ARTIGOS CIENTÍFICOS
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A crise política em Maquiavel e Shakespeare:
The politcal crisis in Machiavelli and Shakespeare
DaLL’aGnoL, auGusto César1
siLveira, José renato Ferraz Da siLveira 2
RESUMO
A tragédia da política não pode ser apartada do mundo dos homens. Designamos como
tragédia da política a “tragédia da ação”, a qual o
ilósofo Eduardo Rinesi (2009) considera à circunstância de que as capacidades desse ator político
encontram-se sempre num conlito, de resultado
incerto, com o que a história apresenta de contingente e de imprevisível. O pensamento trágico,
que possui o conlito como matéria, é o tema do
pensamento político de Maquiavel e Shakespeare.
Buscaremos analisar a forma como os dois autores percebem os governantes em momentos de
crise e de tentativa de manutenção de poder a partir de aspectos generalizantes, não especiicando
atos, cenas, diálogos, personagens. Ambos os autores realistas veem a lógica do mundo político
sob uma perspectiva em que o inexorável e o absurdo coexistem sob a sombra do ingovernável,
incontrolável, incognoscível. Busca-se, com isso,
compreender o entendimento dos autores quanto à crise de governabilidade e, por im, a forma
como os atores políticos atuam frente a virtù e
a fortuna. Utilizaremos do método hermenêutico e como técnica de pesquisa a bibliográica.
liam
Palavras-chave:
Política.
WilShakespeare.
Nicolau
Maquiavel.
1
Augusto César Dall’Agnol é graduando em
Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pesquisador do Núcleo PRISMA (Pesquisas em Relações Internacionais de Santa Maria). E-mail: a.agnol@gmail.com
2
José Renato Ferraz da Silveira é doutor
em Ciência Política pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). É coordenador do
curso de Relações Internacionais da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). Líder do Núcleo
PRISMA (Pesquisas em Relações Internacionais
de Santa Maria). E-mail: jreferraz@hotmail.com
ABSTRACT
The political tragedy cannot be apart
from the humans life. We call political tragedy
as the “tragedy of action”, which the philosopher
Eduardo Rinesi (2009) describes as the unpredictable, the uncertain outcomes, the permanent
conlict that political actors faces in history. The
tragical thinking has the conlict as subject and
is the center of Machiavelli and Shakespeare’s
political thought. This paper aims to discuss the
political dimension in Machiavelli and Shakespeare and analyze the way that both authors see
the governants in crisis moments and moments
of power maintenance. Both realistic authors see
the politcal world logic under a perspective that
the inexorable and the absurd coexist under the
ungovernable, uncontrollable and the unknowable shadow. We aim to comprehend the author’s
view about the governability crisis and how
the policy makers behave in front of virtu and
fortune. The hermeneutic method and the bibliographic researsh is used at the present paper.
Key
words:
Politic.
speare.
Nicolao
William ShakeMachiavelli.
INTRODUÇÃO
No momento da escolha do caminho
menos incerto entre tantas incertezas, cabe ao
príncipe3 compreender a situação crítica, muitas vezes insuperável e incontornável - em suas
inúmeras determinações - e agir mesmo contra a
vontade dos mais próximos e dos contrários ao
seu poder. Essa sentença introdutória do presente
artigo revela a dimensão política de Shakespeare
e Maquiavel quanto ao estadista em situações de
crise quanto a busca pela manutenção do poder. Dessa forma, ambos autores revelam que a
luta política impõe aos governantes escolhas dilacerantes. O momento de escolha exige cautela e o resultado depende de uma ação sensata.
De acordo com Silveira (2012), a preocupação
os governantes é tema de referência tanto para o
bardo dramaturgo quanto para o diplomata loren3
cipe
Utilizaremos
a
expressão
príncomo
sinônimo
de
estadista.
27
tino. Ambos são autores com ideias e premissas
realistas: a) visão pessimista da natureza humana; b) convicção de que a política é necessariamente conlituosa; c) a tragédia da política está
sempre presente no jogo e na disputa pelo poder;
d) coalizões e intrigas palacianas são instrumentos da conquista e manutenção pelo poder; e)
a conquista pelo poder é um traço marcante da
política moderna, principalmente pela via criminosa e atroz. De acordo com Chaia (2007, p. 76):
A genialidade destes autores – Maquiavel
e Shakespeare – está na capacidade de saltar do individual para o institucional – e
vice-versa – considerando que as paixões
e as irracionalidades, assim como a fortuna e o destino, impregnam a ação política, e que o ritmo do avanço político e suas
razões exigem consumo da alma e do corpo.
Ou seja, busca-se compreender o entendimento dos autores quanto a crise de governabilidade
e, por im, a forma como os atores políticos atuam
frente a virtù e a fortuna. Maquiavel, por exemplo:
deliberadamente distancia-se dos tratados
sistemáticos da escolástica medieval e, à semelhança dos renascentistas preocupados
com fundar uma nova ciência física, rompe
com o pensamento anterior, através da defesa do modo de investigação empírica. Não
se trata de estudar o tipo ideal do Estado,
mas compreender como as organizações
políticas se fundam, se desenvolver, persistem e decaem. (MARTINS, 2000, p. 16)
O REALISMO TRÁGICO: ENTRE
MAQUIAVEL E SHAKESPEARE
Das 36 peças de Shakespeare, 22 tratam
de temas políticos, a maioria de forma direta. “A
visão global de Shakespeare é bastante coerente
e pautada por preocupações com uma ordem
harmônica, responsabilidade mútua, generosidade e preocupação com o outro” (HELIODORA,
1998, p. 55). Embora haja esse desejo permanente do Estado ideal e estável, há, nas peças políticas de Shakespeare, principalmente nos Dramas
Históricos, a via real da política, marcada pela in28
determinação, insegurança e instabilidade. Parece
que Shakespeare, ao mesmo tempo, se aproxima
da política clássica pensada por Platão e Aristóteles 4, bem como da política moderna desenvolvida por Maquiavel5 , Hobbes, Locke e Weber.
Shakespeare compreende que a política
moderna é marcada pelo conlito, porém, ele entende que o soberano deve governar de acordo
com os desejos e interesses da coletividade. A
partir disso, Shakespeare dá signiicado distinto
à vida do indivíduo, à história de uma cidade ou
ao destino de um povo. Para Chisholm (1988, p.
52) “o objetivo do príncipe, coerente com o compromissso de Maquiavel com a “verdade efetiva
da coisa”, é o estabelecimento de uma ordem estável em meio a um mundo de contigência e acaso”. Observa-se, portanto, que tanto em Shakespeare como em Maquiavel, sempre permanece
algo que resiste, ou que pelo menos pode resistir,
impossibilitando as predições sobre o futuro do
jogo político. Ou seja, os autores demonstram que
é impossível cessar o conlito na vida política.
Ao lado de Maquiavel, Shakespeare
entende que a importância de conhecer política é agir politicamente, pois o saber se acha
voltado para a transformação da realidade. E
isso é uma das tendências do Renascimento,
o utilitarismo, pois se distancia da discussão
centrada em modelos e há uma aproximação
da análise da política como jogo de forças resultantes dos inconciliáveis desejos humanos.
Daí que, em certos momentos ou como parte de um projeto pessoal, a produção artística
4
A concepção clássica de política de Platão
e Aristóteles procura deinir a essência do bom
governo, a partir da qual as Constituições reais
são expressões defeituosas e muitas vezes corrompidas quando, por exemplo, ocorrem tiranias
e oligarquias. Podemos dizer que tal concepção
privilegia a atitude contemplativa, uma vez que
cabe ao ilósofo descobrir os princípios que fundamentam o agir correto a im de orientar os
homens na tarefa de construir a vida em comum.
5
A política pensada por Maquiavel observa como os governantes e súditos agem de fato. A
política não mais se refere ao modelo do bom regime, mas à análise do jogo efetivo das forças que
se chocam em circunstâncias muito especíicas.
consegue representar a condição humana, os
mecanismos de poder e da economia, ou a estrutura social na qual o artista está envolvido.
Nessa primeira situação, podem ser incluídos:
a dramaturgia de Shakespeare que, mesmo defendendo a legitimidade da monarquia inglesa, desnuda as relações de poder que afetam
cruelmente a vida. (CHAIA, 2007, p. 22-23).
Ou seja, ao tratar de peças políticas baseadas em acontecimentos históricos,
Shakespeare constrói as crônicas – chronicle
play – fundamentadas nos relatos dos historiadores Edward Hall e Raphael Holinshed.
Mas olhar para um rei na história ou tentar vêlo realisticamente era mergulhar no tumulto de
detalhes de que eram feito os anais – por exemplo, nas New Chronicles (1516) de Robert
Fabyan, em The Union of the Two Noble and
Illustre Families of Lancaster and York (1548)
de Edward Hall, que plagia o texto de Polydore
Vergil na íntegra, nas Chronicles (1562-1572)
de Richard Grafton, nas Chronicles e nos Annales de John Stow (que datam de 1565 em
diante) ou nas imensas Chronicles of England,
Scotland, and Ireland (1577 e 1587), que dizemos serem de Raphael Holinshed, mas que
verdade incorporam trabalhos feitos por outros historiadores do período Tudor ao longo de
mais de setenta anos (HONAN, 2001, p. 180).
E ao ler as fontes históricas de Hall e
Holinshed, bem como outras crônicas, os fatos
históricos nas peças são, sem dúvida, maquiados,
manipulados, exagerados ou atenuados. Shakespeare poderia, contudo, em vez de ter utilizado
da historiograia inglesa, ter utilizado as obras de
Maquiavel, como Histórias Florentinas (1525),
escrita em oito volumes, como manancial de
detalhes para suas peças teatrais históricas.
É importante notar, neste sentido, que não
há, nas peças de Shakespeare, uma afronta direta à história. Shakespeare preocupa-se, antes de
mais nada, com a coesão de cada peça como unidade dramática de representação, não assumindo
uma particular responsabilidade narratológica
similar à do cronista ou romancista, para quem as
categorias de tempo e de espaço podem ser mais
difusas e dispersas, desde que sempre amparadas
pelas linhas de continuidade da história e da vida.
Na edição ampliada de 1587, as Chronicles
de Holinshed – três volumes em formato infólio, com sete páginas de rosto e 3,5 milhões
de palavras – seriam uma fonte de proporções
oceânicas para pelo menos treze das peças de
Shakespeare. [...] Para Shakespeare, esse texto extraordinário funcionou como uma vasta
biblioteca e um manancial de detalhes; sua
imensidão desordenada, seus múltiplos pontos de vista e férteis incoerências deixavam
espaço para que a imaginação do dramaturgo trabalhasse (HONAN, 2001, p. 180-181).
Ao todo, Shakespeare escreveu nove dramas históricos ingleses e parte de outro - Henrique
VIII - e três dramas romanos. As peças que aparecem no First Folio de 1623 como histories são
pela ordem na qual foram escritas: 1°, 2° e 3° partes de Henrique VI, Ricardo III, Rei João, Ricardo
II, 1°, 2° partes de Henrique IV e Henrique V. Maquiavel, da mesma forma, foi além da função de
diplomata. Era dramaturgo - A mandrágora; Clizia - e romancista - Belfador, o Arquidiabo -, obras
que não serão analisadas no presente trabalho
Mas o estudo dos acontecimentos do passado era parte importante de seus contínuos esforços para compreender seu próprio
mundo [de Shakespeare]; uma arena fascinante na qual ele podia contemplar homens
e mulheres em ação, e as complexas relações
entre eles e a família, classes e nações,
às quais pertenciam (KIERNAN, 1999, p. 62).
Neste sentido, colocando Maquiavel e
Shakespeare lado a lado, percebe-se a clara proximidade intelectual dos dois escritores em relação
a importância da História para a compreensão do
mundo. De acordo com Martins (2000, p. 11-12):
Encarregado de fazer um relatório sobre como
tratar os revoltados do vale do Chiana, Maquiavel airma ser a história a mestra dos atos
humanos, especialmente dos governantes, e
que o mundo sempre foi habitado por homens
29
com as mesmas paixões, sempre existindo governantes e governados, bons e maus súditos.
As primeiras peças shakespearianas
demonstram o “patético trágico e o mortal jogo
político”: a trilogia Henrique VI, que marca o início de uma análise épica: 1° Parte (1589-1590);
2° Parte (1590-1591); 3° Parte (1590-1591). E
conclui essa primeira fase com a peça Ricardo III
(1592-1593). Dessas quatros peças é composta a
tetralogia da Guerra das Duas Rosas. A Guerra
entre os Lancaster e York, entre o endêmico e o
epidêmico, durou mais de trinta anos e deixou o
país arrasado pelas mortes e abandono. Shakespeare viu nesse conturbado conlito civil um modo
de analisar a tragédia da política: como os reis
dramaticamente conquistam, mantém e perdem o
poder. Ou seja, como os governados também são
atingidos pelo caráter da tragicidade da política.
Erroneamente airma-se que para Maquiavel os ins justiicam os meios. Ele airma que a tirania pode ser uma tática para
estabeler a ordem coletiva estável e segura, como ica claro no trecho que se segue:
É uma sólida máxima a que airma que
ações repreensíveis podem ser justiicadas por seu efeito, e que quando o efeito
é bom, como era no caso de Rômulo, ele
sempre justiica a ação. Pois censurável é o
homem que usa de violência para estragar
as coisas, e não aquele que faz uso para concertá-las (MAQUIAVEL, 1970, p. 132).
Maquiavel se debruça, assim como Shakespeare, em como o príncipe ou o personagem
deve manter a ordem em meio ao inexorável e
ao absurdo que coexistem sob a sombra do ingovernável, incontrolável, incognoscível. Os ins
não justiicam os meios, portanto, o que Maquivel diz é que quando o efeito é bem, ele sempre
justiica ação. Na visão de Chisholm (1989, p.
54) a respeito de Maquiavel, a política deve ser
julgada “apenas por suas consequências. Nem
o objetivo buscado por um agente nem o valor
moral inerente de um ato, nos termos da ilosoia
moral cristã ou clássica, é vital nessa avaliação.”
“Nos atos de todos os homens, em especial dos príncipes, em que não há tribunal
30
a recorrer, somente importa o êxito, bom ou
mau” (MAQUIAVEL, 2000, p. 111). Para Maquiavel, então, há apenas bons e maus efeitos,
deinidos como os resultados dos atos, e não
“pelas intenções ou pelos objetivos dos agentes [...] sua preocupação é com a importância
histórica do resultado, uma preocupação que
distingue a sua posição da crua adoração do
sucesso individual.” (CHISHOLM, 1989, p. 54)
A TRAGÉDIA POLÍTICA EM
MAQUIAVEL E SHAKESPEARE
Em Shakespeare, assim como em Maquiavel, podemos perceber uma visão histórica
cíclica pois o poder não p
ermite a estabilidade e nem é continuamente exercido por um
homem ou por um regime. Vale ressaltar que
Shakespeare é inluenciado pela concepção cíclica da história, herdada principalmente dos
historiadores Políbio (século II a.C.) e Tito
Lívio (século I a.C.), partindo do pressuposto de que o homem é eternamente o mesmo e
a história seria constituída por momentos que
se repetem. Daí o caráter educativo da história,
a grande mestra, ajudando os homens a não incorrerem nos mesmos erros. Essa ideia remete o
conceito medieval da roda da Fortuna: quem ascende, cai, ou seja, a vida é um ciclo inevitável.
Maquiavel, por exemplo, ao retratar o mesmo caráter educativo da história, por
meio do estudo dos antigos e da intimidade
com os potentados da época, aponta que “os
homens são todos egoístas e ambiciosos, só
recuando da pratica do mal quando coagidos
pela força da lei. Os desejos e as paixões seriam os mesmos em todas as cidades e em todos os povos” (MARTINS, 2000, p. xx).
Antes de ser abordada a tragédia
em Shakespeare e Maquiavel, faz-se
necessária a exposição do que vem a ser
a tragédia. Para Williams (2002, p. 30):
um desastre em uma mina, uma família destruída pelo fogo, uma carreira arruinada,
uma violenta colisão na estrada – são chamados de tragédias. E, no entanto, tragédia é
também um nome extraído de um tipo especíico de arte dramática que por vinte e cinco
séculos teve, sem interrupções, uma história
intrincada, mas que pode ser explicada. A
sobrevivência de muitas das grandes obras
a que chamamos tragédias confere um peso
importante a essa presença. A coexistência de sentidos parece-me natural, e não há
nenhuma diiculdade fundamental tanto em
ver a relação entre eles quanto em distinguir um do outro. E no entanto é comum que
os homens educados no que constitui agora
a tradição acadêmica iquem impacientes
e mesmo desdenhosos em relação aos que
vêem como usos imprecisos e vulgares da palavra “tragédia”, na fala comum e nos jornais.
O homem é sempre dominado pela agressividade covarde e astuciosa, seus pensamentos, reações e feitos são predíziveis e,
portanto, é possível fazer generalizações
universalmente válidas sobre a sociedade
e a política. Aqui se encontram pistas para
um poder não só legitimado pelo Estado,
mas também relacionado ao conhecimento
e à agressividade, que podem ser identiicações de micropoderes como também, em
última instância, de partículas integrantes do
poder institucional (CHAIA, 2007, p. 128).
Conforme Gassner (1974), o homem luta
contra o homem e não contra o destino, Deus,
a hereditariedade ou os distúrbios glandulares.
O drama shakespeariano é o drama da vontade individual. Representa a humanidade em
momentos de máxima tensão, conlito, crise, e
procura resolvê-los em termos amplamente humanos. “Coloca novas questões e improbabilidades das quais, ainda hoje, não conseguimos
escapar” (ARAUJO apud CHAIA, 2007, p. 89).
Para Maquiavel, a Fortura fornece
caminhos para o sucesso da ação política e constitui a metada da vida que nao pode
ser gerida pelo indivíduo. Ela fornece, portanto, a occasione aproveitada pela virtú
do príncipe. Isso ica claro quando deparamo-nos com a ideia do diplomata lorentino:
Nenhum principado está assegurado sem
forças próprias; antes, está ao sabor da fortuna, e não há virtude que defenda nos mo-
mentos adversos. A opinião e sentença dos
homens sábio foram sempre que nada é tão
instável quanto a fama de poder de um príncipe quando não se encontra apoiada na
própria força. (MAQUIAVEL, 2000, p. 94).
A tragédia para os autores é, portanto, vista como elemento constitutivo do
jogo da diputa de poder. Ou seja, trata-se
de como a Fortuna, coalizões e intrigas afetam na conquista e na manutenção pelo poder.
MAQUIAVEL, SHAKESPEARE E O
RENASCIMENTO
Para Hobbes - em Leviatã (1651) – dividido em quatro partes, Do homem, Do Estado, Do Estado cristão e Do reino das trevas - os
homens por si mesmos, deixados a suas paixões, não conseguem evitar a guerra. Ou seja, há
a necessidade de um pacto, buscado principalmente pelo medo, e sobretudo pelo poder exercido soberanamente que pode haver algum controle, para que os homens vivam em paz. Para
Hobbes (1974, p. 108) “os pactos, não passando
de palavras e vento, não têm qualquer força para
obrigar, dominar, constranger ou proteger ninguém, a não ser a que deriva da espada pública.”
A função de controle é, portanto, exercida pelo
Estado, fora do qual os homens se perderiam em
destrutivas guerras civis. É por meio da racionalidade, alcançada pelo medo, que os homens
refrearão seus desejos e paixões. Maquiavel, antecipadamente a Hobbes, vê o Estado dentro de
um contexto da qual a ordem pode ser criada,
superando o mundo da contigência e do acaso.
Para o lorentino, “o propósito da ação política
é estabelecer uma ordem coletiva estável e segura, com esse e somente esse propósito é que a
tática da tirania pode ser usada sem incorrer na
mera criminalidade (CHISHOLM, 1998, p. 53).
Os autores da Renascença tratam de
secularizar a consciência humana: o processo
pelo qual a maior parte das explicações teóricas se desvincula das teses religiosas. Ou seja,
o homem renascentista conia na razão e na capacidade humana de agir com autonomia, por
isso busca explicações racionais baseadas nas
experiências e observações, e não no testemu31
nho da fé. Então cabe ao político em ato criar
um novo equilíbrio de forças a partir da realidade concreta, agindo para dominar a situação, superando-a ou contribuindo para tal.
Neste
sentido,
Maquiavel (2000, p. 106) aima que:
o príncipe não deve ser crédulo nem precipitado, nem atemoriza-se, e sim proceder com
equilíbrio, prudência e humanidade, para que o
excesso de coniança não o torne incauto, nem
a desconiança excessiva o faça intolerável.
Shakespeare se situa, como mostra admiravelmente bem Goethe, numa encruzilhada da consciência trágica, no momento do
enfraquecimento da tragédia, entre o antigo
e o novo, o dever, Sollen, e o querer, Wollen:
Através do dever a tragédia ica grande e
forte, através do querer fraca e pequena. Por
este último caminho, nasceu o drama, a partir
do momento que se substituiu o monstruoso dever por um querer e porque este querer lisonjeia nossa fraqueza, sentimo-nos comovidos, porque, após uma dolorosa espera,
somos inalmente mediocremente consolados. (GOETHE apud PAVIS, 1999, p. 418).
Nicolau Maquiavel (2000, p. 106), entre o dever e o querer, no âmbito da política,
posiciona-se da seguinte forma: “desse modo,
o príncipe não deve ser crédulo nem precipitado, nem atemoriza-se, e sim proceder com
equilíbrio, prudência e humanidade, para que o
excesso de coniança não o torne incauto, nem
a desconiança excessiva o faça intolerável.
Na peça Ricardo II, a natureza conlitiva das
lições sobre ordem e desordem, obediência e rebelião, bem e mal, subordinação e ambição, legalidade-legitimidade prestavam-se precipuamente
à forma dramática e essa ideologia política-religiosa dos Tudors. Isso possibilita Shakespeare a
dar sua própria visão do homem, Estado e, inevitavelmente, da teoria do direito divino dos reis nessa época de transição para os tempos modernos.
Ricardo II caminha como o ator no
palco entre o abismo e a salvação e, a cada
32
cena esse alterar dos ânimos, o som consternado de um pobre e tolo personagem que se
articula numa tentativa alucinada de manter-se no poder. Todo o esforço é em vão.
Em Shakespeare, retoma-se a visão trágica da realidade e da política. O bardo inglês
expressou, de forma inigualável, sua visão da
capacidade humana de enfrentar as forças do destino em situações extremas, embora se afastasse
dos parâmetros clássicos6 . Nesse sentido, o impasse é parte constitutiva da tragédia. Superar a
adversidade é um ponto principal da ação trágica.
A crença de Shakespeare na capacidade da raça
humana em progredir deve ter sido forte; na
mesma medida em que reconhecia seus fracassos e as barreiras que estes constituíam contra a
melhoria da condição humana, o custo terrível
de qualquer movimento na direção de um futuro mais brilhante (KIERNAN,1999, p. 353).
Nessa peça extraordinária, Shakespeare
se preocupa, fundamentalmente, com a criação
de um quadro sociopolítico de acordo com a
trajetória do protagonista: inicialmente como
rei de jure, e, posteriormente, como rei deposto. Nessa perspectiva, o sofrimento real é
condição indispensável da tragédia na política.
Tragédia, nós dizemos, não é meramente
morte e sofrimento e com certeza não é acidente. Tampouco, de modo simples, qualquer
reação à morte ou ao sofrimento. Ela é, antes, um tipo especíico de acontecimento e de
reação que são genuinamente trágicos e que
a longa tradição incorpora. Confundir essa
tradição com outras formas de acontecimento
e de reação é simplesmente uma demonstração
de ignorância (WILLIAMS, 2002, p. 30-31).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
6
Tragédia é o gênero teatral em que se expressa o conlito entre a vontade humana, por
um lado, e os desígnios inelutáveis do destino,
por outro. A rigor, o termo só se aplica à tragédia
grega ou clássica, cuja origem se confunde com
o próprio teatro, mas por analogia é tradicionalmente estendido à literatura dramática de várias
épocas, em que conlitos semelhantes são tratados.
Na Itália renascentista de Maquiavel impera a desordem. “A tirania impera em pequenos
principados, governados despoticamente por
casas reinantes sem tradição dinástica ou de
direitos contestáveis” (MARTINS, 2000, p. 6).
A ilegitimidade do poder, sua conquista e sua
manutenção, gera situações de crise e instabilidade permanente. O futuro cabe às escolhas do
príncipe e à Fortuna. Ainda que Shakespeare
não escreva na Itália, é possível assimilar a
mesma realidade em Ricardo II. O soberano,
para se manter no poder e ser sustentado pelo
povo, necessita, então, de ousadia em momentos de crise; prudência em momentos de estabilidade; precisa ter conhecimento da realidade
que o cerca. Ou seja, tem o dever de conhecer
a natureza dos tempos. É preciso estar cercado
de bons ministros; evitar os aduladores; enfraquecer os desleais mais próximos e os inimigos.
O cálculo político, resultado de escolhas
racionais, a astúcia e a ação rápida e fulminante
contra os adversários são capazes de manter o
príncipe. Na política, o que é necessário ser feito,
será feito, independentemente de ser certo ou errado, justo ou injusto para a maioria. “Ao príncipe, assim, não deve importar a pecha de cruel
para manter unidos e com fé os seus súditos”
(MAQUIAVEL, 2000, p. 105). A manutenção
da ordem legal é necessária e fundamental para
quem governa. Nem a religião, nem a tradição,
nem a vontade popular legitimam o soberano
e ele tem de contar exclusivamente com sua
energia criadora (MARTINS, 2000, p. 6-7).
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33
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RESUMO
O presente trabalho parte da premissa de
que Estados são construções históricas que constituem famílias heteropatriarcais como unidades
fundacionais e regulam as atividades sexuais a
im de garantir a continuidade intergeracional
e a coesão societal, gerando como produto unidades fortes e homogênias. (MISKILCI, 2009).
Nota-se que a heteronormatividade é usada para
justiicar a criação e a manutenção do, segundo
uma perspectiva Realista, o principal ator das
relações internacionais: o Estado. Cruzando
essa informação com a realidade russa, é evidente que aquele Estado foi fundado e mantido segundo a heteronormatividade. Ao ser analisada a
composição do Estado russo ica perceptível que
este é demasiado diferente dos Estados-nação
que se formaram no Ocidente. A Rússia tem uma
visão muito mais tradicional quanto às questões
de gênero e sexualidade. O objetivo é analisar a
ditadura da heteronormatividade que o existe na
Rússia quando comparada a outros países, além
de observar artifícios que o governo russo gera
com o mesmo intuito. Serão analisadas questões
de gênero e de sexualidade segundo a abordagem da Teoria Queer, e mostrar como essas categorias são construções sociais. A teoria Queer
se propõe a “romper os espaços ixos e initos
da identidade, partindo do princípio de que a
sexualidade não possui signiicados a priori,
mas signiicados relacionais que se constroem,
se imitam e são imitados.” (Talburt, 2005: 25)
A análise apoia-se na Teoria Queer das
Relações Internacionais. Sendo uma teoria relativamente nova na Disciplina, a Teoria Queer
é criada nos Estados Unidos em departamentos de Filosoia e Crítica Literária no im da
década de 1980. Tal teoria tem contribuído de
forma incisiva na análise de questões de identidades sociais, gênero e sexualidade na Disciplina e de como tais questões são mecanismos de expressão individual que acabam por
Graduando do curso de Relações Internacionais
na Faculdade ASCES em Caruaru, Pernambuco.
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