Perguntas Para entrevista com Mércio Gomes, presidente da Funai – ISA em 4 de
agosto de 2006 – para publicar no livro Povos Indígenas no Brasil 2001 - 2005
Bloco 1 – Estrutura da Funai
Excluindo o período da ditadura militar, vc é o presidente da Funai que mais permaneceu
no cargo (set de 2003 até o momento). Qual foi sua estratégia para se manter? Como vc
encontrou a FUNAI quando assumiu? Qual a avaliação q vc faz da FUNAI hoje?
Respostas:
Em primeiro lugar, ser presidente da Funai já é uma glória. Sê-lo por tanto tempo
tem sido um feito de que muito me orgulho. Quero dizer que pretendo ficar na Funai
até o fim deste mandato do governo Lula, salvo alguma circunstância especial, e
passar o cargo com toda a dignidade para a próxima pessoa que o Presidente da
República escolher. Pode ser um índio ou um não índio, ele é que decidirá. O fato é
que tantas outras figuras ilustres que por aqui passaram terminaram saindo
amarguradas por não vencer as vicissitudes inerentes ao cargo e as dificuldades
inesperadas que sempre aparecem. Uma a cada dia. Até pensei em fazer um
seminário com os ex-presidentes da Funai para discutirmos nossas gestões,
avaliarmos as grandes questões que enfrentamos e os erros e acertos que
cometemos. Talvez consiga fazer isto até o fim do ano, ou em algum tempo no
futuro, se é que todos eles topariam. Eu topo.
Sob diversos aspectos, foi muita sorte minha ter vencido os primeiros obstáculos à
minha gestão. Havia resistência de algumas pessoas importantes dentro do
governo e houve até uma reação bastante negativa por parte de segmentos do
movimento indígena e de ongs brasileiras e internacionais. Eles queriam porque
queriam que o Presidente Lula nomeasse naquele momento um índio presidente da
Funai, em meio ao caos que atingia a Funai e o movimento indigenista, após a
desastrosa passagem do presidente anterior. Me lembro de ter conversado com
alguns amigos, inclusive o Beto Ricardo, do ISA, sobre isso até antes de tomar
posse. Muitos antropólogos e indigenistas me deram muita força, sempre com a
cautela exigida e com um certo temor de que talvez a coisa não desse certo.
Alguns, é claro, apostaram contra. O Ministro da Justiça, Dr. Márcio Thomaz
Bastos, que não me conhecia anteriormente, me fez o convite com não mais do que
30 minutos de conversa séria e profunda sobre o que eu achava da questão
indígena brasileira e da conjuntura de então. Daí por diante sempre me apoiou em
todas as batalhas de ordem política que travei. Ele e toda sua equipe. O Presidente
Lula, que também não me conhecia, demonstrou desde o início -- que coincidiu
com a estratégia que o Ministro Márcio montou para a homologação da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol -- muita confiança no meu trabalho, na minha
dedicação à causa indígena e na minha lealdade a ele e ao seu governo.
Por outro lado, era preciso ganhar a confiança dos índios e dos funcionários da
Funai. Aí é que entraram meu conhecimento de antropólogo, minha experiência em
indigenismo, meu conhecimento participativo do movimento indigenista e das ongs
e minha expectativa do movimento indígena, meus mais de 30 meses de campo
direto com diversos povos indígenas do Brasil, minha visão da importância da
Funai para os povos indígenas. Minha visão estratégica já estava delineada nos
dois livros que escrevi sobre índios e etnologia brasileira, Os Índios e o Brasil e O
Índio na História, ambos publicados pela Vozes. Ao longo desses três anos minha
visão da questão indígena brasileira se ampliou consideravelmente, já que, da
cadeira de presidente da Funai, a situação indígena brasileira aparece com
dimensões muito mais intensas e realísticas. Em uma única palavra, o que me
segura como presidente da Funai é ter lealdade ao índio e à causa indígena.
Por sua vez, uma visão estratégica só funciona se corresponde a uma realidade
apreendida e a um objetivo a ser atingido. A realidade é esta que estava em
setembro de 2003, incluindo a negatividade sensacionalista da imprensa e a
agressividade dos políticos contrários aos índios, que foi se modificando aos
poucos pelo peso dos acontecimentos e da nossa atuação. Ao final, meu objetivo
principal, que acho que corresponde á visão global de todos os povos indígenas no
mundo moderno, é a redenção dos povos indígenas diante da história. No caso
brasileiro, isto significa a recomposição dos territórios indígenas, o crescimento
demográfico, a ampliação do seu conhecimento do mundo moderno, sua autonomia
econômica, a participação efetiva na vida político-cultural brasileira, enfim, a sua
auto-determinação. Noto com alegria que esse pensamento é partilhado por quase
todos os povos indígenas do mundo, especialmente por suas lideranças. Estive
com muitos deles em reuniões pelo mundo afora, especialmente em Genebra, onde
desde 1994 se tentava encontrar um consenso entre nações-estados e os povos
indígenas sobre a idéia de se ter uma Declaração Universal dos Direitos dos Povos
Indígenas. Nesses anos estive seis vezes em Genebra e algumas em Nova Iorque,
Washington, México e Guatemala batalhando por essa Declaração e pela sua similar
a ser feita exclusivamente para os povos indígenas das Américas. Ao final, em fins
de maio deste ano, o recém-criado Conselho de Direitos Humanos, órgão da ONU
sediado em Genebra, com voto do Brasil, que liderava o grupo latino-americano,
aprovou o rascunho desta Declaração, o qual será enviado à Assembléia Geral da
ONU agora em outubro para votação final. Este talvez seja o maior feito desses
últimos anos para os povos indígenas do mundo inteiro e será a base dessa
redenção a que aludo. Assim entendem todos os que trabalharam pela elaboração
dessa Declaração, e é preciso que isso seja conhecido por todos os índios
brasileiros e também pelos que acreditam no papel dos índios na nação brasileira.
Ao terminar este mandato creio que deixarei uma Funai mais segura de si, mais
consciente do seu papel. Tenho lutado muito para obter um plano de carreira
indigenista, todo o governo é a favor, mas há algo incompreensível que esbarra no
Ministério do Planejamento. É preciso que em prosseguimento haja um concurso
público para aumentar e renovar os quadros do órgão. Como vocês sabem, a Funai
é formada por índios e não índios. São pouco mais de 2.000 funcionários, entre os
quais pouco mais de 700 indígenas, para um universo de 225 povos indígenas,
460.000 e tantos indivíduos, mais de 600 terras indígenas, enfim, 13,5% do território
nacional. Não é pouca coisa a ser cuidada. Acredito que sem a Funai a questão
indígena brasileira virará um caos. Ela é quem dá aos índios a segurança da
presença do Estado diante de todas as forças que lhes são contrárias. Nenhum
ministério, nenhum outro órgão tem tanta importância para os índios quanto a
Funai. É preciso que se respeite isso. Tem gente que acha que, dada a amplitude da
ação do Estado em relação aos povos indígenas, a Funai virou um órgão caduco.
Nem sei como responder a isso, pela ingenuidade da idéia e pela falta de
conhecimento histórico. [Até nos Estados Unidos cujos povos indígenas têm
grande poder de auto-determinação, continua a existir o Bureau of Indian Affairs,
criado desde 1823. É verdade que muitos povos indígenas americanos prescindem
do órgão, porque recebem assistência de outros órgãos federais, estaduais e
municipais, além dos recursos de cassinos, mas a grande maioria dos índios de lá
não quer acabar com o BIA. Os antropólogos concordam com isso. O Canadá e a
Austrália, que abrigam porcentagens significativas de sua população como
indígenas, também mantêm órgãos centralizadores da questão indígena. O México,
neste governo Fox, extinguiu o INI, órgão equivalente à Funai, para criar uma
espécie de secretaria de desenvolvimento dos povos indígenas. A idéia era se livrar
dos indigenistas tradicionais do México e acelerar o processo de integração do
índio à sociedade mexicana. Está dando com os burros n’água. Nem sei como vai
se recuperar no futuro.] Outros países, como Colômbia, Peru, Chile, Venezuela,
Paraguai, até a Argentina, têm órgãos indigenistas e gostariam que eles fossem um
pouco como a Funai e que seus países tivessem o espírito indigenista que tem o
Brasil. A Venezuela convidou a Funai recentemente para explicar como se
demarcam as terras indígenas no Brasil, já que eles estavam tendo muitas
dificuldades em começar... Só alguns dos nossos insignes antropólogos não
reconhecem isso...
Entretanto, concordo com aqueles que dizem que a Funai tem que ser melhorada e
reestruturada. Como, é que a questáo. As idéias são muitas e o besteirol é grande.
Tenho conversado com alguns antropólogos, indigenistas e índios sobre esse
assunto e gostaria muito de deixar algumas idéias para serem implementadas no
próximo governo. Preliminarmente, pretendo organizar um seminário para avaliar a
atuação da Funai junto aos povos indígenas que foram contatados desde que foi
criada, isto é, por volta de meados da década de 1960 em diante. Criei recentemente
uma coordenação geral de índios recém-contatados para iniciar seus trabalhos com
esse objetivo. Vou convidar todos os antropólogos, indigenistas e funcionários da
Casa que trabalharam com esses povos indígenas. Junto aos próprios indígenas
que participaram do contato e dos primeiros anos de relacionamento, vamos fazer
uma avaliação do que aconteceu com esse contato. Precisamos saber como foi o
contato, quais os grandes problemas surgidos e enfrentados, o que aconteceu de
negativo ou positivo em termos de demografia, saúde, terra, relacionamento com a
sociedade nacional, conhecimento do mundo, situação atual. Assim teremos um
diagnóstico básico do que foi a Funai e a política indigenista brasileira como um
todo em relação a esses povos. Sobre os demais povos indígenas, a avaliação tem
que ser feita por um outro prisma, mas creio que não terei tempo para isto. Deixo
para o próximo presidente dar impulso a essa avaliação e encontrar novos
caminhos.
No início da sua gestão houve rumores que diziam que a Funai seria reestruturada. Essa
reforma envolvia a substituição da carreira de sertanista pela de ‘negociador indígenista’,
a atribuição de poder de polícia aos servidores e a criação de uma corregedoria. Como
era esse projeto de reestruturação, o que foi implementado e quais os problemas que
impediram que ele fosse executado na íntegra?
Rumores houve, mas nem com o Ministro Márcio, nem com ninguém do governo
essa idéia de reestruturação foi discutida. “Negociador indigenista” é uma idéia que
jamais passou pela minha cabeça e é a primeira vez que a escuto. A idéia de uma
corregedoria nunca foi discutida, mas a de uma ouvidoria foi analisada e acho que é
importante. Contudo, a coordenação geral de defesa dos direitos indígenas cumpre
um papel equivalente e é dirigida por um hábil e seguro representante do povo
Guarani. Ela é que tem feito a defesa de diversas situações antagônicas aos índios,
seja como indivíduos, seja como coletividades. Foi ela que coordenou a
Conferência Nacional dos Povos Indígenas, realizada na Semana do Índio deste
ano, e que foi precedida por nove conferências regionais.
A Funai está tentando recuperar o atendimento à saúde indígena. Nos anos anteriores
essa experiência não atingiu bons resultados. Por que essa iniciativa? Caso isso ocorra, o
que vai ser feito para que os mesmo erros não sejam cometidos ? O que a Funai pensa
fazer para efetivamente conter a corrupção e a ineficiência que sempre foram marcas do
atendimento à saúde indígena?
Até fins da década de 1990 a saúde indígena estava a cargo da Funai. Foi a partir de
1970 que os povos indígenas começaram a reverter a curva demográfica
decrescente que havia desde 1500. Já escrevi sobre isto mostrando que não se
pode dizer que foi uma ação do Estado brasileiro, da Funai em si, já que esta é uma
tendência que aconteceu em quase todas as partes do mundo. Mas o fato é que a
Funai contribuiu para diminuir a queda populacional indígena e acelerar o seu
crescimento demográfico. A partir da década de 1980 até os povos indígenas
recém-contatados passaram a crescer. Tudo isso é extraordinário, algo impensável
anteriormente. Até Lévi-Strauss, o grande antropólogo dos últimos cinqüenta anos,
pensava que os povos indígenas fossem se extinguir! Portanto, temos que
comemorar o crescimento dos povos indígenas.
Mas saúde significa uma série de aspectos além de taxa de mortalidade infantil, de
morbidade, vacinações, saneamento básico e atendimento de vários níveis.
Significa também bem estar físico geral, o que implica dieta adequada, condições
ambientais, tranqüilidade social, etc. Nisso o Estado brasileiro está longe de
providenciar para os povos indígenas. É uma luta imensa de todos aqueles que
entendem de saúde encontrar as melhores condições para atender aos povos
indígenas e aos brasileiros em geral.
Digo que a Funai tem condições indigenistas de supervisionar melhor a saúde
indígena do que a própria Funasa, tomando-se em conta esse conceito mais amplo
de saúde. Gostaria de influenciar o governo para mudar o decreto que retirou da
Funai a questão da saúde, mas não sei se vou conseguir. A Funasa poderia manter
suas bases de atendimento mas deveria estar junto com a Funai e organizar-se
estrategicamente junto com a Funai. Este é o sentido das mudanças na saúde que
acho importante.
Quanto à corrupção, não parece ter existido no tempo da Funai e nem sei bem
quais as suas dimensões maiores na atualidade. Muitos acham que o processo de
terceirização do atendimento via prefeituras, ongs e associações indígenas
provocou muito desperdício de recursos, se não desvios e corrupção. Acho que o
TCU está avaliando esse processo, mas não sei como vão modificá-lo em curto
prazo. O certo é que a Funasa é mais acessível a influências políticas do que a
Funai, que se mantém imune a indicações políticas.
Você tem comentado sobre o “re-surgimento da figura do mameluco”, como uma alusão
aos índios que acabaram assumindo, no passado, uma posição de “explorador” sobre seu
próprio povo, atribuindo as ONGs uma responsabilidade maior sobre este processo.
Como se dá realmente esse processo e por que a FUNAI, com seu imenso número de
funcionários índios, muitas vezes despreparados para o cargo que ocupam, é poupada
como principal responsável nesta sua tese.
O mameluco foi uma figura fundamental na formação do Brasil, muito maior do que
nossa historiografia tem reconhecido até agora. Ele vai além do período colonial e
passa por grande parte de nossa história. De certo modo, mais do que uma figura
histórica, é uma entidade, uma instituição. Como é que um punhado de portugueses
submeteu uma população vasta e diversificada ao seu domínio, expulsou outros
estrangeiros que com eles rivalizavam e tornou-se hegemônica no poder em pouco
mais de 150 anos se não fosse também pelo papel dos intermediários? Não há
novidade nisso, todos os povos conquistadores usaram de intermediários para
efetivar a conquista de novos territórios e povos. No Brasil o mameluco ajudou os
portugueses a conquistar novos territórios e a expandir suas pretensões originais.
Para o bem ou para o mal, eis o que somos no presente. Na literatura antropológica
o mameluco seria uma espécie de “cultural broker”, em outras palavras, um
“negociador indigenista”, tal como foi aludido na pergunta anterior. Seria a última
coisa que eu gostaria que aparecesse na Funai.
Mas ele existe na realidade do processo social e parece que tem se intensificado
nos últimos anos. Por exemplo, no processo de arrendamento de terras indígenas
ou na idéia de propriedade privada das terras indígenas. Me lembro que durante a
Conferência Rio 92 a mulher do presidente da mesma, a Sra. Maurice Strong,
aparentemente depois de intensas conversas com as ongs que participaram do
evento, declarou que era uma vergonha o Brasil não dar a propriedade particular
das terras para os índios. Ora, nem nos Estados Unidos isso existe. Lá os povos
indígenas só têm um direito de posse, que eles chamam de “license of occupancy”,
e não querem modificar isto. Porque sabem que, quando houve esse direito de
propriedade, mais de um terço das terras indígenas foram vendidas e perdidas para
terceiros em trinta, quarenta anos de vigência. Assim, do meu ponto de vista, essas
idéias são mamelucas, e todos que as cultivam estão fazendo o papel de mameluco,
porque dessas idéias é que se produzem fatos que irão resultar inevitavelmente, tal
como no século XIX, na perda de terras e na inconsistência cultural dos povos
indígenas.
O Megarom Txucarramãe, administrador da FUNAI de Colider, talvez seja a melhor
expressão de uma geração de índios que se tornaram funcionários da FUNAI, ocupando
cargos de direção cuja atuação oscila entre a do servidor público e a de representante
e/ou intermediário dos interesses do seu povo, muitas vezes conflitantes com os
interesses do Estado, ou com a postura normalmente esperada de um funcionário
público. Um exemplo dessa situação é o fato dele estar liderando neste momento um
bloqueio da Br 163 e solicitando publicamente sua demissão. Com você vê essa situação
em relação a sua pessoa e em relação à perspectiva de estruturação de uma ação do
Estado a partir de um órgão coordenado pelos índios.
Todos os indígenas que têm cargos na Funai sofrem pela ambigüidade a que estão
sujeitos: por um lado, agentes do Estado, por outro, representantes lídimos de seus
povos. A pressão sobre eles é muito grande, de um lado e do outro, e é só com
muita habilidade política que eles conseguem encontrar as soluções para os
problemas imediatos. Agradar aos dois lados não é fácil. Nos casos de projetos
econômicos, de interesse do Estado, que, de algum modo, atingem terras indígenas
ou interesses indígenas, é que esse dilema surge com grande força. Que fazer?
Felizmente o bloqueio da BR-163 já acabou, com o entendimento de todos os
presentes de que não foi por omissão da Funai que surgiram as razões para uma
ação tão drástica como foi tomada. O interesse de outras organizações ficou
patente naquele episódio, inclusive com o envolvimento de índios que não tinham
nada a ver com o caso. A questão é que o estado do Mato Grosso precipitou o
processo de asfaltamento no trecho que lhe foi consignado pelo governo federal,
sem que todas as determinações de compensações estivessem sendo realizadas. A
Funai e o ministério público, através do Dr. Mário Lucio Avelar, estiveram presentes
na negociação final, junto com o governo do Mato Grosso e o ministério dos
transportes. Creio que daqui por diante esse problema vai estar equacionado.
Quanto ao pedido por minha demissão, creio que, ao longo desses meses, alguns
líderes indígenas assim o desejaram e uns poucos tentaram com mais veemência.
Algumas ongs também têm feito essa reivindicação. Até quem é eleito pelo voto
popular e faz um bom governo também tem adversários cáusticos e alguns muito
dignos, mas continua batalhando pelo que vem fazendo. Que posso fazer para
agradar a todos?
Bloco 2 terras, emergentes, tutela etc.
O que você pensa sobre as comunidades de “ressurgidos” que reivindicam a identidade
indígena e, consequentemente, os direitos territoriais garantidos pela Constituição
Federal? A quantidade de povos indígenas no Brasil tem limite? Como saber quem está
dentro e quem está fora?
Esta é uma questão difícil de ser resolvida. Tudo indica que a raiz do problema está
na falta de assistência que muitas comunidades rurais brasileiras sentem. Grande
parte delas descende do amalgamento de índios com negros e brancos, tal como
descrito por tantos sociólogos e antropólogos brasileiros. Muitos vivem uma
cultura sincrética, com elementos diversificados e reelaborados em padrões
bastante singulares. Muitos se parecem com culturas indígenas, outros com
variações de quilombos. Ressurgir como índios é uma decisão que algumas dessas
comunidades querem tomar, com a ajuda de algumas ongs e alguns antropólogos
que, de boa fé, acreditam que o processo histórico pode se abrir para isso. Talvez
seja possível, na verdade, parece que alguns dos povos indígenas da atualidade
advêm desse processo. Do ponto de vista da legislação brasileira, seja a
Constituição, seja o Estatuto do Índio, seja a Convenção 169, é preciso que
algumas condições sociais e culturais sejam preenchidas para que ressurgidos
sejam reconhecidos como índios. Uma delas é serem reconhecidos pelos “outros”
como diferentes; outra é serem de algum modo descendentes de culturas
indígenas; e, ao final, terem consciência de que são índios. Em muitos casos,
querem começar o processo por este último aspecto.
A questão dos ressurgidos está cada vez mais se parecendo com a questão de
cotas para minorias. Há controvérsias grandes, e o encaminhamento terminará
sendo político.
Temos visto no atual mandato presidencial um arrefecimento no ritmo da identificação e
demarcação de novas terras, com muitos casos parados há mais de um ano nos
gabinetes do Ministério da Justiça sem qualquer encaminhamento e outros tantos que são
devolvidos à FUNAI. Estudo recente do INESC aponta que, embora o orçamento para
políticas voltadas aos povos indígenas tenha aumentado nos últimos seis anos, o mesmo
não ocorreu com os recursos destinados à demarcação de terras indígenas, cujo
orçamento anual baixou de R$ 67,1 milhões para R$ 42,5 milhões nesse período.
Paralelamente, vc dá uma entrevista à Reuters na qual teria dito que o reconhecimento de
direitos territoriais indígenas estaria chegando ao seu limite. É isso mesmo? Estaríamos
chegando ao limite do reconhecimento de novas áreas ou a diminuição no ritmo de
demarcações é um problema meramente conjuntural? Por que o Ministério da Justiça se
transformou num obstáculo ao avanço do processo demarcatório?
Não conheço esse estudo do INESC, mas, por esses dados apresentados, acho que
não está correto. O orçamento da Funai tem crescido pouco, mas consistentemente
nesse governo Lula. Os orçamentos de outros órgãos que paralelamente trabalham
com populações indígenas têm crescido mais; na verdade, muitos deles surgiram
nesse governo, como a carteira indígena, do MMA, e os recursos do bolsa família e
outros benefícios, do MDS. Porém mesmo quando nosso orçamento não é grande,
ao final, por meio de créditos suplementares, o investimento chega a mais uns 20
milhões de reais. Certamente a Funai nunca gastou 67 milhões de reais em
demarcações em nenhum ano e nem mesmo chega a 42 milhões. Não há pessoal
suficiente para gastarmos tanto, mesmo que dediquemos muito de nossa energia
ao pagamento das benfeitorias de terceiros.
Porém, além de termos um ritmo bastante alto de demarcações e estudos de
identificação, temos feito esses estudos com muito mais qualidade do que
anteriormente. Em administrações anteriores as argumentações eram tão frágeis
que ficava fácil para um advogado de terceiros obter uma liminar em juízo
embargando o processo. Assim, temos uma quantidade expressiva de liminares
interrompendo os processos de demarcações de diversas terras indígenas,
sobretudo no Mato Grosso do Sul.
Vocês podem imaginar o quanto gastamos de energia para homologar a Terra
Indigena Raposa Serra do Sol. Esta era a principal reivindicação tanto do
movimento indígena quanto das ongs indigenistas, inclusive as internacionais. A
Igreja Católica se empenhou muitíssimo a favor. Mas poucos a defenderam com a
veemência que tivemos, o Ministro da Justiça, Dr. Márcio Thomaz Bastos, e eu, em
todos os fóruns por que passamos, dos militares, dos políticos regionais e dos
nacionais. Muitos deputados de esquerda se posicionaram contrários a essa
homologação. No Estado de Roraima viveu-se um paroxismo de contestações
contra mim, pessoalmente, que beirava o insurrecional. Aliás, houve insurreição no
começo de 2004, quando o Ministro Márcio anunciou em fins de dezembro que o
Presidente Lula iria homologar dentro de trinta dias. Por sua vez, a lide jurídica foi
impressionante e brilhante ainda a solução proposta pelo Ministro, que seguimos
com todo afinco, para surpresa de muitos. Algum dia essa história será contada por
algum dos participantes mais diretos.
Ao final de seu mandato, o Presidente Lula terá homologado [mais de 60] terras
indígenas, um pouco mais da média das terras indígenas homologadas no governo
anterior. O Ministro Márcio concluirá seu termo de administração com mais de [ ]
portarias de demarcação. E da minha parte, pelo menos [ ] terras indígenas teriam
sido identificadas e seus relatórios publicados. Na verdade, nenhum presidente da
Funai fez mais publicações ou enviou mais propostas de portaria de demarcação e
decretos de homologação do que eu.
Eu me orgulho muito desse papel de demarcar terras porque acho essencial para
os povos indígenas. Na entrevista com a Reuters, que fui eu que convoquei para
rebater os dados equivocados produzidos pelo CIMI e veiculados pela Anistia
Internacional sobre os supostos assassinatos de líderes indígenas, falei que o
Brasil devia se orgulhar do quanto vinha fazendo pelos povos indígenas, inclusive
no reconhecimento e demarcação de suas terras. Comparei a nossa situação com a
de países como o Canadá, a Austrália, os Estados Unidos, o México e outros,
inclusive a Rússia, de onde vinha o repórter que me entrevistava, e chegamos à
conclusão que o Brasil estava muito adiante desses países. Ter demarcado cerca
de 12,5% do território nacional como terra indígena era um feito e tanto e ainda
havia, na minha estimativa das terras indígenas que estão para serem
reconhecidas, cerca de 1% a mais para ser demarcado. Disse ainda que havia muita
demanda por parte de algumas ongs que trabalham com índios e que havia muitos
processos parados no STF sobre a legitimidade de terras indígenas e que o STF
precisaria tomar decisões muito sérias sobre esse assunto. Na verdade, o STF é
que iria decidir o destino de diversas terras indígenas, como a dos Pataxó Hahahãe,
a dos Potiguara de Monte Mor, a dos Guarani de Nanderu Marangatu, entre outras, e
essas decisões iriam pesar sobre outros estudos a serem realizados. O STF foi
muito importante para definir o destino da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e a
ministra Ellen Gracie, em particular, foi fundamental para a volta dos Xavante à
Terra Indígena Marãiwatsede. Assim, esse tema pára no STF e é dele que sairão
muitas decisões para que a Funai possa ou não prosseguir no encaminhamento de
futuras demarcações. Recentemente recebi uma carta da presidente do STF,
Ministra Ellen Gracie, dizendo que ela irá priorizar as decisões sobre mais de 100
questões sobre assuntos indigenas que estão pendentes no STF. Gostaria muito
que a questão Pataxó fosse colocada em julgamento ainda este ano.
Enfim, o problema da entrevista não foi ela em si, mas a repercussão posterior
reelaborada maldosamente por jornalistas que buscavam abrir uma celeuma
negativa. Em entrevistas posteriores que dei ao Estado de São Paulo, tanto quando
estive em Genebra, quanto em Brasília, esclareci todo esse assunto.
O PPTAL está perto do seu fim, mas não conseguiu gastar todos os recursos
assegurados. O que será feito do saldo?
O PPTAL foi um programa muito importante para a demarcação de terras na
Amazônia nesses últimos dez anos. O fato de estar concluindo sua atuação
significa que cumpriu seu objetivo inicial e está se concluindo o processo de
demarcação de terras indígenas na Amazônia. As que faltam seriam feitas pela
Funai. Agradecemos muito à comunidade européia e especialmente ao governo
alemão por essa valiosa contribuição. Já tivemos diversas conversas com seus
líderes e com membros graduados do governo alemão sobre a possibilidade dessa
ajuda ser diversificada e ampliada para outras atividades. A principal é a gestão
territorial, mas há também possibilidades de investimento em defesa territorial,
capacitação de índios em diversas atividades econômicas, projetos de silvicultura,
etc. Acredito que alemães e comunidade européia estão sensibilizados para a
questão indígena no Brasil. Eles consideram o PPTAL como a vitrine de sua
atuação no Brasil.
Há uma série de propostas legislativas tramitando no Congresso Nacional que objetivam
modificar a sistemática de demarcação de terras indígenas e impor limites ao
reconhecimento de direitos territoriais. Vc concorda que o capítulo dos direitos indígenas
da Constituição de 1988, notadamente no que diz respeito aos direitos territoriais, deveria
ser alterado? Se sim, em que sentido?
Eu tenho lutado para que nem a Constituição brasileira nem o Estatuto do Índio
sejam modificados por esta nem a próxima legislatura. A Conferência Nacional dos
Povos Indígenas, realizada em abril deste ano, também não quer tais modificações
por enquanto. O que parece estar sendo acordado entre diversas lideranças
indígenas são mudanças pontuais, como o primeiro artigo que fala do propósito de
integração do índio, a questão da tutela, sem deixar de lado a proteção especial do
Estado às populações indígenas, e a classificação de povos indígenas por níveis de
relacionamento social.
Vc acha q o formato FUNAI é adequado para estabelecer as relações entre os índios e o
Estado Nacional hoje no Brasil? Vc advoga q a FUNAI deveria ter o "monopólio" digamos,
seja por execução direta, seja por coordenação, das relações dos índios com o Estado
Nacional?
Como falei anteriormente, tenho pensado em elaborar novos parâmetros para a
reestruturação da Funai. Acho que ela deve ser o esteio da política indigenista
brasileira pela tradição e respeito que conquistou. Acho que poderia coordenar as
ações multifacetadas do Estado brasileiro, acho que deveria treinar, através de uma
escola de indigenismo, funcionários e servidores do Estado que venham a trabalhar
com povos indígenas e acho que ela deve representar o Brasil em fóruns
internacionais que tratem da questão indígena sob o ponto de vista dos estados.
Vc não acha q as disparidades entre os povos indígenas no Brasil (perfil demográfico,
experiência de contato, localização no território, disponibilidade de terras demarcadas e
de recursos naturais, etc) mereceria alternativas de interlocução diferenciadas com o
Estado Nacional? Ou seja, entre isolados e emergentes, entre povos de contato recente e
demografia reduzida e povos com 300 anos de contato e demografia avantajada, que
alternativas o Estado Nacional deveria propor? O Estatuto das Sociedades Indígenas,
parado há mais de dez anos na Câmara dos Deputados, poderia ser uma alternativa? Por
que não há interesse do Executivo em aprova-lo?
Acho que as diferenças entre povos indígenas e suas situações de contato e
relacionamento com a sociedade brasileira merecem distinções na forma do Estado
se relacionar com eles. Na verdade, essas distinções existem em vários momentos
de execução de ações indigenistas, e em outros todos são tratados como
equivalentes. Não sei se a dosagem empírica é boa, acho que poderia ser
melhorada e muito, e aí é que se encontram muitas situações de desentendimento.
O problema é que, com outros órgãos que tratam de aspectos da questão indígena,
a situação é mais desequilibrada. Eis onde a experiência indigenista da Funai ajuda.
Não sei todas as nuances sobre porque o projeto de mudança do Estatuto do Índio
está parado. Sei que nenhuma das três propostas é boa, isto é, melhoraria o
Estatuto atual. Pelo contrário. Também tentar mudar o Estatuto com os grandes
problemas que ainda correm pelo país e com um Congresso cheio de má vontade
para com os povos indígena é uma grande temeridade. Creio que muitas ongs se
deram conta disso nos últimos tempos e pararam de insistir com essa vontade de
mudar o Estatuto.
Em um contexto no qual cada vez mais os povos indígenas reivindicam
autodeterminação, vc acha que a tutela ainda é um conceito legítimo? Como se daria a
relação entre os índios e o Estado sem ela? A Funai sobreviveria a essa mudança?
A tutela é a mais antiga instituição de interferência do Estado para com os povos
indígenas. Bem ou mal é ela que permite a intervenção das várias instâncias do
Estado, especialmente o Executivo e o Judiciário, em defesa dos povos indígenas.
Ela está no imaginário de todos, até do mais distante juiz de comarca do nosso
país. É por conta dela que um juiz pensa duas vezes em fazer uma condenação a
um índio e o igualar aos demais.
Muita gente boa acha isso ruim. Eu não acho e muitos juristas também não. Por
exemplo, o Prof. Dalmo Dallari, que foi agraciado com a medalha do mérito
indigenista pela Funai em 2004, considera a tutela como uma proteção a mais para
os povos indígenas, não um fator de diminuição da pessoa do índio. Desde o
processo que o STF decidiu sobre a liberdade de ir e vir do Mário Juruna, quando
foi convidado para presidente o Tribunal Russel, no começo da década de 1980,
que nunca mais houve qualquer contestação quanto ao completo sentido de
cidadania dos povos indígenas e dos indivíduos indígenas.
É claro que a Funai sobreviveria a essa mudança, quando ou se houver.
Como será realizado o censo indígena? A Funai está em busca de parceiros?
Nós tentamos fazer o censo indígena em 2005, mas não obtivemos a ajuda do IBGE.
Assim só conseguimos fazer de alguns povos indígenas. Esse ano vamos tentar
concluir com um censo mais simples, talvez um levantamento demográfico, e
esperarmos para que ajuda mais ajuda de outros órgãos para o censo completo no
próximo ano.
Bloco 3 – Organizações, Ongs etc..
Qual sua opinião sobre as chamadas organizações indígenas q proliferaram nos últimos
anos?
Em geral é positiva. Entretanto, acho que elas freqüentemente se comportam com
divisionismo e acirram as contradições existentes em suas próprias sociedades.
Algumas ongs indígenas são envolvidas por um discurso sociológico semelhante
ao de organizações dos sem-terra e perdem o foco de sua finalidade. Pode ser que
no futuro elas sejam a base de uma revolução no Brasil, mas esse dia ainda está
longe. Acredito que os povos indígenas deveriam fazer um imenso esforço nos
próximos anos para criar entidades políticas para si, com legitimidade conferida
pela sua cultura e pelos seus líderes tradicionais. Tipo assembléias e conselhos, a
partir das próprias aldeias, para depois criar comunidades e federações mais
amplas, com legitimidade política para exercer um papel mais agregador, mais
forte diante da sociedade brasileira e do Estado.
E com relação ao papel das ONGs indigenistas?
Na base, o papel das ongs é muito importante para ampliar a visão que os índios
devem ter de sua realidade. Aí, a crítica que fazem à Funai é positiva. Há ongs, até
ligadas à Igreja Católica, que trabalham diretamente com as aldeias e comunidades
indígenas e fazem um papel assistencialista bastante positivo. Algumas até
substituem a Funai. No plano político mais amplo, muitas ongs padecem da
síndrome de perseguição da ditadura militar, algumas até acham que este governo,
popular, legítimo, é antiindígena. Aí, fica difícil levá-las a sério.
Como vc vê a aproximação recente das organizações ambientalistas com os índios?
Na verdade, essa aproximação é antiga, vem do tempo do Chico Mendes e a
chamada união dos povos da floresta. Acho bom, gostaria que se imbricassem
mais, porém vejo algumas dificuldades essenciais, como a contradição entre
preservação e desenvolvimento. Muitas organizações ambientalistas são pautadas
pela preocupação mundial pelo meio ambiente, pela Amazônia, em particular. No
caso do asfaltamento da BR-163, por exemplo, onde o movimento ambientalista é
contra, os índios, que já a vêem como uma realidade, querem como compensação a
construção de estradas rurais ligando suas comunidades à dita BR. Por outro lado,
muitas terras indígenas são sobrepostas a reservas florestais ou parques
nacionais. Os índios sofrem com a dificuldade de usufruir legitimamente de todos
os benefícios que lhes cabem em suas terras. No caso da venda de artesanato, com
uso de restos de animais, como penas, bicos, garras, cascos, etc., os
ambientalistas querem que os índios parem de fabricar tais peças para venda
porque poderiam pôr em risco de extinção diversos animais e plantas. O Ibama tem
uma legislação contrária à venda desses animais e de seus restos, mas o Estatuto
do Índio lhes garante o direito de vender. A Funai, que vinha comprando e
revendendo artesanato indígena desde sempre, teve que se restringir na compra de
qualquer peça que contenha restos de animais. Muitos povos indígenas tinham
renda razoável com a venda desse material e terminaram sofrendo. Estamos
tentando equacionar essas duas legislações para permitir aos indígenas de
produzirem e venderem artesanato sem porem em risco os animais e plantas que
utilizam para tanto.
Em março deste ano foi criada oficialmente a Comissão Nacional de Política Indigenista –
CNPI, fruto de uma antiga reivindicação de organizações sociais indígenas e indigenistas.
Apesar de sua aparente importância como espaço de articulação entre governo e
sociedade civil, já se passaram mais de dois meses do prazo máximo para que ela seja
instalada e o Ministério da Justiça sequer nomeou os membros indicados pelas
organizações indígenas. Comenta-se que a FUNAI está bloqueando a nomeação dos
indicados, e assim impedindo a instalação da comissão. A FUNAI é contra a existência
desse órgão? Na sua opinião pode haver confusão entre o papel da comissão e da FUNAI
na coordenação da política indigenista do Governo Federal?
Acho importante o papel que essa Comissão e futuro Conselho poderá ter no futuro
próximo. Eu mesmo fui favorável a isso durante as discussões do grupo de
trabalho interministerial que decidiu pelos pontos importantes e necessários à
formulação de uma nova política indigenista. Entre esses pontos incluíam-se o
fortalecimento da Funai como fulcro do indigenismo, a Conferência Nacional dos
Povos Indígenas e essa Comissão. Desde o início, o Ministro da Justiça pediu aos
diversos ministérios que indicassem seus representantes. Os povos indígenas e as
ongs ficaram de indicar os seus. Houve inclusive um mal estar porque, na reunião
que decidiu quais ongs poderiam estar presentes nessa Comissão, ficou excluída a
Associação Brasileira de Antropologia, que deveria estar presente, na minha
opinião. Quanto ao atraso na nomeação dos membros dessa Comissão, o problema
se deve ao fato de que o Ministério da Justiça e a Funai receberam indicações de 46
nomes de indígenas, para tão somente 18 vagas, e tanto o Ministro quanto eu
ficamos sem saber quem nomear. Portanto, é preciso que os indicadores desses
representantes indígenas se entendam para que o MJ possa processar o resultado
e estabelecer a Comissão.
Bloco 4 – índios e capitalismo
Recentemente vc assinou uma instrução normativa reforçando a proibição do
arrendamento nas terras indígenas. Além disso, há problemas de índios comercializando
madeira, envolvidos com garimpo, etc. Como vc avalia as relações dos povos indígenas
com o sistema capitalista? O que vc pensa sobre a do uso dos recursos naturais
existentes no interior das Tis para fins não tradicionais e voltados ao mercado? Existe
alguma política relacionada a isso?
Considero o arrendamento de quaisquer porções de terras indígenas um perigo
para a continuidade dos povos indígenas e a preservação de seus territórios. Há
muito que intencionava emitir uma instrução normativa a respeito disso. Creio que
ela está tendo boa repercussão em várias terras indígenas e irá reverter uma
tendência que estava se alastrando por várias partes do Brasil. Recentemente
estive entre os Kadiwéu, do Patanal matogrossense, que tinham esse problema em
grande escala e eles logo se dispuseram a pensar alternativas ao processo que
vinham sofrendo há tantos anos.
Penso que os povos indígenas são uns dos últimos bastiões anticapitalistas do
mundo. Eles resistem a esse processo de vários modos, e por isso são
freqüentemente incompreendidos. Entretanto, melhorar suas economias, ganhar
produtividade e capacidade de comercialização naquilo que podem produzir não
significa que deixarão de ter características anticapitalistas. Espero que novos
modelos econômicos possam ser obtidos. Sei das dificuldades teóricas e práticas
para isso, mas é preciso que continuemos procurando caminhos alternativos.
Após as recomendações da Conferência Nacional de Política Indigenista, o governo ainda
pretende apresentar um projeto de lei regulamentando a mineração em terras indígenas?
Qual a posição da FUNAI sobre esse assunto?
A situação mais dramática e drástica que ocorreu nesse meu período como
presidente da Funai foi a morte de 29 garimpeiros na Terra Indígena Roosevelt, em
abril de 2004. Foi difícil explicar ao povo brasileiro o que estava acontecendo para
que não houvesse uma reação grave contra os índios. Quem conhece a situação de
perto sabe dos problemas e do potencial negativo que existe. Por isso é que o
governo brasileiro vem tentando de todos os modos manter esse garimpo fechado
até que haja alguma legislação que permita aos índios garimparem ou minerarem
em consórcio.
Se houver qualquer proposta de projeto de lei para regulamentar esse e outros
casos de mineração em terras indígenas os próprios indígenas serão consultados.
Bloco 5 – Final
Qual vc acha deveria ser a agenda prioritária da política indigenista para os próximos
anos?
Acho que os cinco pontos mais importantes para a questão indígena brasileira
devem prevalecer, com modificações na medida em que eles forem abrindo
caminhos diferentes. Esses cinco pontos são: consolidação dos territórios
indígenas, com a ajuda do STF e do Ministério Público; crescimento demográfico e
assistência à saúde, em bases indigenistas, isto é, com respeito aos índios;
reformulação da questão educacional, trazendo a responsabilidade ao governo
federal; autonomia econômica; e participação dos índios na sociedade brasileira
através da política, da cultura e do seu etnodesenvolvimento.
Para isso, creio que a Funai tem que ser fortalecida e reestruturada para coordenar
as diversas instituições que têm ações indigenistas a partir do Estado. O
estabelecimento do Conselho Nacional para Política Indigenista vai ajudar o
governo em geral e a Funai em particular a tomar posições que tenham voz
unívoca. Acredito que o surgimento de um Parlamento indígena é fundamental e
deve ocorrer na medida em que aconteçam conferências anuais. Ao final, o
Parlamento Indígena vai dar uma voz única aos povos indígenas; no processo de
seu estabelecimento poderá ajudar os índios a se unirem, conhecerem seus
problemas e encaminharem soluções mais amplas e gerais.
Uma das prioridades da Convenção de Diversidade Biológica (CDB), cuja 8ª Conferência
das Partes (COP) se deu no Brasil (março/06), é a capacitação de povos indígenas e
comunidades locais para o tema de proteção de conhecimento tradicional e repartição de
benefícios. O ISA firmou parceria com o Instituto de Estudos Avançados da Universidade
das Nações Unidas (UNU), organismo internacional, para realizar oficinas de capacitação
junto a organizações e comunidades indígenas e quilombolas, conseguindo o apoio do
MMA e do ponto focal do GEF no Brasil, mas sofreu veto da FUNAI, manifestado por vc.
diante da própria Ministra de Meio Ambiente, sob o argumento de que o ISA não deveria
ser o executor do projeto. Como vc. explica esse veto?
De fato, não acho que o ISA tenha a capacidade para fazer essa capacitação em
larga escala. Acho que deve ser o Estado, a Funai, o MMA, aí, sim, junto com o ISA
e com outras ongs e associações indígenas, como o CIMI, a Coiab e outras que
estão surgindo.