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Hume e o Direito Natural

2000

Hume e o Direito Natural Cicero Araujo Texto disponível em www.iea.usp.br/artigos As opiniões aqui expressas são de inteira responsabilidade do autor, não refletindo necessariamente as posições do IEA/USP. Hume e o Direito Natural* Cicero Araujo** I Os historiadores da escola jusnaturalista moderna têm procurado mostrar que uma das marcas fundamentais de sua "modernidade" é o fato de este termo ter passado a designar uma "qualidade", "poder" ou facultas moralis do indivíduo (o ius "subjetivo").1 Tal designação não é feita em detrimento do uso considerado mais clássico – o direito enquanto "aquilo que é justo", ou ius "objetivo" – o qual, porém, invariavelmente aparece na forma de um preceito da "lei natural". As diferenças entre os autores modernos neste ponto vão dizer respeito mais à posição teórica que o direito (subjetivo) ocupa em relação à lei natural, do que propriamente à existência ou necessidade desta última. Embora bastante econômico em seu emprego, Hume não considera essas noções irremediavelmente contaminadas por asserções racionalistas ou teológicas. Como sua maior preocupação é com problemas de fundamentação, e não com questões de natureza mais prática, o autor dedica-se principalmente a criticar certos pressupostos filosóficos que a seu ver obscurecem a linguagem então utilizada pelos juristas, procurando submetê-la a uma depuração. O que pode induzir à leitura de que Hume não possui nenhuma teoria (construtiva) do direito. A tese que vou apresentar, contudo, caminha num outro sentido: penso que o filósofo efetivamente esboça uma teoria construtiva, apesar de limitá-la a um espaço bem mais restrito do que o ocupado pela tradição jusnaturalista; e que esta teoria, se vista exclusivamente naquele espaço, expõe alguns traços fundamentais da vertente grociana dessa tradição. * Salvo algumas alterações, este texto segue o que apresentei nas duas primeiras seções do capítulo VI de minha tese de doutorado, A teoria humeana das virtudes e o contexto jusnaturalista, defendida em 1994 no Departamento de Filosofia da USP. ** Professor do Departamento de Ciência Política da USP. 1 Há, contudo, divergências quanto à sua origem histórica - cf., entre outras, as objeções que R. Tuck (1979, pp.22ss) faz à interpretação de M. Villey (1964), que atribui a Occam a paternidade da designação. 1 II Comecemos por esta última proposição. Um dos traços a que me refiro é o fato de Hume associar a justiça à propriedade. E uma das conseqüências desta associação é que todo emprego que Hume faz de "direito" (e seu correlato "dever" ou "obrigação") é idêntico em forma – embora, obviamente, não em conteúdo – ao emprego de "propriedade" sobre bens materiais. Isto quer dizer que, do ponto de vista da jurisprudência humeana, um indivíduo tem um direito toda vez que puder traduzi-lo na forma de um poder moral de exigir de outros que se abstenham de algo (uma ação ou objeto) que seja tido como seu. Este é um dos sentidos – a meu ver o principal – em que Grócio usa o termo ius, isto é, aquele que está estreitamente ligado à proteção do suum (o “próprio” de cada um). Se a informação de K. Olivecrona é correta – de que os teóricos da lei natural em língua inglesa já no século XVII converteram o suum em property –, não é surpreendente que encontremos autores (discreta ou confessadamente influenciados por Grócio) usando a palavra property não só para se referir ao direito a bens materiais, mas a qualquer direito. O autor mais conhecido e influente no final do século XVII que adota esta equação é John Locke, como testemunham seus textos e seus discípulos.2 Mas pode parecer um tanto surpreendente que tal equação esteja também presente no pensamento de Hume. Creio que a dificuldade maior de torná-la palatável ao leitor familiarizado com seus textos está no seguinte: o filósofo adere a esta formulação tradicional em meio a uma simultânea e veemente rejeição dos argumentos que autores da escola jusnaturalista usam para justificá-lo. A teoria moral de Hume é primariamente uma teoria das virtudes, e o filósofo percebeu que a "gramática" delas, em sua forma natural ou espontânea, não poderia se adequar à "gramática" explicitada pela noção de direito que aqueles autores utilizavam. Mas Hume não pretende rejeitar esta última por causa disso. Seu esforço teórico vai, pelo contrário, no sentido de conciliar as duas "gramáticas", o que o leva a formular a noção de virtude artificial (a justiça, por exemplo, é uma virtude artificial). O assentamento desta fórmula, contudo, passa por uma crítica generalizada das teorias morais que pensam 2 "Pois a Idéia de Propriedade, sendo um direito a qualquer coisa..." (Locke, 1975, IV.3.xviii; cf. Locke, 1970, II.87 e II.123). Barbeyrac, um dos grandes difusores de sua filosofia moral e política no início do século XVIII (ver a nota de P. Leslett a Locke, 1970, p.288n.), observa: "Mr. Locke entende pelo nome [propriedade] não apenas o direito de um indivíduo sobre seus bens ou suas posses, mas ainda sobre suas ações, sobre sua Liberdade, sobre sua Vida, sobre seu Corpo etc., em uma palavra, todo tipo de direito" (J. Barbeyrac, "Preface du Traducteur" ao De iure naturae et gentium (de S. Pufendorf), p.XX n.(b)). 2 poder sustentá-las primariamente nas idéias de direito e propriedade (como fazem Grócio e Locke), ou de qualquer outra que não a de virtude. Suponhamos, para visualizar melhor essa crítica, que a teoria do direito inspirada em Grócio seja de fato a sua interlocutora. Em outro lugar, já tratei de como Hume teria se posicionado sobre ela no que diz respeito à teoria da propriedade sobre bens (dominium).3 Mas ainda há dois pontos cruciais da teoria que precisam ser esclarecidos e cotejados: o que diz respeito ao chamado direito natural e o método que o jurista concebe para ligar o direito natural ao direito criado por artifício humano – a promessa. Ambos são fundamentais para esclarecer o conceito de direito como um todo. A) Segundo Grócio, direito é aquilo que pode ser feito sem causar injúria aos outros. Sendo excessivamente genérica, esta definição é concretizada numa fórmula "subjetiva": direito é uma faculdade ou poder moral de demandar dos outros "o devido", este último expressando aquilo que o indivíduo pode reivindicar como próprio. Este "próprio", porém, tem um sentido inclusivo – quando a pessoa pode reivindicar a sua parte num estoque de coisas comuns –, ou exclusivo. Neste segundo sentido, diz Grócio no Mare liberum, "próprio implica que uma coisa pertence a uma pessoa de tal modo que não pode pertencer a qualquer outra" (Grócio, 1916, p.24; cf. Buckle, 1991, p.169). O direito, por fim, pode ser redescrito em termos de uma "permissão" (ou "liberdade") da lei: no estado de natureza, o direito é uma permissão da lei natural; no estado civil, é uma permissão da lei civil. A idéia de que o direito é um poder moral do indivíduo é decisiva, pois significa que, independentemente de sua capacidade de garanti-lo pela força, ele pode demandar "com justiça" o ato ou objeto a que corresponde o direito.4 O direito é sobre atos ou objetos, mas é sempre a pessoas que se exige o respeito a ele. Segundo Grócio, uma vez identificado esse direito, todo e qualquer ser inteligente (Deus incluso) é capaz de perceber a moralidade desta exigência e, portanto, a obrigação moral ou dever de respeitá-la. A identificação de um direito se faz basicamente assim: se existe algo que posso dizer que é meu "de tal modo que não pode pertencer a qualquer outra pessoa", ou então que me pertence numa partilha com outros, automaticamente tenho um direito sobre ele, e todos os demais a correspondente obrigação de respeitá-lo. Há três coisas que por natureza se pode dizer que pertencem exclusivamente a uma pessoa: vida, membros e liberdade (ocasionalmente Grócio acrescenta 3 Ver o capítulo V de minha tese de doutorado, já citada. "O Poder insinua mais diretamente a posse atual de uma qualidade em relação a Coisas ou a Pessoas, e não designa senão obscuramente a maneira pela qual a adquirimos. Enquanto que o Direito dá a entender própria e distintamente, que esta qualidade foi adquirida legitimamente, e que atribuímo-la a nós a justo título" (Pufendorf, I.1.xx; grifos do autor). 4 3 a "reputação" ou "bom nome"). Ou seja, o complexo corpo/intelecto e as ações da pessoa. Estes constituem o que chamo de núcleo duro do suum. Ou, para ser mais preciso ainda, e falando em termos teológicos: vida e membros constituem a propriedade natural "imperfeita" da pessoa, pois, embora tenha um direito exclusivo sobre eles (nenhum outro ser humano pode reivindicá-los como ela pode), ela não tem o direito de aliená-los – vida e membros pertencem propriamente a Deus, sobre os quais se tem apenas um direito de "locatário"; enquanto as ações constituem sua propriedade "plena ou inteira", que por definição pode ser alienada. Mas há outras coisas às quais originalmente só temos um direito inclusivo: o direito aos meios de conservação da vida; intimamente colado a este, porém mais específico, o direito às provisões da Terra (terra, água, ar, vegetais, animais); e o direito de punição aos transgressores da lei natural – ou seja, dos que cometem "injúria". (Chamo a atenção do leitor para a distinção entre o direito exclusivo à vida e o inclusivo à conservação da vida, em vista do que vou discutir depois.) Todos os direitos listados acima constituem o direito natural em Grócio, e vão servir como um modelo para seus sucessores. Locke os aceita in totum.5 Mas, sendo um autor menos erudito, porém mais sistemático, ele vai procurar adequá-los à estrutura geral de seu pensamento filosófico, levando-o a apresentar um sofisticado argumento para justificá-los. O núcleo dele é expresso pelo seguinte pensamento:6 tudo que um ser inteligente é capaz de fazer ou fabricar por sua própria conta e completo conhecimento é dele por direito natural, e este direito é pleno e exclusivo. Como um ser inteligente perfeito, Deus criou os homens segundo sua imagem (isto é, como ser inteligente e também capaz de fazer, fabricar, criar), e o mundo (cf. Locke, 1970, I.30). Como criador deles, Deus possui um direito natural de governá-los, o que faz através de um conjunto de regras que fixam o "certo" e o "errado" – a chamada "lei divina" (Locke, 1975, II.xxviii.8) –, cujo conhecimento é acessível através de duas fontes: a revelação (lei divina positiva) e a razão (lei natural). Quanto aos direitos naturais dos homens, Locke (seguindo a divisão grociana) os coloca em dois grandes campos: os que se referem ao que é próprio de cada um num sentido exclusivo e num sentido inclusivo. Na primeira categoria estão vida (corpo e membros), pessoa (identidade pessoal, consciência) e liberdade (ações), entre os principais; na segunda, o direito à preservação da vida, o direito de "executar a lei natural" – ou seja, punir os seus transgressores, referido 5 Existe apenas um direito natural, propositadamente não mencionado aqui, a caracterização do qual expressa uma real divergência entre os dois autores: o direito (imperium) dos pais sobre seus filhos. Grócio diz que se trata de um direito obtido por geração (cf. 1925, II.5.i.3). Como ficará claro abaixo, Locke não aceita que a geração pura e simples crie qualquer direito. 6 As linhas abaixo seguem as interpretações de Tully, 1980, e Buckle, 1991. 4 também como um "direito de preservar toda a humanidade" (cf. Locke, 1970, II.11) – e o direito aos bens materiais. O recorte é justificado, não pela frouxa relação de pertença que Grócio sugere, mas pelo modelo do artesão: os homens fazem sua própria identidade e suas ações e, portanto, têm um direito pleno e exclusivo sobre eles; mas não fizeram suas vidas (biologicamente falando) e os outros objetos animados e inanimados do mundo. Contudo, cada qual tem um direito exclusivo – pois Deus confiou especificamente a cada um de nós o dever de "salvaguardá-los" –, embora não pleno, de usar seu corpo e intelecto (cf. Tully, cap.5; Buckle, cap.3). O modelo do artesão serve então para criticar a teoria filmeriana de que Adão teria tido um direito exclusivo e pleno sobre as provisões da terra e sobre seus filhos, já que ambos não foram, propriamente falando, produzidos por ele. B) Segundo Grócio e Locke, do conjunto original de direitos naturais, alguns podem ser alienados e outros não. O direito à vida e à preservação da vida jamais podem ser alienados, pois não temos direito pleno sobre eles. Uma parte dos bens materiais sobre os quais os homens primitivamente tiveram um direito inclusivo, puderam ser alienados e transformados em objetos de direito exclusivo e pleno; assim como o direito de punição dos transgressores da lei natural. Não vou entrar nas dificuldades peculiares à teoria lockeana neste ponto. Gostaria apenas de ressaltar a idéia que orienta a ambos (Grócio e Locke): para se obter um direito de outrem, um método legítimo de transferência de direitos se faz necessário. Acontece que para transferi-los legitimamente é necessário que o que se vai transferir pertença plena e exclusivamente ao transferidor. E o "objeto", digamos assim, sobre o qual qualquer pessoa tem um direito deste tipo são suas próprias ações. O método de transferir a propriedade de minhas ações é através da promessa. Segundo Grócio, é através deste método que transferimos tanto parte do direito inclusivo sobre bens (quando se trata de constituir o direito exclusivo sobre eles) quanto o direito de punição (quando se trata de submeter-se a um poder civil). O ponto de vista de Grócio a respeito é certamente dissonante do de Locke no que diz respeito aos bens materiais, pois Locke pensa que, através do critério do trabalho, não é necessário que haja pactos para se obter um direito exclusivo de propriedade sobre bens (1970, II.25-29). Mas eles concordam que este método é necessário no que diz respeito à teoria do governo. O que torna possível a promessa? Através dela uma pessoa pode receber direitos sobre as ações futuras de outros. Em outras palavras, ela obtém um poder moral de exigir dos outros uma restrição a sua liberdade (antes apenas limitada pela lei natural). Esta restrição corresponde à criação de novas obrigações, que se acrescentam à obrigação original de respeitar os direitos naturais de cada um. A despeito de seguirem a mesma estrutura de 5 raciocínio, Grócio e Locke divergem quanto ao que pode ou não ser alienado. Para Locke, mas não para Grócio, o direito de alienar ações existe até o ponto de não entrar em conflito com o dever, prescrito pela lei natural, de salvaguardar a vida, o que em sua opinião ocorre quando um indivíduo se deixa expor ao "Poder Absoluto, Arbitrário de outro" (1970, II.23). Daí sua condenação da auto-escravização. Hume deve ter aproximado a estrutura do pensamento moral de Locke das de Samuel Clarke e William Wollaston – em seu tempo, dois famosos representantes do chamado “racionalismo ético” inglês. Estes pensavam que o direito, uma qualidade moral, retira sua moralidade da "natureza das coisas". Como tal, o direito poderia ser conhecido apoditicamente e justificado através de uma investigação da relação entre objetos.7 Esta leitura não é bem exata no que diz respeito a Locke,8 mas ela o faria identificar, ainda mais do que estou sugerindo aqui, a teoria deste último com a de Grócio. Do exposto acima, fica claro que, para explicar o direito sobre bens (dominium), ambos os autores utilizam uma teoria do direito natural cuja idéia central é a propriedade. Esta idéia, com sua dupla acepção – propriedade exclusiva sobre a vida, membros e liberdade, e propriedade inclusiva dos meios de preservação da vida – constitui a base que vai justificar a idéia contígua de propriedade exclusiva sobre bens. E mais importante de tudo: trata-se, desde sua origem, de uma idéia moral, e não a representação de uma mera posse física. Quando Grócio e Locke dizem que todos temos uma propriedade sobre a vida, membros e liberdade, isto significa que temos um poder moral efetivo de exigir dos outros o seu respeito. Este ponto é crucial, e joga luz sobre duas passagens complementares do Tratado da Natureza Humana (T), de Hume, que me interessam enormemente aqui: (1) Aqueles [...] que fazem uso da palavra propriedade, ou direito, ou obrigação, antes de ter explicado a origem da justiça, ou mesmo ao fazer uso daquela palavra naquela explicação, são culpados de uma vultosa falácia e não podem jamais raciocinar sobre um fundamento sólido. A propriedade de um homem é algum objeto com ele 7 É assim que Hume os interpreta no Enquiry upon the Principles of Morality (EPM; esta obra está em Hume 1975), p.197 n.1. 8 Digo isto porque Locke, seguindo os passos de Pufendorf, distingue os "entes morais" dos "entes naturais", através de sua teoria dos modos mistos (ver 1975, II.xxii). Portanto, não é exato dizer que a moralidade depende da "natureza das coisas", se se identifica estas últimas com os entes naturais. Locke concordaria com Grócio, Clarke e Wollaston, de que as relações morais podem ser rigorosamente demonstradas - e constituir um corpo de conhecimento apodítico (como o é a matemática), e não provável (como o é a física) -, mas apenas porque os entes morais são inteiramente diferentes dos entes naturais. 6 relacionado. Esta relação não é natural, mas moral e fundada na justiça (T 491; grifos de Hume). (2) A Justiça é comumente definida como uma constante e perpétua vontade de dar a cada um o que lhe é devido. Nesta definição se supõe que há tais coisas como direito e propriedade, independentemente da justiça, e antecedentes a ela; e que elas teriam subsistido, mesmo que os homens jamais tivessem sonhado em praticar tal virtude (T 526-7; grifo de Hume). Há duas maneiras de ler estes textos. Por um lado, poder-se-ia pensar que, sendo o contexto da discussão a estabilidade da posse de bens materiais, seria muito provável que as idéias de direito ou propriedade a que as passagens acima se referem fossem apenas relativas a estes objetos. Se Hume não se refere aos direitos naturais de Grócio e Locke – especialmente ao direito ou propriedade natural que supostamente todos os seres humanos têm à sua vida, membros e liberdade – isto freqüentemente tem sido atribuído ou a uma pura e simples negligência de sua teoria, ou ao fato de (dada sua teoria dos sentimentos morais) ter considerado ocioso enunciá-los teoricamente, tais direitos estando implícitos em seu argumento.9 Mas gostaria de propor uma outra leitura. Penso que é necessário extrair as devidas conseqüências da hipótese conjectural-histórica do filósofo, de que a virtude da justiça não é natural, mas filha de determinadas circunstâncias e necessidades da vida social. E foram estas circunstâncias e necessidades – fundamentalmente o processo de superação das family-societies e a necessidade de regular os bens materiais – que não só deram origem à idéia de direito ou propriedade associada a estes objetos, mas à idéia mesma de "direito" ou "propriedade". Se Hume tivesse assumido que a vida e a liberdade são propriedades naturais do indivíduo, ele teria necessariamente que reconhecer que a virtude da justiça é uma idéia moral natural, e não fruto de convenção. Um dos objetivos centrais de seu argumento, contudo, é mostrar exatamente o oposto. 9 "Não há nada anterior [no texto do Tratado] a sugerir que 'propriedade' inclua 'vida e membros'. Parece que Hume simplesmente os ignorou, levado por uma preocupação dominante com o aspecto econômico da sociedade" (D. Forbes, 1975, p.86). "Vida e liberdade não são bens próprios ao jogo econômico. As regras são necessárias para definir direitos de propriedade; mas não há necessidade de escrever uma regra estabelecendo que é errado os participantes se matarem uns aos outros. Que isto é errado está pressuposto. Similarmente, não há necessidade de uma regra [estabelecendo] que eles não possam escravizar-se uns aos outros." (Stewart, 1992, p.185). 7 Quer isso dizer que a teoria torna um assassinato, por exemplo, moralmente permissível? De modo algum. Mas é possível entender a reprovação moral de um assassinato sob duas perspectivas distintas: ou a partir da consideração dos motivos e qualidades mentais dos agentes envolvidos – assassino e vítima (ver o exemplo do assassinato de Agripina por Nero em EPM 290-1); ou a partir da concepção de que a vítima possui um direito à sua vida. Segundo a teoria moral de Hume, a primeira perspectiva não só não é idêntica à outra, como é histórica e psicologicamente mais primitiva. Pode-se reprovar moralmente um assassinato sem que se tenha a concepção de que a vida é propriedade do indivíduo. A segunda idéia é muito mais sofisticada que a primeira e, ao ver de Hume, teria que pressupor que os observadores já tivessem uma idéia de propriedade. Contudo, nossas idéias de direito – qualquer idéia de direito (= propriedade) – são artificialmente constituídas. O argumento que, no texto, se volta para problemas de manuseio de bens materiais, poderia assim se estender aos objetos em geral: Como nosso primeiro e mais natural senso de moralidade é fundado na natureza de nossas paixões, e dá preferência a nós mesmos e nossos amigos, acima de estranhos; é impossível que possa haver naturalmente qualquer coisa como um direito ou propriedade fixa, enquanto as paixões opostas dos homens os impelirem para direções contrárias, e não forem restringidas por algum acordo ou convenção (T 491; meu grifo). A lembrança da ligação entre moralidade e motivação dos agentes, nesta passagem, vem a propósito. Os autores que sustentam que o direito é uma idéia moral primitiva – que explica nossas idéias de virtude e vício, ao invés de ser explicada por elas – são levados a fundamentar a moralidade desta idéia através de uma análise de certas relações entre objetos. Segundo Hume, eles só acrescentam um dado a elas: pelo menos um dos lados da relação deve necessariamente ser um ente inteligente – Deus ou os homens –; de modo que a mesma relação, se fosse estabelecida entre objetos inanimados, ou animados, porém não-inteligentes, não teria o mesmo efeito moral – ou porque os objetos não seriam capazes de perceber sua moralidade, ou porque nenhum deles teria sido projetado (pelas mãos divinas) para produzir tal efeito (cf. T 467-8). Mas este argumento admite implicitamente que tais relações entre objetos se aplicam a todos os seres humanos, e certos autores chegam mesmo a afirmar (como Grócio, Clarke e Wollaston) que elas se aplicam ao próprio Deus. A objeção humeana central 8 a tal raciocínio é que, se ele fosse verdadeiro, as relações tidas como intrinsecamente morais deveriam sempre ser vistas como tais, independentemente de circunstâncias e motivos. No caso de Grócio, a relação de pertença entre um indivíduo dotado de inteligência e seu objeto deveria produzir sempre um poder moral de reivindicar dos outros uma abstenção do que é seu, ou seja, uma obrigação moral ou dever. Analogamente, em Locke, toda vez que uma relação entre um ser inteligente e um objeto qualquer se identificasse com o modelo do artesão – que para Hume também é derivado de uma "espécie de causa" –, esta identificação deveria produzir invariavelmente um poder moral de reivindicar deveres dos outros. É como se efetivamente a cópula "é" (is) dessas relações (tal ou tal objeto é produzido por tal ou tal ser inteligente) pudesse produzir automaticamente termos morais – por exemplo, o dever (que pode ser aproximado ao ought da citação abaixo) de abstenção do que é alheio: Em todo sistema de moralidade que encontrei até agora, sempre observo que o autor procede por algum tempo no modo usual de raciocínio, e estabelece o ser de Deus, ou faz observações a respeito dos negócios humanos; quando repentinamente vejo-me surpreso por descobrir que ao invés das cópulas usuais de proposições, é, e não é, não encontro qualquer proposição que não seja conectada por um deve ser [ought], ou um não deve ser [ought not]. Esta mudança é imperceptível; mas é da máxima importância. Pois como este deve ser, ou não deve ser, expressa uma nova relação ou afirmação, seria necessário que ela fosse observada e explicada; e, ao mesmo tempo, uma razão deveria ser dada – o que parece totalmente inconcebível – de como esta nova relação pode ser uma dedução de outras que são inteiramente diferentes desta (T 469; grifos de Hume). Acontece que nosso "primeiro e mais natural" sistema de avaliação moral leva em conta, não a relação entre a pessoa e um outro objeto qualquer, mas as qualidades mentais e motivos do agente. E portanto sua proximidade ou distância com outros indivíduos é um fator a ser considerado: por que ele deveria se abster, de um modo fixo, dos objetos que os outros possuem, se esta abstenção lhe fosse prejudicial ou prejudicial àqueles que lhe são caros? Se ele não fosse capaz de perceber que há uma vantagem ou utilidade em ver tais objetos como uma propriedade dos outros – isto é, como uma posse exclusiva, inviolável, fixa, deles –, a abstenção do que é alheio jamais seria percebida como um comportamento moral. Não que a 9 abstenção não pudesse jamais ocorrer sem esta percepção; mas ela estaria condicionada a circunstâncias e motivos, e portanto não seria observada inflexivelmente. Ora, observar inflexivelmente um comportamento de abstenção é, segundo Hume, a característica fundamental da idéia de propriedade: "Depois que esta convenção, relativa à abstenção das posses alheias, é posta em prática, e cada um adquire uma estabilidade de suas posses, imediatamente surgem as idéias de justiça e injustiça; assim como as de propriedade, direito, e obrigação" (T 490-1). Todavia, não é porque Hume é cético quanto aos fundamentos das relações causais, ou quanto aos fundamentos da idéia do self, que ele é cético quanto aos fundamentos da idéia de direito ou propriedade natural. Hume não está querendo aqui fazer objeções epistemológicas quanto à existência real de uma conexão causal. O problema é que, mesmo que fosse reconhecido este tipo de conexão entre a pessoa (o self) e seu corpo, e a pessoa e suas ações – e a existência real dessas duas relações, em termos práticos, Hume jamais põe em dúvida –, ainda assim o filósofo objetaria que esta relação de causalidade (marcada pela cópula is) por si mesma não produz efeitos morais (marcados por termos como ought). Nem pretende Hume questionar o pensamento (mais uma vez de ascendência grociana) de que o ius (subjetivo) é um "poder moral" do indivíduo. Ele apenas diverge do jurista quanto à fonte deste poder. É verdade que o conceito de direito implica uma distinção entre a idéia de "poder" e a de seu "exercício", pois quando se diz que uma pessoa tem um direito sobre determinado objeto, este direito pode ou não ser exercido, isto é, esta pessoa pode ou não exercer seu "poder moral" de demandar dos outros o seu respeito. Mesmo estando separada de seu "exercício", portanto, a idéia de "poder moral" não perde sentido prático. No livro I do Tratado, porém, Hume diz que a idéia de "poder", qualquer que seja, separada da idéia de seu exercício, é ininteligível (cf. T 171), um ponto de vista que pode sugerir uma objeção à presente interpretação. Ocorre que, similarmente ao problema do self, o autor do Tratado toma o cuidado de, no livro seguinte (sobre as paixões), afirmar que "embora isto [a não separação da idéia de "poder" da de seu "exercício"] seja estritamente verdadeiro num modo justo e filosófico de pensar, é certo que esta não é a filosofia de nossas paixões; mas que muitas coisas operam sobre elas por meio da idéia e suposição de poder, independente de seu real exercício" (T 311-2; grifos de Hume). Esta observação pode ser aplicada ipsis literis à noção de direito. O que talvez pudesse ser mais fortemente questionado neste argumento é a razão pela qual a propriedade dos bens materiais tem precedência sobre outras idéias do mesmo tipo. Hume diz que a idéia de propriedade só pode ter surgido em virtude da impossibilidade de 10 uma pessoa exercer com sucesso um domínio exclusivo sobre tais objetos, sem que houvesse uma ação concertada com outras pessoas. "Existem três espécies diferentes de bens, dos quais temos posse: a satisfação interna de nossa mente, as vantagens externas de nosso corpo, e o desfrute de tais posses, como as que adquirimos por nossa indústria e boa fortuna." Estamos sempre "perfeitamente seguros" do primeiro, prossegue o autor; enquanto o segundo, embora possa ser "despojado de nós", não é de nenhuma vantagem para os que nos despojam. Os únicos bens que poderiam ser úteis aos outros, e despojáveis "sem qualquer perda ou alteração" são os do terceiro tipo, os quais por isso mesmo Hume também denomina "bens externos" (T 489 e 505). Foi a necessidade de estavelmente atribuí-los aos seus possuidores que deu origem à idéia de propriedade, e só a partir de então, por analogia, pôde ser transportada para outros "bens". Segundo a conjectura histórica humeana, a atribuição de um direito aos primeiros deve ter sido causalmente anterior aos segundos porque foi a disputa em torno dos "bens externos", e não em torno dos “bens internos", que tornou visível o comportamento que a idéia de direito requer. Mas a não ser por esta restrição, o autor não teria nenhuma dificuldade em considerar, como Grócio e Locke, vida, membros e liberdade como "propriedades" de cada pessoa. O que Hume, em suma, está indicando em seu argumento? Que se o controle sobre certos objetos não fosse facilmente arrebatável, sem "perda ou alteração", a idéia de direito/propriedade seria inútil, e, portanto, não poderia ter surgido historicamente. O fato de o autor dar tanta atenção, em sua conjectura, às vantagens e desvantagens que certos comportamentos podem produzir, está certamente assente em alguns pressupostos psicológicos. E um dos mais importantes é o seguinte: as paixões humanas não são a tal ponto benevolentes que levem as pessoas a se absterem de fazer violência aos outros em toda e qualquer circunstância; mas nem são a tal ponto egoístas que as levem a desejar a destruição de outros pelo menor motivo que fosse. Por que, por exemplo, destruir o corpo ou a vida de outros, se a sua destruição não me servir para algum propósito? Hume, evidentemente, não está dizendo que a vida social não proporcione motivos para que as pessoas se destruam umas às outras: conflitos em torno de bens materiais não fazem outra coisa senão fornecer tais motivos. O que ele está negando é (1) que haja uma paixão intrínseca à natureza humana que leve as pessoas a se destruírem gratuitamente, e (2) que todas as paixões de teor egoísta possam produzir conflitos tão generalizados como a paixão do interesse, a ponto de colocarem em risco a "paz e a ordem" da sociedade: "Todas as outras paixões, a não ser o interesse [pelos "bens externos"], ou são facilmente restringidas, ou não são de conseqüência perniciosa, quando toleradas" (T 491). 11 Colocada como está, a última asserção pode soar um tanto irreal ou ingênua. Certamente Hobbes a veria deste modo, pois, em seu raciocínio, conflitos em torno de bens materiais são apenas expressões de um desacordo muito mais profundo entre os seres humanos. É curioso, a propósito, que segundo esse filósofo (cf. Leviathan XI, 163-4) um dos principais obstáculos à solução que propõe (a submissão quase incondicional a um soberano) sejam exatamente aquelas "outras paixões" – vaidade e inveja, por exemplo – que Hume, na passagem acima citada, estima serem de menor conseqüência para a vida social. Mas talvez a asserção humeana possa aparecer mais convincente se voltarmos a refletir sobre as razões que oferece para o seu próprio diagnóstico. Em relação à inveja e à vingança, por exemplo, Hume reconhece que sejam sentimentos "perniciosos". Mas seu parecer é que "eles operam apenas por intervalos, e são dirigidos contra pessoas particulares, que consideramos como nossos superiores ou inimigos". Ou seja, tal como as paixões benevolentes de uma maneira geral – as quais não são consideradas universais, mas orientadas para certas pessoas (amigos e familiares) em preferência a outras –, todas as paixões egoístas (exceto a do interesse), quando dirigidas contra pessoas, o são contra determinadas pessoas. E do mesmo modo que as primeiras não são capazes de produzir a vida social mais ampla – aquela que extrapola o restrito círculo de amigos e familiares –, as segundas não são capazes de causar sua destruição. Se, pelo contrário, as segundas tivessem a força de desencadear conflitos tão generalizados como o autor do Leviathan supõe, o estado de natureza seria de fato o estado de guerra hobbesiano, com apenas uma diferença de diagnóstico a seu respeito: tal como o inferno cristão, seria impossível escapar dele. O termo "estado de natureza" requer alguns esclarecimentos. Hobbes o contrasta com "estado civil" (aquele em que uma pessoa se investe ou é investido de autoridade para governar outros) e o utiliza com objetivos heurísticos – entre outras coisas, para identificar quais são os direitos naturais do indivíduo, que então são contrapostos aos direitos ditos "civis". Mas sua utilização possibilitou alguns equívocos, entre os quais induzir à idéia de que o estado de natureza representa um tempo remoto da humanidade em que indivíduos viviam numa "solitary condition". Hume às vezes o emprega nesta acepção, e como em sua conjectura histórica seres humanos desde sempre vivem em alguma forma de sociedade, ele o considera um estado imaginário, servindo apenas para mostrar por que os homens sempre precisaram viver em sociedade. Nenhum emprego do termo é feito no sentido de listar direitos naturais. Contudo, é principalmente neste sentido que os autores do jusnaturalismo, a partir de Hobbes, o empregam. Pufendorf e Locke, por exemplo, o utilizam assim, e igualmente o contrastam com o estado civil: "Ausência de um juiz comum com Autoridade, coloca todos os 12 homens num Estado de Natureza" (Locke, 1970 II.19; cf. Pufendorf, II.2.iii). Suas divergências com Hobbes neste ponto dizem mais respeito à descrição do estado de natureza, pois Pufendorf e Locke querem mostrar que nele os homens são governados pela lei natural, e como tal são moralmente submetidos a certas obrigações, entre as quais a de respeitar o direito natural alheio (cf. Locke, 1970, II.6; Pufendorf, II.2.iv). Esta importante restrição os faz admitir direitos sobre bens materiais no estado de natureza, o que Hobbes evidentemente recusa. Com essa admissão, contudo, cria-se uma certa confusão a respeito do significado do estado de natureza. Pois Hume, embora recuse a descrição hobbesiana, estaria certamente disposto a aceitar em sua conjectura histórica que há propriedade no estado de natureza, sem contudo se referir a qualquer direito natural. Pufendorf percebe essa possibilidade de confusão e, para evitá-la, distingue direito natural e direito adventício, ambos sendo admitidos no estado de natureza, isto é, naquela suposta condição anterior ao estado civil. No entender de Pufendorf, o direito natural é aquele que todos os homens possuem igualmente por ocasião do nascimento, "em se fazendo abstração de todas as invenções e todos os estabelecimentos [...] puramente humanos" (Puf., II.2.i); enquanto o direito adventício depende de convenções humanas. Grócio não emprega o termo "adventício", mas a propriedade (exclusiva) sobre bens materiais, da forma como a concebe, é certamente um direito adventício. E embora "convenção" implique em Pufendorf especificamente a interposição de promessas e pactos, é no sentido mais geral de direito obtido por alguma iniciativa humana que, a meu ver, Hume aceita a noção de direito. Qualquer direito em Hume é, portanto, um direito adventício. Para Pufendorf, contudo, o fundamento moral deste direito é a obrigação moral, a que todos os seres humanos estão submetidos, de cumprir as promessas ou pactos que fazem. Nós já vimos o modo engenhoso com que Grócio justifica esta obrigação: como estamos por lei natural obrigados a respeitar o que é dos outros; e como nossas ações compõem aquilo que é naturalmente nosso e, além disso, são alienáveis; toda vez que prometemos ou pactuamos, estamos alienando parte de nossas ações no futuro, que então passam a pertencer à pessoa com quem pactuamos. O direito adventício mantém, neste sentido, uma ponte com o direito natural. Mas Hume pensa que as próprias promessas dependem de uma convenção. Isto corta a possibilidade de reportar o direito adventício a um direito natural. Pois, como não tem sentido falar de direito natural nem mesmo sobre nossas próprias ações – das quais temos posse (e nem sempre), mas não propriedade natural –, não há como sustentar a obrigação das promessas na obrigação de respeitar o alheio, como quer Grócio. Contudo, a teoria de Grócio é apenas um dos modos – e talvez o menos usual – para justificar a obrigação das promessas. 13 A principal tese a que Hume se opõe procura se sustentar na natureza mesma da promessa: a promessa obriga porque ela é um claro sinal de nossa vontade. Não cumpri-la só pode revelar uma intenção de enganar e mentir, o que é moralmente reprovável. Mas é fácil de ver, diz Hume, que "a vontade tem uma influência apenas no presente", enquanto "uma promessa sempre diz respeito a um tempo futuro" (T 516). Não cumpri-la não pode ser considerado o mesmo que enganar e mentir. Qual a fonte de sua moralidade, então? Para Hume, a obrigação das promessas provém unicamente de uma necessidade social de preservar a reputação da troca de bens, o que é do interesse de cada um. Se não houvesse tal interesse, e se este interesse fosse imediato, e não um interesse permanente da espécie, não haveria por que cumprir promessas e pactos. O uso de certos sinais, e o fato de expressarem minha vontade, em si mesmos, não são suficientes para explicá-la. Se explicassem, toda vez que usássemos tais sinais, em qualquer contexto, a obrigação teria que emergir, o que não ocorre. Por exemplo, a maioria dos autores de tratados jurídicos concorda que promessas e contratos obtidos pela força não têm validade. Eles argumentam que tais promessas não são válidas porque não revelam a vontade real de quem prometeu. Entretanto, como diferenciar com esta cláusula o caso de "Um homem, perigosamente ferido, que promete uma competente soma a um cirurgião para curá-lo" – situação em que se supõe que o sujeito está obrigado a cumprir a promessa – daquele em que um homem "promete uma soma a um ladrão", na qual não se supõe a mesma obrigação? Pode-se dizer que no primeiro caso a pessoa foi movida por sua própria vontade, e no outro não? Não vendo como sustentar a distinção10 – pois "a força não é essencialmente diferente de qualquer outro motivo de esperança ou medo" –, Hume conclui que a "fidelidade não é uma virtude natural, e que as promessas não têm nenhuma força, antecedente às convenções humanas" (T 519 e 525; cf. EPM 199n.1). A menção à palavra "fidelidade" nesta passagem pode causar alguma confusão, pois Hume fala de "fidelidade" mais à frente como uma virtude natural, e não artificial (ver T 603). Ocorre que nesta última acepção a fidelidade tem um sentido mais frouxo – de, por exemplo, lealdade a um amigo –, na qual estima-se que haja um motivo para se agir com "fidelidade" independente de qualquer promessa, e por isto mesmo costuma-se até dispensá-la. Já a fidelidade à promessa é uma instituição criada para obrigar indivíduos que não possuem qualquer vínculo pessoal ou de amizade: "A fim, portanto, de distinguir estes dois diferentes tipos de comércio, o interessado e o desinteressado, existe uma certa forma de palavras 10 Por também não percebê-la, Hobbes, mais consistentemente que outros teóricos do contrato, vai afirmar que pactos extorquidos pela força são válidos (cf. De cive II.16; Leviathan XIV, 198). Curiosamente esta tese também é abraçada por Grócio (cf. 1925, II.11.vii.2). 14 inventada para o primeiro" (T 521-2; grifo de Hume). Por esta "forma de palavras" uma pessoa se obriga a transferir um direito (primariamente um direito sobre bens, e não sobre ações) para outra num tempo futuro, e na qual certas restrições se aplicam. A própria possibilidade de transferência de um direito "por consentimento" (do detentor do direito), enfim, é considerada por Hume uma convenção (cf. T 514-6). Aqui, discretamente, o filósofo está tocando um ponto delicado de teoria jurídica: o problema da alienabilidade de direitos. Como sua referência direta é, como sempre, à propriedade de bens, somos de novo tentados a ler sua intervenção como estritamente aplicável aos "bens externos", e não a qualquer direito. A meu ver, contudo, Hume está mostrando nesta passagem a necessidade de se conceber a noção de direito ou propriedade em estreita conexão com a de alienação. Na verdade, a propriedade concebida apenas como estabilidade da posse é uma idéia incompleta de propriedade. Ela deixaria de servir a boa parte dos propósitos para que foi inventada, já que "pessoas e posses estão freqüentemente mal ajustadas". Retornar, porém, a uma situação de incerteza sobre a posse seria igualmente inconveniente. Também o seria estabelecer uma regra de propriedade baseada apenas numa “justa” adequação da posse à pessoa. A possibilidade de alienação da propriedade é vista então como uma solução intermediária, "um meio entre a estabilidade rígida, e este ajustamento incerto e mutável" (T 514). Através dela, a idéia de propriedade ganha um sentido pleno, qual seja: a propriedade é uma qualidade moral que permite a um indivíduo, "e a ele apenas" (EPM 197), a posse estável de objetos por um tempo indefinido, "exceto quando o proprietário concorda em transmiti-los para outra pessoa" (T 514). Em que sentido a propriedade pode ser considerada uma qualidade moral? Exatamente no mesmo sentido em que o direito pode sê-lo: quando o consideramos um poder do indivíduo de demandar dos outros (conforme as cláusulas descritas acima) a inviolabilidade de qualquer objeto definido como seu. Vejamos agora que características importantes esta maneira de conceber o direito empresta à teoria humeana da justiça como um todo. III Malgrado todas as divergências a respeito do fundamento do direito, o grande ponto de identificação entre Hume e a vertente grociana do jusnaturalismo é o fato de ambos equacionarem direito e propriedade. Hume, sem dúvida, vai polir o quanto possível esta equação, tornando-a mais estreita do que em Grócio. De qualquer modo, ela empresta certas 15 características ao seu pensamento que nos permite, em teoria jurídica, aproximá-lo ao espírito da teoria grociana. Um das características que torna patente esta proximidade é a distinção entre direito perfeito e imperfeito. Em Grócio, o primeiro é definido como uma "faculdade moral", o segundo como uma mera "aptidão". É só como uma faculdade moral que o direito pode ser entendido "em sentido próprio", isto é, pode adquirir força legal. Já o direito como "aptidão" traduz o reconhecimento de que a prática de certas virtudes sociais – benevolência, caridade, gratidão etc. – é importante para melhorar a vida social. Uma pessoa pode esperar receber tais gestos de outros. Mas esta expectativa não precisa ser protegida por normas legais. Sua frustração não implica uma ameaça à existência da sociedade. O direito perfeito, pelo contrário, assinala o estritamente básico para que a vida social continue a existir, e por isto mesmo aquilo que um indivíduo pode ativamente demandar dos outros, inclusive com o uso da força. Ele define, em suma, a fronteira entre o legal e o extralegal. E aqui a equação entre direito e propriedade é de vital importância, pois ao ver de Grócio o espaço do suum – o espaço do que é meu exclusivamente –, mais o que posso agregar a ele como minha parte no que tenho em comum com o resto da espécie, é precisamente o espaço do que posso reivindicar com direito perfeito. Todo o resto fica entregue à iniciativa espontânea de cada um, ou à "prudência" dos governantes. Alguns comentadores costumam comparar a distinção entre direito perfeito e imperfeito com a separação entre a virtude da justiça e as virtudes naturais proposta por Hume (cf. Haakonssen, 1993, p.199). Ocorre que o filósofo, quando aborda a noção de direito de modo mais rigoroso e técnico, só reconhece como direito o que Grócio chama de direito perfeito. A teoria da justiça de Hume é uma teoria do direito perfeito. As virtudes ditas naturais não são traduzíveis numa linguagem jurídica e, portanto, sequer tem sentido compará-las com o direito imperfeito. A preocupação fundamental da teoria é traçar a fronteira entre o legal e o extralegal, entre o que é estritamente básico para a existência de um tipo de sociedade que extrapola vínculos de sangue e de amizade, e o que permite apenas aperfeiçoá-la. E aqui encontramos o ponto de maior proximidade de sua teoria com o approach grociano: Hume pensa que a existência da sociedade depende de uma única regra essencial: abster-se do alheio. Por isto que a convenção para a distinção da propriedade, e para a estabilidade da posse, é de todas as circunstâncias a mais necessária para o estabelecimento da sociedade humana, e que depois do acordo para a fixação e observação desta regra, resta pouco ou nada a ser feito para estabelecer uma perfeita harmonia e concórdia (T 491). 16 O leitor pode achar que há um certo exagero na frase "resta pouco ou nada a ser feito", se pensar no quanto Hume escreveu não só a respeito da importância social das virtudes naturais, mas sobre questões políticas não diretamente relacionadas com a justiça – tais como a dívida pública, a corrupção no governo, o problema da formação de um exército profissional e permanente –, que no fim de sua vida lhe provocaram tantas dúvidas a respeito da estabilidade de uma sociedade comercial como a Grã-Bretanha.11 Mas é preciso ter em mente que aquilo que D. Forbes chama de "philosophical politics" de Hume – onde assuntos como os citados acima são discutidos –, não corresponde exatamente à sua jurisprudência, onde a justiça recebe um tratamento teórico mais específico. Escritores escoceses do tempo de Hume costumavam fazer essa separação. O exemplo mais próximo de Hume a respeito é Adam Smith. Como comenta seu amigo Dugald Stewart, Smith faz uma clara separação entre a disciplina que investiga o "princípio da justiça" – que é minuciosamente tratado na Teoria dos Sentimentos Morais e nas postumamente publicadas Lições de Jurisprudência –, e a que examina "aquelas regulações políticas que são fundadas, não sobre o princípio da justiça, mas sobre o da expediência, e que são calculados para incrementar as riquezas, o poder, e a prosperidade de um Estado".12 "Sob esta visão" – prossegue Stewart – "ele considerou as instituições políticas relacionadas com o comércio, as finanças, os estabelecimentos militares e eclesiásticos", todos os quais abordados em A Riqueza das Nações (D. Stewart, 1982, p.275). É verdade que nem Hume, nem Smith, são muito insistentes em fazer seus leitores perceberem a distinção – afinal são dois campos muito próximos e se interligam –, mas ela existe e é tradicionalmente observada em textos jurídicos (cf. Pufendorf, I.2.iv). A "harmonia e concórdia" a que Hume se refere em T 491 não é a de uma sociedade idilicamente perfeita, mas a "harmonia" que em Grócio o direito perfeito visa promover: pura e simplesmente a "paz e a ordem". Viver socialmente em "paz e ordem" é, porém, muito diferente de ter uma "vida boa". O fato da justiça (ao ver de Grócio, Hume e Adam Smith) estar relacionada apenas com a primeira expressa, por certo, um estudado distanciamento dos parâmetros "republicanos" ou "cívico-humanistas" de pensar a justiça, parâmetros ainda fortemente presentes no ideário político do século XVIII britânico, como mostra o monumental estudo de Pocock (cf. 1975, cps.13-14). Mas mesmo no interior da tradição jusnaturalista este distanciamento não é consensual, o que pode ser visto nas restrições que, 11 Para uma brilhante análise dos "dying thoughts of a North Briton", ver Pocock, 1979. Hume também funda os princípios da justiça na "expediência", isto é, "paz e ordem". Mas "expediência" no texto citado acima se refere apenas àquilo que a ação do governante pode trazer para a incrementação da riqueza e do poder do estado. 12 17 em suas teorias, autores como Richard Cumberland e Francis Hutcheson, e em certa medida o próprio Pufendorf, fazem à distinção entre direito perfeito e imperfeito. Do ponto de vista do presente estudo, Francis Hutcheson é de especial interesse para trazer à tona uma dessas restrições ao approach grociano. Este autor representa uma eloqüente tentativa de retrazer o tema aristotélico da "vida boa" para o campo da justiça. Tal objetivo, porém, não o impede de aceitar a separação entre direito perfeito e imperfeito. Mas ele o faz evitando dizer que o primeiro é o "direito em sentido próprio", preferindo trabalhar com uma noção mais ampla: direito é tudo aquilo que pode ser feito por um indivíduo, compatível com a felicidade do mais extenso sistema possível de seres inteligentes. É certo que o exercício de um direito por uma pessoa pode ser meramente "inocente" – nem "virtuoso", nem "vicioso". Mas a obrigação de respeitá-lo vai sempre, direta ou indiretamente, se reportar ao objetivo de preservar ou promover o bem comum do "sistema" e seus "subsistemas". Isto torna sua teoria muito mais flexível na consideração do que recai sobre o campo do direito perfeito, do que recai no do imperfeito, e daquilo que é legítimo tornar compulsório ou não.13 Sua “primeira e fundamental lei da natureza”, por isto mesmo, não é formulada estritamente de modo negativo (como um "abster-se de"), mas inclui a prática de "ações boas" – vale dizer, "virtuosas" no sentido positivo. Ora, nada poderia ser mais contrastante com esta formulação do que a idéia humeana da "obrigação" implicada na regra da propriedade – que é, aliás, sua "lei fundamental da natureza" (cf. T 526). Pois sendo um simples abster-se, a obrigação de respeitar o alheio não representa verdadeiramente nada de meritório: trata-se de um simples não fazer. E até há um sentido em que o fazer – se me for permitido entender a violação da propriedade como um "fazer" – é que é um demérito. Como famosamente (e humeanamente) observa Adam Smith: O homem que mal se abstém de violar a pessoa, o patrimônio [estate] ou a reputação de seus vizinhos, seguramente tem muito pouco mérito positivo.... Freqüentemente, podemos preencher todas 13 "Contudo, as fronteiras entre direitos perfeitos e imperfeitos não são sempre fáceis de ver. Há uma espécie de escala ou ascensão gradual, através de vários e quase insensíveis passos, das mais baixas e débeis demandas da humanidade àquelas de maior e mais sagrada obrigação, até que chegamos a alguns direitos imperfeitos tão fortes que quase não podem se distinguir dos perfeitos" (A Short Introduction to Moral Philosophy, pp.122-3; cit. por Haakonssen, 1990, p.82). 18 as regras da justiça permanecendo sentados [by sitting still] e não fazendo nada (Smith, 1982, II.2.i).14 IV Gostaria agora de me dirigir a algumas dificuldades, de ordem mais conceitual, que se podem deparar na identificação entre direito e propriedade. O problema central da equação em Grócio diz respeito ao aspecto inclusivo que o jurista empresta ao termo "propriedade". Isto lhe permite formular o direito às provisões da terra como uma facultas moralis do indivíduo. Conforme a história (biblicamente inspirada) que Grócio nos conta, originalmente todos os bens materiais estavam dispostos "em comunidade" a todas as pessoas, sem restrição. Mesmo após a admissão do domínio privado, parte desses bens permaneceu em comum. Mais do que isto: em casos de “extrema necessidade”, pessoas desprovidas de bens privados ainda poderiam reivindicar, com direito perfeito, as provisões indispensáveis a sua sobrevivência. Por quê? Porque o que justifica, em última instância, a aquisição de bens, é um outro direito "comum" à espécie: o direito de preservação da vida. Mas este último direito (assim como o direito de punição aos infratores da lei natural, anterior ao estabelecimento do governo) se ajusta mal à idéia de que o direito é um poder moral de exigir dos outros o respeito ao que é de cada um, exclusiva ou inclusivamente. Pois, como este direito deve necessariamente ser admitido para todos os demais, é fácil imaginar situações em que o poder de exigir que ele dá a um indivíduo, ao invés de corresponder a uma obrigação dos outros de atendê-lo, vai corresponder a uma exigência de igual validade, mas conflitante. Uma das ilustrações mais interessantes para mostrar este choque de direitos é fornecida pelo jurista alemão Christian Thomasius (1655-1728), conforme relata Barbeyrac: 14 Que esta representação da justiça como uma "virtude negativa" está longe de traduzir um consenso entre os literati do "Scottish Enlightenment", mostra-o bem a seguinte observação de Thomas Reid: "Como, numa família, a justiça requer que as crianças que sejam incapazes de trabalhar, e aquelas que, por doença, estejam inabilitadas, deveriam ter suas necessidades supridas pelo estoque comum, assim também, na grande família de Deus, da qual a humanidade faz parte como crianças, a justiça, penso, assim como a caridade, exige, que as necessidades daqueles que, pela providência de Deus, estejam incapacitados de suprir a si mesmos, deveriam ser supridos daquilo que de outro modo poderia ser estocado para futuras necessidades" (1969, p.424). Reid está, nesta passagem, explicitamente criticando a teoria de Hume. 19 O senhor Thomasius, para fazer ver que o Direito e a Obrigação nem sempre se correspondem, alega o exemplo de duas pessoas que, num Naufrágio, se encontrando sobre uma prancha que não pode sustentar ambos, têm o direito de se desfazer um do outro (Barbeyrac, nota 1 a Pufendorf, III.5.1; grifos do autor).15 Este problema também pode ser ilustrado por duas questões bastante controvertidas no texto de Grócio: a tese de que existe um tipo de justiça específica na condução de guerras, de sorte que os beligerantes – ou pelo menos o lado "justo" das partes em conflito – podem sempre reclamar certos "direitos" uns dos outros; e a de que pessoas condenadas pela justiça têm o dever de se deixar punir (cf. Grócio, 1925, II.1.xvii). Hobbes, como é sabido, rejeita ambas as teses.16 Mas isso porque ele altera significativamente a maneira grociana de conceber o que é o direito natural: a seu ver, o direito é primariamente apenas uma "liberdade" de fazer ou não fazer, "sem causar injúria" aos outros, e evita identificá-lo com o suum. Hobbes separa as duas formulações de direito que Grócio havia concebido como idênticos – o que, como bem assinala Olivecrona (1971, p.295), causa uma tensão no arcabouço conceitual grociano. O autor do Leviathan se desembaraça desta tensão admitindo um único direito natural (o direito de preservação da vida), o qual nada tem a ver com o direito natural (propriedade) de cada um à sua vida, membros e liberdade. Ademais, para dar consistência à idéia de que no estado de natureza um indivíduo, quando reivindica seu direito de autopreservação, jamais pode causar injúria a outros, Hobbes identifica a virtude da justiça com o preceito da lei natural que determina o cumprimento dos contratos feitos. Como contratos no estado de natureza não são válidos, segue-se que danos feitos a outros na perseguição do direito natural não são injúrias. Por fim, em todas as situações (mesmo no estado civil) em que vida e membros estão sob ameaça, o direito natural prevalece sobre qualquer outro obtido por contrato, pois a preservação da vida é "inalienável". E é inalienável não porque os homens têm o dever de preservar a vida, mas porque ninguém tem o poder moral de reivindicar de outro que abra mão do direito de 15 O exemplo é extraído do livro de Thomasius, Fundamenta iuris naturae et gentium ex sensu communi deducta (publicado em 1705), III.7.x (a referência é de Barbeyrac). 16 Ver seu comentário ao adágio latino inter arma silent leges em Elements of Law I.19.2, e De cive II.18 (cf. Tuck, 1988, pp.260-3). Ver também Leviathan XXVIII, 356. 20 conservá-la. O que contrasta bastante com a idéia de "inalienável" com que Locke e Hutcheson trabalham ao condenarem a auto-escravização.17 É significativo que Hume não se refira à preservação da vida como um direito. Numa única passagem do Tratado ele diz que "Numa guerra estrangeira os mais consideráveis de todos os bens, vida e membros, estão em questão" (T 540), mas ainda aqui Hume cuidadosamente evita falar de um "direito" de preservação da vida. Por trás desse cuidado está a intenção de tornar o mais coerente possível a noção de que todo direito de um indivíduo tem por correlato um dever dos outros de respeitá-lo. Precisamente por isto a justiça é sempre vinculada no texto ao tripé "property, right and obligation". Não é que quando esta correlação deixa de existir a pessoa possa se valer de um direito mais primitivo, em que as demandas conflitantes de cada um teriam igual validade do ponto de vista jurídico. Quando a correlação não é possível, o que ocorre é que o aparato jurídico, constituído por “convenção”, simplesmente desaba, e a vida social volta a ser regulada unicamente pela moralidade das virtudes naturais, e não pela do direito. Os indivíduos não retornam, portanto, a uma condição em que o único (e extremamente rarefeito) elemento moral é o direito natural hobbesiano. Mas em que situações, concretamente, o aparato jurídico definido pela teoria humeana pode ruir, com o conseqüente retorno à "gramática" das virtudes? A resposta é quase trivial: elas devem ser necessariamente análogas àquelas que, ao ver de Hume, tornam a justiça "inútil". Embora aquelas sejam situações imaginárias – pois, além de possuírem aproximadamente a mesma capacidade física e mental, os homens não estão em estado permanente de extrema escassez, ou de excesso de bens; nem são ilimitadamente benevolentes ou egoístas - Hume as compara a situações reais que sutilmente revelam seu ponto de vista em relação às controvertidas questões jurídicas que mencionei linhas acima. Eilas: A) No que concerne ao uso de bens materiais, a prática da justiça é inútil quando os bens disponíveis são extremamente abundantes ou escassos. É inútil porque, (1) numa circunstância de excesso de bens, não haveria necessidade de torná-los objetos de propriedade: "água e ar, embora os mais necessários dos objetos, não são disputados como propriedade dos indivíduos" (EPM 184). 17 Em sua condenação ao suicídio, Grócio não deixa também de trabalhar com a idéia, embora não explicite o termo. Ele diz que o direito à vida é um direito para "salvaguardar", não para destruir (1925, II.17.ii.1). É preciso reparar, contudo, que o fato de um direito ser natural (enquanto oposto a um "adventício") não implica que ele não possa ser alienado. Grócio (ao contrário de Locke e Hutcheson) diz que o direito à liberdade é natural, mas ele pode ser alienado como um todo. Daí que admita a auto-escravização. (Sobre a relação entre "direito inalienável" e a condenação da escravidão, ver Haakonssen, 1991, pp.47-52.) 21 E (2), numa circunstância de extrema escassez, não haveria possibilidade de se estabelecer a regra da propriedade: "É crime, depois do naufrágio de um navio, apreender quaisquer que sejam os meios ou instrumentos de segurança que se possa alcançar, sem observar limitações anteriores de propriedade?" (EPM 186). Em face do que foi analisado na primeira seção deste paper, fica evidente agora que o tipo de "propriedade" a que Hume está se referindo acima não é outra senão a propriedade exclusiva. Cabe, porém, explicar por que sua teoria não comporta a idéia da propriedade inclusiva de bens. Nós já vimos que o filósofo não aceita descrever o instinto de preservação da vida como um direito. Mas o que o leva a tomar esta posição não é apenas sua recusa da formulação hobbesiana de direito natural. Hume também recusa formulá-lo como um direito natural inclusivo. Por quê? Porque admiti-lo implicaria admitir a existência de um certo tipo de justiça distributiva natural (isto é, não estabelecida convencionalmente), capaz de fornecer uma regra para o uso das provisões da terra. Contudo, estas últimas, de acordo com a conjectura histórica de Hume, não estão originalmente dispostas numa "comunidade" igualmente acessível a todos. Só tem sentido falar em "comunidade" de bens para descrever a situação do estoque que as pequenas sociedades familiares dispunham nos tempos mais remotos da história humana. E esta não tem nada a ver com a hipótese grociana de que cada ser humano possuía originalmente um direito igual, "comum" aos outros, de usar todos os bens da terra. Nem se poderia dizer que os membros das sociedades familiares possuíam um "direito" ao seu próprio estoque comum, pois o uso dele era unicamente condicionado por "nossos primeiros e mais naturais sentimentos de moral", isto é, pelo que chamo aqui de gramática das virtudes. Pode parecer contraditório afirmar que subjaz ao direito inclusivo "um certo tipo" de justiça distributiva, quando o fato de Grócio ter pensado o direito perfeito (exclusivo e inclusivo) foi tradicionalmente interpretado como uma tentativa de expurgar da justiça "em sentido próprio" um sentido distributivista. De fato, ao comparar o direito perfeito com a chamada justiça "expletiva", e o direito imperfeito com o que ele supunha ser a justiça "distributiva" em Aristóteles, o próprio Grócio abriu campo para a leitura de que o direito perfeito não admite qualquer tipo de justiça distributiva (cf. Grócio, 1925, I.1.viii.1-2).18 O "certo tipo" de justiça distributiva a que me refiro, porém, não é a justiça distributiva de 18 Na opinião de Pufendorf, Grócio equivoca-se ao identificar o direito imperfeito com o que Aristóteles chama de justiça distributiva. Na verdade, o direito imperfeito corresponderia ao que o filósofo grego denomina "justiça universal" - que compreende o exercício do conjunto das virtudes sociais -, e o direito perfeito à "justiça particular", que compreende três tipos de justiça, inclusive a distributiva (cf. Pufendorf, I.7.viii; ver Ética a Nicômaco 1129a-1130a). 22 Aristóteles. Estou falando, isto sim, de uma versão "subjetivada" desta, que Grócio apresenta na forma de um poder moral do indivíduo de reclamar sua parte num estoque comum de objetos. Segundo Grócio, quando este estoque não é passível de se tornar propriedade exclusiva, como é o caso do ar e dos oceanos, a justiça na manipulação destes bens é expressa por um direito de uso – uma espécie de direito de "locatário" –, que compreende duas regras básicas: a regra do primeiro ocupante, quando o objeto pode ser usado alternadamente; e a de compartilhar o objeto com todos os reclamantes, quando não é possível o uso alternado. Quando Hume afirma que a justiça é inútil em casos de extrema abundância ou escassez de bens, ele está recusando precisamente este tipo "subjetivado" de justiça distributiva natural. Mas isto não implica negar (o que seria absurdo) qualquer espécie de direito de "locatário". Sua admissão, porém, sempre pressupõe, ou (1) a existência já estabelecida de algum proprietário do bem que possa legitimamente aliená-lo a outro(s) por um tempo definido; vale dizer, pressupõe o direito exclusivo, "pleno e inteiro"; ou (2) a existência de uma autoridade comum – quando se trata de um bem público – que disponha as regras de seu uso, desempenhando deste modo um papel análogo ao do detentor de um direito exclusivo. Só neste último caso se poderia falar de uma justiça "distributiva", mas sua definição seria atributo exclusivo do soberano. B) No que concerne às relações entre pessoas, a justiça "silencia" em situações em que a possibilidade de pensar a vida, membros e liberdade como "propriedades" do indivíduo se desfaz. Representativas deste caso são situações de beligerância aberta, e de extrema desigualdade entre as partes.19 Outra vez, o fato de a justiça não poder regulá-las não significa que se abra necessariamente uma condição não-moral. Trata-se, certamente, de situações extrajurídicas. O extrajurídico, porém, significa apenas que "bom" e "mau", "virtuoso" e "vicioso" deixam de remeter para a noção de direito/propriedade, e passam a ser exclusivamente parametrizadas pelas virtudes naturais. Em casos de guerra, por exemplo, a virtude da justiça dá lugar às virtudes ditas "marciais", sobre as quais o autor trata em T 6001, ou então a regras "que sucedem àquelas da eqüidade e justiça [...], calculadas para a vantagem e utilidade daquela particular condição" (EPM 187; grifos de Hume). O caso da punição de um criminoso é considerado análogo ao da guerra pois, sendo punido "em seus 19 Um terceiro caso pode ser subsumido à análise que segue: interações envolvendo laços muito estreitos de amor e amizade (supostamente famílias). Isto significa que, em princípio, estas interações escapam à esfera jurídica, a não ser, é claro, naquilo que se puder por convenção atribuir claramente propriedade a indivíduos: por exemplo, mesmo que numa família não possa haver distinção de bens, poder-se-ia atribuir a cada um de seus membros propriedade à vida. 23 bens e pessoa [...] as regras ordinárias de justiça são, no que lhe concerne, suspensas por um momento" (EPM 187). O caso da punição de criminosos nos traz o controvertido problema do direito de punição em geral. Segundo Hume, a noção de que uma pessoa ou grupo de pessoas têm um "direito" de punir outros não deriva da justiça, mas do que ele chama virtude da "lealdade" ("allegiance") aos administradores da justiça (o governo), da qual não vou tratar aqui. Mas vale dizer, de passagem, que nosso autor vê um ponto de interseção entre o direito sobre bens e o direito ao governo: ambos são "propriedades" exclusivas de uma pessoa ou grupo de pessoas. Por isto não pode haver um direito (inclusivo) de punir outros numa condição anterior ao estabelecimento de governos, como querem Grócio e Locke. Com o estabelecimento de um governo, contudo, surge a noção de que os governantes têm um "direito" de punir, e o correlativo "dever" dos súditos de respeitá-lo. Ao punir um criminoso, o soberano "faz" justiça na medida em que os súditos estão sob a obrigação de não interpor obstáculos ao seu ato. Porém, no que concerne unicamente ao criminoso, Hume diz que a justiça fica suspensa "por um momento". A razão que o filósofo apresenta é que, neste caso, o condenado não pode mais reivindicar como "propriedade" sua vida ou sua liberdade. Mas haveria um "dever" do criminoso de respeitar o "direito" do soberano de puni-lo? Aparentemente não, mas Hume não se prende a este problema.20 Similarmente a situações de beligerância, Hume diz que a justiça "silencia" quando há situações de extrema desigualdade entre as partes. Autores de tratados jurídicos costumavam traduzir a igualdade natural entre os homens em uma igualdade de direitos naturais. Esta tese era defendida através de axiomas de natureza mais ou menos teológicas: sendo os homens entes inteligentes e morais, aos quais Deus não teria dado (a não ser por expressa revelação) qualquer privilégio, todos possuiriam "por nascimento" um igual direito à vida, liberdade e aos meios de sua conservação. Alguns, como Hutcheson, chegam mesmo a postular que outras criaturas que não humanas, embora não inteligentes e nem moralmente sensíveis, pelo simples fato de constituírem o sistema universal criado pelas mãos divinas, possuiriam certos "direitos". Em sua teoria, Hume postula que os homens são aproximadamente iguais em capacidade física e mental. Mas esta igualdade não é idêntica a uma igualdade de direitos naturais. Trata-se simplesmente de uma igualdade aproximada de "força e astúcia". Se 20 O que seria interessante, pois poderia nos fornecer subsídios para discutir se, subliminarmente, Hume não estaria aqui admitindo pelo menos um rudimento da noção hobbesiana de direito natural. Ou seja, ainda que não aceitando a caracterização hobbesiana do estado de natureza, estaria Hume admitindo, no caso da punição, uma contínua "liberdade" do indíviduo, moralmente impecável, de usar de todos os meios para defender sua vida e membros? 24 houvesse, diz o autor, situações de clara defasagem entre os homens, aqueles que se mostrassem, na prática, superiores em força e astúcia, jamais restringiriam suas ações por considerações de propriedade, seja aos bens, à pessoa e à liberdade. A justiça seria inútil para regular as relações entre eles (cf. EPM 190). As únicas restrições às suas ações seriam seus próprios sentimentos de "humanidade", "compaixão" e "nobreza", insuficientes porém para produzir um reconhecimento de direito/propriedade em outros. Embora não fosse esta a condição original da humanidade, Hume pensa que diferenças introduzidas historicamente causaram defasagens consideráveis, senão de astúcia, pelo menos de força, entre povos de distintas partes do planeta. "A grande superioridade dos Europeus civilizados", por exemplo, levou-os a desconsiderar quaisquer obrigações de justiça "e mesmo de humanidade", no tratamento de outros povos. Hume poderia ter acrescentado que esta superioridade em força e astúcia também levou os europeus a imaginar a possibilidade de colocar outros povos no mesmo pé em que animais e plantas normalmente o são: como objetos de propriedade. Pois considerar os próprios seres humanos como objetos de propriedade o teria conduzido diretamente ao tema da inalienabilidade de direitos. De qualquer forma, de tudo que foi dito até agora sobre as características da propriedade em Hume, é inevitável a conclusão que em sua teoria qualquer direito é alienável. E se se considerar a vida e a liberdade como direitos do indivíduo, automaticamente eles se tornam passíveis de alienação. Em relação ao direito à vida, em particular, esta interpretação é inteiramente compatível com seu polêmico ponto de vista em relação ao suicídio (ver o ensaio "Do Suicídio" in Hume, 1985, pp.577-89). Mas ela é muito menos clara no que concerne à alienação da liberdade. Teóricos do jusnaturalismo são unânimes em reconhecer que a liberdade constitui um direito que pode ser alienado, pois, do contrário, obrigações criadas por contrato seriam impossíveis. O problema é saber até que ponto ela é alienável. Grócio e Pufendorf, por exemplo, admitem sua alienação até ao ponto da barganha com o direito à vida (são os chamados casos de "auto-escravização"); enquanto Locke e Hutcheson – cada qual por diferentes razões – consideram tal barganha "unlawfull". Para todos estes autores, a questão tem uma importante conotação política, pois ela remete ao controvertido debate sobre a legitimidade de governos instaurados por conquista, e de regimes absolutos de um modo geral. Considerada apenas no âmbito da teoria da justiça – que em Hume é um tanto ou quanto independente da teoria do governo –, este debate encerra dois problemas um pouco diferentes. O primeiro é o seguinte: se do ponto de vista da moralidade que subjaz à "gramática" do direito, tal como Hume a vê, seria "lawfull" uma troca não coagida da 25 liberdade pela conservação da vida. A resposta a esta pergunta, sendo enquadrável no esquema mais geral da alienabilidade do direito, é sumariamente sim. O segundo problema é um pouco mais complicado. Qual seja, se contratos obtidos por coerção são válidos. A resposta seria indubitavelmente positiva, se se pudesse mostrar que a conservação de tais contratos constitui um interesse permanente de cada indivíduo e da vida social, o que parece bastante implausível. Com efeito, considerando-se o que ele diz no último parágrafo de T 525, Hume inclina-se para a negativa. Isto não o impede de abraçar, ao mesmo tempo, a opinião segundo a qual a legitimidade ou ilegitimidade de um governo é independente do fato deste ter se constituído historicamente através de conquista. Pois o estabelecimento de governos legítimos não pressupõe – e Hume critica os que acham que pressupõe – qualquer tipo de contrato (cf. T 557-9). BIBLIOGRAFIA ARISTÓTELES, The Basic Works. New York: Random House, 1958. BARBEYRAC, J., “Préface du Traducteur” a Le Droit de la Nature e des Gens, de S. Pufendorf. Basle, 1732. BUCKLE, S., Natural Law and the Theory of Property: Grotius to Hume. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. FORBES, D., Hume’s Philosophical Politics. Cambridge: Cambridge University Press. GRÓCIO, H., The Freedom of the Seas [Mare liberum]. Trad. R. D. Magoffin. New York: Oxford University Press, 1916. , The Law of War and Peace [De iure belli ac pacis]. Trad. F. W. Kelsey. N.Y.: Bobbs-Merril, 1925. 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