genocídios [...] nem as epidemias puderam apagar a teia estendida por Mesrop” (Patulo, 2001, p, 31).
Martins (2007) considera o alfabeto como um dos laços culturais do povo
armênio, um sistema gráfico que inclui atualmente 31 consoantes e 7 vogais, com
letras maiúsculas e minúsculas, escrevendo-se da esquerda para a direita. De acordo com a autora, o alfabeto impressiona por sua limpeza visual e personalidade.
O imaginário armênio na mitologia
Por pressões políticas e sociais, ressaltando a preocupação de fomentar o
espírito nacional dos armênios, dentro da concepção de diversidade de composição cultural, a escrita armênia foi desenvolvida apresentando-se como um
importante instrumento de sobrevivência cultural, de modo que emerge mais
adaptada à fonética. A nova escrita substitui as outras várias formas de escritas
alheias como a cuneiforme, grega, persa, pictográfica, pondo, desse modo, fim
Memória e imaginário coletivo armênios: uma Armênia atemporal nos cantos de Goghten
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aos períodos pré-históricos, pré-armênio e aos dez séculos iniciais do período
armênio, possibilitando alcance nacional assim como transmissão de conteúdos
antepassados (Kerouzian, 1978).
Essa retomada ao contexto de emergência de uma literatura escrita e
adaptada à fonética do povo armênio nos é útil para situar a existência anterior
da literatura falada, os Cantos de Goghten reunidos sobre essa escrita. Os cantos são construções com teor mitológico, épico, que misturam aspectos
históricos com mitos e lendas, comum nos diversos tipos de mitologia, como é
o caso, segundo Kerouzian (1978), das lendas que fazem alusão a Hayk e à Rainha Semíramis, esta, um dos focos da nossa análise.
De acordo com Kerouzian (1978), alguns rituais acompanhariam os cantos e eram, notadamente, rituais mitológico-religiosos; cita-se Vahagn, o deussol, presente nos cantos e na mitologia, relacionado aos sincretismos de outras
culturas, como a persa e a grega, a saber, as deusas Anahit e Astrid. Dessa maneira, convém apresentarmos para compreensão do leitor, o panteão armênio e
as influências exercidas.
De acordo com Ananikian (1925), o paganismo armênio é um conjunto de
influências nativas, mas também urartianas3, apontando que apesar da possibilidade de encontrar elementos gregos e semíticos, estes e aqueles ou não foram
longe em seu processo de invasão, ou tocaram-lhe superficialmente. O autor
ainda apresenta uma ampliação do panteão armênio com fortes influências das
divindades semíticas, atribuindo, nesse sentido, um papel importante de certo
conservadorismo das pessoas em manter os costumes da era pagã.
3
Dos povos de “Urartu” ou de “Ararat”, que viviam na região do Monte Ararat.
Memória e imaginário coletivo armênios: uma Armênia atemporal nos cantos de Goghten
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Em se tratando do panteão armênio, teria sido o Rei Khosrau a ordenar,
após um regresso de incursões ao mesmo, que lhe trouxessem os sete grandes
altares da Armênia, para que rituais e sacrifícios fossem prestados e esses altares seriam, assim, os templos dos respectivos deuses: Aramazd, Anahit, Tiur,
Mihr, Baal-Shamin, Nane e Astxik. A essas divindades, é acrescentado Vahagn,
apontado como uma divindade nacional/nativa, apresentando-se como um rival
dos deuses Baal-Shamin e Mihr, ambos relacionados com o sol (Ananikian,
1925). Segundo a autora também é atribuída a Vahagn, uma divindade solar, a
crença forte ao próprio sol, lua e estrelas, assim como o culto da Armênia à natureza, caracterizada pelas montanhas, rios, nascentes, árvores e outros
aspectos relacionados.
Das divindades supracitadas, Ananikian (1925) indica que a mais poderosa seria Aramazd, o pai dos outros deuses, e a mais popular, Anahit, deusa
relacionada com a fertilidade e o nascimento que, juntamente com Vahagn, formariam uma tríade, colocando os outros deuses em posições secundárias.
Ananikian (1925) apresenta três classes dessas divindades: iranianas,
semíticas e, por último, o destaque ao deus nacional. Tendo essas influências
sido brevemente apresentadas ainda nesta seção, dedicaremos atenção a algumas características das divindades. No primeiro grupo, divindades com
influência iraniana, temos Aramazd, Anahit, Tir/Tiur, Mihr e Sandaramet/Spantaramet. No grupo das divindades com influências semíticas estão Ba’al
Shamin/ Barshamina/Barshamin, Nane, Astaik, Zatik e, neste último grupo, há
uma incongruência que será apresentada a seguir. Por fim, a divindade nacional é Vahagn.
Aramazd, que pode ser apresentado como uma espécie de derivado de divindades persas, indica a presença do Zoroastrismo na Armênia. Todavia, não
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pode ser configurada como uma simples reprodução, de acordo com Ananikian
(1925), por apresentar características que remontam divindades do céu ainda
mais antigas. Aramazd era supremo e apresentado com outros deuses ao seu
lado. Kurkjian (1958) aproxima-o de Zeus, na mitologia grega, ilustrando-o
como o pai dos deuses, Júpiter. Aramazd, estando acima de tudo, é o doador de
prosperidade por estar relacionado com abundância e fertilidade.
Ao lado de Aramazd, uma das deusas mais importantes da Armênia Pagã
era “A glória”, “a grande rainha”, “aquela nascida de ouro”, Anahit, a qual é identificada com Artemis da mitologia grega. Tir ou Tiur é a divindade intérprete
dos sonhos, defensor das artes e letras e, também, o escriba de Aramazd, revelando, assim como oráculos, o significado dos sonhos. Tir é vinculado a Apolo
pelas adivinhações e a Hermes por seu caráter mensageiro; em suas funções
também estaria encarregado de escrever os nomes daqueles que estavam prestes a morrer (Kurkhian, 1958). Soma-se a isso a perspectiva de que Tir estaria
encarregado de escrever os decretos de Aramazd, registrados nas tábuas celestiais, mas também nas testas dos homens (Ananikian, 1925).
Mihr é o gênio da luz do céu e o deus da verdade, uma divindade com bastante influência da cultura persa, que tem um mês de festejos junto a Mehekan
nos cultos do Cristianismo, o festival do fogo (Kurkhian, 1958). De acordo com
Ananikian (1925), filho de Aramazd, e muito relacionado com o Sol, Mihr poderia ter ocupado o lugar da tríade com Aramazd e Anahit, mas não obtendo
sucesso na cultura armênia, acabou por ceder o espaço para Vahagn, o deus nacional. Deus ou gênio do fogo, Mihr é aproximado pelos historiadores do deus
grego Hefesto.
De acordo com Ananikian (1925), Sandaramet/Spantaramet, guardiã dos
vinhedos, talvez não estivesse tão presente no panteão armênio, mas mais loca-
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lizada na cultura persa. De todo modo, estava relacionada à terra, especialmente ao inferno, indicando aproximações a ser uma divindade responsável pelo
submundo. Contudo, por sua relação com as vinhas, fora associada ao deus Dionísio. Estando a terra conectada com as vinhas, a uva e tendo o vinho como um
dos produtos e mistérios das festas pagãs, a mesma divindade da terra e do vinho, teria devotos obscenos, homens e mulheres (Kurkhian, 1925).
Conforme Kurkjian (1958) assinala, Ba’al Shamin/Barshamina/Barshamin, um dos ídolos transportados da Mesopotâmia, era representado em
branco, marfim e cristal, com nome significando “O Senhor dos Céus”. Na Armênia, Ba’al Shamin aparece como um gigante divinizado pelo povo sírio, mas
derrotado por Aram, sendo na Síria fundida a identidade e considerado um
deus-sol na Armênia também. Assim como Mihr, Ba’al Shamin pode ser considerado um rival de Vahagn. Ananikian (1925) apresenta que uma das poucas
narrativas, genuinamente armênia, que se tem acesso é sobre Vahagn e o roubo
da palha, embora haja uma diferença nas literaturas no modo que a palha ou os
grãos são objetos do roubo de Ba’al Shamin em uma noite fria. Na narrativa, a
Via Láctea foi formada assim que as palhas foram roubadas por Vahagn.
Aproximada à deusa Atena, Nané/Nane é deusa da guerra e da vitória, de
origem elamita que carrega a imagem da virgem mãe (Kurkhian, 1925). Apesar
de ser uma divindade também chegada por sincretismo à cultura armênia, é
apresentada como filha de Aramazd e, pela sua aproximação com Athena, apresenta características de sábia, guerreira e austera.
Astaik, deusa do amor, Afrodite no helenismo, seria a segunda predileta
dos armênios, ficando atrás de Anahit. Astaik tinha também um envolvimento
amoroso com Vahagn, esposa ou amante, possuindo no seu templo nome dedicado ao deus (Kurkhian, 1958).
Memória e imaginário coletivo armênios: uma Armênia atemporal nos cantos de Goghten
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Zatik, embora descrito por Ananikian (1925), não é comumente encontrado em outras literaturas, tendo, portanto, pouca base documental para
apresentá-lo. Segundo o autor, há uma dúvida se este nome estaria vinculado a
uma divindade antiga ou a um festival.
Por fim, podemos resumir o panteão armênio no quadro a seguir, que
ilustra o referido conjunto de deusas e deuses.
Quadro 1: Panteão dos deuses e deusas armênios
Divindade
Influência
Atribuição
Definição
Equivalência
Helenista
Aramazd
Iraniana
Abundância/
Fertilidade
Pai de todos
Zeus
Anahit
Iraniana
Fecundidade/
nascimento de
seres humanos
Parte da Tríade
Artemis
Tir/Tiur
Iraniana
Defensor das
artes, letras
Escriba e
intérprete de
sonhos
Hermes
Mihr
Iraniana
Relacionado à
verdade e a luz
Deus do fogo
Hefesto
Sandaramet
Iraniana
Guardiã dos
vinhedos e
submundo
Terra
Dionísio
Ba’al Shamin
Semítica
Senhor dos céus Deus-sol
Nane
Semítica
Virgem Mãe
Guerra e vitória Atena
Astaik
Semítica
Pequena estrela
Deusa do amor
Afrodite
Nacional
Força, guerra,
vitória e
coragem. Herói
e deus nacional
Deus-sol
Héracles/
Hércules
Vahagn
---
Fonte: autores
Memória e imaginário coletivo armênios: uma Armênia atemporal nos cantos de Goghten
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Os Cantos de Goghten
Camargo (1997, p. 105) aponta que foi nos Cantões de Goghten, uma província de Siunik “[...] que as famílias ali moradoras, por meio dos cantos,
expressavam, transmitiam, propagavam os feitos dos heróis da época, as façanhas dos reis; divulgavam o folclore e os mitos do paganismo cristão”. Esses
cantos foram recolhidos por historiadores, montando a coletânea de 24 cantos
em poemas e versos, os quais remontavam aos primórdios históricos armênios
(Kerouzian, 1978). Ficando conhecidos como os Cantos de Goghten, da província conhecida por campos férteis, costumes alegres e o hábito dos cantos,
cantados por Bardos, conhecidos como cantores/trovadores que utilizavam instrumentos de cordas: bambir ou bandir. Esses cantos podem ser considerados
vestígios literários da antiguidade, assim como fragmentos políticos expressos
através de recursos narrativos passados e cantados por trovadores (ashugh)
(Camargo, 1997).
Em relação à historiografia armênia, Movsés Khorenatsi é tido como pai,
por juntar os excertos, organizar e conservar “[...]a evocação aos mitos do passado e heróis da cultura armênia tão presentes na transmissão oral, abrigados
pela memória popular” (Camargo, 1997, p. 106).
Movsés Khorenatsi menciona, de acordo com Camargo (1997), uma única
vez o nome Vruyr como o autor desses cantos, por conta de sua relação com a
corte, como o rei Artashes, rainha Satenik e outros.
Os Cantos de Goghten são divididos em dois grupos: a) transmitidos
por título e enredo, como o de Hayk, Semíramis e de Ara – O Belo; b) fragmentos em versos, como Vahagn, Vardkes – O Jovem e Tork – O Gigante (Kerouzian,
1978) (Camargo, 1997). Além disso, Camargo (1997) indica que os recolhedores
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se referem aos cantos pelo seu tom, sendo Tsutsk, definido como alegre, e Mrmuntchk definido como sepulcral, recitativo em voz baixa.
Dessa maneira, nos cantos, é possível identificar mentalidade e costumes
do povo armênio, através de suas tradições, costumes, crenças, contatos com
outros povos, conferindo-lhe o caráter documental como informação histórica,
juntamente com aspectos linguísticos e literários (Camargo, 1997). Segundo
(Kerouzian, 1978), o primeiro desses cantos faz referência à lenda de Hayk,
mito fundador do povo armênio. De acordo com esse canto, Hayk, descendente
de Noé – patriarca bíblico, teria guiado o povo armênio ao planalto Ararat, lançando ali as bases de uma nação.
Armênia atemporal: um olhar arquetípico dos cantos
No olhar analítico e arquetípico dos cantos, trazemos uma Armênia passada para o presente. Por meio deles, fortalecemos a memória ancestral ao
repensarmos causalidades do presente. A lembrança para Halbwachs (2008, p.
91) é “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados para outras reconstruções feitas em épocas
anteriores e de onde a imagem de outrora já saiu bastante alterada”. Dessa intrínseca relação com a lembrança, memória é o que se apropria do que se
extraviou na vertigem, e tanto a lembrança como o esquecimento operam-se
nas suas armadilhas (Ferreira, 2004). Ademais, também é “parte do presente,
de um presente ávido pelo passado, cuja percepção é a apropriação veemente
do que nós sabemos que não nos pertence mais” (Bosi, 2013, p. 20).
Esse resgate da memória coletiva é fundamental no permanecimento da
identidade de um povo. Para Ferreira (2004, p. 78), a vida individual, assim como
a própria história intelectual da humanidade, é “uma luta pela memória”, contan-
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do sempre “com vários tipos de esquecimento, o restaurador, o devastador, ou
simplesmente o olvido e o silêncio que antecipam a morte” (Bosi, 2013, p. 2).
A Psicologia Analítica, profunda ou complexa – essa última terminologia,
mais utilizada na Alemanha, refere-se, de acordo com Silveira (1992), a uma
perspectiva que aborda os fenômenos psíquicos que tendem a ser vistos de maneira complexa e em sua totalidade. A perspectiva, que nega um reducionismo,
teve sua formação através do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, tendo caminhado, inicialmente, com Sigmund Freud em diversas concepções do psiquismo
humano e seus processos conscientes e inconscientes. Essa teoria possibilita as
análises de narrativas e conteúdo dos Cantos de Goghten, ressaltando também
os aspectos linguísticos e culturais presentes nos mesmos.
O conceito de inconsciente, assim como a energia psíquica, é concebido
para além de aspectos individuais (inconsciente pessoal) a aspectos gerais e coletivos (o Inconsciente Coletivo). Dessa forma, na visão analítica, o homem
(humanidade) é caracterizado como um ser cindido entre as esferas “[...] consciente e inconsciente, entre uma realidade externa e objetiva e uma realidade
interna e subjetiva” (Serbena, 2010, p. 77).
Esse breve contexto de formação servirá para um aprofundamento em
construtos mais específicos, abordados no decorrer dessa investigação. Ligados
ao tema central, apresentaremos arquétipos, sua relação com o inconsciente coletivo, este, por sua vez, diferenciado do inconsciente pessoal, justificados pela
jornada psíquica inconsciente. Antes, é interessante uma definição básica: o
conceito de psique refere-se ao mecanismo de pensamentos e sentimentos. Jung
(1964) aproxima a psique como algo indefinível e ilimitada, relacionada com
imagens e dividida em 3 níveis: consciência do ego, inconsciente pessoal e inconsciente coletivo.
Memória e imaginário coletivo armênios: uma Armênia atemporal nos cantos de Goghten
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Compreendendo o conceito de energia psíquica, faz-se necessário apresentar também o conceito de símbolo para a Psicologia Analítica. Segundo Jung
(1964), símbolo implica em algo vago, desconhecido; e que uma palavra ou imagem são simbólicas quando apresentam algo além do significado que lhe é
imediato ou facilmente expresso. Conta com um aspecto inconsciente, extremamente amplo e que não é explicado e/ou definido em sua totalidade.
Tendo em vista a visão do sujeito cindido, o símbolo atua nessa mediação
“[...] entre as diversas antinomias e oposições do sujeito, materializadas em
uma oposição e relação entre o consciente e o inconsciente” (Serbena, 2010, p.
77). O símbolo tem, portanto, a função de equilíbrio da psique. Silveira (1992)
escreve que as imagens arquetípicas não são, por si só, símbolos, mas que em
todo o símbolo está presente a imagem arquetípica como ponto essencial, no
entanto, para que se construa esta imagem, ela deve estar aliada a outros elementos. Sendo extremamente complexo, constituído de opostos, nem racional,
nem irracional, mas os dois ao mesmo tempo, uma parte acessando a razão e a
outra parte fazendo vibrar as cordas do inconsciente (Silveira, 1992).
O símbolo, conceito essencial para explorar os Cantos de Gogthen numa
abordagem junguiana, de acordo com Serbena (2010), advém de estruturas arquetípicas capazes e responsáveis por representar temas recorrentes na
existência da humanidade, como morte, nascimento. Nesse sentido, dá-se a possibilidade de falar a partir de uma esfera mais coletiva, sendo uma constante
antropológica (Serbena, 2010).
O inconsciente pessoal diz respeito às camadas mais superficiais. Nele
estão compreendidos aspectos perceptivos, subliminares, que não possuem
energia suficiente para atingir a consciência. É nele em que se localizam os
complexos que, de maneira resumida, são grupos de representações com um
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forte componente afetivo (Silveira, 1992). Em se tratando do Inconsciente Coletivo, sobre o qual debruçaremos nossa maior atenção, ele pode ser definido
como uma espécie de parte da psique que retém e, também, transmite aspectos
psicológicos comuns a toda humanidade (Henderson, 1964). Dessa forma, seriam as camadas estruturantes e internas da psique comum à humanidade,
apoiando-se nessa concepção de universalidade que temas míticos oferecem
uma possibilidade de acesso ao inconsciente coletivo (Silveira, 1992). Os motivos psicológicos, ou imagens primordiais, locadas no imaginário coletivo, são
parte constitutiva essencial dos mitos de todas as nações, podendo, dessa maneira, a mitologia ser considerada uma espécie de projeção do imaginário
coletivo (Jung, 1986).
Acerca do inconsciente, Jung (1986) postula que uma existência psíquica
pode ser reconhecida somente se existir a presença de vários conteúdos a serem
conscientizados. De mesma forma, para o inconsciente precisa-se comprovar
seus conteúdos, no pessoal são os complexos cuja tonalidade é emocional, já os
do coletivo são denominados de arquétipos. Podem ser apresentados como uma
tendência a construir representações de um motivo, sendo algo que se repete,
como exemplo o tema de irmãos inimigos (Jung, 1964). Assim, arquétipos são
estruturas básicas e, também, universais da psique humana, podendo ser usados como base para exploração dos tipos de experiências relacionadas à função
criativa da imaginação (Serbena, 2010). Os arquétipos, que apresentaremos,
tendo em vista à finalidade deste estudo, são: self ou si mesmo, persona, sombra. Além de duas instâncias psíquicas que têm relação íntima com imagens
arquetípicas e inconsciente coletivo: animus e anima.
A postulação básica sobre arquétipo (Jung, 2002), versando sobre a base
psíquica comum à humanidade, propicia a compreensão dos motivos que luga-
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res diferentes possam ter temas idênticos em contos de fadas, mitos, produções
em sonhos de pessoas loucas e não loucas, por exemplo (Silveira, 1992). Especificamente, os arquétipos podem ser explorados através de sua manifestação de
contos de fada e nos mitos (Jung, 2002).
Sendo o Folclore definido como o conjunto de hábitos, tradições, religiosidade e, de modo geral, identidade de um povo, partindo de um olhar
junguiano, é possível, então, localizá-lo em bases arquetípicas (Magalhães,
2013). Ainda de acordo com Magalhães (2013), a partir do pressuposto de que
lendas folclóricas expressam símbolos diversos, com temáticas referentes ao
masculino e feminino, ao nascimento, à sedução, à morte, e outras tantas comuns à humanidade em diversos contextos culturais, o folclore pode ser
concebido como manifestações arquetípicas, e, portanto, relacionadas ao inconsciente coletivo e imaginário de uma nação.
O canto de Semíramis e de Ara – O Belo
Antes de explanar sobre O Canto de Semíramis e de Ara – O Belo, dedicamos um espaço para a reflexão sobre a mulher e as mulheres constantemente
presentes nos cantos e de formas que caminham entre diversas posições na sociedade. O Canto de Semíramis e de Ara – O Belo está localizado no grupo dos
transmitidos por títulos e enredos, numerados de 1 a 6. De acordo com Sá
(2001), nos primeiros dois cantos, os que apresentam a narrativa da gênese de
um povo, a figura feminina é silenciada, colocada em segundo plano e aparece
pela primeira vez com destaque na figura de Semíramis. Essa mulher retratada
como adúltera, má, mentirosa e sedutora, rainha da Assíria e Babilônia, possuindo atributos que caminham entre o bem e o mal, deixa subentendido que seria
capaz de matar o próprio marido (Sá, 2001). Semíramis é, segundo aborda Sá
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(2001), uma mulher guiada pelos desejos sexuais e de poder, assumindo também os ares de viúva negra fatal.
No próximo conto, Sanatruk, a figura feminina é apresentada como a
mãe que zela e daria a vida pelo filho, aspecto materno que ressurge no 5°
canto com algumas alterações. A mulher aparece adjetivada como gigante, termo passível de ser compreendido tomando por referência mitos antigos, mas,
também, metaforicamente, a força e o poder de decisão; esta mãe, tendo seus
filhos através de uniões carnais ‘ilícitas’, apresenta-se decidida e invencível
(Sá, 2001). Já no que diz respeito ao segundo grupo dos cantos transmitidos
por fragmentos e versos, a mãe que reaparece no Canto de Vahagn é a mãe de
um deus, isto é, o fragmento apresenta a própria mãe natureza (Sá, 2001). No
segundo canto, Vardkes – O Jovem, a mulher é tida como objeto de desejo, assumindo o lugar passivo, contemplativa e um prêmio aos valentes. No 4°
Canto de Artashes, a figura feminina é tida como diplomata, negociando a liberdade de seu irmão com o rei dos armênios, ao mesmo tempo sedutora,
sutil, que oferta uma troca. No 5°, 6° e no 7° cantos ocorre o desenrolar da
situação do conto anterior, como pedido de casamento do rei apaixonado, o
próprio casamento e a noite de núpcias (Sá, 2001). O autor defende que a mulher nos Cantos de Goghten marca de maneira profunda a cultura e história
armênias, portando-se em diferentes papéis, maternais, sedutoras e deusas ao
unir essas características em uma só personagem.
Especificamente sobre Semíramis, Camargo (1997) expõe o canto da seguinte maneira: a rainha da Assíria-Babilônia, sabendo da beleza de Ara,
sucessor do trono da Armênia, dedica-se a conquistá-lo, mas, enquanto for casada com o rei Nino, é impossível casar-se outra vez. No canto, Nino, que
planejava o massacre dos armênios por vingança, desaparece sem deixar regis-
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tros de sua morte ou fuga. Movida pelo desejo de ter Ara, Semíramis dedica-se
em presenteá-lo e fazer promessas, incluindo o trono da Assíria-Babilônia, caso
Ara fosse até Nínive (capital da Assíria) e satisfizesse seus desejos; no entanto,
tem suas propostas recusadas. Todo seu ímpeto é agora direcionado a invadir a
Armênia e, apesar das ordens em não ferir o rei Ara, o rei cai morto no campo
de batalha. Camargo (1997) conta que os armênios, movidos pela vingança de
seu rei morto, atacam Assíria, e, como forma de proteção, Semíramis disfarça
um de seus pretendentes como Ara e diz que os deuses, lambendo o corpo de
Ara, devolveram a sua vida. Assim, o povo armênio retira-se e ergue estátuas ao
rei vivo e aos deuses, com homenagens e sacrifícios (com paganismo idolatrado). Sendo assim, Semíramis aparece nesse conto assumindo uma posição de
poder e sabedoria, retomada no canto 7° de Artashes, do segundo grupo.
Segundo Kurkjian (1958), os estudiosos históricos apontam a existência
de Semíramis em 2.000 anos a.C., como a esposa do fundador de Nínive. Outros
já apontam para séculos XIV, VIII ou VI a.C., possivelmente uma figura babilônica, que com muito poder liderou diversas guerras, incluindo contra os caldeus.
Segundo Kurkjian (1958), algumas historiografias a concebem como uma mulher que, com medo de se casar e perder o poder, decidiu amar os atraentes
jovens do exército e depois destruí-los. Seu nome, baseando-se na etimologia
popular, estaria ligado à Assíria, e às suas pombas, com charme, sedução e excessos sexuais, os quais podem ser ligados às lendas que apontam uma
identificação com a deusa Astarte (Kurkhian, 1958).
Tomamos, então, os Cantos de Goghten como símbolo, sendo considerado
expressão arquetípica, tendo em vista que símbolo é qualquer evento, causador
de mobilização de atenção, de um indivíduo ou grupo, com símbolos coletivos
(Penna, 2015). Ao sustentarmos a hipótese de que essa literatura oral é simbóli-
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ca e, portanto, arquetípica, é preciso ressaltar que a meta epistemológica da Psicologia Analítica é captar os aspectos inconscientes, além dos conscientes do
símbolo, precisando haver instrumentos capazes de captura desses dois lados
(Penna, 2015).
A obra de arte pode, desse modo, ser considerada um fato psíquico e o poeta, artista, pode e lança mão das figuras simbólicas, relacionadas com o
inconsciente coletivo, recriando-as segundo suas experiências individuais, recorre, portanto, a uma vivência originária (Jung, 1985). Uma construção com
essas características apresentadas, simbólicas, é polissêmica, assim como o símbolo, e relacionados com o que Jung (1985) define como participation mystique.
Por fim, podemos entender a existência da força e atitude da mulher armênia na figura de Semíramis, a anima representante do imaginário armênio.
Dedicando atenção a alguns detalhes da anima, Silveira (1992) expõe que este
primeiro receptáculo da anima é a mãe (figura materna), passando gradativamente para estrela de cinema e, também, a mulheres com as quais este homem
se relaciona de diversas maneiras; esse ponto pode gerar conflitos, a saber, o
fato de a imagem real não ser capaz de corresponder totalmente a imagem ideal
oriunda do inconsciente. Se a transferência da imagem da anima, de seu primeiro receptáculo, não acontece, há uma repetição nas relações, querendo o sujeito
que estas se tornem de algum modo sua mãe (Silveira, 1992).
De acordo com Silveira (1992), podemos atribuir dois momentos desse
andamento com relação a anima, o primeiro deles é sobre a primeira metade da
vida, na qual a anima é projetada em figuras exteriores, preferencialmente, em
seres reais presentes nas problemáticas do amor. Já na segunda metade da vida,
é a mulher reprimida por muito tempo dentro do homem, por diversas questões
que perpassam o cultural e o tempo, que emerge na sua vida com uma série de
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características, de modo geral, emocionais. Caso o princípio feminino (anima)
seja tomado em consideração pela consciência, torna-se uma importante função
psicológica e de relacionamento com o mundo exterior.
Considerações finais
Procuramos, neste estudo, mostrar o aspecto atemporal presente nos cantos da literatura oral armênia, ao destacarmos como continuam presentes e
caracterizam uma nação, atualizando toda uma memória ancestral. Dessa maneira, nos cantos, é possível identificarmos a mentalidade e costumes do povo
armênio, através de suas tradições, costumes, crenças, contatos com outros povos, conferindo-lhe um caráter universal e arquetípico, além do caráter
documental como informação histórica, aspectos linguísticos e literários. Por
fim, precisamos destacar que a riqueza arquetípica de tais cantos não se encerra na relação imaginário – inconsciente coletivo, pois todos eles carregam uma
musicalidade atemporal, alvo de estudos futuros nossos.
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