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Fernando Pessoa, Hermenêutica e Retórica Jurídica

Um curioso aspecto do pensamento de Pessoa foi deixado por ele esparso, e o que parece totalmente ao acaso dos investigadores: o Direito. Em política, temos até um auto-retrato bastante completo, e a sucessão de textos que foi escrevendo, em prosa e em verso, facilmente nos permite reconstruir um percurso, a partir das suas bases ideológicas. Mas o que pensaria Pessoa do Direito? Neste caso, o “fingidor” não fingiu, não posou para a sua tão cuidadosamente preparada fama póstuma. Estamos, assim, perante um aspecto da sua vida mental que parece ter escapado à composição para um público (ainda que futuro), o que é, afinal de contas (sem fazer das fraquezas forças) uma situação apesar de tudo invejável... O presente artigo procura surpreender Pessoa a dialogar com um texto jurídico, elaborando um texto jurídico: um texto de resposta a um edital de um concurso para um lugar...

From the SelectedWorks of Paulo Ferreira da Cunha January 2011 Fernando Pessoa, Hermenêutica Jurídica e Retórica Contact Author Start Your Own SelectedWorks Available at: http://works.bepress.com/pfc/109 Notify Me of New Work 1 FERNANDO PESSOA, HERMENÊUTICA JURÍDICA E RETÓRICA “Un poète doit laisser des traces de son passage, non des preuves.” René Char Vários factores podem explicar o relativo desprezo de Fernando Pessoa pelas coisas jurídicas, numa vasta e variada obra que não está de modo algum isolada do político e do social. Uma das plausíveis explicações seria que, vivendo em tempos de legalismo (antes e depois do 28 de Maio), compreendera que a política, nessa lógica, é que comanda a juridicidade. O texto em que o poeta mais se aproxima do Direito, não na sua dimensão grandiloquente que toca a política, ou a psicologia, ou a filosofia (desse tipo há relativamente abundantes fontes), mas na lhaneza do seu quotidiano burocrático e de especial exercício de um muito particular poder, parece-nos ser, tudo pesado, um requerimento. Nele vai Pessoa manifestar uma interessante hermenêutica, através de uma não menos interessante retórica. Os textos literários, ou ensaísticos, em geral debruçam-se, diria Hervé Bazin, não vivenciam. Poderia Pessoa ter escrito poema ou elaborado ensaio (ou sacrificado a qualquer outro género) sobre direito, lei, justiça, tribunais, etc. Mas, ainda assim, seria o exógeno e distanciado mirar de um quid, sempre estrangeiro à sua lógica e metodologia. Num requerimento, pelo contrário, mesmo o mais amorfo requerente é partícipe da máquina do direito, que, no caso, em grande medida impulsiona (num certo contexto e num dado sentido). No seu requerimento, Fernando Pessoa torna-se também “actor jurídico”, e não deixará de glosar as fórmulas e mesmo o tipo de raciocínio (por exemplo, remissivo e subsuntório) dos juristas tradicionais. Num primeiro momento. 2 É que, como veremos, a sua inteligência, depois de ter vestido a pele do requerente bem comportado, que se esforça por cumprir os requisitos, e de os demonstrar, não resiste, e – auto-sabotagem da inteligência contra o oportunismo da acção? – cremos que compromete a petição, já que, em vez de alinhar simplesmente nos quadros abstractos de uma prova formal, questiona logicamente a sua aptidão a provar efectivamente. Dando assim mostras precisamente daquilo que nenhuma burocracia quererá de um dos que aspira a entrar para as suas fileiras: inteligência questionadora. Pode ser-se inteligente, sim. É até conveniente que se seja um pouco. Desde que não se pense, desde que se não tenham (e muito menos se exprimam) ideias próprias. Tal como aconselhava a personagem de Machado de Assis ao filho que queria ver subir na vida1. Não é um texto inédito, este que analisaremos. O primeiro a editá-lo terá sido João Gaspar Simões, que teve a sorte de ter tido acesso a este documento pela mão do escritor Branquinho da Fonseca, que viria (nos anos 50-60 do século XX) a ocupar o lugar a que Pessoa se candidatava com este requerimento. Mas encontra-se hoje até na Internet2. Sim, está em causa um desses malfadados documentos em que, por razões de sobrevivência, uma pessoa comprime a sua ipseidade, quiçá arranha a dignidade, e vai vender o burro do seu currículo à feira dos postos e lugares, recomendando-se por escrito com aptidões para um cargo cujo retrato pré-definido nunca pode ser o de ninguém com rosto próprio. Ou então, se o for, pior ainda... Na edição que consultámos, há uma nota significativa, aludindo às dificuldades financeiras do poeta e à injustiça do juízo dos homens e desconhecimento do “outro”3. Como Umberto Eco mostraria, nenhuma pessoa de talento parece ter os requisitos que os não-talentosos exigem4. Que fará um génio como Pessoa. Lições actualíssimas, mutatis mutandis... 1 MACHADO DE ASSIS — Teoria do Medalhão, in Contos Escolhidos, 4.ª ed., São Paulo, martin Claret, 2008, máx. pp. 39-41. 2 http://pt.wikisource.org/wiki/Carta_de_Fernando_Pessoa_requerendo_o_lugar_de_conservadorbibliotecário 3 PESSOA, Fernando — Obra Poética e em Prosa, Vol. II, Prosa 1, organização, introduções e notas de António Quadros, Porto, Lello, 1986, p. 321, n. 1. 4 ECO, Umberto — «Concursos para Professores Catedráticos», in O Segundo Diário Mínimo, trad. portuguesa, Lisboa, Difel, 1993. 3 O poeta endereça a carta-requerimento à “Ex.ma Comissão Administrativa do Museu-Biblioteca Conde de Castro Guimarães”, de Cascais. Data-a de 16 de Setembro de 1932. Como é normal, começa o autor por se identificar, com todas as referências do costume: nome (quase) completo (porque terá omitido “de Seabra”?), estado civil, indicação da maioridade, profissão (onde se diz “escritor”... mester sempre suspeito), residência (indicando uma mais fixa em Lisboa e outra provisória em Cascais, o que poderia indicar zêlo em relação ao lugar almejado, mas também ambiguidade no colocarem-se dois endereços), passando depois disso a responder aos requisitos do Regulamento do Museu-Biblioteca, que haviam sido publicados no jornal ”O Século”. E toda essa concatenação entre anúncio publicado, regulamento, concurso e “fundamentos” para concorrer, expostos nos “termos” do Regulamento é desenvolvida; em linguagem talvez até mais juridista do que se requeresse. Cremos que Pessoa, ao fazê-lo, exercitava a sua capacidade mimética no plano estilístico (os heterónimos podem ser considerados, na sua base, e descontada a originalidade e “personalidade” de cada um, mimeses de tipos-ideais), cabalmente conseguindo evidenciar, por momentos, uma “personalidade jurisburocrática”. Mas, por outro lado, no excesso de dados e do fazer valer ligações lógicas (para preencher os requisitos), como se verá abundamentemente depois, posto que surja desde o início (desde logo, pela referência das duas residências e pela invocação da tríade requisitos - regulamento – publicação / edital, anúncio, aviso), Pessoa terá deixado quiçá suspeitas no espírito dos seus julgadores. Excesso de zêlo. Há um velho brocardo jurídico que diz “qui mieux abreuve mieux preuve”5. Além disso, parece que a Inquisição (e o nosso País dela tinha, e ainda tem, abundantes reminiscências, muitas delas inconscientes6) costumava considerar culpado quem demasiado vivamente ou eloquentemente mostrasse as provas da sua inocência7. 5 MALATO, Maria Luísa / FERREIRA DA CUNHA, Paulo — Manual de Retórica & Direito, Lisboa, Quid Juris, 2007, p. 277. 6 Cf., recentemente, PEREIRA MARQUES, Fernando — Sobre as Causas do Atraso Nacional, Lisboa, Coisas de Ler, 2010, p. 177 ss. 7 Cf., mais recentemente, NUNEZ, Laurent — Trop beau pour être vrai, in “Le Magazine Littéraire”, Julho-Agosto de 2010, n.º 499, p. 60. 4 Passa então o requerente a referir a idade, filiação (legítima: um ponto favorável), indicando que ambos os progenitores faleceram já. É pois um órfão, diria o advogado da caricatura de Daumier8... E começam as interpretações explícitas, até interventivas. Pessoa não junta nem certidão de idade nem de registo criminal por “o citado artigo 6.º e os seus parágrafos não o exigirem”. Até aqui... Mas atente-se no reforço, sempre abundante (nem sempre o brocardo quod abundat non nocet é verdadeiro): primeiro, essa exigência de certidões não é explícita nem implícita – afirma. Esta forma de um requerente interpretar o que dele pedem deve ser irritante para os júris, ou quaisquer decisores, sobretuto se foram eles a redigir os requisitos. Na sua omnipotência, talvez presumam a omnisciência de haver tudo previsto, sem necessidade hermenêutica alguma. In claris non fit interpretatio9 – máxima falsíssima, até no plano simplesmente lógico. Então, os textos que há que respeitar e em que fazer fé para concorrer não requerem, nem na sua letra nem no seu espírito, “outros documentos que não sejam os rigorosamente precisos para apreciar a afirmação das habilitações neles indicadas, como motivos de preferência.”10. Pessoa vai directo a provar – é o magno e complexíssimo problema da prova ou da comprovação que se lhe coloca: cheio de ardis retóricos – essas mesmas habilitações… E em tudo se mete a “razoar”. Na verdade, tem plena razão, porque o abstracto das fórmulas precisa ser aproximado da realidade com pontes hermenêuticas. Se lhe pedem cursos e conhecimentos de línguas, ele oferece o seu curso na África do Sul, e ainda, por acréscimo, um prémio (o Prémio Rainha Vitória, de estilo inglês). Para o certificar, junta, agora sim, dois documentos. 8 Numa litografia da série “Les gens de justice”, datada de 1845. Reprodução acessível in: http://www.artsbma.org/collectionitemdetails?showall=1&showindex=0&areas[]=portfolio&searchlay out=details&limit=1&start=316 . 9 HOVEN, Paul Van Den — Clear Cases: Do they Exist?, in “Revue Internationale de Sémiotique Juridique / International Journal for the Semiotics of Law“, Vol. III, n.º 7, 1990, pp. 55-63. 10 PESSOA, Fernando — Obra Poética e em Prosa, vol. II, p. 322. 5 É certo que não publicara ainda livros (a Mensagem sairá dois anos depois), mas explicita essa sua “abstenção”, referindo, em contrapartida, várias e prestigiadas revistas em que colaborou (A Águia, Centauro, Contemporânea, Presença, e Descobrimento) e até que co-dirigiu (como Orpheu e Athena). E junta quatro folhetos de poesia em inglês que, aliás amavelmente (outro erro a evitar no diálogo com a burocracia, que quer estar formalmente acima de toda a suspeita), então declara oferecer à “Biblioteca do Museu-Biblioteca”. Esta forma é rigorosa, mas não parece muito eficaz: teria bastado “ao Museu-Biblioteca”. A duplicação da palavra “Biblioteca” parece-nos ter um efeito indesejado. Como que denotando um excesso de integração (fazendo já distinções orgânicas), ou vontade dela, numa instituição que apenas se aborda. Mas todos estes seriam pecados retóricos veniais. Pessoa vai mais longe: como que põe em causa os conceitos indeterminados11 usuais neste tipo de recrutamento (de nível intelectual). O que nos deve também fazer pensar a nós quando continuamos a usá-los, designadamente em concursos e outras promoções (ou não). Em primeiro lugar, coloca em causa o conceito de “reconhecido mérito”, e convida o júri a, por um lado, averiguá-lo nos meios culturais (invertendo assim o ónus da prova, que a si competiria, prima facie – pois quem invoca um título tem de o provar, segundo as regras normais do processo). Só depois desta heresia – a qual, subjectiva, mas não juridicamente, se compreende, porque seria precisamente nesses meios que se poderia saber se a obra de Pessoa teria ou não “reconhecido mérito” – é que remete para concretas opiniões da crítica, juntando então alguns elementos abonatórios dela provenientes. Não só portugueses - como o do então “jovem” (e que Pessoa elogia como “notável”) João Gaspar Simões: e que viria, realmente, a tornarse uma instituição da crítica em Portugal, como estrangeiros, e de relevo: o suplemento literário do Times (ainda hoje uma referência internacional) e o Glasgow Herald. 11 BAPTISTA MACHADO, João — Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, reimp., Coimbra, Almedina, 1985, pp. 113-114. 6 Depois, reforçando que os documentos que junta superabundam na prova do conhecimento da língua inglesa12, como que se rende à falta de meios de prova do seu conhecimento, aliás excelente, do francês, e desabafa (erro fatal: raramente resultará confessarem-se debilidades ante um júri; a captatio benevolentia é falível): “o melhor que pode fazer é juntar uma folha de impressão da Contemporânea, número 7, onde, a págs. 20 e 21, vêm três canções (Trois Chansons Mortes) que escreveu em francês”13. Tratava-se este, como é patente, de um concurso documental, e de tal se deve ter dado conta então o nosso literato. Por isso, o que encontra de documento pertinente são as três canções em francês. E realmente tanto deveria ser prova bastante, no plano documental… O grand finale pode claramente ser visto como um hara-kiri retórico do requerente, porque, no ultimo item que aborda, põe em causa a própria possibilidade de prova documental. Como se dissesse claramente: o que me pedem é impossível de dar. Pedem-me o impossível, e por isso não vo-lo dou. Trata-se do requisito de o candidato admitido possuir "reconhecida competência e idoneidade". A mente analítica de Pessoa não resistiu a fazer distinção: por um lado, há o que “de competência e idoneidade está implícito nas habilitações indicadas”14. E isso já estava provado. Mas há mais. Há o que sempre estará para além disso: e Pessoa estava naturalmente a pensar que a competência e idoneidade verdadeiras não se aferem por diplomas nem por um despacho de “capacidónio”. E assim termina, rotundamente: “a competência e a idoneidade não são susceptíveis de prova documental. Incluem, até, elementos, como o aspecto físico e a educação, que são indocumentáveis por natureza.”15 Hermenêutica justíssima, mas péssima retórica, dado o contexto, i.e., o auditório. 12 E bem devia insistir, porque ainda há não muitos anos alguém parece haver sido excluído de concurso por não apresentar, certamente, diploma específico de escola de línguas, mas diploma de doutoramento em país estrangeiro, que, pelos vistos, não comprova conhecimento do respectivo idioma! E tal interpretação probatória terá ocorrido na Europa… 13 PESSOA, Fernando — Obra Poética e em Prosa, vol. II, p. 323. 14 Idem, Ibidem. 15 Idem, Ibidem. 7 Sophia de Mello Breyner mitificaria a tença a más horas paga a Camões, e a sua espera, consumindo-o em fogo lento16. Bem podia haver o mito do concurso público de Pessoa. O poeta parece, no fundo, não querer abdicar da sua liberdade pelo lugar a que concorre. E dela realmente não abdica, ao dizer o que diz, mesmo concorrendo. Ora, como seria de esperar, não foi provido no cargo. Morreria três anos depois. Sagra, sinistro, a alguns o astro baço17. Só depois renascerá: para a fama póstuma. Paulo Ferreira da Cunha 16 17 MELO BREYNER, Sophia de — “Camões e a Tença”, in Dual, VI, 1972. PESSOA, Fernando – Gomes Leal, in “Notícias Ilustrado”, n.º 20, Lisboa, 28 de Outubro de 1928, reproduzido in Obra Poética e em Prosa, vol. I, p. 1108. Como é sabido, o horóscopo de Gomes Leal é muito semelhante ao de Pessoa. Pelo que aqui temos mais um caso de máscara des-ocultadora do autor.