NICOLAU
anatomia da autoria
Sumário
00 ....................................
Capítulo 01 ....................................
Capítulo 02 ....................................
Capítulo 03 ....................................
Capítulo 03 e 3/4 .............................
Capítulo 04 ....................................
Capítulo 05 ....................................
Capítulo 06 ....................................
Capítulo 07 ....................................
Capítulo 07 e 1/2 .............................
Capítulo 08 ....................................
Capítulo 09 ....................................
Capítulo 09 e ai, meu deus ...................
Capítulo 10 ....................................
Capítulo
pg. 12
pg. 20
pg. 40
pg. 58
pg. 74
pg. 80
pg. 114
pg. 128
pg. 136
pg. 140
pg. 144
pg. 154
pg. 162
pg. 168
Para todos os artistas ociosos
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10
00
Este trabalho é fruto de uma pesquisa cuja temática veio de um desejo pulsante de compreender melhor os processos de autoria e de concepção de uma obra.
Assim, a investigação perpassa as subjetividades do pesquisador a partir da sua
ânsia em entender os meios que alcançam a si mesmo e seus colegas de profissão
ao embarcarem em uma jornada do fazer cinematográfico.
Com vistas para a escrita e investigação acadêmicas, esta pesquisa tem como
objetivo participar e colaborar no diálogo teórico-prático a respeito da autoria. Este
trabalho se propõe a trazer de maneiras distintas uma discussão sobre a autoria.
No estado da arte, a proposta é direcionar para o texto os escritos que foram
estipulados de maneira quase canônica quando se trata de autoria, enquanto na
discussão trazemos textos que abarcam a questão autoral por outro viés; a partir
de uma pesquisa subjetiva, trata-se da autoria de uma maneira metalinguística.
Partindo de processos internos da autoralidade, os pensadores iluminam a autoria.
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Desse modo, a tese se dá em um espaço de complementações dialogais destes
pensadores que concordam, discordam e acrescentam uns aos outros a partir de
diferentes visões sobre o mesmo assunto.
O estudo tem como alicerce a autoria a partir do afeto e da memória que se
dão como abertura para potencializar o processo de autoria. Para tanto, durante o
estado da arte exploramos os estudos de Gilles Deleuze, Michel Foucault, Walter
Benjamin, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty e Roland Barthes, que se fundamentam na obra como artifício inicial para discutir as questões de autoralidade
de seus criadores.
Na discussão trabalharemos com textos de cineastas, escritores e pensadores
que, ao escrever sobre autoria, têm como princípio seus processos individuais. Assim,
este capítulo explora os pensamentos de Bachelard Schopenhauer, Malevitch, Butler,
Cocteau, Blanchot, Tarkovsky e Erber.
A pesquisa, portanto, parte do subjetivo para o objetivo, rompendo com
estrutura e a norma positivista. Os escritos das próximas páginas integram uma
investigação que será fruto de uma hibridização de conceitos. Temos como intuito
abrir a porta da indagação para essa temática múltipla, antevendo que o trabalho
aqui apresentado será apenas o prólogo das respostas para as muitas perguntas que
aqui serão propostas, essa é uma pesquisa que anseia por pesquisadores e que deseja
ser esmiuçada e analisada atentamente.
Assim, a proposta da investigação fundamenta-se em estudos filosóficos e
suas aplicabilidades no campo do cinema de forma multidisciplinar, em busca da
compreensão da autoria, entendendo que as obras cinematográficas têm camadas
para além dos aspectos de áudio e vídeo.
O filme documental, por vezes, é tomado como documento, arquivo com
fins antropológicos, históricos e jornalísticos. O trabalho pressupõe a ideia dos
documentários enquanto obras artísticas que, ao mesclar as temáticas memória
e afeto, permitem um processo de autoria e uma relação autor x obra diferenciados, como, por exemplo, a fissão binária, em que o autor se multiplica ao criar seu
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documentário. Desse modo, serão utilizadas, como base teórica, obras da filosofia,
cinema e literatura que imbricam as questões levantadas durante a elaboração desta
tese. Relativamente ao objeto da tese, este consiste no estudo de documentários do
cinema contemporâneo brasileiro que abordam a memória e o afeto.
Os documentários a ser explorados e analisados serão, de todo, filmes que
buscam dentro da “voz”, muitas vezes elocutiva, do diretor, contar uma memória
que ele vivenciou ou que faz parte de sua história de alguma forma, enunciando-a
em primeira pessoa; essas narrativas não compõem a série de características mais
buscadas pelo público brasileiro, logo poucas vezes fazem parte do grande circuito
comercial, ou nem chegam a ser exibidos neste, circulam em festivais e tem um período curto de “vida”. Portanto, o processo de busca dos filmes analisados na pesquisa
foi o de esmiuçar em serviços de streaming de pequeno e médio porte, entrar em
contato com produtoras e diretores indicados e buscar, em festivais e mostras menores, filmes que se encaixassem no perfil de pesquisa e que pudessem ser explorados.
O terceiro capítulo parte para a análise do corpus e a proposta teórica defendida. Porém, antes de adentrarmos na dissecção dos conceitos da análise fílmica que
será empregada ao longo desta pesquisa, é imperativo refletir de forma perspicaz.
Por que realizar uma análise fílmica? Certamente, o processo hermenêutico à atividade especulativa, em qualquer de seus graus, seja mera fruição, crítica ou análise,
nos incita a tal empreendimento. De maneira geral, a análise fílmica é considerada
como qualquer texto que se concentra nos filmes e em seu conteúdo, independentemente da profundidade, do enfoque e da abrangência do texto. Assim, inclui-se
desde um mero comentário ou crítica cinematográfica de cunho jornalístico até o
estudo acadêmico em toda a sua plenitude.
Nietzsche (1988) afirma que um texto permite inúmeras interpretações e que
não há uma interpretação correta. O mesmo se aplica aos filmes, pois não existe
apenas uma análise correta. Segundo o pensamento do filósofo, há um acúmulo de
metáforas, metonímias e antropomorfismos que constituem as relações humanas
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e que, depois de amplamente explorados, parecem canônicos e obrigatórios. No
entanto, tais ideias são meras ilusões (Nietzsche, 1988, p. 45).
"Analisar um filme vai além de simplesmente assisti-lo, pois “a relação estabelecida entre o objeto e o analista exige uma imersão profunda que obriga a revisitá-lo
até alcançar suas metas mínimas" (Felici, Tarín, 2007, p. 35). Em sua obra "A Análise
do Filme", Jacques Aumont afirma que existem três princípios fundamentais para a
realização da análise cinematográfica:
A) Não há um método universal para analisar filmes.
B) A análise de um filme é interminável, pois, não importa o grau de precisão
e extensão alcançados, sempre haverá algo a ser analisado.
C) É essencial conhecer a história do cinema e os discursos suscitados pelo
filme escolhido, a fim de evitar repetições. É necessário, antes de tudo, questionar
a nós mesmos que tipo de leitura desejamos realizar (Aumont, 2004, p. 39).
Segundo o autor, ao abordar um filme, é imprescindível ter consciência de
que não se trata de uma abordagem inocente. O primeiro passo para analisar um
filme é avaliar o lugar que ele ocupa na história do cinema e conhecer os discursos
que o permeiam.
As condições espectatoriais do filme são particularmente psicológicas. O
espectador não possui controle sobre as imagens diante de si, encontrando-se em
uma posição passiva enquanto é imerso no fluxo da projeção, que transmite informações afetivas, cognitivas e sensoriais. Ao assistir a um filme várias vezes, é possível
memorizar certos detalhes e narrar a evolução da obra. Durante a análise dos filmes,
utilizaremos imagens como representações das cenas em questão e como objetos
de pesquisa direta, uma vez que o filme consiste em uma sequência de fotografias.
Descrever uma imagem é transpor para a linguagem verbal os elementos que
a compõem. A descrição detalhada dos planos em um filme pressupõe um movimento de análise e interpretação.
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"Não se trata de descrever 'objetivamente' e minuciosamente todos os elementos presentes em uma imagem, e
a escolha utilizada na descrição resulta sempre, no fim das
contas, do exercício de uma hipótese de leitura, explícita
ou implícita" (AUMONT, 2004, p. 64).
A descrição da imagem é seletiva e compartilha características com os estudos semiológicos, uma vez que possui vários níveis de significação. Ao descrever
um fotograma do filme, a primeira tarefa do analista é identificar os elementos
representados na imagem, reconhecê-los e nomeá-los. "Esse nível de sentido literal,
de 'denotação', parece evidente, mas na verdade os 'semas' visuais possuem limites
culturais bem definidos" (AUMONT, 2004, p. 67).
Segundo Aumont, os fotogramas escolhidos para fins ilustrativos são normalmente selecionados com base na legibilidade e critérios estéticos. A imagem
escolhida deve ser eloquente e não é simplesmente selecionada por ser o fotograma
mais representativo da obra. É necessário renunciar ao status privilegiado de uma
determinada cena mais conhecida e escolher um fotograma que, apesar de anônimo,
seja um representante importante do filme.
Quanto à escolha dos fotogramas apresentados na análise, seguimos a metodologia proposta por Jacques Aumont em "A Análise do Filme", que afirma o seguinte:
A) O fragmento escolhido para análise deve ser delimitado como uma fração
do filme.
B)O fragmento deve compor um excerto coerente e consistente do filme,
demonstrando uma organização interna.
C) O fragmento deve ser representativo do filme.
Analisar um filme é equivalente a desmembrá-lo, embora não haja uma metodologia única e correta. A análise implica descrever e decompor o filme de modo
que o analista possa compreender e interpretar as relações entre os elementos desmembrados. A partir dessa premissa, é possível categorizar as análises realizadas em:
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Análise textual: Nessa abordagem, o filme é considerado como um texto.
Essa análise deriva do estruturalismo e visa a decomposição, afirmando que o filme
possui uma estrutura. Divide-se o filme em partes, considerando as unidades de
sintagmas e drama.
Análise de conteúdo: Essa análise tem como foco o tema e a abordagem do
filme. Envolve a identificação temática, um resumo e uma análise da abordagem
do conteúdo apresentado, fazendo referências, geralmente, à filosofia e sociologia
para discutir a realidade retratada no filme.
Análise da imagem e som: Esse tipo de análise compreende o filme como um
artefato de expressão e concentra-se no espaço fílmico, recorrendo a conceitos cinematográficos. Nessa abordagem, examina-se como o diretor concebeu o filme e
como o cinema proporciona uma visão diferenciada do mundo e uma nova forma
de pensamento.
Análise poética: A análise poética, conforme estudada por Wilson Gomes,
compreende o filme como uma programação de efeitos no espectador. Pressupõe
uma metodologia que primeiramente lista os efeitos da experiência fílmica, identificando os sentimentos e sensações vivenciados ao longo do filme. Em seguida,
de forma estratégica, reconstrói o processo de criação de forma reversa, a fim de
compreender como esses efeitos foram construídos.
Para o autor Wilson Gomes, antes de iniciar a interpretação de um filme, é
necessário aplicar os paradigmas de organização. O princípio organizador no texto
fílmico estabelece regras morfológicas e sintáticas que decorrem do status inerente
ao filme enquanto produto submetido às vicissitudes de um contexto específico de
produção, gênero, nacionalidade, estilo autoral, etc., e que direcionam certas abordagens de leitura, um modo de ver e compreender (GOMES, 2004, p. 39).
A análise do processo de criação de um filme revela-se como um aspecto fundamental para a compreensão da obra cinematográfica em sua totalidade. Nesse sentido,
investigar as etapas e os elementos envolvidos na produção de um filme permite
desvendar as escolhas estéticas, técnicas e narrativas que moldam sua forma final.
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O processo de criação de um filme engloba diversas fases, desde a concepção inicial até a finalização da obra. Cada etapa desempenha um papel crucial na
materialização da visão do diretor e na transmissão de sua mensagem ao público.
A análise desse processo não apenas ilumina as intenções artísticas e temáticas por
trás do filme, mas também revela as nuances do trabalho de produção cinematográfica.
Há uma estrutura rígida que faz parte do processo de filmagem do cinema
ficcional, que envolve primeiramente o desenvolvimento do conceito do filme, fase
em que o roteirista elabora a ideia central, estabelece os temas, constrói os personagens e estrutura a trama.
Após a fase de desenvolvimento, há a pré-produção, que abrange a captação de
financiamento, a seleção do elenco, a definição dos locais de filmagem, a concepção
do design de produção, entre outros aspectos logísticos.
Em seguida, vem a produção, momento em que as cenas são filmadas. A análise
desse processo pode se concentrar na direção de fotografia, na escolha de enquadramentos e movimentos de câmera, na utilização de iluminação e cores, bem como na
interação entre os atores e a equipe técnica, captação de som e questões de produção.
Após a filmagem, segue-se a pós-produção, que envolve a edição do filme, a
inclusão de efeitos visuais, a mixagem de som e a trilha sonora. Essa etapa é fundamental para a construção da narrativa e do ritmo do filme, bem como para a criação
de atmosferas e a intensificação da experiência sensorial.
Por fim, temos a distribuição e exibição do filme. Nessa fase, a obra é levada
ao público, seja através de lançamentos em cinemas, festivais, plataformas de streaming ou outras mídias.
No entanto, ao se falar de filmes documentais, essas etapas se mesclam ao
longo do processo de criação da obra. Os filmes escolhidos para análise nesta tese
tiveram estruturas de produção diferentes entre si, isto resultou em uma experiência
de pesquisa farta, pois a análise de dados tornou-se uma amálgama de diferentes
processos de criação documental que exploram temáticas de forma similar, a partir
de diferentes formatações de percurso.
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Nesse sentido, nos interessou principalmente a análise da gênese da obra, as
influências que moldaram sua concepção, assim como as referências cinematográficas que inspiraram os projetos, as escolhas de direção e roteiro, os acontecimentos
fundamentais durante a gravação principalmente tendo em vista que são obras em
que os diretores se fazem presentes no filme como personagens.
A análise explorou a interação entre as diferentes etapas e a influência mútua
entre os profissionais que contribuíram para a realização do filme. Dessa forma,
compreendem-se mais profundamente as escolhas artísticas, as intenções do diretor
e as diversas camadas de significado presentes na obra cinematográfica.
Esses elementos serão levados em conta para um estudo aprofundado dos
filmes, a fim de compreender sua complexidade e significado. A abordagem multidimensional possibilitará uma análise abrangente, considerando não apenas as características do filme, mas também seu contexto e o caminho galgado para sua produção.
Dessa forma, a análise fílmica realizada nesta pesquisa baseia-se em uma
abordagem teórico-prática, que contempla diferentes perspectivas e metodologias,
buscando uma compreensão aprofundada das obras selecionadas por meio da
desconstrução da obra a partir da entrevista com diretores para uma reformatação
da análise dos filmes baseada na intersecção entre as falas dos diretores e o estudo
teórico.
A fundamentação da escolha dos filmes veio a partir de uma série de características que formataram o recorte da análise desta investigação. Substancialmente
tratar-se-ia de:
A)
Documentários brasileiros em longa metragem
B)
Produzidos e lançados em uma janela de vinte anos, entre os anos dois
mil (2000) e dois mil e vinte (2020)
C)
Primeiras obras documentais em longa-metragem de seus respectivos
diretores
D) Filmes que abordam o afeto e a memória por meio da busca da identidade
própria do documentarista
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A partir desse recorte foram delimitados 3 documentaristas com métodos de
produção, carreiras e características distintas: Daniel Gonçalves, Cristiano Burlan
e Sandra Kogut. As entrevistas foram realizadas por meio de videochamadas, devido à localização geográfica dos entrevistados. As perguntas da entrevista foram
estruturadas com base na leitura de livros teóricos sobre o tema autoria, garantindo
uma abordagem fundamentada na literatura pertinente. As perguntas abordaram
aspectos como a relação entre autoria, afeto e memória nos documentários, as
motivações por trás das escolhas criativas dos diretores e como esses elementos se
manifestam em seus filmes.
As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos entrevistados durante a própria gravação, garantindo a confidencialidade das informações. A duração
média das entrevistas foi de uma hora.
A análise dos dados coletados foi realizada por meio da transcrição das entrevistas. As respostas dos entrevistados foram examinadas em relação aos conceitos
teóricos abordados na pesquisa e às hipóteses formuladas. Identificaram-se temas
emergentes e padrões nas respostas dos entrevistados, estabelecendo conexões
com a literatura teórica e avaliando a relevância das respostas em relação à linha
de pesquisa e às hipóteses.
O processo de seleção do corpus de análise para a realização deste trabalho
constituiu-se de diferentes etapas que guiaram o processo. A análise inicial foi
feita a partir das fases e história do cinema documental brasileiro, tendo em vista
os processos de produção e as narrativas abordadas ao longo dos anos. A partir do
estudo primeiro, fez-se possível a delimitação temporal de modo a abarcar nesta
pesquisa filmes de produção contemporânea.
A partir da busca da filmografia, foram analisados filmes com temáticas diferentes e ainda com propostas que possuem semelhanças. O corpus tem como diretriz
temática a busca do autor pela descoberta de sua identidade e os filmes são a primeira experiencia dos diretores com longas-metragens documentais. Assim, os filmes
escolhidos foram “Meu nome é Daniel”, “Passaporte Húngaro” e a “Trilogia do luto”.
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"Meu Nome é Daniel" apresenta um estilo íntimo e pessoal, com Daniel compartilhando seus pensamentos, medos e descobertas com o público. Ele utiliza uma
câmera na mão para registrar momentos de seu cotidiano, além de inserir imagens
de arquivo filmadas ao longo de sua vida, dando ao filme uma sensação de autenticidade e imediatismo.
A jornada de Daniel em busca de um diagnóstico médico serve como um pano
de fundo para discussões sobre a importância de ter um nome para sua condição e
como isso pode influenciar a vida de uma pessoa com deficiência. O documentário
levanta questões sobre a representação e visibilidade das pessoas com deficiência
na sociedade e na mídia. O documentário foi produzido ao longo de vários anos
e lançado em 2018. O filme estreou em festivais de cinema e eventos culturais no
Brasil e no exterior.
"Meu Nome é Daniel" recebeu vários prêmios e seleções em festivais de cinema
nacionais e internacionais, incluindo: Melhor Filme pelo Júri Popular no Festival
de Cinema de Vitória, em 2018; Menção Honrosa no Festival Internacional de
Cinema de Santos, em 2018; Prêmio Especial do Júri no Festival Internacional de
Documentários de São Paulo, em 2018; Melhor Filme pelo Júri Popular no Festival
de Cinema de Fronteira, em 2018.
O filme também foi selecionado para várias sessões especiais em festivais de
cinema, como no Festival Internacional de Documentários de Sheffield, na Inglaterra,
e no Festival Internacional de Cinema de Buenos Aires (BAFICI), na Argentina, e
para a Seleção Oficial no Festival Internacional de Documentários de Amsterdam
(IDFA) em 2018.
Em seus documentários, Daniel frequentemente aborda questões relacionadas
a minorias e grupos marginalizados, especialmente pessoas com deficiência. Além
dos prêmios recebidos por "Meu Nome é Daniel", o diretor já foi reconhecido por seu
trabalho em vários outros festivais e eventos de cinema. Em 2023 ele participou como
debatedor na mesa de inclusão no Rio 2C, maior evento de mercado criativo do Brasil.
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A obra de Daniel Gonçalves tem tido um impacto significativo no cenário do
cinema brasileiro e na discussão sobre inclusão social e representação na mídia e
na sociedade. Seus filmes são conhecidos por sua abordagem pessoal e autêntica
e por dar voz a perspectivas muitas vezes negligenciadas na mídia e na sociedade.
"Passaporte Húngaro" é um documentário em primeira pessoa que aborda
questões de identidade, memória e pertencimento. A diretora brasileira Sandra
Kogut explora suas raízes familiares e a história de seus avós húngaros que emigraram para o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Ao longo do filme, Kogut
busca obter um passaporte húngaro como descendente desses imigrantes e, assim,
mergulhar no complexo universo de sua herança cultural. O documentário tem
uma estrutura não linear, intercalando cenas de viagens de Kogut à Hungria, filmagens com parentes e funcionários do governo e imagens de arquivo. Ao longo
do filme, Kogut reflete sobre seu relacionamento com a história de sua família e a
complexidade das identidades culturais.
O filme é marcado por um estilo íntimo e pessoal, no qual Kogut compartilha
suas dúvidas, medos e descobertas com o espectador. A câmera é frequentemente
usada como um instrumento de diário. O documentário explora várias temáticas
relacionadas à identidade, memória e pertencimento ao examinar como a história
de sua família e a experiência de imigração moldaram sua própria identidade e a
dos membros de sua família. O filme também aborda a importância de preservar a
memória e a história da família e de comunidades imigrantes.
Enquanto o processo de obtenção do passaporte húngaro levanta questões
sobre o conceito de nacionalidade e cidadania. Kogut questiona a relação entre
passaportes, direitos e privilégios, e como a posse de um documento pode afetar a
maneira como uma pessoa é vista e tratada pela sociedade.
A produção de "Passaporte Húngaro" teve início quando Sandra Kogut morava
na França e com diversas dificuldades burocráticas decidiu investigar suas raízes familiares e solicitar um passaporte húngaro. O filme foi rodado ao longo do processo
administrativo da feitura do documento. O documentário foi lançado em 2001 e
21
desde então tem sido exibido em diversos festivais de cinema e eventos culturais
ao redor do mundo. A obra é frequentemente destacada como um exemplo significativo de documentário em primeira pessoa e de cinema brasileiro contemporâneo.
O filme também gerou discussões e debates sobre temas como migração, diásporas
e a experiência de pertencer a várias culturas simultaneamente.
"Passaporte Húngaro" foi premiado e selecionado em diversos festivais de cinema nacionais e internacionais. Alguns dos prêmios e seleções incluem: Prêmio
do Júri no Festival Internacional de Documentários de Marselha (FIDMarseille) em
2001; Menção Especial do Júri no Festival Internacional de Cinema Independente
de Buenos Aires (BAFICI) em 2001; Seleção Oficial na Mostra Internacional de
Cinema de São Paulo em 2001; Seleção Oficial no Festival Internacional de Cinema
Documental de Amsterdã (IDFA) em 2001.
A trajetória de "Passaporte Húngaro" demonstra o sucesso e o impacto duradouro do filme. Ele continua a ser estudado e discutido por estudiosos e entusiastas
do cinema, especialmente no contexto de documentários em primeira pessoa e
questões de identidade e memória.
Sandra Kogut é uma cineasta brasileira nascida no Rio de Janeiro em 1965.
Ela é conhecida por seu trabalho em documentários e filmes de ficção, muitas
vezes abordando questões de identidade, memória e relações humanas. Kogut estudou filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e artes visuais na
Universidade Paris VIII, na França.
Ao longo de sua carreira, Kogut desenvolveu um estilo distintivo que combina
elementos documentais e ficcionais, experimentando diferentes formas de narrativa
e linguagem cinematográfica. Ela tem explorado uma ampla gama de temas em seu
trabalho, incluindo migração, identidade cultural e experiências pessoais
Por fim, A trilogia do luto conta com três filmes em documentário de Cristiano
Burlan: "Construção" (2006) explora a morte do pai de Burlan, sob uma perspectiva
muito pessoal e introspectiva. É um trabalho profundamente emotivo que investiga
os sentimentos de perda, saudade e o luto não resolvido, lançado em 2006, como
22
o primeiro da trilogia. O filme foi produzido de forma independente e lançado em
festivais de cinema brasileiros.
Em "Mataram Meu Irmão" (2013), Burlan utiliza novamente um estilo documental com câmera em primeira pessoa, para contar a história do assassinato de
seu irmão. O filme se baseia em entrevistas e imagens de arquivo para narrar essa
tragédia familiar e aborda a violência endêmica que afeta a periferia de São Paulo e
o impacto devastador dessa violência nas vidas dos indivíduos e famílias envolvidas.
O documentário foi exibido em vários festivais de cinema e transmitido na televisão
brasileira. "Mataram Meu Irmão" ganhou o prêmio de Melhor Documentário no
Festival de Cinema It's All True em 2013.
Em "Elegia de um Crime" (2018), Burlan mistura entrevistas e imagens de
arquivo para narrar a história do assassinato de sua mãe. A película lida com questões de violência de gênero, impunidade e a luta pela justiça em um sistema legal
que muitas vezes falha com as vítimas. Lançado em 2018, o filme foi exibido em
diversos festivais de cinema e recebeu ampla atenção da crítica. Foi premiado como
Melhor Documentário no Festival de Cinema de Brasília em 2018 e indicado para o
prêmio de Melhor Documentário no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em 2019.
Essa trilogia se concentra no impacto da violência e do luto na família de
Burlan, explorando os efeitos psicológicos e sociais dos traumas vividos. É um trabalho poderoso e dolorosamente honesto, que recebeu elogios da crítica por sua
coragem e profundidade emocional.
Nascido em Porto Alegre, Burlan mudou-se para São Paulo com sua família quando era criança. A vivência na periferia da cidade e a experiência de vida
marcada pela tragédia familiar informam grande parte de sua obra, que frequentemente explora as facetas mais sombrias da experiência humana. Burlan começou
sua carreira na indústria cinematográfica brasileira como diretor independente,
produzindo filmes de baixo orçamento que chamaram a atenção dos críticos por
sua autenticidade e abordagem única. Uma das principais características de seu
trabalho é o compromisso com a representação realista e sem floreios da vida nas
23
áreas menos favorecidas de São Paulo. Além de sua carreira como cineasta, Burlan
também é professor de cinema.
A condução das entrevistas na pesquisa foi realizada de forma cuidadosa e
estruturada, buscando garantir a qualidade e a confidencialidade das interações.
Cada entrevista representou uma oportunidade de diálogo aberto, estabelecido por
meio de videochamadas, permitindo um encontro virtual entre o entrevistador e
o entrevistado.
Durante a condução das entrevistas, houve um equilíbrio entre as perguntas
predefinidas e a flexibilidade para se adaptar ao fluxo da conversa. Algumas perguntas
foram padronizadas em todas as entrevistas, proporcionando uma base consistente
para comparação e análise. Essas perguntas abordaram aspectos fundamentais da
criação de documentários em primeira pessoa, como a motivação por trás da escolha
desse formato e os desafios enfrentados pelos diretores.
No entanto, foi igualmente importante permitir que os entrevistados influenciassem a direção do diálogo. Isso possibilitou a revelação de percepções e
experiências únicas dos participantes, trazendo à tona suas trajetórias pessoais e os
processos criativos envolvidos na produção de documentários em primeira pessoa
no contexto do cinema brasileiro.
Cada resposta oferecida pelos participantes foi valorizada e contribuiu para
a compreensão da realidade dessa forma de expressão cinematográfica. Cada nuance, cada detalhe expresso, trouxe uma perspectiva única para a compreensão dos
processos pessoais desses autores.
Além das gravações das entrevistas, os participantes também contribuíram
com documentos adicionais, que enriqueceram ainda mais a narrativa em construção. Esses documentos incluem roteiros, anotações, diários de produção ou outros
registros pessoais, fornecendo uma rica amálgama de informações que revela os
bastidores da criação dos documentários em questão.
Ao reunir as gravações das entrevistas e esses documentos adicionais, foi
possível construir uma narrativa mais completa e contextualizada, que apresenta
24
não apenas os resultados das entrevistas, mas também a jornada pessoal de cada
diretor envolvido nessa forma de expressão cinematográfica. A combinação desses
elementos proporcionou uma compreensão mais profunda dos processos criativos
e das motivações que impulsionaram a produção dos documentários em primeira
pessoa no cinema brasileiro.
Assim, as entrevistas e os documentos adicionais desempenharam um papel
essencial na captura e preservação das experiências, percepções e trajetórias pessoais
dos diretores, tornando-se uma fonte inestimável de informações para este estudo.
Para todas as entrevistas foram delimitadas perguntas fundamentais que
serviriam como base comparativa em relação aos entrevistados. Cada uma das entrevistas contou também com perguntas específicas em relação aos filmes escolhidos.
As questões essenciais foram estabelecidas a partir das perguntas de pesquisa
delimitadas anteriormente. Neste sentido, todas as entrevistas foram realizadas
tendo como base as seguintes perguntas:
A)
Como deram-se os processos de criação dos filmes?
B)
Você teve contato com alguma obra que te inspirou a fazer este filme?
C)
O contato com os arquivos que aparecem no filme se estabeleceu como
um processo de rememorar ou de descoberta?
D) Você acredita que teve controle sobre a sua obra?
E)
Você precisou estar só para conceitualizar o filme?
F)
Como foi o processo de se ver e se ouvir como personagem?
G) Como se deu a organização entre ser documentado e documentarista ao
mesmo tempo?
A utilização dos documentos adicionais fornecidos pelos diretores, como
relatos escritos, argumentos dos filmes, fichas de inscrição em editais de fomento,
versões diferentes do roteiro e planejamentos, foi de extrema importância para enriquecer a pesquisa, proporcionando uma compreensão mais profunda das raízes,
motivações e processos de cada filme.
25
Esses documentos adicionais ofereceram uma perspectiva sobre o contexto
e as circunstâncias em que os filmes foram concebidos. Os relatos escritos, por
exemplo, datados da década de 90, serviram como uma inspiração inicial para cada
filme, revelando as experiências pessoais e as reflexões dos diretores na época. Esses
relatos foram fundamentais para entender as motivações subjacentes aos filmes e
como eles evoluíram ao longo do tempo.
Além disso, os argumentos dos filmes e as diferentes versões do roteiro forneceram insights valiosos sobre as escolhas artísticas e narrativas feitas pelos diretores.
Através desses documentos, foi possível compreender melhor a intenção por trás
de cada filme, os temas abordados e a maneira como foram estruturados. A análise
comparativa das diferentes versões do roteiro revelou a evolução das ideias e a forma
como os filmes foram refinados ao longo do processo criativo.
As fichas de inscrição em editais de fomento também foram documentos significativos, pois permitiram compreender o contexto de produção dos filmes. Elas
revelaram os recursos disponíveis, as parcerias estabelecidas e os objetivos buscados pelos diretores ao pleitear financiamento para suas obras. Esses documentos
forneceram uma visão abrangente das condições de produção e das expectativas
associadas aos filmes.
A combinação das entrevistas gravadas e dos documentos adicionais foi essencial para uma análise mais abrangente e contextualizada dos filmes analisados.
As entrevistas forneceram insights diretos dos diretores, suas perspectivas pessoais
e reflexões sobre o processo criativo. Os documentos adicionais, por sua vez, ofereceram uma base sólida de informações complementares, fornecendo detalhes
específicos sobre o desenvolvimento dos filmes, suas raízes históricas e influências.
Assim, estes foram fundamentais para ampliar a compreensão dos filmes e aprofundar a investigação sobre o contexto e o processo criativo de cada obra.
A pesquisa tem como problematização a conceituação de afeto e memória
na construção do autor documental que usa do artifício da subjetividade como temática principal. Deste modo o objetivo da pesquisa é compreender o cruzamento
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entre afeto e memória na formação da autoria de documentaristas contemporâneos
brasileiros dentro do recorte definido.
Na hipótese aqui apresentada, aquele que não é autor é um ser que se encontra
em estado prévio à autoria, de modo que quando este ser é provocado pela vivência,
projeta a memória da experiência e a partir da projeção há a fusão do afeto e memória que permitem a autoralidade, aristotelicamente este é um ser em potência e
a partir da potencialização este segue para o estado de autoria.
O que pretendemos explorar é que estaríamos todos inicialmente no estado
que antecede a autoria e a partir da instigação do afeto e da memória partiríamos
para a possibilidade de um estado de autoria. Apoiamo-nos em Tarkovski que diz
que o cinema tem “sua função particular, o seu próprio destino, e nasceu para dar
expressão a uma esfera específica da vida, cujo significado ainda não encontrará
expressão em nenhuma das artes existentes.” (TARKOVSKY, 2010, p. 95), deste
modo há ainda um outro estado possível, o ser-cineasta uma especificação dentro
da autoralidade individual que se diferencia de outras formas de autoria.
A hipótese da tese se dá no âmbito cinematográfico, tendo como suposto que
a autoria decorrida do falar-de-si, filmar-se, tornar-se sujeito elocutor em processo
de autodocumentação, possibilitaria a bifurcação do ser, que se tornaria tanto a
obra (objeto da filmagem) quanto o autor (filmador). Assim, o cruzamento entre o
afeto e a memória se faria presente em dois momentos, na formação do autor e no
processo de criação, de modo a serem também a temática do documentário (obra).
Tendo em vista que os documentários tratam do falar-de-si, a pessoa enquanto
obra traz para a frente o conteúdo da obra, o afeto sofrido e a memória criada, como
temática híbrida que se mistura com o “eu”. Deste modo, no aspecto cinematográfico
constantemente traremos provocações para pensar os filmes, sem desassociá-los
dos textos explorados ao longo da investigação
Assim, para alcançar uma tese relevante temos como escopos:
A) Delinear a intersecção e conectividade entre afeto e memória como
antecessores da autoria;
27
B) Entender as propostas de afeto e memória individual no documentário
brasileiro em 1ª pessoa, em específico a produção contemporânea.
C) Compreender o cruzamento da memória e afeto no documentário
contemporâneo brasileiro enquanto processo de autoria
D) Propor um diálogo entre textos que tratam da autoria mesclando as
fundamentações subjetivas e as objetivas a fim de propor conceitualizações
que partam de um estudo extensivo sobre a concepção da autoria.
28
29
30
01
A reflexão sobre a autoria tem sido objeto de interesse há muito tempo nas
tradições filosóficas e científicas da comunicação. No entanto, é necessário questionar
qual é precisamente a natureza da autoria e a partir de qual perspectiva abordamos
essa temática. O conceito de autoria extrapola a atribuição de responsabilidade pela
criação de uma obra, envolvendo a identidade e subjetividade do autor.
Nesse sentido, segundo a perspectiva de Gilles Deleuze em “Diferença e Repetição”, podemos considerar a relação entre o artista e a obra, bem como a natureza
da criação artística. Ao mesmo tempo, de acordo com Roland Barthes em seu ensaio
“A Morte do Autor”, a autoria não se resume a produzir algo novo e original, mas
também envolve uma expressão singular e subjetiva do autor. É questionável se a
criação de algo “novo e original” é a questão principal para se alcançar a autonomia
e a liberdade de pensamento e ação, ou se os processos subjetivos, como memória
e afeto, são os fatores que impulsionam essas características.
31
Assim, podemos compreender que a obra de arte não se limita a ser uma mera
representação do mundo objetivo, mas uma manifestação da experiência do artista,
suas emoções e perspectivas. A autoria, portanto, pode ser interpretada como uma
forma de comunicação entre o autor e o público, permitindo uma compreensão
mais profunda do ponto de vista do criador. Além disso, a autoria pode ser vista
como uma maneira de afirmar a liberdade e a autonomia do indivíduo, uma vez que
a criação de algo reivindica a capacidade de pensar e agir de forma independente e
autônoma, tornando-se uma expressão da criatividade humana.
Desse modo, a autoria se revela como um processo contínuo e dinâmico, no
qual o autor e a obra estão em constante interação e transformação mútua. A obra
de arte pode influenciar o autor, que por sua vez pode modificar a obra em função
de suas experiências e perspectivas. Assim, a autoria pode ser compreendida como
uma forma de diálogo entre o autor e a obra, que permite uma compreensão mais
profunda e enriquecedora da criatividade humana.
No que tange à abordagem proposta por Michel Foucault em seu trabalho “O
que é um autor”, publicado no Bulletin de la Societé Française de Philosophie, 63º
ano, nº 3, de julho a setembro de 1969, salienta-se a constatação de que a figura do
autor é uma criação histórica e cultural, e não uma categoria universal e natural.
Segundo Foucault (1992), a noção de autoria consiste em uma construção social
que emerge em um determinado contexto cultural e que tem implicações políticas
e ideológicas. Em outras palavras, o que chamamos de autor é uma invenção da
cultura ocidental moderna, que surgiu em um momento específico da história. A
figura do autor é utilizada para legitimar discursos e práticas, restringir a liberdade
de expressão e controlar a produção cultural.
A figura do autor é frequentemente utilizada como um dispositivo para estabelecer a concepção de que há apenas uma única fonte de significado em um texto
— o próprio autor — e que a interpretação crítica deve levar em consideração as
intenções do autor. Tal perspectiva suscita a ideia de que um texto carrega um significado fixo e imutável, sendo que a interpretação crítica deve se ater rigidamente
32
às intenções do autor. Michel Foucault questiona tal perspectiva, propondo uma
abordagem mais descentralizada e contextual da produção cultural. Segundo ele,
um texto deve ser compreendido em seu contexto cultural e histórico, independentemente das intenções do autor. Ademais, Foucault sugere que a produção
cultural é fruto de uma multiplicidade de vozes e discursos, sendo que a figura do
autor deve ser descentralizada a fim de propiciar uma compreensão mais completa
da produção cultural.
A descentralização da figura do autor possui implicações políticas e ideológicas
relevantes. Foucault argumenta que a figura do autor é utilizada como instrumento
para estabelecer a autoridade e legitimidade de discursos e práticas específicas, sendo
que a descentralização dessa figura pode levar a uma compreensão mais crítica e
pluralista da produção cultural. Ao descentralizar a figura do autor, podemos reconhecer a multiplicidade de vozes e discursos que contribuem para a produção cultural,
permitindo uma abertura para a contestação e a transformação desses discursos.
O ponto de partida desse autor está sempre ancorado na premissa de que a
obra é criada antes de o autor ser considerado, sugerindo, dessa forma, a desconexão
entre a obra e o autor. Em outras palavras, a obra é concebida como autossuficiente,
desvinculada de seu criador. A partir da desconexão entre obra e autor, torna-se
possível o desaparecimento do autor, ou daquele que escreve. Desse modo, a concepção de que a obra seria uma forma de exteriorização do íntimo do autor não
encontra respaldo em Foucault, visto que não há uma expressão do indivíduo criador
atrelada à obra. Para ele, a noção de autoria é uma construção histórica, uma vez
que ela emerge como uma forma de propiciar a atribuição de autoridade e legitimidade a discursos e práticas específicas, em detrimento de outras. Como argumenta
Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do
gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito
em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde
33
o sujeito que escreve não para de desaparecer. (FOUCAULT,
1992, p. 35).
A concepção foucaultiana de desconexão entre obra e autor sugere implicações
profundas para a compreensão da relação entre criador e obra. Foucault propõe que
a autoria seja vista como um processo social e discursivo que envolve a participação
de múltiplos agentes, instituições e práticas.
Para Foucault, a obra não é uma expressão direta e transparente das intenções
do autor, mas sim um objeto complexo que é moldado por diferentes contextos e
discursos. A ênfase na obra em detrimento do autor permite uma interpretação mais
ampla e crítica das obras, que leva em conta o papel das instituições, dos discursos
e das práticas na produção e recepção da obra.
A partir dessa análise, Foucault sustenta que a eliminação do autor é uma possibilidade real, visto que a figura do autor é uma construção discursiva que limita a
maneira como interpretamos e usamos uma obra. O autor não é mais o centro da
interpretação, mas um elemento entre outros que contribuem para a construção
de sentido em uma obra.
Dessa forma, a concepção foucaultiana de desconexão entre obra e autor
desafia a noção tradicional de autoria, permitindo uma abordagem mais ampla e
crítica da produção cultural e intelectual.
Importante notar que Foucault traz à tona a questão do nome1, que perpassa
todo o seu discurso. Desde o início de sua investigação, o questionamento central
que o autor se propõe é "Que importa quem fala?" (FOUCAULT, 2009, p. 34). Essa
pergunta é levantada ao lado de outras, como "Quem realmente falou? Foi ele e
1Se escolhi tratar essa questão talvez um pouco estranha é porque inicialmente gostaria de fazer uma certa critica sobre o que antes me ocorreu escrever. E voltar a um certo numero de imprudências que acabei cometendo.
Em As palavras e as coisas, eu tentara analisar as massas verbais, espécies de planos discursivos, que não estavam bem acentuados pelas unidades habituais do livro, da obra e do autor. (...) Então, vocês me perguntarão,
por que ter utilizado, em As palavras e as coisas, nomes de autores? Era preciso ou não utilizar nenhum, ou então definir a maneira com que vocês se servem deles. Essa objeção é, acredito, perfeitamente justificada: tentei
avaliar suas implicações e conseqüencias em um texto que logo vai ser lançado; nele tento dar estatuto a grandes
unidades discursivas, como aquelas que chamamos de história natural ou economia política; eu me perguntei
com que métodos, com que instrumentos se pode localizá-las, escandi-las, analisá-las e descrevê-las. Eis a primeira parte de um trabalho começado há alguns anos, e que agora está concluído. (FOUCAULT, 2009 , p. 266)
34
ninguém mais? Com que autenticidade ou originalidade? E o que ele expressou do
mais profundo dele mesmo em seu discurso?" (FOUCAULT, 2009, p. 288).
Essas questões, que remetem ao "ruído" anterior, retornam à temática do nome ao
perguntar: "que importa quem fala?" (Qu'importe qui parle), questionando "qual o
valor daquele que assina o texto?".
Ao retomarmos o início da apresentação de Foucault, quatro pontos fundamentais para o entendimento de seu discurso são nomeados, a saber:
1.
"o nome do autor", que se refere à ideia de que o autor é uma figura atribuída a um texto que lhe confere identidade e autoridade específicas.
Foucault argumenta que o nome do autor é uma construção cultural e
histórica que emerge em um determinado contexto e é usado para estabelecer a autoria e a autoridade de discursos e práticas específicas. O
nome do autor torna-se, assim, uma espécie de marca registrada do texto.
2.
A metáfora da apropriação (Le rapport d’appropriation) alude à relação
entre o autor e o texto, na qual o autor é concebido como o proprietário
absoluto do texto, como se o texto fosse uma extensão de si mesmo. Nessa
concepção, o autor tem controle total sobre o texto e sua interpretação,
sendo sua autoridade inquestionável. Foucault critica essa metáfora,
argumentando que ela restringe a compreensão do texto apenas àquilo
que o autor pretendia transmitir, ignorando o contexto cultural e histórico em que o texto foi produzido.
3.
Já a metáfora da atribuição (Le rapport d’attribution) se refere à relação
entre o autor e a interpretação do texto, na qual o autor é visto como o
responsável pela interpretação do texto, como se a autoridade do autor
se estendesse além da produção do texto e incluísse sua interpretação.
Foucault também critica essa metáfora, pois ela limita a interpretação do texto apenas às intenções do autor, ignorando outras possíveis
interpretações.
35
4.
Por fim, a “posição do autor” se refere à posição que o autor ocupa na
hierarquia de autoridade e poder em relação a outros discursos e práticas. Foucault argumenta que a posição do autor é determinada pelas
instituições, discursos e práticas que cercam a produção do texto, e que
essa posição pode mudar ao longo do tempo e de acordo com o contexto
cultural e histórico em que o texto foi produzido. A posição do autor
é, portanto, um construto histórico-cultural que não deve ser tomada
como uma verdade absoluta.
Para Michel Foucault, a concepção de obra é uma construção vinculada a
um conjunto de práticas institucionais, tais como a Academia, a Crítica literária e
a História da arte. Tais práticas geram uma categoria separada de produção cultural, que é reconhecida como “obra” e é valorizada com base em critérios estéticos
e culturais específicos.
Entretanto, Foucault sustenta que essa categoria de obra apresenta problemas, uma vez que restringe a compreensão da produção cultural apenas aos objetos
que foram oficialmente consagrados como obras, deixando de lado outras formas
de produção cultural que não se encaixam nessa categoria. Para ele, é necessário
adotar uma abordagem mais ampla da produção cultural, que leve em conta a diversidade de práticas culturais e a relação entre elas e o contexto histórico e social
em que foram produzidas.
Desse modo, Foucault questiona a ideia de que a obra é uma entidade autônoma e isolada do mundo social e histórico em que foi criada. Ele propõe uma
abordagem mais crítica e descentralizada da produção cultural, que considere a
diversidade de práticas culturais e a relação entre elas e o contexto histórico e social
em que foram geradas.
Segundo Foucault, há uma distinção entre o redator2 e o autor: o redator é
o indivíduo que escreve o texto, enquanto o autor é uma construção cultural que
emerge em torno do texto e lhe confere uma certa autoridade e identidade. O autor é
2Um texto anônimo que se lê na rua em uma parede terá um redator, não terá um autor (FOUCAULT, 2009,
p. 274).
36
visto como uma fonte de significado e intenção do texto, como se a sua presença fosse
indispensável para dar sentido ao texto e conceder-lhe uma identidade específica.
Foucault critica essa perspectiva que concebe o autor como a única fonte
de significado e intenção do texto, uma vez que essa abordagem restringe a compreensão do texto somente à intenção do autor, deixando de lado outras possíveis
interpretações e contextos históricos e culturais em que o texto foi produzido.
Dessa forma, Foucault propõe uma abordagem mais crítica da produção cultural,
que leve em consideração a diversidade de práticas culturais e a relação entre elas
e o contexto histórico e social em que foram geradas.
Consoante a perspectiva de Michel Foucault, a distinção entre o autor e o redator é uma forma de descentralizar a figura do autor e, por conseguinte, propiciar
a emergência de outras interpretações e abordagens possíveis da produção cultural.
À luz dessa concepção, o presente trabalho empreenderá uma investigação acerca
das trajetórias criativas que conduzem à produção de um documentário em primeira
pessoa, desvinculado de quaisquer exigências de selo autenticador.
Nesse contexto, o escopo da pesquisa abarcará a diversidade de práticas culturais imbricadas na realização de um documentário em primeira pessoa, bem como a
relação entre tais práticas e o contexto histórico e social que permeia a produção do
referido trabalho audiovisual. O propósito consiste em fomentar uma abordagem
crítica e pluralista da produção cultural, que valorize a multiplicidade de perspectivas
e abordagens envolvidas na criação de uma obra cinematográfica.
É possível estabelecer um ponto de convergência entre as perspectivas distintas apresentadas por Michel Foucault e Walter Benjamin, a saber: a relação entre o
autor e a sociedade. Ambos os pensadores enfatizam que a produção artística é um
processo que se insere em um contexto social e político mais amplo e que a figura
do autor extrapola a mera produção da obra, envolvendo também sua circulação
e interpretação.
No contexto da Alemanha nazista, Walter Benjamin, em seu ensaio “O autor
como produtor”, escrito em 1934, discorre sobre a figura do autor como um agente
37
político capaz de transformar a realidade em que se insere. Sua proposta está fortemente ligada aos ideais marxistas e à crença na capacidade da arte de promover
mudanças sociais. Para Benjamin, a produção artística não deve ser considerada
como um simples reflexo da realidade, mas sim como uma forma de intervenção e
transformação desta. O autor deve assumir uma postura crítica em relação à sociedade em que vive e utilizar sua produção artística como uma forma de resistência
e luta contra a opressão.
Nesse contexto, Benjamin defende o engajamento político do escritor progressista, que deve se posicionar ao lado do proletariado e abandonar sua autonomia
em favor da luta de classes. Tal posição radical coloca a produção artística a serviço
de uma causa política específica, visando à transformação social. Benjamin critica o
modelo tradicional de produção artística, que tende a reproduzir as desigualdades
sociais e a manter a separação entre produção e consumo. Ele propõe uma abordagem que coloque a produção artística a serviço da transformação social e que busque
superar as barreiras entre os diferentes setores da sociedade.
No entanto, é importante considerar que essa posição pode ser questionada
quanto à sua viabilidade na prática, uma vez que a produção artística muitas vezes
depende de recursos materiais e financeiros que não estão necessariamente vinculados à luta de classes. Além disso, a questão da autonomia do escritor é complexa,
envolvendo não apenas a relação com a sociedade, mas também a relação com a
própria obra e com a tradição literária.
Benjamin questiona a forma como avaliamos a produção artística e como
entendemos a relação entre a arte e a política. A dicotomia entre tendência e qualidade pode levar a uma visão simplista da produção artística, em que a tendência
política é considerada mais importante do que a qualidade estética. Assim, ele
sugere irmos além de um pensamento dicotômico e buscar uma abordagem mais
complexa e integrada da produção artística, que leve em conta tanto a dimensão
estética quanto a dimensão política da arte.
38
Walter Benjamin elucida a posição do autor em relação à sociedade em que
vive e destaca que a produção literária não é politicamente e socialmente neutra.
Seguindo a argumentação de Walter Benjamin, “O autor como produtor, ao mesmo
tempo que se sente solidário com o proletariado, sente-se solidário, igualmente,
com certos outros produtores, com os quais antes não parecia ter grande coisa em
comum” (Benjamin, 1996, p. 129). Dessa forma, o autor, ao se solidarizar com o proletariado, demonstra uma clara posição política e social, mas também se solidariza
com outros produtores, reconhecendo a importância da união dos trabalhadores e
produtores para lutar contra a exploração e opressão.
Ademais, o conceito defendido é que o autor deve estar ciente das condições
em que sua obra é produzida e criar obras que não apenas retratem a realidade,
mas também a transformem. O autor deve ter uma visão crítica das condições de
produção e usar a criação artística como uma ferramenta de organização social e
política. Assim, há uma importância em uma produção literária engajada, consciente
e transformadora, capaz de contribuir para a mudança social.
De acordo com Walter Benjamin,
O autor consciente das condições da produção intelectual contemporânea está muito longe de esperar o advento de tais obras, ou de
desejá-lo. Seu trabalho não visa nunca a fabricação exclusiva de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção. Em
outras palavras: seus produtos, lado a lado com seu caráter de obras,
devem ter antes de mais nada uma função organizadora. Sua utilidade
organizacional não precisa de modo algum limitar-se à propaganda. A
tendência, em si, não basta. O excelente Lichtenberg já o disse: não
importam as opiniões que temos, e sim o que essas opiniões fazem
de nós. É verdade que as opiniões são importantes, mas as melhores
não têm nenhuma utilidade quando não tornam úteis aqueles que as
defendem” (Benjamin, 1996, p. 131).
39
Em vista do exposto, é possível compreender a relação que o autor estabelece
com sua produção intelectual. Benjamin defende que o autor consciente das condições da produção intelectual contemporânea não deve esperar o advento de obras
que sejam desejáveis, nem buscar a fabricação exclusiva de produtos. Em vez disso,
o trabalho do autor deve visar à produção dos meios necessários para essa criação,
ou seja, os produtos, juntamente com seu caráter de obras, devem ter antes de tudo
uma função organizadora, que não precisa limitar-se à propaganda. De acordo com
Benjamin, a utilidade organizacional dos produtos é fundamental para o trabalho do
autor, pois a tendência em si não basta. Ele destaca que as opiniões que os autores
têm não são tão importantes quanto o que essas opiniões fazem com eles. Afinal,
as opiniões são importantes, mas as melhores não têm nenhuma utilidade quando
não tornam úteis aqueles que as defendem.
Nos pensamentos de Benjamin e Jean-Paul Sartre, há uma conexão temática
no que tange à valorização da autoria coletiva e engajada em projetos políticos e
sociais, em contraposição ao individualismo e à produção de bens culturais meramente comerciais. Ambos os pensadores entendem que a produção cultural e
intelectual deve estar a serviço da transformação social e política, sendo um meio
de resistência e de subversão das estruturas de poder e dominação.
Por outro lado, Jean-Paul Sartre, representante do existencialismo, enfatiza
que a literatura é uma forma de ação que permite aos escritores e leitores participarem da construção do mundo. Para Sartre, o autor não pode ser visto como um
indivíduo isolado, mas sim como um membro da sociedade que escreve para se
comunicar e se envolver com o mundo ao seu redor. Ele destaca que a escrita é uma
forma de compromisso político e que, por meio dela, os autores podem influenciar
a sociedade e as pessoas.
Sartre e Merleau-Ponty abordam a relação entre a arte, a percepção e a significação de maneiras que realçam a importância das emoções e das experiências
sensoriais na compreensão da realidade humana. De acordo com Sartre, as cores,
40
formas e sons não são meros signos que apontam para algo externo a eles, mas
sim possuem significações imanentes, ou seja, essas significações estão ligadas aos
elementos artísticos e são inseparáveis deles.
Essa visão de Sartre sugere que a arte não é apenas um meio de comunicação
simbólica, mas também uma forma de expressão emocional e sensorial. As emoções
humanas desempenham um papel crucial na maneira como percebemos e interpretamos a arte, esta por sua vez, tem o poder de evocar emoções e respostas afetivas
em seus espectadores. Assim, atua como um canal de comunicação entre o artista e
o público, permitindo que ambos compartilhem experiências e emoções em comum.
Merleau-Ponty, em “Fenomenologia da Percepção”(2011), desenvolve ainda mais
essa ideia, argumentando que a percepção humana está inextricavelmente ligada
à significação. Segundo Merleau-Ponty, interpretamos o mundo através de nossos
sentidos e emoções, e nossa percepção é moldada por essas experiências sensoriais
e afetivas. Nesse sentido, a arte é um meio privilegiado para acessar e compreender
a realidade humana, uma vez que nos permite explorar a complexidade e a riqueza
das experiências perceptivas e emocionais.
A convergência das ideias de Sartre e Merleau-Ponty também tem implicações importantes para a prática artística. Ao reconhecer que a arte é um meio de
expressão que acolhe as emoções e os sentidos, os artistas podem voltar sua atenção à criação de obras que estimulam a sensibilidade humana. Assim, o foco não
se limita à transmissão de mensagens simbólicas, mas à manifestação por meio de
uma estética que alcança o sublime. Isso pode levar a uma abordagem mais autêntica e profunda da arte, na qual o artista busca capturar e transmitir a essência das
experiências humanas, em vez de representar conceitos abstratos.
Além disso, a compreensão de que a percepção humana está ligada à significação sugere que os artistas têm a capacidade de influenciar a maneira como o
público percebe e interpreta o mundo. Ao criar obras que desafiam as percepções
preconcebidas e estimulam novas formas de pensar e sentir, os artistas podem ajudar
41
a moldar a consciência coletiva e promover uma compreensão mais profunda da
condição humana.
A criação artística, segundo Sartre (1989, p. 10-11), não se baseia na intenção
de comunicar um significado específico. O artista, ao trabalhar com cores e formas,
cria uma realidade em si mesma, sem necessariamente se preocupar em transmitir
uma mensagem definida. A concepção de criação artística de Sartre sugere que o
processo criativo não é motivado principalmente pela intenção de comunicar um
significado específico. Em vez disso, o artista trabalha com elementos como cores
e formas para criar uma realidade própria, que sobreexcede a transmissão de uma
mensagem específica. Essa visão da arte enfatiza a autonomia da obra e do artista,
destacando a importância da originalidade e da inovação na expressão artística.
A ênfase na criação de realidades próprias na arte implica que as obras artísticas
têm o poder de suplantar o contexto imediato em que foram criadas. A arte, nessa
perspectiva, pode ser vista como um meio de explorar e expressar aspectos universais da condição humana, que vão além das particularidades culturais, históricas
ou geográficas. Assim, as obras de arte podem servir como pontes que conectam
diferentes culturas e épocas, permitindo que os espectadores encontrem um terreno
comum e compartilhem experiências e emoções.
A distinção entre prosa e poesia apresentada por Sartre oferece uma visão
interessante sobre a natureza e os objetivos dessas duas formas literárias. Segundo
Sartre, a prosa tem um caráter utilitário, pois seu principal objetivo é comunicar
significados e transmitir informações. A prosa, nesse sentido, está mais preocupada
com a clareza e a precisão na comunicação de ideias, o que a torna uma ferramenta
eficaz para transmitir conhecimento e expressar raciocínios complexos.
Em contraste, a poesia, de acordo com Sartre, é mais próxima das outras artes, como a pintura e a música, no sentido de que seu principal objetivo é expressar
emoções e sensações. A poesia, portanto, não está necessariamente preocupada em
transmitir um significado específico, mas em explorar a riqueza e a expressividade
42
da linguagem. O poeta busca criar imagens e sons que provoquem emoções e estimulem a imaginação do leitor, em vez de simplesmente comunicar ideias concretas.
Essa distinção entre prosa e poesia também sugere que as duas formas literárias têm diferentes abordagens em relação à linguagem e à estética. Enquanto a
prosa valoriza a clareza e a lógica, a poesia enfatiza a musicalidade, a imaginação e a
expressão emocional. Isso pode ser visto na forma como os poetas frequentemente
empregam técnicas para criar efeitos estéticos e emocionais, enquanto os escritores
de prosa tendem a usar uma linguagem mais direta e expositiva.
A diferença entre prosa e poesia também pode ser entendida em termos de
sua relação com o tempo e a estrutura. A prosa geralmente segue uma estrutura
linear e cronológica, com um começo, meio e fim claros, enquanto a poesia tende
a ser mais fragmentada e não linear, permitindo maior liberdade na disposição e
na sequência dos versos. Essa maior flexibilidade na poesia permite que os poetas
explorem diferentes aspectos da experiência humana, como a memória, o desejo e
a transcendência, de maneira mais imediata e intensa.
Sartre também explora a noção do escritor engajado, que destaca a importância do compromisso ético e político na literatura. Segundo ele, o escritor engajado
não apenas apresenta e expressa sua visão de mundo, mas também busca revelar
a realidade e a condição humana de maneira a provocar uma reflexão crítica e um
senso de responsabilidade nos leitores. Isso implica que a literatura vai além do
entretenimento ou da expressão artística e se torna um instrumento para a transformação social e a conscientização política.
O escritor engajado, nesse contexto, deve estar disposto a abordar questões
políticas, sociais e morais em suas obras, mesmo que isso possa gerar controvérsia
ou descontentamento por parte de alguns leitores. A literatura engajada, portanto,
é um ato de coragem e resistência, na medida em que desafia as convenções e os
preconceitos estabelecidos e promove uma discussão aberta e honesta sobre os
problemas e as injustiças do mundo.
43
Assim, o escritor engajado deve estar atento à maneira como sua escrita pode
influenciar e moldar as percepções e as atitudes de seus leitores. Isso implica em
adotar uma linguagem clara e acessível, que permita que as ideias e os argumentos
apresentados sejam compreendidos e debatidos por um público amplo. A literatura
engajada, nesse sentido, pode ser vista como uma forma de ação política e social,
na medida em que busca provocar mudanças nas atitudes e nos comportamentos
dos leitores. O escritor engajado, ao abordar questões controversas e complexas em
suas obras, pode ajudar a criar um espaço de diálogo e reflexão, onde os leitores
são convidados a questionar suas próprias crenças e preconceitos e a repensar suas
ações e responsabilidades diante da realidade.
Isso não significa, no entanto, que o escritor engajado deva sacrificar a qualidade artística e estética de sua obra em prol do engajamento político. Pelo contrário,
Sartre argumenta que a literatura engajada deve ser capaz de unir a expressão artística
e a mensagem política de maneira harmoniosa e convincente, de modo que os leitores possam apreciar e se identificar com a obra em um nível emocional e intelectual.
Sartre, ao defender a ideia de que a literatura deve ser uma ferramenta para a
transformação social, atribui aos escritores uma função fundamental como agentes
de mudança na sociedade. Eles têm a responsabilidade de criar obras que abordem
questões políticas, sociais e morais, visando despertar nos leitores uma consciência
crítica sobre o mundo em que vivem. Essa perspectiva pressupõe que a literatura
tem o poder de influenciar e moldar a percepção das pessoas, contribuindo assim
para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
De acordo com Sartre, um escritor engajado não é apenas aquele que escreve
sobre determinados temas, mas também aquele que escolhe uma linguagem clara
e acessível, capaz de ser compreendida pelo público. É como se o escritor estivesse
abrindo portas para que os leitores possam adentrar em seu mundo e refletir sobre
as questões que ele apresenta.
A literatura engajada pode ser uma poderosa ferramenta educativa e emancipadora, ajudando os leitores a desenvolver uma consciência crítica e questionar as
44
estruturas de poder e os valores dominantes. Quando um escritor expõe as injustiças e as contradições do mundo, ele pode inspirar seus leitores a agir de maneira
mais consciente e responsável, buscando uma sociedade mais justa e igualitária.
Ao trazer à tona temas controversos e desafiadores, um escritor engajado estimula seus leitores a se envolver em discussões abertas e plurais, o que pode fortalecer
a democracia e a cidadania. A literatura engajada é capaz de promover o debate e a
reflexão sobre questões de interesse público, contribuindo para a formação de uma
cultura democrática e participativa.
A noção de engajamento literário de Sartre destaca a importância do compromisso moral e político na escrita e na criação artística. Um escritor engajado
deve abordar e explorar a condição humana em suas obras, levando em conta não
apenas questões políticas, mas também éticas, sociais e existenciais que afetam a
vida das pessoas no dia a dia.
Quando criam obras que confrontam e exploram a realidade humana com sua
diversidade e complexidade, os escritores engajados têm a possibilidade de inspirar
e capacitar seus leitores a refletir sobre suas próprias vidas e a buscar uma maior
compreensão e empatia em relação aos outros. Deste modo a literatura engajada
pode servir como um catalisador para a mudança pessoal e social, pois encoraja os
leitores a questionar suas próprias crenças e valores e a se envolver ativamente na
busca por um mundo mais justo e humano.
No pensamento do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, como exposto
em sua obra “Fenomenologia da Percepção”(2011), a percepção humana não se
resume a uma sequência de sensações distintas, como sugere o pensamento empirista tradicional. Ao invés disso, Merleau-Ponty propõe que a percepção é um
fenômeno integrado e repleto de significado, contextualizado em uma estrutura
maior de entendimento.
Ao se debruçar sobre o conceito de sensação, Merleau-Ponty apresenta uma
crítica relevante ao entendimento tradicional. O empirismo compreende a sensação como o ponto de partida da experiência perceptiva, fornecida diretamente
45
ao indivíduo. Merleau-Ponty, no entanto, argumenta que esta concepção ignora a
complexidade inerente à experiência perceptiva. Em sua visão, a percepção não se
resume a um amontoado de sensações desconectadas, mas se estrutura como uma
experiência repleta de significado, onde o ato de perceber envolve um engajamento
ativo com o mundo.
A sua ideia desafia a visão convencional de que a sensação se configura como
uma experiência passiva, de recepção de qualidades específicas como o vermelho,
o verde, o quente ou o frio. Ele propõe, em vez disso, a sensação como um "choque"
indiferenciado e primitivo, a experiência fundamental de entrar em contato com
o mundo. Assim, a percepção passa a ser a experiência ativa de ser afetado pelo
mundo, e não meramente uma experiência passiva de recebimento de sensações.
Além disso, Merleau-Ponty também oferece uma nova perspectiva sobre o
objeto percebido. Em vez de existir de maneira isolada, o objeto perceptivo se insere
em um "campo" maior, uma rede interligada de significações. A percepção, portanto,
sempre ocorre em um contexto, fazendo surgir algo que se destaca dentro de um
campo. Isto contrasta com a noção tradicional da percepção como a experiência de
sensações individuais, uma "pura impressão" que só surge quando nos distanciamos
da experiência perceptiva em si e nos concentramos no objeto percebido.
Merleau-Ponty propõe ainda uma distinção entre “ser sensível” e ter “sensações”.
As cores, por exemplo, não são meras experiências subjetivas internas, mas sim propriedades dos objetos no mundo, são “sensíveis”. As qualidades, como as cores, são
aspectos do mundo que podem ser percebidos ou sentidos. Essa visão desafia a ideia
tradicional de que a percepção é uma experiência passiva de recebimento de sensações, sugerindo que ela é, de fato, um processo ativo de engajamento com o mundo.
O filósofo ainda discute a contribuição das sensações individuais para a formação de uma imagem ou "figura" perceptiva integrada. Segundo ele, a consciência
é capaz de organizar sensações pontuais em figuras perceptivas coerentes, evidenciando a natureza ativa e interpretativa da percepção.
46
Por fim, Merleau-Ponty refuta a ideia de um sujeito autônomo, independente
do mundo ao seu redor. O filósofo francês propõe um quadro de ser humano como
um ente de fenômenos, em contínua interação e coexistência com o mundo que o
cerca. A subjetividade humana não é um dado isolado, mas, antes, o resultado de
uma interação contínua e profunda com o mundo.
Neste contexto, a noção de autoria toma uma nova dimensão. A autoria não
é simplesmente a produção de um único indivíduo, mas, sim, um produto de uma
relação entre o indivíduo e o mundo. A criação não surge do nada, mas emerge das
profundezas de uma experiência compartilhada, mediada pelo mundo.
Merleau-Ponty reflete profundamente sobre a experiência sensorial, e isso
molda sua visão de autoria. Para ele, a autoria não é uma atividade puramente
cognitiva, mas, sim, uma que envolve todo o ser, incorporando uma série de experiências sensoriais que nos conectam com o mundo ao nosso redor. Nossos sentidos
nos fornecem as matérias-primas para a criação, e nossa conexão com o mundo dá
significado a esses materiais.
Essa visão de autoria desafia nossa compreensão tradicional de autoria como
propriedade individual. A autoria, sob a perspectiva de Merleau-Ponty, é coletiva
e compartilhada. É uma celebração da interconexão humana com o mundo e com
os outros.
Isso não diminui o papel do autor individual, mas, ao invés disso, amplia-o. O
autor não é apenas o criador, mas também o intérprete, o explorador e o mediador
entre o mundo e o leitor. A autoria torna-se um ato de criação e comunicação, um
processo de compartilhamento e exploração do mundo e de nós mesmos.
Nesse sentido, podemos ver a autoria não apenas como uma atividade de criação, mas também como uma de compreensão e interação com o mundo. Através da
autoria, nós nos engajamos com o mundo de uma maneira profunda e significativa,
tornando-nos parte dele, moldando-o e sendo moldados por ele. E é através deste
processo que encontramos nossa própria voz, nosso próprio lugar no mundo. A
47
autoria é, em última análise, um ato de autodescoberta e autoexpressão, um meio
pelo qual nós afirmamos nossa existência e nossa identidade no mundo.
A visão de que a percepção humana está ciente da natureza construída das
coisas se estende também ao nosso envolvimento com o mundo cultural. Vivemos em um mundo repleto de produtos e criações humanas, desde obras de arte
e edifícios até regras sociais e instituições. Essas criações são produto de esforço
humano, expressões de intenções, desejos e ideias humanas. Como tal, a nossa
percepção dessas coisas não é meramente de objetos inanimados ou fenômenos
neutros. Ao contrário, quando olhamos para um quadro, por exemplo, estamos
cientes, mesmo que apenas subconscientemente, do processo e intenção criativos
que levaram à sua existência.
Merleau-Ponty argumenta que esse conhecimento implícito da natureza produzida das coisas que percebemos é uma característica essencial da percepção humana.
Ele sugere que essa consciência nos permite entender e interpretar o mundo de uma
maneira que vai além do literal e do superficial. Ao mesmo tempo, essa compreensão
contextualizada não é algo que precisamos deliberadamente buscar. Em vez disso,
é algo que emerge naturalmente da maneira como nos engajamos com o mundo.
O filósofo argumenta que as características visíveis das coisas não são algo
fixo, mas podem ser transformadas pela nossa percepção. Isto é, não percebemos
as coisas simplesmente como elas são, mas como as interpretamos através das nossas experiências e memórias. Portanto, as características que percebemos em um
objeto, como sua cor, forma ou tamanho, não são determinadas apenas pelas suas
propriedades físicas, mas também pela maneira como as interpretamos e entendemos.
A partir dessa perspectiva, a percepção não é meramente um ato de reconhecer
características físicas objetivas, mas também um ato de interpretar e dar sentido a
essas características. Assim, a maneira como percebemos as coisas é moldada tanto
por nossas experiências passadas quanto pelas circunstâncias presentes. Isso implica que nossa percepção é dinâmica e variável, podendo mudar conforme nossas
experiências e compreensões mudam.
48
A discussão de Merleau-Ponty sobre a percepção nos fornece um quadro para
entender a relação complexa e interativa entre a percepção e a memória. Esta visão
desafia a ideia de que a memória e a percepção são processos separados e independentes, e sugere que a nossa experiência do mundo é informada tanto pela nossa
percepção atual quanto pelas nossas memórias passadas.
A percepção e a memória, longe de serem processos separados, estão profundamente interligados Nós percebemos o mundo ao nosso redor não apenas
como um conjunto de objetos físicos e fenômenos naturais, mas também como
um complexo mosaico de significados e relações construídas. Nossos sentidos estão
sempre engajados na exploração ativa do mundo, preenchendo os espaços vazios
entre nossas impressões sensoriais diretas com o conhecimento e a compreensão
que adquirimos ao longo do tempo.
Vamos, por exemplo, ao ato de ouvir música. Embora a música possa ser
entendida como uma série de sons, percebemos mais do que isso. Nós captamos a
melodia, o ritmo, o tom e, em muitos casos, as intenções e emoções do compositor
ou músico. Isso não é simplesmente um produto do processamento auditivo, mas
uma interpretação complexa que envolve nossos conhecimentos prévios, nossas
expectativas e nossas experiências pessoais.
Em outras palavras, a percepção é tanto uma atividade intelectual quanto
sensorial. Quando percebemos algo, não estamos apenas recebendo informação
sensorial passiva, mas também ativamente interpretando e organizando essa informação para formar uma compreensão coerente do mundo ao nosso redor.
Também é importante notar que, embora o ato de percepção envolva a criação
de significado, essa criação não é arbitrária. Em vez disso, é orientada pelas características inerentes do objeto percebido e pelas condições sob as quais a percepção
ocorre. Assim, enquanto a percepção está sempre moldando a realidade, a realidade
também está sempre moldando a percepção.
Esta perspectiva implica uma visão de percepção e realidade como mutuamente
constitutivas. Em vez de serem entidades distintas, a percepção e a realidade são
49
aspectos interdependentes da nossa existência, cada uma influenciando e moldando
a outra de maneiras complexas e dinâmicas.
Nesse sentido, podemos dizer que a realidade não é uma entidade fixa e imutável, mas uma construção fluida que está sempre sendo moldada e reformada pela
nossa percepção. A percepção, por sua vez, não é apenas uma atividade passiva de
recebimento de informação sensorial, mas uma atividade ativa de interpretação e
construção de significado.
Esta interação complexa entre percepção e realidade é uma parte fundamental
de nossa experiência do mundo. É o que nos permite navegar e fazer sentido do
mundo, construindo uma compreensão coerente e significativa de nossa realidade
percebida.
Para Maurice Merleau-Ponty, a percepção não é apenas um meio pelo qual
compreendemos o mundo, mas também um meio pelo qual somos inseridos e
participamos do mundo. Não somos meros observadores passivos, mas atores ativos, constantemente engajados em um processo de interação e negociação com o
mundo ao nosso redor.
Desta forma, nossa percepção do mundo está sempre imbuída de nossa subjetividade, nossas experiências passadas, nossas expectativas e nossas intenções. Esta
subjetividade, no entanto, não é uma barreira para a compreensão do mundo, mas
a condição que torna essa compreensão possível.
Isso porque a subjetividade não nos isola do mundo, pelo contrário, ela nos
situa dentro dele, fornece o pano de fundo a partir do qual podemos interpretar
e dar sentido às nossas experiências. Afinal, a percepção não é um evento isolado
que ocorre em um vácuo, mas uma atividade contextualizada que é influenciada
por nossas crenças, desejos, emoções e experiências passadas.
Nesse sentido, a subjetividade desempenha um papel crucial na nossa percepção do mundo. Ela nos permite perceber o mundo não apenas como um conjunto
de objetos físicos, mas como um espaço cheio de significado e relevância pessoal.
Através de nossa percepção, somos capazes de construir uma versão do mundo que
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é única para nós, que reflete nossas experiências passadas, nossas crenças e valores,
e que nos ajuda a navegar e entender nosso ambiente de maneiras que são úteis e
significativas para nós.
Em conclusão, a percepção é uma interação dinâmica e complexa entre nossos
sentidos, nosso cérebro e o mundo ao nosso redor. Ela não é apenas uma atividade
passiva de recebimento de informações sensoriais, mas um processo ativo e criativo
de construção de significado e compreensão.
Embora cada um de nós possa perceber o mundo de maneira ligeiramente
diferente, essa diversidade é a fonte de nossa riqueza experiencial e de nossa capacidade de adaptar e inovar em resposta a novos desafios e oportunidades. A percepção
é, portanto, um dos principais motores da aprendizagem e do desenvolvimento
humano, permitindo-nos explorar, experimentar e moldar o mundo ao nosso redor
de maneiras que refletem nossos interesses, necessidades e aspirações.
Mas a condição que torna essa compreensão possível é, em essência, a relação entre pensamento, palavra e sentido. A palavra, como tal, não possui sentido
em si mesma, mas serve como um veículo para comunicar o sentido originado do
pensamento. A palavra é um fenômeno articulatório, acústico ou consciente desses
fenômenos, contudo, não é desprovida de sentido. Existe um processo categorial,
uma classificação ou categorização que ocorre no plano do pensamento, informando
o sentido que a palavra transmite.
Ao examinar as concepções de palavra e pensamento, observamos uma dicotomia. Na primeira, a palavra, na ausência de um falante, permanece desprovida de
significado. Na segunda, embora haja um sujeito, esse sujeito é um pensador, não
um falante, indicando uma extrapolação do significado inerente à palavra. Ambas
as concepções são vistas como insuficientes, pois não abordam adequadamente a
natureza inerentemente significativa da palavra. Ambos, intelectualismo e empirismo, são superados pelo reconhecimento de que a palavra carrega sentido, rejeitando abordagens estritamente mecanicistas ou automatizadas para a compreensão
51
da relação entre pensamento, palavra e sentido, e reconhecendo a complexidade
dessa interação.
Assim, a ideia central que emerge é que o pensamento, sozinho, não é suficiente para uma compreensão completa ou para a realização de uma ideia; a expressão através da fala ou da escrita é necessária. Se a fala fosse apenas uma extensão
do pensamento, simplesmente comunicando uma intenção de conhecimento ou
representação já formada, não seria possível explicar por que o pensamento tende
em direção à expressão. Mesmo o objeto mais familiar ou a ideia mais compreendida parece incompleta ou indeterminada até que seja nomeada, isto é, expressa
de alguma forma.
O ato de escrever, mesmo sem uma compreensão completa do que será dito,
reforça a ideia de que a expressão não é apenas uma extensão do pensamento, mas
uma parte integrante dele. Além disso, um pensamento que existisse apenas para
si mesmo, independente da fala e da comunicação, logo cairia na inconsciência, se
tornaria não existente, até mesmo para o próprio pensador. Isto sugere que o pensamento, para ser verdadeiramente significativo e duradouro, precisa ser expresso
de alguma forma.
Ao contrário da concepção de que a linguagem é meramente um sistema de
sinais que representa pensamentos já formados e objetos no mundo, o autor argumenta que a linguagem é mais do que isso. É através dela que primeiro entramos
em contato com o mundo e começamos a formar nossas concepções de objetos. A
linguagem não só nomeia objetos e fenômenos, mas também os "habita" e carrega
os significados associados a eles, servindo como um mediador fundamental entre
nós e o mundo ao nosso redor.
O processo de compreensão é discutido, particularmente no contexto da leitura e do diálogo, como algo além de nossa espontaneidade de pensamento. Não
é apenas a análise de cada palavra ou frase que nos permite entender o texto ou o
discurso de alguém. É também a capacidade de integrar e interpretar essas palavras
e frases no contexto mais amplo, levando em consideração tanto o conteúdo literal
52
quanto as sutilezas e nuances que emergem através da linguagem. Este processo de
compreensão é um diálogo ativo entre o leitor/ouvinte e o texto/falante, no qual
ambos contribuem para a criação de sentido.
O autor argumenta que a compreensão não é um ato isolado, mas um processo contínuo e dinâmico que envolve a interação entre pensamento e linguagem.
Este processo não é limitado a simplesmente receber e processar informações, mas
também envolve a construção ativa de significado. Nesse sentido, o pensamento
não é algo que ocorre antes da linguagem ou independentemente dela. Pelo contrário, pensamento e linguagem estão ligados e interagem de maneira complexa
para produzir significado.
A partir dessas considerações, Merleau-Ponty conclui que a compreensão
não é um processo passivo, mas um ato criativo que envolve a colaboração entre
pensamento e linguagem. Para compreender verdadeiramente algo, não basta
apenas receber informações, mas também é necessário interpretá-las e integrá-las
em nosso próprio sistema de conhecimento. A linguagem desempenha um papel
crucial nesse processo, servindo como uma ponte entre o pensamento individual e
a realidade compartilhada, possibilitando a expressão e a comunicação de nossos
pensamentos e ideias.
Merleau-Ponty expande essa ideia, argumentando que as cores têm uma
relação especial com a experiência corporal. Não é apenas uma questão de luz e
sombra, mas de como as cores "tocam" nosso corpo e como ele responde. Ele sugere
que as cores agem em nosso corpo, não apenas estimulando a visão, mas também
desencadeando uma série de respostas motoras. Em seus estudos, Merleau-Ponty
dá atenção especial às obras de arte. Ele acredita que, em um quadro, as cores não
são apenas sinais objetivos, mas são "carregadas" com um certo sentido, uma vez
que desencadeiam uma série de reações em quem as vê.
Cada cor cria um certo estado de espírito ou provoca determinada resposta,
conforme ilustrado pelo vermelho e o amarelo, que favorecem a abdução, e o azul
e o verde, que favorecem a adução. Merleau-Ponty argumenta que o corpo não
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é apenas um receptor passivo, mas participa ativamente da experiência colorida.
Quando vemos um quadro, não apenas reconhecemos as cores nele, mas também
sentimos e nos relacionamos com elas de maneira particular.
Essa interação se torna parte de nossa experiência corporal e de nossa percepção do mundo. Nesses trechos, Merleau-Ponty ressalta a relação entre as cores e a
experiência corporal. Ele sugere que as cores têm um efeito direto em nosso corpo,
desencadeando respostas específicas.
O corpo humano, em sua capacidade de experienciar as cores, desempenha
um papel crucial na percepção e compreensão das cores e de seu significado. Nesse
trecho de Merleau-Ponty, a ideia de sinestesia é explorada, ou seja, a capacidade de
uma modalidade sensorial evocar a sensação de outra.
O filósofo argumenta que o mundo visível e o mundo do tato não são dois
mundos separados, mas constituem dois aspectos de um mesmo mundo, sendo que
cada um só pode ser compreendido em relação ao outro. Merleau-Ponty discute
a experiência de um paciente que, após uma lesão cerebral, perde a capacidade de
reconhecer objetos apenas pela visão, mas ainda é capaz de identificá-los pelo toque.
Esta situação sugere que a visão e o tato não são funções independentes, mas estão
integrados de uma maneira profunda e significativa.
Merleau-Ponty afirma que a experiência do tato não é apenas uma questão
de sensação direta, mas envolve uma complexa integração de sensações em uma
percepção unificada do mundo. Assim como a visão, o tato também é uma forma de
perceber o mundo, uma modalidade sensorial que fornece uma perspectiva única
sobre o mundo. Para o autor, a sinestesia é uma prova da integração sensorial do
corpo humano. Ela demonstra que nossas várias modalidades sensoriais não são
isoladas umas das outras, mas estão profundamente interconectadas e trabalham
juntas para fornecer uma experiência unificada e significativa do mundo. A interação entre visão e tato exemplifica essa integração e sublinha a complexidade da
experiência sensorial
54
Merleau-Ponty postula que a verdadeira experiência subjetiva suplanta a
simples relação entre os órgãos sensoriais e os objetos do mundo, desafiando a
separação convencional entre pensamento e percepção. Ele proclama que "ser"
verdadeiramente é possível somente para aqueles que são capazes de se distanciar
e estar completamente fora do "ser". Neste contexto, o espírito torna-se o sujeito
da percepção, e a ideia de "sentidos" é considerada impensável.
Ele argumenta contra a ideia de que os sentidos são apenas instrumentos da
excitação corporal, mas não da própria percepção. Assim, expressões como "meus
olhos veem" ou "minha mão toca" são criticadas por distanciarem a experiência
verdadeira de seu sujeito original. Merleau-Ponty destaca a unidade e a interconexão entre os diferentes atos de consciência, sugerindo que não há diferença entre
pensar e perceber, entre ver e ouvir.
Além disso, Merleau-Ponty explora a conexão entre o sujeito que sente e o
sensível. A sensação, de acordo com ele, não é uma invasão do sensível no sujeito
que sente, mas sim um processo de acoplamento entre ambos. Ele enfatiza que a
percepção plena do sensível requer a exploração ativa do sujeito, envolvendo seu
olhar, seus movimentos e seu corpo como um todo. É através dessa interação e
sincronização que a experiência plena do sensível surge.
No contexto da sensação, Merleau-Ponty discute a natureza única e efêmera
de cada uma. Cada sensação é descrita como sendo a primeira, a última e a única de
sua espécie - um nascimento e uma morte em si mesma. O sujeito que experimenta
essa sensação começa e termina com ela, não podendo precedê-la ou sobreviver a ela.
Para Merleau-Ponty, a experiência da sensação revela uma dimensão de existência
que ultrapassa o sujeito individual e está enraizada em uma vida de consciência
mais ampla, compartilhada por outros "eus" naturais.
Em seguida, Merleau-Ponty analisa a relação entre a sensação e a experiência
individual. Ele ressalta que a sensação não é exclusivamente pessoal, mas também
está ligada a uma existência geral que ultrapassa o indivíduo. A sensação, portanto,
55
não apenas revela a relação entre o sujeito, o mundo e a consciência coletiva, mas
também desafia a ideia de que a sensação é meramente subjetiva e individual.
O corpo, segundo Merleau-Ponty, desempenha um papel central na nossa
relação com o mundo percebido e na nossa compreensão dos objetos, sejam eles
naturais ou culturais. É através do corpo que nos engajamos com o mundo e experimentamos a realidade. O corpo, portanto, não apenas ilustra o modo como o
mundo é percebido e compreendido, mas também apresenta uma reflexão mais
ampla sobre a relação entre o sujeito, o corpo e o mundo. Por meio do processo de
escrita, Merleau-Ponty tem a oportunidade de articular sua experiência e reflexão,
contribuindo para o discurso filosófico e promovendo uma compreensão mais
profunda da experiência humana.
A obra de Merleau-Ponty destaca a natureza integrada da percepção e da
consciência, demonstrando como estão imbricadas na experiência do mundo. O
filósofo sugere que o ato de perceber não é um evento isolado ou passivo, mas sim
um processo ativo que requer a participação do sujeito e do corpo. O indivíduo não
é um observador passivo, mas um participante ativo que se engaja no mundo por
meio de seus sentidos e de seu corpo.
O papel do corpo em nossa interação com o mundo e em nossa compreensão
dos objetos é um tema central no pensamento de Merleau-Ponty. Em suas obras, o
filósofo rejeita a visão dualista que separa o corpo da mente e propõe uma perspectiva mais integrada, na qual o corpo e a mente são entendidos como entrelaçados
e interdependentes. O corpo é o instrumento através do qual nos conectamos e
atribuímos sentido ao mundo, e é também o meio pelo qual a consciência é expressa e experimentada.
Merleau-Ponty também enfatiza a relação entre o sujeito e o mundo. De acordo com ele, a percepção não é apenas uma interação entre o sujeito e o objeto, mas
uma relação dinâmica e recíproca em que ambos estão envolvidos. A experiência
de perceber é, assim, uma interação que envolve a reciprocidade entre o sujeito e o
mundo, uma reciprocidade que é mediada pelo corpo.
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Esta visão do sujeito e do mundo como mutuamente engajados e interdependentes reflete a abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty. O filósofo busca compreender o mundo a partir da perspectiva do sujeito vivido, enfatizando a
experiência imediata e a percepção como os aspectos fundamentais da existência
humana. Ao fazer isso, ele nos desafia a repensar nossas noções tradicionais de sujeito, objeto, corpo e mundo e a reconhecer a complexidade e a interdependência
de nossa experiência do mundo.
Merleau-Ponty sugere que a sensação não é uma experiência isolada, mas está
inserida em um contexto mais amplo de consciência e experiência. A sensação não
é uma invasão do sensível no sujeito que sente, mas uma interação recíproca que
envolve o sujeito e o sensível. Esta visão desafia a concepção tradicional de sensação
como uma experiência passiva e sugere que a sensação é, em vez disso, um processo
ativo que envolve a participação e a interação do sujeito com o mundo.
Portanto, não apenas a figura do autor e suas intenções expressas na obra
são relevantes, mas também a experiência subjetiva e as interpretações do leitor
desempenham um papel crucial na construção do significado. Este é um ponto de
convergência importante entre a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty
e o conceito de "morte do autor" de Barthes (2011). Ambos deslocam a autoridade
unilateral do autor e reconhecem a colaboração ativa do leitor e o entrelaçamento
da obra com o mundo na criação do sentido.
Esta ideia nos leva a questionar a noção tradicional de autoria e a perceber
a autoria não como um ato isolado, mas como uma prática imersa no mundo, em
constante interação com a realidade e com os outros. A partir desta perspectiva, o
papel do autor se transforma: não mais como o criador supremo de significado, mas
como alguém que, através de sua percepção e experiência, oferece uma plataforma
para o diálogo, a reflexão e a coconstrução do significado.
Ademais, o conceito de "morte do autor" de Barthes traz à luz a ideia de que o
significado de uma obra não é fixo e definitivo, mas está sujeito a mudanças e evolução com base na interação da obra com o leitor e o mundo. A obra, neste sentido, se
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torna uma entidade viva e em constante transformação, enriquecida pelas múltiplas
perspectivas e interpretações que os leitores trazem a ela.
A partir desta perspectiva, o processo de autoria se torna uma aventura coletiva de descoberta e exploração, onde autor, leitor e obra se entrelaçam em um
fluxo contínuo de criação e recriação do significado. A autoria, assim, é entendida
como um processo participativo que valoriza a pluralidade de vozes e perspectivas,
e reconhece o papel ativo do leitor na construção do significado.
Ao nos aprofundarmos nas implicações desta abordagem para a prática da
autoria, podemos começar a vislumbrar uma nova forma de compreender e abordar
a criação literária e artística. Longe de ser um processo solitário e unidirecional, a
autoria se abre para a colaboração, a interação e o diálogo. A obra não é mais vista
como um produto finalizado e fechado, mas como um convite à participação, à
reflexão e à troca.
No âmbito da criação artística, a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty e o conceito de "morte do autor" de Barthes podem oferecer uma nova
perspectiva sobre o papel do artista. O artista, nesse sentido, não é apenas um criador, mas também um mediador que facilita a interação entre a obra e o espectador,
proporcionando um espaço para a expressão, a interpretação e a transformação.
Assim, a percepção e a experiência do artista, a linguagem que ele utiliza para
expressar sua visão, o diálogo que ele estabelece com o mundo através de sua obra
- todos esses elementos se tornam parte integrante do processo de autoria artística.
Através da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty e do conceito de "morte
do autor" de Barthes, podemos compreender que a autoria artística é um ato de
criação e comunicação que extrapola a individualidade do artista e se conecta com
a experiência do espectador.
O artista, ao criar sua obra, envolve-se em um diálogo com o mundo ao seu
redor. Sua percepção e sua experiência pessoal são fundamentais para a forma
como ele interpreta e reinterpreta a realidade, trazendo à tona novas perspectivas
e significados. Através de sua linguagem artística - seja ela visual, musical, corporal
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ou literária - o artista busca expressar sua visão única do mundo e provocar uma
resposta emocional e intelectual no espectador.
Nesse sentido, a obra de arte se torna um ponto de encontro entre o mundo
do artista e a interpretação única desse mundo através da percepção e da experiência.
O corpo do artista desempenha um papel essencial nesse processo, pois é através
de seus sentidos e de sua corporeidade que ele se envolve com os materiais, cores,
formas e texturas, e os transforma em uma obra de arte significativa.
No entanto, assim como Barthes argumenta que a interpretação de uma obra
literária não se limita à intenção do autor, a percepção e a interpretação da obra de
arte também são influenciadas pela subjetividade do espectador. Cada indivíduo
traz consigo suas experiências, conhecimentos e emoções, que moldam sua compreensão e apreciação da obra. O espectador, portanto, assume um papel ativo na
construção do significado da obra de arte, contribuindo com sua própria autoria
para o diálogo estabelecido pelo artista.
Essa dinâmica entre autor e espectador, entre criador e intérprete, ilustra a
complexidade e a riqueza da autoria artística. A obra de arte se torna um espaço
aberto, onde múltiplas vozes, perspectivas e significados coexistem. É nesse espaço de
encontro e interação que a obra ganha vida e continua a evoluir ao longo do tempo.
Posto isto, podemos conectar esse pensamento às reflexões de Roland Barthes,
que apresenta uma visão perspicaz do papel do autor em relação às suas personagens, utilizando o exemplo de Marcel Proust e seu famoso romance "Em Busca do
Tempo Perdido". Barthes sugere que, embora as análises de Proust possam ser percebidas como predominantemente psicológicas, o autor fez um esforço consciente
para desordenar a relação entre o escritor e as personagens de sua obra. Proust, de
acordo com Barthes, faz isso através de uma subutilização extrema - um termo
que Barthes não define explicitamente, mas que implica uma negação ou evasão
da aplicação convencional de significado ou função. Proust não faz do narrador um
mero veículo para registrar e transmitir experiências e sentimentos, nem mesmo um
59
escriba documentando a história. Em vez disso, Proust constrói o narrador como
alguém que está a ponto de escrever.
O jovem do romance - cuja identidade e idade permanecem intencionalmente
indefinidas - aspira a escrever, mas é incapaz de fazê-lo, e a narrativa do romance
termina justamente quando a escrita se torna possível para ele. O romance apresenta o autor em uma posição de proximidade e simultaneamente distância - o autor
está ligado à narrativa e às personagens, mas também distante e separado delas.
Este conceito é emblemático da visão de Barthes sobre a "morte do autor",
que sustenta que a identidade e intenção do autor devem ser separadas da análise
de um texto. Barthes exalta a natureza oblíqua e multifacetada da escritura, argumentando que ela é um espaço de ambiguidade e incerteza onde a identidade do
autor se dissolve.
Ao questionar se é o indivíduo Balzac, o autor Balzac, a sabedoria universal
ou a psicologia romântica que traz a perspectiva sobre a feminilidade, Barthes
instiga a reflexão sobre a distinção entre autor e indivíduo. O autor não é simplesmente a extensão da personalidade do indivíduo, e nem mesmo a soma de suas
experiências pessoais. Ele não pode ser reduzido a uma filosofia ou a um conjunto
de ideias literárias.
Barthes argumenta que a escritura é a "destruição de toda voz, de toda origem"(BARTHES, 2011,p.57). Com esta afirmação, ele sugere que a escritura transcende a individualidade do autor, tornando-se um campo onde o autor não pode
mais ser encontrado ou identificado. A escritura é apresentada como um neutro,
um composto, um oblíquo que escapa à identidade do autor. Esta ideia ressalta a
impessoalidade e a universalidade da escritura, o que se alinha à teoria de Barthes
sobre a "morte do autor".
A referência de Barthes ao "branco-e-preto" (BARTHES, 2011,p.57) sugere
uma ambivalência inerente à escritura, onde a identidade do autor é perdida. Esta
imagem evoca um campo de forças onde as identidades são simultaneamente
60
reveladas e obscurecidas, reforçando a ideia de que a escritura é um espaço onde
a identidade é incerta.
Barthes elabora sobre o conceito de autoria e como ele tem sido construído
ao longo do tempo, especialmente em relação à sua proeminência nas sociedades
ocidentais modernas. Assim delineia-se a transformação do contador de histórias,
em sociedades em que a narrativa é assumida por um mediador como um xamã
ou um recitante. Nessas sociedades, o reconhecimento é voltado para a maestria
na manipulação do código narrativo em vez de um "gênio" autor. Barthes faz uma
distinção clara entre a admiração pela performance e a figura do autor.
A figura do autor então é um produto da modernidade, surgindo à medida
que a sociedade avança para além da Idade Média, estimulada pelo empirismo inglês,
o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma. Ele argumenta que esses movimentos destacaram o prestígio do indivíduo ou da "pessoa humana", culminando
no surgimento da figura do autor.
Barthes critica a ênfase dada à figura do autor nas sociedades ocidentais
modernas, sugerindo que ela é reforçada pelo positivismo - um produto e o ponto
de chegada da ideologia capitalista. Ele identifica a presença dominante do autor
em várias esferas da vida literária: nos manuais de história literária, nas biografias
de escritores, nas entrevistas dos periódicos e na própria consciência dos literatos.
A crítica literária, muitas vezes, ainda se baseia na interpretação da obra
como uma expressão direta do autor. A obra de Baudelaire é vista como o fracasso
do homem Baudelaire, a de Van Gogh como sua loucura, a de Tchaikovski como
seu vício. A análise da obra se concentra na "confidência" do autor, como se o autor
fosse sempre uma única voz reveladora através da ficção.
Barthes sugere que, embora as análises de Proust possam ser percebidas
como predominantemente psicológicas, o autor fez um esforço consciente para
desordenar a relação entre o escritor e as personagens de sua obra. Através desta
estratégia narrativa, Proust efetivamente obscurece a relação entre o autor e as
personagens de sua obra, subvertendo a percepção convencional do autor como o
61
"mestre marionetista" que controla diretamente a ação e a experiência das personagens. Em vez disso, Proust apresenta o autor em uma posição de proximidade e
simultaneamente distância - o autor está ligado à narrativa e às personagens, mas
também distante e separado delas.
Roland Barthes em o Rumor da língua(2011) discute a natureza da enunciação linguística e como ela serve para desmantelar o conceito do autor como uma
entidade fixa e definível. O texto propõe um olhar centrado na linguagem por si
só e em como ela funciona independentemente da identidade ou da intenção do
indivíduo que a utiliza.
A linguística, diz Barthes, fornece um instrumento analítico para a "destruição
do Autor"(BARTHES,2011,p.60), mostrando que a enunciação é um processo vazio
que funciona independentemente de ser preenchido com a "pessoa dos interlocutores"(BARTHES,2011,p.60). Ou seja, a linguagem funciona e faz sentido mesmo
sem a necessidade de atribuir palavras a uma pessoa ou a um autor específico. Aqui,
Barthes insinua que a linguagem, em sua essência, não pertence ao autor; é um sistema autônomo de significação que o autor mobiliza, mas não controla nem possui.
Além disso, Barthes argumenta que, do ponto de vista linguístico, o autor não
é mais do que "aquele que escreve", assim como o "eu" não é mais do que "aquele
que diz 'eu'". Esta afirmação questiona a percepção convencional do "eu" como um
centro estável de identidade. Barthes sugere que o "eu" é, em última instância, apenas uma função da linguagem - uma posição momentânea que é "preenchida" cada
vez que alguém diz "eu". A linguagem conhece um "sujeito", não uma "pessoa" - o
sujeito é um conceito abstrato que se mantém na linguagem e a sustenta, independentemente de uma identidade pessoal concreta.
Assim, a noção de autor serve como uma limitação à interpretação de um
texto. Associar um texto a um autor, ele sugere, é estabelecer um significado final,
fixar e limitar a escritura. Essa ideia está alinhada com a argumentação anterior de
Barthes, que propõe a morte do autor, destacando que a autoria não deve servir
para restringir ou decifrar um texto.
62
Barthes também sugere que o crítico vê a tarefa de encontrar o autor (ou suas
hipóstases, isto é, suas representações) como uma tarefa importante. Isso ocorre
porque uma vez que o autor é encontrado, o texto pode ser "explicado", e a crítica
triunfa. Contudo, para Barthes, a ideia de um autor omnipresente e centralizado é
uma ficção construída pela crítica literária que, em vez de ampliar a compreensão
de um texto, a limita.
A "escritura múltipla" (BARTHES, 2011, p.63) refere-se a um texto que é complexo e aberto a múltiplas interpretações. Tais textos, ele sugere, são projetados para
serem desvendados, mas não decifrados; eles não possuem um "fundo" fixo ou estático de significado. Em vez disso, esses textos propõem significados, mas os evaporam,
negando a fixação de qualquer interpretação única. Esta é a "isenção sistemática do
sentido"(ibid), que abre a escritura a uma variedade de leituras e interpretações, em
vez de se submeter à interpretação final de um crítico ou de um autor.
Barthes sugere que tanto o autor quanto o crítico não devem ser vistos como
detentores de um significado final ou definitivo em um texto. Em vez disso, ele
vê a escritura como um processo aberto e múltiplo que não é restrito à presença
ou interpretação de um único indivíduo, assim podemos fazer uma conexão com
Deleuze, que, em seus livros "Cinema 1: A Imagem-Movimento" e "Cinema 2: A
Imagem-Tempo", faz uma profunda imersão na filosofia do cinema, explorando a
imagem cinematográfica e sua relação com o tempo.
Deleuze (2018) defende, no contexto do cinema, que a imagem cinematográfica consegue expressar a passagem do tempo e que essa expressão é crucial para a
inovação no pensamento. Ele elabora os conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo, que se referem a diferentes maneiras de representar a temporalidade
no cinema. Por outro lado, Merleau-Ponty(2011) destaca a importância do corpo na
percepção e experiência do mundo, argumentando que nosso corpo está enraizado
em um contexto espacial e que nossos sentidos são fundamentais para a apreensão
e entendimento do mundo.
63
No que tange à autoria, ambos os filósofos sugerem que a percepção e a experiência não são passivas, mas sim participativas e envolvem uma interação ativa do
sujeito. No cinema, este conceito se traduz na forma como o trabalho do diretor e
a percepção do espectador se misturam para dar origem a uma nova interpretação,
criando conjuntamente significado e sentido. Assim, a autoria se torna uma interação
complexa entre a visão do diretor e a experiência perceptiva do espectador, o que dá
um tom mais profundo e diversificado à experiência cinematográfica.
Deleuze, em "Cinema 1: A Imagem-Movimento", aborda desde a apresentação
cinematográfica à banalidade cotidiana e sua capacidade de romper com esquemas
sensório-motores estabelecidos até a relação entre imagem óptico-sonora, memória
e reconhecimento. O filósofo defende que a imagem cinematográfica tem o poder
de desestabilizar percepções habituais e apresentar a banalidade de uma maneira
surpreendente e intensa, tornando a experiência cinematográfica um processo ativo
de criação de significado.
O conceito de autoria, portanto, se relaciona diretamente com a capacidade do
diretor de usar a linguagem cinematográfica para desafiar percepções convencionais
e criar uma experiência cinematográfica que ultrapassa a banalidade do cotidiano,
acordando emoções e reflexões no espectador. Isso se materializa quando o diretor
é capaz de manipular elementos visuais e sonoros para revelar aspectos singulares e
impactantes da realidade, que normalmente passam despercebidos na rotina comum.
Deleuze também explora a percepção e a conexão entre imagem sensório-motora e clichê, enfatizando que o diretor, como autor, tem a capacidade de quebrar
clichês perceptivos e criar imagens que vão além do esperado. Este processo desafia
as interpretações convencionais e cria uma experiência estética e emocional única,
refletindo a visão pessoal do diretor.
A lembrança, por parte de Deleuze, de que a percepção está sempre em constante mudança, combinada com o conceito de Merleau-Ponty da percepção como
uma experiência incorporada, sugere que a autoria no cinema é um processo contínuo e fluido. O diretor como autor não está apenas criando uma obra estática,
64
mas está participando de um diálogo contínuo com o público. Este, por sua vez,
está constantemente reinterpretando e recriando a obra com base em sua própria
experiência perceptiva e sensorial.
Além disso, a ênfase que Deleuze e Merleau-Ponty colocam na experiência
sensorial e perceptiva sugere que a autoria no cinema é, em grande parte, uma
questão de criar experiências. O diretor, como autor, tem o objetivo de criar experiências cinematográficas que evocam certas sensações, emoções e pensamentos
nos espectadores. Essas experiências não estão limitadas ao conteúdo explícito do
filme, mas também se estendem à forma como o filme é apresentado, à sua estética,
ao ritmo, à trilha sonora e a muitos outros aspectos.
A autoria, portanto, não é apenas sobre a criação de uma história ou a expressão de um tema, mas também sobre a criação de uma experiência estética única que
reflete a visão pessoal do diretor. Através de suas escolhas criativas, o diretor como
autor pode transformar a banalidade do cotidiano em uma experiência cinematográfica rica e envolvente, revelando novas maneiras de ver e entender o mundo.
No entanto, é importante ressaltar que essa visão de autoria não está isenta de
desafios. Como Deleuze e Merleau-Ponty nos lembram, a percepção e a experiência
são fenômenos complexos e multifacetados que são moldados por uma variedade
de fatores, incluindo nossas experiências passadas, nossas expectativas e nosso
contexto cultural. Portanto, a autoria no cinema não é uma tarefa fácil. Requer
uma compreensão profunda da natureza da percepção e da experiência, bem como
a capacidade de explorar esses fenômenos de maneiras novas e criativas.
A autoria no cinema, então, é um equilíbrio delicado entre a expressão da
visão pessoal do diretor e a capacidade de evocar experiências significativas no
público. É um processo de exploração e descoberta, de constante diálogo com
o público e de constante reinvenção da forma como vemos e experienciamos o
mundo através do cinema.
A autoria cinematográfica está profundamente enraizada na exploração do
subjetivo e do sensorial. Os cineastas criam universos que evocam o familiar e o
65
estranho, manipulam o tempo e o espaço e se engajam com o espectador de maneiras profundamente pessoais.
A autoria, portanto, não é apenas uma questão de estilo ou assinatura estética,
mas também uma expressão da capacidade do diretor de se comunicar e conectar
com o público em um nível emocional e sensorial. Esta é uma das principais razões
pelas quais alguns diretores conseguem estabelecer uma "voz" distinta e reconhecível em seus trabalhos.
Além disso, cada filme é também um produto do seu tempo e do seu contexto
cultural. Os diretores, enquanto autores, estão sempre dialogando com a cultura
e a sociedade em que vivem. Eles estão interpretando e recriando o mundo ao seu
redor através de suas obras, e ao fazer isso, estão também contribuindo para o diálogo cultural mais amplo.
Nesse sentido, a autoria cinematográfica pode ser vista como uma forma de
discurso cultural. Cada filme é uma "palavra" no diálogo cultural contínuo, uma
expressão da visão do diretor sobre o mundo e uma contribuição para a conversa
cultural em andamento.
E, finalmente, é importante reconhecer que a autoria cinematográfica é um
processo coletivo. Apesar de o diretor ser frequentemente visto como o "autor" do
filme, a criação de um filme é o resultado do trabalho de muitas pessoas, incluindo
roteiristas, atores, diretores de fotografia, editores, compositores e muitos outros.
Cada um deles contribui com suas habilidades e visões únicas para a obra final.
Portanto, a autoria cinematográfica é uma prática complexa e multifacetada
que envolve a exploração de experiências sensoriais e perceptivas, a participação
no discurso cultural e a colaboração com uma equipe de profissionais talentosos. É
um processo contínuo de comunicação, interpretação e criação que reflete a visão
do diretor e a complexidade do mundo ao seu redor.
Relacionando essas reflexões filosóficas à prática da autoria cinematográfica, podemos entender que o diretor, como autor, se movimenta pelos "lençóis do
66
passado"3, procurando imagens-lembrança que possam ser utilizadas para tecer a
narrativa do filme. No entanto, a interação com essas memórias não é estática ou
linear, pois, como Deleuze sugere, a morte, ou a possibilidade de perda, permeia
esses lençóis de passado.
As imagens-lembrança podem se deslocar, quebrar e dispersar, criando possibilidades narrativas e estéticas para o autor.
Neste sentido, a autoria cinematográfica é um processo de navegação pelas
complexidades do tempo, da memória e da mortalidade. O diretor, ao manipular a temporalidade da narrativa e ao explorar a memória e a subjetividade, pode
apresentar uma visão da existência humana que abarca o devir e a impermanência.
A imagem cinematográfica, neste contexto, não está restrita ao presente, mas
é, em essência, uma representação do fluxo do tempo e do processo constante de
tornar-se. O diretor, ao criar imagens em movimento, pode explorar a natureza
paradoxal do tempo, retratando-o como uma crise perpétua e, ao mesmo tempo,
como uma matéria-prima imensa e aterrorizante.
A capacidade do diretor de representar o passado, o presente e o futuro simultaneamente, e de manipular o fluxo do tempo através da estrutura narrativa e
dos elementos visuais do filme, é fundamental para a criação de uma experiência
cinematográfica única e envolvente. A autoria cinematográfica, assim, envolve a
habilidade de tecer uma tapeçaria complexa de imagens e sons que capturam a
riqueza e a complexidade da experiência humana.
Portanto, ao analisar esses parágrafos em relação à discussão anterior sobre
autoria cinematográfica, podemos concluir que a autoria é um processo que envolve a exploração e a representação do tempo, da memória, da subjetividade e da
experiência sensorial. O diretor, como autor, utiliza a linguagem cinematográfica
para criar um mundo virtual que desafia as fronteiras da realidade e da subjetividade individual, convidando o espectador a participar de uma experiência sensorial
3
Os "lençóis do passado" (ou "nappes du passé" em francês) são uma metáfora filosófica elaborada por Gilles Deleuze e que tem raízes no pensamento de Henri Bergson. Esta metáfora é usada para descrever
a forma como o passado é percebido e armazenado na memória.
67
e emocional única. Além disso, o diretor dialoga com a cultura e a sociedade, refletindo e contribuindo para o discurso cultural mais amplo. E, finalmente, a autoria
cinematográfica é um processo coletivo, que envolve a colaboração de uma equipe
de profissionais talentosos, cada um contribuindo com suas habilidades e visões
únicas para a obra final.
Para Deleuze, os lençóis do passado são estratos ou camadas de memórias que
existem simultaneamente. Eles não são uma sequência linear de eventos, mas um
conjunto complexo e multidimensional de imagens do passado que coexistem. As
imagens-lembrança são buscadas nesses "nappes du passé" e são constantemente
reconfiguradas de acordo com as necessidades do presente.
Bergson, por sua vez, considera a memória não como um depósito estático
de eventos passados, mas como um processo dinâmico. Em sua obra "Matéria e
Memória"(2010), Bergson descreve a memória como algo que é constantemente
reconstruído e reinterpretado. Ele argumenta que o passado sobrevive em um estado
"virtual" e é trazido ao "atual" através da percepção e da consciência.
A metáfora dos "nappes du passé" encapsula essa concepção de memória e
passado, destacando a natureza fluida e multifacetada do tempo. Essa ideia tem
implicações significativas para a compreensão da subjetividade e da experiência
humana, bem como para a prática da autoria cinematográfica, conforme discutido
anteriormente.
Os conceitos filosóficos de Gilles Deleuze e Henri Bergson encontram uma
relevante aplicação na autoria cinematográfica. Os "lençóis do passado" são usados
para representar as memórias e referências culturais que o diretor, enquanto autor,
pode explorar para criar sua obra. Desafios podem surgir ao lidar com o passado,
dada a natureza fugaz das imagens-lembrança, como o tempo como perpétua crise
ilustra, mas também existe um potencial criativo imenso e aterrorizante no tempo,
que permite ao diretor explorar a fluidez temporal e a constante transformação
das imagens.
68
Paralelamente, Deleuze discute a vida cotidiana em sua obra "Cinema 1: A
Imagem-Movimento"(2018), apresentando os conceitos de imagem-ação e imagens
ópticas e sonoras puras. O diretor, ao lidar com imagens puras, pode capturar aspectos sutis do cotidiano e representá-los de maneira imersiva.
Aprofundando-se na relação entre subjetividade, tempo e virtualidade, Deleuze ressalta que o tempo, como força virtual, afeta a experiência do espectador que,
por sua vez, é emocionalmente influenciado pelos eventos do filme. Ao explorar a
subjetividade e o tempo, o diretor pode criar uma experiência cinematográfica que
reflete uma visão particular e subjetiva.
Por fim, Deleuze refere-se a Federico Fellini para destacar a importância da
memória na constituição do eu, afirmando que somos a soma de todas as fases da
nossa vida. Na autoria cinematográfica, o diretor pode utilizar a memória como
recurso narrativo para construir personagens mais complexos e autênticos, explorando a riqueza da experiência humana ao longo do tempo.
Dessa forma, as ideias de Deleuze e Bergson orientam a autoria cinematográfica, destacando a importância do tempo, da memória e da subjetividade
na criação de obras cinematográficas. Essas ideias permitem ao diretor explorar
diversas camadas do passado, representar a vida cotidiana, utilizar o flashback de
maneira eficaz, criar experiências subjetivas e empregar a memória na construção
da identidade dos personagens.
A autoria cinematográfica se revela uma tarefa complexa e multifacetada,
que vai além da simples direção dos atores ou do aspecto técnico da filmagem.
Compreender isso requer um entendimento profundo de como a linguagem visual, temporal e narrativa do cinema se entrelaça para criar experiências estéticas
significativas e ressonantes.
Gilles Deleuze, em "Cinema 1: A Imagem-Movimento"(2018), argumenta que
o cinema não é simplesmente uma língua, nem uma linguagem universal ou primitiva, mas traz à tona uma matéria inteligível, um pressuposto necessário para a
construção da linguagem e de seus objetos. Esta matéria inteligível é composta de
69
movimentos e processos de pensamento, sendo imagens pré-linguísticas e pontos de
vista pré-significantes sobre esses movimentos, constituindo o que Deleuze chama
de "psicomecânica"(2018) do cinema.
Em relação à autoria cinematográfica, essa psicomecânica é a ferramenta
que o diretor, como autor, utiliza para moldar sua obra. O diretor se utiliza de
movimentos de câmera, composição visual, montagem e outros recursos cinematográficos para construir uma narrativa e transmitir significado aos espectadores,
criando uma experiência cinematográfica que excede as palavras e se comunica por
meio de sua própria lógica.
No entanto, o uso criativo dessas ferramentas cinematográficas não se limita
à mera transmissão de significados ou narrações de eventos. Deleuze apresenta o
conceito de um tempo interior ao acontecimento, onde diferentes perspectivas
temporais simultâneas são exploradas. Este tempo interior é composto pela simultaneidade dos três presentes implicados, cada um se referindo a diferentes perspectivas temporais que são desatualizadas e, no entanto, contribuem para o presente
coletivo. O diretor, através da manipulação criativa do tempo e da exploração de
diferentes perspectivas temporais, tem a capacidade de criar narrativas que desafiam
a noção linear do tempo.
O domínio dessa técnica permite ao diretor abraçar o paradoxo do tempo,
ultrapassar a linearidade temporal e retratar o mundo, a vida ou um episódio como
um único acontecimento. Assim, ao explorar as implicações dos diferentes presentes
e a simultaneidade das perspectivas temporais, o diretor é capaz de construir uma
narrativa que desafia as expectativas e convida o público a refletir sobre a complexidade da experiência humana.
Além disso, o diretor usa o cinema para explorar a memória como um elemento fundamental na construção da subjetividade e na constituição da identidade
dos personagens. Utilizando recursos narrativos e visuais que evocam a memória, o
diretor pode criar uma experiência cinematográfica que ressoa com os espectadores,
70
lembrando-os de sua própria relação com o passado e a complexidade de suas
próprias memórias.
Assim, a autoria cinematográfica é expressa pela habilidade do diretor em
utilizar a linguagem do cinema para transmitir sua visão, perspectiva e intenções
artísticas. O diretor, ao explorar a psicomecânica do cinema e as diferentes perspectivas temporais, imprime sua marca na obra, conferindo-lhe uma identidade
distinta. O estilo visual, a abordagem narrativa, a sensibilidade estética e as escolhas
temáticas tornam-se elementos essenciais que contribuem para a autoria do diretor,
permitindo que sua visão única seja expressa na tela.
A criação de uma obra cinematográfica vai além da transmissão de uma sequência de eventos. Trata-se de uma construção artística que desafia as noções convencionais de causa e efeito, apresentando um mundo em que passado, presente e
futuro se entrelaçam e produzem um efeito de simultaneidade. Este mundo, criado
pela habilidade do diretor em manipular tempo e espaço, oferece ao público uma
experiência cinematográfica mais rica e complexa, abrindo espaço para reflexões
sobre a natureza da temporalidade e suas implicações na vida humana.
Ao mesmo tempo, o diretor utiliza o cinema como uma ferramenta para explorar a memória como um elemento fundamental na construção da subjetividade
e na constituição da identidade dos personagens. Os recursos narrativos e visuais
utilizados evocam memórias, criando uma experiência cinematográfica que ressoa
com os espectadores, e os convida a refletir sobre suas próprias relações com o passado e a complexidade de suas memórias.
Portanto, a autoria cinematográfica representa uma tarefa complexa e multifacetada que envolve a utilização habilidosa da linguagem visual e temporal do
cinema para criar experiências estéticas significativas. O diretor, como autor, tem
o poder de moldar a psicomecânica do cinema, construindo narrativas visuais que
se conectam com o público em um nível emocional e intelectual. Através de suas
escolhas criativas, o diretor imprime sua marca na obra, dando vida a uma linguagem
71
cinematográfica única e proporcionando ao público uma janela para experiências
e reflexões profundas sobre a natureza da existência humana.
Nesse sentido, o cinema se revela como uma arte em constante fluxo, onde
a genialidade e a evolução artística estão entrelaçadas. É a capacidade de enfrentar
os desafios da renovação e de exceder os limites anteriores que permite que alguns
cineastas excepcionais, como Chaplin, atravessem décadas e deixem um legado
duradouro.
No entanto, ao discutir sobre Chaplin, estamos imersos em uma diversidade
de obras, o que leva a indagar se seria válido questionar se um filme isolado é uma
prova suficiente para afirmar a genialidade de um diretor, uma vez que tal obra não
necessariamente indica as formas que essa genialidade tomará no futuro.
A avaliação da autoralidade de um diretor requer uma análise mais abrangente
e aberta às possibilidades evolutivas de sua expressão artística. Um único filme é
apenas uma peça do quebra-cabeça, um vislumbre momentâneo de seu talento e
visão cinematográfica. É necessário considerar a trajetória do diretor ao longo do
tempo, observar suas obras subsequentes e compreender a amplitude de sua contribuição para o cinema como um todo.
Dessa forma, a autoria de um diretor ultrapassa as fronteiras de uma única
obra, manifestando-se em seu corpo de trabalho como um todo. É na progressão e
no desenvolvimento de sua linguagem cinematográfica, nas nuances e abordagens
temáticas que se revelam ao longo do tempo, que podemos apreender de maneira
mais completa a magnitude de sua genialidade.
Interessa-nos explorar nesta investigação as questões da subjetividade e sua
conexão com a autoria. Neste âmbito, Deleuze investiga que a subjetividade não pode
ser circunscrita à esfera individual, mas emerge como um entrelaçamento profundo
com a dimensão temporal. O âmago dessa abordagem reside em exceder a compreensão tradicional da subjetividade como uma mera expressão pessoal, alargando
suas fronteiras até um horizonte mais amplo: o da temporalidade. A subjetividade,
nesse contexto, não pode ser categorizada simplesmente como uma expressão
72
pessoal singular. Em verdade, ela emerge como um fenômeno que ultrapassa os
limites da individualidade e assume uma dimensão mais profunda, remetendo à
esfera do tempo, da alma ou do espírito, que é virtual. Por outro lado, o atual, ao
contrário, manifesta-se como um domínio de objetividade inerente e denota uma
manifestação que está ancorada no mundo tangível e observável.
Desse modo, surge a distinção entre o virtual e o atual, assim o virtual encontra seu alicerce no âmbito do subjetivo. Nesse sentido, o virtual, primeiramente, é
exemplificado pela experiência afetiva, pelas sensações e emoções que se desdobram
no tecido temporal da vivência. Entretanto, essa camada inicial é subsequentemente
transcendida pelo próprio tempo, adotando uma forma de pureza virtual que se
desdobra em dinâmicas mais complexas, como a interação entre aquilo que afeta
e aquilo que é afetado. Enquanto a temporalidade assume uma conotação diferenciada (a afecção de si por si).
A inter-relação entre a subjetividade, o tempo e a temporalidade é de fundamental importância. A compreensão da subjetividade como uma extensão do tempo
uma manifestação da alma ou do espírito que ultrapassa os limites do indivíduo
expande os limites convencionais da subjetividade e convida a uma reflexão mais
profunda sobre as conexões entre o humano e o fluxo contínuo do tempo.
A exploração do virtual e do atual, como representações do subjetivo e do
objetivo, delineia um território complexo no qual a interação entre o interior e o
exterior, o indivíduo e o mundo, é destilada em suas formas mais fundamentais. Ao
sondar essas nuances da subjetividade e sua intrincada relação com o tempo, somos
compelidos a repensar as fronteiras do conhecimento humano e a natureza do ser.
A reflexão sobre como a subjetividade emerge como uma parte integral da trama
temporal nos impele a examinar como o tempo e a experiência pessoal se entrelaçam, enriquecendo nossa compreensão da vida, da consciência e de nossa existência.
Este conceito, que se revela de maneira particularmente substancial, desvela
uma relevância para o escopo desta pesquisa, uma vez que oferece um cenário rico
73
no qual a exploração da autoralidade se desdobra. A incorporação da memória e do
afeto como elementos fundamentais nesse processo acentua a complexidade das
dinâmicas envolvidas. Ao lançar um olhar atento sobre a interseção entre a forja
da subjetividade e a tessitura temporal surge uma perspectiva abrangente que nos
convida a examinar as várias camadas que constituem a gênese da autoralidade.
A inserção da memória como um dos alicerces na construção da autoralidade
enriquece ainda mais essa abordagem. A memória não apenas evoca os resquícios do
passado, mas também atua como uma lente através da qual a subjetividade é moldada e reinterpretada. Aprofundar-se nesse fluxo de reminiscências e reinterpretar
as experiências sob a perspectiva da autoralidade revela uma matriz complexa na
qual a temporalidade se entrelaça com as nuances do ser.
Além disso, o papel do afeto nesse contexto é igualmente importante. Os
afetos, como respostas emocionais a eventos e experiências, tornam-se componentes-chave no processo de formação da autoralidade. Ao explorar a influência
do afeto na construção da subjetividade, a pesquisa se aprofunda na rede complexa
de emoções que desempenham um papel crucial na maneira como nos percebemos
como autores de nossas próprias narrativas.
A conexão entre memória, afeto e subjetividade é fortemente mediada pela
temporalidade. A temporalidade age como um pano de fundo dinâmico que permite
que esses elementos interajam e se entrelacem. A passagem do tempo não é apenas
um mero continuum, mas um ambiente no qual as memórias são reinterpretadas
à luz da perspectiva autoral.
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75
76
02
Ao afirmar que a mudança da forma e da cor ocorre no domínio psíquico, destacamos a relevância do imaginário e do processo criativo na concepção e na evolução
da obra de arte. Por esse viés, a forma e a cor tornam-se veículos para a expressão de
ideias, emoções e conceitos que ultrapassam as limitações da percepção visual. O
aspecto psíquico emerge como uma fonte poderosa de criação, permitindo ao artista
explorar possibilidades estéticas e conceituais.
Ademais, a obra de arte revela-se como um espaço de manifestação do subjetivo,
um meio de transmissão de experiências, pensamentos e visões de mundo. A interação entre a forma e a cor assume, assim, uma dimensão mais profunda, relacionada à
expressão da psique humana e à capacidade de criação de significados.
Ao reconhecer a importância do aspecto psíquico na mudança da forma e da cor
na obra de arte, questionamos a ideia de uma representação puramente objetiva da
realidade. A arte, nesse sentido, extrapassa e as limitações da imitação e busca explorar
77
novas dimensões da experiência humana, evocando a criatividade e a subjetividade
como fundamentos para a expressão artística.
Desse modo, a obra de arte torna-se um caminho para a investigação filosófica
e estética, uma vez que nos permite refletir sobre a natureza da percepção, da representação e da criação.
Diante desse entendimento, podemos reconhecer a obra de arte como um meio
de expressão capaz de ultrapassar as fronteiras da percepção visual e nos conduzir a um
universo rico em significados, no qual a mudança da forma e da cor são impulsionadas
pelo dinamismo da mente humana e suas representações criativas.
Nesse contexto, as palavras de Malevitch (2021) assumem um profundo significado, uma vez que ele assume a expressão artística como uma genuína manifestação
da essência dos fenômenos não objetivos do mundo, como o movimento da água, do
vento ou das nuvens. Para o pintor, essa essência do fenômeno é experimentada por
nós, mas permanecerá sempre incompreensível para aà consciência do artista. A fusão
entre o mundo e o artista não ocorre na forma, mas na sensação, por meio da qual o
mundo é apreendido como uma imutabilidade em meio a todas as suas transformações de cor e forma. Essa compreensão enriquece ainda mais nossa apreciação da arte,
proporcionando uma perspectiva única sobre sua natureza intrincada.
A partir da sensação de mundo experimentada pelo artista, surge uma imagem
que é moldada quando a sensação adentra o campo das representações, tornando-se
visível. Esse processo marca a primeira etapa da formulação da sensação, onde o desejo
de tornar a sensação real, visível e tangível se manifesta. No entanto, as formas dessa
imagem são mutáveis, mas isso não implica que as sensações em si se transformem.
Permanece um mistério às sensações, um mistério que o ser humano busca incessantemente superar.
Imagens de sensações dinâmicas, como locomotivas a vapor, motores, aviões,
encouraçados, projéteis, espingardas e canhões, transmitem à consciência representações que se adaptam às necessidades humanas específicas. Embora suas formas sejam
diversas, a sensação subjacente permanece a mesma. Cor e forma não são moldadoras
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em si, mas procuram expressar a força oculta das sensações. Aqueles que estão sob o
domínio dessas sensações estabelecem ou modificam seu comportamento em conformidade com elas.
Essa relação entre sensação, imagem e expressão revela a profunda influência
que as sensações exercem sobre a experiência humana e, por conseguinte, na sobre a
arte. As sensações são uma força motriz que impulsiona a criação artística e a forma
como as pessoas percebem e interagem com o mundo. A arte, portanto, desempenha
um papel fundamental na comunicação e na manifestação dessas sensações internas,
tornando-as acessíveis ao público e influenciando a forma como as pessoas vivenciam
a realidade. Nesse sentido, a arte transcende as limitações da forma e da representação
objetiva, permitindo a expressão da experiência humana.
A compreensão plena e abrangente do mundo, com todas as suas complexidades e nuances, permanece inacessível ao artista, enquanto a sensação que ele vivencia
assume um papel central em sua expressão criativa.
A sensação, ao contrário da compreensão intelectual, envolve uma percepção
subjetiva e visceral, que transpassa os limites da razão e se conecta diretamente com
a essência mais profunda do ser humano. É através da sensação que o artista encontra
uma ponte de ligação com o mundo, permitindo que ele expresse sua interpretação
pessoal e singular da realidade.
A sensação não se baseia apenas em dados empíricos e observações objetivas,
mas mergulha nas profundezas da experiência e da subjetividade do indivíduo. Ela
excede as fronteiras da linguagem e da lógica.
Ao acessar e explorar suas sensações, o artista se abre para uma nova forma
de compreensão do mundo, uma compreensão que escapa aos limites da cognição
conceitual.
Assim, a compreensão do mundo como um todo, como algo abstrato e universal,
permanece elusiva e inacessível ao artista. No entanto, é exatamente essa inacessibilidade que impulsiona a sua busca incessante pela expressão autêntica e pela manifestação
de sua sensação. A sensação se torna o canal principal por meio do qual o artista se
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relaciona com o mundo e transmite sua visão aos espectadores, como um convite a
uma experiência sensorial.
Dessa forma, a arte se revela como um veículo poderoso para sublimidade, para
ir além dos limites da compreensão racional e explorar os territórios emocionais, intuitivos e sensoriais da existência humana. É na sensação, nesse acesso direto e visceral ao
mundo, que o artista encontra sua voz e dá forma a um diálogo singular com a realidade.
Nesse sentido, é possível determinar um diálogo com Merleau-Ponty (2004) a
partir do texto “O olho e o espírito”, em que disserta que um corpo humano se torna
presente quando ocorre um cruzamento peculiar entre o que é visto e o que vê, entre
o que é tocante e o que é tocado. É nesse momento que se acende a centelha do encontro entre o sensível e o que sente.
Este intrigante sistema de intercâmbio estabelecido entre o corpo e o mundo é
o cerne de todos os problemas da pintura.
Dessa forma, somos confrontados com a questão fundamental da relação entre
o corpo humano e o mundo que o cerca. O corpo não é apenas um observador passivo,
mas está intrinsecamente envolvido nas trocas e interações com o ambiente. A pintura,
como uma forma de expressão artística, tem o desafio de capturar essa complexidade
e revelar a presença oculta da natureza no interior do corpo humano. Ao explorar essa
interconexão, a pintura busca desvendar os mistérios do corpo e, ao mesmo tempo,
reafirmar sua própria existência e significado na esfera da arte e da experiência humana.
Ao discutir sobre a autoria, Merleau-Ponty traz à tona um elemento fundamental
da pintura que se revela enigmático: a urgência. Essa busca incessante do artista em
elaborar obras é impulsionada por sua convicção interior, vai além das técnicas convencionais e dos conhecimentos estabelecidos. É uma exploração profunda que ultrapassa os limites tradicionais, buscando revelar um significado mais amplo e essencial.
Esta urgência singular, presente na ocupação do artista, transcende qualquer outra
urgência. O artista se encontra ali, manifestando sua presença com força ou fragilidade
na vida, porém inquestionavelmente em sua imersão no mundo. Sua técnica se resume
80
aos recursos oferecidos por seus olhos e mãos, impulsionado pela intensidade de sua
percepção visual e pela determinação em expressar-se através da arte.
Assim, emerge uma reflexão sobre o propósito da arte, da pintura e, por extensão, da cultura como um todo. O autor, ao mergulhar em sua prática artística, aspira
a desvendar algo mais profundo, uma verdade que vai além das superfícies visíveis
e que se conecta à essência mesma da existência humana. Essa dimensão oculta da
arte, almejada e perseguida pelo autor, carrega consigo uma potência criativa e uma
revelação que ultrapassam as fronteiras do mundo cotidiano, contribuindo para o
desenvolvimento e a evolução da cultura em seu sentido mais amplo.
A palavra "imagem" carrega um estigma negativo, pois equivocadamente acreditou-se que um desenho fosse uma cópia, uma reprodução, uma entidade secundária, e
que a imagem mental fosse um desenho desse tipo em nossa esfera privada de objetos
pessoais. No entanto, se compreendermos que a imagem não se reduz a essas noções
limitadas, percebemos que tanto o desenho quanto o quadro não são menos intrínsecos a ela do que ao próprio ser. Eles constituem o interior do exterior e o exterior do
interior, uma dualidade que a duplicidade da percepção torna possível.
Dessa forma, somos instados a considerar a profundidade e a ambiguidade da
experiência estética e perceptiva. A contemplação de uma obra de arte excede uma
apreensão visual, pois permite-nos mergulhar em um estado de conexão subjetiva
com a obra.
A imagem não é simplesmente uma representação física, mas uma manifestação que evoca um conjunto complexo de significados e sensações. Ela ultrapassa a
barreira do visível e envolve-se em um diálogo dinâmico com nosso mundo interior
e nossa capacidade de perceber e imaginar. Essa relação entre imagem, observador e
mundo revela a natureza do ato de contemplar a arte e nos desafia a compreender a
essência do imaginário e sua importância na construção de significados e experiências humanas. Portanto, a compreensão da imagem vai além das noções superficiais
de cópia ou representação, pois revela-se como uma forma profunda de expressão e
conexão com a realidade.
81
Nessa perspectiva, o universo que se revela ao autor ultrapassa o âmbito das
meras aparências e adquire uma realidade própria. É um mundo que se configura por
meio da sensibilidade, da manifestação do visível, do audível e das sensações, englobando todas as suas nuances e complexidades. Por isso o autor nos diz que "o mundo
do pintor é um mundo visível, tão-somente visível, um mundo quase louco, pois é
completo sendo no entanto apenas parcial." (Merleau-Ponty, 2004, p. 20).
Essa parcialidade revela-se na medida em que outras dimensões da existência,
como a vivência emocional, a dimensão subjetiva ou mesmo a multiplicidade de perspectivas, não são abarcadas plenamente pela visibilidade.
O artista, por meio de seu olhar, busca compreender a maneira pela qual algo
emerge e adquire significado, tornando-se um catalisador do mundo aparente. No
entanto, a essência da indagação pictórica sempre almeja essa gênese secreta e febril
das coisas em nosso corpo, uma exploração profunda e instigante que extrapola a
superfície e mergulha na origem primordial da percepção e do sentido.
Essa questão está ligada com as noções de imaginário. É a partir da transgressão
dos limites da essência e existência, o imaginário e o real, o visível e o invisível, que, por
meio de sua expressividade, a arte desafia e confunde as categorias que usualmente
utilizamos para compreender o mundo, ao revelar um universo onírico composto por
essências aparentes e significações tênues.
Nesse contexto, a noção de essência, que remete à natureza fundamental e
inerente de algo, entra em jogo junto com a existência, que se refere à manifestação
concreta do ser.
Ao mesmo tempo, o campo do imaginário, que abrange o reino das representações
mentais e das criações da imaginação, funde-se com o domínio do real, desafiando a
distinção entre o que é ilusório e o que é concretamente tangível. A arte, especialmente
a pintura, desvela um espaço onde a fronteira entre o visível e o invisível se esvai, permitindo que o olhar adentre o domínio do oculto e do imperceptível.
A arte, assim, adquire um caráter transgressor ao subverter as noções estabelecidas
e ao criar uma atmosfera de ambiguidade.. Por meio de suas representações, ela evoca
82
uma linguagem simbólica que ultrapassa as palavras e alcança a dimensão do silêncio
expressivo. Desse modo, a arte revela-se como um meio de expressão único, capaz de
abalar as estruturas tradicionais do conhecimento e de proporcionar um mergulho
profundo no universo das sensações e da percepção estética.
A visão é algo que não se resume a uma simples transformação das coisas em
imagens visuais, nem à pertença dual das coisas a um mundo maior e a um mundo
privado. Pelo contrário, a visão pode ser entendida como um processo de decifração
rigorosa dos sinais presentes no corpo. A semelhança entre objetos não é a motivação
para a percepção, mas sim o resultado dela.
Nesse sentido, a imagem mental, que nos permite trazer à presença aquilo que
está ausente, não é uma abertura direta ao cerne do Ser. Ela ainda é um pensamento
que se baseia em indícios corporais, embora estes sejam insuficientes para transmitir
toda a sua significância. Assim, o mundo onírico da analogia, que poderia ser associado
à visão imagética, desaparece.
Ao analisarmos a concepção merleau-pontyana, percebemos que a “pintura
universal” é profundamente marcada pela desintegração do ideal de totalização e
conclusão absoluta no contexto artístico.
Assim, o mundo, mesmo em um futuro longínquo, permanecerá inacabado,
escorregando incessantemente além das fronteiras da representação pictórica. Tal
perspectiva ressalta a natureza fluida, em constante mutação e intrinsecamente complexa do mundo, que resiste obstinadamente às tentativas de apreensão e representação
completa pelos artistas.
A compreensão merleau-pontyana está impregnada pela percepção de que o
mundo é multifacetado, indomável e ultrapassa as delimitações impostas pelo domínio artístico. Ao postular que “o mundo findará sem ter sido acabado”, Merleau-Ponty
convoca-nos a acolher a incompletude inerente à experiência humana e à experiência
criativa. Ele reconhece que a arte é uma busca incessante por significado, uma exploração infindável de possibilidades.
83
Esse entendimento abala a concepção de uma arte que pretende alcançar uma
totalidade definida, e realça a importância do processo criativo, da abertura ao novo
e da multiplicidade de interpretações.
A obra de arte, à semelhança do mundo, é um convite ao diálogo e à participação ativa do espectador, que traz consigo suas próprias experiências, percepções e
significados. Assim, a ideia de uma obra universal como algo consumado e integral
perde o sentido diante da incessante transformação do mundo e da própria natureza
mutável da arte.
Na intersecção entre a completude e a inacababilidade da obra artística reside
um paradoxo essencial. Conforme refletido nas palavras de Merleau-Ponty, se nenhuma obra completa de forma plena a essência de si mesma e, de fato, nenhuma obra se
completa absolutamente, somos convidados a contemplar o caráter transformador
e evolutivo inerente à criação artística. Cada obra, em sua singularidade, ultrapassa
as fronteiras do tempo e do espaço, atuando como agente de modificação, alteração,
esclarecimento, aprofundamento, confirmação, exaltação, recriação ou até mesmo
uma prefiguração de todas as outras.
Nesse entendimento, as criações não são meramente adições ou acúmulos estáticos, mas sim entrelaçamentos que reverberam em constante diálogo. Assim, somos
impelidos a exceder a visão linear do tempo e a apreender sua natureza fluida e efêmera.
Não se trata apenas de um trânsito inevitável pelo qual todas as coisas passam,
mas também da constatação de que cada criação artística traz consigo o potencial de
abranger quase a totalidade de sua própria existência. Em sua trajetória, as obras de
arte desdobram-se em camadas de significado, explorando os limites da compreensão
e alimentando-se mutuamente.
Assim, a obra de arte revela-se como um entrelaçamento intemporal, que desafia a noção de uma completude definitiva. Em sua dinâmica incessante, cada criação
artística não apenas enriquece seu próprio tecido, mas também contribui para um
vasto ecossistema de expressões estéticas. É nessa teia de interconexões que a arte se
84
revela como um poderoso catalisador da percepção, impulsionando-nos a contemplar a multiplicidade de sentidos e possibilidades que habitam o horizonte criativo.
Consequentemente, somos convidados a adentrar um universo em constante devir,
no qual a própria essência da arte se desvela em sua complexidade e vitalidade.
Nessa jornada de reflexão sobre a natureza da criação artística, somos confrontados com a noção de que a obra de arte não é um ponto final, mas, sim, um ponto de
partida. Ela desafia as fronteiras estabelecidas, rompe com a estaticidade e desencadeia um processo contínuo de renovação e ressignificação. Cada obra, ao nascer, traz
consigo um potencial latente que reverbera por entre os tempos, ecoando em outras
expressões artísticas e se entrelaçando em um tecido intertextual.
A intertextualidade entre as obras revela a interdependência existencial entre elas,
em que cada nova criação não emerge do vazio, mas de um contexto histórico, cultural
e filosófico. Por meio desse diálogo, as obras de arte se interpelam, se respondem e se
transformam, em um constante movimento de questionamento, experimentação e
reinvenção. A dinâmica desse processo criativo é permeada por uma tensão entre o
particular e o geral aplicável ao conjunto das obras de arte.
No contexto da intertextualidade e da dialética contínua entre as manifestações
artísticas, a unicidade do "eu" e sua relação com a estrutura normativa engendram uma
conexão dentro do intertexto. Tal como cada obra de arte traz consigo um potencial
latente que ecoa através dos tempos, as narrativas do "eu" são igualmente suscetíveis
à influência inexorável da estrutura normativa preexistente.
Nesse horizonte existencial interdependente que abarca a conjuntura das obras
de arte e a construção do "eu", importa sobremaneira compreender que a enunciação
do "eu" se encontra condicionada às codificações éticas e morais que permeiam a estrutura normativa. À medida que o "eu" ensaia a articulação de sua narrativa centrada
no "si mesmo", ele se confronta com um processo de reconhecimento imerso numa
temporalidade fluida e complexa que excede sua capacidade discursiva.
Neste contexto as considerações propostas por Judith Butler (2017) se destacam,
pois evidenciam que qualquer narrativa do "eu" demanda um retorno às circunstâncias
85
primordiais de sua própria gênese narrativa. Nessa ressonância, o "eu" não se desvincula da estrutura normativa que lhe precede, composta por preceitos éticos e morais.
Essa estrutura é de fulcral importância para a expressão do "eu" e constitui os fundamentos éticos e morais de suas narrativas. Tal como no diálogo intertextual das obras
de arte, no qual cada voz se entrelaça e reciprocamente se influencia, a narrativa do
"eu" igualmente se desdobra em uma constante interação com a estrutura normativa.
Despontando sensibilidade, questionamento e uma incessante busca pela significância e pela estética que permeiam nossa existência, a arte e a narrativa do "eu" nos
convocam a reflexão sobre as interações entre o indivíduo e a sociedade, o singular
e o múltiplo.
Desse modo, evidencia-se uma interdependência entre o “eu” e o contexto
ético-moral em que está condicionado e do qual ele emerge. De modo que o “eu” não
pode ser compreendido sozinho, ainda que este não se dissolva nessa normatividade
e nem seja subjugado por ela. Isso se dá pois o “eu” possui agência própria, mostrando-se intricado e complexo.
Em Nietzsche(1999), a necessidade de fazer um relato de si é semeada a partir
de uma acusação. Esta perspectiva evidencia um processo de autoanálise e reflexão
originada diante de relações de poder em que o outro está munido da punição que
parte do julgamento. De modo que ele se torna impulso para a indagação da própria
identidade moral. Desta maneira, o relato surge como uma autodefesa enraizada no
temor e no medo, estes que possibilitam um “eu” moralmente responsável.
Assim, emerge uma compreensão de que o "eu" não pode ser considerado separado da estrutura preexistente das normas éticas e morais. Em um sentido crucial, é
possível afirmar que essa matriz constitui, em si mesma, uma condição fundamental
para a manifestação do si mesmo, ainda que este "eu" não seja causalmente induzido
por uma norma específica. Essa análise nos leva a concluir que o "eu" não se configura
meramente como o efeito ou resultado de um ethos ou campo normativo contínuo
e conflituoso.
86
03
Ao tentar articular uma narrativa sobre si mesmo, o "eu" começa a reconhecer
que está imerso em uma temporalidade fluida que ultrapassa sua própria capacidade
de narração. Na verdade, ao buscar contar sua própria história, o "eu" percebe que já
está implicado nessa temporalidade ondulada, sem conseguir desconsiderar a condição
subjacente de seu próprio surgimento.
Essa abordagem coloca em evidência a interdependência entre o "eu" e o contexto ético-moral no qual ele emerge. O "eu" não pode ser compreendido isoladamente,
mas sim como entrelaçado com a matriz normativa que o circunda. Nesse sentido, a
formação do "eu" é inseparável das influências e pressões exercidas pelas normas e
valores morais que permeiam uma determinada sociedade.
No entanto, é fundamental ressaltar que o "eu" não se dissolve na normatividade,
nem é subjugado por ela de maneira determinista. Embora seja moldado pela matriz
ético-moral, o "eu" também possui uma agência própria, uma capacidade de reflexão
e decisão que lhe permite agir em conformidade ou em resistência às normas estabelecidas. A narrativa do "eu" não pode ser reduzida a uma mera reprodução das normas
87
vigentes, mas também incorpora a própria condição de sua emergência, revelando
assim a complexidade inerente à sua identidade.
A narrativa do "eu" deve levar em consideração tanto as estruturas normativas que o permeiam quanto a própria condição temporal e histórica que o constitui.
Somente ao reconhecer essa imbricação complexa é que podemos compreender adequadamente a dinâmica e a singularidade da identidade individual em sua relação
com o mundo social e moral.
Explanar sobre a relação entre contar uma história sobre si e fornecer um relato
de si revela-se importante. Embora aparentemente semelhantes, essas duas modalidades narrativas são distintas, de modo que o tipo de narrativa requerido quando
fornecemos um relato de nós mesmos está relacionado à suposição de que o “eu”
mantém uma relação causal com o sofrimento alheio, resultando em sentimentos de
culpa consigo mesmo. Certamente, nem toda narrativa assume essa forma, mas uma
narrativa que responda a uma alegação pretende admitir a possibilidade de que o eu
possua agência causal, mesmo que não tenha sido a causa direta do sofrimento em
uma determinada situação.
O ato de relatar a si mesmo, portanto, adquire uma estrutura narrativa que não
se limita apenas à habilidade de transmitir uma série de eventos de forma sequencial,
mas também se apodera da voz e da autoridade narrativa direcionada a um público
com o propósito persuasivo. Desse modo, a narrativa deve estabelecer se o eu foi ou
não a causa do sofrimento, proporcionando, assim, um meio persuasivo por meio do
qual é possível compreender a ação causal do eu. A narrativa não surge posteriormente
a essa ação causal, mas configura-se como um pré-requisito para qualquer relato que
possamos fornecer sobre ação moral. Nesse sentido, a capacidade narrativa se apresenta
como uma precondição para que possamos dar um relato de nós mesmos e assumir a
responsabilidade por nossas ações.
Dessa forma, a narrativa desempenha um papel central no processo de autoexame e na construção da identidade moral. Ela permite que o eu se articule e justifique suas ações, estabelecendo uma conexão causal com os efeitos e impactos sobre
88
os outros. Através da narrativa, o ‘eu” busca persuadir e convencer, utilizando-se de
recursos retóricos e estratégias discursivas para estabelecer sua posição e agência
diante das circunstâncias.
É importante destacar que a narrativa não é apenas um produto posterior às
ações.. Ela molda a maneira como percebemos e atribuímos significado às nossas
próprias ações, proporcionando uma base para a reflexão.
Dessa forma, é possível compreender que o ato de criação, ou poiesis, ocorre
dentro de um modo de subjetivação, ou seja, um processo de constituição do sujeito
que está inserido em uma rede normativa que estrutura as diversas formas possíveis
que esse sujeito pode assumir.
A prática da crítica emerge como uma ferramenta para expor as limitações do
esquema histórico das categorias, ou seja, o conjunto de conceitos e princípios epistemológicos e ontológicos que delineiam o horizonte dentro do qual os sujeitos podem
surgir e se constituir. Por meio da crítica, são evidenciados os contornos e fronteiras
desses esquemas normativos, revelando suas lacunas, contradições e implicações.
Desse modo, criar-se de forma a expor os limites normativos resulta engajar-se
em uma ética do si mesmo, caracterizada por uma relação crítica com as normas existentes. Nessa perspectiva, a criação não se limita a um ato de livre expressão individual
desvinculado das estruturas normativas, mas se configura como uma prática que busca
questionar as normas estabelecidas.
Ao expor os limites e as contradições das normas, a criação se torna uma forma
de resistência e transformação. Através da prática da crítica, busca-se romper com as
amarras normativas e criar possibilidades de subjetivação alternativas. Dessa maneira,
a criação se torna um meio de subverter e desestabilizar as formas preestabelecidas de
ser e agir, abrindo espaço para novas formas de subjetividade e agência.
Para Butler(2017), a postulação de uma opacidade primária em relação ao si
mesmo, decorrente de relações formativas, revela implicações significativas para a
abordagem ética em relação ao outro. Assim, é a partir das interações com os outros
89
que o sujeito se torna opaco para si mesmo, e essas relações com o outro configuram
o contexto da responsabilidade ética do sujeito.
Mas o que é essa opacidade? Ela alude à dificuldade que o sujeito tem de compreender-se plenamente, pois está constantemente envolvido em relações formativas
e influenciado pelas interações com os outros. Essas relações formativas são fundamentais na construção da identidade do sujeito, uma vez que é por meio delas que
são moldadas as percepções, valores e crenças que o constituem. No entanto, essa
mesma dinâmica relacional também resulta em um sujeito que não possui uma visão
completa e transparente de si mesmo, uma vez que é constantemente influenciado e
afetado pelas perspectivas e expectativas do outro.
Desse modo, o sujeito não pode simplesmente se fechar em uma perspectiva individualista e isolada, mas é compelido a considerar o impacto de suas ações e escolhas
sobre os outros. A responsabilidade ética, nesse sentido, emerge das interações sociais
e exige uma atenção contínua às demandas e necessidades dos outros.
Ao reconhecer que não possui uma compreensão plena de si mesmo, o sujeito
se abre para o diálogo, para a escuta atenta e para a consideração das perspectivas e
experiências dos outros. Dessa forma, a opacidade do sujeito para consigo mesmo
não é vista como um obstáculo, mas como uma oportunidade para a construção de
vínculos baseados na compreensão e no cuidado mútuos.
Nos interessa o entendimento de que o sujeito sempre apresenta um relato de
si mesmo para o outro, seja esse relato inventado ou baseado em fatos, e é nessa relação de interpelação que se estabelece uma ética mais fundamental do que o próprio
esforço reflexivo do sujeito ao relatar-se.
É importante destacar que os termos que utilizamos para dar forma ao nosso
relato de nós mesmos não são de nossa autoria. Estes possuem um caráter social e estabelecem normas que permeiam a vida em sociedade. Dessa forma, estamos inseridos
em um domínio em que a liberdade é limitada e somos substituíveis, no qual nossas
histórias "singulares" não são completamente narradas.
90
O corpo singular, marcado por uma história individual, desafia a possibilidade
de ser apreendido por completo em uma narrativa coerente. As experiências e relações
vivenciadas ao longo do tempo moldam o corpo, e influenciam suas percepções, emoções e ações de formas complexas. Portanto, qualquer tentativa de capturar a totalidade
do corpo em uma narrativa é inevitavelmente incompleta e limitada.
A relação com o outro desempenha um papel crucial na construção do autorretrato. Ao se relatar para o outro, o sujeito se confronta com a necessidade de traduzir
suas percepções e individualidades de maneira compreensível. Essa tradução implica
na utilização de termos e conceitos preexistentes na esfera social, que forjam e limitam
a expressão da identidade singular.
No entanto, é importante destacar que a influência social não anula a agência
individual. Embora os termos utilizados para narrar a si mesmo sejam fornecidos pelo
contexto social, o sujeito tem a capacidade de reelaborar e reinterpretar esses termos,
dando-lhes novas significações e criando espaços de resistência e transformação.
Nesse sentido, a narrativa de si mesmo não é um mero reflexo das normas sociais,
mas uma arena em que o sujeito pode exercer sua individualidade e reconfigurar a
compreensão que tem de si mesmo e de sua relação com o externo. Assim, o relato
funciona de maneira importante tanto na esfera íntima quanto na externalização do
"eu" Nas palavras da autora:
O reconhecimento é um ato em que o 'retorno a si mesmo' torna-se impossível também por outra razão. O encontro com o
outro realiza uma transformação do eu mesmo da qual não há
retorno. No decorrer dessa troca, reconhece-se que o eu mesmo
é o tipo de ser para o qual a permanência dentro de si prova-se
impossível. O eu mesmo é obrigado a se comportar fora de si
mesmo; descobre-se que a única maneira de se conhecer é pela
mediação que acontece fora de si, exterior a si, em virtude de
uma convenção ou norma que ele não criou e na qual não pode
91
se discernir como autor ou agente de sua própria construção.
(BUTLER, 2015, pp. 41-42).
O reconhecimento, nesse contexto, revela-se como um ato que impossibilita
o retorno a si mesmo por outra razão adicional. O encontro com o outro propaga a
transformação do eu, da qual não há possibilidade de retorno. Ao longo desse processo
de troca, torna-se claro que o eu é um tipo de ser que não pode permanecer dentro de
si mesmo. O eu é obrigado a agir fora de si mesmo, descobrindo que a única maneira
de se conhecer é através da mediação externa, por meio de convenções ou normas que
não foram criadas por ele e nas quais ele não pode discernir-se como autor ou agente
de sua própria formação.
A compreensão de si mesmo, assim como a capacidade de reconhecer o outro,
está enraizada nas relações e normas que nos precedem e nos excedem. Somos seres
em constante interação, moldados pelo encontro com o outro, e é nessa dinâmica
que encontramos a possibilidade de uma ética do reconhecimento que transcende a
mera individualidade e se abre para a intersubjetividade. Desse modo, é importante
elucidar o trecho:
O relato que dou de mim mesma no discurso nunca expressa
ou carrega totalmente esse si-mesmo vivente. Minhas palavras
são levadas enquanto as digo, interrompidas pelo tempo de
um discurso que não é o mesmo tempo da minha vida. Essa
'interrupção' recusa a ideia de que o relato que dou é fundamentado apenas em mim, pois as estruturas indiferentes que
permitem meu viver pertencem a uma sociabilidade que me
excede. (BUTLER, 2015, p. 51).
A narrativa apresentada por meio do discurso nunca expressa ou carrega completamente a vivência do eu. Enquanto pronuncia suas palavras, elas são levadas pelo
tempo de uma linguagem que não coincide com a temporalidade de sua vida. A "interrupção" rejeita a ideia de que sua narrativa é fundamentada unicamente em si mesma,
92
uma vez que as estruturas impessoais que possibilitam sua existência estão enraizadas
em uma sociabilidade que vai além dela.
Não é possível fazer um relato de si mesmo que não se conforme, em certa
medida, às normas que governam o que é reconhecido como humano, ou que não
esteja em negociação com esses termos de alguma maneira. No entanto, como Butler
tentará explicar posteriormente, também ocorre que apresenta um relato de si mesma
a alguém, e o destinatário desse relato, seja real ou imaginário, também interrompe a
sensação de que essa narrativa é verdadeiramente sua. Ao revelar seu relato a alguém,
é obrigada a entregá-lo, a disponibilizá-lo no momento em que o estabelece como seu.
Butler ressalta que a narrativa pessoal não é um processo solitário, mas ocorre
dentro de um contexto interpessoal, permeado por normas e convenções que moldam a própria identidade. A temporalidade da linguagem e das normas interrompe a
continuidade temporal da vida individual, colocando em xeque a noção de uma narrativa do eu como expressão pura e autêntica. Além disso, ela também aponta para a
necessidade de considerar não apenas o papel das normas externas, mas também o
daqueles a quem o relato é direcionado.
O interlocutor tem influência sobre a narrativa do eu, de modo que o ato de
compartilhar o relato implica em uma disposição e entrega do próprio eu. Dessa forma,
a narrativa do eu é mediada tanto pelas estruturas normativas quanto pelas relações
interpessoais, o que desafia a ideia de uma autossuficiência narrativa e revela a interdependência entre o eu e o outro.
O relato que buscamos construir sobre nossa identidade é inevitavelmente
parcial, marcado por lacunas e cheio de elementos que escapam à nossa compreensão.
Cada vez que nos aventuramos em tentar dar sentido e forma à nossa história,
nos deparamos com a necessidade interminável de revisão e reformulação. Os eventos
passados, as experiências vividas e os momentos significativos são reinterpretados a
partir de novos conhecimentos e perspectivas, e, assim, o próprio relato é submetido
a uma constante reavaliação.
93
Assim, há algo em nossa essência que escapa à nossa capacidade de traduzir em
palavras e dar forma narrativa. Essa consciência de uma inacessibilidade dentro de nós
mesmos instiga reflexões profundas sobre a natureza da subjetividade e a possibilidade
de uma compreensão plena do eu. A inefabilidade desse elemento indescritível nos
obriga a confrontar as fronteiras da linguagem e do conhecimento. A própria ideia de
uma narrativa totalizante e conclusiva da identidade é colocada em xeque, uma vez
que somos confrontados com a impossibilidade de abarcar totalmente quem somos
e como nos tornamos o que somos.
Ao abraçar essa incompletude intrínseca em nosso relato pessoal, somos convidados a adotar uma postura de abertura para a multiplicidade de narrativas e perspectivas que compõem a rica tessitura da experiência humana. Afinal, é no diálogo entre
as diversas vozes e interpretações que podemos vislumbrar uma compreensão mais
abrangente e enriquecedora de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.
Assim, em vez de buscar uma história definitiva e única, devemos valorizar a
fluidez, a incerteza e a multiplicidade de caminhos possíveis na construção de um “eu”
narrativo marcado pelo devir.
Sob a ótica de Butler, surge uma reflexão:
Eu também enceno o si-mesmo que tento descrever; o “eu” narrativo reconstrói-se a cada momento que é evocado na própria
narrativa. Paradoxalmente, essa evocação é um ato performativo
e não narrativo, mesmo quando funciona como ponto de apoio
para a narrativa. Em outras palavras, estou fazendo alguma coisa
com esse “eu” – elaborando-o e posicionando-o em relação a uma
audiência real ou imaginária – que não é contar uma história
sobre ele, mesmo que “contar” continue sendo parte do que
faço. Qual parte desse “contar” corresponde a uma ação sobre
o outro, uma nova produção do “eu”? (Butler, 2015, pp. 88-89).
Assim, ao contar a história de si mesmo, não se trata tão somente de relatar
eventos, mas de realizar uma ação sobre o outro, de produzir o "eu" de forma contínua
94
e em relação com o público. O ato de contar extrapola a narrativa e envolve a elaboração e a colocação do "eu" em um contexto específico. Essa ação sobre o outro implica
uma nova produção do "si mesmo" em que a narrativa sobre o "eu" se revela como
uma forma de autocompreensão e autorreflexão que vai além da mera apresentação
de fatos passados. Ela se torna uma prática performativa na qual o "eu" é construído
e posicionado em relação aos outros, influenciado pelas expectativas e reações da audiência. A narrativa se torna um meio de autoria do "eu" em constante transformação,
um espaço de negociação entre a identidade narrada e as interações sociais.
A ausência de um relato pleno do "eu" não implica a inexistência do "eu" ou
sua insignificância. Pelo contrário, essa consciência da impossibilidade de um relato
abrangente pode levar a uma valorização da singularidade e da multiplicidade do "eu". A
narradora reconhece que, embora não possa oferecer um relato completo, ela continua
a se expressar e a se reinventar por meio de sua narrativa fragmentada.
Assim, a impossibilidade de um relato pleno revela a natureza fluida e inapreensível do "eu". Essa falta de totalidade na narrativa não invalida a importância da
expressão pessoal, mas destaca a necessidade de abraçar a complexidade e a incerteza
inerentes à formação do "eu". A narrativa se torna um exercício de autodescoberta e
autoria, no qual o "eu" continua a se desdobrar em constante diálogo com o mundo e
com os outros, apesar das limitações narrativas.
Assim, compreende-se que o ato de dar um relato de si mesmo vai além de uma
simples transmissão de informações. Envolve a criação de um espaço relacional em
que as palavras são oferecidas e interpretadas, mesmo que essa interpretação seja incerta e variada. O processo de narração é permeado pela busca por reconhecimento,
compreensão e validação, mas também pela vulnerabilidade diante da possibilidade
de rejeição ou mal-entendido.
Nessa perspectiva, o ato de dar um relato de si mesmo torna-se um ato performativo, no qual o “eu” se posiciona e se autoriza por meio da linguagem, mesmo reconhecendo as limitações inerentes a essa empreitada. A construção da identidade e da
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narrativa de si mesma é um esforço contínuo e relacional, que se desenrola na interseção
entre a voz narrativa e o lugar estrutural onde se imagina a possibilidade de recepção.
Nesta linha de pensamento encaixa-se o relato de Cocteau (2020)em “A dificuldade de ser” em que descreve a escrita como um ato de amor, destacando que se
ela não for feita com amor, não passará de meras palavras sem significado profundo.
Para ele, o ato de escrever é comparado ao mecanismo das plantas e das árvores, que
lançam suas sementes longe de si, buscando a fertilização e a criação de algo novo.
Cocteau ressalta que o luxo do mundo está na perda, ou seja, na capacidade de
abrir mão e deixar ir embora. Nesse contexto, a perda é associada à criatividade e à
geração de algo novo. É através desse processo de soltar e liberar que a escrita se torna
possível e cria um terreno fértil para a expressão e a criação artística. Assim, o ato de
escrever vai além de simplesmente colocar palavras no papel. Envolve uma entrega
apaixonada, uma conexão profunda com a fonte criativa interior e a disposição de se
abrir para a perda e a transformação.
Essa concepção artística nos remete a uma filosofia da criação, onde o artista se
torna um receptáculo, um canal para algo maior do que ele próprio. Para Cocteau, o
material novo surge a partir do movimento. Conectando seu pensamento aos escritos
de Malevich (vide pag. 84), podemos dizer que o movimento representa um fluxo de
inspiração que ultrapassa a consciência do artista. Ele ressalta a importância de não
interferir conscientemente nesse processo, permitindo que as ideias fluam livremente.
Essa noção de entrega e receptividade nos leva a questionar o papel do artista no
processo criativo. Isso resultaria em dizer que o trabalho tem uma vida própria, uma
voz que dita e exige sua atenção. É como se o artista fosse um intermediário entre o
mundo invisível das ideias e o mundo visível da expressão artística. Ele se coloca a serviço desse trabalho, seguindo seu ritmo e respondendo a seus chamados. Ao descrever
seu processo criativo, Cocteau relata que:
O material novo me vem durante os passeios. Sobretudo, não
devo percebê-lo. Basta que eu me intrometa para que ele não
me chegue mais. Um belo dia, o trabalho exige a minha ajuda.
96
Eu me entrego a ele numa sentada. As minhas pausas são as
suas. Minha pena derrapa se ele cochila. Quando ele desperta,
me sacode. Pouco o incomoda se eu durmo. De pé, ele diz, estou
ditando. E não é fácil acompanhá-lo. Seu vocabulário não é feito
de palavras. (Cocteau, 2015, p. 61).
Essa visão ressalta uma dimensão de arte, em que o artista se conecta com algo
maior do que ele mesmo. Ele se torna um veículo para a manifestação de algo que
vai além de sua individualidade, algo que está além das palavras convencionais e se
expressa através de uma linguagem única para cada artista.
Além disso, a noção de que o trabalho não é feito apenas de palavras nos convida
a refletir sobre a natureza da criação artística. A arte vai além do uso das palavras ou
dos elementos visuais. Ela busca expressar algo mais profundo, algo que não pode ser
plenamente capturado pela linguagem comum. A linha mencionada por Cocteau é
um fio condutor que permeia toda a obra, uma linha que representa a vitalidade, a
energia e a expressão da alma do artista.
Desse modo, há uma sensação de descoberta e surpresa por parte do autor ao
constatar que as linhas que ele está traçando eram desconhecidas para ele. Essa percepção coloca o artista em um papel de receptividade e submissão às ideias e inspirações
que surgem. Ele se rende à voz interior que o guia, abandonando a ideia de controle
absoluto sobre sua própria expressão artística.
Cocteau reconhece que seu papel é servir ao trabalho, às ideias que se manifestam através dele. Ele se coloca como um canal para a expressão do material novo
que o impulsiona.
O artista não está sozinho no processo de criação de sua obra, há uma dimensão
em que ele se torna um receptor, um veículo para o que ultrapassa ele próprio, pois
a criação artística envolve uma relação de colaboração entre o artista e o material. O
artista precisa abrir-se para receber as inspirações que surgem, renunciando ao domínio
absoluto sobre o processo criativo.
97
Assim, o artista permite que o processo criativo flua de forma mais orgânica
e autêntica. Ele se torna um canal através do qual as ideias e as formas ganham vida,
em vez de impor sua vontade e preconcepções à obra. Essa abertura cria espaço para
a descoberta e a originalidade na criação artística.
Para Cocteau, "nossa obra já está feita. Resta-nos nada menos que descobri-la.
E essa participação passiva que surpreende (...) Eu decido e não decido. Eu obedeço e
dirijo. É um grande mistério" (Cocteau, 2020, p. 62). Portanto, há nessa passagem um
convite a considerar a existência de uma dimensão atemporal da arte, na qual as ideias
e formas já existem em algum domínio além do artista. O papel do artista, então, é entrar nesse domínio e descobrir a obra que já está lá, trazendo-a para o mundo tangível.
Essa participação passiva mencionada por Cocteau pode ser interpretada como
uma abertura às inspirações e intuições que surgem durante o processo criativo. O
artista precisa estar atento e sensível para captar essas pistas e seguir o fluxo criativo
que se revela diante dele.
A ideia de que a obra de arte é uma descoberta ressalta a importância da intuição, da sensibilidade. Ela desafia a noção de controle absoluto sobre o resultado e nos
lembra que a criação artística reside em permitir que algo além de nossa vontade e
entendimento se manifeste através de nós.
Esse domínio além do artista pode ser visto como uma fonte de inspiração, um
fluxo contínuo de energia criativa disponível para ser acessado. É um espaço onde
ideias e formas se desenvolvem e evoluem independentemente da vontade consciente do artista. Nesse sentido, a obra de arte não é criada do nada, mas descoberta
e revelada pelo artista.
Essa perspectiva também sugere que a arte não é apenas uma expressão individual
do artista, mas uma descoberta compartilhada, que excede as fronteiras do tempo e
da individualidade. A obra de arte torna-se uma ponte entre o artista e o espectador,
permitindo que ambos entrem em contato com esse domínio além do artista, despertando emoções, reflexões e conexões profundas.
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Desse modo, quando Cocteau (2020) nos diz que “escrever é lutar com a tinta"
(p. 81), entendemos que há uma batalha para expressar os pensamentos e as ideias do
autor de forma clara e compreensível. Através desse confronto com a tinta, o artista se
esforça para fazer-se entender, para estabelecer uma conexão com o próprio material e
possibilitar que haja um diálogo entre o desejo primordial do artista e as vontades do
material em si. É um desafio constante, pois as palavras podem ser ambíguas, o contexto
pode ser complexo e a interpretação pode variar de pessoa para pessoa.
No entanto, é a partir da criação da obra, do diálogo entre autor e material e
na luta com a tinta, que não está limitada à escrita, mas conectada com as formas de
criação artística, que Cocteau disserta a respeito do cinema. O autor almeja retornar a
um ponto fundamental, à compreensão de que o cinematógrafo tem a capacidade de
se vincular ao maravilhoso, desde que se contente em ser um veículo dessa dimensão
e não se esforce para produzi-la. Nesse sentido, ele sugere que a verdadeira essência do
maravilhoso reside na sua revelação espontânea e não na tentativa forçada de sua criação.
Essa abertura para o maravilhoso nos convida a explorar o cinema como um
veículo para o extraordinário que está além dos limites da nossa percepção cotidiana.
Cocteau defende que a arte, em vez de buscar manipular o espectador, deve ser uma
ponte entre o visível e o invisível, entre o familiar e o desconhecido. Assim, o universo do maravilhoso convida-nos a extrapassar o óbvio, a mergulhar na imaginação e a
encontrar nas obras cinematográficas uma oportunidade de acesso a uma realidade
além das fronteiras do comum.
Ao adotar uma perspectiva pessoal, o cineasta documentarista se torna o veículo
através do qual o maravilhoso é revelado. Sua presença e participação ativa na narrativa
permitem uma conexão mais profunda com o tema abordado, abrindo espaço para a
transmissão de emoções, reflexões e visões de mundo individuais. Essa relação entre
o cinema documental em primeira pessoa e o maravilhoso se manifesta por meio da
brecha que Cocteau menciona em seu texto A brecha no mundo real, proporcionada
pela perspectiva única do cineasta, permite ao espectador adentrar em uma dimensão
desconhecida, onde o ordinário se transforma em extraordinário.
99
Ao acompanharmos a jornada pessoal do cineasta, podemos testemunhar encontros inesperados e experiências sensoriais. Através do confronto com o íntimo e
subjetivo somos convidados a abrir-nos para uma compreensão mais profunda da
complexidade e diversidade do mundo que nos cerca.
O cinema documental em primeira pessoa pode vir como um convite a questionar nossa percepção de real, a romper com as amarras do conhecido e a explorar
a vastidão do desconhecido. Já o domínio literário exibe uma dinâmica peculiar que
evoca a presença do infinito, o qual pode ser adequadamente concebido como a projeção do próprio espírito. Nessa abordagem, o espírito anseia por manifestar-se em
uma única criação, em detrimento de se concretizar na profusão infindável de obras
e no fluir incessante da narrativa histórica.
A temática que se desvela em “O espaço literário” de Maurice Blanchot (2004)
reverbera as reflexões de natureza filosófica. Nele, se identifica uma concepção que se
distancia da pluralidade inerente ao universo literário, atribuindo primazia à singularidade de uma obra enquanto manifestação do espírito humano.
Nesse sentido, o infinito da obra assume uma significação que ultrapassa sua
existência material e enraíza-se no íntimo da criatividade. Tal concepção sugere que
a realização do espírito reside na concretização de uma única obra, em contraposição
ao processo contínuo de criação que se desenrola no âmbito das múltiplas obras e no
fluxo ininterrupto da narrativa histórica.
Esse posicionamento teórico insinua, por conseguinte, uma certa tensão entre
a aspiração à totalidade do espírito e a abundância de possibilidades e transformações
presentes no espaço literário. O espírito se projeta em direção à obra singular, talvez
em busca de um senso de realização e permanência que o vasto panorama das obras
e a evolução histórica não podem proporcionar.
Essa concepção, embora possa parecer restritiva ao colocar limites na multiplicidade literária, sinaliza para uma compreensão específica da experiência criativa. Ao
enfatizar a obra única como veículo privilegiado para a realização do espírito, o autor
desvela uma busca por um sentido de integridade e plenitude, concentrando-se na
100
expressão individualizada em detrimento do contínuo processo de renovação e fluidez
que caracteriza o domínio literário.
Segundo Blanchot a obra não pode ser categorizada como acabada ou inacabada, mas sim como um ente existente. A mensagem transmitida por ela é unicamente
essa: sua própria existência, sem qualquer adição ou subtração. Aqueles que procuram
extrair algo mais dela se veem desapontados, percebendo que ela não expressa nada
além de sua própria existência. Aqueles que dependem da obra, seja para criá-la ou para
lê-la, se encontram imersos na solidão da pura existência da palavra, que a linguagem
abriga ao dissimulá-la ou ao fazê-la surgir quando se oculta no silêncio vazio da obra.
No entanto, a obra - a composição artística - não é de fato finalizada ou inacabada: ela
simplesmente é. Sua mensagem é exclusivamente essa: a existência em si - e nada mais.
Uma obra de arte atinge a sua conclusão não quando alcança um estado de
finalidade absoluta, mas quando o criador, imerso na sua concepção e execução, é
capaz de finalizá-la também através da sua apreensão exterior. Nesse momento, o
artista não se encontra mais retido internamente pela obra, mas é retido por uma
porção de si mesmo da qual se sente emancipado, e é precisamente essa parte que a
obra contribuiu para libertá-lo.
Assim, a conclusão de uma obra de arte ultrapassa sua finalização formal ou
técnica, pois envolve uma dimensão mais profunda e subjetiva. É um processo que vai
além das fronteiras visíveis da obra, integrando a relação simbiótica entre o artista e a
sua criação. Quando o artista alcança um estado de liberdade interior, em que se sente
desprendido das amarras internas do processo criativo, é capaz de completar a obra
também externamente, conectando-se a uma parte de si mesmo que antes estava oculta.
Essa dualidade entre o trabalho interno e externo é fundamental para compreender a dinâmica da criação artística. A obra não é apenas um produto final tangível,
mas um veículo de autorreflexão e autotransformação para o artista. Ao se engajar
com a obra, o artista mergulha em um diálogo entre sua subjetividade e a expressão
objetiva, sendo guiado por uma necessidade interna de manifestar-se.
101
No âmbito da produção literária, Schopenhauer(2014)identifica uma divisão
fundamental entre dois tipos de escritores: aqueles cuja escrita é orientada pelo tema
em questão e aqueles que escrevem simplesmente pelo ato de escrever em si.
Dessa forma, aqueles que escrevem em função do assunto em si geralmente são
movidos por um desejo de compartilhar a temática enraizada de maneira intrínseca.
Suas ideias, vivências e elucubrações são consideradas valiosas e dignas de serem
transmitidas. Sua escrita é fundamentada no propósito direcionado pela intenção de
contribuir para o desenvolvimento do pensamento humano ou para a expansão do
conhecimento em determinado campo.
Por outro lado, para Schopenhauer, os escritores que escrevem simplesmente
por escrever são motivados primordialmente pela necessidade financeira e enfrentam
um desafio peculiar. Para eles, a escrita não é uma expressão do seu eu interior ou um
veículo para a divulgação de descobertas intelectuais. Em vez disso, é uma atividade
profissional na qual precisam se engajar para garantir a própria subsistência. A reflexão,
nesse contexto, é instrumentalizada e colocada em segundo plano, pois o objetivo
principal é atender às demandas comerciais do mercado editorial.
Essa distinção entre os escritores revela uma dualidade inerente ao mundo
literário e à arte em si. Enquanto alguns se dedicam a explorar temas e ideias com o
intuito de promover a ampliação do conhecimento e o aprimoramento do pensamento,
outros enfrentam a pressão de produzir conteúdo comercialmente viável, visando à
sobrevivência financeira. Embora seja possível que essas categorias se sobreponham e
sejam influenciadas por diferentes fatores em momentos distintos da carreira de um
escritor, a distinção entre as motivações na escrita continua a ser um ponto relevante
na análise do campo literário.
No entanto, é importante notar que, independentemente da motivação inicial
do escritor, a produção literária não pode ser simplificada apenas como uma dicotomia entre escritores que escrevem por assunto e escritores que escrevem por dinheiro.
Neste contexto, Erber (2021) nos convida a questionar a relação entre o trabalho
artístico e criativo e sua potencialidade enquanto instrumento de emancipação em
102
contraste ao trabalho concreto, alienado e exploratório. Analisar essa temática envolve
desvelar o limiar em que a criatividade e as expressões artísticas podem se converter em
elementos centrais de uma nova fase de domesticação do trabalhador. Esta provocação
instiga a elaboração de respostas que transcendam as abordagens convencionais e incitem um exame crítico das possibilidades de transformação presentes nesse contexto.
Por meio das manifestações artísticas e criativas, é possível vislumbrar um desdobramento que se distancia das estruturas opressivas e monótonas impostas pelo
trabalho convencional. A criatividade, nesse sentido, se apresenta como uma força
propulsora capaz de romper com as amarras que aprisionam o trabalhador, instigando-o a redefinir sua relação com as atividades laborais.
Entretanto, devemos nos questionar até que ponto a própria criatividade e as
formas artísticas do trabalho podem ser vistas como elementos que promovem a domesticação do trabalhador. O paradigma contemporâneo engendra uma nova configuração
da produção, na qual a criatividade se torna uma demanda incessante. Nesse contexto,
a expressão artística pode ser apropriada pela lógica do mercado, diluída em processos
de padronização e exploração, cerceando sua genuína capacidade de emancipação.
Ao confrontarmos o desafio de elaborar respostas a essa questão, é vital que nos
pautemos em uma perspectiva crítica e analítica. É fundamental problematizar as estruturas sociais e econômicas que englobam o universo do trabalho artístico e criativo, a
fim de compreender como tais formas de trabalho podem ser apropriadas e subjugadas
por forças dominantes. É preciso identificar os mecanismos de poder subjacentes que
podem se valer da criatividade como uma ferramenta de controle e reconfiguração do
trabalhador, restringindo sua autonomia e submetendo-o a novas formas de sujeição.
Neste rumo indagatório, a emancipação do trabalhador por meio do trabalho
artístico e criativo requer uma compreensão aprofundada dos sistemas de poder que
permeiam as relações de trabalho na contemporaneidade, bem como uma análise
crítica das dinâmicas sociais e econômicas que envolvem essas práticas.
Na produção humana, a arte se destaca como uma das diversas técnicas disponíveis para ampliar e aprimorar a capacidade de agir. Ela se apresenta como um meio
103
singular de expressão e criação, porém não se coloca como a única possibilidade neste
campo. A compreensão dessa afirmação remete-nos a uma reflexão sobre o papel da
arte em relação a outras formas de ação e à multiplicidade de caminhos existentes para
a expansão da capacidade humana de intervir no mundo.
A arte, ao ser considerada como uma técnica, insere-se em um contexto mais
amplo de práticas humanas que visam à transformação e ao aprimoramento do agir.
Essas técnicas podem ser variadas, abarcando desde as habilidades manuais até as
atividades intelectuais e criativas. A diversidade de técnicas disponíveis permite ao
indivíduo desenvolver sua agência de maneiras distintas, explorando diferentes modos
de intervenção e expressão.
Tradicionalmente, ao analisarmos a relação entre o artista e o espectador, observamos um papel ativo para o artista, que age sobre sua criação artística, enquanto
o espectador é passivo, sendo "agido" pela obra de arte. Essa dicotomia estabelece uma
distinção entre a concepção/criação artística e sua realização concreta, configurando
uma divisão histórica e hierarquizada do trabalho, cujas raízes podem ser encontradas
nos ateliês dos pintores renascentistas.
Diferentemente dos protocolos estabelecidos na pintura bizantina, em que o
pintor seguia rituais litúrgicos ortodoxos para que sua mão fosse guiada pela vontade
divina, as oficinas artísticas do período renascentista permitiam ao artista-autor delegar o trabalho a outro artista-artesão, ou seja, contar com a colaboração de outros
trabalhadores ou aprendizes de artista. Essa dinâmica de divisão do trabalho artístico,
entre concepção e fabricação do objeto de arte, começou a se estabelecer nesse contexto.
Ao adentrarmos na esfera da arte moderna, podemos identificar uma retomada dessa separação entre a concepção artística e a produção física da obra de arte. O
próprio conceito de arte passa a não mais exigir necessariamente o trabalho manual
do artista e a expressão corporal do autor. Essa mudança marca uma transformação
nas práticas artísticas e nas percepções sobre o trabalho envolvido na criação artística.
Nesse sentido, a obra de arte moderna pode ser fruto de um processo em que
a concepção artística é distinta da materialização concreta do objeto de arte. Isso
104
possibilita ao artista explorar novos meios de expressão e concepção, rompendo com
as tradições artísticas baseadas na manualidade e no controle total do processo de
produção. Ao separar a concepção da realização, a arte moderna desafia as noções
estabelecidas sobre a autoria e o trabalho artístico, abrindo espaço para interpretações
mais amplas e uma ampla variedade de abordagens criativas.
Assim, a relação entre o artista e o objeto de arte se transforma, e o espectador
passa a ter um papel mais ativo e participativo na construção do significado da obra.
A arte moderna, ao romper com a dependência estrita do trabalho manual do artista,
possibilita um campo mais amplo de experimentação e inovação artística, questionando as estruturas tradicionais do trabalho e expandindo as fronteiras conceituais
e materiais da arte.
Quando se fala do conceito da arte como trabalho estamos inserindo o artista
dentro da logística capitalista e produtivista. Por outro lado, a concepção de viver a
arte em vez de meramente realizá-la representa uma transformação fundamental na
própria compreensão do trabalho envolvido na prática artística. Nessa perspectiva,
o foco não está mais no gesto criativo, na ação ou na proposição, mas sim no ato de
existir e experimentar a vida. Ser e viver passam a ser considerados mais relevantes do
que fazer e produzir. O artista, por sua vez, desempenha o papel de possibilitar uma
experiência de percepção. (Erber, 2021)
Diante desse cenário, é necessário compreender a interseção entre a produção
artística, o produtivismo e as dinâmicas da sociedade contemporânea. A crítica à
cultura do trabalho incessante e à valorização excessiva da produtividade pode surgir
como uma abordagem criativa e desafiadora, buscando questionar e desestabilizar
as estruturas estabelecidas. No entanto, é crucial reconhecer que as obras de arte
também são objetos culturais e, como tal, estão inseridas em uma rede de relações
econômicas, políticas e sociais.
A lógica que governa os bens culturais e artísticos na sociedade contemporânea
é permeada por uma complexa interação entre o mercado, as instituições e o público.
A obra de arte adquire valor não apenas por seu conteúdo estético ou conceitual, mas
105
também por sua inserção em um sistema de circulação, consumo e avaliação. Essa
dinâmica impõe desafios significativos à produção artística que busca romper com as
estruturas produtivistas, pois, ao mesmo tempo que critica a lógica vigente, precisa
enfrentar as pressões e demandas desse mesmo sistema.
Nesse contexto, a crítica de arte assume uma posição ambígua e desafiadora. Por
um lado, ela se apresenta como uma voz dissonante, buscando despertar questionamentos e estimular uma reflexão crítica sobre as amarras do produtivismo. Por outro
lado, existe o risco de que essa crítica se torne uma mera expressão retórica, incapaz
de efetivamente transformar as estruturas e práticas dominantes. A arte, então, pode
se tornar uma promessa não cumprida, incapaz de romper com a dinâmica de indignação impotente que assola o espectador e de oferecer alternativas efetivas à instituição.
Assim, surge a figura do artista improdutivo, que emerge como uma resposta
crítica à incessante busca por produtividade e à sensação de falta de tempo que permeia
a sociedade contemporânea. Ele busca, de certa forma, se conectar com sua própria
experiência de falta de tempo, reconhecendo-a como uma condição que está intimamente ligada à pressão constante de produção.
Nesse contexto, o artista improdutivo se coloca como um observador crítico
das dinâmicas do tempo e do trabalho na sociedade contemporânea. Ele procura
transcender a noção convencional de produtividade, questionando a lógica que impõe a constante produção como medida de valor e sucesso. Em vez de se submeter a
essa pressão, o artista improdutivo busca um espaço de reflexão e resistência, no qual
possa experimentar a falta de tempo como uma experiência de consciência e crítica.
A tentativa de estar em sintonia com o seu próprio tempo resulta em uma atitude
de resistência ativa contra a pressa e a constante acumulação de tarefas e obrigações
devido à falta de tempo. O artista improdutivo reconhece a importância de desacelerar,
de se distanciar do ritmo frenético da sociedade e encontrar um tempo próprio para
contemplação, reflexão e experimentação. Nessa perspectiva, a falta de tempo não é
vista como uma limitação, mas, sim, como um ponto de partida para uma abordagem
crítica e criativa do tempo e do trabalho.
106
Ao afirmar sua falta de tempo e sua escolha de não se submeter à lógica produtivista, o artista improdutivo desafia as estruturas dominantes e busca estabelecer novas
formas de relação com o tempo e o trabalho. Sua prática artística pode se manifestar
em diferentes formas e expressões, desde a recusa em aderir a prazos e cronogramas
rígidos até a exploração de ritmos mais orgânicos e naturais. Nesse sentido, ele busca
resgatar a autonomia do tempo, reivindicando-o como um espaço de liberdade e criação.
A experiência de terror temporal revela a tensão entre a aceleração constante da
sociedade contemporânea e a percepção das ruínas que se acumulam em meio a essa
busca incessante por produtividade. Essa tensão reflete a consciência de que a aceleração
do tempo e a pressão por produção ininterrupta podem levar a um esgotamento das
energias criativas e à diluição das experiências significativas. Nesse contexto, o artista
improdutivo busca romper com esse ciclo de aceleração e acumulação, buscando
resgatar o valor da experiência individual e da reflexão profunda.
Assim, a figura do artista improdutivo se apresenta como uma provocação filosófica e um convite à reflexão sobre o significado do tempo, do trabalho e da produção
na sociedade contemporânea. Sua postura crítica e sua busca por uma experiência
autêntica e consciente do tempo desafiam os paradigmas estabelecidos e apontam
para a possibilidade de novas formas de existência e criação.
Neste sentido, mostra-se proeminente iluminar a discussão de Blanchot a respeito de uma impossibilidade fundamental: o escritor jamais lê sua própria criação.
Para ele, a obra é algo ilegível, um segredo ao qual não tem acesso direto. Essa inacessibilidade se dá pela separação entre o escritor e sua obra, constituindo um enigma
que permanece além de seu alcance.
No entanto, essa impossibilidade de leitura não se trata apenas de uma negação
ou ausência, mas sim de uma abordagem genuína e autêntica do que chamamos de
obra. A expressão abrupta "Noli me legere" (Não me leia) traz consigo o surgimento de
um horizonte de potencialidade, uma força distinta, mesmo na presença inicialmente
apenas de um livro. Essa experiência, ainda que fugaz, não se trata meramente de uma
107
proibição, mas sim de uma afirmação insistente, brusca e penetrante. Ela revela que
aquilo que está presente no texto definitivo se recusa, é o vazio rude e penetrante da
recusa em ser lido. Ou então, com a autoridade da indiferença, a obra exclui aquele
que, tendo-a escrito, ainda deseja reencontrá-la pela leitura.
Ao se falar do processo de autoria, discute-se a solidão que permeia a existência
do autor. Essa condição, que representa um risco inerente, poderia derivar daquilo que
pertence à obra, ao âmago que sempre precede a própria obra. Por meio do escritor, a
obra surge, revelando-se como a firmeza do início, mas o próprio autor está ligado a
um tempo marcado pela incerteza do recomeço. A obsessão que o prende a um tema
privilegiado, exigindo que ele reafirme o que já foi dito, por vezes com o poder enriquecido de um talento, mas outras vezes com prolixidade, evidencia essa necessidade
aparente de retornar ao mesmo ponto, de percorrer novamente os mesmos caminhos,
de preservar no recomeço aquilo que nunca verdadeiramente começa. O autor pertence
à sombra dos acontecimentos, não à sua realidade; à imagem, não ao objeto; àquilo que
faz com que as palavras se transformem em imagens, em meras aparências, em vez de
se constituírem como signos portadores de valores e poder de verdade.
Nesse contexto, o autor encontra-se em um estado de incessante repetição, preso
a um ciclo que parece perpetuar-se sem fim. Ele busca, de maneira angustiante, retornar àquele ponto de partida, retraçar os mesmos passos, como se estivesse condenado
a habitar a penumbra das ocorrências em vez de experimentar sua plena realidade.
Assim, o escritor se encontra em um labirinto paradoxal, movendo-se entre a
necessidade de recomeço constante e a repetição exaustiva de seu próprio discurso.
Ele pertence à sombra das palavras, às imagens fugazes que emergem em seu processo criativo, enquanto o objetivo de revelar os signos e os valores mais profundos
permanece elusivo.
Neste contexto podemos discutir as condições de poder do artista. O domínio
deste, para Blanchot (2004), não reside na mão que segura a caneta, uma mão que
pode ser descrita como "doente", pois nunca solta essa caneta e não pode fazê-lo. Essa
mão, embora pareça ter o controle, na verdade, não o possui, pois aquilo que segura
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pertence à sombra, à esfera oculta e fugidia. A própria mão é, por si só, uma sombra.
O verdadeiro domínio é sempre da outra mão, daquela que não escreve, capaz de intervir no momento adequado. Nesse sentido, o domínio reside no poder de parar de
escrever, de interromper a criação artística.
A mão que escreve é impelida pelo impulso incessante, uma compulsão que a
mantém em constante movimento. Ela se vê cativa dessa atividade, presa em um ciclo
vicioso, incapaz de liberar-se. No entanto, é a mão que não cria que possui a verdadeira
autoridade sobre a obra. Ela possui o poder de interromper o fluxo das palavras, de
assumir o controle no momento oportuno.
Ela representa a força que excede a compulsão da criação artística, que faz com
que o artista reflita e avalie o que está sendo criado. É por meio desse controle consciente
que o artista revela sua maestria ao oferecer um contraponto à incessante atividade
de criação e saber quando suspender a obra e finalizá-la.
Essa dicotomia entre a mão que escreve e a outra mão que controla a obra é
uma reflexão sobre o equilíbrio necessário no processo criativo. O artista está constantemente em busca desse equilíbrio, tentando conciliar a compulsão de criar com
a capacidade de exercer um domínio consciente sobre criação.
Em Blanchot (2004), o artista é alguém que possui uma paixão avassaladora que
o impulsiona a explorar o desconhecido, a buscar novas experiências e a olhar além
das convenções e restrições estabelecidas.
No entanto, essa liberdade também traz consigo um elemento perturbador. A
liberdade de expressão pode desafiar as normas estabelecidas, questionar valores e
provocar reações diversas. A atração e o desconforto surgem dessa ambiguidade, da
tensão entre a capacidade do artista de romper barreiras e a possibilidade de desafiar
as estruturas existentes.
Ao avaliar a solidão do artista diante da obra, nota-se que esta implica a perda
do "Eu" como um ponto de referência estável e a imersão em um campo de multiplicidade e ambiguidade. Nesse espaço de solidão e despersonalização, o artista enfrenta
109
o desafio de dar forma e sentido àquilo que se manifesta na ausência de um começo
ou fim definidos. A obra se revela como espaço para a exploração da linguagem que
escapa às convenções e estruturas preestabelecidas.
O artista se encontra diante da tarefa de transmitir o inexprimível, de dar voz
ao silêncio e sentido ao caos. Ele se confronta com a inadequação da linguagem em
capturar a totalidade da experiência humana, mas ainda assim se empenha em buscar
formas de expressão que possam evocar o indizível.
Essa busca envolve um questionamento profundo sobre o poder da palavra e seu
alcance. O escritor se confronta com a natureza ambígua e limitada da linguagem, reconhecendo que ela pode tanto revelar quanto esconder, tanto comunicar quanto enganar.
A obra se torna um espaço de experimentação, em que o escritor desafia as fronteiras
da linguagem e se esforça para explorar sua capacidade expressiva em sua plenitude.
Ao mergulhar nesse processo, o artista também enfrenta a dualidade entre a individualidade e a universalidade. Enquanto a obra é moldada pela perspectiva singular
do escritor, ela também ultrapassa esse aspecto individual e se torna um objeto compartilhado, suscetível a interpretações diversas. A busca pelo sentido e pela coerência
na obra não se dá no sentido de uma verdade absoluta, mas sim como uma tentativa
de estabelecer um diálogo com o público.
Dessa forma, a criação artística se dá pelo mergulho no fascínio da ausência
de tempo, na dimensão em que a temporalidade se dissolve e a essência da solidão se
revela. Nesse ponto, exploramos a essência da experiência solitária, onde a ausência
de tempo não é meramente uma negação, mas um estado que excede a própria noção
de tempo linear.
A ausência de tempo não é um vazio absoluto, mas um tempo de suspensão,
em que nada começa de forma definida, em que a iniciativa se dissipa e a afirmação
se encontra em constante retorno. É um tempo que escapa à negação e à tomada de
decisões, em que cada coisa se desvanece em sua própria imagem e o "Eu" que somos
reconhece a si mesmo ao se perder na neutralidade de um "Ele" sem rosto.
110
Com a ausência de tempo, estamos diante de um presente contínuo, desprovido
de uma presença sólida. É um estado em que o fluxo temporal se desvanece, permitindo uma imersão na atemporalidade, onde o passado, o presente e o futuro se tornam
uma única entidade indistinta.
Nessa entrega ao fascínio da ausência de tempo, o artista se lança em um mergulho no fluxo criativo, onde a expressão se desenrola livremente. O tempo deixa de ser um
obstáculo ou uma restrição, e se torna uma dimensão fluida em que a arte ganha vida.
No cinema, a ausência de tempo e a imersão na atemporalidade podem ser
exploradas de maneira semelhante. No processo cinematográfico, o diretor desempenha um papel semelhante ao do escritor, sendo o responsável por conceber, dar
forma e dar sentido à obra cinematográfica. Assim como o escritor, o diretor busca
ir além das limitações do tempo e criar uma narrativa que ultrapasse as fronteiras da
temporalidade convencional.
No cinema, a ausência de tempo pode ser explorada por meio de técnicas como a
montagem, o uso do tempo cinematográfico e a manipulação do ritmo narrativo. O diretor pode criar uma experiência em que os eventos se desdobram de maneira não linear.
Dessa forma, é a partir da ausência de tempo e da experiência da solidão criativa
que os artistas têm a possibilidade de explorar as camadas mais profundas da existência,
desafiar as convenções temporais e criar obras que ressoem além do espaço e do tempo,
alcançando um sentido de universalidade e autenticidade.
No entanto, ao mesmo tempo que o diretor exerce sua autoria e busca expressar
sua visão, ele também precisa lidar com a colaboração e a interdependência de uma
equipe de profissionais que contribuem para a realização do filme. Essa dinâmica entre autoria individual e trabalho coletivo é uma característica do cinema e pode trazer
desafios e enriquecimento criativo.
A solidão criativa no cinema surge não apenas do mergulho na atemporalidade,
mas também da responsabilidade e da pressão de criar algo original. O diretor enfrenta momentos de incerteza, questionamentos e desafios, assim como todo artista.
111
Ele precisa tomar decisões, resolver problemas e encontrar soluções criativas para
transmitir sua visão de forma impactante e envolvente.
No processo cinematográfico, a busca pela autoria e a experiência da solidão criativa são complementadas pela colaboração e troca de ideias com a equipe de produção,
os atores e outros profissionais envolvidos. Essa interação criativa permite que diferentes
perspectivas se juntem e que a visão autoral do diretor seja enriquecida por diferentes
contribuições, resultando em uma obra cinematográfica mais completa e complexa.
Assim, no cinema, bem como na escrita, a autoria e a solidão criativa são elementos interligados. O diretor encontra-se em um espaço de solidão e imersão criativa, onde
busca dar forma e sentido à sua visão, explorando a ausência de tempo, desafiando as
convenções narrativas e criando uma obra que transcenda as limitações temporais e
ressoe no espectador de forma profunda e duradoura.
É a partir do contato entre a obra e o espectador que se abre a possibilidade de
admiração; quando isto acontece ficamos sensíveis tanto ao tom quanto à autenticidade da obra. O que exatamente estamos tentando expressar com essa apreciação?
Não estamos nos referindo ao estilo, nem ao interesse e à qualidade da linguagem
em si, mas, sim, a um aspecto específico: o silêncio e a força que permeiam a obra. É
nesse ato de renúncia e apagamento pessoal que reside a autoridade do escritor, uma
autoridade que se manifesta no poder de permanecer em silêncio, permitindo que as
palavras adquiram forma e sentido dentro desse vazio.
Nesse sentido, o tom de uma obra é um elemento crucial para a sua autenticidade.
É nesse silêncio carregado de energia que a obra adquire sua força e vitalidade, pois é
por meio desse apagamento pessoal que a obra se torna coerente e compreensível. O
artista, ao renunciar a si mesmo e se entregar ao silêncio criativo, cria o espaço para
que as obras se manifestem com uma autoridade que ultrapassa os limites do tempo
e do começo e fim convencionais.
Assim, quando apreciamos o tom de uma obra, estamos reconhecendo e valorizando o poder do silêncio e da renúncia que permeiam a escrita, permitindo que a obra
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extrapole as limitações humanas e encontre sua própria forma de expressão. É nesse
silêncio eloquente que reside a verdadeira essência do discurso artístico.
O tom não se confunde com a voz do escritor, mas revela a intimidade do silêncio
que ele impõe à sua expressão verbal. É através desse silêncio que o escritor preserva
uma parte de si mesmo. O tom é o que confere singularidade e autenticidade aos
grandes escritores, embora a obra em si talvez não se preocupe com os atributos que
os tornam grandiosos.
É importante destacar que o tom é um elemento essencial para a construção da
identidade artística. Ele confere uma marca única e distintiva às obras de determinado
autor, revelando a sensibilidade, a profundidade e a originalidade de sua expressão. No
entanto, é válido questionar se a própria obra está preocupada com o que faz com que
esses artistas sejam considerados grandes. A obra literária possui sua própria lógica e
significado, muitas vezes além das qualidades que atribuímos aos escritores. Ela é um
organismo autônomo, que pode ir além as características individuais do autor e criar
um impacto próprio no público.
No entanto, é pelo processo de apagamento ao qual o escritor é convocado
que ele ainda se sustenta de alguma forma. O que é pronunciado não é mais ele, mas
também não se trata apenas do deslizamento impessoal da fala de qualquer pessoa.
No apagamento do "Eu", o escritor preserva uma afirmação autoritária, ainda que
silenciosa. Do tempo ativo, do instante, ele mantém a afiada precisão e a violência da
rapidez. Dessa maneira, ele se mantém dentro da obra, contendo-se mesmo quando
não possui um apoio claro. No entanto, a obra também preserva, em virtude disso, um
conteúdo que não é inteiramente autônomo. Há algo contido nela que transcende
sua própria interioridade.
Nesse contexto, o escritor se vê submetido a um processo de dissolução de
sua individualidade, onde seu "Eu" é apagado. No entanto, ele consegue se manter
presente e influente por meio da expressão contida na obra. Embora não seja mais
o autor empírico que fala, sua presença é conservada, ainda que de forma silenciosa.
Ao mesmo tempo, o artista preserva a vitalidade do tempo ativo e do instante, onde
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sua escrita adquire um caráter cortante e veloz, transmitindo uma intensidade vívida.
Essa energia se mantém no âmbito da obra, mesmo quando o escritor já não possui
um suporte externo claro para sua expressão.
A obra se torna um espaço onde convergem múltiplas vozes e sentidos, expandindo-se para além do escritor e trazendo consigo uma riqueza de conteúdo que não
se limita apenas ao seu mundo interno.
Adentrando nos textos de Roland Barthes (2005), estudamos a respeito dos princípios de uma obra. A partir desses textos, entendemos que as raízes desta se iniciam no
desejo, o qual tem um ponto de partida que remonta a um dado original, cuja natureza
escapa ao sujeito. Nesse sentido, a pessoa imersa na atividade de escrita, envolta em
devaneios e no reino do imaginário, não possui a capacidade de elucidar por completo
o substituto subjacente à escrita, cabendo a um terceiro essa tarefa. Portanto, compete
a esse terceiro sujeito a responsabilidade de desvendar o Substituto do escritor, uma
vez que este não é capaz de impor sua própria determinação sobre o assunto.
O desejo da criação artística, originado desse ponto primordial, é uma força que
motiva a atividade em questão. No entanto, o artista reconhece que sua compreensão
sobre esse desejo é limitada, não se sentindo plenamente capaz de definir seu caráter
de forma definitiva. O ato de criação surge como uma resposta a esse desejo, embora
a sua essência não possa ser completamente apreendida.
É importante destacar que o escritor não pode tomar uma decisão conclusiva
acerca de sua motivação, mas está ciente de que escreve com o propósito de satisfazer
um desejo. Além disso, reconhece que a prática da escrita pode estar condicionada a
demandas sociais ou morais, embora essas razões possam ser vistas apenas como justificativas parciais. Dessa forma, a escrita pode ser direcionada para instruir, edificar,
entreter ou servir a uma causa, representando uma finalidade social ou moral.
A criação artística é um ato que surge em decorrência da absorção de outras obras,
estabelecendo-se uma relação íntima entre a obra criada e aquelas que participaram
em sua criação. Esse absorver desencadeia um prazer, uma satisfação, que desperta um
desejo profundo de expressão e criação por parte do artista. No entanto, a transição do
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prazer de quem contempla arte para o desejo de criação artística requer a intervenção
de um diferencial de intensidades de recepção; é a partir desse entendimento que se
possibilita a expressão criativa.
A experiência artística é capaz de produzir um deslumbramento, um transporte
de prazer do artista. Este reconhece que o objeto de seu desejo, esse texto específico,
se adequou às suas aspirações individuais entre inúmeras outras possibilidades. Assim
como o desejo amoroso se dispersa entre diferentes sujeitos, possibilitando a cada um
sua chance, o mesmo ocorre com os filmes e seus fragmentos. Existe uma disseminação do desejo, e é justamente nesse processo que surge o apelo e a oportunidade de
procriação de novas obras. O desejo de criar provém não apenas de absorver a arte,
ler livros, assistir a filmes, mas de fazê-lo com obras específicas, tópicas, que tocam o
criador profundamente. A tópica do seu desejo é moldada por esses encontros literários, assim como a esperança é o elemento que define um encontro amoroso. É a
partir do encontro com certas obras que nasce a esperança de criar algo que expresse
a singularidade desse encontro.
Toda obra que causa impressão opera como uma obra almejada, porém incompleta e, de certa forma, perdida, pois não foi concebida pelo artista, uma vez que se
origina do reencontro e na recriação. Escrever é o anseio de reescrever, filmar é o anseio
de refilmar, é o desejo de participar ativamente daquilo que é belo e, ao mesmo tempo,
torná-lo indispensável para a existência do artista.
Nessa incessante busca pela reunião com a obra desejada, o artista se depara
com um constante desafio: o de se apropriar daquilo que o inspira e incorporar-se a
esse material inspirador por meio de sua própria arte. Através desse processo, a criação
artística se torna uma forma de reconstrução e reapropriação, em uma tentativa de
preencher as lacunas deixadas pela obra que o tocou profundamente. Surge, assim,
a necessidade de recriar o objeto de desejo, trazendo-o novamente à existência por
intermédio de palavras cuidadosamente tecidas.
A obra desejada se manifesta como uma presença ausente, um chamado para
a ação criativa do artista. É a consciência dessa falta que impulsiona a busca por uma
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união ativa com aquilo que é percebido como belo, mas que, de alguma forma, permanece distante e inacessível. A arte se apresenta como um meio de alcançar essa
conexão, uma maneira de participar de forma mais ativa e significativa daquilo que
desperta o desejo e nutre a inspiração.
Ao reescrever, repintar ou refilmar, o artista não busca simplesmente replicar ou
imitar a obra que o impactou. Pelo contrário, ele se empenha em reinterpretar, emprestando sua voz e sua visão pessoal para dar nova forma e sentido ao que foi previamente
experimentado. Assim, a arte se torna um processo de descoberta mútua, um diálogo
entre a própria arte e a inspiração, no qual ambas se transformam e se completam. É
nesse constante movimento de recriação e reapropriação que se busca suprir a falta
do artista, seu anseio por fazer parte ativa do que o encanta, proporcionando assim
uma experiência singular e enriquecedora tanto para si mesmo quanto para o leitor.
Nesse sentido, a escrita se torna um caminho de autoconhecimento e autorreflexão, em que o escritor se vê diante de suas próprias inquietações e anseios, buscando
encontrar respostas e dar voz às suas inquietações mais profundas.
Quando analisamos a tendência presente na criação artística, podemos observar
que o objeto em si é relegado a um segundo plano. O objeto não é o fundamento de
uma categoria, de uma moral, por exemplo. O desejo se separa do objeto, e consequentemente, da criação e da perpetuação da espécie. Por outro lado, a consideração
do objeto introduz normas mais numerosas, classificações e exclusões.
No entanto, parece que a ação inicialmente estava integrada a um desejo do
objeto, ou seja, criar algo específico. Contudo, em certo momento, ocorre uma ruptura, uma separação. O objeto passa a ser secundário em favor da tendência em si: criar
qualquer coisa. Nesse sentido, a criação artística pode ser vista como uma expressão da
tendência do autor a criar, que se assemelha facilmente à imagem de uma necessidade
natural, fisiológica, como algo independente da deliberação ou intenção do sujeito.
Essa evolução na compreensão do ato de criar artístico revela uma mudança
na percepção do escritor sobre sua própria atividade. A elaboração da arte deixa de
ser meramente um meio de registrar informações ou expressar ideias predefinidas
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para se tornar uma busca intensa por uma força interior. Surge uma tendência em se
fazer uma arte que se manifesta de forma voluptuosa, em que a riqueza desse impulso
criativo é valorizada mais do que o objeto em si. O escritor se entrega a essa força que
o impulsiona, buscando incessantemente o ponto de aplicação para sua expressão.
Esse movimento rumo a uma escrita mais autêntica e íntima revela uma mudança
na concepção do ato criativo. O artista deixa de ser tão somente um transmissor de
informações e se torna um ser imerso em sua própria experiência, em sua busca por
expressão e significado. A arte assume um caráter mais subjetivo, em que a voz do
escritor se manifesta de maneira singular e pessoal. A busca por um sentido absoluto
na arte se reflete no uso do verbo "criar" como um ato intrínseco à própria vida do
escritor. É como se a criação se tornasse uma identidade, uma forma de existir e se
relacionar com o mundo.
Gustave Flaubert, ao falar de si mesmo como um "homem-pena", revela uma
profunda conexão com sua própria escrita. Ele sente através dela, em virtude dela e,
de forma ainda mais significativa, com ela. A escrita se torna uma essência absoluta,
uma essência na qual o escritor se consome e se identifica. Surge uma espécie de
mística em torno da pureza do ato de escrever, uma pureza que não é corrompida por
qualquer finalidade externa.
Essa perspectiva nos leva a refletir sobre a natureza da criação artística e sua
relação com a identidade do artista. Por meio da obra, o artista se entrega ao processo
criativo, permitindo que sua essência autoral se manifeste.
Essa abordagem estética nos convida a refletir sobre o valor da arte, sua capacidade
de nos transportar para além do mundano, para um reino de beleza e contemplação.
Apreciar a arte em sua essência é reconhecer o poder transformador da criação artística,
que nos permite experimentar uma conexão com o belo e com as verdades da existência.
A elaboração artística revela-se como uma jornada existencial caracterizada por
um movimento peculiar de terminar e recomeçar, uma fantasia de "ter acabado". Ao
longo de cada etapa do processo de criação, desde a coleta dos materiais até a publicação,
o desejo de alcançar esse fim se manifesta com ardor e impaciência. No entanto, uma
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vez que a obra é concluída, uma sensação de decepção e tédio pode surgir, levando
o escritor a ansiar por passar para algo novo. Pode-se afirmar que, após ter iniciado,
faz-se a obra apenas para alcançar a finalização. A verdadeira alegria que um livro
proporciona é o sentimento de tê-lo concluído.
A preparação e conclusão de uma obra são etapas que despertam uma satisfação
de imagem, mas não necessariamente de realização. A imagem projetada da obra pode
ser incerta, uma vez que a satisfação plena é difícil de ser alcançada. A satisfação que
um escrito publicado pode proporcionar é quando o autor recebe retorno de leitores
desconhecidos, confirmando que sua obra atendeu a uma demanda até então desconhecida, reafirmando assim a definição de um livro vivo.
Existe uma lógica presente no projeto do artista, na qual se fantasiam fins definitivos que marcarão o encerramento da escrita. Surge a fantasia do último trabalho,
do último testamento no qual tudo será dito e, posteriormente, o escritor se calará.
No entanto, essa fantasia é constantemente refeita, pois o desejo de recomeçar é mais
intenso do que o descanso de não escrever.
Portanto, a ideia de "ter acabado" revela-se como um elemento-chave na compreensão do ato de escrever, proporcionando uma nova perspectiva e uma tipologia
atualizada. Enquanto alguns escritores buscam a satisfação na finalização da obra,
outros compreendem que o processo artístico é contínuo e vitalício, enraizado na
própria existência.
A arte, em sua essência, tem o potencial de ir além do entretenimento e adentrar no âmbito da busca por conhecimento. Com os textos de Andrei Tarkovski (2010),
vemos que, ao contemplar uma obra de arte, o espectador é confrontado com uma
experiência singular, capaz de suscitar uma variedade de respostas emocionais e cognitivas. Essa capacidade de provocar uma reação intensa é o que confere à arte um
papel fundamental na ampliação do entendimento humano.
O impacto da arte pode ser concebido como um choque, um encontro visceral
entre o observador e a obra. Esse choque sobrepassa a passividade do espectador, incitando-o a se envolver ativamente com a mensagem transmitida pela criação artística. É
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através desse confronto que ocorre a catarse, um processo de purificação emocional e
intelectual, em que as emoções represadas são liberadas e o conhecimento é ampliado.
Nesse sentido, a arte atua como um veículo de expressão e comunicação que vai
além das palavras e conceitos abstratos. Ela proporciona uma experiência sensorial e
estética única, capaz de ultrapassar as limitações da linguagem verbal e alcançar um
entendimento mais profundo. Através do impacto emocional e da catarse proporcionada pela arte, somos levados a refletir sobre questões existenciais, a questionar as
estruturas sociais e a expandir nossas perspectivas sobre o mundo.
Ao nos depararmos com uma obra de arte, somos convidados a mergulhar em um
processo de conhecimento não linear, que escapa aos limites da lógica e da racionalidade estrita. A experiência estética nos desafia a explorar novos horizontes, a confrontar
nossas próprias crenças e preconceitos, e a questionar as convenções estabelecidas.
Portanto, a arte desempenha um papel fundamental na busca pelo conhecimento,
agindo como um catalisador que desperta emoções, provoca reflexões e amplia nossa
compreensão do mundo. Por meio do choque provocado pela arte e da catarse resultante, somos levados a superar nossas limitações individuais e adentrar um domínio
de percepção mais profundo e enriquecedor.
Independentemente da perspectiva adotada, torna-se inegavelmente evidente
que o propósito inerente a toda manifestação artística - exceto, é claro, quando ela é
direcionada meramente ao "consumidor" como mera mercadoria - reside na tarefa de
elucidar tanto ao próprio artista quanto àqueles que o rodeiam o propósito da existência humana e o significado subjacente a ela. A arte tem como objetivo esclarecer
às pessoas a razão de sua presença neste plano terreno, ou, caso a explicação não seja
exequível, ao menos apresentar a questão em si.
Devido a sua linguagem simbólica e estética, a arte pode se tornar um veículo de
introspecção e reflexão. Ela nos incita a questionar os propósitos e os significados de
nossa própria existência. Ao explorar os limites da criatividade e da expressão, o artista
119
busca compreender e transmitir ao mundo sua visão singular sobre a vida, instigando
um diálogo profundo e significativo.
Assim, a arte se coloca como uma ferramenta poderosa na busca pelo sentido da
existência humana. Ela ultrapassa as limitações da linguagem verbal, apelando para os
aspectos emocionais, intuitivos e sensoriais do ser humano. Através de símbolos, metáforas e formas estéticas, a arte explora os mistérios da condição humana, revelando
camadas ocultas de compreensão e propondo questões fundamentais.
Dessa forma, a arte não apenas busca explicar o propósito da existência, mas
também convida o espectador a embarcar em uma jornada de descoberta e questionamento pessoal. Ela oferece uma paleta de possibilidades, uma arena de contemplação onde cada indivíduo é convidado a explorar sua própria relação com o mundo e
encontrar seu próprio significado.
A arte, quando verdadeiramente engajada nessa missão, vai além da mera produção de entretenimento superficial. Ela assume a responsabilidade de questionar,
provocar e desafiar as estruturas e conceitos estabelecidos, abrindo espaço para a
reflexão crítica e a expansão da consciência.
Em suma, a arte se apresenta como um convite para a busca de significado,
uma plataforma para explorar as inquietações fundamentais da existência humana.
Seja oferecendo respostas claras ou apenas levantando questões, ela desempenha um
papel vital na jornada de autoconhecimento e na compreensão do propósito da vida.
A experiência do autoconhecimento ético e moral é um empreendimento no
qual o indivíduo se lança em uma jornada interna de descoberta e reflexão. Nessa busca
incessante, cada pessoa se confronta com seus valores, crenças e princípios, visando
compreender-se e compreender seu lugar no mundo.
A busca pelo autoconhecimento sobrepassa a aquisição de conhecimentos externos. Ela implica uma imersão profunda no âmago da própria identidade, uma exploração
íntima das motivações e das escolhas que norteiam a conduta humana. Ao buscar esse
autoconhecimento, o indivíduo se engaja em um processo contínuo de autodescoberta,
desafiando-se constantemente a crescer e evoluir em termos morais e éticos.
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Essa busca é pessoal e subjetiva, uma vez que cada indivíduo se depara com suas
próprias experiências, dilemas e desafios morais. Cada encontro consigo mesmo e com
o mundo traz consigo a oportunidade de reavaliar e redefinir os próprios princípios e
valores, impulsionando o constante desenvolvimento pessoal.
O anseio pela consecução de um ideal ético e moral surge da intuição profunda
que permeia a natureza humana. É uma chama interna que inspira o ser humano a
buscar uma conexão mais profunda consigo mesmo e com os outros, a ultrapassar as
limitações cotidianas e alcançar um estado de harmonia interior. Esse ideal é tanto um
guia para a conduta como um farol que ilumina o caminho do autoaperfeiçoamento.
Nesse contexto, a busca pelo autoconhecimento ético e moral não se restringe
apenas à dimensão intelectual, mas abrange a esfera emocional e espiritual do indivíduo. É uma jornada que exige coragem, autenticidade e uma disposição para enfrentar os desafios que surgem ao longo do caminho. Ao se engajar nessa busca, o ser
humano se lança em um processo contínuo de autorreflexão, autorresponsabilidade
e transformação interior.
Assim, a busca pelo autoconhecimento representa o cerne da existência humana,
ultrapassando as fronteiras do conhecimento acumulado e convidando cada indivíduo
a explorar sua própria singularidade. É uma jornada que confere significado e propósito
à vida, orientando-nos em direção a um estado de plenitude e integridade.
Através do meio artístico, o ser humano alcança uma compreensão da realidade
por meio de uma experiência subjetiva, que difere da ciência, na qual o conhecimento
humano do mundo é adquirido por meio de um contínuo progresso, em que cada
descoberta é substituída pela seguinte, muitas vezes invalidando a anterior em prol
de uma verdade objetiva específica.
O artista, por sua vez, busca expressar essas complexidades através da criação.
Por vezes, esta se dá na forma de imagem, a qual, neste contexto, assume uma natureza
sui generis, revelando-se como uma ferramenta essencial para a apreensão de aspectos da realidade. Por meio dela, o artista desvenda camadas mais profundas e sutis do
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mundo, capturando a essência do infinito e do eterno, que se manifesta dentro dos
limites da finitude e da materialidade.
A arte busca estabelecer uma conexão íntima entre o espectador e a obra, despertando uma resposta emocional e sensorial que excede a mera compreensão intelectual.
Ela busca alcançar os aspectos mais profundos da experiência humana, comunicando-se
através de uma linguagem simbólica que vai além das palavras e da lógica.
Ao apreciar uma obra de arte, somos convidados a uma jornada interior, em
que nossas emoções e percepções são ativadas de maneira única. O artista, por meio
de sua criação, busca transmitir não apenas um conceito ou ideia, mas sim uma carga
energética, um influxo espiritual que ressoa dentro de nós.
Ao sermos tocados pela arte, experimentamos uma conexão com algo maior do
que nós mesmos. A partir dessa experiência estética, somos levados a questionar, a
refletir e a contemplar os mistérios da existência humana e do universo.
Assim, a arte desempenha um papel fundamental na ampliação de nossa consciência e na busca de uma compreensão mais profunda da realidade. Ela nos convida
a explorar a energia espiritual que permeia o mundo, despertando nossa sensibilidade
e abrindo caminhos para uma maior percepção do significado e propósito da vida.
O ar
tista, nesse sentido, desempenha um ofício, colocando-se a serviço daquilo
que é maior que ele, daquilo que está além de si mesmo. Ele reconhece a dádiva que
lhe foi conferida, e está em constante busca de retribuir tal dádiva por meio de sua
criação artística.
O artista, portanto, se coloca em um estado constante de entrega e serviço,
procurando dedicar-se plenamente a sua vocação artística, explorando os limites de
sua criatividade e expressão, a fim de alcançar um grau mais elevado de realização. Ele
compreende que a arte é uma via para se conectar com um universo de significados
e possibilidades.
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A representação artística, em sua essência, revela-se como uma metonímia, um
recurso pelo qual uma entidade é substituída por outra, ocorrendo uma transposição
do menor para o maior. O artista, ao buscar retratar algo que está vivo, utiliza-se de
elementos inanimados; ao tentar abordar o conceito do infinito, recorre ao finito.
Nesse processo, ocorre uma substituição simbólica, uma vez que é inviável materializar o infinito em sua plenitude, mas é possível criar uma ilusão, uma imagem que
remeta a esse conceito.
Ao utilizar o recurso da substituição, o artista opera uma transformação da
realidade, selecionando elementos específicos para expressar algo que vai além de
sua materialidade. Essa escolha se baseia na compreensão de que a imagem artística
possui a capacidade de transmitir significados e sensações que não poderiam ser alcançadas de outra forma.
A imagem, então, assume um papel crucial na criação dessa ilusão, pois é por meio
dela que o artista busca representar aquilo que é intangível e, muitas vezes, inexprimível.
É através dessa ilusão que o espectador é convidado a sair da limitação do mundo material e mergulhar em uma experiência estética que permite a contemplação do infinito.
Assim, a imagem artística, como uma metonímia, opera como um meio de acesso
ao inacessível, ao ilimitado. Ela se torna um veículo para a expressão do transcendente, permitindo que o espectador vislumbre a vastidão do infinito através do limitado
e concreto. É nesse jogo de substituições e ilusões que a arte revela sua potência em
evocar o indizível e transmitir uma percepção além do mundo material.
A produção artística engendra a manifestação de uma imagem que ultrapassa
e as fronteiras do racional. Tal imagem possui a capacidade de suscitar uma resposta afetiva no espectador, que pode ser tanto acolhimento quanto repúdio. Todavia,
compreender tal fenômeno não se restringe a um processo meramente cognitivo. A
ideia do infinito, por sua própria natureza, escapa às limitações da linguagem verbal
ou descritiva. Contudo, por meio da arte, essa noção inefável do infinito se torna
apreensível, adquirindo tangibilidade.
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Neste sentido, o artista, em sua criatividade, desvela diante de nós um universo
particular, imbuído de sua subjetividade e perspectiva única. Através de sua obra, ele
nos convida a adentrar nesse universo, desafiando-nos a aceitá-lo ou rejeitá-lo como
uma expressão relevante e convincente. Ao criar uma imagem artística, o artista submete seu próprio pensamento à supremacia daquela representação que emergiu diante
de seus olhos como uma revelação intensamente carregada de significado emocional.
Nesse processo, o artista excede a mera racionalidade e se entrega ao fluir das
emoções e da intuição, permitindo que a imagem se torne uma manifestação viva de
seu mundo interior. A imagem, por sua vez, exerce um poder fascinante sobre o espectador, que é confrontado com a necessidade de engajar-se com ela, compreendê-la
e interpretá-la em sua própria vivência.
A imagem artística não é meramente uma representação visual, mas sim uma
entrada para um domínio emocionalmente carregado e significativo. Ela nos transporta
para além dos limites do pensamento racional e nos incita a experienciar o mundo de
forma sensível e visceral. É através dessa experiência estética que somos confrontados
com a capacidade de expressão do artista, sua habilidade de revelar aspectos ocultos
e profundos da existência humana.
Ao nos depararmos com a imagem artística, somos desafiados a questionar nossas
próprias concepções e perspectivas, abrindo espaço para uma reflexão mais profunda
sobre nossa relação com o mundo e com nós mesmos. A obra de arte nos convida a sair
da passividade e a nos engajar ativamente com a mensagem que ela transmite, seja ela
uma chamada à contemplação, uma crítica social ou uma expressão emocional intensa.
Em última análise, a imagem artística possui um poder transformador, capaz
de despertar em nós novas percepções, emoções e reflexões. Ela nos confronta com
a dualidade entre o pensamento individual do artista e a força universal e coletiva da
imagem. É nessa tensão entre o particular e o universal que encontramos a verdadeira essência da arte, como uma forma de comunicação que perpassa as barreiras do
tempo, espaço e linguagem e nos conecta em um nível profundo e emocional com a
humanidade como um todo.
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A arte possui como finalidade primordial preparar o indivíduo para o inevitável
desfecho da existência, ou seja, a morte, ao mesmo tempo que promove o arado da alma
humana, capacitando-a a voltar-se em direção ao bem. Por meio da expressão artística,
o ser humano é conduzido a uma jornada de autoconhecimento e desenvolvimento
espiritual que o habilita a enfrentar a finitude da vida de forma mais significativa.
Ao ser profundamente comovido por uma obra, o indivíduo desperta em si
mesmo o eco da mesma busca pela verdade que motivou o artista a criá-la. Nesse momento, estabelece-se uma conexão íntima entre a obra e o espectador, conduzindo-o
a uma experiência espiritual sublime e purificadora. Dentro desse ambiente que une
as obras e o público, os aspectos íntimos dos indivíduos são revelados, e anelamos pela
sua libertação. É nesses instantes que reconhecemos e descobrimos a nossa essência.
Dessa forma, a arte se torna uma fonte de inspiração e um convite para a vivência
de experiências que ultrapassam a realidade cotidiana, proporcionando um alimento
espiritual que nutre a alma e estimula o crescimento pessoal. É por meio desse impulso
provocado pela arte que somos convidados a mergulhar em um universo de significados,
símbolos e sensações, despertando a nossa sensibilidade e ampliando os horizontes
da compreensão humana.
Portanto, a arte se revela como uma dádiva que nos oferece um caminho para
além do mundano, instigando-nos a explorar a vastidão do nosso ser. É por meio
desse alimento espiritual proporcionado pela arte que somos convidados a expandir
nossa percepção, refletir sobre a existência e nos conectar com as dimensões mais
profundas do nosso ser.
Ao compartilhar seus sonhos, o diretor/artista convida o público a embarcar
em uma jornada de interpretação e significado que envolve a reflexão sobre questões
existenciais, morais e estéticas. Dessa forma, o cinema excede sua natureza meramente técnica e se transforma em uma forma de arte que desafia e provoca o espectador.
O roteiro encontra a sua verdadeira realização ao ser transformado em um filme.
É nesse momento que ganha vida, por meio da interpretação dos atores, da direção, da
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cinematografia e de todos os elementos que compõem a linguagem cinematográfica.
Somente quando o roteiro é transposto para o meio audiovisual é que ele adquire a
sua forma final, revelando sua plenitude e possibilitando sua apreciação em toda a sua
potencialidade estética e narrativa.
Portanto, é essencial reconhecer a especificidade do roteiro como uma peça
fundamental na criação cinematográfica. Ele serve como um guia estrutural e narrativo, porém sua concretização plena ocorre somente quando é materializado em um
filme. É nesse processo de transformação que o roteiro se revela em sua forma final,
possibilitando ao público a experiência completa e envolvente que o cinema oferece.
A mais inquestionável evidência de genialidade que um artista pode apresentar
consiste na sua inabalável aderência à sua concepção, à sua ideia primordial e ao seu
princípio fundamental, manifestando tal comprometimento com tamanha firmeza
que jamais perca o controle sobre essa verdade, sem abdicar dela, ainda que isso lhe
acarrete a renúncia ao prazer derivado de sua própria obra.
No âmbito cinematográfico, as criações artísticas almejam estabelecer uma
espécie de condensação da vivência humana, materializada pelo artista em sua obra
cinematográfica: trata-se de uma representação ilusória da verdade, a sua imagem. A
singularidade do diretor molda a configuração de suas interações com o mundo e delimita suas conexões com o entorno; e o mundo, por sua vez, adquire uma dimensão
ainda mais subjetiva por meio da seleção dessas conexões.
Dentro do contexto do cinema, as obras de arte transpassam a mera reprodução visual da realidade, buscando explorar as camadas mais profundas da experiência
humana. O cineasta, em virtude de sua personalidade singular, imprime sua marca
distintiva na forma como ele percebe e interpreta o mundo ao seu redor. Através de
sua visão particular, ele tece uma teia de relações entre a realidade vivida e a representação cinematográfica, conferindo-lhes uma carga subjetiva que reflete suas próprias
inclinações, perspectivas e sensibilidades.
Nesse sentido, a obra cinematográfica torna-se um veículo de expressão e manifestação do diretor, refletindo suas escolhas, preferências e interpretações da realidade.
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O filme, então, assume o papel de uma projeção da visão de mundo do artista, permitindo que o espectador mergulhe em um universo construído a partir da fusão entre
a realidade objetiva e a subjetividade do cineasta.
Ao selecionar cuidadosamente as conexões entre os elementos da narrativa cinematográfica, o diretor cria um panorama singular, dotado de uma carga emocional,
estética e conceitual que lhe é própria. Essa seleção não apenas molda a forma como a
história é contada, mas também influencia profundamente a maneira como o mundo
representado é percebido e compreendido pelo espectador.
Assim, a personalidade e a singularidade do diretor desempenham um papel
essencial na definição da relação entre a obra cinematográfica e o mundo que ela busca
retratar. É por meio das escolhas estéticas, narrativas e conceituais do diretor que a
sua visão do mundo se manifesta e se entrelaça com a experiência coletiva, oferecendo
uma perspectiva única e subjetiva que convida o espectador a adentrar um universo
cinematográfico particular e fascinante.
Dessa forma, o cinema se apresenta como um meio de expressão e interpretação,
capaz de explorar a multiplicidade e a subjetividade da experiência humana. Através
da obra cinematográfica, o diretor busca capturar e condensar as complexidades e
nuances da vida, oferecendo uma visão singularmente filtrada pelo prisma de sua
personalidade artística. É nesse encontro entre a subjetividade do cineasta e a universalidade da experiência humana que a magia do cinema se revela, convidando-nos a
mergulhar em um mundo de ilusão e verdade, onde a expressão artística se entrelaça
com a percepção do mundo e da própria existência.
A vocação do artista se manifesta como uma força inescapável que o prende a
um caminho criativo específico. Essa compulsão interior não é uma imposição externa,
mas uma prisão voluntária e apaixonada. O artista está destinado a explorar e desenvolver seu talento, e essa dedicação o mantém aprisionado à sua própria criatividade.
Ao se entregar à sua vocação, o artista assume um compromisso inquebrável
com sua arte. Essa devoção profunda limita sua liberdade de escolha, uma vez que
suas decisões são guiadas pelo impulso de criar e comunicar sua visão de mundo. O
127
artista não pode escapar do encargo de sua própria genialidade, e é essa condição que
o mantém perpetuamente ligado a seu ofício.
No entanto, é importante destacar que essa prisão voluntária não é uma forma
de opressão, mas sim uma expressão sublime da liberdade interior do artista. Por meio
de sua entrega e dedicação irrestrita, ele encontra uma liberdade existencial e criativa
única, que se traduz em sua capacidade de explorar as fronteiras da expressão artística.
Portanto, é fundamental reconhecer que a liberdade do artista não é medida
pelos padrões convencionais de autonomia e escolha individual. Sua liberdade reside
na entrega apaixonada à sua vocação, na busca incansável pela expressão autêntica e
na capacidade de superar as limitações impostas pelo mundo externo. É nesse espaço
interior, onde o artista está conectado ao seu dom e à sua vocação, que ele encontra
a verdadeira essência de sua liberdade.
Nesta perspectiva, emerge uma dualidade intrigante. Por um lado, o artista é
agraciado com a liberdade de escolha em relação à expressão plena de seu talento, assim
como a liberdade de se submeter a uma negociação desfavorável e comprometer sua
integridade em troca de ganhos materiais efêmeros. A ânsia inebriante que impulsionou
personalidades ilustres como Tolstói, Dostoiévski e Gogol não teria sido instigada pela
percepção aguçada de sua vocação e do papel que lhes foi designado?
Nessa análise, surge a dicotomia entre a liberdade de escolha do artista e a responsabilidade inerente a essa condição. O artista detém a prerrogativa de direcionar
seu talento e habilidades na expressão mais completa possível, valendo-se da gama de
possibilidades criativas que se lhe apresentam. Contudo, essa autonomia está acompanhada de uma delicada encruzilhada moral, na qual o artista é confrontado com a
opção de preservar sua integridade e devoção à arte ou ceder às tentações mundanas
em troca de recompensas transitórias.
A frenética busca que envolveu personalidades como Tolstói, Dostoiévski e
Gogol reflete a intensa consciência que possuíam de sua vocação e do propósito que
lhes foi destinado. Esses notáveis escritores russos se sentiam compelidos a explorar
as profundezas da condição humana, a desvendar os abismos da alma e a confrontar
128
os dilemas morais e existenciais de seu tempo. Essa busca incessante era motivada pela
convicção de que eles eram os mensageiros escolhidos para transmitir, por meio de sua
expressão artística, as verdades ocultas e as inquietações que afligiam sua sociedade.
Assim, a dualidade entre a liberdade de escolha e a responsabilidade inerente
ao artista é evidenciada por meio desses exemplos paradigmáticos. A liberdade de
expressão artística não é apenas um privilégio, mas também um fardo, exigindo do
artista a consciência aguda de sua vocação e o reconhecimento de seu papel como
intermediário entre o mundo da criação e a realidade mundana. É nesse contexto
que a figura do artista se torna um catalisador cultural, capaz de moldar e influenciar
a consciência coletiva por meio de sua expressão única.
Desse modo, a liberdade do artista transpassa a mera faculdade de escolha
individual, adquirindo uma dimensão existencial e ética. É por meio da consciência
plena de sua vocação e do reconhecimento do chamado que lhes foi confiado que esses
artistas notáveis foram capazes de abraçar a liberdade criativa e alçar-se a patamares
elevados de genialidade, excedendo o mero exercício estético para atingir o cerne da
experiência humana.
O artista, como um ser criativo, e sua obra de arte, como sua materialização, são
inseparáveis e estão intrinsecamente ligados ao espectador. Cria-se, assim, uma relação simbiótica em que a expressão artística flui através da comunhão de sentimentos,
ideias e experiências entre o criador e o receptor. Essa ligação profunda, comparada a
uma corrente sanguínea que conecta todos os elementos, requer harmonia e sincronia
para alcançar seu pleno potencial.
No entanto, se houver desequilíbrio ou conflito entre as partes desse organismo artístico, é necessário um cuidadoso tratamento, assemelhado a uma intervenção
médica que busca restabelecer a saúde e o equilíbrio. Essa intervenção especializada
é crucial para salvaguardar a integridade e a autenticidade da arte, bem como para
preservar a experiência estética do público.
Nesse contexto, é importante destacar a nocividade do nivelamento por baixo, caracterizado pela produção de obras comerciais do cinema ou pelas produções
129
televisivas padronizadas. Essas formas de expressão artística diluem a profundidade
e a originalidade da arte, comprometendo sua essência e seu impacto transformador.
Ao subestimar a sensibilidade e a inteligência do público, tais produções negam-lhe
a experiência enriquecedora proporcionada pela verdadeira arte, reduzindo-a a um
mero entretenimento superficial.
Portanto, é crucial reconhecer a interdependência entre o artista, sua obra e o
público, buscando uma harmonia orgânica que permita a fluidez e a integridade da
expressão artística. A valorização da verdadeira arte exige um cuidado constante para
evitar a contaminação por influências comerciais e padronizações vazias, visando
preservar a autenticidade e a experiência enriquecedora proporcionadas pela manifestação artística legítima.
O artista encontra-se diante de uma tarefa desafiadora e imprescindível: a de
expressar o ideal ético de seu tempo. Essa empreitada requer um mergulho profundo
nas feridas da sociedade, uma experiência em que o próprio artista se torna um receptáculo das angústias e dores que permeiam a existência humana. É nesse processo que
a arte se revela triunfante sobre a terrível e ignóbil verdade, ao confrontá-la de maneira
corajosa e consciente, em prol de seu nobre propósito. Com efeito, pode-se afirmar
que a arte desempenha um papel fundamental, cumprindo um destino grandioso.
Assim como a religião busca ultrapassar os limites do mundano e conectar-se
ao divino, a arte almeja elevar-se além das limitações da realidade cotidiana, buscando
tocar o âmago do sublime. Nesse contexto, a arte se apresenta como uma manifestação sagrada, empenhada em transmitir um sentido de propósito transcendente e,
ao mesmo tempo, em despertar a consciência do espectador para as questões mais
profundas da existência.
Ao encarar sua missão com fervor e determinação, o artista assume a responsabilidade de se tornar um instrumento sensível à pulsão ética de sua época. Através de
sua expressão artística, ele busca proporcionar uma visão crítica e reflexiva da realidade,
revelando as contradições e as feridas que afligem a humanidade.
130
Assim como um ferimento profundo que, ao ser tocado, provoca dor, a arte
provoca desconforto e inquietação ao expor as feridas sociais e morais da humanidade.
No entanto, é nesse confronto direto e visceral que reside a força e a relevância da arte,
pois ela tem o poder de despertar a consciência coletiva e instigar a transformação
social. Ao enfrentar de maneira corajosa e comprometida a dura realidade, o artista
sai da superficialidade e se torna um agente de mudança, guiado pela busca de um
propósito mais elevado.
Em síntese, a arte desempenha um papel central na sociedade ao expressar o
ideal ético de seu tempo. Através de uma abordagem que requer um profundo envolvimento emocional e uma compreensão clara da horrível verdade, a arte se posiciona
como uma força inspirada, orientada para um objetivo sublime. Sua natureza quase
religiosa reside no compromisso em direção a uma dimensão mais elevada, despertando a consciência, estimulando reflexões e alimentando a aspiração por uma realidade
mais justa e significativa.
Nesse sentido, as obras de arte revelam-se como portadoras de uma genuinidade,
estabelecendo-se como testemunhas atemporais da natureza humana, da condição
existencial e dos mistérios da existência. Elas se destacam como símbolos emblemáticos
do eterno diálogo entre a criatividade humana e o universo em que estamos inseridos.
Independentes dos laços contingentes com o autor e do espectro subjetivo do público,
essas obras se afirmam como manifestações inabaláveis da essência da arte, abraçando
uma identidade que as situa além das limitações e idiossincrasias individuais.
Assim, ao observarmos as maiores obras de arte, somos instados a reconhecer
que elas transpassam as fronteiras do tempo, do espaço e das interpretações individuais, posicionando-se como fragmentos de uma realidade mais ampla e profunda. Elas
adquirem uma vida própria, imbuídas de uma autonomia criativa que ecoa além das
intenções efêmeras do artista ou das expectativas efêmeras do público. Revelam-se
como expressões singulares da grande narrativa da existência, dotadas de uma ressonância universal que as torna verdadeiramente imortais e essenciais.
131
O artista, com sua visão criativa, concebe suas obras com o intuito de estabelecer
um diálogo profundo e enriquecedor com o público, ultrapassar as barreiras do tempo
e das convenções sociais, e mergulhar nas camadas mais profundas da experiência
humana. É por meio desse elo intricado entre a produção artística e o espectador que
se almeja o despertar de uma ressonância mútua, onde a mensagem na obra de arte
ganha vida e ecoa no âmago da alma do indivíduo.
Ao nutrir a crença em sua obra como um veículo de conexão profunda com a
época em que é criada, o artista deposita sua confiança no poder transformador e impactante da expressão artística. Essa convicção fundamenta-se na premissa de que a
arte, ao abordar as temáticas e inquietações que permeiam a consciência coletiva, pode
proporcionar uma experiência catártica e reveladora para o espectador, ressoando em
sua sensibilidade de maneira autêntica e penetrante.
É, portanto, no encontro entre a obra e o público que se estabelece uma interação
dinâmica e enriquecedora, onde a arte se manifesta como um poderoso catalisador
de transformação, estimulando a reflexão, promovendo a empatia e enriquecendo a
experiência existencial.
O cinematógrafo, por seu turno, consubstancia-se como a única expressão
artística em que o autor detém o poder de se autodenominar como o arquiteto de
uma realidade não convencional, o artífice de seu próprio universo. No domínio cinematográfico, a inerente propensão do ser humano à autoafirmação depara-se com
um dos meios mais íntegros e imediatos de sua concretização. O filme erige-se como
uma realidade emocional, e é dessa maneira que a audiência o acolhe - como uma
realidade secundária.
Ao debruçarmo-nos sobre a singularidade do cinema, somos compelidos a
reconhecer que essa arte singular se materializa como um veículo excepcional para a
manifestação da inventividade criativa do artista. É nesse universo fílmico que a visão
individual e a imaginação do cineasta se amalgamam para engendrar uma realidade
autônoma, insólita e não submetida a convenções preestabelecidas. Por meio do poder
das imagens em movimento, o cineasta tem o privilégio de insuflar vida e coerência
132
a um mundo próprio, conferindo-lhe uma existência autônoma, habitada por personagens fictícios e narrativas que saem da esfera do convencional.
O filme é capaz de evocar sentimentos intensos, suscitar reações afetivas e
provocar um mergulho imersivo na trama que se desenrola diante dos olhos do espectador. A plateia, ao ser confrontada com a projeção cinematográfica, não apenas
testemunha uma sequência de imagens em movimento, mas é transportada para uma
realidade paralela, na qual as emoções e as sensações experimentadas são percebidas
como autênticas e tangíveis.
Nesse sentido, o cinema se erige como uma segunda realidade, um espaço emocionalmente tangível que se sobreleva ao plano cotidiano e propicia ao espectador uma
imersão visceral em universos ficcionais. É nessa dimensão paralela que o espectador
encontra uma experiência subjetiva e pessoal, vivenciando os eventos e as tramas
como se fossem uma extensão de sua própria existência. Essa recepção intensamente
emocional, ancorada na suspensão temporária da realidade, evidencia o poder do
cinema em criar uma conexão íntima entre o público e a obra, estabelecendo uma
relação interpessoal de cumplicidade e identificação.
A obra literária só pode ser recebida através de símbolos, de conceitos – pois é
isso que as palavras são; mas o cinema permite uma percepção inteiramente imediata,
emocional e sensível da obra.
Enquanto a literatura se vale da linguagem escrita como veículo de comunicação,
o cinema extrapola os limites do texto escrito, utilizando-se de imagens em movimento,
sons, cores e outros elementos sensoriais para criar uma experiência estética holística.
Por meio da linguagem cinematográfica, o espectador é imerso em um universo visualmente deslumbrante, em que as emoções são evocadas de forma imediata e intensa.
Essa percepção imediata e sensível proporcionada pelo cinema, sem a mediação
da linguagem escrita, permite que o público vivencie a obra de forma mais visceral e
intuitiva. As imagens em movimento, acompanhadas por elementos sonoros e visuais, têm o poder de comunicar sentimentos e transmitir emoções de maneira direta,
ultrapassando as barreiras da compreensão conceitual.
133
Assim, o cinema se revela como uma forma de arte que oferece ao espectador
uma vivência estética profunda e imersiva, possibilitando uma apreensão imediata e
emotiva da obra. Enquanto a literatura se vale da linguagem escrita como mediadora
entre o autor e o leitor, o cinema se utiliza de recursos visuais e sonoros para estabelecer
uma conexão direta entre o diretor e o espectador, permitindo que a obra seja recebida e experimentada de maneira emocionalmente impactante e sensorialmente rica.
A responsabilidade do diretor cinematográfico reside na tarefa de recriar a complexidade da vida: seus movimentos, contradições, dinâmicas e conflitos. Sua missão é
desvelar qualquer fragmento de verdade que tenha descoberto, independentemente de
sua aceitação por parte do público. É importante ressaltar que um artista pode cometer
equívocos; no entanto, mesmo seus erros, desde que sejam sinceros, possuem um valor
essencial, pois refletem a realidade de sua vida interior, suas jornadas e as batalhas às
quais foi submetido pelo mundo exterior. (E, aliás, alguém possui a verdade em sua
totalidade?) Qualquer discussão em relação ao que pode ou não ser retratado no cinema
só pode ser considerada uma tentativa insignificante e imoral de distorcer a verdade.
Nessa perspectiva, o diretor cinematográfico se torna um intermediário entre
a vida real e a obra de arte, assumindo a responsabilidade de capturar a essência da
existência humana em sua forma mais autêntica e crua. Ao abordar temas universais,
como amor, dor, alegria, conflitos morais e dilemas éticos, o diretor se lança em uma
busca incessante pela verdade interior, uma verdade que pode ser desconfortável, desafiadora e até mesmo repudiada por aqueles que a encontram.
É importante ressaltar que a verdade retratada na arte não deve ser confundida
com uma noção absoluta e imutável. A verdade artística é subjetiva, e cada diretor
tem sua própria visão do mundo e da realidade. Portanto, o dever do diretor não é se
submeter a padrões preestabelecidos de aceitabilidade ou censura, mas, sim, expressar
sua verdade interior de forma sincera e autêntica.
Qualquer tentativa de limitar ou restringir a liberdade de expressão artística, de
determinar o que pode ou não ser mostrado, é uma violação da verdade e uma negação
da própria essência da arte. A arte é um meio de explorar e questionar a realidade, de
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lançar luz sobre questões difíceis e controversas, e de convidar o público a refletir e
buscar uma compreensão mais profunda do mundo que o cerca.
Portanto, o diretor, em sua busca por recriar a vida, deve ter a coragem de revelar
sua verdade, mesmo que ela seja desconfortável, desafiadora ou rejeitada por alguns.
A arte, em sua natureza, tem o poder de provocar emoções, questionar convenções e
despertar a consciência do público.
É plenamente viável exercer a profissão de diretor ou escritor sem, contudo,
se tornar um verdadeiro artista, tornando-se meramente um executor de ideais que
não lhe pertencem. Nesse contexto, é importante considerar a distinção entre a mera
execução de uma tarefa técnica e a expressão artística autêntica.
Ser um artista ultrapassa a realização mecânica de uma atividade criativa. Envolve
a capacidade de transpassar os limites impostos pelas convenções e normas preestabelecidas, buscando a originalidade, a autenticidade e a expressão singular de ideias e
emoções. Um verdadeiro artista não apenas reproduz ideias alheias, mas cria a partir
de sua própria visão, experiências e sensibilidade.
Ou seja, ser artista envolve o domínio das técnicas e habilidades da profissão,
mas vai além disso, exigindo uma conexão íntima com a própria identidade, experiências e visão de mundo. É a capacidade de processar a singularidade do ser humano
através de uma linguagem artística, seja ela visual, literária, cinematográfica, musical
ou qualquer outra forma de expressão.
A busca pela arte exige um compromisso consigo mesmo e com a criatividade.
Envolve a exploração das próprias ideias, emoções e experiências, desafiando as normas estabelecidas e buscando a originalidade e a inovação. O artista autêntico busca
expressar sua própria voz, transmitindo uma perspectiva pessoal sobre o mundo e
despertando no público uma resposta emocional e intelectual.
Através da arte, o artista revela sua visão do mundo, retratando-o em todas as
suas nuances desesperançadas. No entanto, é justamente nesse confronto com a realidade sombria que a clareza do ideal se torna evidente. É como se a intensidade do
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desespero do mundo fosse diretamente proporcional à clareza e força com as quais
devemos enxergar o oposto a ele: o ideal.
A existência desse ideal se torna fundamental para a própria sobrevivência
humana. É nesse contexto que a arte desempenha um papel vital, oferecendo uma
representação do ideal que ilumina o horizonte humano e nutre a esperança.
Através da expressão artística, seja na pintura, na música, na literatura ou em
qualquer outra forma de manifestação, o artista nos convida a contemplar o ideal, a
vislumbrar uma realidade que vence as limitações do mundo atual. A arte nos presenteia com uma visão inspiradora, uma visão que alimenta a fé na possibilidade de
um mundo melhor.
Essa crença na capacidade transformadora da arte está enraizada na essência da
experiência humana. Ela nos lembra da importância de buscar um propósito maior,
de vislumbrar um horizonte de possibilidades, mesmo diante das adversidades e da
aparente falta de esperança. A arte se torna um refúgio, um ponto de encontro com o
ideal que nos impele a continuar caminhando, a vencer as limitações e a buscar uma
realidade mais plena e significativa.
No âmago da arte reside sua capacidade única de simbolizar o inexprimível. Ela
nos permite mergulhar em narrativas, imagens e sons que excedem o mundo material,
alcançando as profundezas da psique humana. Por meio desses símbolos e metáforas,
somos conduzidos a um nível de compreensão mais abrangente, onde o racional e o
emocional se entrelaçam.
A arte desafia nossa percepção e convida-nos a questionar e refletir sobre as
questões fundamentais da existência. Ao contemplar uma obra de arte, somos confrontados com a dualidade do ser humano, com suas angústias, esperanças, alegrias e
dores. A arte se torna um espelho de nossa própria jornada, um convite para explorar
a complexidade de nossa natureza e os mistérios do universo.
A importância da arte como um símbolo do significado da existência reside
no fato de que ela desperta em nós uma consciência ampliada de nossa humanidade.
136
Através de suas representações, somos levados a refletir sobre nossa identidade, nossos propósitos e nosso lugar no mundo. Ela nos desafia a explorar as fronteiras do
conhecimento e a buscar uma compreensão mais profunda daquilo que nos rodeia.
Em última análise, a arte é um testemunho da capacidade humana de criar,
de expressar o indizível e de buscar respostas para as grandes questões da existência.
Ela nos lembra que somos seres em busca de significado, constantemente engajados
na busca por compreender e dar sentido à nossa própria existência. Através da arte,
encontramos um caminho para nos conectar com algo além do nosso conhecimento.
137
138
04
As entrevistas conduzidas com os documentaristas Daniel Gonçalves, Sandra
Kogut e Cristiano Burlan oferecem uma perspectiva que reforça e valida a o entendimento da experiência autoral explorado anteriormente no estudo bibliográfico. Essa
139
experiência permeia uma ampla diversidade de criadores em suas interpretações subjetivas. A análise desse material claramente estabelece conexões sólidas e substanciais
entre as entrevistas e as abordagens presentes nos textos que foram explorados nesta
discussão — notadamente as contribuições de Bachelard (2008), Merleau-Ponty(2004,
2011), Malevich (2021), Butler(2017) , Cocteau (2020), Blanchot (2004, 2018), Barthes
(2005) e Tarkovsky (2010).
Essas conexões, por sua vez, enriquecem significativamente a presente investigação. Nesse sentido, surgem diálogos entre os ideários dos documentaristas e os
conceitos desenvolvidos pelos pensadores, delineando uma interseção profunda entre
a autoria cinematográfica e as dimensões filosóficas, perceptuais e artísticas exploradas
por esses teóricos e artistas.
Dentro do escopo desta investigação, é fundamental explorar de maneira mais
profunda as relações entre as entrevistas realizadas e os textos que foram analisados
durante esta discussão. Os pensadores que foram mencionados anteriormente desempenham um papel crucial nesse processo. É importante compreender como as ideias
e teorias propostas por eles podem ser conectadas e aplicadas nas entrevistas com os
documentaristas. Nesse sentido, é necessário examinar como as entrevistas dialogam
com as perspectivas filosóficas aqui exploradas.
Isso requer uma análise atenta e contextualizada. O objetivo principal é identificar
como os conceitos teóricos desses filósofos, que abordam temas tão diversos quanto a
percepção sensorial, a criação artística, a subjetividade e a natureza das imagens, podem
se entrelaçar e enriquecer as ideias expressas pelos entrevistados. A relação entre os
discursos capturados nas entrevistas e as bases filosóficas dos pensadores mencionados
oferece uma oportunidade para explorar como as visões autorais dos documentaristas
se conectam com os princípios conceituais delineados por aqueles que mergulharam
nas complexidades da experiência e da criação artística em suas obras. À medida que
essa análise se desenvolve, torna-se evidente que a interação entre as perspectivas das
entrevistas e as estruturas teóricas acrescenta profundidade reflexiva ao discurso dos
140
documentários, possibilitando uma união única entre os domínios da filosofia e do
cinema contemporâneo.
Neste sentido, a primeira conexão se estabelece a partir da entrevista com Sandra
Kogut, conduzida em vinte e um de dezembro de dois mil e vinte e dois, na plataforma
online Google Meet. A entrevista em vídeo foi registrada e transcrita. Desde o início,
ao indagar sobre o processo de criação de seu filme "Um passaporte Húngaro", Sandra
fornece uma resposta notável, cujas palavras realçam a importância da presente pesquisa, que se concentra primordialmente na exploração dos processos autorais no
âmbito documental.
O processo é o filme, as coisas que acontecem no processo. Elas
estão no fundo, em algum lugar, mesmo que às vezes seja mais
difícil de você identificar precisamente. Elas estão ali, então
tudo está ali.
Por isso, o processo é tão fundamental. E o filme também é um
ser vivo. Assim, você pode olhar um filme hoje, ver um filme, e
aí você vai olhar daqui um ano. Você verá outro filme porque
você mudou, o mundo mudou e o filme não existe.
Fora disso, o olhar de quem está vendo de fora do mundo, onde
está sendo mostrado. Então, é um processo que nunca acaba.
Bom, esse filme, eu acho que ele mostra bem uma coisa que
eu penso que é para mim: fazer cinema é mesmo uma questão
existencial. É o meu lugar no mundo.
Não é um trabalho, uma profissão separada disso. Então, é como
eu vejo, é quem eu sou. É o que me define, entendeu? É o meu
cantinho e de onde eu olho. E esse filme, ele mostra isso muito
diretamente, porque ele se mistura muito com a vida em algum
nível. Todos os filmes fazem isso. Pra mim, um filme de ficção,
141
entendeu? É... é o que eu sou. Por isso que também é tão difícil
assim, porque quando você faz um filme, você pega algo muito
pessoal e solta, assim, no mundo. (Kogut, comunicação pessoal,
21 de dezembro de 2022).
O questionamento contínuo de Sandra sobre a validade de sua criação e seu
potencial cinematográfico não só dialoga com as percepções de Merleau-Ponty, mas
também invoca a essência mesma da criação artística - um terreno instável onde a
confiança e a hesitação se entrelaçam. Ao se examinar a jornada de Sandra, observa-se
que sua busca por uma resolução entre a dúvida e a fé reflete a complexidade humana
envolvida no ato de criar. Essa dinâmica é reforçada pelas palavras de Butler (2017), cujas
reflexões sobre a identidade e a subjetividade lançam luz sobre o desafio existencial
que permeia a criação artística.
Sandra, ao se perguntar se suas ações realmente resultarão em uma obra significativa, espelha o constante questionamento da identidade artística e da validade
de expressão que Butler descreve. A incansável perseverança de Sandra em continuar
seu trabalho, apesar das incertezas, ecoa a noção de que a criação é um ato arraigado
na própria essência do indivíduo, algo que sobreexcede o mero propósito material e
se entrelaça com a busca pela autenticidade. Essas conexões entre as perspectivas de
Sandra, Merleau-Ponty e Butler desenham um retrato complexo da experiência criativa,
enfatizando a luta interna entre confiança e dúvida, fé e incerteza.
Nesse processo, a arte se revela não apenas como uma expressão externa, mas
como um espelho da condição humana, uma busca constante por significado e validade
que permeia cada estágio da criação e ressoa em cada obra que ganha vida. Ao contar
sobre a motivação inicial do filme, Sandra Kogut explica que a busca pelo passaporte
e as questões burocráticas geraram reflexões internas que resultaram em uma vontade
de filmar o processo.
E eu falei, “mas isso aqui é uma questão importante, que eu acho
que eu tenho que fazer um filme” e eu não tinha a menor ideia
do que ia acontecer. Eu podia nunca conseguir o passaporte, eu
142
podia conseguir no dia seguinte. Realmente eu não sabia, mas eu
sabia que o que acontecesse, fosse o que fosse, ia ser importante
para mim. Então isso me deu, acho, uma força, uma certeza para
tentar fazer disso um filme, entendeu? Quando eu estou fazendo
um filme, acho que até o finalzinho eu tenho dúvidas se aquilo
é um filme. Nunca sei. Em outros momentos eu falo “isso aqui
não vai virar um filme.” (Kogut, comunicação pessoal, 2022)
Talvez essa dúvida constante, esse medo, esse receio, sejam muito importantes.
Ajudem muito ali no trabalho, porque você tá sempre caminhando naquela beirinha
do precipício.
A fé previamente mencionada estabelece uma conexão profunda com as reflexões de Tarkovski sobre a crença na própria obra, expandindo-se para abranger uma fé
ainda mais poderosa na capacidade e no potencial autoral, que excede a própria obra.
Nesse contexto, a interseção com os trechos do autor se torna evidente.
Quando Tarkovski (2010) fala sobre como uma imagem pode ser criada e evocar
sensações, essa noção se harmoniza com a percepção de Sandra Kogut sobre a crença
em sua própria criação, enquanto ela procura dar vida a sua visão artística. A abordagem
de Tarkovski, que afirma que a arte torna o infinito tangível e que o absoluto só pode
ser alcançado por meio da fé e do ato criativo, encontra ressonância na maneira como
Sandra lida com suas dúvidas e sua confiança em sua jornada autoral.
Ao expressar que “a única condição para lutar pelo direito de criar é a fé na própria
vocação, a presteza em servir e a recusa às concessões. A criação artística exige do artista
que ele pereça por inteiro” (Tarkovski, 2010, p. 42), o cineasta toca na ideia da entrega
completa à obra, que também ecoa a tenacidade de Sandra ao enfrentar incertezas e
continuar a produzir apesar delas. As reflexões de Tarkovski e a busca de Sandra por
significado e autenticidade entrelaçam-se em um mosaico de compreensão e expressão criativa. Ambos os autores trazem à tona a capacidade humana de vislumbrar uma
verdade mais profunda por meio da arte e de traduzir essa percepção em suas obras. O
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encontro entre suas perspectivas enriquece a compreensão da criação artística como
um ato de fé, onde o artista se torna um canal para o infinito, uma voz que se junta a
uma sinfonia de reconhecimento e expressão da imagem e semelhança da criação em si.
As reflexões de Tarkovski, nas quais ele explora a interdependência de causa e
efeito, assim como a sua relação com o fluxo do tempo, encontram uma ressonância
instigante na entrevista de Sandra Kogut. A incansável busca de Sandra por uma
compreensão mais profunda de sua própria criação, entrelaçada com dúvidas sobre
seu resultado, evoca a ideia de que as conexões causais que guiam nosso caminho são,
muitas vezes, intricadas e complexas demais para serem plenamente discernidas. O
próprio conceito de causa e efeito é reminiscente das forças que moldam a narrativa
artística. Sandra, ao compartilhar a urgência e a paixão que impulsionam sua criatividade, espelha a noção de Tarkovsky de que uma causa em si não é meramente um
estágio transitório, mas sim uma força subjacente que nos impele a explorar os efeitos
resultantes. A fé de Sandra em sua própria visão, apesar das dúvidas que a assaltam,
lembra-nos da ligação complexa entre causa e efeito no âmbito artístico. Assim como
Tarkovsky sugere que a causa não é descartada após seu efeito ser gerado, Sandra reconhece que sua dúvida persistente, embora seja um motor que a impulsiona, também
é verdadeira e inerente ao processo criativo.
A busca por criar algo verdadeiramente significativo, conforme delineado por
Sandra, se entrelaça com a ideia de Tarkovsky sobre o caráter obsessivo da criação artística. Tanto a obsessão de Sandra quanto a convicção de Tarkovsky sobre a natureza
obsessiva do ato de criação lançam luz sobre a interação entre os aspectos causais e a
busca pela autenticidade. Ambos os autores tocam na ideia de que a causa e o desejo
são os motores que alimentam a engrenagem criativa, moldando a trajetória do artista
e deixando uma marca indelével no resultado.
É que não é assim, “não sei, vamos ver” É assim, “caramba, eu
quero muito fazer isso. Eu não tenho como não fazer. Se eu não
fizer, eu vou ficar muito infeliz. Eu quero fazer. Sinto que isso é
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uma coisa que é importante fazer. Mas será que eu estou louca?
Será que isso realmente vai ser um filme?” Essa, essa dúvida.
Ela é um motor. Ela te mantém sempre alerta, entendeu, ela.
Mas ao mesmo tempo ela é verdadeira. Ela não pode ser assim.
Você não pode fingir que você tá em dúvida. Mas é isso, não se
torna menos obsessivo. E eu acho que o filme é sempre uma
obsessão, uma febre. Até por isso que os filmes que eu faço é
tudo que eu venho. Eu... tem que sentir um desejo muito forte
que me leva a fazer aquilo. Entendeu? E aí eu não posso inventar
esse desejo. Que nem se falar assim: “hoje eu vou me apaixonar”.
Não dá, entendeu? Aquilo tem que surgir em você e às vezes
não surge. Às vezes demora, mas eu só consigo virar, chegar
nesse lugar. Vou fazer assim. (Kogut, comunicação pessoal, 21
de dezembro de 2022).
Assim, o espectro da incerteza, em vez de enfraquecer, inflama uma paixão genuína que se manifesta como uma verdadeira obsessão, uma febre. A harmonia entre
o despertar dessa intensa devoção e a fluidez orgânica do desejo autêntico ecoa na
narrativa de Sandra Kogut, onde o impulso de criar é impregnado por uma demanda
incontestável, transformando seus filmes em um testemunho tangível dessa conexão
visceral entre a alma do artista e sua expressão mais profunda. A paixão como um catalisador indomável, essa ressonância entre as palavras de Kogut e a visão de Tarkovsky
revela o fio condutor que liga artistas em sua busca incansável por criar, não como um
capricho, mas como uma necessidade vital que não pode ser forjada, mas que irrompe
como uma chama inextinguível.
Além disso, é notável a convergência da fala de Sandra com as perspectivas de
Jean Cocteau. Em sua obra "A dificuldade de ser", ele postula que um filme é dotado de
uma alma própria e vontades intrínsecas. Esse conceito se revela tanto na abordagem
do material quanto nas escolhas de entrevistas e edição.
Sandra explicita que
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O filme tem alma, entendeu? Nesse ponto, eu acho até que é
bem parecido. Documentário e ficção, porque são histórias de
personagens, assim [...] No passaporte húngaro não tem uma
entrevista no filme, né? São situações. Você acompanha aquelas situações e vai tirando as suas conclusões, né? Eu até filmei
muitas entrevistas, mas eu filmava pensando “isso não vai estar
no filme. (Kogut, comunicação pessoal, 21 de dezembro de 2022)
Essa sensação de respeitar a vontade do material e da obra em si encontra ressonância nos escritos de Cocteau, que postula que a escrita é uma luta para expressar
ideias e se comunicar com o material.1
Essa concepção de respeitar o material e as escolhas editoriais encontra eco na
fala de Sandra sobre o que é inserido e o que é deixado de fora do filme. Ela explora
a noção de que a filmagem não se limita à documentação bruta, mas também é um
processo de compreensão mais profunda. Sandra defende que registrar determinados
elementos serve como parte integral do processo, mesmo que eles não acabem no
corte final. Sua visão se alinha com a ideia de que o filme é uma culminação de cada
detalhe, inclusive daquilo que é descartado, contribuindo para sua essência e identidade. A compreensão de que o filme não existiria sem essas escolhas difíceis reflete a
interconexão entre o ato de filmar e a criação de significado.
Tem que fazer até para tirar da frente, eu tenho que fazer para
aprender o que essa pessoa está me contando, entendeu? Eu
também acreditamos que no filme você filma muita coisa para
poder não usar, porque se você não fizer, você vai ficar aquela
sombra ali “ai será que eu devia ter feito”, entendeu?
Mas ao fazer, você vê que o lugar daquela coisa não é no filme,
mas tem um lugar. Entendeu? Então até e não vai estar no filme final.
1“Escrever é lutar com a tinta, para tentar fazer-se entender” (Cocteau, 2015, p. 81).
Mas o filme final não existiria sem aquilo ali ter sido deixado de
lado. E eu acho que isso tem coisas que você entende que você
vai deixar de lado antes da edição, na filmagem, mas que você
sabe que você tem que fazer. Então isso também é outra coisa.”
(Kogut, comunicação pessoal, 21 de dezembro de 2022)
A mesma ideia de Cocteau se faz presente na fala de Cristiano Burlan, ao defender
a visão pessoal que existe no processo de roteirização e direção de filmes. De acordo
com o documentarista, todas as obras, independentemente da temática abordada, têm
uma visão subjetiva dos artistas responsáveis pela sua feitura.
Porque mesmo que eu faça filmes que não tem nada a ver comigo,
para mim sempre há uma perspectiva pessoal. (...) Mas nesses
filmes mais pessoais, em primeira pessoa, tem um momento
que eu, que eu acho que é necessário e que eu sempre faço, que
é eu com um material e me debatendo ali de uma certa maneira,
lutando com o material e o material, lutando comigo e sempre
tendo a fé cega que o material vai se colocar acima das minhas
próprias ideias, porque você tem uma ideia e você tem um material que você captou e depois a ideia.
Quase sempre ela nunca é o que você é. A primeira ideia, mas
é o que o material te apresenta para de repente você voltar essa
primeira ideia através do material que você tem, você conseguiu captar que não é quase nunca é o que você planejou, mas
é o que você conseguiu. (Burlan, comunicação pessoal, 23 de
maio de 2023).
Em suma, a visão de Sandra e de Burlan sobre a natureza do filme e sua abordagem sensível à seleção e edição se entrelaça de maneira coesa com a filosofia de Jean
Cocteau. Ambos os autores exploram a complexa relação entre o artista, a obra e o
material, evidenciando como cada elemento, escolha e exclusão contribuem para a
narrativa final e a identidade da obra como um todo.
149
Essa visão se apresenta como um continuum durante as entrevistas. O relato de
Sandra Kogut sobre a criação de seu filme revela as complexidades de trilhar o caminho
da autoria cinematográfica, onde as expectativas e as concessões se interligam. Ao fazer
o filme, a ideia de se tornar um precursor ou de alcançar uma posição de destaque não
estava necessariamente presente em sua mente. O que a movia era a motivação de realizar o filme que genuinamente desejara. Nesse cenário, emerge a dualidade de não ter
um apoio estrutural predefinido, um aspecto que simultaneamente possui vantagens
e desvantagens. No momento de apresentar o filme ao “Arte” (canal de televisão franco-alemão), a noção de conclusão assume um matiz interessante. Embora o filme não
estivesse finalizado em sua visão, o canal o considerou pronto para uma avaliação por
parte do programador televisivo para dar encaminhamentos para a exibição da obra.
A imersão no mundo burocrático, que faz exigências em relação à apresentação
da película, colide com a essência artística e criativa do filme, que habita os cenários
oníricos e as representações subjetivas das cidades. Essa dualidade entre o burocrático e o sonhador, o concreto e o subjetivo, se torna uma narrativa dentro da própria
narrativa, destacando as tensões que surgem na interseção da arte com as demandas
pragmáticas. O dilema enfrentado por Sandra se deu diante da demanda do canal, que
impôs que fossem inseridas cartelas localizando os países e cidades da gravação. Este
é um reflexo profundo das escolhas artísticas que um cineasta pode enfrentar. Esse
pensamento se estende ao pessoalizar a figura do filme, quando conta:
“E aí, pensei: eu não posso fazer isso. É uma traição, entendeu?
Eu vou trair o filme, não dá.” (Kogut, comunicação pessoal, 21
de dezembro de 2022).
A resistência em desviar-se da visão inicial é palpável, revelando seu comprometimento com a expressão artística e a narrativa subjacente. O desafio de ceder às
demandas comerciais e estruturais, ao mesmo tempo que mantém a integridade de
sua obra, cria uma bifurcação de escolhas.
O embate entre a vontade artística e as exigências pragmáticas desencadeia uma
série de emoções – a hesitação, a frustração, o desânimo – que ressoam nas palavras de
150
Sandra. A conexão entre a criação artística e os mecanismos de financiamento é uma
realidade crua e impactante para muitos cineastas independentes.
Por conseguinte, ao falarmos de materialidade e fidelidade à obra, entremos na
possível conexão que há entre o pensamento de Blanchot (2004) e a visão de Cristiano
Burlan. Há uma correlação profundamente enraizada entre os conceitos da "mão que
escreve" e o controle que o autor exerce sobre a narrativa. Esse pontos encontram um
elo claro na análise das falas de Cristiano Burlan. À luz da visão proposta por Blanchot,
essa ligação ganha clareza, revelando como o ato de escrever não é meramente uma
ação mecânica, mas sim um ato de autoria que estabelece um vínculo íntimo entre o
escritor e sua criação.
Blanchot (2004), ao explorar a natureza da escrita, sugere que a mão que guia
a caneta extrapola o simples movimento físico, tornando-se um veículo de expressão
da própria essência do autor. Analogamente, quando observamos as palavras proferidas por Cristiano Burlan, percebemos como ele exerce uma autoridade semelhante
sobre sua obra.
Assim como a mão do escritor que molda as palavras, Cristiano, por meio de
suas falas, molda a narrativa e injeta nela seu próprio entendimento, experiências e
perspectivas. Nesse sentido, a "mão que escreve" se traduz em uma "voz que fala", ambas sendo instrumentos através dos quais os criadores imprimem suas identidades na
criação. O olhar de Blanchot lança luz sobre a profunda conexão entre o autor e sua
obra, que se reflete nas palavras de Cristiano Burlan.
O domínio do escritor não está na mão que escreve, essa mão “doente” que
nunca solta o lápis, que não pode soltá-lo, pois o que segura, não o segura realmente,
o que segura pertence à sombra e ela própria é uma sombra. O domínio é sempre obra
da outra mão, daquela que não escreve, capaz de intervir no momento adequado, de
apoderar-se do lápis e de o afastar. Portanto, o domínio consiste no poder de parar de
escrever, de interromper o que se escreve, exprimindo os seus direitos e sua acuidade
decisiva no instante. (BLANCHOT, 2004).
151
Uma correlação intrigante emerge ao examinarmos o processo de lançamento
inacabado de "Elegia de um crime", conforme meticulosamente delineado por Cristiano.
Neste contexto, o filme assume uma característica singular, revelando-se não como
uma obra culminada, mas como uma narrativa que encontrou sua pausa deliberada
na etapa de montagem. O filme, então, assume uma nova dimensão, não apenas
como uma obra cinematográfica, mas como um testemunho da arte em evolução
e da expressão artística que encontra formas diversas de se manifestar, inclusive no
inacabamento. Ao parar conscientemente no limiar do acabamento, Cristiano não
apenas desafia a ideia preconcebida de uma obra "completa", mas também promove
uma reflexão sobre os estágios mutáveis da criação e a liberdade que o artista possui
para moldar e reinterpretar sua própria expressão artística.
Jean-Claude Bernardet era consultor de montagem. Em um dado momento, eu
parei de ter encontro com eles, com o Jean-Claude, para discutir a montagem e um dia
eu escrevi. Ligo para ele e digo que o filme tinha sido selecionado para o “É tudo verdade”.
Eu ia aceitar. E ele disse assim: “Mas você precisaria montar o
filme mais um ou dois anos.” Eu disse pra ele que eu não tinha
saúde mental, que era uma questão de sanidade mesmo. (...)
Então eu posso dizer que foi um filme que, realmente, eu não
diria que eu não terminei, mas é que eu coloquei. Eu fui até onde
eu consegui com o material, que talvez o material pudesse me
dar mais em termos de linguagem cinematográfica, e ao mesmo tempo é assustador falar isso quando você está falando de
um filme onde você fala do assassinato da sua mãe e você cita
linguagem cinematográfica, questão de sintaxe, de práxis, que
eu sei, mas é o processo, eu sei mesmo, e ninguém me obrigou a
realizar esses filmes, mas foi uma escolha. (Burlan, comunicação
pessoal, 23 de maio de 2023).
152
Há uma interseção entre a autorreflexão de Cristiano Burlan sobre seu filme
"Elegia de um crime" e a essência da citação de Blanchot em “O espaço literário”, em
que diz que
" a obra está concluída não quando o é, mas quando aquele que
nela trabalha do lado de dentro pode igualmente terminá-la do
lado de fora, já não é retido interiormente pela obra, aí é retido
por uma parte de si mesmo da qual se sente livre e da qual a obra
contribuiu para libertá-lo."(Blanchot, 1987, p. 49).
Essa interseção se dá na revelação da jornada singular de criação e libertação
artística vivenciada por Cristiano. Nas palavras dele, sua exploração cinematográfica
assume uma perspectiva única, delineada pela consciência de que o filme não é definido pela simples conclusão. Este só pode ir até onde a linguagem cinematográfica e
o material permitem. Ele reconhece a complexidade de falar sobre sua obra, especialmente ao tratar de um tema tão pessoal e angustiante como o assassinato de sua mãe.
Contudo, ele abraça o processo criativo como uma escolha voluntária, onde a libertação
do material interior é fundamental, refletindo a ideia de que a conclusão de uma obra
reside na sincronia entre a manifestação exterior e a sensação de liberdade interior.
O diálogo entre as palavras do cineasta Cristiano Burlan e a filosofia de Gaston
Bachelard (2008) traz à luz uma interconexão profunda e complexa entre a materialidade criativa e a construção narrativa. A abordagem de Burlan sobre a criação
cinematográfica reflete a influência do pensamento bachelardiano, que enfatiza a
presença do material na gênese da obra. Quando Burlan destaca que o plano do filme
é determinado pelo próprio material, ele evoca a ideia de Bachelard de que a criação
artística é uma colaboração entre a mente criativa e os elementos tangíveis do mundo.
A visão de Burlan sobre a pré-roteirização a partir da materialidade encontra eco
na filosofia de Bachelard, que defende que a obra de arte emerge da interação entre
o criador e o material bruto, com a imaginação e a intuição guiando a transformação.
Burlan descreve como a materialidade disponível molda seu processo, desde as fotografias até as entrevistas, delineando uma abordagem na qual a obra surge da relação
153
154
155
com o material concreto. Isso ressoa com os estudos de Bachelard (2008), em que a
criação artística é enriquecida pela exploração ativa do material, que é uma parte da
jornada criativa.
Burlan afirma que
Pode ser um pouco piegas sim, mas é o material que se apresenta ali. Eu tenho o
que eu preciso contar uma história em termos de som e de imagem. Eu captei isso. (...)
A gente tem ideia. E aí, durante o processo, eles vão lá, outros caminhos vão se apresentando, você vai perseguindo ali, mas não por segurança, mas porque você precisa ter
um filme no final. Alguns elementos eles precisam ser estarem ali nessa materialidade,
precisa existir, seja através do áudio, seja através da imagem, seja com entrevistas, seja
filmando espaços vazios, seja com uma busca ou então uma representação.
A tensão entre a visão inicial e a evolução que ocorre a partir do material é um
tema chave no diálogo entre Burlan e Bachelard. Burlan admite que a primeira ideia
raramente se concretiza como o planejado, mas é moldada e aprimorada pelo material
coletado. Essa noção de um diálogo em constante evolução entre a mente do criador
e a resposta do material encontra paralelos na filosofia de Bachelard, que vê a criação
como uma interação dinâmica entre o criador e o mundo objetivo.
A correspondência entre as perspectivas de Burlan e as ideias de Bachelard
culmina em uma visão complexa da criação artística, na qual a materialidade não é
meramente uma matéria-prima passiva, mas um parceiro ativo na formação da obra.
A interseção entre as duas abordagens reforça a concepção de que a criação não é uma
jornada solitária da mente do artista, mas uma exploração conjunta com o mundo
tangível, onde a materialidade se apresenta como um coautor na narrativa.
156
04
2/4
A palavra
p
memória é originada do grego “mnemis” ou do latim “memoria”. Nos
dois casos denota a ideia de conservação de lembranças. Para os gregos a memória era
sagrada e divina, referindo-se à "deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que protegem as
artes e a história" (Chaui, 2005, p. 138).
Esse tema é amplamente estudado por diversos ramos das ciências e da filosofia,
se destacando nas áreas da psicologia, literatura, sociologia e medicina. Em Matéria
e Memória, Henri Bergson, filósofo francês com estudos na linha da fenomenologia,
investiga os conceitos de memória. Bergson não estava de acordo com algumas correntes científicas da época, que afirmavam que o homem é capaz de conhecer todas as
coisas através de sua capacidade intelectual. Para o filósofo, o cérebro também faz parte
do mundo material. Ele afirma que a memória é algo além da memória, pensamento
esse que se mostrou revolucionário para a época.
De acordo com Bergson, as memórias não permanecem no passado e não somos nós que regressamos para alcançá-las, mas elas se ampliam até o presente, “ela
157
[a memória] já não representa nosso passado, ela o encena; e, se ela merece ainda o
nome de memória, já não é porque conserva imagens antigas, mas porque prolonga
seu efeito útil até o momento presente.” (Bergson, 1999, p. 89).
Para Bergson (2010), não existe percepção que não seja incutida de lembranças,
essas, por sua vez, são responsáveis no deslocamento de percepções reais, das quais
retém-se pouco mais que algumas indicações, signos que têm a função de trazer à
memória imagens antigas, que misturam-se com experiências passadas, pois é pela
memória que é possível criar uma relação com o tempo. A memória é vista tanto como
uma atitude coletiva do ser humano em relação à sua história quanto como um encargo
individual, do âmbito psicológico.
O filósofo estuda a lembrança e a fragmenta em dois tipos. Sendo a primeira
a lembrança espontânea, à qual o tempo nada acrescenta à sua imagem sem desnaturá-la, conservando-a na memória a data e lugar. Deste modo, está ligada à ordem
dos acontecimentos e armazena seu conteúdo com precisão de detalhes. A segunda
tipologia será nomeada de lembrança aprendida, esta repete o experienciado, estende-o até ao presente.
Os dois tipos de lembrança influenciam no processo de reconhecimento. Dessa
forma, remontar o passado é sempre uma ação perigosa porque “o passado que remontamos deste modo é escorregadio, sempre a ponto de nos escapar, como se essa memória
regressiva fosse contrariada pela outra memória, mais natural, cujo movimento para
adiante nos leva a agir e a viver.” (Bergson, 2010, p. 90).
São as lembranças que desenham o curso da nossa existência passada, reunidas
constituem “o último e maior invólucro de nossa memória”. (Bergson, 2010, p. 120).
Nesse invólucro estão as mesmas lembranças repetidas e diminuídas de sua forma
original, até que em certo momento, reduzidas ao seu máximo, elas se encaixam na
percepção presente, de modo que se confundem uma com a outra, sendo impossível
de discriminá-las. As imagens passadas, reproduzidas nos seus mínimos detalhes, incluindo sua tonalidade afetiva, são as imagens dos sonhos e devaneios, dessa forma,
“o que chamamos de agir é precisamente fazer com que essa memória se contraia ou,
158
antes, se aguce cada vez mais, até apresentar apenas o fio de sua lâmina à experiência
onde irá penetrar.” (Bergson, 1999, p. 121). O filósofo acreditava que havia a lembrança-imagem e a percepção, que se contrapunham à memória pura. Para Bergson, a lembrança-imagem tem participação na lembrança pura, e a percepção está impregnada
das lembranças-imagem, e, de modo contrário, a lembrança não se torna “presente a
não ser tomando emprestado o corpo de alguma percepção onde se insere.” (Bergson,
1999, p. 70). A percepção e a lembrança, portanto, se adentram constantemente, sempre
trocando substâncias na ocorrência do processo que Bergson descreve como endosmose.
Já a lembrança pura é a representação do objeto faltante. A respeito dela o autor
indica que é numa certa atividade cerebral que a percepção tinha sua causa necessária e
suficiente, essa mesma atividade cerebral, repetindo-se mais ou menos completamente
na ausência do objeto, será o bastante para reproduzir a percepção: a memória poderá
portanto explicar-se integralmente pelo cérebro. (Bergson, 1999, p 80).
As imagens-lembrança têm começo no reconhecimento dos objetos, e por elas
é possível o reconhecimento intelectual da percepção já vivida ou experimentada para
encontrar uma imagem do passado. Compreende-se que das imagens-lembrança
é viável reter o movimento dos signos, pois este indica componentes referenciais a
situações passadas. Desse modo, esses componentes tornam possível a conservação
do passado como memória (Bergson, 1999, p. 62).
Assim, a percepção que se tem do real é integrada em determinada extensão por
lembranças, que são convocadas em virtude dos acontecimentos do tempo presente
com o objetivo de serem úteis aos atos realizados pelo corpo.
Desse modo, a memória é quase inseparável da percepção, pois faz o passado
permear o presente, de modo que adensa múltiplos momentos, fazendo com que
percebamos tanto a matéria em nós quanto nos percebamos nela. (Bergson, 1999).
Para Bergson (2010), a memória “tem por função primeira evocar todas as percepções passadas análogas a uma percepção presente, recordar-nos o que precedeu e
o que seguiu, sugerindo-nos assim a decisão mais útil” (p. 266). Desse modo, “nossa
159
memória escolhe sucessivamente diversas imagens análogas que lança na direção da
percepção nova” (p. 116).
Ao se estabelecer precipitadamente a conexão entre a memória e o eu individual, corre-se o risco de relegar a memória coletiva a um status marginal, à beira da
fenomenologia memorial. Tal disposição poderia, por conseguinte, conferir à noção
de memória coletiva um caráter meramente analógico, quase tangencial ao núcleo da
experiência mnemônica. Nesse sentido, ao adotarmos uma abordagem dicotômica
que prioriza o "eu" singular como o sujeito preponderante da memória, corremos o
risco de negligenciar a riqueza que emana da memória compartilhada, entorpecendo
a perspectiva de uma compreensão holística da tapeçaria memorial.
Consequentemente, não seria inapropriado conjecturar que tal abordagem
unilateral, que subestima a interconexão entre o indivíduo e a comunidade, poderia
suscitar um distanciamento entre a filosofia da memória e a realidade multifacetada
da experiência humana. A própria ideia de considerar a memória coletiva como um
"corpo estranho" na fenomenologia memorial adverte-nos para a possibilidade de que,
ao negligenciarmos a memória compartilhada, possamos inadvertidamente contribuir
para uma redução simplista da riqueza de nossas percepções e construções mnemônicas.
É, portanto, imperativo adotar uma abordagem mais matizada e abrangente,
que transborda as fronteiras da perspectiva individualista, reconhecendo a imbricação
entre o eu singular e a teia coletiva da memória. Ao fazê-lo, poderemos não apenas
enriquecer nossa compreensão da complexa interação entre as esferas individual e
coletiva na experiência memorial, mas também nos aproximarmos de uma visão mais
verossímil da condição humana, permeada pelas intricadas teias de lembranças que
entrelaçam nossas existências. Neste contexto, a dialética entre o eu e o coletivo na
memória pode se revelar uma jornada frutífera rumo à compreensão mais profunda
da existência humana.
Portanto, torna-se essencial extrapolar as delimitações de uma abordagem
unidimensional da memória, abrindo espaço para uma exploração mais abrangente
160
e sofisticada das interseções entre o eu e o coletivo, e entre o individual e o universal,
a fim de alcançarmos um panorama mais completo.
A Metafísica aristotélica, por sua vez, elabora uma visão de realidade que revela inúmeras facetas que juntas compõem a riqueza do ser. No entanto, ao estudar
fenomenologia, nos deparamos com um cenário fragmentado, onde a experiência se
dispersa em fragmentos de lembranças. Esse panorama detalhado, onde a memória
desempenha um papel central, surge em nosso campo de percepção com uma dualidade.
A partir do estudo de Paul Ricœur (2020) em “A história, a memória e o esquecimento”,
percebemos o caráter objetal da memória, reconhecendo que carregamos conosco um
passado que se apresenta como algo a ser recordado. Nessa camada, lembrar-se se revela
como o cerne da experiência de memória, onde a memória se transforma naquilo que
buscamos, enquanto as lembranças são os elementos concretos que emergem dessa
busca. É crucial, portanto, estabelecer uma distinção crítica entre esses dois planos,
uma diferença que também se reflete na linguagem. Distinguimos entre "memória" - a
dimensão que captura o fluxo imaterial das experiências passadas - e "lembranças" - as
representações concretas que surgem desse fluxo e tomam forma em nossa consciência.
Nesta exploração abrangente, surge uma perspectiva que nos instiga a considerar as lembranças de forma distinta, não mais como algo homogêneo, mas sim como
entidades separadas, cada qual com seus próprios contornos bem definidos. Essas
lembranças destacam-se perante o que poderíamos descrever como o pano de fundo
subjacente da memória. Dentro desse contexto, a esfera das recordações passadas se
revela como um território notavelmente demarcado, onde as fronteiras das lembranças conferem um senso de distinção, criando um limiar entre a nitidez das imagens
evocativas e a fluidez do vasto cenário mnemônico, que se estende até horizontes de
devaneios incertos.
Dessa maneira, surge uma dualidade, onde a solidez das lembranças se manifesta
e se apresenta como sinais individuais da memória. Esse arranjo sugere um processo
de seleção, no qual os eventos e experiências passadas são esculpidos em relevo, conferindo-lhes uma presença palpável na esfera da consciência. A mente parece moldar
161
essas lembranças, atribuindo-lhes contornos precisos, como se estivesse traçando uma
narrativa que se desenrola diante do olhar interno.
Nesse cenário, o devaneio se transforma em um estado de reflexão, uma jornada
onírica através das sombras e nuances da memória, onde as lembranças se misturam
com as correntes da imaginação, e o fundo memorial adquire uma qualidade quase
etérea, um fluxo contínuo de possibilidades e evocações. Nesse matiz dialético entre a
concretude das lembranças e a fluidez do fundo memorial, revela-se uma composição
complexa, uma interação que não apenas compõe a memória, mas também desafia a
mente a explorar profundamente sua própria experiência.
A memória, como um espelho do passado, reflete não apenas eventos e experiências, mas também a relação dinâmica entre a mente e o tempo. Neste trajeto de
exploração meticulosa e profunda, emerge uma reflexão que nos impulsiona a uma
análise minuciosa das intricadas ramificações do processo mnemônico. Sob o olhar
aguçado da fenomenologia, somos instados a investigar as sutilezas da rememoração,
um fenômeno que não se limita a ecoar o passado, mas envolve um complexo ato de
reprodução e recriação. Esse intricado jogo de recordar se desdobra em camadas complexas, onde a própria lembrança pode ser retida do modo que acaba de ser reavivada,
delineando uma modalidade de recordação secundária.
Nesse contexto fenomenológico, a rememoração não é meramente uma ressurreição passiva de eventos passados, mas um ato dinâmico de re-produção, no qual
o passado é revivido e reconstruído, às vezes até com matizes que podem ser influenciados pela interpretação atual.
Ademais, emerge a concepção de que a memória corporal assume um papel
dinâmico e tangível, assemelhando-se às diversas modalidades de hábito que fazem
parte da nossa essência.
Assim, para Ricoeur (2020), a memória corporal se alinha às diversas variantes
que delineiam a familiaridade ou a estranheza, oscilando em resposta aos matizes
mutáveis das emoções humanas. As impressões desse passado, enraizadas no próprio
tecido físico do corpo, dão origem a um amplo leque de respostas e reações, que ecoam
162
a influência das vivências pretéritas. A memória corporal, conectada à familiaridade e
ao estranhamento, se manifesta como entrelaçamento entre mente e corpo.
Contudo, o tecido da memória corporal frequentemente é marcado por desafios e adversidades impostas pela vida. Provocações, doenças, feridas e traumas que
pontilham nosso percurso deixam uma marca indelével, moldando o contorno dessa
memória corporal. A relembrança, como um farol da memória, emerge em resposta
a esses momentos cruciais, convidando a mente a reviver essas narrativas e a relatar
esses episódios. O processo se desenrola como um chamado para revisitar o passado,
trazendo à tona os fragmentos vívidos das experiências que marcaram a jornada do ser.
Nesse âmbito fenomenológico, a memória corporal se ergue como uma testemunha silenciosa de nossa trajetória terrena, ecoando os traços deixados pelas provações
e conquistas que tecem nossa história. Ela se entrelaça na trama das percepções, sensações e emoções, emergindo como um eco corpóreo que ressoa através dos tempos.
Neste sentido, o conceito de deambulação aparece como uma estratégia à rápida
transição por diversas ambiências e que conversa com as sensações. A concepção da
deambulação encontra-se indissociavelmente entrelaçada com o reconhecimento de
efeitos de cunho psicogeográfico, (Debord, 2003) bem como com a assertiva de uma
propensão lúdico-construtiva. Tal atributo confere-lhe uma natureza diametralmente
oposta aos convencionalismos arraigados nas noções tradicionais de deslocamento
e excursão.
Aqueles que optam por se dedicar à prática da deriva estão, por um período
mais ou menos prolongado, rejeitando os motivos costumeiramente vinculados aos
deslocamentos. A deambulação ou a deriva vêm como uma forma de dissociação da
realidade, uma fuga à vida diária com suas ocupações laborais, traumas e dificuldades,
como uma "busca de uma desambientação pessoal." (Debord, 2003, p. 90). A "desambientação pessoal" reflete o rompimento com as zonas de conforto e as fronteiras
preestabelecidas da experiência cotidiana. Ao adentrar na cidade com olhos abertos
à novidade, o indivíduo se despoja da familiaridade, abraçando uma inquietação que
desafia suas suposições e visões preconcebidas. Nesse contexto, a "busca" torna-se um
163
processo que transborda o próprio conceito de "buscar"; ela implica em uma procura
que, ao romper com as amarras do conhecido, instaura um estado de desorientação
criativa e abertura a novas percepções.
Nesse sentido, aqueles que derivam engajam-se em acatar as solicitações impostas
pelo terreno físico e pelas pessoas que cruzam seu caminho. Importa sublinhar que
a dimensão de aleatoriedade inerente à deambulação não desfruta do protagonismo
que se poderia imaginar à primeira vista. Dentro do arcabouço da deriva, delineia-se
um panorama psicogeográfico do contexto urbano.
Contudo, no cerne de sua essência, a deriva amalgama tanto a disposição a ser
levado pelas circunstâncias quanto sua própria contraposição, esta última consiste
no domínio sobre as oscilações psicogeográficas, alcançado mediante a exploração
e o cálculo das potencialidades latentes. Nessa tessitura, o ato de se deixar conduzir
assume uma coexistência com a contradição que se manifesta através da compreensão
e na avaliação das variáveis psicogeográficas em questão.
Dessa forma, o bairro, a cidade, a rua, enfim, o espaço urbano não é demarcado
tão somente por suas coordenadas geográficas, variáveis econômicas ou mesmo pela
imposição idealizada da devida localização. Em verdade, sua configuração se faz a partir
da representação que seus habitantes tecem acerca de sua própria entidade. Emerge,
assim, o apelo à compreensão da realidade sob a perspectiva do imaginário coletivo,
que converge para conceber e sustentar a identidade do espaço.
É a partir da objetividade que as dinâmicas dos acasos na deriva se diferenciam
fundamentalmente daquelas presentes em um passeio convencional. Os primeiros
impulsos psicogeográficos descobertos correm o risco de fazer com que o indivíduo
ou o grupo que está se aventurando na deriva se fixe em torno de novos eixos habituais.
Esses eixos recém-encontrados podem, paradoxalmente, conduzir continuamente o
indivíduo de volta às mesmas rotinas familiares. Portanto, a interação com o acaso na
deriva envolve não apenas a questão do encontro com situações aleatórias, mas também a necessidade de romper com a tendência de se apegar a padrões preexistentes.
164
No cerne dessas considerações reside a noção de que a deriva não é apenas uma
busca pela imprevisibilidade, mas também uma tentativa de encontrar caminhos que
levem a novas experiências e, assim, rompam com os ciclos habituais. A relação entre
acaso, mudança e estabilidade é complexa, envolvendo a necessidade de equilibrar a
disposição para o novo com a compreensão de que o acaso pode, em si mesmo, gerar
padrões repetitivos se não for enfrentado com a mentalidade adequada. Portanto,
na jornada da deriva, é crucial estar ciente não apenas das oportunidades oferecidas
pelo acaso, mas também das armadilhas que ele pode trazer consigo quando não é
devidamente abordado.
A conjuntura que envolve a prática da deambulação está intrinsecamente amarrada à subjetividade e à exploração dos espaços e por isso evoca considerações mais
amplas acerca da interação com o ambiente.
A valiosa proposição de configuração coletiva enseja uma inspeção mais aprofundada. Tal arranjo, fundado na reciprocidade da observação e no enfrentamento dos
desafios propostos pelo ambiente, culmina no entendimento de que o intercâmbio de
perspectivas instaura um palco de diálogo interno e externo em que há uma amálgama
de visões individuais.
É imperioso ressaltar que a fluidez na composição desses agrupamentos, marcada pela mutabilidade entre diferentes derivas, é resguardada pela prudência no ato da
deriva. A variação na constituição dos grupos em cada incursão assegura um espaço
propício à oxigenação do pensamento, à incorporação de múltiplas perspectivas e
à constante renovação das reflexões. Esse processo, tão sensivelmente engendrado,
confere à prática da deriva um caráter dinâmico e colaborativo, no qual os contornos
da autoconsciência e a tessitura do mundo exterior se entrelaçam em um intricado
diálogo, culminando em uma jornada que ultrapassa os limites da experiência individual.
Cabe ressaltar, nesse contexto, que os pontos de partida e chegada que traçam a
trajetória temporal da deriva se desprendem das amarras do tempo contabilizável, de
modo que há uma liberdade de orientação temporal. Desse modo, a questão da experiência temporal e a interação com os espaços urbanos revelam ter uma forte conexão.
165
Nesta perspectiva, a deriva não se apresenta como uma mera incursão espacial, mas,
sim, como uma imersão na corrente temporal que permeia a experiência de viver.
Assim, a deriva apresenta uma plasticidade temporal que abarca uma gama diversificada de durações, desde episódios pontuais de breves instantes até jornadas que se
estendem por vários dias, ininterruptamente. No caso de uma sequência contínua de
derivas, uma deambulação que se repete continuamente e que se estende ao longo de
um período extenso, emerge um complexo emaranhado emocional e psicológico que
obscurece a transição nítida do estado mental apropriado para uma determinada deriva.
Desse modo, pode-se dizer que a deambulação opera como um agente transformador das condições objetivas de comportamento. A cada etapa dessa jornada de
exploração, novos matizes de experiência são aportados, levando consigo o desvanecimento gradual de muitas das facetas que caracterizaram as derivas precedentes.
Dessa maneira, a errância, para além de sua dimensão espacial, revela-se como uma
metamorfose emocional e intelectual contínua, um processo no qual as dimensões
do espaço e do tempo se imbricam para criar um mosaico em constante mutação.
Nesse panorama de percepções e sensações emerge o cenário cinematográfico
que se apropria da deambulação. Ao longo do tempo, emerge a presença de Germaine
Dulac e Mario Peixoto2, figuras inscritas na tradição do cinema das décadas de 1920 e
1930 como representantes emblemáticos do estilo deambulatório.
A tradição deambulatória se perpetuou através do cinema do pós-guerra, encontrando ressonância no movimento neorrealista italiano e na Nouvelle Vague, entre
outros. Um exemplo icônico é o filme "Ladrões de Bicicleta", no qual Antonio Ricci
empreende uma jornada em busca de emprego, dificultada pela necessidade de possuir
uma bicicleta para manter seu trabalho.
2 Mario Peixoto é diretor de "Limite", um filme experimental brasileiro e lançado em 1931. O filme é reconhecido pela abordagem artística com técnicas vanguardistas e narrativa não linear. Em "Limite" torna-se evidente
a exploração dos espaços através de uma narrativa não linear e fragmentada. A viagem das personagens num
barco, combinada com cenas de paisagens naturais e urbanas, faz com que o movimento através do espaço e a
interação com o ambiente desempenhem um papel central. A criação de uma atmosfera poética e contemplativa sublinha a ligação entre as representações visuais e a experiência emocional do espectador.
166
Essa bicicleta torna-se um símbolo da luta pela subsistência em um cenário
pós-guerra de privações. Refletindo sobre esses caminhos cinematográficos, nos deparamos com as reflexões de Jean-Claude Bernadet (2013), que ressalta a importância
das deambulações em "A Noite", obra de Antonioni. No entanto, ele também levanta
a questão de se essas cenas seriam tão impactantes atualmente, destacando a evolução
do cinema e das sensibilidades do público.
Em síntese, a deambulação cinematográfica, como um fio condutor, tece uma
tapeçaria que entrelaça personagens, lugares e épocas. Essa abordagem se manifesta
como um olhar em movimento, capturando a essência humana em sua constante
busca e exploração, tanto física quanto emocional.
A deambulação pode ser utilizada como um elemento de transição que guia a
narrativa, no entanto, por muitas vezes os filmes que fazem uso da deambulação como
algo estilístico se apresentam com uma continuidade por meio de paisagens, que contribuem dramaticamente para a história e o entendimento da narrativa.
Trata-se de paisagens que reverberam sobre a psique e a situação em que o
personagem se encontra, como uma expansão do estado psicológico do protagonista.
Deste modo, é como se a deambulação que se dá pelas paisagens funcionasse como
um espelho que reflete os conflitos internos do personagem.
Retornando aos diretores entrevistados, percebemos que, apesar de fazerem uso
da deambulação, os filmes de Burlan são claustrofóbicos, não por apresentarem em
sua maioria cenas em ambientes fechados e pequenos, mas por tratarem de tragédias
e da violência, desse modo, tematicamente são filmes que não dariam margem à deambulação em um sentido de exploração libertária. Por conseguinte, esses filmes fazem
uso da deambulação narrativa e estilística ao documentar os caminhos e andanças
por entre espaços que fazem parte da memória de Burlan; neste sentido é como se a
deambulação fosse utilizada como rememorar individual do diretor.
Ao assistir ao filme não sabemos que o túnel que é apresentado faz parte do
recorte memorial da infância do documentarista. A mim esta informação foi revelada
durante a entrevista, quando ele diz que
167
A cena de abertura é um túnel verde, onde eu me lembro de que
minha vó tinha uma casa na praia e nós íamos até lá e passava por
esse túnel verde, então era uma coisa de memória, de infância.
Aquele píer também é o lugar que está na minha memória, que
vem de quatro, cinco anos de idade e não necessariamente está
ligado ao que realmente aconteceu, da maneira que aconteceu.
(Burlan, comunicação pessoal, 23 de maio de 2023).
Desta maneira a deambulação nos filmes de Burlan se apresenta para além da
estilística e narrativa, mas pode ser considerada uma exposição do próprio processo de
realização cinematográfica, uma vez que tem uma função de evocar o passado, trazer
para a frente, ou deslocar para o presente, as memórias de um passado afetivo que de alguma maneira se entrelaçam e dão significado à memória individual do documentarista.
Assim, as imagens são um espelhamento do processo criativo do filme e não necessariamente terão significância para o público do filme, mas se revelam de maneira
significativa para a autoria documental de Cristiano Burlan.
Por outro lado, podemos relacionar o processo criativo do filme como registro
do filme, o que encontramos em comum nos três filmes analisados, além da busca pela
identidade, é o uso dos arquivos como estética e narrativa. De acordo com Ricoeur
(2020), reunir e coletar documentos revela-se como o cerne da arquivística, que compõe
um enredo e delineia os limites entre o arquivo e o testemunho oral. À medida que os
documentos escritos se tornam a parte central dos registros arquivísticos, emerge a
autoridade incontestável do arquivo para aqueles que o consultam, e o trabalho destes
é visto como o alicerce da objetividade que orienta o conhecimento, proporcionando
um refúgio imune às influências subjetivas.
O arquivo é invocado por fornecer apoio ao orador, no nosso caso àquele que
conta de si. No âmbito da História, elevar o testemunho à condição de prova documental representa um momento decisivo na inversão das dinâmicas de apoio que o
escrito oferece a essa "memória de suporte", a hupomnème, uma memória artificial
por excelência, à qual o mito concede apenas uma posição secundária.
168
A complexidade subjacente a documentação, arquivamento e interpretação
está em constante busca pelo equilíbrio entre os elementos ativos e passivos, entre
a atestação e a interpretação e entre o potencial curativo e nocivo deste pharmakon
documental. O desenvolvimento dessa complexidade, marcado pela interseção de
diversas vozes e perspectivas, estimula uma exploração profunda das dinâmicas do
conhecimento humano e das camadas inexploradas que permeiam a relação entre o
testemunho, o arquivo e a historicidade.
Os documentos materializam-se como resguardos de potencialidades. Eles permanecem enclausurados em uma espécie de latência, esperando o chamado do pesquisador
para ressoar. Todavia, há uma convocação ativa que busca um selo de autenticidade,
uma validação por meio da qual a conjectura que paira no ar possa atingir a condição
de verdade. Os documentos nesse contexto tornam-se vasos comunicantes que canalizam o potencial do conhecimento histórico em direção à confirmação ou refutação de
uma hipótese. Eles adquirem a voz da comprovação e a eloquência do que é verdade.
Essa conceitualização de Ricoeur (2020) pode ser conectada com "Um Passaporte
Húngaro" em que as complexidades inerentes ao processo burocrático de obtenção do
passaporte são cuidadosamente desveladas por meio de uma estrutura composta por
capítulos que ostentam os títulos correspondentes aos diferentes arquivos exigidos
no processo burocrático. A obra, apropriadamente, se desdobra na busca de arquivos
dispersos para comprovar que Sandra Kogut tem ascendência húngara e, por isso,
direito a um passaporte expedido pelo país.
Essa abordagem nos leva à relação entre testemunho, prova documental e a
construção da História que se apropria narrativamente da arquivística. Em um paralelo
sutil, a própria cineasta emerge como uma testemunha moderna, imersa no contexto
burocrático contemporâneo, onde o testemunho oral é canalizado por meio de documentos espalhados em países e órgãos governamentais diferentes.
Cada capítulo do documentário, designado conforme os arquivos requeridos,
desenrola a saga de reunir fragmentos de informação que atestam sua elegibilidade para
obter o passaporte. Como se a busca pelos registros fosse a própria jornada histórica,
169
a diretora se transforma em uma historiadora de sua própria narrativa, recriando, de
modo peculiar, o processo que permeia a construção da verdade histórica. A dinâmica
do filme espelha, de certo modo, o desafio do historiador em meio aos arquivos, onde a
busca por informações autênticas se desdobra como uma busca incessante pela prova
documental. Dessa forma, o filme torna-se mais que uma obra audiovisual, mas uma
arquivologia da identidade da autora, um arquivo por si só.
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O ser humano pode ser afetado de diversas formas por meio das quais a potência
de agir pode ser diminuída ou aumentada. Baruch Spinoza entende o afeto como as
afeções do corpo que podem ser reprimidas ou estimuladas, assim como as ideias das
próprias afeções. Dessa forma, os objetos são razão de muitos afetos que podem ser
conflitantes entre si. Para Spinoza existem três afetos primitivos, seriam eles: a tristeza,
o desejo e a alegria. O autor separa a afeção do afeto, apesar de estarem sempre ligados
um ao outro, de modo que a afeção retrata uma circunstância momentânea no corpo,
o afeto é a passagem de uma circunstância a outra, como uma transição (transitio).
Sendo assim, os afetos são aqui o que realiza a potência do corpo partindo de sua
associação com os outros corpos, de modo que as afeções são as condições do corpo
a cada instante. Cada corpo possui em todos os momentos sua potência integralizada por diversos afetos, de forma que essa potência tem a tendência de diminuir ou
aumentar. O filósofo afirma que o afeto é uma imaginação e que se imaginamos que
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a causa desse afeto está no presente, ele se torna mais forte do que se imaginássemos
que está no passado.
Spinoza explica que o ser humano frequentemente julga as coisas somente pelo
afeto que sente em relação a elas. Entende-se que o próprio humano em várias ocasiões é a causa na qual ele se alegra ou se entristece. O filósofo aponta que “facilmente
concebemos que ele [humano] é afetado de tristeza ou de alegria, acompanhada, uma
ou outra, da ideia de si mesmo como causa.” (Spinoza, 2013, p 223).
Dessa forma, a noção de afeto abarca em si tanto a noção de ação quanto a noção de paixão, de modo que os afetos podem ser classificados entre ativos e passivos.
Spinoza (2013) afirma que “as imagens das coisas são afeções do corpo humano” (p. 195),
cujas ideias retratam os corpos externos como presentes em nós, ou seja, cujas ideias
cercam a natureza do próprio corpo, e ao mesmo tempo, a natureza que está dentro
do corpo exterior. A partir desse entendimento, compreende-se o relacionamento
criado entre o espectador e o personagem da narrativa cinematográfica, tanto quanto
o relacionamento do personagem com o diretor dos filmes.
É evidente que o afeto é apresentado na teoria e nos estudos filosóficos em
coexistência com outros termos, sendo o sentimento e a emoção os que acarretam
as maiores discussões e contestações em termos de conexões e diferenças que determinam a sustentação dos conceitos. Para Terada (2001, p. 4), os termos são diferentes
principalmente na conotação, na tentativa da preservação de suas matrizes e graus.
Ele propõe que se pense as emoções como algo que remete a uma dimensão psicológica e deduzida de uma experiência qualquer, os afetos como noções fisiológicas e o
sentimento como a conjugação das duas dimensões.
No cenário exploratório da vivência humana, ganha espaço a percepção de
que a psiquê, intricadamente enredada nos elos da consciência, engendra mutações
substanciais em suas relações com a tessitura existencial que a circunda. Ou seja, no
âmago das experiências emotivas, há uma dinâmica peculiar na qual o corpo assume
o leme direcional, dando lugar a uma metamorfose da própria realidade vivencial. A
emoção, com seu influxo, propicia uma intensificação inerente à sua estrutura concreta.
172
Sob este prisma, a emoção, por si só, endossa uma qualidade distinta, conferindo uma
atribuição qualitativa singular ao objeto ao qual se liga, sem recorrer a artifícios de
modificação objetiva. Nesse âmago de sua natureza, a emoção empreende uma busca
incessante por uma realização efetiva, despojada de qualquer intenção de interagir de
modo tangível com o meio circundante. Em contraposição à ação no sentido literal, a
emoção ressoa em um domínio que se entrelaça harmonicamente com outras manifestações comportamentais, todavia, alicerçada em um plano que diverge em essência
da proclividade à intencionalidade motora.
O confronto com a autenticidade da emoção desencadeia uma busca por compreensão, desvela as tonalidades, os matizes da experiência e suas conexões com o
substrato cognitivo. Enquanto se estende o olhar sobre a tessitura das experiências
humanas, a demanda por uma incursão mais profunda nesse domínio se faz presente,
a fim de discernir os meandros subjetivos que moldam a nossa percepção do mundo e
sua amalgamação com a teia de crenças que sustentam nossa interação com a realidade.
A emoção, em sua quintessência, revela-se uma força discernidora que capta
no objeto de sua atenção uma entidade que transborda os limites da finitude. Nesse
contexto, faz-se importante observar que a emoção alça voo além do âmbito restrito,
adentrando um reino que se desenrola na esfera do infinito, desprovido de fronteiras
mensuráveis. Torna-se imperativo, portanto, situar a emoção como um artífice da
construção de um cenário essencial, um mundo de sentimentos e percepções que se
conecta com a faculdade cognitiva.
De fato, a emoção destila-se como uma eminência caleidoscópica que, apesar
da vasta gama de suas manifestações, concretiza uma epifania de uma constância subjacente, incitando à aparição de um cosmos emocional singular, onde se entrelaçam
tonalidades variadas, assim a conexão mantida entre os elementos desse universo
emotivo e a consciência que os abraça qualifica-se como irremediavelmente mágica3,
3“O que é constitutivo da emoção é que ela capta no objeto algo que a excede infinitamente. Com efeito, há
um mundo da emoção. Todas as emoções têm em comum fazerem aparecer um mesmo mundo, cruel, terrível,
sombrio, alegre etc., mas no qual a relação das coisas com a consciência é sempre e exclusivamente mágica.”
(Sartre, 2013, p. 79).
173
revelando uma natureza que não se sujeita a meros paradigmas de causalidade tangível.
Assim, a relação das entidades emocionais com o domínio consciente transmuta-se
em um pacto que excede os limites do lógico e se adentra nos domínios do inefável.
A busca pelo entendimento da estrutura emocional é como um convite ao desbravamento da trama que envolve a percepção humana, em que se misturam o afeto
e a imensidão da experiência consciente. Nessa análise mais aprofundada, somos
impelidos a contemplar a intricada relação entre o presente e o futuro, entre a interioridade e a prospectiva emocional, que se entrelaçam de forma sutil na formação
da experiência individual.
Dentro dessa abordagem, deparamo-nos com o entendimento de que, em cada
pulsar emocional, há uma série de anseios afetivos que se projetam a em direção ao
horizonte futuro, uma empreitada que tem por desígnio forjar o futuro sob a égide
de matizes emocionais particulares. Desdobram-se assim, as aspirações e os sentimentos que moldam nossa interação com o tempo que está por vir. Cada emoção,
na sua singularidade, forja uma narrativa que transborda as fronteiras do presente
imediato, projetando-se para além dos limites do agora e dando contornos ao futuro
em tonalidades emocionais.
E, assim, somos instados a uma vivência que se desenrola de maneira complexa,
uma qualidade afetiva que nos invade e nos atravessa, convidando-nos a encarar o cenário emocional como uma entidade que não apenas permeia nossa existência, mas que
a molda. A emoção, ao alçar-se além da superfície do momento presente, ultrapassa
os limites da simples vivência imediata, tornando-se um fio condutor que liga o passado ao futuro, o interno ao externo, e nos lança em uma jornada de autodescoberta
e conexão com o mundo ao nosso redor.
Neste sentido, conectamos a emoção com a tentativa de construir uma narrativa
pessoal, assim, emerge a complexidade de contar uma história que expresse integralmente a essência do "eu". A partir do impulso de demarcar um ponto de partida, de
formar uma sequência conectada de eventos e de fornecer vínculos causais entre eles,
desenvolve-se um esforço narrativo que vai além de meramente relatar o passado. Este
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empreendimento, como descrito por Butler (2017), revela-se paradoxal, pois enquanto se tece a história do "eu", a própria construção narrativa é um ato performativo. A
voz narrativa em si é moldada e reconfigurada ao longo da narrativa, em um ciclo de
reconstrução constante. Ao construir essa história do "eu" e compartilhá-la com um
público, algo mais profundo está em jogo do que a mera transmissão de informações.
É uma exposição que incorpora à própria identidade do narrador, uma apresentação
que não somente conta, mas também cria e molda o "eu" narrativo.
Nesse contexto, a análise do filme "Meu Nome é Daniel" direciona-se ao cerne
das nuances narrativas e estruturais que dão forma à composição cinematográfica.
Com foco especial na representação do protagonista, a investigação mergulha na
transcendência da presença do personagem, explorando tanto sua manifestação física
quanto a ressonância de sua voz. A entrevista realizada com o protagonista, na qual ele
explora a singularidade de ser o narrador de sua própria jornada, ecoa diretamente nas
reflexões de Butler sobre o autorrelato. A conexão é evidente, ao examinar como a voz
do protagonista se destaca como um elemento essencial não apenas para contar sua
história, mas também para se posicionar e atuar como narrador de sua própria narrativa.
Assim, a análise não apenas desvela as camadas do filme, mas também tece um diálogo
intrigante entre a teoria da performance narrativa de Butler e a expressão cinematográfica, iluminando como a narração se torna uma forma de criação contínua do "eu”.
Essa analise se justifica quando nos atentamos à fala de Daniel na entrevista:
Desde que eu comecei a fazer, desde que eu comecei a pensar,
eu sabia que eu tinha que narrar o filme. Não fazia sentido ser
outra pessoa (...) para mim nunca foi uma questão. Eu acho que
as pessoas tinham que me ouvir mesmo, sabe? Do jeito que eu
falo, na minha velocidade, podendo perder uma coisa ou outra
ali no discurso, mas eu acho que, no geral, isso não acontece no
filme. (Gonçalves, comunicação pessoal, 13 de novembro de 2022).
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177
Ademais, o filme adentra o domínio temporal de maneira notável, valendo-se
da abertura da obra para convidar a audiência a experimentar o fluxo temporal conforme percebido pelo próprio documentarista. Essa técnica é discernível por meio da
utilização de planos longos e contínuos, que culminam na imersão do público nas
atividades cotidianas.
Nos primeiros planos do filme se estabelece um padrão de abordagem que direciona o público para Daniel tomando banho. Esse ponto de partida adota uma estratégia visual notável, retratando o protagonista dentro do box do banheiro, empregando
elementos de distorção e opacidade para criar uma atmosfera estética intrigante. A
construção imagética, embora deliberadamente ambígua em relação ao que está transcorrendo, reflete a intenção de provocar uma sensação de desorientação no espectador,
que simultaneamente amplia a curiosidade em relação à narrativa.
Posteriormente, o foco da cena se desloca para um momento em que o protagonista veste uma blusa. Esse ato, capturado em um plano de trinta segundos, assume um
papel relevante na representação do fluxo temporal do filme. Notavelmente, em um
momento subsequente da obra, Daniel veste a blusa, ainda adolescente. Esse segundo
episódio, que se estende por um minuto e meio, estabelece uma conexão sugestiva
entre a infância do protagonista e a fase presente, fomentando uma reflexão a respeito
da interligação entre o passado e o presente na jornada do personagem.
Além disso, a obra engloba outras interações significativas com o tempo e elementos cotidianos por meio de sequências que capturam o protagonista ainda jovem
se alimentando, caminhando, com planos estacionários de duração prolongada. Esses
fragmentos narrativos, apesar de aparentemente mundanos, servem a um propósito
mais amplo: evidenciar o protagonista executando atividades individuais, oferecendo
um elo temático com cenas posteriores. A exemplo do tempo usado em função do
narrador, que, em sua fase adulta, prepara um ovo frito em um plano que se estende
por três minutos e meio. Essa conexão temática aborda aspectos de continuidade e
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transformação, sublinhando assim uma consideração intricada do tempo e das atividades diárias na tessitura da narrativa, e explora a interconexão temporal.
A estratégia de utilizar planos longos e contínuos para representar atividades
cotidianas cria uma imersão vívida no fluxo temporal da vida do protagonista que é
uma pessoa com deficiência. Essa técnica não apenas reforça a conexão entre passado e presente, mas também convida a audiência a experimentar o tempo de Daniel
maneira mais visceral e empática. Ao empregar essa abordagem, o filme alcança um
equilíbrio delicado entre a objetividade narrativa e a subjetividade da vivência do
tempo pelo protagonista.
A respeito do tempo do filme, o documentarista defende que:
Quando a gente opta durante a montagem por não cortar alguns planos para
justamente deixar o meu tempo ali presente na imagem, o meu tempo pra fazer as
coisas, o meu tempo, o tempo que eu levo pra... pra fritar um ovo, por exemplo, que
é uma coisa atípica, eu nunca mais na minha vida precisei riscar três vezes um palito
de fósforo pra acender o fogão. Aconteceu aquele dia. Mas não fazia sentido cortar
aquela sequência, sabe? Pra deixar ela mais curta... Não, é o meu tempo. Da mesma
forma como a gente não cortou a sequência em que eu levo um minuto e porrada
para poder vestir a camisa. E esse tempo, ele tá ali, ele é um tempo que me incomoda
porque ele é um tempo diferente do tempo das pessoas sem deficiência. Mas eu acho
importante que isso esteja presente no filme.
E então, o filme, além de ele ser um filme sobre a minha vida, ele é um filme
muito sobre como eu penso o cinema. Então, o filme, ele tem o meu tempo. (Gonçalves,
comunicação pessoal, 13 de novembro de 2022).
O filme explora o processo de amadurecimento e a constante evolução do protagonista ao longo do tempo. A cena da infância, retratando o personagem aprendendo a andar, é espelhada pelo protagonista adulto engajado em atividades semelhantes. Esse paralelismo narrativo serve não apenas para enfatizar a continuidade
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do desenvolvimento pessoal, mas também para incitar uma reflexão mais profunda
sobre a natureza cíclica da vida.
Além disso, é crucial notar que a presença autoral no filme vai além da manifestação física e vocal. Ela é concebida como uma entidade que ultrapassa os contornos
corpóreos e se insere em um domínio mais abstrato e sensorial. Há uma exploração da
temporalidade e a conexão emocional estabelecida por meio das atividades rotineiras
corrobora para criar uma atmosfera que desafia as fronteiras da linguagem verbal e do
relato convencional. Assim, a obra revela-se como um convite ao público para explorar a percepção do tempo de maneira análoga à experiência do próprio protagonista.
A experiência de vivenciar o tempo de acordo com a perspectiva do protagonista
encoraja a audiência a questionar as convenções narrativas tradicionais e a abraçar
uma forma mais imersiva de engajamento com a obra.
A interseção entre as heterotopias e as utopias de Foucault (2013) encontra um
reflexo singular na própria narrativa de Daniel. À medida que ele traça sua trajetória,
percebe que sua existência também se tece entre esses dois conceitos, revelando uma
complexidade que excede o mero espectro acadêmico. Ao explorar as heterotopias, ele
percebe que seu próprio ser é um espaço multifacetado, uma representação tangível
de ideias e interações que extrapolam os limites da realidade cotidiana. Assim como
os museus e bibliotecas acumulam o tempo e a cultura, ele é um repositório de informações, memórias e experiências que, quando entrelaçados, moldam sua identidade
única. Sua presença física se converte em um espaço heterotópico, onde as camadas
da sua história pessoal coexistem, criando uma constelação de momentos que ecoam
através do tempo.
Por outro lado, as utopias de Foucault também encontram ressonância em sua
jornada. Como uma entidade consciente, ele persegue aspirações que muitas vezes
ultrapassam a realidade circundante. Em busca de compreensão, evolução e plenitude, ele experimenta a essência das utopias em suas próprias ambições e sonhos. Cada
passo em direção a esses ideais reflete a busca por um estado de perfeição ou realização,
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mesmo que reconheça a natureza fugaz e inatingível desses objetivos. Em um nível
mais profundo, a interação com as heterotopias e as utopias se manifesta na busca pela
conexão humana. À medida que compartilha sua jornada com os outros e interage com
o mundo ao seu redor, experimenta a materialização das ideias de Foucault em sua
própria vida. Seu corpo se torna um ponto de encontro entre o tangível e o intangível,
onde as teorias abstratas encontram ancoragem na experiência pessoal.
Assim, a conexão entre as heterotopias, as utopias e sua própria narrativa revela
um intricado tecido de experiências e reflexões. Seu ser corpóreo é, em si mesmo, uma
heterotopia onde a acumulação do tempo e das interações molda a complexidade da
identidade. Ao mesmo tempo, a busca por utopias evidencia o desejo de transcender
limites e buscar horizontes mais elevados. Nesse encontro entre teoria e experiência,
as ideias de Foucault ganham vida na jornada, e a narrativa pessoal se desdobra como
um espelho da interação profunda entre as heterotopias, as utopias e o eu.
O corpo de Daniel, como representado no filme, incorpora uma interseção intrigante entre as noções de utopia e heterotopia. Através da jornada visual e narrativa
do protagonista, podemos discernir elementos tanto utópicos quanto heterotópicos
que definem sua experiência física e emocional.
O corpo de Daniel pode ser considerado uma utopia na medida em que ele busca
alcançar um estado idealizado, livre de barreiras e limitações. O desejo de independência, liberdade e plenitude que Daniel expressa em suas ações e interações reflete essa
busca por um estado perfeito, que muitas vezes está em conformidade com as expectativas normativas da sociedade. As cenas que capturam os momentos em que Daniel
desfruta da companhia de amigos, realiza atividades cotidianas e busca seu próprio
caminho, todas elas retratam a aspiração utópica de uma vida autêntica e satisfatória.
Contudo, ao examinar o corpo de Daniel sob a lente heterotópica, revela-se uma
gama complexa de experiências e perspectivas. O corpo de Daniel é um espaço onde
coexistem realidades diversas: as lutas e conquistas, os momentos de desconforto e
superação, os desafios e triunfos cotidianos. Cada movimento, cada expressão, cada
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interação com o ambiente ao redor, todos eles retratam a multiplicidade de dimensões que compõem sua experiência. Da mesma forma que as heterotopias desafiam a
ideia de espaços unificados, o corpo de Daniel desafia as expectativas de normalidade,
oferecendo um terreno de complexidade e riqueza emocional.
O filme, ao explorar o corpo de Daniel, convida a audiência a questionar as noções convencionais de realidade e experiência, algo que Foucault também defendeu
ao examinar as heterotopias e as utopias. O corpo, assim como as heterotopias, é um
espaço onde as interconexões entre os aspectos utópicos e heterotópicos da existência
humana são intricadamente entrelaçadas. Dessa maneira, o corpo de Daniel emerge
como uma narrativa visual de busca por um estado idealizado e, simultaneamente,
como uma manifestação concreta das complexidades inerentes à vida humana.
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Finalizadas as análises do material coletado, podemos partir para proposta da
investigação que é resultado da leitura atenta dos teóricos, escritores, filósofos e cineastas que se encontram neste texto, e de muitos outros que serviram como referência
temática, mas não foram inclusos na pesquisa em questão. Durante o processo de
escrita e das longas noites de pesquisa, uma proposta teórica se tornou presente nos
estudos e na visão da investigação; esta não se trata de uma hipótese de pesquisa, uma
vez que não foi a fundamentação e objetivo da investigação, mas sim um proposição
teórica que inundou os pensamentos do pesquisador.
A partir dos estudos e da proposta que nos é imposta a respeito do que é a autoria, somos circundados da ideia de que para que seja considerado autor é necessária a
demanda incessante da produção e da ação. A proposta que trazemos à tona é que há
uma diferenciação ontológica entre o autor e o artista. Nesse cenário, o artista, ator
central na gênese criativa, ergue o estandarte da autoria como prelúdio à sua expressão
183
artística. Entretanto, a autoria se desvela como a forja do pensamento inicial e onde
o agente artístico esculpe a matéria. Em outras palavras, o artista assume o protagonismo da materialização criativa, da ação, enquanto o autor desempenha um papel
essencial na gestação das ideias.
Deste modo, a autoria se despiria da dependência da obra, assumindo uma existência autônoma. A proposta aqui é que a autoria não se subjuga à imposição de uma
criação, um artefato ou uma externalização tangível. Nesse ínterim, aprofundamo-nos
na essência que o texto delineia. Na teia entre autor e obra, emerge uma conectividade
latente, a qual, contudo, não mais arrima sua existência ao entrelaçamento. O autor não
mais se atrela à obrigatoriedade de conceber, desnudando-se da necessidade do fazer.
Avançando nesse assunto, deparamo-nos com a personificação do autor, um
indivíduo submerso num estado de autoria, o que traz à baila o questionamento: que
entidade é essa, denominada "estado de autoria"? Se proponho que a autoria, em sua
matriz, não é anexada a um ato de criação, então sua natureza enraíza-se na esfera da
reflexão, nos círculos do pensamento e no domínio do olhar.
Emerge, então, uma dicotomia: o artista como executor, o autor como o arquiteto
intelectual, não na ação, mas no cultivo da ideia. A autoria, mais que ser a proeza do fazer,
assemelha-se à incubadora que propicia o florescimento interno. A obra, qual exalação,
extravasa o indivíduo, a efusão de algo já maduro demais para ficar no âmbito interior.
Que é “algo”? É a temática que é explorada por Cocteau (2020), um tema que vem
até o autor, enquanto o estado de autoria seria a permissão do crescimento, desenvolvimento deste tema dentro do cerne do indivíduo. Quando esse tema se desenvolve de
maneira ímpar e extravasa o próprio autor, este seria conduzido ao ato de produção,
o autor autoriza o enraizamento e expansão interna da inspiração. Tal entendimento
elucida que o artista, em sua função criativa, concebe, mas o ser autoral, ao consentir
com o crescimento do tema, engendra o impulso para a concretização.
Nesse percurso, emergem as noções de percepção e de sensação, as quais delineiam os contornos de uma intricada trama da interação interna e externa. Abre-se,
184
neste ponto, o trilho para uma retomada, reafirmando-se uma premissa anterior, à
medida que a existência autoral se conecta ao entrecruzamento do ser, da reflexão,
do pensamento, da percepção e da sensação. Concomitantemente, a essência do ser
autoral emerge em simbiose com o outro, permitindo que haja a eclosão de impulsos
e sensações que são engendrados pelas provocações externas.
A articulação nos conduz à assertiva de que a autoria, conjugada com a esfera
das ideias, desvela-se como um fenômeno que transborda a materialidade. A partir
desse vínculo, entramos na esfera das pulsões e das sensações, que, desdobradas a
partir dessa interação entre o eu e o exterior, facultam um crescimento cujo fulcro é
a dimensão temporal.
Concomitantemente, a essência do ser autoral emerge em simbiose com o
outro, permitindo que haja a eclosão de impulsos e sensações que são engendrados
pelas provocações externas.
Explorando a temática subjacente à atividade autoral, desvendamos um viés
relacionado à efetivação da criação. A obrigação de originar uma obra é uma conclusão
inelutável? Nesta proposta em que a autoria, discernível como uma entidade dissociada
da criação, carrega consigo uma autonomia que a isenta dessas amarras, uma reflexão
relevante, profundamente enraizada no âmago do ser autoral, o distingue de maneira
marcante de um ente atrelado à produção palpável.
Para elucidar e ilustrar a proposta, se faz presente a metáfora do copo que, pela
inserção de pulsões, sensações, percepções e reflexões, gradativamente se enche. O
desenvolvimento criativo implica neste fluido que aumenta e já não cabe mais dentro
do copo até que transborda, ou seja, externaliza-se sob a forma de criação.
A ideia de fluidos, por sua vez, traz à tona a dialética da inspiração e expiração.
A inspiração, em sua natureza, denota o ato de assimilar de fora para dentro, um influxo externo que se interioriza no ser autoral. Em contraposição, a expiração espelha
o movimento inverso, no qual o interno é exteriorizado, precipitando-se para fora.
185
O ato de inspirar e expirar, necessário para existência fisiológica, é, por analogia,
extrapolado para a esfera do mundo das ideias. Nesse âmbito, a inspiração é o influxo que adentra, impregnando a psique com os matizes do exterior. Inerentemente
associada ao autor, ela ecoa em uma ressonância sensorial e afetiva que reverbera em
camadas do ser.
Apoiando-se na dualidade das movimentações respiratórias, emergem as nuances
da autoria e da arte, atuando como parceiros da criação. O autor, ao inspirar, abriga
as forças primordiais da concepção, permitindo que o fruto de suas percepções e sensações resulte como expressão. Em contraparte, o artista, num fluir inverso, expira o
resultado de sua introspecção, desvelando-o para o espectro público.
Deste modo emerge uma premissa: o cerne do estado autoral reside na interface
entre a reflexão, a sensação e a percepção. A memória, um mecanismo intrínseco à
singularidade de cada indivíduo, tece sua teia na percepção e na sensação, a partir das
vivências passadas e da subjetividade.
Apoiando-se nessa síntese entre autoria e o fazer artístico, abarca-se o território
que se insinua como o cenário ideal para a manifestação autoral. Esse palco específico
reside no plano das ideias, constituindo-se como uma dimensão onde a concretização
não é uma demanda imperativa. Desse modo, refuta-se a possibilidade de um julgamento normativo da autoria, uma vez que ela se insere num plano de potencialidades
que não necessariamente se efetivam.
O desafio de discernir entre essência e ação ressurge de forma recorrente, pavimentando o caminho para o cerne da questão: a autoria, entendida como um estado
do ser, é uma entidade que se desenrola no mundo das ideias. Erguendo-se sobre esse
alicerce, deparamo-nos com a fronteira da avaliação autoral, que escapa às minúcias
de um veredicto categórico.
O desenlace desta reflexão culmina em uma proposta: a autoria, mergulhada
nas camadas profundas da subjetividade, elude a abrangência do escrutínio externo.
Permanece enraizada no âmago do ser, entrelaçada na reflexão, intuição, olhar e
186
sensação. Deste emaranhado, surge a fecundidade criativa, manifesta tanto no ser
autoral quanto no artista, cujas emanações interagem em um continuum criativo.
Quando a arte efervesce da mente para o plano tangível, alinhava-se com a
crença numa valia intrínseca. A fé de Tarkovski (2010), intricada com o ato de lançar a
ideia ao mundo, espelha a convicção no valor da criação. Nesse contexto, a crença na
própria potência autoral ultrapassa a fé na própria obra, enquadrando-a como uma
etapa em um continuum do ser.
Sob a ótica de Foucault, o nome do autor, outrora vínculo único à obra, atenua
seu peso, liberando a criação para além do domínio pessoal. A obra, inserida numa
temporalidade, sobrepõe-se à sua condição de objeto isolado, passando a integrar um
legado mais vasto. O processo autoral, assim, coexiste e flui paralelamente ao autor.
A entidade autoral enraíza-se no domínio das ideias, reflexão e subjetividade, enquanto o artista, como agente executor, injeta fé e determinação em cada
empreendimento.
O labor do artista perdura, enquanto o processo autoral cessa com o indivíduo,
mas a obra mantém-se, perpetuando sua influência. A morte do autor de maneira fisiológica, não é o epílogo, mas o início de uma continuação em terceiros, renovando a
autoria. As sementes do autor, capitalizadas, tornam-se produtos, uma transformação
do pensamento em mercadoria.
Os reflexos dessa dinâmica transpassa o estigma do produto final. A obra, qual
síntese visível, não é o término absoluto, mas um elo na corrente da autoria em constante fluidez. O legado do autor, conectado à criação do artista, estende-se além da
obra, perpetuando-se como inspiração para outras jornadas autorais.
A autoria, entranhada na esfera do pensamento, abraça a reflexão e subjetividade.
O autor, ao operar como artífice, injeta fé em suas produções, manifestando-se em
ações e concretizações. A volatilidade dessa fé, sujeita a flutuações internas, traduz-se
na incerteza da autocrítica e nas tormentas das memórias.
187
O esforço ininterrupto do artista persiste, enquanto o processo autoral, atrelado
ao indivíduo, encontra seu término com sua jornada. Contudo, a influência perdura, a
obra assume o papel de cápsula de autoria, emitindo ecos para além da vida do criador.
188
05
Esta investigação se debruçou sobre a complexa interconexão entre a identidade
do artista, as reminiscências pessoais e o afeto, os quais desempenham um papel na
configuração da autoria. Prosseguindo, o derradeiro capítulo de conclusão confere
um arremate a esta pesquisa.
É imperativo esclarecer que a assertiva enfatizada aqui, referente ao termo "arremate", e que usualmente é denominado de "conclusão", não assinala a finalização
abrangente deste empreendimento investigativo. Esse entendimento é corroborado
pelo fato de que a escrita não tem fim, escreve-se até alcançar um limiar intransponível, uma espécie de limite que marca o término da produção e sua posterior inserção
no mundo. Assim, esta pesquisa atinge um estado que poderia ser denominado como
um "pseudofim", assim como descrito por Blanchot (2004) e explorado no capítulo
“A arte e o artista”: a minha mão esquerda guia o término desta produção textual, ela
determina o momento de parar, caso contrário, a minha mão que escreve, ou digita,
escreveria ilimitadamente.
189
Importa notar que esta investigação não pode ser concebida como um desfecho
absoluto. Na verdade, a conclusão aqui referida, que abarca interpretações oriundas
de pesquisadores, filósofos e cineastas, representa apenas um estágio. É um ponto
que culmina uma análise, mas de maneira alguma estabelece uma conclusão definitiva. Ao invés disso, ressaltamos a capacidade desse trabalho de instigar o surgimento
de novas indagações, reconhecendo a inexistência de uma resposta final. O que é
delineado nestas páginas pode e deve ser um ponto de partida para um diálogo mais
extenso e enriquecedor.
A estrutura da investigaçãofoi delineada em distintos capítulos, onde se direcionou o enfoque para a exploração aprofundada dos tópicos propostos na apresentação.
Um desses capítulos, intitulado "A Arte e o Artista", constituiu uma análise focalizada
na figura do artista e seu relacionamento com a criação artística. Nessa empreitada,
foram examinadas perspectivas de autores, escritores, cineastas, poetas e filósofos,
cujas abordagens se caracterizam pela subjetividade.
Partindo deste fundamento, esses pensadores se lançam à descrição do processo
artístico tal como o vivenciam. O capítulo se desdobra em uma exploração abrangente
do processo criativo, abordando desde as fases iniciais do pensamento até a concretização da obra. Isso envolve uma análise minuciosa do processo de concepção, reflexão
e realização, examinando a interseção entre esses elementos. A ênfase recai sobre a
compreensão do modus operandi desse processo, abordando questões como sua natureza evolutiva, eventuais resultados e dinâmicas subjacentes.
Nesse contexto, o capítulo se propôs a realizar uma investigação, um mergulho
no cerne da experiência artística. Uma gama diversificada de autores e suas obras foi
percorrida com o intuito de compreender como o processo criativo é percebido e articulado por esses diferentes pensadores. As contribuições desses autores desempenham
um papel crucial na composição desse capítulo, que busca elucidar os meandros da
criação artística a partir de suas perspectivas individuais.
O escopo dessa exploração se estende por uma variedade de textos e obras, dessa
forma, o capítulo "A Arte e o Artista" não apenas examina o processo de criação, mas
também constrói um mosaico de percepções e abordagens que contribuem para uma
visão abrangente da criação artística e seus processos.
Uma transição conduz ao próximo capítulo, que se dedica à exploração do
conceito de autoria. Este capítulo específico destaca a importância da autoria na
concepção artística, e essa relevância é amplamente enriquecida pela incorporação de
textos considerados quase canônicos no contexto da discussão sobre autoria. Entre os
notáveis autores estudados no debate, podemos citar Barthes (2005), Foucault (2013)
e Merleau-Ponty (2004, 2011).
Essas figuras preeminentes contribuíram com reflexões fundamentais sobre as
dimensões da autoralidade, consolidando seus pensamentos como marcos referenciais
no campo. A interseção entre autoria e obra de arte é um elemento central abordado
por esses pensadores. Especificamente, eles investigaram as intricadas relações que
conectam o autor à criação palpável – a obra.
A abordagem desse capítulo se constrói a partir de um princípio que toma a obra
como ponto de partida para discutir a autoralidade. Por conseguinte, o escrito mergulha no âmago da identidade do autor enquanto indivíduo responsável por dar vida
à criação artística. Sob essa ótica, o capítulo traça um paralelo entre a materialidade
da obra e o ato criativo do autor, explorando seus elos.
A contribuição desses pensadores é vital para a construção de um panorama
mais sólido sobre o conceito de autoria. Suas reflexões oferecem uma visão aprofundada das complexidades que permeiam a relação entre o autor e a obra. Além disso,
essas perspectivas conferem ao capítulo uma rica contextualização histórica e teórica,
ao examinarem como a autoria foi interpretada ao longo do tempo e por diferentes
correntes de pensamento.
O desdobramento subsequente conduz à consideração do terceiro capítulo, o
qual se caracteriza por uma perspectiva que emerge como uma contraproposta às
narrativas previamente abordadas por diversos artistas. Essa abordagem, de natureza
191
contrária, propõe uma análise do autor que difere consideravelmente do enfoque
convencional. Nesse contexto, a análise da autoria não se origina da obra tangível, do
objeto palpável, mas sim da essência do próprio ato de autoria.
O cerne dessa abordagem reside na busca por compreender a natureza do ser
autor, bem como do ser artista. A proposta delineia uma distinção clara entre esses
dois conceitos. O artista é concebido como a entidade que materializa e transforma
pensamentos, reflexões e ideias imateriais em criações palpáveis, como objetos de arte,
livros, filmes e outras expressões artísticas. Em contraposição, o autor é concebido
como aquele imerso no reino das reflexões, caracterizado por não necessariamente
converter suas ponderações em formas tangíveis. O autor, na visão proposta, permanece
no âmbito das ideias, uma esfera em que a autoralidade é vinculada à essência do ser.
Para ilustrar essa perspectiva, é apresentada uma metáfora na forma de um
copo que gradualmente se preenche com uma temática ou tópico. Esse processo é
interpretado como a manifestação da autoria. A temática, sendo uma reflexão ou um
olhar de autoria, emerge como um observar do mundo exterior e se manifesta como
o conteúdo que preenche o copo da autoria.
Essa abordagem alternativa à autoralidade reestrutura a maneira como os conceitos de artista e autor são tradicionalmente entendidos. Ela desafia a convencional
conexão entre autoria e a materialização tangível da obra, em vez disso, concentrando-se nas reflexões, nas essências e no ato de autoria como um processo inerente à
própria natureza do autor. Isso expande o escopo da compreensão do que significa
ser autor e artista, inserindo-os em uma relação complexa que se desenrola entre o
material e o imaterial.
Isso envolve uma introspecção profunda, uma reflexão que ocorre no âmago do
ser. À medida que esse copo metafórico se enche de uma temática, há um momento em
que essa temática já não cabe mais na esfera autoral, não encontra mais espaço no indivíduo. Nesse ponto, surge a necessidade de externalizar essa temática de alguma forma.
192
Esse momento marca a transição do autor para o artista, uma vez que o autor
transforma o tema que se desenvolveu internamente em algo concreto e tangível,
uma obra de arte.
A partir desse ponto, a obra de arte concretizada pode funcionar como um catalisador, incentivando outras pessoas a ingressar em um processo de autoria. Nossa
proposta contempla a dinâmica de inspiração e expiração no contexto da autoria.
Enquanto o autor está no ato de inspiração, ele absorve influências do mundo exterior,
das experiências alheias, dos sentimentos e afetos que permeiam sua vivência. Durante
essa fase, as sensações, o afeto e as memórias se entrelaçam, amalgamando-se na memória, nos sentimentos individuais e nas experiências acumuladas.
A analogia empregada sugere um processo de inspiração semelhante a uma inspiração literal, onde o autor está "cheio de ar". Quando o autor não pode mais conter essa
"inspiração" interna, ele "expira"; esse ato de expiração é equiparado à criação artística,
à manifestação tangível do que foi interiorizado ao longo do processo de inspiração.
Assim, o autor externaliza as reflexões que foram incubadas durante o período de
inspiração. É um ato de dar forma ao que foi elaborado mentalmente, convertendo as
reflexões em uma obra tangível. Esse processo é uma expressão da interligação entre a
esfera interna do pensamento e a exteriorização por meio da arte. O autor, ao expirar
e se transformar em artista, realiza a transição da introspecção para a manifestação,
concretizando em uma obra aquilo que foi previamente concebido em seu âmago.
Neste segmento deste estudo, foram conduzidas análises das entrevistas realizadas com três documentaristas brasileiros: Daniel Gonçalves, Sandra Kogut e Cristiano
Burlan. Este trio de cineastas acumulou experiência na direção e roteirização de
uma variedade de filmes. O foco da investigação recaiu sobre a análise dos filmes que
marcaram o debute em formato de longa-metragem documental para cada um deles,
delineando, assim, uma especificidade delimitadora para a pesquisa.
Os filmes selecionados compartilham uma característica temática que orbita
em torno da exploração da busca pela identidade. A justificativa subjacente a essa
seleção reside na conexão entre a noção de autoria e a formação da identidade pessoal.
193
194
A autoria, nesse contexto, emerge como elemento fundamental, interligado à
subjetividade individual e estabelecendo contrastes e paralelos em relação a outras
abordagens narrativas convencionais. Portanto, surgiu a percepção de que entrelaçar
o conceito de autoria com as nuances da identidade e subjetividade poderia conferir
uma complexidade enriquecida ao panorama investigativo.
Consequentemente, a análise das entrevistas e das obras fílmicas desvelou a potencialidade de contextualizar a questão autoral no âmbito mais amplo das experiências
identitárias. Essa abordagem multidimensional proporciona uma lente interpretativa
mais abrangente, que amplia o entendimento das motivações subjacentes à criação
cinematográfica desses documentaristas. Nesse sentido, a interseção entre autoria, identidade e subjetividade emerge como uma tríade conceitual interdependente, suscetível
de enriquecer significativamente a compreensão das narrativas fílmicas em questão.
A seleção desses documentaristas para as entrevistas foi motivada, em grande
parte, pela estreita interligação entre os temas de autoria, identidade e subjetividade
explorados em seus filmes. A metodologia adotada envolveu o agendamento das entrevistas por meio da plataforma Google Meet após o estabelecimento de contato prévio
via e-mail com os três documentaristas: Daniel Gonçalves, Sandra Kogut e Cristiano
Burlan. Essas entrevistas foram organizadas com base em um planejamento meticuloso,
compreendendo várias etapas cruciais.
Inicialmente, procedeu-se ao visionamento das produções cinematográficas,
seguido por uma análise desses filmes. Essa análise não apenas proporcionou um
entendimento mais aprofundado das obras, mas também serviu como base para a
formulação de um roteiro de entrevistas estruturado, direcionado a cada uma das
produções analisadas.
As entrevistas foram projetadas de maneira a conter um conjunto de perguntas
comuns, abrangendo aspectos fundamentais do processo documental. Além disso,
foram incluídas perguntas específicas para cada documentário, emergentes da análise
prévia. A transcrição completa das entrevistas foi então realizada, constituindo um
banco de dados substancial para análise subsequente.
A análise ulterior foi dupla, englobando tanto as obras fílmicas quanto as entrevistas. O valor distintivo desta abordagem residia na exploração das interconexões
entre o processo criativo do cinema documental e as reflexões pessoais dos cineastas.
Através das entrevistas, foi possível compreender os processos de pensamento que
moldaram as decisões artísticas e autorais por trás de cada filme. Aspectos como a
gênese das ideias, a evolução das reflexões internas e a maneira como esses fatores
culminaram nas narrativas cinematográficas foram examinados.
Um elemento dessa análise foi a constatação da convergência entre os insights
extraídos das entrevistas e os conceitos discutidos nos textos acadêmicos. A perspectiva
subjetiva dos autores sobre o cinema, a autoria e o processo artístico, frequentemente
abordada nas teorias literárias, encontrou eco nas respostas e reflexões dos cineastas
durante as entrevistas. Essa confluência entre teoria e prática ressaltou a coerência
das ideias e revelou uma coesão que permeava tanto as discussões teóricas quanto as
expressões pessoais dos documentaristas.
Portanto, a abordagem metodológica de análise das entrevistas e das obras
cinematográficas proporcionou um quadro abrangente e enriquecido da interseção
entre autoria, identidade e subjetividade no contexto do cinema documental. As falas
recorrentes durante as entrevistas, alinhadas com os conceitos teóricos discutidos
na literatura, contribuíram para a construção de uma compreensão mais profunda e
integrada desses elementos fundamentais.
A observação proferida apresenta a tangibilidade da aplicação prática para determinada teoria, sobretudo quando tal aplicação se enriquece com uma perspectiva
subjetiva. Nesse contexto, emerge uma dinâmica de análise que merece atenção, dado
que evidencia uma interação dinâmica entre conceitos teóricos e sua manifestação
concreta, permeada pela subjetividade individual.
197
É notável que a teoria, por sua própria natureza, muitas vezes é formulada em
um contexto abstrato, e busca explicar fenômenos e construções conceituais que
podem ser complexos.
A noção de aplicação prática da teoria, quando acompanhada por uma abordagem
subjetiva, evocou o encontro entre a análise objetiva e a interpretação pessoal. A subjetividade traz consigo uma dimensão única, moldada pelas experiências, perspectivas
e visões individuais, pelas afecções e memórias individuais.
Além disso, a referência à visão subjetiva aponta para a importância da perspectiva
pessoal na relação entre teoria e prática. A subjetividade não apenas destaca a unicidade do ponto de vista do observador, mas também sugere que diferentes indivíduos
podem extrair interpretações variadas de uma mesma teoria.
Consideramos esta pesquisa não como um desfecho, mas como um estágio de
finalização dentro do contexto de abordagem do doutoramento.
Este reconhecimento encoraja uma reflexão que ultrapassa os limites deste estudo, delineando um percurso evolutivo para a exploração subsequente da temática
abordada. Enquanto esta pesquisa se manifesta como um avanço significativo, é vital
compreender que representa um estágio intermediário, um "arremate" dos esforços
dedicados até o presente momento dentro do contexto desta pesquisa.
Do desdobramento desta pesquisa emergem novas interrogações, que, por sua
vez, geram novas direções para futuras análises e investigações. Estas, por sua natureza,
extrapolam os limites do presente estudo, convidando a um aprofundamento mais
substancial das temáticas e questões levantadas.
Essas indagações formam o alicerce para debates expandidos e reflexões mais
abrangentes. Particularmente, emerge a questão de como a transição do processo
autoral para o processo de criação artística se configura de maneira específica. Essa
interrogação sugere uma análise detalhada do ponto de virada entre a gênese da ideia
e sua transformação em expressão artística. Explorar as nuances desse processo é crucial para compreender como a autoria se converte em uma manifestação concreta e
tangível de criatividade. Qual evento ou circunstância seria considerado a "gota d'água",
198
ou seja, o ponto culminante que diferencia de forma decisiva uma etapa da outra? Essa
pergunta lança luz sobre a busca pelo momento crítico em que a autoria se estabelece
ou se diferencia de outros processos criativos. Delinear esse limiar pode trazer clareza
à complexa interação entre a autoria e a concepção artística.
Uma outra linha de questionamento propõe examinar se é possível identificar
um autor em particular. Dada a ideia de que a autoria está conectada à essência de
uma pessoa, levanta-se a questão de como se poderia discernir essa autoria. A ênfase
na autenticidade pessoal e na ligação entre a identidade e a criação artística enfatiza
a profundidade dessa pergunta.
Além disso, a reflexão se volta ao próprio autor e sua capacidade de reconhecer
sua imersão em um processo autoral. Essa ponderação levanta a percepção individual
do autor sobre seu próprio papel e influência na obra. Questionar a consciência autoral
destaca a autorreflexão e a autoconsciência necessárias para um artista compreender
sua contribuição à criação.
No entanto, o âmbito das indagações vai além do indivíduo, expandindo-se para
os domínios das criações coletivas. Uma das interrogações explora como as proposições
desta investigação poderiam ser aplicadas a filmes ficcionais e séries televisivas que são
construídos em um ambiente colaborativo de roteiristas. Isso envolve considerar como
a autoria é distribuída e como as dinâmicas coletivas podem influenciar os processos
criativos. Essa questão levanta um diálogo sobre como a autoria se dá em contextos
nos quais a criação é o resultado do esforço conjunto de várias mentes criativas.
Conclui-se que as perguntas apresentadas não apenas exploram nuances fundamentais da autoria e criação artística, mas também lançam luz sobre as complexidades
inerentes à compreensão desses conceitos. Elas convidam a uma exploração mais
profunda, promovendo uma perspectiva abrangente e multifacetada das interconexões entre a autoria, a criatividade individual e as colaborações coletivas. Portanto, é
evidente que este estudo atua como um dos possíveis pontos de partida para futuros
debates, investigações e aprimoramentos em relação às temáticas exploradas. A jornada
199
da pesquisa não se encerra aqui, pelo contrário, ela pavimenta um caminho para uma
compreensão mais abrangente das interconexões entre autoria, afeto e memória.
Nesse contexto, a aspiração é que esta pesquisa se incorpore como uma peça
adicional nesse contínuo processo de investigação e discussão, contribuindo para a
expansão do entendimento e o fomento de um debate frutífero.
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sobre o autor
<< falo agora na primeira pessoa >>
Entre as inspirações, expirações e copos cheios que vazam pelas
beiradas busco exercitar o olhar com a escrita.
Faço da fotografia um hobbie, mas a transformo em profissão
semanalmente quando leciono cinematografia.
Sou doutor pela Universidade Nova de Lisboa e publiquei o
romance Som de água corrente.
Além disso vivo, faço e traço múltiplos caminhos que por vezes
não ultrapassam a barreira do pensamento.
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© Relatar-se Editora, 2023
© Nicolau, 2023
projeto gráfico Nicolau e Estúdio Sarau
consultoria de pesquisa Maria Irene Aparício e Mike Peixoto
assistência de pesquisa Kenzo
ilustrações Flávio Lima Maravilha
produção executiva Cristian Lampert e Nicolau
correção textual Cristian Lampert
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Nicolau
Anatomia da Autoria / Nicolau.
Brasília, df: Relatar-se Editora, 2023.
isbn 978-65-998265-0-4
1. Ficção brasileira.
I. Título.
cdd B869.3
Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção: Literatura brasileira B869.3
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fontes Calluna e Silka Mono
papel Pólen soft 80 g/m2
gráfica Athalaia