CINEMA, ARTE
E NARRATIVAS
EMERGENTES
Denis Porto Renó
Marcos “Tuca” Américo
Antonio Francisco Magnoni
Fernando Irigaray
(Orgs.)
2016
Organização
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Cinema, arte y narrativas emergentes / Denis Porto Renó... [et al.]. - 1a ed. Rosario: UNR Editora. Editorial de la Universidad Nacional de Rosario, 2016.
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ISBN 978-987-702-194-3
1. Medios Audiovisuales. I. Porto Renó, Denis
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CINEMA MARGINAL
Entre o Olho e a Navalha: Inquietações acerca do
olhar marginal de Júlio Bressane
2
Ana Beatriz Buoso Marcelino - UNESP
Bellini e a Esfinge e Clássicos Noir: Uma Análise
sobre a Questão Estilística do Cinema
18
Natália de Oliveira Conte Delboni - UNESP
Juventude e Violência em Vozes do Mêdo: análise
do curta Retrato do jovem brigador
35
Pedro Plaza Pinto - UFPR
A mobilização da imprensa após a censura de Rio,
40 Graus
50
Leonice Elias da Silva - PUC-SP
Aumont e Baudrillard: as instâncias narrativas e
identitárias no número musical “Né me quitte pas”,
no filme “A lei do desejo” (1987)
66
Roberto Gustavo Reiniger Neto - Anhembi Morumbi
NARRATIVAS AUDIOVISUAIS CONTEMPORÂNEAS
La adaptación cinematográfica de sagas de
literatura fantástica
84
Ana Belén Jara - Universidad Nacional de Córdoba
A intertextualidade e a produção de sentido na
minissérie “Amorteamo”
Anderson Lopes da Silva – USP
Maria Cristina Palma Mungioli – USP
100
Produção audiovisual na edição do ZH Noite
117
Juliana Colussi – UEPG
Quadrinhos Rasos: Transposições de narrativas
musicais em HQ na WEB
131
Laan Mendes de Barros – UNESP
O improviso no audiovisual brasileiro: uma análise
dos programas Quinta Categoria e Barbixas
146
Luma Perobeli – UFJF
Gabriela Borges – UFJF
I Love Paraisópolis: reflexões acerca de uma
narrativa audiovisual e sua relação com a realidade
social
162
Marcia Perecin Tondato – ESPM
Virginia Albuquerque Patrocínio – ESPM
Webseries - a internet como espaço de
experimentação - da aisthesis a uma nova poisesis
177
Maria Inês Almeida Godinho – UNIMAR
Do fundo do baú para as telas do cinema – reflexões
sobre a prática de apropriação de imagens de
arquivo pelo cinema
193
Mili Bursztyn – UFRJ
Interface e estética: um levantamento das práticas
que apontam a dinâmica da narrativa audiovisual
contemporânea
Rafael Toscano - UFPB
Valdecir Becker – UFPB
211
O Desenho de Som no primeiro Episódio de House
of Cards
228
Wellington César Martins Leite – FIB
O jornalismo audiovisual em 360º: uma análise das
produções “VICE NEWS VR: Millions March” e “A
Esperança de Mariana”
240
Andressa Kikuti – Faculdades Secal
Bruno Guerra – Faculdades Secal
ComunicaNER
255
Antonio Francisco Magnoni – UNESP
Barbara Cristina Meireles Alves – UNESP
Mateus Filippini Caetano de Mello – UNESP
Sillas Carlos dos Santos – UNESP
Sense8: Classificação de estrutura e gênero segundo
Robert McKee
278
Driele Fernanda da Silva – UNESP
Leticia Passos Affini – UNESP
Visual Novel como gênero de audiovisual interativo
e educativo
293
Janaina Azevedo – UNESP
Antonio Francisco Magnoni – UNESP
R.U.A. Realidade Urbana Aumentada - M.A.U.
Mapeamento artístico Urbano em Bauru e a prática
audiovisual na qualidade de agentes do patrimônio
cultural contemporâneo
José dos Santos Laranjeira – UNESP
Lilian Amaral – UNESP
309
Daemonium: websérie ou filme episódico?
328
Rosângela Fachel de Medeiros – URI Alto Uruguai e das
Missões
CINEMA E ARTES VISUAIS
Pautas metodológicas para estudiar el videoclip
desde una perspectiva crítica
339
Ana María Sedeño Valdellos – Universidad de Málaga
Aproximación a la narrativa, lenguaje y estética del
cineminuto
350
Carlos Ignacio Trioni Bellone - Universidade Nacional de
Córdoba
A estética transversal entre o cinema de Lars Von
Trier e a gravura de Dürer em Melancolia
367
Cristina Susigan – Universidade Presbiteriana Mackenzie
VideoHQescultura: Imagem-Tempo e Visão Táctil
384
Fábio Purper Machado – UFG
Rosa Maria Berardo – UFG
Ficção de Qualidade: o amor e o humor na TV
brasileira
395
Gabriela Borges – UFJF
Luma Perobeli – UFJF
Horror em Amityville sob os parâmetros de análise
narrativa de Bordwell
Gisele Krodel Rech – UNESP
411
Intersubjetividad en la audiovisualidad
428
Giuliano Seni - Universidade Autônoma de Barranquilla
Martha Cecilia Romero - Universidade Autônoma de
Barranquilla
"How to Get Away With Murder": Estudo da
Estrutura Temporal na Narrativa Complexa
438
Heidi Campana Piva – UNESP
Letícia Passos Affini – UNESP
Dramas coreanos e sua recepção no Brasil
452
Mariana Carrion Teodoro – UNESP
Maria Cristina Gobbi – UNESP
Diagnóstico DOFA de la distribución de cine en la
Reunión Especializada de Autoridades
Cinematográficas del Mercosur (2003-2014)
462
Mauricio Berrantes - Universidade do Rosario
“Ela”: A delicada distopia
509
Rafael Lobo – UnB
El cine como constructor de la memoria en La
tierra y la sombra
Sandra Ruiz - Fundación Universitária Unipanamericana
526
CINEMA MARGINAL
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Entre o Olho e a Navalha: Inquietações acerca
do olhar marginal de Júlio Bressane
Ana Beatriz Buoso Marcelino - UNESP
O olhar marginal (A navalha)
Em um dos planos do filme Matou a família e foi ao cinema (1969)
um close up enfatiza a cabeça de um rapaz sobre o travesseiro. O personagem
simula lamber o gume de uma navalha, mas não chega a tocá-la, depois
esboça um sorriso sarcástico. Continuando seu gesto passa a lâmina muito
próxima de seu olho direito, porém, somente a sombra do objeto toca sua
pupila. Depois posiciona o instrumento em seu pescoço imitando o gesto
rápido de um corte. Em espaço off deixa a navalha em algum lugar da cama,
volta seus braços para cima, alongando seu corpo e vira para o lado contrário
à câmera.
Através da descrição deste plano, cuja imagem intitula este texto, a
agressão ao espectador fica um tanto explícita, já que, nesta cena, o cineasta
carioca Júlio Bressane brinca sinestesicamente com a sensação de dor,
podendo causar aflição e agonia a um espectador acostumado com um
padrão narrativo clássico. Com base neste apontamento, surgem algumas
inquietações acerca da linguagem adotada pelo cineasta que enquanto se
expressa através da subversão, busca sua própria linguagem dentro do
chamado estilo marginal1.
1 Tal nomeação é ditada por Ramos (1987) que dentre demais denominações como: Experimental
alternativo ou Underground brasileiro (PUPPO; HADDAD, 2002), Cinema marginalizado por Cosme
Alves Neto – diretor da cinemateca, MAM, Rio de Janeiro (In: PUPPO; HADDAD, 2002); Cinema de
invenção (FERREIRA, 2000); da Boca do lixo (ABREU, 2006); Cinema à margem (BORGES, 1983);
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Dessa forma, caracterizada, sobretudo por uma estética rude,
crueza, disjunção, fragmentação e heterogeneidade esta nova vertente do
cinema brasileiro, trouxe à tona uma importante proposta ao espectador
parecendo ir além de uma simples apreciação, rumo a um ato de fruição.
Contudo, nos moldes de um espectador ativo e dentro de uma possível “ética
na ótica caótica”2 de uma “navilouca”3 destaca-se o nome de Júlio Bressane
como um dos cineastas que romperam com as formas convencionais de
narrativa à margem da Indústria Cultural, fazendo do cinema uma forma
possível de resistência e expressão artística.
A linguagem peculiar eleita pelo mesmo, em seus primeiros longas:
Cara a cara (1967), Matou a família e foi ao cinema (1969) e O anjo nasceu
(1969), aparenta convidar o espectador a transitar por uma seara paralela de
ideias, passível de caminhar à margem de uma suposta realidade apresentada
pelos padrões clássicos do cinema. Contudo, surge a proposição de que um
olhar inicial sobre a obra do cineasta poderia sofrer um forte impacto ao se
deparar com a representação do abjeto, cenas aparentemente desconexas,
atos despropositais, violência e crueldade, dentre outras características
perenes ao estilo marginal, passíveis de causar tanto o repúdio quanto a
tentativa de um entendimento lógico do qual pede ao espectador a adoção de
uma postura decifradora da mensagem, vista que se aproxima de uma
orfandade de informações que supostamente contribuiriam para um
entendimento mais lógico e linear da história.
Assim, a partir desse pressuposto, temos então um cinema que
constitui um dilema em relação ao seu público, visto que altera a relação
entre sujeito e objeto causando um efeito perceptivo muitas vezes catártico,
Udigrudi por Glauber Rocha (In: PUPPO; HADDAD, 2002) ou Cinema de poesia por gosto do próprio
Júlio Bressane (2000), justifica-se pelo significado linguístico da palavra, que aqui fora adotado sob o viés
de sua condição periférica, em anteparo ao “... signo utilizado socialmente para se referir mal ou bem uma
realidade determinada, do que a uma eventual adequação entre o conceito marginal e a realidade a que se
refere.” (RAMOS, 1987, p. 12).
2 Parafraseando a expressão “Ética na ótica de uma revisão do Udigrudi” proferida por Jairo Ferreira no
livro-catálogo Cinema Marginal (PUPPO; HADDAD, 2002, p. 97).
3 Expressão utilizada por Bressane para elucidar seus filmes marginais (In: PUPPO; HADDAD, 2002).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
aproximando o filme a uma obra de arte e o cineasta do artista, colocando
em xeque a ilusão de reprodutibilidade do dispositivo (BENJAMIN, 1996).
Tal dimensão elucida a proposição de autoria como fundamento constituinte
da obra, deixando o cineasta numa posição conflitante: de um lado a
cobrança ideológica sobre a dimensão política da obra, sua efetivação e
comercialização, e do outro, a capacidade criativa, a livre expressão e
exploração do dispositivo enquanto matéria-prima da obra de arte, como
argumenta Ramos (1987):
Esta forma caminha num sentido de um questionamento radical da
linguagem clássica do cinema e da percepção a que o público está
habituado e dentro da qual dimensiona sua fruição. Dilema para o “autor”
que não sabe mais a qual das vozes discordantes atender: se a que vem do
seu interior e o leva a arrebentar com a forma e com o contato com o
grande público; ou a que vem do exterior – ou talvez da parte crítica de
seu ego – e que o culpa por uma não-interferência mais direta na realidade
em favor da “imensa maioria da população”. (p. 20)
Tal citação denuncia a tentativa de superação industrial do qual o
cinema fora historicamente convertido, através da tentativa marginal de
caminhar por um universo paralelo buscando novas alternativas de
comunicação com o público, evidenciando então a importância da dimensão
social da obra. Tal postura de “cineasta marginal” na busca ou perda pela
dimensão política trouxe à tona a questão do distanciamento do espectador
enquanto público massivo, já que, contradizendo às formas clássicas da
narrativa, rompeu com a comunicação desse mesmo público acostumado a
uma estrutura mais folhetinesca, daí a suspeita de que Bressane, na busca pela
autoria poderia estar fugindo de uma verdadeira arte popular. Martins
(GALVÃO, 1983) chegou a afirmar com acidez sobre a produção dos
cineastas marginais como se eles estivessem “querendo criar uma nova
linguagem, por isso mesmo o que conseguem é ficar falando sozinhos” 4. Tal
4 MARTINS, Carlos Estevam. Artigo sobre Aristocratas. O Metropolitano. Rio de Janeiro, 3/10/1962 (In:
GALVÃO, 1983, p. 158).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
pressuposto colocou em xeque a atitude engajada de tais filmes, como
argumenta Andrade (1968):
Para que um filme seja um instrumento político efetivo, é preciso primeiro
que se comunique com o público visado. No caso de usar-se o cinema
como instrumento revolucionário, é preciso que ele atinja a classe
potencialmente revolucionária [...] os filmes feitos a partir de uma posição
supostamente revolucionária fracassam justamente nos cinemas
localizados em zonas habitadas pelas classes potencialmente
revolucionárias. (p. 251)
Dessa forma, a obra marginal do cineasta parece acentuar o discurso
da contracultura ao mesmo tempo em que se aproxima do cotejo ao
hedonismo, ou seja, a busca desenfreada pela “curtição” – ou a “odara”5 dos
tropicalistas; presentes em cenas que exploravam todas as formas de prazer
do sujeito ou mesmo a crítica constante à moral burguesa: o ócio, a
vulnerabilidade, o sexo livre, o “estar em transe” constante, ou simplesmente
a falta de propósito ou objetivos de qualquer ação, consumo de drogas,
desprezo pelos valores tradicionais como os da família ou de atitudes
comportamentais, a aparência suja, a alienação e a alusão aos
“marginalizados” como negros, homossexuais, mulheres, além do
encantamento pelo abjeto muitas vezes representado por vômitos, fezes,
baba, sangue, vísceras, castrações, necrofilia, etc. Assim, como argumenta
Ramos (1987):
Deslocados no espaço e na sociedade oficial, os personagens elaborados
pela ficção marginal erram no vazio. Longe, no horizonte, às vezes no
meio de muitos fragmentos, vislumbra-se o resto da sociedade, suas
5 Termo iorubá comumente utilizado por praticantes do Candomblé significando “bom” ou “positivo”.
(DUNN, 2009, p. 211). Esse termo serviu de inspiração para Caetano Veloso que intitulou uma de suas
músicas tropicalistas com apologia à “curtição”. No caso dos filmes marginais o tema que envolve os
sentidos atribuídos à palavra curtição estaria associado, segundo Ramos (1987) a um “antropofagismo
característico do tropicalismo na medida em que deglute esteticamente, sem preconceito, a totalidade das
representações que cercam o artista, para depois devolvê-las numa forma estética que tem algo a lembrar
um procedimento de colagem.” (p. 41).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
necessidades, suas obrigações. E, no entanto, algo parece incomodá-los.
Além da possibilidade ilimitada do prazer, alguma coisa de outro existe
que faz com que o “horror” e a “abjeção” sejam traços centrais da
representação marginal. (p. 35-36)
A exploração do horror como tema intrigante dos filmes em questão,
evidenciada por cenas de crueza, como torturas, dilaceramentos corporais,
agressões impunes, por vezes acentuadas por um áudio de tensão ou ironia,
denota a atmosfera paranoica instaurada pelo cenário político da época
(Ditadura militar), cujo terrorismo ecoou nas próprias vidas pessoais de
vários cineastas marginais, que chegaram a ser censurados, perseguidos e
exilados, como o próprio Bressane, que se asilou na Europa, onde continuou
sua produção marginal até retornar ao Brasil. Conforme aponta Ramos
(1987) tal atitude de contestação aliada ao sentimento de terror e
perseguição, “inerente a qualquer tentativa mais efetiva de participação e
interferência na realidade social, realça ainda mais a postura de
marginalidade”. (p. 36-37), interferindo assim, agudamente na aceitação do
público, pondo em xeque, portanto, a necessidade (ou não) da demanda de
exibição de um filme, um aspecto aparentemente negativo que se torna
positivo no que diz respeito à liberdade de criação e à riqueza de produção
de sentido aos processos de fruição:
O ruim, o sujo, o lixo, o cafajeste, são todos aspectos de uma faceta que, se
vem caracterizar de maneira marcante a estética do Cinema Marginal,
ganha toda sua dimensão quando os incluímos dentro do quadro de
humor irônico e debochado da “curtição” [...] O deboche e o avacalho
atingem aí a tessitura da imagem e a própria película é atingida: negativos
riscados, fotografia suja, [...] pontas de montagem aparecendo, erros de
continuidade, descuido na produção, etc. A postura que permite uma
reflexão sobre a própria obra, povoada de adjetivos desqualificantes e
assim mesmo recuperada de forma irônica, dimensiona igualmente o
universo ficcional do cinema Marginal. [...] O desprendimento do Cinema
Marginal com relação à forma de compromisso e expectativas sociais
permite um afrontamento radical com a sociedade institucionalizada que,
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
às vezes beira o histerismo. A representação do “abjeto” se torna possível
por este mesmo deslocamento na medida em que não veicula sua
elaboração a um contato maior com o espectador. A narrativa pode então
penetrar profundamente nos recantos mais íntimos da alma, que
aparecem na tela em toda sua fúria de impulsos ainda não domesticados.
(RAMOS, 1987, p. 42, 43 e 44).
Neste trecho, o autor enfatiza com linguagem pontual as
características marcantes da confecção desses filmes evidenciando o trabalho
rude de produção e a despretensão de cativar o espectador, passível de causar
repúdio aos olhos mais “domesticados”, ou, pensando-se na apelação como
um indício provocativo e inquietante, libertar esse mesmo olhar de uma zona
de conforto moldada por décadas pelo tratamento dado ao cinema:
Estes filmes aparecem desvinculados do esquema industrial e acentuam,
de maneira especial, o aspecto tão polêmico da “marginalidade”, própria
ao Cinema Marginal. A exacerbação dramática, expressão do horror
incomensurável ao desmedido, fecha-se em círculo. Mostra bem a
característica de um momento histórico e de uma produção interagindo
estilisticamente com as próprias condições de sua feitura. A dimensão do
horror é, então, permitido que seja dada toda sua expressão. A convivência
grupal da equipe acentua esta forma e os vínculos com o resto da
sociedade não interferem na intensidade que toma a expressão do
dilacerado: o campo parece estar aberto para uma produção em vários
aspectos singulares [...] e que tem em seu âmago a expressão de um
elemento sempre evitado na construção do “bom” objeto artístico: o
abjeto. (RAMOS, 1987, p. 97).
Quanto à apreciação crítica da época em relação aos filmes marginais
produzidos, incluindo os objetos deste estudo, foi destacado o intuito dos
mesmos em frisar a contracultura como forma sustentável de elevação
cultural frente à produção industrial. Frederico (RAMOS, 1987) considerou
que:
... desafiar a estratégia de nosso cinema estabelecido que já se animava
para alçar voo industrial-burocrático. Com seu modelo de filme-pobre,
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
questionava toda uma política cinematográfica (e seu modelo padrão) que
então ameaçavam impor. (FREDERICO apud RAMOS, 1987, p. 50)
Stam (1982) chegou a afirmar que a estética do lixo para esses
cineastas era matéria-prima sinônima de um típico país de Terceiro Mundo,
como forma de evidência de superação a partir de restos e sobras frente ao
monopólio capitalista do primeiro mundo, como também apontado de
forma alegórica por Xavier (2013).
Glauber Rocha (RAMOS, 1987, p. 64) já havia preconizado com o
advento do Cinema Novo que a proposta estética com base na violência e
horror era uma das formas para que “o colonizador” compreendesse “a
existência do colonizado”, justificando em seu quase manifesto a “Uma
Estética da Fome” 6 que a violência seria “a mais nobre manifestação da
cultura da fome”, evidenciando assim, a forte inspiração para o surgimento
e fundamentação posterior do Cinema Marginal.
Outras declarações mais ácidas postulavam os filmes marginais
dentro da esfera do fracasso, como a declaração de Calmon (1972) 7: “... estou
acendendo as velas para ver o desfile de fracassos. Eis umas verdades:
nenhum destes filmes dará dinheiro. Nenhum destes filmes presta. Todos
esses filmes dão sono. Nenhum destes diretores fará bons filmes” (RAMOS,
1987, p. 108). Tal comentário balançou as ideias mais perenes até então.
Torquato Neto (1972)8 em sua coluna “Geléia Real” articulou sua crítica à
“opção industrial” tomada pelo Cinema Novo pondo em xeque os
“sacerdotes” do cinema brasileiro:
Glauber Rocha já era [...] Antônio Calmon disse que não havia mais a
menor possibilidade de se fazer um cinema experimental no Brasil. [...] o
que resta do falecido movimento do Cinema Novo é a nova nefasta
aristocracia do cinema brasileiro, do cinema, e a ruptura que já existe
6 ROCHA, Glauber. Uma estética da Fome. Arte em Revista. Vol. 1. Edições 5 -7. Centro de Estudos de
Arte Contemporânea. Austin: Universidade do Texas, 1979.
7 CALMON, Antônio. Entrevista para Torquato Neto, jornal “O correio da Manhã”, citado in Mixagem
Alta não Salva Burrice, jornal Última Hora, de 11/01/1972.
8 NETO, Torquato. Quem cala consente. Jornal Última Hora. 7/02/1972.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
exposta desde 1969/1970 por Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, nas telas,
deve ser mantida, e está sendo. (RAMOS, 1987, p. 109).
Tal comentário acirrou ainda mais a rivalidade surgida entre os
cinemanovistas e os marginais. O termo “intentona udigrudista” do gênio
perspicaz de Glauber Rocha somente veio a confirmar os próprios interesses
do cineasta:
Mais do que ódio ou uma aversão à estética marginal, o que se descortina
para o autor é um conflito íntimo, em que se descortina a possibilidade
dos filmes rebeldes caminharem mais na direção do cinema que ele
próprio almejou um dia, isto numa trilha que não a que ele havia escolhido
no momento. (RAMOS, 1987, p. 90)
O grupo marginal carioca liderado por Bressane com raízes
fortemente ligadas ao Cinema Novo – o filme Cara a Cara (1967) é um
exemplo disso – marca a tendência de ruptura intencionada pelo cineasta em
libertar-se de sua suposta paternidade, que até então admirara a rebeldia de
seu filho, e agora adotava uma postura de um perseguidor implacável.
Contudo, em meio a este cenário conflituoso de ideias passíveis de alterar a
produção de sentido gerado pelos filmes marginais Ramos (1987) nos aponta
que:
A partir do abandono da postura valorativa – que uma ideologia centrada
na compreensão do universo social enquanto totalidade coerente permite
-, todo o universo fragmentário da realidade industrial-urbana que cerca
o sujeito se relativiza e a percepção deglutidora capta os impulsos
múltiplos e díspares desta realidade como alimento desejável para a
representação. (...) A relação com o espectador não passa mais pela catarse
através da compaixão, mas permanece a um certo nível de distância, onde
a irritação com o representado, propositalmente disforme e abjeto,
aparece como identificação possível. (p. 80- 81)
Através deste posicionamento é possível ratificar a postura confusa
que a relação entre filme marginal e espectador se funda, além disso, a opção
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
por sacramentar o abjeto através da película sugere uma necessidade secreta
e hedonista de representar ao espectador o nojo, o asco, a imundice, a
porcaria, a degradação, a ingestão de detritos, convidando o mesmo a
experienciar uma deglutição aversiva de um universo “baixo”, aproximandoo do animalesco. Esse teor lascivo leva à empatia e ao horror, ao mesmo
tempo em que potencializa sua originalidade, deflagrando os temores mais
instintivos da alma como medida para um grito “histérico” e “convulsivo”:
O berro histérico e convulsivo aponta em direções aos fantasmas mais
arcaicos de dilaceramento do ego presentes no sujeito. Horror não apenas
do objeto exterior que ameaça a integridade física do indivíduo, mas antes
de tudo voltado ao próprio “eu”, agora antevisto como constituído de
matéria abjeta e repelente. A proximidade do hediondo faz com que, no
espelho, a imagem vista seja a do ser repelido. Sua significação gera,
inevitavelmente, o berro do horror pela imagem narcísea estilhaçada.
(RAMOS, 1987, p. 120).
O “berro” ecoado pelos marginais, entretanto, pode vir a agredir o
espectador. Tal sentimento de irritação ou repulsa confirmam a intensão de
inquietar e incomodar o conforto do mesmo, provocando-o:
O vínculo catártico, próprio à narrativa clássica, não se estabelece e, em
seu lugar, se instaura uma relação em que o espectador se sente
incomodado pelo deboche - agressivo, não conseguindo projetar
sentimentos agradáveis no ficcional representado. A fruição poderá
novamente se instaurar a partir de uma elaboração intelectual [...] que
considere instigante a imagem do abjeto e do berro despropositado e
gratuito. (RAMOS, 1987, p. 121).
Assim, a posição do espectador parece ficar entre “o olho e a
navalha” (como já descrito em uma das cenas de Matou a família e foi ao
cinema (1969)), onde agredido pela lâmina afiada dos planos o mesmo é
incomodado pelo gume aguda da navalha a fim de se livrar de ideias
preconcebidas, despertando um novo olhar sobre o marginal. Dessa forma,
através desta relação agressiva entre o universo ficcional proposto por tais
- 10 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
filmes, parece imergir uma elaboração intelectual mais apurada, a fim de
questionar a posição social do mesmo em anteparo ao que é regrado.
Como uma “espécie de escritura cinematográfica entre parêntesis”
(VIEIRA. In: PUPPO e HADDAD, 2002, p. 96), o cinema marginal tornou
apoteótica a estética do lixo literal e metafórica como estratégia de subversão,
forma mesma de firmar o caos enquanto elemento estético, do mal para o
bem e à margem de algo. Em entrevista, Andrea Tonacci9, confirmou que:
... transformar o potencial revolucionário, transformador desta
linguagem, e reduzi-la a um método de fazer produtos para um mercado
é uma tragédia para o conhecimento, um suicídio para a vitalidade da
cultura, da identidade. [...] seria como ter uma Ferrari para andar no
trânsito de São Paulo [...] acelerando um sonho numa realidade de
impotência e desperdício. (TONACCI in PUPPO e HADDAD, 2002, p.
99).
Para Tonacci, o processo civilizatório agride sem complacência o ser
humano, através da rigidez das normas e valores fixos e partidários, assim,
considera o cinema como um veículo de conscientização pacífica para a
recriação de um estado de consciência coletivo mais humanizado, como
parte de um sistema pensante em constante transformação, superando a
ignorância acertada pela Indústria Cultural previsível e programada, uma
questão de escolha e olhar crítico.
A opção marginal se deu através da convicção de desigualdade e
desequilíbrio social, como um mal para o bem. Assim, como um “herói
intelectual ferido” (BORGES, 1984) Bressane, enquanto cineasta marginal
parece ter transitado entre sua própria neurose existencial num clima geral
de inconformismos dentro de uma atmosfera etérea, deixando marcas
postuladas em sua auto-poiésis na busca incessante pela ausência de
respostas.
9 Cineasta italiano radicado no Brasil e integrante do escopo dos marginais, responsável pela produção
do filme marginal Bang Bang (1970), dentre outros.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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O olhar do espectador (O olho)
A poesia proposta por Bressane nos faz mergulhar em um universo
infinito de proposições que poderiam ser instrumentalizadas através de
diversas vertentes teóricas, dentre as quais destaco aquelas que notificaram
as ações da hegemonia sobre o cinema, e seus efeitos ao espectador, que aqui
ouso chamar de “comum”, no sentido do sujeito que é leigo às reflexões mais
eruditas sobre o dispositivo, que dentre outras características busca o laser e
o entretenimento, sem quaisquer pretensões de cinefilia, marcado assim por
uma apreciação moldada pelos padrões clássicos cinematográficos.
Entretanto, para melhor entender tal perfil dado ao olhar espectador,
resgato as proposições de Kracauer (2009) que nos apresenta uma teoria
engajada sobre o cinema como um veículo colaborador da cultura de massa
à luz da filosofia histórica e teorias ideológicas (HANSEN in KRACAUER,
2009). Em seu ensaio O ornamento da massa originalmente publicado em
1927, o autor nos chama a atenção para a análise de “discretas manifestações
de superfície” que permearam o processo histórico através de “estruturas
lineares presas” que revelam um “culto mitológico, que se oculta sob uma
indumentária abstrata [...] manifestação crassa da natureza inferior.”
(KRACAUER, 2009, p. 100). Para Kracauer, tais ornamentos que investiam
na mudança de gosto da população passaram a ter efeitos secundários
vinculados à prática capitalista: “... É uma simples consequência de expansão
do poder desenfreado do sistema econômico capitalista, que as forças
obscuras da natureza se rebelem de modo sempre mais ameaçador e
impeçam o acesso do homem à razão.” (KRACAUER, 2009. p. 99). Assim,
atribui ao ornamento, como um de seus efeitos, a transformação da massa
rumo à ilusão face à verdade: “Quando se quer ser enganado, a alma e o
coração apreciam a autenticidade” (KRACAUER, 2009, p. 305). Essa
“máquina de sonhos”, “túmulos que não são para se levar a sério, despertam
a aparência da vida” (KRACAUER, 2009. p. 310) atribui ao cinema uma
posição de engajamento social, promotor de uma espécie de pessimismo
ativista. Seu discurso marxista questiona a influência exercida pela
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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hegemonia cultural que prevê sob a perspectiva crítica um cinema de “abate
ao gado”, precursor da antidemocracia.
Duhamel (STAM, 2013, p. 83) também confere ao cinema a
conversão do público a uma “entidade bovina e passiva”, um legítimo
“matadouro da cultura”. Para Duhamel, a massificação do cinema
estupidificara as mentes elevando a espetacularização à falsa sensação de
abastamento. Já, Benjamin (1996), reconhece que o processo de tecnização
inerente ao cinema promoveu uma “criticidade psicótica” da massa, no
sentido da apropriação por parte do dispositivo das percepções individuais
do “psicótico ou sonhador” para uma percepção coletiva, conforme conclui:
A hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose
de massa. A enorme quantidade de episódios grotescos atualmente
consumidos no cinema constituem um índice impressionante dos perigos
que ameaçam a humanidade, resultantes das representações que a
civilização traz consigo. Os filmes grotescos, dos Estados unidos, e os
filmes de Disney, produzem uma explosão terapêutica do inconsciente.
(BENJAMIN, 1996, p. 190).
Para Adorno (STAM, 2013), entretanto, o cinema estava provido da
crença de um poder focado na negação crítica, produzindo espectadores
como consumidores. Tanto Adorno quanto Horkheimer (1985) estavam
preocupados com a legitimação ideológica do cinema, “as massas iludidas,
hoje, deixam-se cativar pelo mito do sucesso muito mais que as próprias
pessoas bem-sucedidas. Imóveis, se obstinam na própria ideologia que as
escraviza.” (STAM, 2013, p. 88). Tal apontamento pessimista aparenta elevar
a arte difícil como uma ferramenta necessária para o aprimoramento
perceptivo e crítico legitimador da democracia.
Essa ideia de contracinema postulada pelos teóricos críticos parece
ecoar os objetos deste texto. Os filmes de Bressane aqui estudados nos
apresentam matéria-prima para a execução do pensamento, por hora
posicionando o espectador ativamente, como um participante do ato
criativo. Dessa forma, traços da teoria crítica na obra deste cineasta podem
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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ser detectados principalmente sobre o aspecto da subversão, sobretudo a
formal, e também enquanto anti-arte10 ou antiestética, na rejeição ao
conceito clássico de beleza, em favor de uma estética de fragmentos e de
restos.
Na cena inicial de O anjo nasceu (1969), por exemplo, o cineasta nos
apresenta uma sequência de sete planos com média de dez segundos de
exibição cada um, que mostram em close up gravuras de peixes carnívoros
devorando suas presas, evidenciando o caráter antropofágico do cineasta,
que através de suas metáforas sugere significados possíveis que só um olhar
mais apurado do espectador será capaz de gerar em torno do sentido de
dominação conivente do oprimido. Dessa forma, fica evidente a provocação
metafórica de Bressane aos nossos olhos, convidando-nos a fruir todo o
poder da materialidade de suas ideias através dos objetos, como em tais
gravuras.
Todavia, o chamado “olhar comum” do espectador, em anteparo às
suposições sobre essa hegemonia do olhar elencada pela Teoria Crítica,
contudo, refere-se aqui às características capazes de impregnar as
percepções, tais quais apontam Bordwell, Staiger e Thompson (1985), como
o padrão narrativo clássico dos filmes hollywoodianos como consequente da
normalização e estilização, que consideraram como “excessivamente
óbvios”. Stam (2013) acata às considerações dos autores elucidando sobre
tais produções cinematográficas:
10 O conceito anti-arte apoia-se na ideia dadaísta da determinação do valor estético não como
procedimento técnico, mas como um puro ato mental, uma atitude diferente em relação à realidade: “Com
suas intervenções inesperadas e aparentemente gratuitas, o Dadaísmo propõe uma ação perturbadora,
com o fito de colocar o sistema em crise, voltando para a sociedade seus próprios procedimentos ou
utilizando de maneira absurda as coisas a que ela atribuía valor.” (ARGAN, 1999, p. 356). O estilo inventivo
e provocativo de Duchamp chamou a atenção da crítica pelo caráter enigmático de suas obras,
consideradas quebra-cabeças desafiadores a estudiosos e o grande público: “Precisa-se apenas de virar o
caleidoscópio da interpretação para descobrir que os fragmentos da vida de Duchamp e da sua obra,
formaram um novo padrão.” (MINK, 2000, p.8).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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O filme hollywoodiano clássico apresenta indivíduos psicologicamente
definidos como seus principais agentes causais. Estes lutam para dar
solução a problemas claros ou alcançar objetivos específicos, a história
finalizando-se ou com a resolução do problema ou com um claro alcance
ou não alcance dos objetivos. A causalidade deflagrada pelas personagens
fornece o princípio unificador primário, ao passo que as configurações
espaciais são motivadas pelo realismo e também pela necessidade
composicional. As cenas são demarcadas por critérios neoclássicos –
unidade de tempo, espaço e ação. A narração clássica tende a ser
onisciente, altamente comunicativa e apenas moderadamente
autoconsciente. Se há um salto no tempo, somos informados por uma
sequência de montagem ou por um fragmento de diálogos; se uma causa
é omitida, sua ausência nos é informada. A narração clássica opera como
uma “inteligência editorial”. (STAM, 2013, p. 167)
Tal pretensão de agradar ao público é quase nula nos três primeiros
longas de Bressane. Ramos (1987) elucida que: “O horror “marginal” é
inexprimível, sua motivação transcende a “motivação da ação” situada no
universo da representação clássica.” (RAMOS, 1987, p. 119). Outros
elementos como violência e crueldade também são bastante notados nestes
filmes, por cenas de tortura, berros, dilaceramentos e tudo mais que ameace
a integridade física do indivíduo produzindo o sentido de agressão
contemplativa do público.
Dessa forma, a partir da provocação ativada por um “choque
alienador”, o espectador vê-se na tarefa de estabelecer nexos possíveis a partir
do caos sarcástico apresentado pelos planos. O efeito de agressão provocado
pelas cenas é passível de irritar o público que, somado ao deboche intensifica
ainda mais o teor dramático que remete ao vazio de motivação, dificultando
assim, sua relação com a obra, sobretudo se o olhar desse espectador estiver
em sintonia com a narrativa clássica: “A atitude do deboche histéricoagressivo é geralmente sentida como uma afronta ao senso estético e,
acrescida da imagem do abjeto, confronta-se com a percepção do ‘objeto
belo’.” (RAMOS, 1987, p. 125), pondo em cheque a posição dos filmes
marginais enquanto mercadorias ao atingir com sua lâmina afiada a retina
do espectador.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Considerações Finais
Em meio ao tratamento dado às obras, tais apontamentos
parecem denunciar a complexidade existente na relação entre tais objetos
com o público, sobretudo no que diz respeito à aversão pelo abjeto, no
entanto, alguns caminhos de significação através da apreciação dos
elementos audiovisuais e narrativos presentes nestes filmes, também
parecem ser capazes de apontar possibilidades de produção de sentido,
fazendo com que as peças fragmentadas da(s) narrativa(s) se encaixem
num todo, metonimicamente, somando itinerários de significação e
clarificando as possíveis conclusões de um espectador sensível, ativo,
pensante e decifrador da mensagem. Sendo assim, os filmes de Bressane
aqui em pauta, parecem passar pelos espelhos de um caleidoscópio,
quantificando um exponencial semântico ao espectador, investindo em
sua elaboração perceptiva, crítica, sensível e inteligível. Dessa forma, a
partir de tais proposições, o cineasta parece nos apresentar, segundo sua
“ótica caótica”, a ética, ao passar pelo filtro do olhar do espectador. Assim,
a navalha de seu estilo marginal aparenta ser capaz de cegar as visões préestabelecidas libertando-nos para enxergar com maior nitidez outra
proposição de realidade, aquela situada à margem de uma já determinada.
Referências
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2006.
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2016
BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Obras escolhidas:
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to 1960. Nova York: Columbia University Press, 1985.
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DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim: A Tropicália e o surgimento da contracultura
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FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Limiar, 2000.
GALVÃO, Maria Rita; BERNARDET, Jean Claude. O nacional e o popular na cultura
brasileira: Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1983.
HANSEN, Miriam. Perspectivas descentradas. In: KRACAUER, S. O ornamento da massa.
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KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
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PUPPO, Eugênio; HADDAD, Vera (orgs.). Cinema Marginal e suas fronteiras: Filmes
produzidos nas décadas de 60 e 70. Livro-catálogo. São Paulo: Centro Cultural Banco do
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______. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2013.
VIEIRA, João L. Lixo, Marginais e Chanchada. In: PUPPO, Eugênio; HADDAD, Vera (orgs.).
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XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento. São Paulo: Cosac Naify, 2012.)
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Bellini e a Esfinge e Clássicos Noir: Uma Análise
sobre a Questão Estilística do Cinema
Natália de Oliveira Conte Delboni - UNESP
Introdução
Os estudos sobre intertextualidade sempre se pautam através do
passado e do presente para podermos perceber como a relação entre os textos
sempre esteve presente desde a produção de obras de arte até em
publicidades da atualidade. A partir dessa relação, este trabalho vai abordar
como o cinema, especificamente, o gênero noir, se relaciona entre o seu
passado e o seu presente através da intertextualidade em questões estilísticas.
Utilizaremos como objeto a adaptação cinematográfica do romance
Belline e a Esfinge do diretor Roberto Santucci Filho e lançado em 2001,
baseado na obra homônima de Tony Bellotto de 1995. Vamos fazer um breve
cotejo estilístico entre a obra cinematográfica e clássicos do noir da década
de 40 e início da década de 50. Para tal estudo, precisamos compreender
questões sobre a adaptação literária para a sétima arte. Vale ressaltar que o
processo de transposição cinematográfica torna-se ingênuo questionar a
noção de fidelidade entre as obras. As nuances de passagem de Bellini do
romance para Bellini das telas pode trazer reflexões válidas se flagrar um
trânsito de linguagens, fazendo ecoar aspectos próprios de cada meio: livro x
cinema.
O termo adaptação, também tido como sinônimos recriação,
transcodificação, releitura, transmutação, tradução intersemiótica, etc, faz o
uso que se faz dele nos últimos tempos parecer permeável à noção de uma
operação transformativa. É possível dizer que, nos últimos tempos, no lugar
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de fidelidade passou-se a usar o termo diálogo para representar essa relação
entre o literário e o audiovisual. Por isso, o termo adaptação pode ser
considerado um processo adaptativo e devem ser respeitadas suas decisões
de liberdade inventiva como resultado de um meio de expressão.
Porém, mesmo a independência criativa do diretor de uma
adaptação cinematográfica, todo o artista está vulnerável e passível de se
deparar com a intertextualidade, Como veremos mais a frente, Bakhtin,
semioticista e linguista russo, já dizia que nenhum texto, seja ele verbal ou
audiovisual, nunca é totalmente puro. Sempre vai estar com raízes
entrelaçadas em outras referências que podem tomar um novo processo de
significação.
O Cinema Noir
Conhecido também como o cinema negro, o noir tem sua origem a
partir das narrativas literárias de investigação, com inspiração em detetives
“clássicos” como Dupin, de Edgar Allan Poe, ou Sherlock Holmes, de Conan
Doyle. No entanto, o que se tornaria conhecido como literatura noir, deixaria
os clássicos padrões do protagonista para a permanência de um detetive mais
profissional e permeando a realidade da sociedade da época.
Em 1938, Dashiell Hammett, lança o verdadeiro ícone da literatura
noir, que mais tarde inspiraria diretamente outros romances, entre eles obras
de Raymond Chandler. Esse tipo de literatura popular não demoraria a
chegar nas telas do cinema. Filmes passaram a ser produzidos sob sua
inclinação direta, buscando refletir as marcas reconhecíveis daquelas
histórias, quando não são diretamente adaptados de tais obras conhecidas
como pulp fiction, levando à grande tela a encarnação de personagens já
queridos do público.
Na década de 40, ao final da Segunda Guerra Mundial, e com a
abertura dos países envolvidos no conflito, essas películas chegam à França.
A partir de então, essas obras passam a serem denominadas como filme noir
pela primeira vez. Marcel Duhamel, em 1945, cria a Série Noire, onde
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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publicavam histórias policiais de autores como Dashiell Hammet e Raymond
Chandler, entre outros. “Film noir foi a expressão inventada pelos críticos
franceses do período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial
para designar um grupo de filmes criminais americanos, produzidos a partir
dos anos 40, com certas particularidades temáticas e visuais que os
distinguiam daqueles feitos antes da guerra”. (MATTOS, 2001, p. 11).
É preciso perceber a mudança de paradigmas que o noir
proporcionou à narrativa de enigma clássica. Basicamente, a literatura
clássica de enigma foi criada por Edgar Allan Poe, com o seu detetive C.
Auguste Dupin. Suas principais obras foram os contos “Assassinatos na Rua
Morgue”, “O Mistério de Marie Roget” e “A Carta Roubada”. Influenciado
pelo positivismo de August Comte, Dupin é uma máquina de raciocínio
imune aos acontecimentos criminosos, pois, já na narrativa, não haverá
perigos derivados do crime em questão. Dupin desvenda os maiores
mistérios de dentro de sua casa, sentado em sua poltrona, somente com seus
poderes incríveis no uso do pensamento lógico, cujos fatos são narrados por
um fiel amigo-narrador, do qual nada sabemos, mas com o qual nos
identificamos, já que, como nós, ignora os motivos do crime e não possuímos
os incríveis dons de raciocínio de Dupin. Essa inclusão de um mesmo
personagem em diferentes histórias sem ser uma sequência, como uma
trilogia, por exemplo, também será uma das contribuições de Poe.
A própria invenção do gênero policial é, na verdade, consequência
de uma nova concepção da literatura proposta por Poe; é essa concepção que
fará com que o autor consiga imaginar uma novela policial, isto é, uma
combinação de ficção não mais com o deixar-se tomar pela inspiração e pela
fantasia, ou com o liberar potencial de criatividade, mas sim uma
combinação de ficção com raciocínio e interferências lógicas. (REIMÃO,
1983, P. 19).
Então, surge outro personagem que conquistaria o gosto de leitores
com extraordinário sucesso. O mais famoso dos detetives nasce da inspiração
em Poe e passa a ser um verdadeiro ícone da literatura policial. Seu autor,
Conan Doyle, leva Sherlock Holmes para quatro romances e cinco livros de
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contos que, anos depois, se traduziriam para o cinema com o ator Basil
Rathbone, considerado por muitos o melhor intérprete do célebre detetive.
Talvez Holmes seja um dos primeiros personagens adaptados para o cinema,
e um dos que ganharam maior visibilidade mundial. Holmes e Dupin
possuem características muito próximas, como se pode perceber numa
leitura sumária das obras em que aparecem, as quais consolidariam o gênero,
que passaria, com o tempo, a ser reconhecido como de narrativa “clássica”
de enigma.
Passado o início do século XX, chegada a década de 30, podemos
observar uma mudança na literatura policial. Estando às vésperas da Segunda
Guerra Mundial e da queda da Bolsa de Nova York em 1929, o mundo vive
uma reviravolta em distintas áreas. E assim, surge a Série Negra ou a Série
Noire, criado por Dashiell Hammet, em especial com seu romance O Falcão
Maltês. Seu detetive, Sam Spade, foge do perfil de Holmes ou Dupin. A
educação, elegância, sutileza dos detetives da narrativa de enigma dão lugar
a um novo perfil. Spade é o primeiro investigador rude, vulgar, áspero,
deselegante, para quem desvendar resolver casos criminais é uma fonte de
renda. E vale lembrar que, ao contrário dos clássicos detetives, que
decifravam racionalmente um crime que já aconteceu, na narrativo do noir
outros assassinatos poderão ocorrer, até a última página. Não há seguranças
ou garantias para o detetive, que se vê em teias num mundo da escória da
grande cidade. E se o véu da suspeita se estende a todos, os supostos
assassinos, a polícia ou sedutoras mulheres, o detetive deve agir também para
proteger a própria pele.
A estética noir no cinema
O noir sempre teve suas características visuais bem definidas dentro
cinema mundial, mas, principalmente no cinema norte-americano. O
posicionamento de câmeras, o trabalho de luz, o uso de efeitos de fumaças
são alguns dos recursos utilizados pelo gênero para criar o universo peculiar
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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do noir. E é sobre esses artefatos cinematográficos que esse tópico desse
artigo vai tratar.
O cinema noir tem seus reflexos em diversas obras dos dias atuais,
porém, para analisar os seus recursos visuais e estéticos é necessário voltar ao
passado e mergulhar no universo do cinema da década de 40 e 50. Para
sintetizar tal reflexão, vamos buscar algumas referências na obra de A. C.
Gomes de Mattos, “O outro lado da noite: Filme Noir”, de 2001.
Para iniciar, somente examinando as raízes do film noir podemos
verificar quais são seus eixos principais: personagens, temas, tons, atmosfera,
estrutura narrativa e o estilo visual presentes em quase todas as obras. Seu
protagonismo fica por conta de detetives de diversas naturezas: particulares,
policiais, jornalistas ou cidadãos comuns, todos com características
inspiradas na literatura de detetive clássica. Porém, o protagonista noir
destaca-se mais pelo seu envolvimento direto com o crime e demais
personagens que pela sua capacidade reflexiva de desvendar mistérios,
comuns em detetives da primeira fase da literatura de enigma como Dupin
ou Sherlock Holmes.
O personagem masculino, quase sempre tem comportamentos
masoquistas, e com habilidade incrível em descobrir a traição da mulher e
usa sua paixão intensa como demonstração de luxúria e autopunição.
A Femme Fatalle, a mulher de destaque nos roteiros
cinematográficos do gênero é retratada pela sedução, astúcia e
independência. Para retratar tais personalidades, o cinema buscou recursos
como enquadramento, angulação, movimento de câmera e iluminação.
“Estão quase sempre colocadas opressivamente no centro do quadro e/ou
primeiro plano ou atraindo o foco para si mesmas no fundo”, (Mattos, pg.
39, 2001). Segundo o autor, parecem dirigir a câmera irresistivelmente para
elas quando se movimentam, e assim, passar a sensação de que o protagonista
a persegue com os olhos.
O cinema de gênero noir traz temas reincidentes em suas façanhas.
Além de temas como transcendência da violência, obsessão sexual, paranoia,
desconfiança, ganancia, corrupção e resignação ao fatalismo.
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Os cenários desses filmes também têm semelhanças que valem
observação. O pano de fundo sempre é a cidade americana. Recriada em
estúdio ou não, trazia nuances expressionistas e realistas, integrando o elenco
e participando das cenas como ações revelando os personagens e
demonstrando a atmosfera de tensão e mistério. A grande cidade era
representada pelos becos e ruas escuros cheios de neblinas e molhados da
chuva fina. Os locais das cenas são boates, restaurantes, quartos de hotéis,
escritórios e apartamentos que demonstram claramente as diferentes classes
sociais envolvidas no crime. Vale ressaltar que esses filmes retratam também
o momento histórico vivido pela população mundial, principalmente a
norte-americana que sofria com a quebra da Bolsa de 1939. Cenários exóticos
também fazem partes das produções noirs, como podemos observar em A
Dama de Shagai, de 1948, onde parte da narrativa se passa em um teatro
chinês e em um parque de diversões. Na cena abaixo, os personagens se
encontram em uma sala de espelhos, dentro de um Parque de Diversões.
A decoração também reflete toda a estética revelada pelo gênero.
Segundo Mattos, é a composição desses elementos que proporcionam a
caracterização tanto dos personagens quanto dos cenários que compõem as
filmagens. Mas o que mais podemos perceber é o quão temos de referências
aos hard-boiled dos romances de Dashiell Hammett e Raymond Chandler.
Recurso que aproxima o cinema da literatura é a voz over. O filme
consegue traçar estados mentais do protagonista por meio da narração em
voz over. Esse recurso, quando introduzindo e acompanhando um fato
anterior ou como recurso de flashback é uma das maiores características das
estratégias da literatura noire.
A voz over ou voz off mostra também o ponto de vista do
personagem, caracterizado também pelo uso da câmera subjetiva, que nos
força a alinhar-nos com o pensamento do protagonista. Segundo Mattos,
após a Segunda Guerra Mundial, o aparecimento de novas câmeras mais
leves como Arriflex ou Cuninghan proporcionaram aos cinegrafistas maior
liberdade e capacidade de filmar posições que antes não era possível.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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A iluminação é o ponto chave da dramaticidade. Muito usado pelos
estúdios de Hollywood na década de 30, o noir enfatiza o uso de iluminação
em chave baixa ou escura opondo-se diretamente à iluminação em chave alta
ou brilhante. Para Mattos, a iluminação brilhante resulta em cenário
iluminado e com poucos contrastes de luz e sombra. Na iluminação escura,
o cenário fica pouco iluminado e produz constante oposição de áreas de luz
e escuridão. “A iluminação escura já era um elemento dos filmes de horror e
policiais, mas é possível que a literatura criminal também tenha contribuído
para os efeitos de iluminação noire” (Mattos, pg. 45, 2001).
Podemos perceber essas referências no cinema noir com o uso
exagerado de ângulos, primeiros planos, câmera oblíqua, linhas horizontais
cruzadas com verticais e nas variações de posicionamentos de luz. O ponto
chave da fotografia noir é a maior profundidade de campo, deixando o
quadro nítido somente o fundo, e os demais planos desfocados, para causar
maior interação entre o homem e as forças representadas pelo ambiente noir.
Mattos explica que existem duas maneiras de se conseguir esse efeito:
aumentando a quantidade de luz que entra na lente ou usando maior
distância focal. “Obviamente, por causa dos baixos níveis de luz envolvidos
na iluminação em chave baixa e nas filmagens de cenas noturnas realmente
de noite, foram usadas as lentes grandes angulares” (Mattos, p. 45, 2001)
Complementando o estilo fotográfico, a direção desses filmes
também fugiu do tradicional à época, rompendo com o equilíbrio da
composição das cenas. A mis-en-scéne parte de uma “descomposição” do que
se diz à ocupação de atores e objetos. Os recursos utilizados para se conseguir
esses efeitos são: uso das câmeras alta e baixa, abolição do ponto de referência
e uso excessivo de close up. A montagem dos planos é o grande final do
processo de construção do film noir, opondo-se a mudanças de planos
radicais. Uso de corte do primeiro plano para o plano em câmera alta da
vítima ou em travelling.
É importante que a imagem vista nas telas se torne inteligível, para
isso, o noir também recorre ao contexto de mis-en-scéne, ou seja, a arte de
colocar em um púnico quadro os elementos necessários para tal cena.
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Segundo Bordwell, o espectador percorre a imagem com o olhar,
concentrando-se em áreas de conteúdo elevado de informação. “Elas tendem
a se fixar em elementos específicos, como rostos, olhos e mãos, em
características de composição vívidas e proeminentes, como áreas onde há
contraste dos valores de luz ou cruzamento de vetores, e no movimento”
(Bordwell, p. 231, 2012). Assim, podemos observar detalhes nas cenas das
obras do gênero, seja nos objetos ou nos próprios personagens.
Bellini e a Esfinge
Na narrativa do romance, Bellini é um jovem detetive que, após uma
grande desilusão amorosa, abandonou o emprego estável do escritório de
advocacia do pai para se aventurar no bem sucedido escritório de
investigações da detetive Dora Lobo. Ele recebe a missão de desvendar o
paradeiro de uma garota de programa, busca financiada por um voyer
médico da alta sociedade paulista.
Durante as investigações, Bellini se vê enreda em enigmas, paixões e
perigos. Nitidamente ele encarna o herói da tradição noir: investigador
profissional, remunerado para desvendar um assassinato, vai a campo para
realizar o seu trabalho e enfrenta perigos. A narrativa do romance é cheia de
detalhes e utiliza uma linguagem simples e, até, muitas vezes, fora de
qualquer padrão da norma culta. A leitura flui de forma rápida e facilmente
inteligível, as cenas acontecem com a agilidade de um filme e os momentos
de tensão sexual descritos como uma cena de ação.
Bellini possui todas as características de um detetive noir, além dos
aspectos físicos, ele assume recursos estilísticos de personagens como Sam
Spade, protagonista de o Falcão Maltês, considerada a primeira obra film
noir. Inclusive com citações diretas a Sherlock Holmes, por exemplo.
Além do noir, O filme em questão, também é permeado de feitios de
um outro gênero cinematográfico muito comum: o Thriller Criminal. Em
diversas cenas a açõa fica mais evidente que o mistério e a tensão própria do
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noir. No entanto, mesmo em momentos de ação como lutas, perseguição e
tiroteios é possível destacar elementos técnicos do gênero negro.
O filme, Bellini é encarnado pelo ator Fábio Assunção, que narra em
um ritmo vertiginoso as suas aventuras pelo submundo da noite paulistana,
envolvendo o leitor emocionalmente na trama. Fátima é protagonizada pela
atriz Malu Mader, também esposa do autor do romance e também roteirista
do filme Tony Bellotto. Mader representa a Femme Fatalle brasileira, que luta
diariamente para sobreviver nesse submundo de prostituição, drogas e
intrigas. Outra personagem importante é Beatriz, encenada pela atriz
Maristane Dresch. A representação do olhar de Beatriz é um dos pontos
principais do filme. É assim que Beatriz seduz Bellini, como uma perfeita
Femme Fatalle.
O filme Bellini e a Esfinge ganhou prêmios no Festival de Cinema
Brasileiro de Miami 2002 (EUA) na categoria de melhor atriz coadjuvante
(Malu Mader). Festival de Cinema Latino de Miami 2002 (EUA), indicado
na categoria de melhor filme. E Festival do Rio 2001, na categoria de melhor
filme.
Análise estilística intertextual
O objetivo desse artigo é mostrar como a adaptação cinematográfica
Bellini e a Esfinge utiliza recursos estilísticos utilizados nos filmes clássicos
do gênero noir, a partir do cotejo entre seis obras do período clássico do
gênero, sendo eles: A morte num beijo (1955), Anjo do mal (1953), Entre
dois fogos (1948), Fuga do passado (1947), Cúmplice das sombras (1951) e
Passos da noite (1950). Para tal avaliação, vamos recorrer a teóricos para
contextualização em termos de intertextualidade.
Bordwel cita Jean-Louis Comolli para mostrar que é importante que
ressaltemos que as questões sobre técnicas cinematográficas não é somente
uma avaliação dos recursos estilísticos, mas que estes devem ser entendidos
também como recursos na narrativa para complementar a própria noção de
texto do filme, como uma relação intertextual. “Devemos entendê-la em
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relação com os “sistemas textuais” de filmes específicos e as condições que
moldam a relação técnica com códigos não cinematográficos derivados da
fotografia, pintura, do teatro ou de outras práticas de significação”
(BORDWELL, P. 227, 2012).
A relação intertextual existe em diversos atos da comunicação, desde
o jornalismo e a publicidade até a literatura e, principalmente, o cinema. A
sétima arte se pauta em romances e best-sellers das letras para encarnar
personagens que dão vida a grandes nomes que saem dos estúdios de todo o
mundo.
Segundo Nascimento, para compreender a intertextualidade, é
preciso compreender a noção de texto, para isso ele vai buscar nas obras de
Mikhail Bakhtin essa definição. “Tecido organizado e estruturado, ou
pragmaticamente, como um objeto de comunicação, ou ainda,
linguisticamente, como uma sequência linguística autônoma” (Nascimento,
pg. 35, 2006).
Para Bakhtin, ato enunciativo é refletivo através de 3 esferas,
Nascimento as explica da seguinte forma: “1) a do conteúdo temático
(relacionado ao contexto da enunciação); 2) a do estilo formal (envolve
utilização dos recursos do sistema de língua); e 3) a da construção
composicional do enunciado (vinculado ao sujeito enunciativo)”;
(Nascimento, pg. 36, 2006).
A fusão dessas três esferas constitui a marca da especificidade
comunicacional, de onde ocorre o processo inter-relacional entre locutor e
interlocutor, já que, para a semiótica russa, o ato comunicacional não é um
mero ato individual. Julia Kristeva leva esses termos unidos ao estudo de
dialogismo e ambivalência para trabalhar a intertextualidade. Barros e Fiorin,
mostra como essa relação dialógica acontece:
“A noção de dialogismo - escrita em que se lê o outro, o discurso do outro
- remete a outra, explicitada por Kristeva (1969) ao sugerir que Bakhtin,
ao falar de duas vozes coexistindo num texto, isto é, de um texto como
atração e rejeição, resgate e repelência de outros textos, teria apresentado
a idéia de intertextualidade. (BARROS; FIORIN, 1999, p. 50).
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No cinema, essa relação intertextual perpassa os limites do texto
estruturalista, como já disseram teóricos como Roman Jakobson. A narrativa
audiovisual se relaciona diretamente com as ideias de Bakhtin e Kristeva.
Robert Stam mostra que para o semioticista russo, a “Matriz Gerativa de
Sentido”, isto é, o dialogismo complexo e multidimensional. “A
intertextualidade é um conceito teórico valioso, na medida em que relaciona
o texto individual particularmente a outros sistemas de representação e não
a um mero amorfo contexto”, (STAM, p. 227, 2010).
A partir da visualização crítica dos filmes tradicionais citados,
podemos observar que a adaptação “Bellini e a Esfinge” utiliza de diversos
recursos comumente usados nos clássicos do gênero. Desde iniciando a
abertura, onde apresenta a ficha técnica da produção, com elementos que
remetem o expressionismo alemão e iniciando a história com a voz over do
detetive relembrando fatos do crime que fez com que toda a história se
tornasse instigante, como em um processo de flashback.
Cena narrada pelo Dr. Rafdijan,
protagonista do crime do filme. Voz presente
na mente do personagem principal do noir: o
detetive.
O mesmo acontece em diversos filmes noir onde inicia-se com a voz
over presente, ou relatando um fato já acontecido oiu algo que vai acontecer,
mas na maioria das vezes, nós espectadores, temos a sensação de estarmos
dentro da mente do protagonista.
A voz over é um recurso estilístico importante, pois durante a
narração não é possível saber quem exatamente está falando, a não ser que já
seja possível o reconhecimento do personagem pelo tom de voz. Porém, no
noir, a voz over é utilizada comumente no início dos filmes, oq torna
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impossível reconhecer de onde vem tal pensamento e reflexão. Assim como
acontece com Bellini e a Esfinge, podemos observar também no filme Entre
dois Fogos, já citado nesse trabalho. O prólogo do longa metragem tem a
personagem Pat Cameron contando todo o seu plano para a fuga do grande
amor da sua vida, o criminoso do roteiro, Joe Sulivan.
Início do filme Entre dois Fogos, onde a
personagem ícone Femme Fatalle relata
seus pensamentos através do recurso
voz over.
Aliás, vale lembrar como a presença da femme fatalle também se faz
presente no filme Bellini e a Esfinge. Podemos dizer que o enredo se dá a
partir da presença de Fátima e Beatriz. As duas representam a independência
e a ousadia feminina. Para isso, os filmes noirs utilizam do recurso de
enquadramento e angulação da câmera, valorizando sempre a posição e o
olhar da mulher diante do seu homem, o detetive ou, muitas vezes, também
o bandido. A força do olhar da femme fatalle está presente em diversos filmes
do gênero, inclusive em todos analisados nesse trabalho. Por referência,
seguem algumas imagens:
Fátima, em Bellini e a Esfinge (1995) –
Direção: Roberto Santucci
- 29 Beatriz, em Bellini e a Esfinge (1995) –
Direção: Roberto Santucci
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Kathie Moffat, em Fuga do
Passado (1947) – Diretor:
Jacques Tourneur
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Susan Gilvray, em Cúmplice das Sombras
(1951) - Direção: Joseph Losey
Uma das principais características estilísticas do noir é a iluminação.
O alto contraste de branco e preto transfigura o clima de mistério e tensão
das cenas presentes, principalmente, nos pontos mais altos ou de giros dos
roteiros do gênero. Em Bellini e a Esfinge, apesar de ter sido filmado em
cores, também utiliza desse recurso para transpor para as telas da sétima arte
a atmosfera de obscuridade.
Nos momentos de maior tensão do filme, o diretor optou por uma
iluminação mais azulada ou em tons de laranja e quase sem cores. Porém, em
cenas com passagens mais leves e menos tensas, a iluminação tem um tom
natural, mas sempre se valendo do contraste dos das iluminações abertas e
fechadas.
Confira a seguir três momentos em que o diretor Roberto Santucci
utiliza da iluminação como recurso estilístico característico. Observe os
quadros abaixo:
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Outro fator muito comum em Bellini e a Esfinge são os usos da
angulação de câmera, primeiros planos e profundidade de campo – deixando
nítido somente o fundo e desfocado os demais planos. Tudo isso, favorece
uma fotografia bem trabalhada e com características do expressionismo
alemão.
No caso de Bellini, podemos observar muito uso de close ups em
diversos personagens, mas principalmente, valorizando o protagonista
Bellini, o detetive. Há também referências do uso de close ups ou angulações
de câmeras valorizando outro fator importante da estética noir, a
ambientação do cenário.
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Cena de Bellini e a Esfinge, momento em
que o detetive conhece Beatriz.
O mesmo recurso, podemos observar em Passos da Noite, onde o
plano de fundo fica desfocado para evidenciar o momento de tensão entre os
personagens. Nesse caso, o desfoque fica evidenciado pelo quadro no fundo
da parede, mas que, apesar da falta de definição, a imagem reproduzida na
obra de arte, mostra um ambiente de natureza, porém, destruído e noturno.
Cena de Passos da Noite (1951) –
Direção: Otto Preminger
Conclusão
Vale ressaltar a importância dos recursos estilísticos utilizados para
reconhecimento do noir como gênero cinematográfico e de relevância para a
sétima arte. O uso de técnicas como posicionamento de câmeras e
ambientalização são utilizados para retratar o clima de medo, investigação e
mistérios dos filmes desse gênero. Mas, também são usados para a
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personificação desses personagens que tanto representam essas obras: o
detetive, a femme fatalle, entre outros.
Nesse trabalho pudemos concluir que a intertextualidade, termo
cunhado por Júlia Kristeva, mas com raízes nos estudos de Mikhail Bakhtin,
está presente em diversas formas de comunicação, inclusive no cinema. Nos
ares da sétima arte, essa relação intertextual está presente não somente na
estrutura textual, mas em toda a concepção do audiovisual.
Através do filme Bellini e a Esfinge, foi possível mostrar que o cinema
nacional, através dessa obra, se inspirou nos clássicos do cinema noir para a
sua produção, sendo influenciado diretamente em estilo. Ressaltando que o
objetivo desse trabalho foi fazer somente uma análise estilística dessa obra
em referências à obras clássicas já citadas.
Roberto Santucci, diretor do noir brasileiro, utilizou de todos os
recursos mais comuns do noir, desde a ambientalização até o uso de
iluminação e posicionamento de câmeras. Nesse trabalho, é importante
dizer, que a iluminação foi o estilo mais referenciado em Bellini e a Esfinge.
Mesmo sendo um filme produzido em cores, a equipe conseguiu reproduzir
todo o universo noir.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). São Paulo.
Hucitec/Unesp, 1993.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz. (Org.). Dialogismo, polifonia,
intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1999.
BELLOTO, Tony. Bellini e a esfinge. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
BORDWELL, David. Sobre a história do estilo cinematográfico. Campinas: Editora
Unicamp, 2013.
COVALESKI, Rogério. Cinema Publicidade e Interfaces. Curitiba: Editora Maxi. 2009.
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FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
MATTOS, A. C. Gomes. O outro lado da noite: Filme noir. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
MICHEL, Marrie. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Senac. 2009.
NASCIMENTO, Geraldo Carlos. A intertextualidade em atos de comunicação. São Paulo.
Ed. AnnaBlume, 2006.
NEBOIS, Thierry. Film noir. Lisboa: Taschen, 2004.: Ed. 983.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2010
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Juventude e Violência em Vozes do Mêdo:
análise do curta Retrato do jovem brigador
Pedro Plaza Pinto - UFPR
1. "Grito no escuro": Painel, mosaico, orquestra bloqueada
O verso da música 2001 - "Dei um grito no escuro/ Sou parceiro do
futuro/ Na reluzente galáxia" - serve de epígrafe provocativa, mas também
como síntese do trabalho e da ideia de futuro do filme Vozes do mêdo (1972).
A cartela aponta para sentimento de exasperação e, ao mesmo tempo, para a
proposta de pensar a juventude e sua expectativa de futuro, bloqueada em
contexto de regime de exceção que é desafiado pelo projeto deste filme livre.
A confiança abalada e o rebaixamento do "horizonte de expectativa" é
metaforizada nas imagens do interior de uma casa feita tapera, rebotalhos e
restos à mostra, sinais de abandono, lixo mostrado no preto e branco que
inicia o filme, passo a passo com a locução da voz-over do poema "Congresso
Internacional do medo", de Carlos Drummond de Andrade. O aspecto
sintético da epígrafe antenada com a revolução juvenil dos costumes, do rock,
da pílula anticoncepcional, da publicidade, da televisão, é combinado com a
denúncia das condições de bloqueio e censura em que se vivia. Esta epígrafe
de música paradigmática do repertório dos Mutantes é um paratexto, no
limiar de texto-moldura que dá base ao começo do filme. O poema do
Drummond é a referência para a reflexão, na linha vocativa da enunciação
de partida de filme.
O projeto do filme foi conduzido por Roberto Santos (1928-1987),
ora denominado "coordenador de material", que reuniu realizadores de
diversas origens ao redor da ideia de examinar "o medo da juventude na
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grande metrópole", segundo um dos participantes, Ruy Perroti, em entrevista
ao programa "Luzes Câmera", da TV Cultura (Cf. NAVES, 198?). Entre os
responsáveis pela direção das partes do longa-metragem, distinguiam-se
jovens estudantes de cinema, cineastas mais experientes, diretores de
"jingles" (filmes publicitários), o próprio Roberto Santos, e até mesmo o ator
e escritor Gianfrancesco Guarnieri, que assinou o dissonante curta "Aquele
dia 10", que neste artigo não será examinado.
A produção da película contou com o apoio crucial da Linxfilm,
produtora ligada à comerciais de TV, na qual Roberto Santos já trabalhara e
que tinha como sócio César Mêmolo Júnior e Ruy Perroti. A Linxfilm já era
reputada pioneira na confecção de filmes publicitários, principalmente pelo
trabalho de Ruy Perroti e outros animadores com stop-motion e outras
técnicas de animação naquele final de anos 1960, quando se inicia o trabalho
de Vozes do mêdo com equipamento emprestado nos finais de semana. A
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo apoia o
projeto: alguns de seus alunos, como Plácido Campos Jr. e Roman Stulbach,
dirigem episódios do filme. Outros participantes são ex-alunos e contam
com a orientação do professor Roberto Santos, componente do primeiro
corpo docente do nascente curso de cinema da USP, ao lado de Rudá de
Andrade, Jean-Claude Bernardet, Paulo Emilio Salles Gomes e Maurice
Capovilla.
O filme nasce de uma ideia de Santos, em conversa com Hamilton
Almeida Filho, de filmar o medo urbano na forma de uma revista audiovisual
que contivesse algo de crônica, de editorial, de quadrinhos, de manchete. O
caráter de "revista" foi uma das definições do filme: uma justaposição ou
composição, na montagem, de partes desiguais, com diferentes padrões
estéticos, à maneira dos modernos meios de comunicação. Segue uma linha
de expressão fragmentária e inquieta, como se de um mosaico se fizesse a
figura do painel de época. O que nos mostra o painel? Em primeiro lugar, sob
a liderança de Roberto Santos e com o apoio de seus colegas e amigos da
Lynxfilm, nos mostra a realização cinematográfica que se infundiu da tarefa
de resistir contra a anomia e a falta de ânimo através do uso de grande
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variedade de técnicas, formas de narrar, expor e contar. Também nos mostra
a cidade e suas figuras, a juventude que a compõe, esta oscilando entre a
violência simbólica, encenada, sociabilizada ou sem sentido. Este painel se
caracteriza por já evidenciar um movimento de modernização nos hábitos de
consumo, por demonstrar o papel da juventude na sociabilidade deste novo
contexto de capitalismo industrial (NOVAIS e MELO, 1998).
Filme sem par na história do cinema brasileiro, painel de seu tempo,
espelho da fossa e da desesperança, mas também do impulso de formulação
de novas criações. Neste ponto, seguindo a linha de condução de um
diagnóstico do "sufoco", da "pasmaceira" e da "anárquica rebeldia", o que o
identificaria com o Cinema Marginal, como observou Olga Futemma em sua
estudo pioneiro sobre o cineasta, publicado com o apoio material da Divisão
de Pesquisa do Centro Cultural São Paulo (FUTEMMA, 1982).
Vozes do mêdo é composto de partes díspares em suas propostas,
cada qual dotada de uma unidade própria ou de um estatuto de passagem
dentro doordenamento geral. Houve o intuito de articulação do todo, ainda
que a busca de uma concatenação tenha sido afetada pela censura. Segundo
Inimá Simões (1999, p.158-159), a película foi motivo de desconforto para os
primeiros censores que a examinaram. Eles declararam-se incapacitados
para julgar o material e o enviaram diretamente para o ministro da justiça
Alfredo Buzaid11. Interditado em 1970, só foi liberado para exibição pública
dois anos depois, com cortes integrais de dois episódios - Piá não sofre? Sofre,
de Roberto Santos e A Santa Ceia, de Aloysio Raulino - além de algumas
outras intervenções pontuais. Coordenador do material, cineasta experiente
em confronto com a censura e a burrice, Roberto Santos lamentou a
castração do filme, objetando que este ficara aleijado, sem as partes que
seriam a "cabeça" e os "pés" - os episódios dirigido por ele e por Aloysio
11Um dos episódios que seriam cortados é Santa Ceia, dirigido por Aloysio Raulino. Segundo conversa
com Inimá Simões, Raulino considera que a "birra" do ministro Buzaid com o episódio dizia respeito a
uma prevenção contra o longa-metragem, mas, além disso, com uma suposta "coincidência" nos diálogos
do curta, que teria levado o ministro a pensar que a briga do jantar retratada pelo curta teria sido escrita
a partir de uma escuta em sua casa. (Cf. SIMÕES, 1999, p. 159).
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Raulino, respectivamente. O episódio de burrice e incapacidade dos censores
quebrou o plano de lançamento do filme, que ficou retido desde 1971, não
tendo sido enviado para sessão especial no Festival de Cannes, pela indicação
que havia angariado de Ricardo Cravo Albin. Só seria liberado para estreia
de uma semana no Rio de Janeiro em 1972, tendo sido visto de fato apenas
em 1974, quando ficou em cartaz com surpreendente sucesso, durante quatro
semanas, no Cine Marachá, no trabalho pioneiro de programação do cinema
da Rua Augusta, em São Paulo, por Alvaro Moya. Somente a partir deste
reconhecimento e da campanha pelo filme por nomes da crítica como Paulo
Emilio Salles Gomes (1973) e Bernardet (1974) que o filme receberá
tardiamente o prêmio Governador do Estado de São Paulo de 1975
(SIMÕES, 1997, p.144-145).
2. O filme depois da censura
Decepado, sem poder andar ou pensar, o filme se regenera, a
despeito do legítimo protesto de Roberto Santos. De qualquer forma, o
material será exibido e terá um sentido. Se a "cabeça" era o primeiro trecho
com narrativa mais delimitada em termos de definição de personagem e
ações, ela se tornará o episódio Retrato do jovem brigador, uma imprevista
ironia que remete ao próprio gesto violento do corte imposto. É o terceiro
elo do encadeamento, após o prólogo e exposição do mote da "cabra-cega"
dos jovens em A Feira do medo, após o rápido documentário de observação
da primeira juventude nas ruas e espaços públicos (Caminhos), após a
sugestão do problema que será permanente, da acumulação, do consumo e
da mercadoria na "antepeça" Pecúnia. Perde-se o caráter de evolução que
seguia a exposição: infância (Piá não sofre? Sofre) - adolescência (Caminhos)
- juventude (Retrato do jovem brigador).
O primeiro trecho com narrativa mais delimitada em termos de
definição de personagem e ações passa a ser Retrato do jovem brigador, de
Roberto Santos O curta elabora o gestual violento e patético do jovem rapaz
sempre em busca de uma boa briga, batendo, apanhando, disposto sobretudo
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a irradiar a violência. Constrói uma historieta articulada para o espectador
através de cenas com imagem em movimento e outras construídas através de
imagens fotográficas montadas. Assim sendo, Retrato do jovem brigador
funciona dentro de uma lógica de interrupções na qual o protagonista acaba
levando a pior, recebendo de volta a violência que o seu machismo distribui.
Utiliza-se das cartelas segmentando partes e intitulando-as através da
montagem de imagens estáticas, fotonovela e cena.
Antes, porém, de tratar do curta focalizado, vejamos o que se
apresenta no filme: cor, preto e branco, letreiros, letras reproduzidas na cena,
pose, narração realista, documentário, som direto, som de estúdio, voz
comentando, voz cantada em cena, voz apresentando a cena, voz fora da,
fotografia, ruídos, erupção de percussões, rock-'n'-roll, fotonovela, silêncio,
imagem em movimento cena etc. Uma gama bastante extensa de recursos
com claros fins de entrelaçamento de diferentes formas de representação.
As primeiras imagens e sons com os letreiros de realização, já
comentadas, trazem movimentados passeios da câmera dentro de uma casa
abandonada, ao som da locução de "Congresso Internacional do medo" como
lastro de uma experiência que adota o tom declaratório. O exame de detalhes
escuros da tapera fecha o círculo e emoldura o filme com as fotografias do
final do filme, mostrando jovens. As imagens são apresentadas com trechos
do poema "O medo", do mesmo autor. A diferença é que a extração de versos
muda a poesia, além de trazer uma ligação com a parte final (A Pantomima
das três forças), já que a locução se inicia ainda com as imagens de uma jovem
prostrando-se ao chão,após a fuga do confronto com a "força moral", a "força
divina" e a "força humana", que caracterizam esta derradeira simbolização.
Ao contrário dos trechos de simples identificação de personagens e
seus gestos, de caráter realista ou documental, o recurso aqui utilizado - mas
também no início (A Feira do medo) e mais significativamente em O Jogo de
ludo e Loucura -, é a impostação com figuras de caráter simbólico, genérico.
Não são personagens, são modos de ser e de agir que estão sendo
representados. Linhas de força dentro de quadros emoldurados a partir da
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exaltação inicial, da grita dos rapazes e moças em dúvida com relação ao
futuro, em A Feira do medo.
Haveria, então, o choque entre duas formas mais nítidas. Num
primeiro plano, generalizante, temos frações nas quais a pantomima é
explicitada, o discurso emerge e, algumas vezes, uma voz quer conduzir a
significação - A Feira do medo, Pecúnia, O Jogo de ludo, As bonecas,
Pantomima das três forças. Um exemplo bastante claro, em O Jogo de ludo, é
a transformação do Largo da Memória em palco-tabuleiro que explicita um
mecanismo social de ascensão dentro de um modelo hierárquico. Outros
momentos do filme têm um caráter narrativo, com uma historieta sendo
articulada para o espectador - Retrato do jovem brigador, Aborto, O mundo é
cor de rosa, The Super woman, Aquele dia 1012. Alguns segmentos, contudo,
constituem exceções. Caminhos e Produto atuam entre o documentário, no
primeiro caso, e a pose documentada, no segundo. Em Produto, o estúdioambiente para fotos e a exposição do corpo feminino servem de recorte para
uma crítica à utilização da imagem da mulher como forma-mercadoria e
gancho para a atração ao consumo. Já Slogan para vencedores e Pecúnia se
apresentam quase como "cortina" ou preâmbulo, se pudermos falar de uma
categorização dos segmentos. São intervalos colocados como suspensão ou
ligação. Slogan para vencedores é o intervalo mais conceitual e de curtíssima
duração, expondo fotomontagens sob letreiros com designações de sucesso:
"o artilheiro do século", "o vendedor do ano", "o bem de saúde", etc.
O caso de Pecúnia é especial, porque o entrecho passou a ter nova
função na medida em que houve o corte de partes pela censura: o preâmbulo
ou "intervalo" conceitual que analisaremos mais adiante está disposto logo
antes de
Retrato do jovem brigador e explicita a lógica evolutiva e causal, de criança a
adulto rico, que envolve a relação com o dinheiro, com a propriedade, com a
posse. Em outros termos, o trecho é importante porque demonstra
12Esta questão da "polarização" do filme nos seus curtas como "maneira de ver" o material foi identificada
e proposta com a conhecida sagacidade por Jean-Claude Bernardet (1974), na sua excelente crítica
publicada em Opinião. Para outra interessante crítica do segundo lançamento, ver Ramos (1974).
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nuclearmente, dentro do seu intervalo de duração, a metáfora evolutiva do
desenvolvimento e um motivo reiterado no longa-metragem.
Voltaremos ainda ao entrecho antes de seguirmos para a abordagem
do objeto principal deste escrito, o curta tornado central dentro do projeto e
articulação expressiva do filme após a censura.
Entretanto, outros momentos expõem o discurso dentro da
narração, impondo às histórias interrupções análogas à freada de um carro,
como no atropelamento de Aborto. Neste, a sucessão vertiginosa das festas
do rapaz de alta classe, embaladas pela música dos Rolling Stones, é
abruptamente represada pela morte de um homem atropelado. O defunto é
recolhido ao carro, não tem lugar na casa da família ("O morto é seu
queridinho, livre-se dele!", diz a mãe), quase é jogado de uma ribanceira, é
levado para novos momentos de diversão, um defunto entre os amigos do
jovem, e acaba sendo estendido na rua para novo atropelamento, em três
versões. Humor negro, refluxo satírico e absurdo para uma situação nada
crível. Da mesma forma, a imagem em movimento do passeio do jovem
poeta de O mundo é cor de rosa, ao lado de sua amada, é intercalada com
fotografias e até mesmo uma rápida fotonovela. Mesmo Retrato do jovem
brigador funciona dentro desta lógica de interrupções, com a utilização de
recursos que envolvem a imagem estática e a sua dinamização pela
montagem.
3. Retrato do jovem brigador: um realismo feroz?
A "nova narrativa" na passagem entre os anos 1960 e o correr dos
anos 1970 define, segundo Antonio Candido (2006), uma série de obras da
literatura brasileira que criam vertentes que poderiam ser chamadas de
realistas. Darcy Ribeiro narrativiza e incorpora o próprio trabalho à fatura
do livro Quarup, numa tendência mais integradora do trabalho pessoal com
a imaginação. Pedro Nava estabelece seu memorialismo de poderoso alcance
com Baú de Ossos. Paulo Emilio Salles Gomes se utiliza da novela curta e da
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ironia para examinar a sua classe e o seu grupo social paulistano de face
decrépita (Três mulheres de três
PPPs).
Dentre estas expressões narrativas realistas se encontra uma estreia
importante, do ex-crítico de cinema, o jornalista Ignácio de Loyola Brandão,
cujo romance Zero, publicado em 1971, foi apreciado por Candido como
"realismo feroz", próximo do "ultra realismo" de Rubem Fonseca e de João
Antonio (CANDIDO, 2006, p.255). Brandão já publicara o livro de contos
Dentes ao sol (1965) que trazia a expressão desta crueza no exame de
personagens num dos contos que assina, Retrato do jovem brigador. A
história foi a base declarada já no começo do curta de mesmo nome que
compõe o filme coordenado por Roberto Santos e é dirigido pelo próprio.
Este pedira a Brandão não somente autorização para adaptar o conto, como
também apoio para acompanhar a fatura de uma moderna revista. Loyola
dirigia "Claudia", da Editora Abril, e foi na linha da sua produção editorial
que Roberto Santos estagiou com o objetivo de apreender o processo de
feitura, desde a pauta até a finalização, de um moderno meio de comunicação
(SIMÕES, 1999, p.132).
É com base nesta construção examinada na realidade de uma revista
que Santos vai buscar a origem para o seu jogo de articulação de trechos,
"anúncios" e intervalos. Neste sentido, destaquemos que o filme promove
passagens as mais variadas, mas todas buscando uma concatenação
"orgânica", evidentemente perdida nos momentos em que simplesmente
houve corte da censura, outras vezes dificultosa em função da própria
variedade dos segmentos. Ainda assim podemos identificar algumas destas
passagens antes de analisar o curta propriamente dito, uma vez que este
esquema de trechos articulados traduz uma regra geral do filme e demarca
coincidências temáticas de partes do material.
Há transições armadas em flagrante continuidade e outras em
descontinuidade total. Um exemplo do caso de haver corte e mudança de
registro é o da abertura do filme transicionando para o primeiro "episódio",
quando o preto e branco da interna da tapera, já descrita, passa para o
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colorido com horizonte do Morro do Piolho (Cambuci) em A Feira do medo.
O que se acentua é a justaposição, o que ocorre em vários momentos.
Entretanto, na maior parte dos casos procura-se demarcar um "território
fronteiriço" entre os segmentos. Um ótimo exemplo é justamente da
passagem entre A Feira do medo e Piá não sofre? Sofre!, a qual restou mesmo
com o corte que vem a seguir, pela censura. O final de A Feira do medo
mostra o horizonte da cidade de São Paulo. A seguir, outro horizonte, em
preto e branco, é o primeiro plano do trecho. Já a passagem para Caminhos
era evidente, uma vez que o infante que teve a sua narrativa cortada se projeta
no episódio seguinte também em preto e branco e a partir do mesmo
problema do trabalho infantil e adolescente.
A passagem entre Caminhos e Retrato do jovem brigador impõe um
intervalo após a "chamada" do que virá. Ao final do primeiro, trechos de uma
cena de briga do segundo aparecem com uma voz que diz "Retrato do jovem
brigador, daqui a instantes". Já se escuta a sonoridade percussiva que marcará
as brigas do trecho vindouro. Antes, porém, Pecúnia perfaz um intervalo e
brinca com o senso comum pós-freudiano da origem do desejo pela formadinheiro e parece tratar algo do impulso do jovem brigador. Pecúnia adapta
jocosamente uma voz explicativa cantada a partir de ária de Mozart. Vemos
imagens de um homem a contar dinheiro em uma mesa, claramente situado
em um estúdio. Ele será comparado com uma criança e seu penico cheio, no
qual o pequeno mexe, esvaziando-o e manipulando o seu conteúdo. O
cantante, em determinado momento, fala com jovens que o escutam no
mesmo estúdio, mas também dirige-se diretamente ao espectador, e continua
a sua explicação comparando o sentar do rico homem que conta o seu
dinheiro com o sentar de fotografias com trabalhadores. Depois, o menino
no penico com fezes evolui para outro menor, um pouco mais velho, que
conta pedras, e outro que coleciona figurinhas, e ainda outro com selos, até
chegar de volta ao homem rico e à criança com o penico.Esta é o entrecho
que antecede Retrato do jovem brigador.
Mas o que narra o curta? A história promove um exame de situações
repetitivas de briga do jovem que trabalha no jornal Folha de S. Paulo. Ele
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mora só, tem como amigo outro brigador, não tão jovem, de nome Carlucho,
e vai se engraçar com uma moça inglesa que é paquera de seu amigo. Os
motes do ciúme e da autodestruição são os motores da narrativa que não se
dedica a mostrar cenas inteiras, mas fragmentos de momentos, flagrantes do
jovem que, via de regra, está a brigar.
Os trechos do curta são apresentados em cenas de movimento
cinematográfico natural, outras pela apresentação com clichês montados, e
ainda com clichês em formato de fotonovela, com os seus balões de diálogo.
Esta variedade é apontada também através de letreiros que nomeiam ou
numeram as cenas, numa estratégia de interrupções que separam sequências:
"1a foto: flagrante": cena inicial após uma panorâmica em 360° com
lente grande angular que mostra o ambiente urbano. Vemos o rapaz
na tentativa de pedir um táxi na rua. Sua namorada o aguarda e outro
jovem a paquera na calçada. Ao perceber, o rapaz começa uma briga
na qual se dá bem e ainda vai embora sem a namorada, que parece
horrorizada com a violência dos golpes que este dá na cabeça do
desavisado, repetitivamente contra um carro;
"2a foto: pôse retocada": O jovem e seu amigo Carlucho trocam socos
e treinam boxe enquanto conversam sobre vida e independência. O
trecho é interrompido por música e outra cartela;
"Em ritmo de fotonovela": sequência que começa com os amigos num
bar paquerando a mesa ao lado, cena mostrada num formato de uma
fotonovela. A sequência desenvolve-se para outra cena, em
continuidade temporal, de ambos na rua com as moças que
paqueraram. São grosseiros com as moças ("Passa a gordinha para
cá!") e acabam abandonados com a súbita saída de carro pelas
meninas. Uma elipse de tempo: já é dia e o mesmo carro com as
mesmas moças conversando com outros rapazes. Elas apontam o
brigador na rua e dizem para os amigos que ele tentara um "sarro" com
elas. Inicia-se a briga na rua, demarcada pela percussão que a
caracteriza. A ação se torna movimentada e com gritos do rapaz
durante a briga, mudando a forma de exposição. Ele apanha muito
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num terreno baldio, em meio a ruínas. Há a ênfase de mais planos com
lente grande angular que projetam a ação numa amplitude que inclui
o cenário, o horizonte e o céu. O rapaz apanha e vai a nocaute ao som
de um rock;
"Clichê": Numa das cenas mais interessantes do curta, o brigador
encara um colega de trabalho de jornal na área onde estão as
impressoras rotativas. É uma dinâmica que claramente remete ao
cotidiano de uma briga por aposta, entre rapaz e o "velho", modo como
o rapaz chama o colega. Vitória do brigador, que orgulhosamente posa
com os pés sobre o peito do perdedor para a pequena plateia
interessada. Curiosamente, o trecho tem movimento normal de uma
cena realista, sem os arranques de clichês;
"Retrato falado": sequência que começa no banheiro do jornal, ainda
com o registro anterior, em continuidade com o trecho antecedente:
mostra o rapaz e o
"velho" limpando o sangue do rosto. Em seguida, muda-se o registro e
há a sobreposição com imagens de uma derrota do rapaz, num
passado, para um boxeador negro, fotografias que aparecem enquanto
ele comenta: "negro é que é bom para estas coisas" e "um negro é que
me quebrou...". Algumas fotos a seguir e já vemos outra cena, na casa
de Carlucho, bêbado, e do jovem no ímpeto de paquerar a moça
estrangeira. Os dois acabam juntos após o brigador ensaiar a
brincadeira de troca de socos com a menina. A cena é marcada pelos
clichês da "vitória" do rapaz. A cena seguinte, após uma elipse, mostra
diálogo com Carlucho, que visita o rapaz no jornal, leva uns caras e
ameaça o brigador. O rapaz não se intimida e ainda retribui a ameaça
ao amigo;
"Instantâneo": briga em continuidade com a cena anterior, já na rua e
mostrada com fotografias montadas, seguida de outra cena na qual o
rapaz quebra o seu quarto com uma corrente;
"Identidade": começa com trecho curtíssimo que mostra três
fotografias de identificação do rapaz enquanto ouvimos a sua voz: "Eu
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era assim. Cheguei a ficar assim. Hoje sou assim." Segue cena do rapaz
com outro amigo no carro. Ele tem nas mãos fotos da paquera de
Carlucho. O outro amigo o provoca: "Gamou, hein?". Nova situação
de briga, pois o amigo, que dirigia o carro, provoca rapazes em outro
carro. O brigador é covarde e não sai para altercação. O amigo apanha
só. Seguem fotografias da moça estrangeira. Cena final do rapaz
chegando na frente da casa de Carlucho. Tem em mãos as fotografias
da moça. Toca a campainha e é ironizado, de dentro da casa, por
Carlucho e pela menina. Chama por ela. Inconformado, retira uma
corrente que servia de cinto e começa a quebrar o carro do amigo e a
investir contra outros carros que passam à noite no local.
Assim, é com um impulso destrutivo e com um gestual grotesco que
se encerra o curta Retrato do jovem brigador. A sonoridade de uma música
de rock marca o final do curta e é mixada com Sympathy for the devil, dos
Rolling Stones, música que marca bos parte do trecho seguinte, Aborto. Este
é visto, então, na sequência e em concatenação com a narrativa sobre o rapaz
brigador, seguindo a mesma rítmica.
4. À Guisa de uma finalização
"Era uma vez um jovem ou uma jovem que não sabiam o que fazer
do medo. Ou de sua coragem. Enquanto isso se enganavam. E apenas
envelheciam. Era uma vez...". Estas são as últimas palavras de Vozes do mêdo.
Finalização excêntrica, como o próprio filme, que não desenvolve uma
narrativa única, mas o encadeamento de segmentos ao estilo de um
"magazine moderno", "original", portador de "vários tons", como foi
identificado na época do seu lançamento13. O pano de fundo comum aos
segmentos é a cidade de São Paulo, ora uma linha no horizonte, ora o
movimento dos carros e das ruas, visitada em lugares conhecidos - Estação
13Conferir reportagens n'O Estado de S. Paulo, de 19 de maio de 1974, no Jornal da Tarde de 08 de
junho de 1974, e em Opinião, São Paulo, 08 de julho de 1974.
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da Luz, Largo da Memória - e até mesmo pontualmente ausente no entrecho
As Bonecas.
Afinal, seria impossível deter-se, num texto de tão curta medida,
sobre tantos detalhes e articulações expressivas. Retomemos apenas o início
muito marcante de A Feira do medo. Do Morro do Piolho, no Cambuci,
vemos os prédios e construções de um horizonte preenchido - o próprio
morro ainda não. "Analphaville! Analphaville!", ouvimos, na voz e violão de
Sérgio Ricardo. Um jovem, com asas azuis, entra no centro do quadro, vindo
de baixo, galgando a ribanceira. Vira-se para o seu e também nosso horizonte
e fica de costas para o nosso olhar. "Há que acreditar, há que acreditar, no rio
que corre... No rio que corre pro mar". A grande cidade é percorrida numa
panorâmica para a direita. Outra voz apregoa: "Atenção, atenção! Bemvindos à feira do medo!". No pequeno vale do topo do morro, vários jovens
vendados tateiam em várias direções. O filme reflete aí, parte pelo todo,
canção e cena, a sua exasperação em fazer perguntas e atirar ao oceano
mensagens dentro de uma garrafa. O líder vidreiro, bastante sensível ao
momento, era Roberto Santos.
A proposta deste escrito foi apresentar alguns dos eixos de
problematização do filme Vozes do mêdo, com ênfase na mudança ocorrida
na apresentação geral do filme após a censura imposta. O trecho Retrato do
jovem brigador veio ao primeiro plano do mosaico que compõe o painel e
torna-se crucial para a compreensão da estrutura geral. A sua forma realista
com inspiração da "nova narrativa" de Ignácio de Loyola Brandão se
caracteriza pela construção rigorosa de situações de vida do jovem
trabalhador do jornal Folha de S. Paulo, cujo ímpeto e desejo de diversão o
levam sempre para a briga, em situações retratadas com crueza e de modo
narrativamente acelerado.
O curta, contudo, traz uma montagem que joga com arranques da
ação em fragmentos de situações vividas nas quais vemos o jovem reagir com
atitudes violentas entre o extremo da anomia e da ritualização da brincadeira
agressiva. O machismo e o preconceito contra negros aparecem dentro do
conteúdo narrado, mas o destaque do material está nas cenas em que o jovem
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brigador apanha, é covarde ou distribui golpes a esmo como canalização
contra a frustração. Neste caso, percebemos a conexão entre a sua fantasia
com a namorada estrangeira de seu amigo e a incapacidade de manter laços
fora do seu sistema violento.
Socar, para o rapaz brigador, praticamente significa conversar,
dialogar, brincar, competir, paquerar. Pontua-se a gestualidade do homem
agressivo, portando a sua corrente com a qual destrói seu quarto ou o carro
do amigo. O carro, as fotos da garota desejada, as correntes, a briga entre as
rotativas do jornal, a briga na rua, a sonoridade percussiva, em todos estes
aspectos o curta é coerente com o filme Vozes do mêdo na medida em que
apresenta elementos do da juventude ao lado do viés de desacerto do rapaz
brigador com o mundo, sem projetos e rendido ao consumo e ao
egocentrismo.
Referências:
BERNARDET, Jean-Claude. Trajetória crítica. São Paulo : Polis, 1978.
BERNARDET, Jean-Claude. (sob o pseudônimo de Carlos Murao). "Os Vários tons de 'Vozes
do mêdo'". Opinião. São Paulo, 17 jun. 1974.
CANDIDO, Antonio. "A Nova narrativa". in.: A Educação pela noite. 5a ed. Rio de Janeiro:
Ouro sobre azul, 2006. p. 241-460.
FUTEMMA, Olga Toshiko. Roberto Santos : vinte e três anos após O grande momento, Os
amantes da chuva. São Paulo: Centro Cultural São Paulo. Divisão de Pesquisa, 1982.
GOMES, P. E. Salles. O Medo das vozes. Cinema, n.1, out. 1973.
NAVES, Sylvia Bahiense. Luzes Câmera : transcrição da entrevista com a equipe de Vozes
do Medo para o programa da TV Cultura, 1976-1977. São Paulo : Cinemateca Brasileira,
198?.
NOVAIS, Fernando e MELLO, João Manuel Cardoso de. "Capitalismo tardio e sociabilidade
moderna". In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil (v.4):
contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das letras, 1998.
RAMOS, Luciano. "Nossa juventude, em editorial, conto, comercial e até fotonovela". Jornal
da Tarde. São Paulo, 25 maio 1974.
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SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA. O Filme Curto. Pesquisa coordenada por
Carlos Roberto de Souza. São Paulo, 1980.
SESC. Geração 68. Cinema paulista de 68 a 79. Textos de Sérgio Bianchi e Denise Banho. São
Paulo, 1979.
SIMÕES, Inimá. Roberto Santos: a hora e vez de um cineasta. São Paulo : Estação Liberdade,
1997.
SIMÕES, Inimá. Roteiro da intolerância : a censura cinematográfica no Brasil. São
Paulo : Senac, 1999.
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A mobilização da imprensa após a censura de
Rio, 40 Graus
Leonice Elias da Silva - PUC-SP
Introdução
Consideramos Rio, 40 Graus como uma produção artística que
provocou uma agitação no cenário cultural do Brasil em meados da década
de 1950, sendo que essa agitação teve desdobramentos na conjuntura política
da época. Como afirma Renato Ortiz (1994), não há como pensar a esfera
cultural no Brasil desarticulada do Estado. A censura que proibiu a exibição
do filme ocasionou uma mobilização que contribuiu com o prestígio
adquirido pela obra:
Entre as justificativas dadas pelo coronel Geraldo de Menezes Côrtes
sobre o que o motivou a proibir a exibição do filme no país, em 23 de
setembro de 1955, está a sua convicção de que o filme era uma obra de
“elementos comunistas” e que era semelhante aos filmes tchecos que havia
apreendido outrora. Nas entrevistas concedidas ressalta o teor comunista
presente no filme; o jornal o Diário da Noite, em 30 de outubro de 1955,
reproduz no subtítulo da matéria a declaração do coronel “Técnica
essencialmente comunista” ao se referir ao filme. Declaração semelhante é
feita ao Cruzeiro, em 22 de outubro de 1955, na qual, segundo Côrtes, “o
neorrealismo denota sua origem comunista” (GUBERNIKOFF, 1985, p.83).
Para o Diário Carioca, em 30 de setembro de 1955, o coronel afirma
o quanto o filme reproduzia uma imagem negativa do Brasil:
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Sou Chefe de Polícia, e pelo regulamento do DFSP, tenho autoridade para
proibir a exibição do filme Rio, 40 Graus, que tem como fim a
desagregação do país […]. O filme só apresenta os aspectos negativos da
capital brasileira, e foi feito com tal habilidade que serve aos interesses
políticos do extinto PCB (SALEM, 1996, p. 115)
De acordo com o que será possível perceber, a censura do filme não
desencadeará uma discussão que passa a questionar a instituição censura de
forma mais ampla; são poucos os textos que chamam a atenção para o
problema da instituição censura no país. O artigo “Insustentável a proibição
de Rio, 40º”, publicado na Farpa, em outubro de 1955, destaca como o ato do
coronel “representa, sem dúvida, a tentativa repetida de violar a liberdade
artística, garantida pela nossa constituição”, possibilitando “ao governo
prosseguir em sua luta política, voltada contra a cultura e tudo o mais que
represente liberdade” (GUBERNIKOFF, 1985, p. 54).
A censura de Rio, 40 Graus na maior parte dos textos é discutida de
forma isolada, sem traçar paralelos com outras obras artísticas que
enfrentaram o mesmo problema. Uma explicação possível para tal postura
da imprensa é o fato de antes nunca ter ocorrido uma mobilização com a
mesma projeção da campanha em prol da liberação do filme. Os argumentos
dados pelo coronel Côrtes para censurar o filme são refutados; todavia, não
são levantadas hipóteses do porquê de o Chefe de Polícia ter-se posicionado
contra o filme.
O coronel reproduz um discurso anticomunismo, o qual tomou
força dentro do pensamento militar no Brasil a partir da Intentona
Comunista de 1935 (SOARES, 1994, p. 25). Ela é um emblema para a
constituição de uma memória anticomunismo no país. No contexto da
Guerra Fria é nítida a polarização ideológica, época na qual o discurso
anticomunista assume projeções significativas. No governo de João Goulart
notamos na oposição a expressão desse discurso.
Contudo, uma oposição à esquerda não se restringiu apenas ao
campo discursivo, ela era institucionalizada; um exemplo disso são os anos
que o Partido Comunista viveu na ilegalidade. A redemocratização após o
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Estado Novo possibilitou que o partido ficasse pouco tempo na legalidade;
em maio de 1947, por meio de uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral, o
registro do partido foi cassado.
Marcelo Ridenti (2010, p. 56-57) afirma que a organização
comunista teve uma atuação de grande relevância nas lutas artísticas e
intelectuais na década de 1950. Dentro da organização foram produzidas
obras significativas que correspondem a um “expressivo elemento
constituinte da cultura brasileira”. Essa cultura não deve ser pensada sem
levar em consideração as ações e ideias dos comunistas e demais correntes de
esquerda do período que corresponde às décadas de 1930 a de 1980, e,
principalmente, a de 1950.
O jornalista Pompeu de Sousa liderou uma campanha no país pela
liberação do filme que, para Helena Salem (1996, p. 117), correspondeu
talvez a um dos mais amplos e importantes movimentos da intelectualidade
brasileira. Outra figura que teve uma atuação importante na defesa de Rio,
40 Graus foi o escritor Jorge Amado, o qual publicou no dia 27 de setembro
o artigo intitulado “O caso de Rio, 40 Graus”.14
Conforme mencionado anteriormente, a censura do filme Rio, 40
Graus provocou uma ampla discussão entre os intelectuais da época; a
grande maioria reivindicou o direito de exibição do filme e condenou a
atitude arbitrária do coronel Geraldo Menezes Côrtes. Todavia, alguns textos
publicados nos jornais da época apoiaram a atitude do coronel; no conjunto
esses textos correspondem a uma quantidade mínima se comparados com os
outros que saíram em defesa do filme. Reproduzimos abaixo os argumentos
de dois desses textos, o primeiro publicado no jornal A notícia, em 5 de
outubro de 1955, com o título “Rio, 40o”:
14 Sobre e censura do filme, Nelson Pereira dos Santos afirma o seguinte: “A gente é capaz de pegar os
traços principais da coisa. Ela está dentro da tradição da censura brasileira. Quando o filme aparece com
favela, negros, passa a ameaçar o pensamento da elite que procura sempre esconder o que eles chamam o
lado negativo de nossa sociedade […]; está dentro do texto do Chefe de Polícia (Menezes Côrtes) da época:
‘O filme é proibido porque revela aspectos negativos de nossa sociedade’” (GUBERNIKOFF, 1985, p. 239240).
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A censura proibiu-o porque viu nele propósitos de desmoralização do
Brasil, com a focalização de aspectos que, embora reais, não oferecem
motivo de admiração pela nossa terra […]. Evidentemente, nenhum
interesse temos em que se mostrem fora daqui, como coisa digna de ser
vista, quadros degradantes da miséria, que não são privilégios do Brasil,
porque em toda parte eles existem. Parece que há intenção de atrair o
desprezo do mundo para nosso país, oferecendo como característico
nosso um espetáculo deprimente e aviltante. Esse Rio, 40º que alguns
dizem tecnicamente bem feito pode reproduzir com exatidão as cenas que
reuniu, mas não importa que esteja nessas condições. O que nos interessa
é que ele não leve para além das nossas fronteiras o que não é motivo de
orgulho ou de admiração. Sirva ou não a propagandas políticas, o que se
quer é que não constitua, como tudo indica, um pretexto para nossa
desmoralização (GUBERNIKOFF, 1985, p.62).
O Jornal do Brasil publicou a nota “Rio, 40º Graus”, no dia primeiro
de novembro de 1955, na qual defende a postura do coronel chamando-o de
“vigilante Chefe de polícia”. Afirma que os protestos contra a proibição do
filme “traduzem […] a simpatia de muita gente ‘boa’ pelo credo vermelho”
(GUBERNIKOFF, 1985, p. 90).
Adiante citamos a maioria dos jornais que publicou textos sobre a
censura do filme; todavia, não apresentamos nenhum “dado estatístico” a
respeito do número dessas publicações em cada um desses jornais. Uma
quantia significativa desses jornais desapareceu da imprensa brasileira, e o
mais lamentável disso é que muitos deles não tiveram seus acervos
conservados. No caso da cobertura sobre a censura do filme e seus
desdobramentos, notamos uma participação significativa de jornais de
pequeno porte. A imprensa surge com o capitalismo e acompanhou o seu
desenvolvimento (SODRÉ, 1999, p. X), e será esse mesmo capitalismo que
impossibilitará que os jornais de portes menores sobrevivam diante da
hegemonia dos meios de massa conglomerados de forma empresarial,
constituindo oligopólios (SODRÉ, 1999).
A revista Visão publicou, em 2 de setembro de 1955, uma matéria
intitulada “Novo diretor e nova fórmula”, na qual o filme de Nelson Pereira
dos Santos é apresentado de forma muito positiva e como uma alternativa de
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produção para o cinema brasileiro, ou seja, a forma independente pela qual
foi realizada o filme poderia inspirar novas fórmulas para solucionar o
problema do cinema nacional. “Artistas e técnicos em vez de salários
recebem cotas de participação nos lucros; o laboratório também é convidado
a fazer um investimento sob a forma de trabalho e, assim, o produtor tem o
orçamento reduzido à sua terça parte”. Tais características do modo de
produção de Rio, 40 Graus foram consideradas como um novo estilo no que
diz respeito à realização de cinema no Brasil. Dessa forma, destinou-se a
Nelson Pereira o intuito de “iniciar igualmente um novo estilo de cinema no
Brasil: o semidocumentário realista. Ele tirou uma norma de produção: fazer
da rua um estúdio, aproveitar a experiência italiana”.15
O texto também ressalta que esse trabalho era a estreia de Nelson
Pereira como realizador, e que o mesmo havia herdado “a preocupação pelo
cotidiano” já esboçada anteriormente na produção de Alex Viany, Agulha no
Palheiro (1953), no qual o jovem cineasta atuou como assistente de
produção. Essa publicação antecede o lançamento do filme, que a princípio
estava previsto para o dia 3 de outubro de 1955, em Porto Alegre.
O filme Rio, 40 Graus, em meados de 1955, obteve o certificado de
censura, concedido pelo Departamento de Censura e Diversões Públicas, o
qual determinou que o filme seria impróprio para menores de 10 anos de
idade, e não apresentou empecilhos para distribuição e exibição do filme nas
salas de cinema. No entanto, em setembro de 1955, o então chefe de Polícia,
coronel Geraldo Menezes Côrtes, cassou esse certificado, resultando na
proibição da exibição do filme. Entre as justificativas para tal ação, estava o
fato de o filme apresentar “delinquentes, viciosos e marginais, cuja conduta
é até certo ponto enaltecida”; além disso, para o coronel o filme utiliza
“expressões impróprias à boa educação do povo e à consideração devida aos
nacionais de país amigo”, colaborando para uma desmoralização das
15 “Novo diretor e nova fórmula”. Visão, v. 7, n. 5, 2 de setembro de 1955, p. 34 (apud GUBERNIKOFF,
1985, p. 36).
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instituições nacionais, e “as histórias não possuem qualquer conclusão de
ordem moral”.16
A ação do coronel desencadeou uma ampla cobertura na imprensa
nacional, na qual os jornais Tribuna da Imprensa, Última Hora, O Estado de
São Paulo, Correio da Manhã, O Dia, Diário Carioca, Diário de Notícias,
Gazeta de Notícias, O Jornal, Jornal do Brasil, Correio Radical, Imprensa
Popular, O Mundo, A Noite, Diário da Noite, Mundo Ilustrado, Shopping
News, Diário de São Paulo, Folha da Manhã, O Globo, Notícias de Hoje, Folha
de São Paulo, Correio da Manhã, O Cruzeiro, O Correio da Tarde, O Poti,
Diário de Natal, A República, entre outros, repercutiram a censura do filme
e acompanharam os desdobramentos da mesma. Entre as revistas que
assumiram a mesma postura estão Manchete, Visão e Revista da Semana.
Um aspecto importante a respeito dessa cobertura que a imprensa
brasileira reservou ao primeiro longa-metragem de Nelson Pereira,
desencadeada pela censura outorgada pelo coronel Côrtes, é o fato de o filme
ter tido uma repercussão para além de um grupo de publicações
especializado em crítica cinematográfica. Cabe mencionar duas revistas de fã
que cumpriram um papel relevante na difusão de uma crítica
cinematográfica sobre o nosso cinema e na cobertura jornalística ao star
system: Cena Muda (1921-1955) e Cinelândia (1952-1967):
As duas publicações colocavam-se lado a lado dos leitores interessados no
cinema nacional. Legitimavam-se como incentivadoras de nossa
cinematografia, ao mesmo em que eram também veículos da geração do
star system hollywoodiano. Sob a égide de defender o cinema brasileiro,
justificavam sua relevância em fazer publicidade aos filmes, como se os
sucessos das fitas nacionais dependesse de seu auxílio. Ambas auxiliaram
no processo de identificação dos leitores com os atores brasileiros, através
da fabricação de estrelas e de fofocas. Através da ênfase e repetição dos
filmes e atores, buscavam estimular o interesse pelo cinema nacional
(ADAMATTI, 2008, p. 13).
16 “Rio, 40o proibido pela polícia”. Tribuna da Imprensa, 23 de setembro de 1955 (apud GUBERNIKOFF,
1985, p. 36).
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A defesa de uma cinematografia nacional está presente de forma
significativa nos textos publicados após a censura do filme; todavia,
conforme será mencionado adiante, muitos enfatizam a necessidade de o
cinema brasileiro passar por mudanças significativas. O filme de Nelson
Pereira dos Santos não apenas dará uma nova movimentação às discussões
em torno da valorização de uma produção de filmes nacionais, mas também
de filmes que dessem prioridade aos “temas nacionais”.
Guido Araújo, que integrou a equipe de realização de Rio, 40 Graus,
em um texto escrito para o Jornal da Jornada do estado da Bahia em setembro
de 2005, na época de comemorações dos 50 do filme, reproduz a mesma
leitura que a intelectualidade realizou na época da recepção do filme. Os
caracteres revolucionários e criativos dos cineastas são ressaltados, sua
câmera é adjetivada como sensível, a qual procura “fixar em seu quadro da
realidade poética, ainda que por vezes cruel da natureza humana do Brasil”
(ARAÚJO, 2005, p. 4).
Os aspectos tratados no filme ganham uma expressão nacional na
leitura de Guido Araújo, não se tratando apenas de conjunturas e dinâmicas
da cidade do Rio de Janeiro. Cabe mencionar que os textos publicados pela
imprensa paulista reforçavam que o filme era um retrato da realidade do Rio,
não lhe atribuindo essa expressão. No entanto, principalmente na imprensa
carioca consolida-se uma discussão em torno não apenas do “conteúdo
nacional” ao qual o filme propõe-se a mostrar, como também ele é adotado
como uma nova vertente para o cinema nacional, tido como um modelo de
filme brasileiro.
A campanha de liberação do filme assumiu projeções nacionais no
segundo semestre de 1955. Nelson Pereira dos Santos foi convidado a exibir
o filme em várias localidades do país. Na Bahia, por exemplo, o convite veio
da Assembleia Legislativa do Estado e Câmara dos Vereadores de Salvador.
As exibições ficaram sob a responsabilidade de Guido Araújo. A primeira
exibição do filme, em 12 de novembro de 1955, no estado do nordeste, foi
reservada aos artistas, intelectuais, autoridades civis e militares, no Cine Art,
na rua Ajuda, época em que o país passava por uma instabilidade política, a
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ponto de no dia 11 de novembro o general Lott pôr em prática o seu
contragolpe para garantir a posse de Juscelino Kubitschek. Em 13 de
novembro, o filme foi exibido pela segunda vez a pedido de Walter da Silveira
no Clube de Cinema da Bahia; no evento foi divulgado um documento que
foi assinado por personalidades dos meios artísticos e intelectuais da Bahia. 17
Em linhas gerais, ações pela liberação do filme buscaram como base
para a sua legitimação o campo da Justiça. Um exemplo ocorreu em São
Paulo: as assinaturas colhidas no MAM, segundo uma nota do Jornal da
Tarde, foram entregues ao ministro da Justiça.18 Os advogados Victor Nunes
Leal e Evandro Lins e Silva defenderam a liberação do filme na justiça sem
cobrar honorários:
Medidas jurídicas já foram tomadas por advogados cariocas no
sentido de liberar a película, ao mesmo tempo em que os círculos artísticos
do país se movimentam para desencadear uma onda de protestos contra a
medida. Em São Paulo já está organizada uma comissão que levará a efeito
vários movimentos, entre os quais um ato público que terá lugar na
Biblioteca Municipal e durante o qual falarão o professor Canuto Mendes de
Almeida, antigo crítico de cinema, e o deputado Menotti Dell Picchia. Um
livro contendo um protesto será aberto no Museu de Arte Moderna a fim de
que receba assinaturas de protesto por parte do público (JORNAL DA
TARDE, 10 de outubro de 1955).
O jornal O Estado de São Paulo, em 25 de setembro, comentou as
visitas realizadas pela equipe do filme aos mencionados jornais do Rio de
Janeiro. O filme é qualificado por esse jornal como “um trabalho realista”,
que mostra “o contraste entre a miséria e a ostentação”, não existindo razões
para a sua proibição, uma vez que ele não poderia ocasionar nenhum
prejuízo à sociedade.19
17 “Censura proíbe exibição de Rio, 40 Graus: Guido lembra campanha para liberar o filme”. Jornal da
Jornada, setembro de 2005.
18 Jornal da Tarde, 10 de outubro de 1955.
19 “Protesto contra a interdição de fita nacional”. O Estado de S. Paulo, 25 de setembro de 1955 (apud
GUBERNIKOFF, 1985, p. 39). No dia 24, o mesmo jornal, em “Exibição de película proibida pela polícia”,
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Nesse mesmo dia, o jornal Diário Carioca chamava a atenção para o
fato de o Chefe de Polícia ter revogado o parecer concedido ao filme, sem
sequer ter assistido ao filme; sendo assim, sem nenhuma referência e
propriedade o caracterizou como ofensivo. Dentre as justificativas dadas por
Côrtes, que o levaram a promover a censura, como já foi mencionado, está a
ofensa a uma nação amiga do Brasil. O coronel e Chefe de Polícia não
especificou nas entrevistas qual seria essa nação, entretanto, ficou subtendido
que seriam os Estados Unidos. Segundo o jornal, a Columbia Pictures, a
responsável pela distribuição do filme, não se sentiu ofendida com a presença
de duas personagens norte-americanas em Rio, 40 Graus.
Em uma matéria assinada por Décio Vieira Ottoni para a revista
Manchete, o principal alvo de suas críticas é o coronel Menezes Côrtes. Na
legenda Ottoni afirma que a proibição do filme não foi legal (sem suporte na
legislação). Também diz que Rio, 40 Graus é o melhor filme nacional, e que
ele provocou uma grande polêmica contra o coronel. Um dos subtítulos
desse mesmo texto é uma das afirmações de Côrtes: “Esta cidade eu não
reconheço!”.
Inicia o texto mencionando que no dia 23 de setembro o coronel
Côrtes proibiu a exibição em território nacional. O mesmo apresentou como
justificativa o fato de o enredo do filme agredir “nacionais de países amigos”
ou ser “usadas expressões impróprias à boa educação do povo” e
“apresentava tipos de delinquentes viciosos e marginais, cuja conduta, em
certo ponto, era até enaltecida”. Décio Vieira Ottoni fala que o coronel não
assistiu ao filme antes de censurá-lo, e quando o assistiu não conseguiu
comprovar as suas justificativas. O crítico afirma então que o Chefe de Polícia
tratou de descobrir, além de aspectos negativos, outros de ordem de
segurança nacional: “Posso afirmar aos senhores que, de fato, o filme serve
aos objetivos do extinto Partido Comunista do Brasil”. E demonstra ser a
noticia a proibição da exibição do filme. É interessante perceber que desde o primeiro momento a
repercussão da censura não esteve restrita ao contexto carioca.
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acusação cabal assim: “A prova dos nove é a seguinte: A ‘Imprensa Popular’
deu completa cobertura aos fatos, expandindo-se em conceitos diversos”.
O filme não contou com ajuda do Partido Comunista. Nelson Pereira
dos Santos, em entrevista concedida a mim em abril de 2014, relatou que foi
pedir ajuda financeira e institucional ao partido, a qual foi negada. O PC
tinha como posicionamento, segundo Nelson, que primeiro deveria ser
realizada a revolução para depois pensar em investir no campo do cinema.
Certamente, a mobilização causada pela censura do filme foi abraçada pelo
jornal do partido, a Imprensa Popular.
O crítico apresenta uma provocação ao coronel, indagando se os
veículos da imprensa que condenam sua atitude serão designados como
“comunistas”. Ottoni apresenta tal postura em seu texto para refutar a
afirmação do coronel Menezes Côrtes de que “90% dos que tem se
manifestado a favor da película (o termo película é de mau gosto) são
comunistas”. Ottoni continua o questionamento:
Então são comunistas o jornalista Pompeu de Souza, chefe de
redação do “Diário Carioca”, o advogado Sobral Pinto, ambos católicos, o
teatrólogo Joracy Camargo, os escritores Raymundo Magalhães Junior e
Anibal Machado e o autor dessa seção, para citar alguns dos poucos que
tiveram oportunidade de ver o filme.
Afirma que, quando o coronel faz as críticas, a coisa se torna risível;
ele transcreve um trecho da afirmação do coronel: “Os quadros (do filme),
sem sequência, são todos passados num domingo, porém a fita não explica
isso, dando a impressão de que no Rio não se trabalha”. Décio retruca:
Então o coronel não percebe que a cara de feriado do dia em que se
passa a ação da fita é uma conhecida feição internacional, com as grandes
partidas do jogo nacional de cada país, as praias (cheias), os militares de folga,
os pontos turísticos lotados, as fitas prolongadas? E quem duvida que, no Rio,
pouco houve algum trabalho para sustentar a atividade de uma cidade
exaustivamente mostrada na sua grandeza por sucessivas “tomadas”
panorâmicas”.
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Considera uma bobagem a crítica de que os quadros do filme não
têm sequência:
O que há de mais perfeito em Rio, 40 Graus é precisamente a
exposição coordenada e orgânica do seu tempo principal – a crônica do Rio
de Janeiro num domingo de verão através de episódios em que se alternam
cenas cuja narrativa eventualmente interrompida, é retomada sem quebra do
ritmo narrativo das histórias. O forte do Chefe de Polícia, efetivamente, não
é a crítica de filmes.20
Os críticos que assistiram ao filme na sessão do dia 24 de setembro o
designaram como um “retrato justo da nossa realidade social”. As cenas
filmadas em “locais autênticos, misturando atores a gente comum”, são
equiparadas às técnicas de produção do cinema neorrealista italiano. O texto
do Diário Carioca mencionado incita uma discussão acerca do problema que
a proibição do filme representava para o Brasil naquele momento, “um
precedente perigoso contra a liberdade de expressão”. Não somente a
liberdade de expressão do cinema estava comprometida, mas também as das
outras esferas artísticas e manifestações intelectuais. (Mais adiante será
mencionado o artigo de Jorge Amado, que retoma e destrincha essa
discussão.)
Além de restringir a liberdade de expressão, a censura do filme
contribuiria com a diminuição dos investimentos no cinema brasileiro.
Assim como a matéria publicada na revista Visão, essa edição do Diário
Carioca considera que a produção através de cotas (produção independente)
poderia dar novos rumos à produção cinematográfica nacional.21
Em 26 de setembro de 1955, a Última Hora publicou alguns
depoimentos de personalidades ligadas ao cinema brasileiro sobre Rio, 40
Graus. “É um filme corajoso, humano. É o maior dos filmes brasileiros” […],
afirmou Anselmo Duarte. Para José Carlos Burle o filme era “limpo, honesto,
que representa um esforço inaudito de um punhado de jovens idealistas. É o
20 Décio Vieira Ottoni, “Rio, 40 Graus”. Revista Manchete, s.d.
21 “Côrtes proibiu o filme que a censura aprovou”. Diário Carioca, 25 de setembro de 1955 (apud
GUBERNIKOFF, 1985, p. 38).
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primeiro filme verdadeiramente neorrealista a ser realizado no país”. Elza
Viany, por sua vez, proclamava: “Libere o filme, Sr. Chefe de Polícia. Não
tenha vergonha da verdade!”. Ironildes Rodrigues considerou o filme como
“um retrato fiel e humano da gente marginal do morro”, afirmando que
“nunca vi, em imagens de nosso cinema, vultos de maior expressão que nessa
fita que NPS dirigiu com tanta alma e sensibilidade. É uma obra grandiosa,
bem brasileira, com uma veracidade de ambiente sem retoque algum […]. É
tido por todos os brasileiros”. Wilson Grey acreditava que o filme deveria ter
uma projeção internacional: “é digno de ser visto em qualquer parte do
mundo […]. Honra o cinema de nossa pátria”. Roberto Acácio parabenizou
a cinematografia nacional. Clóvis de Castro Ramon considerou o filme como
a mais legítima manifestação artística do país, pois ele retrata “O que há de
mais brasileiro na alma de nosso povo”. E Alberto Shatovsky projetou que o
filme teria uma boa recepção diante do público.
Entre essas declarações citadas no jornal Última Hora, a de Alex
Viany merece um considerável destaque, uma vez que o crítico e cineasta é
precursor de um discurso histórico sobre o cinema brasileiro:22
Como crítico de cinema e estudioso da história de nossa
cinematografia, não hesito em colocá-lo entre os cinco mais importantes
filmes até agora produzidos no Brasil. É uma obra de admirável realismo,
cheia de dignidade, enfocando os problemas sociais a que o cinema brasileiro
não pode fugir, se pretende ser arte e pretende ser brasileiro. Como brasileiro
22 Para Jean-Claude Bernardet, Alex Viany é um dos fundadores do discurso histórico sobre cinema
brasileiro com a sua narrativa Introdução ao cinema brasileiro, publicada em 1959. Caracteriza essa obra
como “a primeira narrativa extensa que abrange a história dessa cinematografia desde os primeiros
tempos até o momento de sua publicação” (AUTRAN, 2003:19). Outras obras importantes na
constituição de “uma historiografia clássica sobre o cinema brasileiro” são: Revisão crítica do cinema
brasileiro (1963), do polêmico e inovador Glauber Rocha. O livro de Paulo Emílio Salles Gomes, Cinema:
trajetória no subdesenvolvimento (1980), reuniu alguns de seus ensaios dispersos nos diferentes jornais
para os quais escrevia, sendo que o subdesenvolvimento caracterizador do cinema brasileiro corresponde
à continuidade de uma discussão que ele iniciou na década de 1960 com a publicação do ensaio Uma
situação colonial? Caleiro (2011) apresenta como discussão o papel cumprido pela crítica de cinema na
constituição de um discurso histórico e outras obras, além das mencionadas, que são referências nos
estudos da história do cinema brasileiro.
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e homem do cinema considero perigosíssima a atitude do Sr. Chefe de
Polícia. O filme aponta um rumo que muitos têm tentado conseguir – o
caminho do cinema brasileiro popular, preocupado com ambientes e pessoas
reais. A ser mantida a criminosa proibição, este caminho está sendo barrado.
Pessoalmente deixarei de fazer cinema. Mas estou certo de que a proibição
cairá ante a indignação patriótica de todos que o têm visto.23
Alex Viany enfatiza o “pioneirismo” de Rio, 40 Graus ao optar pelo
realismo e por uma crítica aos problemas sociais presentes na sociedade
carioca da época; tal pioneirismo fez com que a mencionada obra ficasse para
a história do cinema brasileiro como precursora do movimento do Cinema
Novo, como um “divisor de águas” na produção cinematográfica nacional.
Conforme as reflexões do capítulo anterior, o “realismo” que Nelson Pereira
intenta trazer à tona através das cenas do seu Rio, 40 Graus corresponde a
uma influência do Neorrealismo Italiano, movimento cinematográfico que
influenciou várias cinematografias pelo mundo afora. Entretanto, um dos
intuitos dessa pesquisa foi perceber como esse filme expressa-se e constituise como sendo “genuinamente brasileiro”. Essa expressão de brasilidade
pode ser notada a partir dos elementos estéticos que compõem o filme e
através das temáticas privilegiadas pela sua narrativa. Como o demonstrado
na análise do filme, essa constituição já pode ser mapeada pelos discursos
difundidos na imprensa, nos quais alguns aspectos foram ressaltados no
decorrer dessa seção, e através do próprio discurso e posicionamento
ideológico de Nelson Pereira dos Santos no que diz respeito à produção de
filmes no cinema brasileiro.
Concluindo, o jornal a Última Hora considerou como inexplicável a
atitude do Chefe de Polícia: “Que interesses estão escondidos por trás de tão
inexplicável atitude para uma obra que vem sendo saudada por elementos
das mais diversas tendências e tão importante para cultura brasileira em
geral?”. Em suma, os jornais da época, na sua maioria, questionaram as
23 “‘Chocado’ com a verdade, o Chefe de Polícia proibiu a exibição do filme Rio, 40o”. Última Hora, 26
de setembro de 1955 (apud GUBERNIKOFF, 1985, p.39-40).
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justificativas dadas pelo coronel Menezes Côrtes, afirmando que a censura
era imprópria e que o coronel embasou-se em critérios impertinentes para
promovê-la. Todavia, nesses textos não se encontram críticas ácidas à
instituição censura, salvo exceção do artigo do escritor Jorge Amado.
Esse artigo de Jorge Amado, O caso de Rio, 40 Graus, publicado no
dia 27 de setembro no jornal Imprensa Popular, apresenta como discussões
algumas das características que marcavam o contexto político-cultural da
época. Classifica o filme como limpo, honesto, uma crônica do cotidiano, “de
alta beleza e profunda poesia”:
O espectador não poderá mais esquecer o menino vendedor de
amendoins com a sua lagartixa, único bem que ele possui, sua afeição maior,
dona de todo o carinho dêsse pequeno órfão da cidade. Os conflitos
inúmeros da cidade imensa, e as tristezas e alegrias do povo são fixados pela
câmera e, por vezes, uma onda de emoção sacode o espectador.
Jorge Amado fala sobre o modelo de produção seguido para a
realização do filme:
Rio, 40 Graus foi realizado por uma equipe de cineastas, vencendo
todas as dificuldades, desde a falta de dinheiro até as deficiências técnicas e a
própria inexperiência. Fruto da educação e do entusiasmo, do amor à sua
cidade e ao seu povo, Nelson Pereira dos Santos, um moço que reuniu outros
moços entorno dele para entoar esse canto à Capital do país. Uma constante
confiança no homem e nos seus bons sentimentos faz a unidade do filme e
marca sua linha moral. Esse filme, que é a primeira realização de um diretor
brasileiro cheio de talento e é o resultado do esforço e do sacrifício de um
grupo de jovens técnicos e artistas, se está longe, do ponto de vista
cinematográfico, de não possuir defeitos, é, sem dúvida, uma das melhores
coisas produzidas pelo nosso cinema. É um filme de conteúdo
profundamente brasileiro, altamente moral, cheio de amor ao Rio e aos
cariocas. Honra o nosso cinema e a nossa cultura nacional, é um exemplo do
caminho a ser trilhado pelos nossos cineastas. O Chefe de Polícia do Distrito
Federal vem de proibir a exibição de “Rio, 40 Graus”.
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Discurso que vai ao encontro do que era almejado pelos articulistas
da revista Fundamentos, referente à exaltação dos costumes do povo para que
assim o filme pudesse constituir-se e representar-se como nacional. O filme
Rio, 40 Graus.
O escritor chama a atenção para o retorno iminente do “fantasma”
da censura, imposta pelo Estado Novo às produções artísticas no Brasil. A
atitude do coronel o leva a concluir que esse perigo permanecia após a
ditadura de Getúlio Vargas, expressando uma ameaça às manifestações
artísticas. Afirma que a censura imposta contribuía com a desqualificação do
cinema nacional, que não tinha condições de competir com as produções
norte-americanas que tomavam conta das salas de cinema brasileiras:
Jorge Amado convoca a intelectualidade brasileira a tomar uma
posição diante dessa situação; sugere que ela se manifeste e não aceite a
atitude arbitrária do Chefe de Polícia. Para o escritor, caberia aos intelectuais
a defesa e a manutenção da liberdade na cultura brasileira, uma vez que eles
eram “a voz legítima do povo brasileiro”.
O artigo de Jorge Amado demonstra como a atuação da
intelectualidade marca esse período da cultura brasileira, que assume uma
postura politizada; aspecto que será levado a cabo pelas manifestações
artísticas de inícios da década de 1960.24
Referências Bibliográficas
ADAMATTI, Margarida Maria. A crítica cinematográfica e o star system nas revistas de fãs:
Cena Muda e Cinelândia. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação),
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
ARAÚJO, Guido. O humanismo no cinema brasileiro: homenagem aos 50 anos de
Rio,Quarenta Graus, de Nelson Pereira dos Santos. Jornal da Jornada, setembro de 2005, p.
4
24 Principalmente com a criação dos CPCs.
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GUBERNIKOFF, Giselle. O cinema brasileiro de Nelson Pereira dos Santos contribuição
ao estudo de uma personalidade artística. Dissertação (Mestrado em Artes), Universidade
de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Artes, São Paulo, 1985.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo:
Editora Unesp, 2010.
SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Rio de
Janeiro: Record, 1996.
SOARES, Gláucio Ary Dillon. O Golpe de 64. In: SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAUJO,
Maria Celina (orgs.). 21 Anos de Regime Militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1994. p. 9-51.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad,
1999.
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Aumont e Baudrillard: as instâncias narrativas
e identitárias no número musical “Né me
quitte pas”, no filme “A lei do desejo” (1987)
Roberto Gustavo Reiniger Neto - Universidade Anhembi Morumbi
A narrativa é um conceito oriundo da literatura, ressignificado e de
grande valia para a análise fílmica: neste contexto ela passa a ser vista
enquanto a materialidade do enunciado, o texto narrativo que se encarrega
da história a ser contada. Considera-se aqui o cinema enquanto um
enunciado linguístico polimórfico, formado por imagens, palavras e músicas,
pautando-o assim como uma organização narrativa complexa (AUMONT,
2012, p.109). Tomando enquanto embasamento os conceitos narrativos
desenvolvidos por Jacques Aumont, no livro “A Estética do filme”, esta
análise terá como foco a sublimação dos elementos que compõem este
referido enunciado, na ocasião específica de um número musical. A sua
canção por si só pode não possuir um valor narrativo concreto, mas quando
utilizada em conjunto com uma série de aparatos audiovisuais, passa a fazer
parte da estruturação narrativa. Não limitada às prerrogativas da teoria e
história do cinema, a música nesta abordagem será vista como um elemento
que demarca os ritmos das ações, e através de sua letra, verbaliza o discurso
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da mise-en-scène (RODRIGUES, 2002)25 contribuindo assim com a
construção da representação cinematográfica. A constatação deste processo
marca a história do cinema, bem como a relação e compreensão desta
trajetória por parte de seu espectador.
Segundo o pesquisador Fernão Ramos, em seu livro “Teoria
contemporânea do cinema”, a construção imagética que o número musical
traz para uma narrativa audiovisual está presente desde o seu surgimento,
sempre o caracterizando como uma “quebra” de realismo (RAMOS, 2005,
p.285). Em uma história que se desenvolve aparentemente como um
melodrama qualquer, a música, o canto e a dança, sem aviso prévio, tornamse os meios de comunicação das personagens, que posteriormente retomam
suas ações dentro do contexto ficcional em que viviam. Este trânsito de
informações veio a romper o conforto da montagem invisível, bem como a
continuidade espacial, oriundos do cinema clássico. Mas firmou com o seu
espectador um comum acordo de que tal situação seria, e ainda é, plausível,
imagética e visualmente – funcionando enquanto um elemento de aporte
para a ilustração, redundância, ou contraponto da imagem – cabendo ao
filme sua classificação enquanto obra do gênero musical. Gênero que herdou
da encenação no palco – independente da área a qual esta pertença, como o
Teatro, a Ópera – uma tradição própria, bem como a solução para
adversidades formais ao longo de sua história.
No caso do cinema, uma das adversidades seria o advento do som no
final dos anos 20, este foi uma nova tecnologia agregada à sua linguagem. Em
25
Para maior compreensão dos termos técnicos cinematográficos aqui
empregados, recomenda-se a leitura do livro de Chris Rodrigues “O Cinema e a
produção”;
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um primeiro momento, a dificuldade da captação sonora em cenas externas,
encontrou no palco dos musicais um parâmetro imediato para atender esta
nova necessidade do mercado. Mas “a ausência da linguagem teatral, e de seu
palco, já superadas pelo cinema mudo, teriam aqui um adversário contra o
ilusionismo cinematográfico” (VADICO; BRANDÃO, 2009, p.152). Foi
então que a “quebra” do realismo se instaurou precisamente enquanto
característica do gênero: o alocar a narrativa para um plano paralelo, mas não
menos importante, para que determinada personagem, em uma posição de
destaque, na função de enunciadora, construa seu discurso através do canto,
da música e da dança, para formar valores e conceitos intrínsecos ao
desenvolvimento da narrativa, nos mais variados graus de persuasão daquele
que
estivessem
envolvidos
naquele
momento,
diegeticamente
(RODRIGUES, 2002), ou não.
Na trajetória histórica desta persuasão, diversas linhas narrativas
surgiram, a fim de se firmar uma nova e efetiva linguagem, ora instaurando
o número musical em porções individuais ao longo da trama, ora fazendo-o
como força motriz do enredo, tornando-o um grande espetáculo do início ao
fim do filme. Desde biografias musicais, cantores, como Elvys Presley,
atuando, além de um amplo caráter performativo, como as coreografias
desenvolvidas por Busby Berkeley26 – valeu-se de tudo para renovar e
propagar o gênero musical. Tentativas pontuais podem ser contadas na
história do cinema, seja no final da década de 70, com filmes como “Grease
– Nos tempos da brilhantina” (Grease, 1978), “Os Embalos de sábado à noite”
26 Seu trabalho está presente em memoráveis filmes como “Whoopee!” (1930), “42nd Street” (1933),
“Annie Get Your Gun” (1950), e entre outros;
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(Saturday night fever, 1977), ou até mesmo na década de 2000, com “Moulin
Rouge – O Amor em vermelho” (Moulin Rouge, 2001) e “Chicago” (Chicago,
2002). Porém, pode-se constatar que ao longo do tempo, não só o número
musical definitivamente se destitui de seu gênero, como passou a adjetivar
outras linhas de produção como a comédia e o drama musical, com filmes
como “Mamma Mia!” (Mamma Mia!, 2008) e “Os Miseráveis” (Les
Misérables, 2012), além de outros formatos audiovisuais, dentre eles, o
seriado musical “Glee” (Glee, 2009). Nesta trajetória do número musical,
também se aponta o fato de por vezes, ele ser estruturado enquanto
característica momentânea do cinema comercial autoral. Diversos estúdios
apostaram em diretores como Woody Allen, em “Todos dizem eu te amo”
(Everyone says I love you, 1996), ou até mesmo Lars Von Trier, em
“Dançando no escuro” (Dancer in the dark, 2000), na tentativa de se impor
ou até mesmo, resgatar o gênero musical. Porém, poucos foram o que
passaram de uma obra, até pelo estigma que carregavam enquanto
realizadores e “grifes” de impérios comerciais cinematográficos.
A compreensão do número musical enquanto mecanismo narrativo,
e não taxonômico da obra cinematográfica, visa ressaltar um valor semântico
à sua leitura, uma denotação dos elementos que compõem sua imagem e
como estes podem construir um fluxo fechado do desenvolvimento desse
discurso. Sobre o seu “destrinchar”, é notável que a crítica contemporânea
venha tomando ciência da coerência interna de sua narrativa. O “ver” (grifo
nosso) a imagem deve ser levado em conta, antes mesmo de se tentar
formatar estilos recorrentes de um diretor, ou as leis do gênero ao qual a
narrativa venha inserir-se. À pureza de um gênero cabe o repensar, como
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apontam inúmeros pesquisadores, como David Bordwell no livro “Figuras
traçadas na luz: a encenação no cinema”.
Ver a imagem da verbalização do número musical, e não o seu acaso
enquanto irrupção da trajetória dramática, é encaminhar sua leitura para a
ordem e o ritmo assim levantados, instaurando-o enquanto um elemento
narrativo e como este interfere na organização das imagens que compõem o
enredo fílmico. Da composição das imagens que formam este enredo, em
especial, a sua unidade, o plano cinematográfico pode-se obter quais são os
elementos que formam efetivamente uma rede de significantes. Cada
elemento pode pertencer a diversos circuitos em um número musical:
imagem e som; cor e melodia; ritmo e profundidade reverberam um
conjunto de signos e valores não só em sua cena propriamente dita, mas
possivelmente, na obra como um todo.
Ressaltar em um número musical, a letra da canção enquanto o
enunciado do relato de um acontecimento, seja este real ou fictício, é, vê-lo
sob o ponto de vista de Jacques Aumont, enquanto uma narrativa
propriamente dita. Segundo este autor, a narração deriva desta categoria,
“como ato narrativo produtor e, por extensão, o conjunto da situação real ou
fictícia no qual ela toma lugar. Surgem assim as relações entre enunciado e
enunciação” (AUMONT, 2012, p.109). Se o estudo da narração na literatura
é recente, no cinema é mais jovial ainda, e é focado no valor do agrupamento
entre o narrar e a situação a qual este ato se inscreve, esta relação vai além do
lugar comum do levantamento descritivo do enunciado na análise fílmicocientífica, ela pode colocar em cheque também, as ações físicas e o quadro no
qual elas acontecem dentro da cena cinematográfica, tornando-se possível
aqui, mais uma vez, a relação com a teoria de David Bordwell, ao considerar
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mise-en-scène enquanto “as ações físicas que ocorrem entre o início e o fim
da captação da imagem de cada plano da cena” (BORDWELL, 2008, p.36). A
narrativa cinematográfica assim, vista desta forma, portanto, pode
comportar elementos que formam o seu ato narrativo.
Dentro deste ato, seu narrador, não necessariamente é o autor 27 da
obra, mas sim, um dos promotores de sua enunciação. “O narrador é sempre
um papel fictício, porque age como se a história fosse anterior à sua
narrativa” (AUMONT, 2012, p. 111). Cabe ao narrador a conduta da
narrativa, e ao diretor cinematográfico, bem como sua equipe, a construção
do trilho aonde está conduta será efetuada, tratam-se de instâncias narrativas
distintas, mas que acima de tudo trabalham em conjunto a manipulação de
códigos, parâmetros e signos criados para o desenvolvimento da trama. Os
signos que surgem desta manipulação possuem uma forte relação com o
estruturalismo e a psicanálise, ao colocar este indivíduo-narrador enquanto
fruto do sistema social em que vive, imerso em sistemas simbólicos e valores
de representações identitárias sociais.
É da representação desta identidade social que se pode traçar a
relação com a obra “Simulacros e simulação”, de Jean Baudrillard, a qual
aborda a crise da identidade humana e o impacto da comunicação e das
mídias na sociedade e na cultura contemporânea. Filósofo francês, nascido
em 1929, ele polemizou ao contestar a realidade enquanto um elemento
construído, encenado, nomeando-a enquanto hiper-realidade. Nesta, a
27 A relação entre o autor, e o narrador da obra cinematográfica fora historicamente marcada pelas
discussões promovidas pela crítica de publicações como a “Cahiers du Cinema”. Tal discussão visava
considerar o diretor de um filme não enquanto integrante do proletariado da indústria do cinema, mas
sim como um artista completo, dono de uma visão do mundo própria, calcada no ímpeto da expressão
pessoal (AUMONT, 2012, p. 110);
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cultura de massa é responsável pela produção desta realidade virtual. Não há
uma “verdade absoluta”, e sim é chegada a hora de discutir e questionar a
dominação imposta pelos complexos e contemporâneos sistemas de signos.
Há um fugaz impacto do desenvolvimento tecnológico, que resulta na
abstração das representações dos discursos e identidades humanas.
Baudrillard trabalha com uma postura profética e apocalíptica: a sociedade
vive uma intoxicação midiática, e cada um perde a sua essência, vindo daí,
uma necessidade histérica de se promover e absorver valores, buscando no
outro, e também na própria mídia, mesmo que de forma sedutora, ou ainda,
subversiva e efêmera, a tradição, a moral, e o bom costume. Estas
representações são didaticamente simuladas, em um ambiente que fornece
uma ilusão de informação e descoberta. Trata-se de um jogo de valores, uma
dialética entre o simulacro e a simulação do ser. Simulacros são cópias que
representam o que nunca existiu ou o que não possui mais o seu equivalente
na sociedade. Simulação é a imitação de uma operação ou processo ainda
existente no mundo real. Na realidade deste jogo, significados são
substituídos por símbolos, a experiência humana, passa então a ser uma
simulação da realidade, uma hiper-realidade. Vivenciada esta, em um espaço
ausente do eu, um hiper-espaço, vazio e sem atmosfera. Abstraindo-se aqui
do olhar crítico de Mario Vargas Llosa, no texto “Antecedentes”, capítulo do
livro “A Civilização do espetáculo”, tomemos suas reflexões sobre a
conjuntura filosófica na pós-modernidade, em especial, quantos aos
conceitos desenvolvidos por Jean Baudrillard, encarando tais raciocínios
enquanto verdades expressas e vivenciadas pela sociedade, expostas na
mídia, sobretudo, certeiramente, cinematográfica.
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As antiquadas seções de antes – literatura, filosofia, arte, cinema, crítica –
tinham sido substituídas pelas seções pós-modernas de teoria cultural,
classe e gênero, raça e cultura e por uma estante intitulada “sujeito sexual”
[...] Poesia, romance e teatro tinham sido erradicados; a única forma
criativa presente eram alguns roteiros cinematográficos (grifo nosso) [...]
A realidade real já não existe, foi substituída pela realidade virtual, criada
pelas imagens, pelos grandes meios audiovisuais [...] Que vivemos numa
época de grandes representações que dificultam nossa compreensão do
mundo real é algo que me parece uma verdade cristalina [...] O escândalo,
em nossos dias, não consiste em atentar contra os valores morais, e sim
contra o princípio de realidade (LLOSA, 2013, p.69-72).
Sendo assim, o autor questiona como seria analisar e expor o homem
nesta instância genuinamente imagética? A saída que ele traz é analisar o
homem isolado. Para Baudrillard, povos isolados são simulacros de si, com
o tempo, tornam a ser a sua essência, construindo assim, a verdade da
etnologia, ou ainda, “a mais pura etnografia” (BAUDRILLARD, 1991, p.16).
Analisar o homem enquanto fruto de sua exposição a imagens, constrói uma
etnologia pós-moderna, este destaque ou o isolamento dos seus valores
enquanto objeto de estudo, constata a formação social enquanto algo que
dialeticamente deambule entre o simulacro e a simulação. Encarcerar, ou
destacar, os valores humanos para análise é regenerar o imaginário, é uma
necessidade da sociedade hiper-real. Estar entre simulacros e simulações é
estar distante do real corrosivo social permitindo o contato com novos
valores, e como estes os complementariam. A história, passa então, a ser um
referencial perdido, eis que na pós-modernidade o homem olha para si, e
passa a falar dos seus problemas28
28 O mesmo desvincular de fatos históricos tem a sua presença marcada com os estudos da Teoria
Literária desenvolvidos por Peter Szondi, em “Teoria do drama moderno”. Para Szondi, esta nova
instância do drama, decorre do fato de, em uma análise realizada de obras teatrais entre os anos de 1880
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Tal individualismo histérico-voraz – um espetáculo da agonia e do
apogeu do capital, que bombardeia a sociedade com lapsos midiáticos –
busca a formação e construção pessoal, nesta já citada, atmosfera vazia, e traz
a tônica dominante niilista29 dos estudos baudrillardianos: há a destruição e
sedução das aparências, em benefício dos sentidos. Nestes sentidos, o foco ao
analisar a representatividade do homem no audiovisual, em especial, no
cinema, forma a cena enquanto um conjunto de imagens vazias: o que vale é
o seu efêmero contato entre sujeitos, o processamento de dados que virá do
seu consumo imediato, e as novas identidades que surgirão adiante.
Retomemos agora o início deste texto, aonde o número musical é
tido enquanto um mecanismo de enunciação, exposto dento de uma
conjuntura de elementos, por suas instâncias narrativas. A analogia com a
dialética entre simulacros e simulações de Jean Baudrillard torna-se possível
dentro do seguinte ponto: a cinematografia do filme, sobretudo o seu
enquadramento, encarcera, isola, ou ainda coloca em destaque, aquele que
apresenta o número musical, para que este demonstre valores, formatados
em quadros imagéticos, para os demais que assistam a cena possam assim
suprir e também oferecer os valores que lhe faltam. É trazido para o espaço
diegético do filme, o que Baudrillard enfatiza enquanto vivência social do
homem pós-moderno, e pode se formatar assim, um jogo cênico, no qual o
diálogo, sob influência da música, torna-se canto, ritmando e demarcando
e 1950, ter sido constatado um maior foco da revelação íntima, pessoal e individual da personagem para
os demais que estiverem em cena. O drama alçou cada vez mais voos pessoais do que épicos e sociais,
fatores já concretizados pela tragédia;
29 Cabe aqui, como ilustração desta formação, uma frase do próprio Pedro Almodóvar ao reconhecer a
efemeridade de sua identidade: “Pertenço ao mundo do pecado e da degenerescência - sou niilista”
(ALMODÓVAR in. STRAUSS, 2007, p. 93, tradução nossa);
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através da dança, ações físicas que imprimem valores e conceitos. A dialética
consiste em ao analisarmos um único plano do filme, isolado de seu
conteúdo íntegro, existir a possibilidade de obtermos um sentido, um valor,
que vai além de uma primeira leitura denotativa, e que reverbera uma
analogia com outros elementos do conteúdo do texto fílmico. Para ilustrar
essa metodologia de análise fílmica propõe-se aqui uma investigação sobre a
presença do número musical na obra de Pedro Almodóvar.
Clamada pela independência de produção, com suas origens
marcadas no circuito B do cinema europeu, constata-se nela o uso do
número musical de forma concreta, uma característica que ainda perdura em
sua produção, iniciada no final da década de 70, e que se estende até os dias
de hoje. Focando apenas nos longas-metragens os quais ele assina direção: de
1978, com “Folle... folle... fóllome Tim!”30, até 2013, com “Amantes
passageiros” (Los Amantes pasajeros), temos vinte produções, das quais,
catorze contam com pelo menos um número musical em sua narrativa. Sem
contar com curtas-metragens, séries de televisão, e filmes em que ele assina
somente a produção, os números musicais estão em setenta por cento de sua
obra, justificando assim, um estudo mais apurado de seu conteúdo.
A obra almodovariana, vista aqui sob o olhar do pós-modernismo,
trabalha com a criação de signos e valores, aonde “suas personagens
transitam entre o limite do melodrama e a tragédia, sublimando o realismo
diegético e o realismo mimético, ao contar e mostrar um fato” (ALLINSON
30 Segundo contato com a assessoria de imprensa da El Deseo, produtora de Pedro e Agustín Almodóvar,
por ter sido filmado no suporte de Super 8mm, e não armazenado da maneira mais adequada, o material
deste filme deteriorou-se com o tempo. As cópias feitas em Betacam, armazenadas em instituições como
a Cinemateca de Madrid, e o MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York, nestas condições, também
foram descartadas;
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in. EPPS; KAKOUDAKI, 2009, p.144, tradução nossa), concomitantemente,
fazendo assim a síntese entre o passado e o presente de cada personagem na
mise-en-scène (RODRIGUES, 2002), criando-se um drama próprio que traz
um novo olhar para a história do cinema. “Não há ficção, drama, suspense e
comédia almodovariana, e sim um cinema humano com valores femininos,
masculinos, e queers” (CARLOS, 2011, p.20), pautados pelo trabalho
conjunto da subversão de aparatos de gênero e cinematografia que dentre
outros, utilizam a música, enquanto meio de transmutação do texto e forma
de enunciação, para um novo comportamento, uma nova identidade para
sociedade. Para ilustrar essa afirmação, toma-se aqui como exemplo o
número musical “Né me quitte pas”31, do filme “A Lei do desejo”,
considerando antes, um breve resumo de seu enredo.
A “Lei do desejo” conta as conturbadas relações amorosas
homoafetivas de Pablo Quintero (Eusebio Poncela). Diretor de cinema,
Pablo após ser abandonado por Juan Bermúdez (Miguel Molina), decide
enveredar pelo seu novo projeto, a direção do espetáculo teatral “A Voz
humana”32, o qual no elenco estão sua irmã, a transsexual Tina Quintero
(Carmem Maura) e a filha de sua ex-namorada, a pequena Ada (Manuela
Velasco). Após a estreia de seu projeto, Pablo se envolve com Antonio
31 “Né me quitte pas“. Disponível em < http://migre.me/s4f9c>. Acesso em 9 nov 2015;
32 O texto “A Voz humana” é literalmente encenado durante o número musical “Ne Me Quitte Pas”. Tal
texto não é de autoria de Almodóvar, e sim do poeta, romancista, cineasta, designer, dramaturgo, ator, e
acima de tudo, encenador teatral francês, Jean Cocteau. Neste texto datado de 1930, Cocteau conseguiu
conjugar com maestria os novos e velhos códigos verbais de sua época, a linguagem de sua encenação e
tecnologias do modernismo que fizeram desta sua obra um paradoxo: um avant-garde clássico. “A Voz
humana” conta a história de uma solitária mulher que fala ao telefone com o seu invisível e inaudível
amante perdido, que a deixou para se casar com outra. No texto, o telefone mostra ser o perfeito adereço
que permitiu a Cocteau explorar as ideias e sentimentos da comunicação humana;
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Benítez (Antonio Banderas), jovem de índole questionável, e problemas
psiquiátricos evidentes. Antonio descobre que Pablo e Juan ainda mantém
contato. Antonio decide então, ir até a aldeia onde Juan voltou a morar para
assassiná-lo. Durante o crime, Antonio veste a roupa de Pablo para que a
culpa recaia sobre ele e sua irmã. Pablo sofre um acidente de carro e perde a
memória. Tina começa a cuidar de seu irmão e revela que mudara de sexo
para viver uma relação incestuosa com seu pai. Sem saber de nada, Tina se
envolve com Antonio, e quando Pablo se recupera ele percebe o risco que a
irmã corre. Antonio faz Tina sua refém, mas decide se entregar para a polícia,
se antes puder falar com Pablo. Com seu amado, Antonio tem a sua última
noite de amor, que se encerra com o seu suicídio. Sobre “Né me quitte pas”,
o próprio diretor de “A Lei do desejo”, em entrevista cedida ao crítico de
cinema Frederic Strauss, afirma que
as canções são parte ativa, uma espécie de diálogo nos roteiros de meus
filmes. Dizem muito sobre as personagens, não estão ali só para enfeitar.
Em “A Lei do desejo” fiz uma espécie de homenagem inconsciente à
cultura francesa, com “Né me quitte pas” e “A Voz humana” de Cocteau,
dois textos que para mim têm o mesmo sentido e dialogam entre si. A
canção de Brel33 é bastante significativa e reveladora das personagens do
filme. É uma canção que o cineasta [Pablo] ouve em casa muitas vezes. [...]
A canção é interpretada também pela menina Ada que foi abandonada por
sua mãe, Bibi Andersen, e adotada pela ex-namorada desta. [...] Não sei se
essas explicações são indispensáveis, mas mostram que todos os meus
filmes têm uma base muito racional. Ainda assim, também não quero dar
a impressão de justificar escolhas que muitas vezes são irracionais e ligadas
33 BREL, Jacques. Né me quitte pas in. Las Canciones de Almodóvar. Intérprete: Maysa Mataraso.
Espanha : El Deseo e Hispavox, 1998, 1CD;
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a emoções profundas (ALMODÓVAR in. STRAUSS, 2007, p. 93-94,
tradução nossa).
Esta polifonia de signos e valores, até então levantados, podem ser
considerados enquanto resultado do marco que “A Lei do desejo” é na
história da filmografia almodovariana. Este foi o primeiro filme da El Deseo,
produtora fundada por Pedro e Augustín Almodóvar, que até então tinham
o seu potencial de expressão na indústria cinematográfica, porém, ora
afetado por adversidades orçamentárias, ora afetado conceitualmente por
produtores que coordenavam os filmes anteriores. Instaurava-se assim o
cinema autoral de Pedro Almodóvar, ou a completa anarquia de valores que
pré-formatam os gêneros cinematográficos.
“Mostro sentimentos. Meus filmes são dramas, e não melodramas,
ainda que sejam dramas com canções” (ALMODÓVAR in. STRAUSS, 2007,
p. 187, tradução nossa). Quando Almodóvar faz esta afirmação, acredita-se
que seja plausível a relação com o embasamento teórico de Jacques Aumont
e Jean Baudrillard citados anteriormente. Essa amostragem de signos, e por
que não, sentimentos, dentro do enunciado narrativo da cena, conduz o fluxo
da trama para um jogo de valores. Estes valores quando enunciados em um
número musical dão a personagem uma posição de destaque, que isolados
pelo enquadramento cinematográfico da encenação, trazem para diegese, em
especial, almodovariana, a essência de Jean Baudrillard: um jogo de relações
interpessoais e formações de identidades, que levam em consideração a
dialética entre o simulacro e a simulação do outro como princípio ativo.
Dentro destes valores, “Né me quitte pas” pode ser considerado
enquanto um enunciado, composto por diversas instâncias narrativas, que
formam e (de)formam identidades ao promover simulacros e simulações
para os que diegeticamente estão presentes, no decorrer de sua realização. Já
em uma primeira leitura denotativa, pode-se apontar os elementos que
remetem e resultam nesse processo. Desde o início do filme, até o momento
de realização deste número musical, em diversos momentos, tal cena é pré- 78 -
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anunciada materialmente, com elementos da direção de arte. Sabe-se, não de
forma clara, que se trata de um texto de Jean Cocteau, e por esse material
também não fica claro se Pablo fará um filme ou uma peça de teatro.
Verbalmente tão pouco é justificado se Pablo está largando o cinema
para enveredar a carreira teatral. Já a música da Jacques Brel, prova aqui a
sua multifuncionalidade: ela perde sua instância melodramática adotada até
os trinta e sete minutos de duração do filme, para ilustrar o sofrimento de
Pablo com a separação de Juan, para a partir deste ponto, verbalizar através
do canto da pequena Ada o fluxo da narrativa adiante. A obra de Almodóvar
passa então a ser híbrida tanto autoral quanto artisticamente. Autoral no
sentido de que as obras de Jean Cocteau34 e Jacques Brel passam a compor o
enunciado da narrativa, as escritas destes autores são utlizadas aqui de modo
fidedigno. Artisticamente é trabalhado nesta ocasião o limite entre o teatro e
o cinema. Não há qualquer relação com o espectador de “A Lei do desejo”,
ou de “A Voz humana”. A cena não é projetada, ou exibida, em alguma tela.
Pode ser considerada teatral por assim ter sido publicada por Cocteau, e
também pode ser considerada cinematográfica, por Ada cantar em cima de
um travelling (RODRIGUES, 2002). Aqui opta-se por um olhar
baudrillardiano da encenação, um olhar dialético entre o simulacro e a
simulação do teatro e do cinema.
No transcorrer de “Né me quitte pas”, a música de Brel cantada por
Ada funciona tanto como uma expressão do inconsciente de Tina,
demarcando suas ações físicas na profundidade da mise-en-scène
(BORDWELL, 2008, p.36), quanto uma expressão do sofrimento de Ada pela
saudade que sente de sua mãe. Fato que deve aqui ser registrado é de que tais
ações físicas de Tina, inspiraram Almodóvar a escrever “Mulheres à beira de
um ataque de nervos” (Mujeres al borde de un ataque de nervios, 1988), o seu
34 A versão utilizada de “A Voz humana” para esta cena fora a tradução do francês para o espanhol feita
pelo próprio Jean Cocteau. (STRAUSS, 2007, p. 93, tradução nossa);
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longa-metragem seguinte, que tem Carmem Maura no papel de Pepa,
protagonista da trama.
A narrativa de “Né me quitte pas” avança, e as relações entre Tina,
Bibi e Ada ficam explícitas, no momento em que a jovem menina retorna ao
seu camarim. Neste entreato do número, Ada encontra Bibi, e esta não
consegue se firmar enquanto sua mãe: Ada não aceita o convite de
acompanhá-la nas viagens de seu trabalho e diz que ficará com Tina.
Independente de Tina ser uma transexual, e interpretada por uma mulher, e
Bibi, ser uma mulher interpretada por uma transexual, na conjuntura do
número musical, levando em consideração os conceitos teóricos
baudrillardianos aqui levantados, Bibi pode ser vista enquanto um simulacro
do marido de Tina, na medida em que o impacto de sua interpretação é
acentuado com o sofrimento quando esta percebe a conversa que ocorre no
camarim durante sua encenação.
Em uma conjuntura externa ao número musical, mas ainda dentro
do espaço diegético da narrativa, não só Tina pode ser considerada como um
simulacro do pai e da mãe de Ada, pela ausência que a menina sofrera
durante sua infância, como também Ada pode ser considerada uma
simulação de Tina, pela alegoria similar que é dada às personagens nas
questões de figurino, maquiagem e direção de arte.
A conversa entre Ada e Bibi se encerra. Tina encara Bibi no camarim,
Ada retoma sua posição em cena, e ambas, novamente no limite dialético
entre o simulacro e a simulação, choram pelo sofrimento de perder a mulher
que amam, verbalizando através do texto do número musical a deflagração
de suas identidades. “Né me quitte pas” chega ao seu fim, e na cena seguinte,
Pablo crítica a interpretação da irmã no espetáculo. É chegada a hora de se
retomar o drama do protagonista da obra, mesmo que para isso sejam
necessários outros números musicais, como a sequência final 35, com o
35 “Lo Dudo”. Disponível em <http://migre.me/s4eOX>. Acesso em: 9 nov. 2015;
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suicídio de Antonio Benítez, marcado pela canção “Lo Dudo”, do grupo
musical Trío Los Panchos36.
Por fim, reforça-se que esta abordagem pretendeu ao menos pontuar
o potencial identitário que o número musical possui, sob o viés dos conceitos
desenvolvidos por Jean Baudrillard e Jacques Aumont, enquanto
intercâmbio de informações realizado através do ritmo e melodia musical, na
narrativa cinematográfica. O texto, cantado e/ou dançado, enquanto
conjunto de valores deste tipo de cena, coloca as personagens emissoras
destes novos valores enquanto formadoras e reformadoras de identidades.
Não se faz qualquer relação com a teoria do melodrama, uma vez que a busca
é ir além do potencial climatizador diegético que a trilha sonora pode possuir
(TRAGTENBERG, 1999). Aqui o número musical é visto enquanto
construtor imagético, que pode, de forma contundente, formar e deformar
identidades no fluxo de uma narrativa audiovisual. Antes de ser um elemento
histórico, que pode ter sua gênese relacionada com a produção
cinematográfica norte-americana, o número musical passou a ser mais do
que o elemento de um gênero, ele pode ser tido como um catalisador
dramático da cena efetivamente pós-moderna, independente de uma
eventual taxonomia ao qual o seu filme possa pertencer.
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36 NAVARRO, Chucho. Lo Dudo in. Las Canciones de Almodóvar. Intérpretes: Trío Los Panchos.
Espanha: El Deseo e Hispavox, 1998, 1CD;
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Panchos. ________________________________;
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NARRATIVAS
AUDIOVISUAIS
CONTEMPORÂNEAS
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La adaptación cinematográfica de sagas de
literatura fantástica
Ana Belén Jara - Universidad Nacional de Córdoba
“El relato está presente en todos los tiempos, en todos los lugares, en todas
las sociedades” (Barthes, 1977: 2).
Muchos de los estudios realizados en el campo de la comunicación,
si no la mayoría, analizan fenómenos de masas que, en otras disciplinas, son
escasamente estudiados. Estos fenómenos, en numerosas ocasiones, son
bienes producidos por la industria cultural37. El cine es uno de ellos.
Diferentes son las referencias al cine que lo entienden como cultura, como
arte y como espectáculo. En este caso destacamos su constitución como
medio de comunicación mediante el que, desde su origen, se han expresado
ideologías, puntos de vista, costumbres, y poder. Es decir, el cine comunica.
Desde Walter Benjamin, hasta los estudios culturales como los
realizados por Martín Barbero38 y Néstor García Canclini39, los fenómenos
en los que el cine es protagonista han sido estudiados (y también
cuestionados). Por esta razón el tema central de este trabajo es el análisis de
uno de los fenómenos actuales de la cinematografía: la adaptación de sagas
37 Sólo como ejemplos, podríamos mencionar los trabajos que, en América Latina y desde diferentes
ópticas, han estudiado comics, caricaturas y otras formas de arte consideradas menores: Mattelart y
Dorfman ([1972] 2014); Ford, Rivera y Romano (1985).
38 MARTÍN BARBERO, Jesús. De los medios a las mediaciones. Comunicación, cultura y hegemonía,
Gustavo Gilli, Barcelona, 1987.
39 GARCÍA CANCLINI, Néstor (1995). Los Nuevos Espectadores. Cine, televisión y video en México,
Instituto Mexicano de Cinematografía, 1994. Una síntesis de esta investigación se encuentra en García
Canclini, N. Consumidores y Ciudadanos, Editorial Grijalbo, México.
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de novelas fantásticas al guión cinematográfico. Para este estudio se tendrán
en cuenta los resultados obtenidos sobre el análisis del caso específico de la
adaptación de la saga literaria “Harry Potter”, cuyo éxito se asume
fundamental en la consolidación del actual caudal de novelas fantásticas
juveniles, lo que lo constituye como un fenómeno audivisual que amerita ser
estudiado desde la comunicación.
Pero la adaptación de las obras literarias ha sido objeto de análisis
desde el surgimiento del cine. Numerosos escritores, a lo largo de la historia
de la cinematografía, han visto plasmadas sus historias en la pantalla grande,
con éxito rotundo o parcial, con actores conocidos o no en la interpretación
de sus personajes. Tal es así, por ejemplo, que el 85% de los films
galardonados con el Oscar a la mejor película son adaptaciones de obras
literarias (Seger, 2000: 24).
Sin embargo, la mayoría de los trabajos que estudian la adaptación
cinematográfica han tenido como foco de atención el nivel cuantitativo de la
cuestión, partiendo de la enumeración de las meras diferencias entre un
soporte y otro. El presente trabajo, al contrario, considera a ambos en tanto
discursos, en el que el trabajo de adaptación al que se enfrenta el guionista o
“adapter”, se torna en un conjunto de decisiones que pone en relación
manifiesta a la literatura y al cine. Para ello, se analizaron las características
generales de estas adaptaciones en particular, así como las marcas que nos
permiten determinar qué elementos de lo literario se resisten a ser adaptados
al guión narrativo y por qué (Frago Pérez, 2005:13). Algunas preguntas
retóricas que surgen son: ¿Hasta qué punto la literatura delimita la
creatividad del guionista? ¿El medio audiovisual no corrompe la experiencia
de la imaginación propia de la literatura? ¿Cuáles son los pasos que sigue un
guionista en la adaptación? ¿Fidelidad o creatividad? ¿Qué información
priorizar?
Además, aquí se parte del supuesto de que el proceso de adaptación
de un libro no es el mismo que el de una saga, conformada por un conjunto
de libros, cuya duración es más extensa y supone decisiones que pueden
afectar los resultados a largo plazo, como mostraremos a continuación
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(Martos Núñez, 2006).
A fin de desarrollar este análisis y definir tal proceso nos
preguntamos: ¿qué características presenta la adaptación cinematográfica de
las sagas literarias?
Partiendo de dicho interrogante, esta investigación comenzó con el
desarrollo de los antecedentes en los estudios de las relaciones entre cine y
literatura. Esto nos permitió realizar una breve contextualización de ambos
lenguajes como productos artísticos diferentes, con procesos de producción
diferentes, pero sobre todo se destaca la raíz narrativa del cine. En segundo
lugar, se conceptualizó sobre la adaptación en sí misma y los tipos de
traducción existentes hasta llegar a la transposición cinematográfica. En
tercer lugar, se abordó brevemente la historia de las sagas, su auge actual y su
conceptualización.
Para realizar todos estos aportes se elaboró un marco referencial
conformado por autores que nos ayudaron a dar cuenta de la relación cineliteratura, como Walter Benjamin y Gérard Genette. Así mismo se puso en
discusión el origen de la adaptación desde los aportes de la semiótica, en
donde las voces de Yuri Lotman (1999) y Umberto Eco (2008) nos permiten
comprender por qué algunos elementos de lo textual se resisten a ser
adaptados en lo audiovisual. Luego se llevó a cabo el desarrollo de conceptos
específicos en la materia narrativa, partiendo desde Francis Vanoye (1996),
Syd Field (1995) y Doc Comparato (1986) en el estudio del guión
cinematográfico, hasta los autores pilares en adaptación, como José Luis
Sánchez Noriega (2000), Marta Frago Pérez (2005) y Linda Seger (2000),
quienes realizan un estudio profundo, considerado un manual en la temática
de la adaptación. Eloy Martos Núñez (2006) y Alberto Martos García (2009),
finalmente, nos introducen en el mundo de la conceptualización de las sagas.
Del libro al cine, del cine al libro
Este trabajo nos pone frente a un debate que entiende a la literatura
como arte y al cine como espectáculo y a ambos, además, como fenómenos
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comunicativos. Tal debate puso en disputa dos lenguajes totalmente
diferentes pero relacionados. Por esa razón es que a pesar de que la
adaptación tiene una larga tradición en el séptimo arte, siempre ha sufrido el
mismo prejuicio: se suele rechazar la película sosteniendo que nunca estará a
la altura del texto literario y de la complejidad que lo caracteriza. Desde esta
investigación se enmarca a ambos lenguajes como parte de dos formas de
arte delimitada, diferente, que poseen sus propias cualidades, pero las cuales
están en constante relación.
Por eso consideramos que a pesar de las convergencias y
divergencias existentes entre cine y literatura, podemos resumir en que
ambos encuentran un espacio en común: la raíz narrativa que les permite
contar historias, con las especificidades que le son propias a cada uno ya que
el enunciado que en una novela está compuesto por palabras, en el cine
comprende imágenes, menciones escritas, ruidos, música, silencios, lo que
hace que la organización del relato fílmico sea diferente.
Lo cierto es que el panorama ha cambiado y las adaptaciones no sólo
son mucho más aceptadas en la actualidad por los espectadores, sino que
también han generado una serie de estudios e investigaciones específicas.
Pero el Cine y la Literatura no sólo encuentran espacios compartidos,
sino que también existen límites y “fronteras” entre ambos. Ante estos
elementos que se resisten a ser adaptados, nos preguntamos qué concepto de
adaptación nos permite comprender que la misma, lejos de intentar
reproducir el texto original, supone un nuevo discurso y, por lo tanto, la
posibilidad del aporte de nueva información mediante el lenguaje
audiovisual. Para dar respuesta a este interrogante partimos de los postulados
de Yuri Lotman (1999) y Umberto Eco (2008) en torno al concepto de
traducción hasta llegar al concepto de transposición y traslación.
Gracias a sus aportes desde la semiología no quedan dudas de que
hay casi tantas maneras de adaptar/transmutar un texto a la gran pantalla
como novelas o películas, ya que cada una de ellas requiere una serie de
procedimientos concretos para llevar a cabo el proceso de “adaptación” de
un lenguaje a otro. Por ello los estudios dedicados a analizar la transposición
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de obras literarias al cine, si se hacen de la manera adecuada, pueden ayudar
a comprender con mayor precisión las difíciles relaciones que se han
establecido siempre entre ambos discursos.
Pero ¿Qué es adaptar? Sánchez Noriega, uno de los principales
autores en la materia, define como adaptación al “proceso por el que un
relato, la narración de una historia, expresado en forma de texto literario,
deviene, mediante sucesivas transformaciones en la estructura (enunciación,
organización y vertebración temporal), en el contenido narrativo y en la
puesta en imágenes (supresiones, compresiones, añadidos, desarrollos,
descripciones visuales, dialoguizaciones, sumarios, unificaciones o
sustituciones), en otro relato muy similar expresado en formas de texto
fílmico” (Sánchez Noriega, 2000: 47).
Por otra parte, Linda Seger, la autora de uno de los manuales más
reconocido sobre adaptación, El arte de la adaptación: Cómo convertir hechos
y ficciones en películas, interpela al lector de su libro:
“Has leído el libro. Era visual, cinematográfico. Los personajes
resultaban atractivos; la historia, envolvente; el estilo, entretenido. Pero la
película no funcionó ¿Por qué?” (Seger, 2000: 29). Con esto, Seger intenta
plantear que la experiencia de leer una novela es muy diferente a la de ver
una película: Por su propia naturaleza, la adaptación es una traslación, una
conversión de un medio a otro. Todo material previo –literario o no– se
resistirá en principio al cambio. Pero la adaptación implica cambio, “implica
un proceso que supone repensar, reconceptualizar; y también, comprender
que la naturaleza del cine es intrínsecamente diferente de la de cualquier otra
forma literaria” (Seger, 2000: 30).
Desde el origen: las adaptaciones de narraciones infantiles
La literatura de este estilo tiene una larga tradición, no sólo en la
escritura, sino también en la “transposición” y “adaptación” en diferentes
medios, desde hace siglos. Uno de los principales teóricos al respecto es Marc
Soriano; en La literatura para niños y jóvenes. Guía de exploración de sus
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grandes temas, realiza un estudio detallado de la historia de la literatura
infantil. Esta historia está sumamente relacionada con la historia de la
adaptación, como sostiene Sotomayor (2005), ya que la reescritura de textos
es una de las formas en que se manifiesta desde los orígenes de la circulación
social de la literatura. En este marco de interpretación, se explican las
numerosas formas de intertextualidad y de textos generados a partir de otros.
Una de las formas es lo que ya conceptualizamos como adaptaciones y que
revelan una industria que necesita de relatos para hacer bienes mercantiles.
En los orígenes de la literatura infantil, “adaptar” para los niños un
libro que no les estaba destinado significaba someterlo a una cantidad de
modificaciones que lo conviertan en un producto que se corresponda con los
intereses y el grado de comprensión de los menores, es decir, que lo vuelva
asequible a este público nuevo (Soriano, 1995: 25).
Durante gran parte de la historia, la mayor cantidad de obras de
literatura infantil fueron cuentos que ya habían sido adaptados de textos
predecesores, y que luego comenzaron a ser adaptados al cine, como la
adaptación de Alicia en el país de las maravillas (1865) de la novela
homónimo escrita por Lewis Carroll, y estrenada en el cine el 28 de julio de
1951, por la compañía Walt Disney, como los cuentos de Los hermanos
Grimm como La Cenicienta, Rapunzel, Pulgarcito, La Bella Durmiente y
muchos más en dibujos animados. Y también se destacan los films como
Mary Poppins (1964), adaptada por Walt Disney y basada en una serie de
libros homónimos firmados por P.L. Travers. Pero la fiebre de las
adaptaciones postmodernas han llevada estas obras al cine nuevamente en la
última década (como Maléfica, Encantada, Alicia en el País de las Maravillas)
con versiones renovadas, lo que demuestra que el público infanto-juvenil ha
cambiado y con ello sus competencias de recepción de las historias.
Dentro de los múltiples géneros adaptados para el público infantojuvenil, encontramos la adaptación de las sagas literarias. De acuerdo a
Martos Núñez, quien junto a Eloy Martos García encaran los estudios
antecedentes en la materia, las sagas fantásticas se han convertido ya en un
“ingente corpus” de obras de ficción que arrastra un público muy
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heterogéneo y variado que rompe con las coordenadas típicas de escritura
literaria para niños, para desarrollar una narración que se caracteriza por ser
serial y por su capacidad de exceder el campo de la literatura y adquirir
formatos tan diferentes como el cómic, la televisión, el cine o los juegos de
estrategia.
Aproximación al concepto de saga
Pero ¿A qué llamamos saga? De acuerdo a la Real Academia
española, saga es aquella “narración similar a una epopeya familiar que se
extiende al conocimiento de varias generaciones y que se encuentra dividida
en episodios, actos o volúmenes”40. Este concepto sin lugar a dudas hace
alusión al origen de las sagas pero no deja de agregar un nuevo dato: “dividida
en episodio, actos o volúmenes”, y es quizás ésta pista la que nos permite
hablar del concepto de saga en el siglo XXI.
En la actualidad se conoce con el nombre de saga, en el mundo
literario, al conjunto de narraciones entrelazadas mediante un argumento
central, que habitualmente pertenecen al género novelesco. Si bien existe un
universo de tipos de sagas, como las de ciencia ficción, policiales, etc; en el
presente trabajo nos centramos en las sagas fantásticas.
Cuando se habla de narración fantástica, se hace referencia al género
fantástico, comúnmente llamado fantasía. Se trata de un género artístico de
ficción que se caracteriza por contar con un argumento en el que se
desarrollan elementos imaginarios, irreales y sobrenaturales. Este tuvo su
origen en la mitología y en los relatos antiguos, pero en la actualidad se halla
presente en la literatura, cinematografía, historieta, videojuegos, juegos de
rol, pintura y escultura. Se caracteriza por no dar prioridad a una
representación realista que respete las leyes de funcionamiento del mundo
40 Cabe destacar que la epopeya es un subgénero épico, escrito mayormente en un verso largo o en prosa,
que narra las acciones trascendentales de un héroe que han sido dignas de mantenerse en la memoria de
su pueblo. Real Academia Española. Consultado el 15 de Septiembre de 2014. Disponible en:
<http://www.rae.es/>.
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real. En ese sentido se suele decir que el género fantástico es subversivo, pues
viola las normas de la realidad (Todorov, 1980:19). De hecho tampoco los
tipos son precisos: Martos Núñez señala que cuando hablamos de narración
fantástica, lo que hay a menudo son “formas híbridas entre cuento y novela,
a veces con interpolaciones de otros discursos”.
Siguiendo a Martos Núñez, las sagas fantásticas tienen un carácter
expansivo y son porosas a los distintos lenguajes de la cultura mediática: la
imagen, la animación, el cine, y el juego estratégico. Para el autor, esto
demuestra que el lector moderno lee, cada vez en menor medida, un texto de
forma aislada, sino que lo pone en relación con otros medios y universos
narrativos como el audiovisual. Las sagas literarias no son fenómenos
aislados, sino que entran en contacto con diversos lenguajes en los que el
lector deja de ser sólo receptor para ser creador de nuevos discursos 41.
Más allá de que ello pueda ser motivo de debate en torno a las
ganancias y la especulación que genera (la edición en numerosas materias de
una saga y sus ventas), nos interesa, como ya hemos anticipado, el valor
artístico de las sagas que destaca Martos Núñez, su posibilidad de construir
imaginarios, fundar reinos, relacionar razas o seres de todas clases, en suma,
ampliar horizontes.
¿Por qué Harry Potter?
“Fenómenos como la recepción masiva de Harry Potter, evidencian la
existencia de algo más que una demanda favorecida por una cultura
mediática” (Martos Núñez, 2006: 63-77).
En el nuevo siglo, las sagas juveniles fantásticas entraron en auge con
tres títulos destacados: Harry Potter de J. K. Rowling (siete novelas,
41 Martos Núñez argumenta que lo que más caracteriza a las sagas literarias es el tuning: “El modo en que
los jóvenes personalizan un vehículo a través de diferentes elementos interiores y exteriores. Práctica que,
además, se está extendiendo a otros ámbitos, como la informática, y que revela, en definitiva, la necesidad
de apropiación que proyecta el joven hacia cualquier producto, que es de algún modo recreado” (Martos
Núñez, 2006: 64).
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publicadas entre 1997 y 2007); Crepúsculo, de Stephenie Meyer (cuatro
novelas, entre 2005 y 2008) y Los juegos del hambre de Suzanne Collins (tres
novelas, entre 2008 y 2010).
Luego de la adaptación de estos best sellers, los títulos de sagas
adaptadas al cine crecieron notoriamente, trayendo diferentes propuestas
para el público juvenil: Las Crónicas de Narnia (C. S. Lewis); Divergente
(Verónica Roth); Cazadores de Sombras (Cassandre Clare); Percy Jackson
(Rick Riordan), por ejemplo.
De las sagas pioneras de este éxito, Harry Potter se ha convertido en
un fenómeno que merece ser analizado desde diferentes enfoques. Con una
extensión de siete libros, donde se describen las aventuras del joven aprendiz
de mago y sus amigos, ha batido todos los records. Esta obra fue lanzada por
el sello editorial Bloomsbury Publishing en 1996, cuya autora, J. K. Rowling,
vendió los derechos cinematográficos a Warner Bros poco tiempo después
de su publicación42.
La última película de la saga de Harry Potter pasó a la historia con
una recaudación de 168,6 millones de dólares en un fin de semana siendo
reconocida por Guinness como la obra literaria juvenil más rápidamente
vendida43. Más de 400 millones de copias de sus libros se han vendido desde
que Rowling publicó la primera entrega, otorgándole el Record Guinness
como la serie de libros infantiles más vendidos en la historia. Actualmente,
las aventuras del joven mago han tenido tal repercusión que están
disponibles en 69 idiomas en más de 200 países y territorios, lo que hace
posible, según las estadísticas, que cada 30 segundos alguien en el mundo
42El sello editorial Bloomsbury Publishing le da el visto bueno al manuscrito y decide publicar la primera
historia de Harry Potter. El Consejo de las Artes Escocés financia el trabajo de J.K. Rowling. En Octubre
de 1998 Warner Bros. adquiere los derechos para llevar al cine las dos primeras historias de Harry Potter.
Se filtra que el montante de la operación asciende a una cifra de siete dígitos.
43 Según datos de la agencia especializada Exhibitor Relations, Harry Potter y las Reliquias de la Muerte
- Parte 2 superó por 10 millones al último film de Batman, The Dark Knight, que detentaba el récord
desde 2008. Exhibitor Relations. Consultado el 15 de Septiembre de 2014. Disponible en:
<http://www.ercboxoffice.com/>
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empieza a leer un libro de Harry Potter44.
El análisis de la adaptación de Harry Potter
El trabajo de convertir la historia original de la obra adaptada suele
recaer en el guionista, cuya labor implica tanta creatividad como la del autor
del libro. Esto se debe a que a pesar de contar con una trama, unas situaciones
y unos personajes ya establecidos, en la mayoría de los casos se cuenta con
una gran libertad para tratar estos elementos que incluso pueden resistirse a
ser adaptados al guion narrativo, y en dicho caso el guionista debe buscar en
sus propios recursos (Frago Pérez, 2005:13).
Aún teniendo en cuenta este carácter de creador del guionista o
“adapter” que supone variedad de formas de realizar una adaptación, es
posible definir ciertas tendencias que se manifiestan en la adaptación de sagas
de ficción, tras haber analizado el caso específico de Harry Potter.
Metodológicamente se planteó responder al objetivo general a través
de los siguientes objetivos específicos: Dar cuenta de la voz narrativa del texto
y el punto de vista, las transformaciones planteadas en las aperturas y
clausuras del relato audiovisual; las transformaciones en la estructura
temporal y espacial; las supresiones, compresiones, sustituciones y añadidos;
como así también la transformación en los personajes y en la historia. En
segundo lugar, se identificaron los factores literarios que se resisten a ser
transformados en materia audiovisual. En tercer lugar, se determinaron las
características que pueden ser consideradas propias de la adaptación de
sagas.
Entendemos que estos discursos forman parte de la red semiótica en
la que unos producen a otros, y así, ad infinitum. Entonces, de acuerdo al
esquema que propone Eliseo Verón (1987) cada uno de los libros entendidos
como discurso forman una parte muy importante de las condiciones de
44Guiness World Records. Consultado
<http://www.guinnessworldrecords.es>
el
20
de Septiembre
de
2014.
Disponible
en:
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producción (aunque no las únicas) de sus adaptaciones al cine. Para llevar a
cabo dicho análisis se tuvo en cuenta el siguiente corpus: Las ocho películas
adaptadas del libro al cine, de Warner Bros, los siete libros que conforman la
saga literaria “Harry Potter”, y las condiciones de circulación y
reconocimiento: Las mismas incluyen entrevistas al guionista, al director y a
Rowling, realizadas por Warner Bros y por diferentes medios gráficos.
Luego de pensar la saga completa Harry Potter como una unidad en
la que se reconocen la estructura de tres actos, podemos establecer como
principal característica que todas las películas proponen un conocimiento
nuevo para el personaje principal, o héroe, mientras la trama se complejiza,
e incluso los problemas aumentan pero no sólo en cantidad sino también en
profundidad, como sus personajes, que se desarrollan de forma creciente.
También podemos resaltar que la curva de suspenso, que según Doc
Comparato se produce desde que el conflicto emerge hasta la crisis, la
encontramos desde la tercera película, a partir de que la intensidad de los
problemas y los conflictos se concentran en un “callejón sin escapatoria” ¿Por
qué precisamos de estos cambios? Para explicarlo podemos decir que en las
sagas se produce un fenómeno similar a lo que Doc Comparato denomina
como “estructura ondulante” (1986: 92), donde la tensión debe mantenerse
por un largo período. En el caso de las sagas nos lleva a preguntarnos si para
que no caiga el interés, cada película cumple el rol de unidades internas
donde ocurren otros problemas y conflictos secundarios. Podríamos
imaginar este procedimiento bajo la forma de pequeñas cajas dentro de cajas
mayores que son las sagas.
Esta conformación de la saga supone que entre una y otra unidad se
produzca la disminución de las curvas de dramatismo, que para que no
impliquen grandes cortes en la tensión producida, utilizan lo que conocemos
como “ganchos” entre las clausuras y aperturas de una y otra película. Como
Doc Comparato sostiene, evitan que el interés del espectador disminuya,
como así también la “anticipación” de datos entre unas y otras que generan
mayor expectativa en el público.
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Podemos sostener entonces que las sagas se constituyen también
como relatos que poseen una unidad en la historia en el que se pueden
reconocer fácilmente los aspectos de los tres actos, aunque no con la
exactitud con la que lo reconocen los autores en la escritura de un guión
(división por páginas o minutos). Sino que en este caso es complejo, ya que
las sagas pueden estar conformadas por diferentes cantidades de libros, a los
que podemos considerar unidades con su propia microestructura, es decir:
en esas unidades reconocemos los tres actos con mayor o menor precisión.
Por otra parte, tras el análisis de ambos discursos en relación en los
que hemos descubierto las marcas mediante las categorías seleccionadas en
planteamiento metodológico, pudimos observar las siguientes características
de la adaptación de la saga: En primer lugar, prevalecen las supresiones y las
compresiones, como en toda adaptación cinematográfica (Seger, 2000: 3031), y por lo tanto, esta característica no sería algo específico de las sagas
literarias, salvo quizá por un aumento en su cantidad. Sí, en segundo lugar,
el carácter creador del guionista cumple un rol central, ya que los añadidos,
las elecciones, las decisiones de la puesta en escena y los reemplazos se
realizan en torno a si son útiles para la trama.
En tercer lugar, otra característica notable es el uso de la riqueza de
los personajes de forma selectiva en el desarrollo de la saga. Es decir, no
conocemos a todos los personajes desde un comienzo, sino que los
descubrimos conforme su rol es más importante en la película. También se
suele hacer énfasis en esto llevando al extremo lo característico del personaje,
como por ejemplo el saber, y cuando este consigue desarrollarse desde otro
rol la sorpresa en el espectador es inminente.
Otro de los puntos a destacar es la selección de las subtramas que se
priorizaran en diferentes niveles de atención durante la saga. Aún así cabe
destacar que aquellas más complejas y que no aportan al desarrollo de la
historia y del tema principal son condensadas en gran medida. La
condensación de la dimensión "política" de Harry Potter, en tanto los
fundamentos de la persecución y muerte de algunos personajes por su
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pertenencia a una u otra familia de magos, reducen el potencial político de la
obra y eventualmente, aquello que hace que sea digna de ser discutida con
los jóvenes lectores, tanto desde ámbitos educativos como familiares o
sociales.
Eco sostiene que “se puede observar que un determinado sistema
semiótico puede decir menos o más que otro sistema semiótico, pero no se
puede decir que ambos son capaces de expresar las mismas cosas”. Esto
supone que en el paso de materia a materia, se deben explicitar aspectos que
una traducción dejaría indeterminados (Eco, 2008: 418). Aún así, no es
meritorio destacar simplemente que aquellos son elementos de lo literario
que se resisten a ser adaptados, sino que son las decisiones que toma el
guionista para resolverlo lo que merece ser mencionado. Estas decisiones nos
permiten aproximarnos a las características generales de la adaptación de
una saga:
No se pueden incorporar todas las subtramas, ya que resulta imposible
desarrollar todas ellas durante la adaptación como en los libros,
prácticamente se perdería el interés sobre el tema central. Aún así,
poder elegir entre las subtramas existentes y desarrollarlas conforme
sirvan a la historia de una u otra película más que en otra, implica una
característica propia de la adaptación de las sagas.
Por otra parte, se destacan los guiños y las anticipaciones, que en su
mayoría son suprimidos, ya que en gran medida las acciones se
desarrollan en el transcurso de la saga y es imposible realizar tantas
anticipaciones como el libro y que el espectador se percate de todas
ellas como lo hace durante la lectura.
La totalidad de personajes que aparecen a lo largo de una saga es
también otro factor que se resiste, ya que es necesario seleccionar a
cuáles se les dará mayor importancia y en ellos se combinan todos los
personajes suprimidos.
Por otra parte, las clausuras y las aparturas tienen un rol fundamental,
ya que es necesario establecer una conexión entre una película y otra,
un gancho que permita al espectador recordar lo que vió en la anterior
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película, y que en la mayoría de los casos se estrena hasta uno o más
años después.
La elección del narrador es otra de las características más importantes
ya que, como enunció Eco (2008), la transmutación puede “hacer ver
lo no dicho” e incluso “no hacer ver lo dicho”, y en ello la selección de
el punto de vista y la focalización determinan a las otras películas. En
este caso, la elección de un narrador extradiegético con focalización
otorgó libertad al guionista de “hacer ver” aquello que en el libro
conocemos que sucedió pero no como.
En gran parte, pensar en estas características nos permite remarcar
el carácter creador del cine y la comunicación audiovisual, que lejos de imitar
con fidelidad lo descrito por el libro, se apoya también en una gran cantidad
de recursos (flashbacks, inserts, transiciones, planos, etc.) mediante los cuales
se recrea un mundo, aporta mayor información, resalta algunos aspectos y
condensa las palabras y las acciones descritas.
Luego de todas estas observaciones podemos concluir con el análisis
de Harry Potter enunciando que, lejos de tratarse de una Adaptación como
ilustración es decir, una adaptación literal o fiel, su interés no descansa en la
historia, sino que en foco está en el discurso, es decir en el cómo contar
aquella historia. Aunque al comienzo de la saga se intentó plasmar en el
relato fílmico el conjunto de personajes y acciones que contiene la historia
en su forma literaria, sin otras transformaciones que las derivadas del cambio
de discurso, de la organización dramática del relato fílmico, de la puesta en
escena y de las descripciones visuales, es decir, utilizando los procedimientos
básicos de la adaptación (Sánchez Noriega, 1983: 64).
Si en cambio se reconoce lo que Sánchez Noriega denomina
transposición ya que se traslada al lenguaje fílmico y a la estética
cinematográfica las cualidades estéticas y culturales en menor o mayor
medida dependiendo de la película de la saga. La adaptación como
transposición implica una intervención mayor, en la que el autor fílmico
trata de extraer todas las posibilidades expresivas y dramáticas al texto
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literario, para lo cual desarrolla lo que está implícito, busca equivalencias,
efectúa ampliaciones, elimina subtramas, etc (Sánchez Noriega, 1983: 64).
Por lo tanto, la adaptación de esta saga ha implicado un cambio de decisiones
en cuanto a cómo abordar los libros, que es claramente identificable entre la
segunda película y la tercera.
Durante el proceso de realización de este trabajo, hemos dado
respuesta a los interrogantes planteados desde un inicio, pero también han
surgido nuevos problemas que merecerán su estudio en posteriores
investigaciones y despiertan aún más el interés por la temática seleccionada.
Es así que nos permite pensar en el cine como medio de comunicación
mediante el cual se impulsa la realización de otras prácticas actuales en los
jóvenes, entre ellas las sagas. Las sagas literarias no son fenómenos aislados,
sino que entran en contacto con diversos lenguajes en los que el lector deja
de ser sólo receptor para ser creador de nuevos discursos (Martos Núñez,
2006). Lejos de ser un simple tema de moda o “reclamo comercial”, las sagas
como Harry Potter son una manifestación indudable de la postmodernidad
y su tendencia al “reciclaje e hibridación de fuentes”. Este fenómeno se
constituye como una oportunidad de suscitar la creatividad y, si se quiere, un
entrenamiento para el lector que se asoma a estos mundos insólitos y, por lo
mismo, incluye un público que va desde el infantil al adulto
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A intertextualidade e a produção de sentido na
minissérie “Amorteamo”
Anderson Lopes da Silva – USP
Maria Cristina Palma Mungioli – USP
Este artigo propõe-se a analisar como a intertextualidade se
configura como parte significativa dos processos de produção de sentido em
“Amorteamo” (Globo, 2015). Para isso, estudamos como tais processos são
agenciados por meio das relações intertextuais por meio da análise de cenas,
da construção das personagens e de sua composição relacional. O intertexto 45
revela-se nessa obra por meio do acabamento temático e estético
(BAKHTIN, 1992) com referências ao cinema expressionista alemão, ao
cinema noir americano e ao modo peculiar como o tema dos mortos-vivos é
tratado por Tim Burton. As relações intertextuais podem ser observadas
extratextualmente (nas entrevistas dos autores e da diretora sobre suas
inspirações) e intratextualmente (na construção da diegese televisual
propriamente dita: trama, personagens, fotografia, mise-en-scène, figurinos,
cenografia). Os estudos bakhtinianos sobre produção de sentido são a base
desta pesquisa (uma tese de doutorado que ora se inicia).
Em outros termos, os processos de produção de sentido são
problematizados como os processos de construção interacional, dialógica e
sócio-historicamente constituídos nos quais várias vozes, ressonâncias e
contextos mesclam-se compondo a heterogeneidade discursiva da obra. E é
45 Ressalta-se que, em virtude do espaço limitado, não serão colocados os frames que representam as
comparações entre os distintos intertextos. Todavia, sugere-se ao leitor que visite o portal Memória Globo
(http://migre.me/stDMr) com informações e fotos sobre a obra em questão e também o site da série
(http://migre.me/stDNw) onde é possível encontrar vídeos com algumas das cenas citadas aqui.
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em Mikhail Bakhtin (1992, p. 18) que vemos, de forma incisiva, as relações
dialógicas como o lugar de análise e produção de significação por excelência,
ou seja, o autor não concebe a atividade mental sem material semiótico, sem
significação, sem a produção de signos e sem entender a transtextualidade 46
como pertencente à história da cultura. Bakhtin (1988) considera o signo
como irremediavelmente ideológico, e não como os linguistas estruturalistas
que o liam por meio de sistemas fechados e arbitrários. Enfim, um signo que
tem a sua propriedade de significar constituída ideologicamente. Para o
pensador russo, o signo é a base constituinte de todo processo de construção
de sentidos de nossa vida seja ela social ou individual, sendo a base desses
sentidos as relações sociais nas quais é produzido.
Como suporte ao entendimento dos processos de produção de
sentido em “Amorteamo”, é interessante notar o que Faraco (2008) destaca
sobre o pensamento de Bakhtin sobre o que faz uma obra ser esteticamente
criativa. Esse processo se caracterizaria não pela transcrição literal das ideias
do autor-pessoa na voz social do autor-criador, como se ambos fossem um
só. Pelo contrário: “as ideias do autor-pessoa” (no deslocamento da
linguagem, isto é, no processo que leva as múltiplas vozes sociais à unidade
conferida/organizada pela voz social do autor-criador) devem ser
transformadas sempre, remodeladas e recriadas a partir de “imagens
artísticas das ideias” (FARACO, 2008, p. 40). Ou seja, visualizar estas
imagens artísticas torna-se possível a partir do momento em o intertexto é
apresentado na obra e suas formas são lidas por elementos composicionais
(como às referências aos movimentos cinematográficos citados aqui) que se
concretizam na diegese da historia narrada.
A trama de "Amorteamo"
46 Recomenda-se ao leitor que queira se aprofundar nas discussões sobre transtextualidade uma visita ao
livro “Palimpsestos: la literatura en segundo grado” (1989), de Gerad Genette, especificamente o capítulo
“ Cinco tipos de transtextualidad; entre ellos, la hipertextualidad” (p. 9-17).
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O objeto empírico deste trabalho é a série “Amorteamo”, produzida
pela Globo e exibida entre os dias 8 de maio a 5 de junho de 2015, no horário
das 23h30. A obra, apresentada às sextas-feiras, contou com 5 capítulos de
duração média de 45 minutos cada. Criada por Cláudio Paiva, Guel Arraes e
Newton Moreno, a série foi roteirizada por Cláudia Gomes, Julia Spadaccini
e Newton Moreno. A direção geral foi assinada por Flávia Lacerda.
Dois triângulos amorosos permeiam a trama de “Amorteamo”,
ambientada no final do século XIX e início do século XX, em Recife. O
primeiro formado por Aragão (Jackson Antunes), a mulher Arlinda (Letícia
Sabatella) e o amante dela, Chico (Daniel de Oliveira). O segundo, por
Malvina (Marina Ruy Barbosa), Lena (Arianne Botelho) e Gabriel (Johnny
Massaro), fruto da relação extraconjugal de Arlinda e Chico, mas criado
como filho por Aragão. Aragão mata Chico com um tiro ao flagrá-lo em sua
cama com Arlinda, que concebe Gabriel no último minuto de vida do
amante. Para castigá-la, o senhor de engenho a aprisiona no sótão do casarão,
libertando-a somente no dia do nascimento da criança. Meses depois, Aragão
leva Zefa (Ghueza Sena) e sua filha ainda bebê, Lena, para ajudar Arlinda a
cuidar da casa e amamentar o menino. Lena e Gabriel são criados juntos,
apaixonam-se aos 18 anos e são forçados a se separar quando descobrem que
são “irmãos”. O jovem na realidade não sabe que seu pai biológico é Chico,
porque Aragão proibiu a mulher, Arlinda, de falar para quem quer que fosse
que aquele filho não era dele. Assim, o rapaz cresce sem desconfiar de nada.
Para que os jovens não se envolvam, Aragão, além de mentir sobre o
falso incesto, tem uma ideia que poderia ajudá-lo a se reerguer
financeiramente: casar Gabriel com Malvina, filha de Isaac, o judeu
comerciante que oferece empréstimos aos moradores na loja de penhores.
Vendo-se sem saída, Lena resolve fugir de casa, mas no dia do casamento de
Gabriel, Arlinda diz ao filho que o pai mentiu, fazendo com que o rapaz
abandone a noiva no altar e vá em busca da verdadeira amada. Após várias
desilusões amorosas, Malvina se suicida, atirando-se de uma ponte sobre o
rio Capibaribe. Sentindo-se culpado pelo infortúnio de Malvina, Gabriel
viola o túmulo da moça na tentativa de corrigir a qualquer preço a situação,
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mas com isso, não só a moça como todos os mortos da cidade retornam
misteriosamente à vida (incluindo Chico, o amante assassinado, que planeja
se vingar de Aragão).
Paralelamente, outras histórias são contadas como: 1) As fofocas de
Cândida (Guta Stresser) e o esposo Manoel (Aramis Trindade) no bar da
cidade (casal que se transforma em um triângulo amoroso com a volta do
morto-vivo Jeremias (Bruno Garcia), primeiro marido dela e irmão de
Manoel); 2) As noites regadas à música, bebidas e sexo no bordel de Dora
(Maria Luisa Mendonça), a principal prostituta da cidade, que abre as portas
de seus estabelecimentos tanto a vivos quanto a mortos; 3) A história de
Padre Joaquim (Gustavo Falcão) que, sucedendo Padre Lauro (Gillray
Coutinho) - um suicida glutão -, tem a difícil missão de lidar com a Igreja
quase sem fieis e a volta do antigo padre morto. Já a última trama paralela é:
4) A de Zé Coveiro (Tonico Pereira) que, como o nome sugere, é o
encarregado de sepultar os cadáveres da cidade, todavia, mais do que cavar
covas, o personagem era tido como um amigo e conselheiro de Gabriel, além
de, após o surgimento dos mortos-vivos, ajudá-lo a entender o universo e as
tensões entre mortos e vivos.
Algumas possibilidades teóricas ao entendimento da intertextualidade
Uma das características mais visíveis da minissérie diz respeito à
intertextualidade, ao processo de referenciação a outras artes, narrativas e
linguagens citadas neste produto audiovisual. Este processo de citação não
apenas promove o uso de determinados temas ou padrões estéticos à série,
mas reelabora-os e lhes dá um sentido novo, um sentido ligado ao
melodrama folhetinesco na TV e às características regionalizantes da obra,
ou seja, suas ressignificações são coadunadas a elementos nordestinos (como
o sotaque, o cenário urbano de Recife, além da livre inspiração na literatura
com “Assombrações do Recife Velho” (1955), de Gilberto Freyre).
O termo intertextualidade na visão de Julia Kristeva (que cunhou o
termo em 1969) refere-se não a cópia, mas a uma visão compósita do fazer
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literário (e lido aqui de modo sui generis, por extensão, também do fazer
artístico na produção audiovisual). Afirma a autora que “[...] todo texto se
constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e
transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1974, p. 64). Para ela a
palavra literária não é um ponto, um sentido fixo, mas um cruzamento
dialógico de superfícies textuais (e aqui fica nítida a base teórica de Bakhtin
sobre o interdiscurso às reflexões de Kristeva). A intertextualidade é um
“espaço textual múltiplo” em que coexistem diferentes discursos.
Fiorin, alertando para o fato do termo intertextualidade não existir
nas discussões de Bakhtin e também para o equívoco de se entender qualquer
relação dialógica como intertextual47, comenta que a “intertextualidade
deveria ser a denominação de um tipo composicional de dialogismo: aquele
em que há no interior do texto o encontro de duas materialidades
lingüísticas, de dois textos” (FIORIN, 2006, p. 52-53). A explicação para sua
visão é que para ser intertextual é preciso “que um texto tenha existência
independente do texto que com ele dialoga” (idem).
Por sua vez, Orlandi, apoia-se nos estudos bakhtinianos ao explicar
que o interdiscurso se estabelece a partir das relações entre memória e
discurso. O interdiscurso, assim, pode ser entendido “como aquilo que fala
antes, em outro lugar, independentemente”. Em outros termos: “[...] é o que
chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo
dizer e que retorna sob forma do pré-construído, o já-dito que está na base
do dizível [...]” (ORLANDI, 2005, p. 31). E, tal qual Fiorin, a ressalva de
Orlandi está na diferenciação entre intertexto e interdiscurso, já que este
último pode ser entendido como o “conjunto de formulações feitas e já
esquecidas que determinam o que fizemos” (idem, p. 33). [...] Assim,
continua ela:
47 A crítica do autor é direcionada aos escritos de Kristeva e às replicações de Barthes sobre estes mesmos
trabalhos que, de modo errôneo, segundo ele, resultam em “chamar “texto” o que Bakhtin denomina
“enunciado”” e, assim, acabam “por designar por intertextualidade a noção de dialogismo” (FIORIN,
2006, p. 52).
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Se tanto o interdiscurso como o intertexto mobilizam o que chamamos de
relações de sentido, no entanto o interdiscurso é da ordem do saber
discursivo, memória afetada pelo esquecimento, ao longo do dizer,
enquanto o intertexto restringe-se à relação de um texto a outros textos.
Nessa relação, a intertextual, o esquecimento não é estruturante, como o
é para o interdiscurso (ORLANDI, 2006, p. 34).
Acerca de possíveis leituras da intertextualidade na ficção seriada
televisiva, a fala de Agger é esclarecedora: o intertexto pode ser perscrutado
em muitos níveis de profundidade nas mais diferentes formas artísticas e
estéticas que encontramos no tecido social, sendo a TV um campo profícuo
destas discussões. “A escolha de um título específico, [...] ou um modo
especial de mover a câmera na ficção de TV, tudo nos fornece exemplos de
intertextualidade [...]”. E, à aparente amplificação descuidada do conceito, a
autora destaca que as condições de produção destes discursos não se podem
nunca descolar da análise do intertexto, do contrário, chegaríamos a um
problema epistemológico: “o conceito de intertextualidade parece ser
passível de expandir-se infinitamente”, levando, desse modo, “[...] à perda de
perspectiva até o ponto em que origem, contexto e objetivo desapareçam e os
resultados tornem-se incertos” (AGGER, 2010, p. 392).
Ainda sobre as narrativas audiovisuais seriadas, Umberto Eco é
didático ao distinguir a intertextualidade da paródia ou homenagem e do
desonesto plágio. Também com forte fundamento bakhtiniano, Eco chama
de dialogismo intertextual a citação estilística onde “um texto cita, de modo
mais ou menos explícito, uma cadência, um episódio, um modo de narrar
que imita o texto de outrem” (ECO, 1989, p.125). Sobre a relação entre o
dialogismo e intertextualidade e as produções audiovisuais, o autor é enfático
ao dizer que a ocorrência cada vez mais comum do intertexto deve-se ao fato
de: “os mass media se preocupam com – pressupondo-as – informações já
veiculadas por outros mass media” (ECO, 1989, p. 127).
Entretanto, para além de uma preocupação com o que já foi dito
sobre o tema, a intertextualidade nas obras de ficção seriada na TV é lida aqui
como um processo de reenvios de sentido: a todo tempo a produção dá
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espaço à interpretações em distintas escalas para diferentes tipos de
telespectadores/leitores. Um processo que caminha, ao ver deste trabalho,
com a inovação na narrativa seriada descrita por Umberto Eco.
Breve análise do intertexto em “Amorteamo”
O primeiro exemplo de intertexto está na referência mais expressiva
da série que é a que dialoga com o filme “A Noiva-Cadáver” (Corpse Bride,
2005), do diretor Tim Burton. A animação em stop motion inspira
“Amorteamo” pela figura da noiva morta-viva, vestida de branco, de
aparência assombrosa e que volta à vida pelo chamado de um homem. Schuy
Weishaar, lendo as obras de Burton pelo viés da carnavalização e do grotesco
em Bakhtin, destaca em “A Noiva-Cadáver” dois mundos em constante
interação: a terra dos vivos e a terra dos mortos. Com uma separação muito
clara entre a sisudez cinza, de tons sépias e pálidos azuis na superfície dos
vivos (espaço do oficial), a terra dos mortos (espaço do grotesco) resplandece
a alegria, os sorrisos, as cores vibrantes e uma animação traduzida pelos
números musicais ao estilo do Día de los Muertos, no México (WEISHAAR,
2012, p. 64).
Do ponto de vista narrativo, há diferenças entre a obra
cinematográfica de Tim Burton e a série televisual, a saber: 1) a noiva da
animação (Emily) é assassinada; a noiva da série (Malvina) se suicida, 2) o
jovem (Victor) que traz a noiva-cadáver de volta à vida na animação o faz
sem querer e não a conhece; o jovem (Gabriel) que traz a noiva-cadáver da
série o faz de forma deliberada e, anteriormente, havia sido noivo dela, 3) na
animação há incursões de um vivo no mundo dos mortos, na série apenas os
mortos atuam e provocam mudanças no mundo dos vivos.
Sobre as personagens femininas protagonistas da animação de Tim
Burton e da série, outras diferenças se sobressaem na descrição física e
emocional. A noiva-cadáver do filme é cândida, não é agressiva ou violenta e
não tem desejo de vingança, mesmo após ser assassinada de modo tão cruel.
Apresenta-se com um vestido simples e rasgado, deixando os fartos seios em
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destaque, além de partes corpo em estado de decomposição, ossos à mostra
e um olho que sai do lugar, mas, ainda assim, ela transparece uma delicadeza
junto a uma imagem “desconcertantemente erótica”. Tal imagem é traduzida
pela perna que aparece na fenda do vestido e pelos “lábios que sugerem que
até mesmo a morte não consegue destruir totalmente o impulso sexual
humano” (ZACHAREK, 2005 apud WEISHAAR, 2012, p. 64, tradução
nossa).
Por outro lado, Malvina é uma figura soturna já em vida e, como uma
personagem esférica, sofre uma transformação: de meiga e contida ela tornase vingativa e obstinada, agressiva e assassina. Malvina já havia tentado se
matar cortando os pulsos: Gabriel vê as cicatrizes da moça e ela explica, de
forme poética, que já quis ser apresentada à morte, mas a morte não a pôde
receber. Seu figurino pomposo (que lembra algumas peças de “Drácula de
Bram Stroker” (1992), de Coppola) cobre todo o corpo (não putefrado) sem
lhe dar espaço a muita sensualidade, para além da visão dos grandes olhos
negros, uma maquiagem que escorre pelo rosto e os cabelos ligeiramente
desgrenhados. Como comenta a caracterizadora Lú Moraes, a noiva é o único
ponto branco (nas vestes) e preto (nos cabelos e caracterização): um ponto
de destaque em meio às personagens de tons castanhos ou coloridos48.
Já a maior semelhança se fundamenta no que se pode chamar de
“diálogo dos mortos”, isto é, assim como os personagens vivos escutam e/ou
falam com os mortos na animação, o mesmo ocorre na série. Esta
característica de alçar a voz do morto ao centro da trama também é visível
em obras literárias de contextos distintos ao cinema e à televisão, como
“Bobók” (1873), de Dostoiévski, e “Diálogo dos Mortos” (≅165-175 d.C.), de
Luciano. Outra semelhança entre a intertextualidade de “A Noiva-Cadáver”
e “Amorteamo” está naquilo que Weishaar define como “a nova liberdade
que a morte oferece” aos mortos-vivos: “A liberdade das duras consequências
48 “Melodrama!”: autor define história que junta amor e suspense em “Amorteamo” (2015). Disponível
em: <http://migre.me/stEik>. Aceso em: 10 dez. 2015.
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de suas realidades” (WEISHAAR, 2012, p. 65, tradução nossa). Agora, estes
seres do “entre-lugar” são:
[...] governados pelo espírito do carnaval através da lógica da aparência
grotesca que liga esse filme [de Tim Burton] com o tema da morte lida
como o renascimento, a combinação de nascimento e de morte, e as
imagens alegres da morte junto a um senso rejuvenescedor e libertador
proveniente do riso, e todas estas características, nos lembra Bakhtin,
desempenham um papel na estética da tradição grotesca (WEISHAAR,
2012, p. 65, tradução nossa).
É justamente isso que vemos nas figuras dos mortos-vivos como
Malvina (livre de padrões morais para matar seus pais como vingança e sem
medo em sua busca obstinada pelo noivo), Padre Lauro (que já não se
preocupa com as supostas corrupções que venham a ser descobertas na
gestão de sua igreja), o judeu Isaac (que já não liga mais para o trabalho na
loja de penhor ou questões de cunho financeiro, que antes eram o seu maior
foco) ou Chico (que já não teme Aragão, mas o enfrenta com sarcasmo e
zombaria).
Outro elemento citado como intertexto é o expressionismo alemão
em sua vertente cinematográfica. Nas entrevistas exibidas antes da estreia, a
diretora Flávia Lacerda comenta sobre a inspiração direta dos primórdios da
vanguarda alemã na construção da estética da obra 49. Esta intertextualidade
pode ser vista, especialmente, na teatralidade exacerbada das encenações dos
atores, na construção dos cenários e no tratamento dado à iluminação e à
fotografia. Na obra analisada há a referência clara ao estilo expressionista
pelas casas, escadas e a igreja de formas retorcidas e assimétricas, pelo uso
das cores acinzentadas e de matriz monocromática, entre outros pontos. As
construções tortas e disformes são tomadas do espaço onírico expressionista
e concretizadas no cenário da série.
49 “Melodrama!”: autor define história que junta amor e suspense em “Amorteamo” (2015). Disponível
em: <http://migre.me/stEik>. Aceso em: 10 dez. 2015.
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Já a iluminação cria sombras fantasmagóricas e formas tétricas com
o objetivo de criar suspense ao telespectador. Sobre estes elementos
característicos do expressionismo alemão, Lira comenta que nas obras mais
conhecidas deste movimento a fotografia dos filmes não é fiel ao realismo,
pois caminha em direção à “[...] exacerbação da distorção da arquitetura dos
cenários, dos objetos de cena, da maquiagem e do figurino dos personagens,
além da atuação dos atores que passa ao largo de uma interpretação
naturalista” (LIRA, 2008, p. 154).
Ainda no contexto da luz e da sombra, o tratamento dado ao cinema
expressionista alemão é relido em “Amorteamo” com similaridades a filmes
como “Nosferatu” (1922), de Murnau, e “O Gabinete do Dr. Caligari” (1920),
de Weine. Tal como nestes ícones expressionistas, a sombra (para além de
uma função dramática) também exerce a função de “metáfora do
inconsciente”, ou seja, descreve muito o quão pavorosos podem ser os
personagens (NAZÁRIO, 1999, p. 165). Lira sintetiza esta reflexão ao
explicar que a sombra pode ser entendida como a: “[...] metáfora dos rincões
obscuros da alma humana, da sordidez e da maldade que potencialmente
podem emergir em determinadas situações ou em contextos propícios”
(LIRA, 2008, p. 250). Isso ocorre com Chico: ao voltar à vida, ele torna-se
vingativo e tortura todos os dias Aragão, sendo seu algoz nas madrugadas da
cadeia e levando-o à loucura. Este traço da personalidade de Chico é estranho
à Arlinda e isso também a assusta e entristece.
Outra possível leitura de intertextualidade está no cinema noir
americano. As referências, neste caso, se restringem a aspectos de cunho
estético-visual e não se estendem à temática narrativa dos crimes/suspenses
policiais. Um exemplo de intertexto é a presença da iluminação em chave
baixa (low key lighting), como forma de acentuar a dramaticidade e o
suspense de um ambiente. Estas cenas são, em sua maioria, cenas noturnas,
nas quais silhuetas, sombras em objetos e a baixa luz pelo rosto e corpo dão
às figuras humanas um clima sombrio e soturno (LIRA, 2008, p.256). Isto é
visível, por exemplo, nas cenas que retratam o sótão onde Arlinda é
enclausurada (mesmo espaço onde Aragão, já louco, irá viver
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posteriormente) e nas situações que se desenvolvem tendo o cemitério como
espaço principal de conflito (as esculturas tornam-se ainda mais medonhas
pela iluminação em chave baixa).
Outro ponto lido como citação ao noir está também na iluminação
e, assim como o expressionismo, toma a sombra como elemento de efeito. A
questão do duplo na iconografia noir traz o personagem junto de sua sombra
e não apenas a sua projeção pela luz (como no expressionismo alemão).
Porém, mais do que mero efeito visual, a presença do duplo potencializa o
clima assustador da situação e, por vezes, os sentimentos de dúvida,
contrariedades, raiva e indecisões que passam pela mente do personagem
prestes a realizar alguma ação. Malvina é um exemplo disso quando da morte
de sua mãe: a jovem, depois de esfaqueá-la, adentra o hospital, se espreita
pelo quarto, conversa com a mãe, a sufoca com pedaços do próprio vestido e
termina o que começou dando fortes facadas que espirram sangue pelo
ambiente (e “respingam” na sombra projetada junto à sua figura).
Há ainda outro exemplo de referência do noir no plano do
tratamento das imagens: a leitura da água como símbolo nictomórfico (isto
é, aquilo que tem ligação com a noite) - no caso, o rio e sua íntima relação
com a tragédia ou a morte.
A origem da simbologia hostil da água talvez tenha sua origem, segundo
Durand, na embarcação mortuária (“convite à viagem sem retorno” ou
ainda “como epifania da desgraça do tempo”) ou da associação primitiva
ao perigo das águas negras dos pântanos (DURAND, 2002 apud LIRA,
2008, p.257).
O rio é presença constante na narrativa de “Amorteamo”,
especialmente nas cenas noturnas. A ponte, que se entende ser sobre o rio
Capibaribe, é o cenário para a tragédia que é mais do que um simples clímax:
o suicídio de Malvina, se jogando do alto da ponte e morrendo afogada,
aponta uma primeira reviravolta no arco dramático da trama que se confirma
quando ela levanta-se de seu esquife para a vida. É ainda na ponte que
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Malvina ameaça jogar Lena para ser tragada pelas águas escuras e é nela que
a noiva-cadáver se lança, pela segunda vez desiludida.
Outra possibilidade desta leitura é quando Lena cai acidentalmente
da ponte e, depois de salvá-la, Gabriel e a jovem se beijam apaixonadamente
às margens do mangue. Mesmo tratando-se de uma cena romântica, o
simbolismo nictomórfico da água prenuncia a notícia que seria dada na cena
seguinte. Tal notícia é lida como uma “tragédia melodramática” na série: os
dois são irmãos e a possibilidade do incesto, ainda que falsa, horroriza os
personagens de tal modo que é este o gancho que finaliza o primeiro
episódio. Todas estas cenas citadas, em relação à água, se passam à noite.
Há ainda o uso da fumaça e névoa, como referência ao noir, que,
segundo Lira, potencializa – pelo uso do claro-escuro – o suspense, a dúvida,
a carga dramática e (em determinados momentos) o terror e o desespero
frente a situações-limite (LIRA, 2012, p. 171). Um exemplo disso ocorre,
novamente, na ponte envolta pela neblina e também em algumas cenas no
cemitério onde paira não apenas o clima fúnebre, mas a presença do grotesco
na figura de Zé Coveiro. A neblina cumpre uma função muito similar ao véu
que encobre, mas se deixa ver e transparecer, numa clara alusão ao mistério
e à ambiguidade versus clareza.
A utilização dos espelhos e janelas (a ideia do “quadro dentro do
quadro” apresentado no cinema (HIRSCH, 1981 apud LIRA, 2012, p. 252))
é vista tanto no expressionismo alemão quanto no cinema noir americano.
Nazário (1983, p. 26) destaca esta característica ao dizer que: “A importância
do espelho no cinema expressionista está em seu papel simbólico: é através
dele que o duplo e a morte vêm ao mundo”. O tema dos espelhos e janelas
(no que tange aos reflexos) compreende uma unidade estética ao cinema noir
(HIRSCH, 1981, apud LIRA, 2012, p.223) que implica tanto na visualidade,
quanto na construção da diegese narrativa, para além de um mero elemento
cênico ou decorativo.
Estes elementos são ressignificados em “Amorteamo” já nas cenas
iniciais com Arlinda cantando e o reflexo de Chico ao fundo e (de modo mais
próximo ao uso dado pelos movimentos cinematográficos citados) pode ser
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visto também momentos antes da noiva-cadáver voltar à loja do pai e ter seu
primeiro contato com Esmeralda (Fabiana Gugli), a mãe: o reflexo da mãe é
o que abre a cena, dando a perspectiva de sua moral duvidosa, instável e
ambígua na trama (uma mãe boa que vivia em busca da filha ou mãe sem
escrúpulos e gananciosa que vendeu a filha?).
Por fim, a presença da escada também compõe a iconografia
expressionista e noir. Ela é vista como o instrumento do suspense e da tensão
que envolve os personagens, como espaço de passagem e transição na vida
destes (NAZÁRIO, 1999, p. 165), levando-os, não raramente, à catástrofe ou
danação física, moral ou psicológica (LIRA, 2012, p. 252). Há duas cenas que
ilustram muito bem a escada com esta conotação: a primeira diz respeito ao
momento em que Chico é morto e Aragão arrasta furiosamente Arlinda pelas
escadas até o sótão: a punição que segue a traição da esposa vai sendo
delineada pela iluminação em chave baixa e a luz trêmula da chama da vela
na escada. A segunda cena é o momento de outra punição de Arlinda por
Aragão: ao saber que ela havia contado a verdade sobre a paternidade de
Gabriel, Aragão deixa a mulher no bordel. Lá ela é obrigada a deitar-se com
os clientes do prostíbulo e o primeiro cliente é Júlio, o amigo de Gabriel.
Subindo por uma escada em espiral, Arlinda mostra-se cabisbaixa e o jovem
vem em seguida, para a completa tristeza, vergonha e ojeriza da mulher.
Todos estes aspectos da intertextualidade são percebidos como
experimentação na série porque levam em conta vários
telespectadores/leitores de sua obra. Umberto Eco (1988, p. 37), ao falar do
leitor-modelo, explica que todo texto demanda a participação de seu
destinatário. Em outras palavras, o texto precisa de um leitor para que seja
atualizado, seja correlacionado entre a expressão e o código e também para
que o leitor preencha os espaços em branco e os não-ditos repletos na obra.
O texto sem o leitor é um "mecanismo preguiçoso" que necessita desta figura
para funcionar.
O autor também cunha a expressão “leitor de primeiro nível” e
“leitor de segundo nível” justamente para descrever este processo de fruição
da narrativa para além do que é mostrado na tela, ou seja, algo mais do que
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as impressões óbvias da trama apreendidas por um leitor não tão
familiarizado com as referências citadas durante o texto. Para o autor, o leitor
de segundo nível é sinônimo de leitor crítico e antônimo de leitor ingênuo
(ECO, 1989, p.129).
Todavia, mesmo que a série ofereça uma história acessível e
prazerosa aos leitores de primeiro nível, ela não priva os leitores de segundo
nível (e de níveis subsequentes) de criarem uma teia de correlações entre o
que é mostrado com o arcabouço cultural e os conhecimentos prévios deste
telespectador/leitor que frui o produto de maneira distinta. Sua fruição se
passa pela busca destes elementos intertextuais, por comparações com outras
obras, artes e linguagens, além da preocupação com características próprias
ao gênero como a coerência e a coesão interna (seja pela relação intra e
intercapitular ou do arco dramático completo dos cinco capítulos). Dessa
forma, esta possibilidade de apreensão que se apresenta como um espaço
profícuo de interpretações ao leitor de segundo nível também é uma clara
mostra do alto nível de experimentação narrativa e estético-visual da trama.
Considerações Finais
Depois de apresentados os intertextos em sua forma e conteúdo na
obra em questão, resta uma pergunta: afinal, qual o papel da
intertextualidade na produção de sentido da série? A reposta para tal
questionamento inicia-se com a ressalva de que os estudos sobre os processos
de produção de sentido, mesmo que muitas vezes imaginados como tal, não
são um marco teórico exclusivo da Linguística ou dos Estudos Literários, mas
podem ser investigados e observados a partir de empirias de outros campos
com os das Ciências da Comunicação e, por conseguinte, da linguagem e
estética audiovisuais. Tal afirmação é embasada pela fala precisa de Brait
(2005, p.88), ao comentar que para além do recorte matricial linguísticoliterário, as buscas “das formas de construção e instauração do sentido”
também podem ser perpassadas por “um conjunto de dimensões
entretecidas e ainda não inteiramente decifradas”, espaços ainda não
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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investigados nos quais os processos de produção de sentido podem estar em
qualquer discurso, gênero, campo ou outro referencial teórico fundante.
Justamente por isso, redobrou-se aqui o cuidado ao tensionar tais
conceitos e reflexões com foco nos discursos e mensagens apresentados na
ficção televisiva, mas também se consegue entender que a procura ensejada
pelos intertextos tem amparo em visões outras que procuram “explorar a
idéia e centrar a discussão de que a linguagem não é falada no vazio, mas
numa situação histórica e social concreta, no momento e no lugar da
atualização do enunciado” (BRAIT, 2005, p 88). Por isso, o papel da
intertextualidade reside na necessidade de observação da instância
articuladora e relacional que não permite observar a série “Amorteamo” de
forma descolada da história, do tempo particular e do lugar de geração do
seu enunciado. A intertextualidade e a produção de sentido estão
intimamente ligadas na série sob a ótica da importância que a sequência de
envolvimentos intersubjetivos tem ao se ligar e se tocar àquele enunciado
produzido, distribuído e exibido em lógicas próprias e em gramáticas
específicas da televisão – especialmente numa série de caráter inovativo e
experimental exibida na faixa das 23h.
Nestes termos, pensar a produção de sentido em Bakhtin (1988)
revela uma visão interessada em desvendar de que maneira a palavra pode
ser significada em sua plenitude, diferenciando, neste processo, as noções de
tema e de significação. Assim, teríamos a concepção de que um sentido
definido e também único (uma significação unitária) é uma propriedade que
está a cargo de cada enunciação como um todo.
Posto isso, é possível notar que o tema da enunciação é na verdade,
assim como a própria enunciação, individual e não reiterável, isto é, ele se
apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta, contextual e
não-universalizante que deu origem à enunciação (BAKHTIN, 1988, p. 128).
Os enunciados e as enunciações dos intertextos encontrados (e advindos do
cinema) são claramente envoltos por condições de linguagem marcadamente
diversas e imbuídos de vozes sociais (a heteroglossia) que os conformam
como são. Dessa maneira, a produção de sentidos é negociada por meios de
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outros discursos que se retroalimentam e, por conseguinte, produzem novas
relações e tramas de sentido num contínuo reenvio de significados entre um
texto presente e um texto referido – a priori, ausente na superfície da
tessitura, mas que se materializa e emerge por entre as tênues fronteiras deste
novo discurso a cada vez que ele é ressignificado.
Referências
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Produção audiovisual na edição do ZH Noite
Juliana Colussi – UEPG
Introdução
A convergência tecnológica que supõe um desafio para os meios de
comunicação (SALAVERRÍA; GARCÍA ÁVILES, 2008), assim como o
consumo de conteúdo jornalístico multiplataforma que se mostra como uma
tendência na era pós-computador (AGUADO, 2013) e os produtos nativos
para dispositivos móveis próprios da quinta geração do jornalismo em redes
digitais (BARBOSA, 2013) são os eixos teóricos que sustentam a
fundamentação deste trabalho.
O ZH Noite, nosso objeto de estudo, está inserido neste cenário de
convergência midiática e do mobile journalism. Ao se referir a um material
produzido originalmente para tablets e smartphones, enquadra-se entre os
produtos nativos para essas plataformas móveis.
É objetivo do presente estudo analisar as edições do ZH Noite para
averiguar qualitativamente e quantitativamente os vídeos inseridos no
vespertino. Portanto, fez-se necessário observar as páginas de cada uma das
edições analisadas para elaborar uma ficha de análise, conforme os
procedimentos metodológicos descritos posteriormente.
Consumo multiplataforma e jornalismo móvel
O Digital News Report 2015 50, elaborado pelo Instituto Reuters,
ratifica uma tendência que o Financial Times e o The Guardian começaram
50 O relatório está disponível em: http://www.digitalnewsreport.org/survey/2015/the-growth-of-screensand-new-platforms-2015/.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
a identificar em 2011: o aumento do uso de dispositivos móveis para o
consumo de notícias. Neste informe, apresenta-se um estudo que inclui
dados de países europeus, Japão, EUA e Brasil, no qual editores relatam que
a maioria do tráfego de suas webs vem de dispositivos móveis. O computador
continua sendo o dispositivo mais importante para notícias online, não
obstante, para muitos, isso agora se complementa com o uso intenso de
smartphones e tablets. O maior uso desses aparelhos tem aumentado
significativamente a quantidade de consumo cross dispositivo. Na amostra
analisada pelo instituto, quase a metade dos usuários utilizam dois
dispositivos digitais para acessar notícias. Em 2013, a cifra correspondia a um
terço, o que significa um aumento de 17% em dois anos.
É pertinente salientar que o crescente consumo multiplataforma
ocorre principalmente entre o público mais jovem, quem mais utiliza o
celular para acessar notícias. Devido ao custo elevado do tablet e o tamanho
maior da tela, a pesquisa revela que o dispositivo se torna mais popular entre
os mais velhos. Este cenário remete a uma era pós-PC (AGUADO, 2013) e
ubíqua, graças à lógica de conexões em rede (CASTELLS, 1999).
O consumo multiplataforma está relacionado diretamente à
convergência midiática, que supõe adaptações significativas ao jornalismo.
Para Salaverría e García Áviles (2008), o jornalismo está submetido a
diferentes tipos de convergência, a começar pela convergência tecnológica.
As empresas jornalísticas, que antes do desenvolvimento da web comercial a
meados dos anos 90 se destacavam por ter um meio de comunicação ou área
de referência, passam a atuar em diversas áreas da comunicação.
Concomitantemente, as estruturas de produção dessas companhias também
são influenciadas pelos processos de convergência. As redações de impresso,
rádio, televisão e internet que antes, por exemplo, funcionavam
separadamente, cedem espaço a redações integradas (SALAVERRÍA, 2008),
onde se experimentam novos modelos de negócio (FLORES VIVAR, 2014)
que incluem, por exemplo, assinaturas digitais com produtos autóctones
para dispositivos móveis.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Na primeira fase de conteúdos jornalísticos para dispositivos
móveis, os meios se dedicaram a realizar a transposição de conteúdos da web
para as plataformas móveis. Jornais passaram a transpor as publicações da
web para o app. Essa foi a constatação de alguns estudos sobre apps de meios
de comunicação (CUNHA, 2011; BELOCHIO, 2012; CONDE, 2013). Em
uma pesquisa em que comparou o conteúdo do app com as publicações do
site do El País em junho de 2012, Conde (2013, p. 115) afirma que "os textos,
elementos multimídia e hiperligações são praticamente idênticos na web e
no aplicativo". A autora também verificou uma supressão na quantidade de
fotografias e links no conteúdo publicado pelo jornal no iPad, em relação à
publicação na web.
Ao monitorar sites e aplicativos criados para smarphones e tablets
de veículos de comunicação de EUA, Europa, China e Brasil entre 2008 e
2011, Canavilhas e Santana (2011) revelam que os conteúdos naquele
período continuavam a ser meras transposições da oferta existente nos meios
tradicionais, num modelo de semelhante ao que ocorreu com o
webjornalismo.
Apesar de constatar uma melhoria geral, registrada entre 2009 e
2011, as plataformas móveis naquele momento possuíam, segundo os
autores, características técnicas ainda pouco exploradas, que permitem
oferecer tipos realmente novos de produtos informativos. A evolução
verificada no período foi lenta e não condizente com a atual velocidade do
progresso tecnológico.
Os primeiros produtos jornalísticos voltados para dispositivos
móveis e a produção multiplataforma surgem durante o período que Barbosa
(2013) denomina como quarta geração do jornalismo em redes digitais.
Nesta primeira fase surgiu, conforme relata Fernando Firmino da Silva
(2015), um dos casos emblemáticos no Brasil lançado pelo jornal Extra, por
meio do projeto "Repórter 3G", com início em 2009, e atualmente com o
"Repórter 4G", além do uso do WhatsApp para o recebimento de material
com teor jornalístico. Os profissionais recebiam um kit móvel para produzir
e enviar notícias através de smartphones. O Extra foi o primeiro veículo do
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
país a utilizar o recurso a partir de junho de 2013. Posteriormente, outros
meios os adotaram, como Folha de S. Paulo, A Tarde e Correio (de
Salvador), O Povo (de Fortaleza), Band (Rio de Janeiro).
As potencialidades, que emergiram a partir das tecnologias da mobilidade,
com as transformações e apropriações as mais diversas, demonstraram a
relação indissociável entre jornalismo e mobilidade apontando para
reconfigurações da prática jornalística e, ao mesmo tempo, revelando
algumas controvérsias no campo da comunicação diante das funções e
vivências oriundas dessas processualidades (FIRMINO DA SILVA, 2015,
p. 39).
Atualmente estamos diante da quinta geração do jornalismo em
redes digitais que representa, neste contexto, as mídias móveis,
especialmente smartphones e tablets, como dispositivos que reconfiguram
os processos de produção, edição e distribuição - que também inclui a
circulação e a recirculação do conteúdo -, além do consumo e a recepção de
produtos jornalísticos em multiplataformas (BARBOSA, 2013). Os
dispositivos móveis são também propulsores de um ciclo de inovação, no
qual surgem os aplicativos jornalísticos autóctones para aparelhos móveis um produto nativo com material exclusivo e adaptado às especificidades dos
aparelhos (BARBOSA, FIRMINO DA SILVA, NOGUEIRA, 2012).
Do hibridismo aos apps jornalísticos autóctones para tablets
Depois da primeira fase do mobile journalism, em que a maior parte
do conteúdo era transposta para os tablets, surgem os aplicativos híbridos.
Trata-se de um modelo de app que reúne, por exemplo, material da edição
impressa em PDF e da web, ou notícias de última hora, com atualização
automática. Por outro lado, caracteriza-se por explorar algumas
funcionalidades do tablet, como o uso de geolocalização para a oferta de
conteúdos próximos (CUNHA, 2015). É uma fase de desenvolvimento
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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intermediário, entre o transpositivo e o autóctone. Diferenciam-se dos apps
autóctones por não oferecem um produto jornalístico nativo para a mídia
móvel.
Tendo em conta que os meios de comunicação participam de um
processo no qual estão testando diferentes modelos de negócio, sobretudo
após a introdução de produtos informativos para dispositivos móveis
(CEBRIÁN; FLORES, 2012), os apps híbridos e nativos se tornam uma das
grandes apostas dos jornais.
É através dos apps autóctones que se distribuem produtos
jornalísticos desenvolvidos originalmente para tablets. A exploração das
especificidades do dispositivo, como a tactilidade (PALACIOS, CUNHA,
2012), a geolocalização e a personalização, aparece como o principal objetivo
deste tipo de aplicativo. Um diferencial é que conta com equipes exclusivas,
que investem na linguagem multimídia e práticas de produção e modelos de
negócios específicos (PALACIOS, BARBOSA, FIRMINO, CUNHA, 2014).
As edições vespertinas para tablet, como os extintos O Globo a Mais e Folha
10, além do Estadão Noite, são publicados de segunda a sexta-feira seguindo
essa dinâmica de produção. A mais recente aposta é do jornal Zero Hora,
que lançou em dezembro de 2015 o ZH Noite - o objeto de estudo deste
trabalho.
De acordo com um estudo recente realizado por Salaverría (2015),
meios de referência dos Estados Unidos e Europa estão investindo em
laboratórios de inovação tecnológica, em que um dos objetivos é desenvolver
aplicativos e criar novas narrativas para dispositivos móveis. Como destaca
Barbosa (2013),
O potencial de diferenciação para esses produtos paradigmáticos estará
nas novas formas de roteirização para as produções jornalísticas, nos
recursos empregados para a constituição de narrativas originais, na busca
por explorar uma maior integração entre os formatos utilizados, no
desenvolvimento da hipertextualidade, da multimidialidade - não
meramente justaposta, mas integrada -, da interatividade (Díaz Noci,
2010) e, ainda, da tactilidade. Como referem Palacios e Cunha (2012,
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
p.17), "é de se esperar uma mais imediata aplicação da tactilidade na área
dos newsgames", por exemplo, com transposição dos progressos da
tactilidade na área dos games em geral para o formato específico dos
newsgames disponibilizados em aplicativos jornalísticos (BARBOSA,
2013, p. 46)
Considerando que a multimidialidade é um dos atributos que
compõem as edições autóctones para tablets, os diferentes tipos de vídeos tradicional, panorâmico, gravado com o auxílio da computação gráfica ou
com o celular - formam parte deste novo produto paradigmático.
ZN Noite
Com quatro meses de existência, o ZH Noite é um investimento
recente do Zero Hora em um produto jornalístico autóctone para tablets.
Trata-se de uma edição vespertina que, assim como as demais publicações
similares que estão no mercado, circula de segunda a sexta-feira.
Cada edição do ZH Noite é composta por dez páginas. Para ter
acesso ao produto, é necessário ser assinante da edição digital do Zero Hora.
Conectado ao seu perfil no app ZH Jornal Digital, o usuário faz o download
da edição do dia, ou de anteriores, para depois consumir o conteúdo. Não
obstante, como se refere a um produto com links inseridos, é preciso estar
conectado a uma rede wifi, sobretudo, para assistir a vídeos e ampliar
informações que estão no site do jornal.
Objetivos e metodologia
Neste trabalho, analisa-se a produção audiovisual na edição do ZH
Noite, um produto autóctone para tablet recém-lançado no mercado
editorial. A análise pretende identificar se as potencialidades do dispositivo
móvel, como o acelerômetro e a tactilidade, são consideradas durante a
produção audiovisual. O intuito é verificar se o produto jornalístico
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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específico para tablet, que promete ser interativo e dinâmico, oferece vídeos
panorâmicos ou algum tipo de conteúdo imersivo.
A amostra da análise é composta de uma seleção de cinco edições do
ZH Noite, referente às publicações da primeira semana de 2016, que
corresponde às edições publicadas entre 4 e 8 de janeiro - considerando que
a periodicidade da edição vespertina é de segunda a sexta-feira.
Para a realização deste estudo, construiu-se uma metodologia
híbrida em que se faz uma combinação de técnicas de pesquisa, já que se trata
de um objeto de estudo novo e interdisciplinar. Após a seleção da amostra,
realizou-se a observação sistemática de cada edição para delimitar as
categorias e subcategorias de análise. Tendo em conta as diferentes
especificidades do tablet enquanto plataforma e também do próprio produto
jornalístico, optou-se pela aplicação da análise de conteúdo web (HERRING,
2010) graças a sua amplitude, que engloba desde aspectos referentes à
interatividade como da participação da audiência.
A delimitação das categorias da análise de conteúdo web considerou,
além da produção audiovisual que forma parte do produto jornalístico, as
especificidades do dispositivo móvel, como o acelerômetro e a tactilidade.
Portanto, definiram-se as seguintes categorias e subcategorias de análise:
1. Número de vídeos: trata-se de verificar quantos vídeos foram
produzidos por edição.
2. Tipo de vídeo: o objetivo é identificar a inserção de vídeo
tradicional, gravado com smartphone ou por uma câmera de
segurança, com o auxílio de computação gráfica ou panorâmico.
3. Origem do vídeo: interessa-nos saber a origem do vídeo inserido na
edição vespertina. Refere-se a uma produção do Zero Hora, foi
produzido por outros meios de comunicação ou agências de notícias,
fornecido por terceiros ou se trata de um link a uma produção
audiovisual publicada no Youtube.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
4. Tema dos vídeos: buscou-se estabelecer uma relacionação entre o
tipo e a origem dos vídeos com as temáticas abordadas pelos
materiais audiovisuais.
5. Número de áudios: esta categoria visa contabilizar o material em
áudio incluído nas edições analisadas.
Características da produção audiovisual no ZH Noite
Os recursos audiovisuais que compõem a narrativa do ZH Noite
totalizam uma média de 14 vídeos e apenas um áudio por edição (tabela 1).
O usuário identifica facilmente ambos os tipos de recursos, já que estão
representados por ícones, como o de uma câmera de vídeo e o de um altofalante de dispositivos móveis. Os vídeos se concentram, sobretudo, nas duas
páginas do 2° Caderno, dedicadas a matérias e notas informativas sobre
cultura - música, cinema, arte - receitas e os conteúdos que são destaques na
internet.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Figura 1 - Capa do ZH Noite de 6 de janeiro de 2016
Tanto a capa quanto a última página costumam ter um vídeo. No
primeiro, um jornalista do Zero Hora apresenta, na própria redação, sua
opinião sobre o tema da manchete (ver figura 1). No último vídeo do
vespertino, algum profissional do diário faz um resumo dos destaques da
edição do impresso do dia seguinte. Vale ressaltar que nem sempre é o
mesmo profissional que apresenta os vídeos. Conforme constatação há um
rodízio entre os jornalistas que trabalham na redação do diário.
Tabela 1 - Total de recursos audiovisuais no ZH Noite
Recursos /Edições ZH Noite
4/1 5/1
6/1 7/1
8/1
Vídeo
11 17
15 13
14
Áudio
- 3
11
-
Média
14
1
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Fonte: elaborado pela autora.
Entre os tipos de vídeos encontrados nas edições analisadas, a
maioria quase absoluta é o tradicional. Embora a amostra deste estudo inclua
apenas cinco edições do vespertino, podemos ter uma ideia do predomínio
da produção tradicional em comparação com outros tipos de vídeos (tabela
2). Dos 70 vídeos publicados nas edições da semana da análise, apenas oito
vídeos correspondem a outros tipos, como os gravados com dispositivo
móvel, por uma câmera de segurança ou feitos com auxílio da computação
gráfica. Não se identificou a inserção de vídeos panorâmicos que, por
exemplo, é um recurso que contribuiria para a exploração das especificidades
dos tablets.
Por outro lado, destaca-se a inclusão de quatro vídeos produzidos
por repórteres em campo com o uso de smartphones - uma tendência do
mobile journalism que começou no Brasil em 2009. Os temas gravados pelos
jornalistas costumam ser da editoria de esporte, como treinos do Inter. O
vídeo produzido com o auxílio da computação gráfica é interessante em
função do design, que simula uma situação real, neste caso, a reconstrução
do ataque terrorista ao semanário francês Charlie Hebdo, ocorrido no início
de 2015.
Tabela 2 - Tipos de vídeos inseridos no ZH Noite
Tipos de vídeo /Edições ZH Noite
4/1
5/1
6/1
Tradicional
10
15
13
Feito com celular
1
1
1
Computação gráfica
1
Câmera de segurança
1
Panorâmico
Total de vídeos
11
17
15
Fonte: elaborado pe a autora.
7/1
11
2
13
8/1
13
1
14
A tabela 3 mostra a origem do material audiovisual utilizado na
composição das edições analisadas. Não nos surpreende constatar que o
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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maior número de vídeos corresponde à inserção de material publicado no
Youtube, com uma média de 6,4 vídeos por publicação. A seção de cultura
do vespertino - Caderno 2 - com duas páginas concentra grande parte dos
vídeos originados do Youtube. São principalmente trailers de filmes,
lançamento de clipes e animações.
Em segundo lugar, encontram-se as produções audiovisuais do Zero
Hora, as quais incluem vídeos opinativos e notas informativas gravadas por
jornalistas do diário. Na média, 4,8 vídeos de produção própria compõem as
páginas de cada edição. Neste caso, o material é produzido com a redação ao
fundo. A maioria se refere a vídeos de opinião. O único informativo é o vídeo
que finaliza o vespertino, com um adiantamento das principais notícias que
serão publicadas no impresso do dia seguinte. Entre o material audiovisual
de produção própria, constatou-se a presença de vídeos produzidos pelos
repórteres em campo, como citado anteriormente.
Tabela 3 - Origem dos vídeos publicados no ZH Noite
Origem do vídeo/ Edições ZH Noite
4/1 5/1
Youtube
6
8 4
8
ZH
4
5 7
3
Agência de notícias
3 2
2
Outros
1
1 1
Instituições
- 1
Fonte: elaborado pela autora.
8
5
1
-
Média
6,4
4,8
1,4
0,8
0,2
Destaca-se ainda a inserção de reportagens audiovisuais realizadas
por agências de notícias. Nas edições analisadas, identificou-se um total de
sete matérias da AFP. Esse recurso é utilizado para informar sobre
acontecimentos internacionais, cujo conteúdo audiovisual o jornal não é
capaz de produzir por conta própria. Em menores proporções, encontramse os vídeos disponibilizados por instituições como a Polícia Militar, e outros
enviados por cidadãos ou que se originam de câmeras de segurança.
Por último, vale sinalizar a pouca frequência com que se insere áudio
nas edições analisadas, uma média de um por produto. Esse recurso foi
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
utilizado principalmente para gravar depoimento de fontes que
testemunharam ou foram vítimas de algum ato violento e também para a
transmissão de jogos de futebol.
Considerações finais
Embora o ZH Noite inclua, por exemplo, vídeos produzidos por
repórteres mediante o uso de smartphone, a maioria da produção
audiovisual se caracteriza por ser tradicional. Sendo assim, a experiência do
usuário de dispositivos móveis é restrita ao consumir esse conteúdo, já que
não existe a possibilidade de explorar as especificidades do tablet durante a
experiência. A aposta em novos formatos narrativos é um dos atributos
principais das edições autóctones para este tipo de dispositivo (BARBOSA,
2013, CUNHA, 2015).
Ao cumprir os objetivos traçados inicialmente, confirma-se a
ausência de material audiovisual que possibilite uma experiência mais
dinâmica e de imersão, como ocorre no consumo de vídeos panorâmicos ou
naqueles que se baseiam nas técnicas de realidade virtual, como é o caso do
app NY VR do The New York Time, lançado no final de 2015.
Dessa forma, o ZN Noite ainda precisa avançar na aplicação mais
imediata da tactilidade, como destaca Barbosa (2013), no sentido de transpor
os progressos da tactilidade na área dos games para os newsgames - um
formato apropriado às especificidades dos dispositivos móveis, além de
investir na produção de vídeos panorâmicos.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Quadrinhos Rasos: Transposições de narrativas
musicais em HQ na WEB
Laan Mendes de Barros – UNESP
Introdução
Retomo neste trabalho estudos que tenho desenvolvido sobre
experiência estética na cultura midiatizada contemporânea, com especial
atenção às transposições e articulações entre música e história em
quadrinhos. Dois deles foram publicados recentemente: Canções em
Quadrinhos na Web: experiências poético-estéticas que mesclam canções e
HQ, publicado na revista Razón y Palabra (BARROS, 2015); e Hibridações
estéticas midiatizadas: diálogos entre música e quadrinhos, publicado na
revista Comunicação, Mídia e Consumo (BARROS, 2013). Retomo, também,
trabalho apresentado no seminário MusiCom 2015 (artigo inédito). Aqui,
como naqueles textos, a discussão se dá nos contornos das relações entre
Comunicação e Experiência Estética. Nesta ocasião, incorporo reflexões
sobre "produção e reconhecimento" nas relações interdiscursivas, propostas
por Eliseo Verón, conceito usado quando uma formação discursiva -termo
proposto por Foucault (1997) em Arqueologia do Saber - apresenta elementos
de outras formações discursivas. Trago, também, reflexões sobre "narrativas
transmídia", proposta por Henry Jenkins, em Cultura da Convergência, para
identificar a natureza híbrida das narrativas midiáticas contemporâneas,
presentes no contexto da cibercultura.
Os processos de produção, circulação e consumo audiovisual na
sociedade interconectada contemporânea são marcados por uma "cultura de
convergência", que envolve questões tecnológicas, estéticas, políticas e
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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culturais propriamente ditas, que redirecionam a construção de novas
identidades e sociabilidades.
O ciberespaço, constituído pela interconexão digital própria da Web,
redimensiona as relações humanas e as próprias percepções de tempo e
espaço, que experimentam novas e transitórias escalas decorrentes das
tecnologias com as quais nos cercamos. Aliás, isso já havíamos aprendido
com Milton Santos, em Técnica, espaço, tempo e em Por uma outra
globalização. No ciberespaço os territórios se transformam, tornam-se
fluídos, híbridos. "Tudo se desterritorializa. Coisas, gentes e ideias, assim
como palavras, gestos, sons imagens, tudo se desloca pelo espaço, atravessa a
duração, revelando-se flutuante, itinerante, volante" (Ianni. 1996, p.169).
Dentre esses processos de desterritorialização, os próprios contornos
de cada meio de comunicação e de cada linguagem são transpostos, são
superados. Os discursos se sobrepõem a outros discursos, em relações
interdiscursivas. Ou seja, certas formações discursivas incorporam
elementos de outras formações discursivas. Ou mesmo, essas formações se
deslocam no espaço - no território -e transitam por onde transitavam outros
discursos, outras poéticas. As narrativas transitam entre mídias, no que
Henry Jenkins denomina de "narrativas transmídia". Um processo de
convergência cultural, tecnológica e discursiva.
Chama a atenção, no entanto, que no universo da própria Web
surgem movimentos de reterritorialização, de constituição de novos
territórios, agora mais complexos e marcados por hibridações, por
sobreposições de fronteiras, por localizações em espaços de intersecção.
Territórios híbridos e dinâmicos, que não ficam congelados no tempo, mas
que se reinventam a cada nova experiência estética.
A cultura midiatizada se apresenta de forma menos
institucionalizada, tem um caráter mais de movimento. O fluxo de
informações e de produção simbólica se dá numa lógica de movimento, ou
movimentos. Trata-se de um ambiente plural, que abriga expressões
culturais das mais variáveis, como observa Castells,
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A característica mais importante da multimídia é que ela capta em seu
domínio a maioria das expressões culturais em toda a sua diversidade. Seu
advento é equivalente ao fim da separação e até da distinção entre mídia
audiovisual e mídia impressa, cultura popular e cultura erudita,
entretenimento e informação, educação e persuasão. Todas as expressões
culturais, da pior à melhor, da mais elitista à mais popular, vêm juntas
nesse universo digital que liga, em um supertexto histórico gigantesco, as
manifestações passadas, presentes e futuras da mente comunicativa. Com
isso elas constroem um novo ambiente simbólico. Fazem da virtualidade
nossa realidade. (CASTELLS, 2006, p. 458)
Esse novo cenário multimidiático e intercultural se torna ambiente
propício a novas dinâmicas de produção e consumo cultural. Lugar
experiências poéticas e estéticas de natureza plural e aberta, com
possibilidades de processos colaborativos e contínuos, na qual a produção de
sentidos se dá em uma "circulação diferida e difusa", como define José Luiz
Braga, ao falar da sociedade em midiatização.
É justamente nesse âmbito de experiências estéticas em movimento
que identificamos o caso dos Quadrinhos Rasos, que se apresentam em
processos criativos e interpretativos que se transformam, em constantes
reinvenções, recriações. São poéticas, experenciadas em estéticas e
convertidas em novas poéticas. São transposições de discursos e linguagens,
como no caso das interdiscursividades entre música e história em
quadrinhos.
Interdiscursividade e narrativas transmídia
Segundo Eliseo Verón (2004, p. 69), "os discursos sociais são sempre
produzidos (e recebidos) dentro de uma rede extremamente complexa de
interdeterminações". Assim, segundo ele, "a noção de relações
interdiscursivas é essencial em todos os níveis do funcionamento do sistema
produtivo do sentido. Tanto entre as condições de produção quanto entre as
de reconhecimento de um discurso, há outros discursos". Para ele (idem,
p.70) a produção e o reconhecimento são como "pólos" do sistema produtivo
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e "implicam, ambos, redes de relações interdiscursivas", o que nos leva a
reconhecer a interdiscursividade "como uma das condições fundamentais de
funcionamento dos discursos sociais". Afinal, diz ele, "como um texto é o
lugar de convergência de uma multiplicidade de sistemas de determinações,
ele sempre admite uma pluralidade de leituras" (idem, p.70).
Essas interdeterminações estão presentes em diferentes esferas da
cultura contemporânea. Ocorrem no contexto acadêmico-científico, no
contexto político e econômico, no contexto comunicacional e artístico.
Modulam e orientam dinâmicas de "produção e reconhecimento" dos
processos discursivos, que resultam na produção de sentidos para além do
texto, que resultam em "relações interdiscursivas" experenciadas nos
contextos socioculturais em que estão inseridos autores e espectadores
(produtores e receptores). E esses processos são ainda potencializados no
contexto da sociedade interconectada em rede, na qual sistemas de produção
e circulação de conteúdos se apoiam em recursos de mobilidade e
interatividade, que permitem novas lógicas de criação e fruição, mais
dinâmicas e colaborativas. Nessa sociedade midiatizada crescem
experiências estéticas em movimento, que se deslocam no tempo e no espaço
social, em constante reinvenção. Nesse jogo entre produção e
reconhecimento, entre poética e estética a interdiscursividade se dá em
polifonias e polissemias, que se desdobram em novas experiências estéticas,
em novas interações sociais, plenas de mediações culturais.
Vivemos tempos de interconexão midiática e hibridação tecnológica
e cultural, que implicam na diluição das fronteiras entre produção e consumo
de bens simbólicos, entre emissão e recepção de mensagens. Os processos de
comunicação agora se dão em redes que interligam tecnologias e seres
humanos, que articulam informação e entretenimento, que integram e
sofisticam os meios de comunicação interpessoal, grupal e de massa. As
escalas de tempo e espaço são redimensionadas nesse novo cenário. As
distâncias geográficas e fronteiras são transpostas em ações de comunicação
e interação. A sociedade interconectada é lugar de "prática de comunicação
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interativa, recíproca, comunitária e intercomunitária" como nos propõe
Pierre Lévy (1999, p. 126).
Vivemos tempos de "culturas híbridas" como nos sugere Néstor
Garcia Canclini (2008), em um contexto de "convergência cultural", como
define Henry Jenkins (2009), no qual a cultura se apresenta de forma menos
institucionalizada, no qual ela tem um caráter mais de movimento. Na
sociedade interconectada cresce a mescla de linguagens e suportes e a
natureza plural dos processos criativos, marcados por dinâmicas de
colaboração e sobreposição de autoria. Para
Lúcia Santaella os meios digitais constituem um "sistema simbólico
multimodal que designa a diversidade de formas de circulação dos
enunciados ao empregar a linguagem verbal, visual e sonora e compor um
novo código marcado pela hibridização e pela multissemiose"
(SANTAELLA, 2007, p. 21). Essa cultura de convergências potencializa as
relações de troca, de intercâmbio, de interdiscursividade. Trata-se, portanto,
de um ambiente plural, amplo em diversidade, que facilita a transposição de
linguagens e fronteiras culturais.
Vera Lúcia Figueiredo (2010) vai falar de "narrativas migrantes", ao
analisar adaptações te textos literários em produções cinematográficas. De
fato, mais que hibridações tecnológicas, ou de processos multimídia, o que
se observa em experiências estéticas contemporâneas são transversalidades
de representações e apropriações em constante movimento. Narrativas
migrantes. Bem lhe cabe, portanto, a denominação de narrativas transmídia,
ou transmidiáticas, como sugere Jenkins. Não é esta mais aquela. Mas, algo
novo, resultante da hibridação de linguagens e tecnologias, que resultam em
interdiscursividades.
Jenkins (2009, p.138) explica que "uma história transmídia desenrola
-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto
contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo". Portanto, no amplo
e difuso sistema da Web vivenciamos um grande hipertexto, repleto de novos
links. Textos, imagens e sons que se misturam, que se complementam, ou se
conflitam. Uma imensa bricolagem, em constante reinvenção. Sentidos que
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se reelaboram em cada nova leitura, em cada nova experiência estética, que
se transforma em experiência poética. Um tempo em que tudo de "sampleia".
Jenkins (2009, p.138) detalha sua ideia:
Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor
- a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida
pela televisão, romance e quadrinhos; seu universo possa ser explorado
em games ou experimentado como atração de um parque de diversões.
É, pois, nesse contexto de interdiscursividade nos processos de
produção e reconhecimento dos sentidos, que as narrativas transmídia se
revelam como manifestação comunicacional contemporânea. Mais que a
interatividade, proporcionada pelas tecnologias digitais e pela interconexão,
a produção de sentidos se dá em relações de interação, em constante
movimento. Mais que o entendimento do que o autor quis nos transmitir, a
percepção estética deve ser pensada na lógica da compreensão, na qual a
interpretação é sempre experiência de apropriação, que se opera na esfera
semântico-pragmática da produção de sentidos.
Quadrinhos Rasos: Quadrinhos feitos a partir de músicas
As ideias de interdiscursividade e de narrativas transmídia nas
articulações entre música e história em quadrinhos podem ser aplicadas em
várias experiências estéticas contemporâneas presentes na Web.
Criado por dois quadrinistas mineiros, amantes declarados da
canção popular brasileira, Luís Felipe Garrocho e Eduardo Damasceno, o
blog Quadrinhos Rasos traz releituras de canções bem conhecidas em
formato de HQ. 160 canções dos mais variados gêneros foram transformadas
em quadrinhos ao longo de quatro anos (de setembro de 2010 a setembro de
2014) pelos dois artistas e por alguns convidados que vez ou outra
compareciam com suas interpretações. Mais de 80% delas integram o
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cancioneiro popular brasileiro. As demais são do universo pop internacional,
majoritariamente de bandas inglesas e estadunidenses.
O blog traz também o projeto Achados e Perdidos, no qual uma
história mais extensa (com 212 páginas) de Garrocho e Damasceno é
musicada por Bruno Ito. A história de um garoto que acorda com um buraco
negro na barriga teve seu primeiro capítulo lançado em 2012 e recebe
financiamento colaborativo, em sistema de crowdfunding, captado pelo site
Catarse.
As releituras de canções em formato de HQ feitas por Garrocho,
Damasceno e seus convidados se configuram em releituras, metáforas. São
interpretações livres, sem a preocupação de ilustrar o que está na narrativa
da canção. São narrativas transversais. Ora elas tomam o tema geral da
canção; ora, apenas um ou poucos versos, deslocando totalmente a narrativa
de seu contexto original. Em todos os casos os quadrinistas se afastam da
redundância da ilustração como reforço da canção. Na maioria das vezes
estabelece-se uma transgressão. Nalguns casos, temas leves e românticos são
dramatizados, com imagens pesadas, com problematizações sociais.
Noutros, temas densos, existenciais, são banalizados, caricaturizados, de
forma lúdica, irônica ou sarcástica, como que em paródias visuais. Surgem,
então, novas narrativas, construídas com outras linguagens, produzidas com
outras tecnologias, disponibilizadas em outros suportes midiáticos.
Narrativas que se abrem a novas leituras, novas interpretações e
experimentam repercussões, vez que as histórias publicadas no blog recebem
comentários e provocam discussões.
Inicialmente a dupla mineira usou a ideia de "tradução" de canções
em HQ como um jogo, em desafios. Um escolhia a canção que outro deveria
interpretar em arte sequencial, em história em quadrinhos. Tratava-se de um
espaço aberto à experimentação de técnicas e criação de roteiros e
personagens. A partir do segundo ano do blog outros desenhistas passaram
a enviar suas artes, suas releituras, tanto em relação a novas canções, como
em torno de canções já publicadas. Vejamos três exemplos:
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A canção Pescador de Ilusões é uma das peças reinterpretadas nos
Quadrinhos Rasos. Trata-se de um reggae de Marcelo Yuka, que se tornou
um dos maiores sucessos da banda O Rappa, que integra o disco Rappa
Mundi, de 1996, traz em seu título o mesmo adotado na versão brasileira do
filme The Fisher King, uma comédia dramática, dirigida por Terry Gilliam,
lançada em 1991. Curiosamente, os versos da canção de Yuka receberam
outra adaptação para os quadrinhos, que se tornou um livro publicado em
2013, pela Leya. Nestsa adaptação, o desenhista Wesley Rodrigues reconta a
história de um personagem correndo atrás de uma ilusão que somente ele vê,
num claro movimento de interdiscursividade, de narrativa transmídia.
O Rappa interpreta os versos de Marcelo Yuka, seu então baterista,
em tom enérgico, como que num protesto. Estrofes como "Se meus joelhos
não doessem mais / Diante de um bom motivo / Que me traga fé, que me
traga fé", ou "Se por alguns segundos eu observar / E só observar / A isca e o
anzol, a isca e o anzol / A isca e o anzol, a isca e o anzol / Ainda assim estarei
pronto pra comemorar / Se eu me tornar menos faminto / E curioso, e
curioso / O mar escuro, é, trará o medo lado a lado / Com os corais mais
coloridos", são entrecortados pelo refrão em tom esperançoso: "Valeu a pena,
ê ê / Valeu a pena, ê ê / Sou pescador de ilusões / Sou pescador de ilusões"
Na versão em HQ de Damasceno e Garrrocho, publicada nos
Quadrinhos Rasos em 2011, a canção Pescador de ilusões ganha um tom
irônico, ou mesmo jocoso. O contexto então criado traz o confronto entre
um indígena (um "pele vermelha" e um cavaleiro, em trajes de soldado
confederado, da Guerra de Secessão dos EUA. Uma clara referência ao
confronto desigual e agressivo entre colonizador e colonizado. Só que os
quadrinistas mineiros dão um tom brincalhão à sua narrativa. Optam por
um tom quase infantil, marcado por um 'bom humor", próprio das charges.
A crítica, bem presente na canção, se desloca para outro cenário geográfico e
histórico nos Quadrinhos Rasos.
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Imagem 1 - Quadrinhos Rasos - adaptação da canção Pescador de Ilusões, de Marcelo Yuka.
A vibrante canção Saideira, um ska de autoria de Rodrigo Leão e
Samuel Rosa, que se tornou um hit de sucesso da banda mineira Skank, foi
gravado no disco Siderado, de 1998. Trata-se, ao que tudo indica, de um
relato de uma Happy Hour entre amigos, que pedem ao garçom "Comandante! Capitão! Tio! Brother!
Camarada ! Chefia! Amigão!" - "Desce mais uma rodada". O ritmo
ligeiro e dançante sugere festa e alegria, descontração e felicidade.
Mas como se pode ver a seguir, os desenhistas dos Quadrinhos Rasos
tomaram uma direção mais dramática, quase tétrica, ao ambientarem a
narrativa a um contexto de guerra, de guerrilha. O cenário é de combate e
desolação. Embora a pegada humorística e satírica da dupla volte a
comparecer, agora em tom sarcástico.
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Imagem 2 - Quadrinhos Rasos - adaptação da canção Saideira, de Rodrigo Leão e Samuel Rosa.
Já o divertido Xote das Meninas, do grande Luiz Gonzaga, que relata
a transformação da menina em mulher, com suas cores nordestinas, ganhou
uma versão satírica, cheia de ironia, na versão em HQ de Damasceno e
Garrocho. O contexto original da canção, que faz uma analogia com o
cenário do agreste com o romantismo da adolescência é recortado. Os versos
"Mandacaru quando 'fulora' na seca / É o sinal que a chuva chega no sertão /
Toda menina que enjoa da boneca / É sinal que o amor já chegou no coração"
ficam no plano de fundo. A nova narrativa já parte da segunda estrofe da
canção:
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Imagem 3 - Quadrinhos Rasos - adaptação da canção Xote das Meninas, de Luiz Gonzaga.
Noutros casos, como na canção Pais e Filhos, um clássico da banda
brasiliense Legião Urbana, foram várias as histórias em quadrinhos criadas,
elaboradas com estilos, temporalidades e expressões particulares. Os versos
densos de Renato Russo - "Estátuas e cofres / E paredes pintadas / Ninguém
sabe o que aconteceu / Ela se jogou da janela do quinto andar / Nada é fácil
de entender" foram interpostos por outras narrativas.
Vários desenhistas foram convidados a apresentarem suas narrativas
transversais no blog Quadrinhos Rasos. Alguns assumiram uma visão mais
romântica e bucólica, intensificando a dimensão onírica da canção. Outros,
adoram uma postura mais lúdica, quase infantil. No caso reproduzido
abaixo, do convidado Felipe Nunes, o tom foi mais na linha da sátira.
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Imagem 4 - Quadrinhos Rasos - adaptação da canção Pais e Filhos, de Legião Urbana.
Como se pode ver, a leitura se faz de forma transgressora, como
sugere Wolfgang Iser em seus estudos sobre a "estética da recepção". Para ele
"o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é
esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo"
(ISER in: LIMA, 2002, p.107). Essa dupla operação de imaginar e interpretar
leva o leitor a construir novas formas e sentidos, a partir de seu contexto,
"transgredindo", como sugere Iser, as referências propostas no texto. No caso
dos Quadrinhos Rasos a transgressão se dá em relação ao texto das canções.
Não há, portanto, como estabelecer uma regulamentação para as
experiências de interpretação musical ou a percepção audiovisual. Cada um
se apropria das narrativas a partir de seu repertório e de mediações culturais
que demarcam seu tempo histórico e lugar social. Os movimentos de
reinterpretação observado nos Quadrinhos Rasos refletem bem a ideia de
experiência poética (uma canção) que se oferece a experiências estéticas (a
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percepção no tempo-espaço da fruição), que pode se transformar, uma vez
mais, em experiência estética (na dança, no texto, ou em forma de
quadrinhos). Assim se dá a produção de sentidos.
É preciso, portanto, pensar a experiência estética no tempo-espaço
sensível da percepção e não apenas no objeto estético. E essa percepção é mais
que entendimento ou explicação, normativo, burocrático; bem como, é mais
que contemplação passiva. Não. Ela alcança a sua plenitude no momento em
que se desdobra em nova produção. É a aisthesis convertida em poiesis e,
mesmo, em katharsis. Como nos ensina Mikel Drufrenne, o fenômeno da
experiência estética demanda o encontro especular entre objeto estético e
percepção estética. O espectador deve ser visto como sujeito, como um
"espectador emancipado", como nos sugere Jacques Rancière.
A experiência estética dos Quadrinhos Rasos é "obra aberta" (ECO,
1976) que se abre ao espectador internauta, para outras interpretações e
apropriações. Dentre tantos espectadores, um grupo de estudos que
organizamos na UNESP, voltado às interconexões entre Música e HQ,
realizou suas leituras dos Quadrinhos Rasos. Ouvimos boa parte das canções
reinterpretadas em imagens por Damasceno e Garrocho. Fizemos nossas
leituras e experiências estéticas no âmbito da percepção. Confrontamos
nossas interpretações e apropriações. Observamos como o exercício ativo e
criativo da percepção nos permite a compreensão de poéticas que se
transforam em experiências estéticas que podem se desdobrar em novas
experiências poéticas... Vimos que no encontro entre o objeto estético e a
percepção estética é que se dá, efetivamente, a experiência estética.
A título de conclusão
As experiências estéticas aqui trazidas revelam que os processos
comunicacionais na sociedade em rede se dão em movimento permanente.
Os processos de produção e reconhecimento se dão em relações de
interdiscursividade e tomam forma de narrativas transmídia. O caso dos
Quadrinhos Rasos, com suas transposições de música em HQ, exemplifica
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bem esse fenômeno midiático contemporâneo, dinâmico, pleno de
narrativas migrantes, que experimentam seguidas reelaborações. Trata-se de
cultura em movimento.
De fato, vivemos tempos de multimídia, de experiências poéticas e
estéticas que não mais se enquadram em categorias e gêneros fechados. Se tal
complexidade já estava presente no cinema e em outros meios audiovisuais,
no mundo da Web ela se aprofunda e se dinamiza, articula informação e
entretenimento, intensifica dimensões lúdicas e oníricas.
O estudo dos fenômenos midiáticos contemporâneos, em geral, e da
produção audiovisual, em especial, demanda a valorização do campo da
interpretação. Além da dimensão poética da criação audiovisual, que envolve
hibridações entre som, imagem, tempo e espaço, vale atentarmos para a
esfera da percepção, como experiência estética.
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O improviso no audiovisual brasileiro: uma
análise dos programas Quinta Categoria e
Barbixas
Luma Perobeli – UFJF
Gabriela Borges – UFJF
Introdução
"O que tenho a dizer sobre qualidade pode parecer altamente
insatisfatório, porque não posso e não irei defini-la; no entanto, insisto que
ela existe e é de vital importância" (NACHMANOVITCH, 1993, p. 155).
Assim como Stephen Nachmanovitch em seu livro Ser criativo - o poder da
improvisação na vida e na arte, o projeto Observatório da Qualidade no
Audiovisual compreende a dificuldade que se tem em definir o conceito de
qualidade no audiovisual, e a sua vital importância nos dias de hoje diante da
completa banalização da comunicação audiovisual. Ao contrário do autor,
entendemos que justamente por não haver muitos estudos sobre isso no
âmbito do humor é que precisamos fomentar essa discussão e instigar a
melhora do que vemos e do que produzimos.
Com o intuito de servir como um espaço de diálogo sobre a
qualidade do audiovisual contemporâneo, o projeto Narrativas
Humorísticas surgiu em 2013 propondo uma nova perspectiva de avaliação
para programas de televisão e canais do YouTube. Autores como Pirandello
(1996), Henri Bergson (1983), John Mepham (1990), Beatriz Becker (2009) e
Arlindo Machado (2003) norteiam esta pesquisa para que possamos pensar
o humor de qualidade e a sua aplicação à arte do improviso a partir de dois
conteúdos: o programa Quinta Categoria, exibido pela MTV Brasil de 2008
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a 2011, e o canal Barbixas, existente na plataforma de internet YouTube
desde 2007.
A técnica do improviso é usada no teatro desde os tempos mais
remotos, ainda no século XV, quando o grupo de artistas do Commedia
dell'arte surgiu na Itália e se desenvolveu posteriormente na França com as
suas apresentações nas ruas e praças públicas. Seguindo apenas um roteiro
simplificado, os atores da companhia eram livres para improvisar e interagir
com o público, e objetivavam romper com a forma tradicional de se fazer
teatro baseada na dramaturgia previamente roteirizada.
No Brasil, a contribuição para a popularização da arte do improviso
veio com a trupe Deznecessários, que foi ao ar na TV aberta pela MTV Brasil
em 2008 com o programa Quinta Categoria, e com o grupo Barbixas, que
estreou no YouTube em 2007 com o canal de mesmo nome. No entanto,
antes de surgirem na TV e na internet, ambos os grupos já estavam nos palcos
de teatro de todo o Brasil fazendo sucesso e levando o formato de jogos de
improviso para o público, que tinha a oportunidade de interagir e participar
ativamente das cenas que eram desenvolvidas por meio dos temas que
sugeriam para os atores.
Humor, comédia e qualidade
Luigi Pirandello, em sua obra O Humorismo (1996), ressalta uma
clara diferença entre humor e comédia. Para o autor, a comédia gera o riso
fácil, imediato e despreocupado diante do diferente, enquanto o humor se
configura pelo riso ambíguo que antecede uma reflexão e é gerada por uma
quebra da expectativa. Para Pirandello, o humorismo é um processo
psicológico que tende a provocar um estado de espírito característico e
particular de reflexão.
A reflexão não se esconde, não permanece invisível, isto é, não permanece
quase uma forma do sentimento, quase um espelho no qual o sentimento
se mira; mas se lhe põe diante, como um juiz; analisa-o, desligando-se dele;
descompõe a sua imagem; desta análise, desta decomposição, porém,
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surge e emana outro sentimento: aquele que poderia, chamar-se, e que eu
de fato chamo, o sentimento do contrário (PIRANDELLO, 1996, p.132).
Enquanto o cômico é uma simples percepção de algo, a reflexão
humorística conduz o espectador além dessa primeira advertência, até o
sentimento do contrário, ponto em que de fato ele refletirá sobre o que está
a sua frente. Em sua obra, Pirandello metaforiza o riso comparando a
comédia com o corpo, e o humor com o corpo e sua sombra: "o artista
comum cuida do corpo somente: o humorista cuida do corpo e da sombra, e
às vezes mais da sombra do que do corpo" (Pirandello, 1996, p. 170). Sendo
esse "artista" um comediante qualquer, a preocupação está no riso (corpo), e
sua única intenção é fazer o público rir; já o humorista, além de focar nesse
riso do espectador, foca também na sua reflexão pós-riso (sombra), que por
vezes fica mais evidente que a própria graça (corpo), isto é: o mais importante
aqui é instigar o pensamento e gerar a reflexão, e não somente o riso
despreocupado diante do diferente.
Dialogando com Pirandello, Henri Bergson concorda com a
relevância desse riso ambíguo. Na obra O Riso - ensaio sobre a significação
do cômico (1978), Bergson afirma que só em sociedade é que podemos
compreender o riso da forma que deve ser compreendido e que, sozinho, não
apreciamos corretamente o cômico. Segundo o autor, faz-se necessário
designar ao riso uma função útil: ele "deve corresponder a certas exigências
da vida em comum. O riso deve ter uma significação social" (BERGSON,
1983, p. 9).
Seguindo essa linha de raciocínio e partindo para a qualidade tão
falada, mas pouco estudava nos dias de hoje, embasamo-nos em John
Mepham, Arlindo Machado e Beatriz Becker para propormos a definição de
humor de qualidade. Na obra The Ethics of quality in television, Mepham
defende que a qualidade está relacionada a um projeto social que preserva o
pluralismo cultural e estimula a democratização da sociedade. Segundo ele,
a verdadeira qualidade da televisão está na sua capacidade de oferecer um
acesso que seja comum a todas as pessoas. Neste sentido, a qualidade de
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um programa está relacionada à sua habilidade de cumprir a sua função
de promover o envolvimento de uma comunidade (MEPHAM, 1990, p.
7).
Beatriz Becker, em seu artigo Jornalismo audiovisual de qualidade:
um conceito em construção (2008), defende que a qualidade pressupõe
diversidade de temas e de atores sociais, pluralidade de interpretações,
inovações estéticas e contextualização dos acontecimentos. Apesar de ter
pensado essa qualidade para relatos jornalísticos audiovisuais, é inegável a
inerente associação desse conceito com a qualidade do produto humorístico,
já que tanto o humor quanto o jornalismo apresentam como anteparo a
função social defendida por Mepham. Na obra A televisão levada a sério, de
Arlindo Machado, o autor, que introduziu no Brasil nos anos 1990 estudos
sobre a qualidade na televisão, também defende o princípio da diversidade
para a reflexão da qualidade:
"A qualidade pode estar simplesmente na diversidade, o que significa dizer
que a melhor televisão seria aquela que abrisse oportunidades para o mais
amplo leque de experiências diferenciadas" (MACHADO, 2003, p. 30).
Metodologia de análise
Esses conceitos aqui expostos permitiram ao projeto Observatório
da qualidade no audiovisual propor uma definição prévia para o humor de
qualidade. Podemos entender o humor de qualidade como aquele que
provoca o riso ambíguo que antecede uma reflexão gerada por uma quebra
de expectativa, e que está relacionado a uma produção de sentido que
estimula o pluralismo e a diversidade cultural. Para nós, a qualidade de um
produto audiovisual está ligada à sua capacidade de promover o
envolvimento de um grupo a partir da diversidade que apresenta, e que
permite o enriquecimento e aprimoramento das experiências do espectador.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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A partir dessa definição, propomos uma metodologia de análise
semiótica dos produtos humorísticos pautada na definição de dois
parâmetros: os modos de representação e experimentação. O primeiro,
relacionado à criação e ao desenvolvimento dos personagens, permite
perceber se a criação dos mesmos contribui de alguma forma para pautar
temas relevantes para a sociedade; e o segundo, relacionado à utilização dos
recursos técnico-expressivos da linguagem audiovisual, ajuda a verificar se o
conteúdo contribui para a construção de narrativas que promovem a
diversidade e o debate de ideias.
A partir disso, elaboramos fichas de avaliação relativas ao plano da
expressão, ao plano do conteúdo e à mensagem audiovisual. Os aspectos
considerados na análise do plano da expressão levam em conta a produção
de sentido a partir dos elementos estéticos; o uso dos recursos expressivos; a
atuação dos personagens, apresentadores e entrevistados, e se organizam em
quatro códigos: os códigos visuais; sonoros; sintáticos e gráficos. Na
mensagem audiovisual e no plano do conteúdo foram criados indicadores de
qualidade para sistematizar a análise, que é feita a partir da seguinte escala:
não consta (0), fraco (1), razoável (2), bom (3) e muito bom (4).
A seguir, a definição de cada indicador de qualidade do plano do
conteúdo: oportunidade (leva-se em conta se o produto audiovisual se pauta
na agenda midiática para escolher os seus temas, e se esses temas são
relevantes e agregam valores para o público); ampliação do horizonte do
público (procura aferir se as propostas são, por natureza, polêmicas,
contraditórias e férteis, no sentido em que farão o público refletir sobre o que
está assistindo); diversidade de sujeitos representados (refere-se à
representação dos diferentes grupos sociais trazidos pelo programa/canal);
estereótipo (verifica se as formas de representação adotadas afirmam ou
desconstroem rótulos).
Na mensagem audiovisual, os indicadores de qualidade são os
seguintes: originalidade/criatividade (procura aferir em que medida o
produto audiovisual apresenta um formato diferenciado com ideias novas
que surpreendem o público); diálogo com/entre plataformas (verifica se o
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produto audiovisual tem capacidade para se adaptar à convergência
midiática, possibilitando uma interação entre diferentes tipos de plataformas
e conteúdos); solicitação da participação ativa do público (refere-se à adoção
de mecanismos utilizados para estimular a participação ativa do público);
clareza da proposta (procura aferir se o produto tem uma estrutura bem
organizada, com um formato bem delineado que se repete ao longo das
emissões, permitindo assim que o público reconheça os códigos visuais,
sonoros, gráficos e sintáticos do produto audiovisual).
Programa Quinta Categoria
Quinta Categoria foi um programa exibido pela MTV Brasil pela
primeira vez em 13 de março de 2008. Dirigido e escrito por Ivan vonSimson,
consistia na apresentação de jogos improvisados a partir de temas sugeridos
pela plateia e pelo público de casa. Durante as quatro temporadas em que foi
transmitido, o game-show tinha a duração média de 45 minutos e destinavase ao público jovem, de 15 a 30 anos de idade, das classes A, B e C. Os jogos
eram elaborados pelos humoristas do grupo Deznecessários (Paulo Serra,
Rodrigo Capella e Tatá Werneck), e contava também com a participação de
um artista convidado. Tendo as mesmas características do programa Whose
LineIs It Anyway?, criado em 1988 na rádio BBC, no Reino Unido, e
adaptado 10 anos mais tarde para a televisão, o formato do Quinta Categoria
se instalou nas telinhas do Brasil após o sucesso da Cia. Barbixas de Humor
no teatro, que já adotava o gênero.
No plano da expressão, são destaques os códigos visuais e gráficos,
referentes ao cenário e à vinheta de abertura, respectivamente. O amplo palco
de apresentação dos humoristas, composto por paredes de tijolos, vigas de
ferro, grandes janelas ao fundo, placas de trânsito, um telão à esquerda do
plano, uma caixa de energia à direita do plano, e caixas de madeira
posicionadas ao lado das cadeiras que ficam alinhadas ao fundo, conferem
ao programa um ambiente moderno e descontraído, despreocupado com a
beleza artística do cenário, mas atencioso ao amplo espaço exigido pelo
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improviso. E a vinheta de abertura, trazendo um robô vestido com roupa
amarela e azul, que participa de uma série de situações engraçadas e absurdas
de maneira tosca, já anuncia ao espectador o estilo do programa, que utiliza
o grotesco e o caricato para gerar o riso. A composição gráfica também
chama a atenção, pois o logotipo e as letras dos grafismos de rodapé dialogam
com o mesmo aspecto geométrico e despojado do cenário e da vinheta de
abertura, sendo vistos, portanto, como um conjunto de elementos do plano
da expressão essenciais para a identificação do público jovem com o
programa.
Na mensagem audiovisual, o indicador de qualidade solicitação da
participação ativa do público recebeu avaliação muito boa em todos os
episódios. Isso se deve, além da comunicação coloquial estabelecida entre os
humoristas e a plateia, ao formato do programa que se constitui inteiramente
pelos jogos de improviso com temas sugeridos pela plateia e pelo público de
casa, que interagia virtualmente.
Para a participação do espectador de casa, o jogo das frases
exemplifica bem essa solicitação da participação ativa do público, pois nele
os jogadores têm que improvisar algo relacionado a uma frase enviada pelo
espectador para o site do programa. A seguir, aos 9 minutos e 36 segundos
do mesmo episódio, a fala de Paulinho Serra para explicar o jogo: "Muito
bem, então se você é do Quinta Categoria e tá aqui sempre, você sabe que
quem manda são vocês as frases agora no nosso programa. Então entra no
site, manda a sua frase porque ela vai ser selecionada, ou não [...]. então
vamos ver qual é a frase e quem mandou: 'Maneiras de quinta para contar
para seu pai que você está grávida'. Foi a Laura Juliani, que tá grávida, daqui
de São Paulo" (Quinta Categoria - episódio 21/06/2011). Além da solicitação
da participação ativa do público através dos temas sugeridos pela plateia e
pelo espectador de casa, outro método bastante usado pelo programa é o da
participação do público na própria cena, como acontece no jogo da foto e no
jogo serenata de quinta.
No indicador de qualidade diálogo com/entre plataformas, os
resultados também foram bastante satisfatórios, com avaliação boa em todos
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os cinco episódios analisados. Além de mostrar na tela o Twitter de cada
humorista na sua primeira fala, menções às outras plataformas ao longo do
episódio também são comuns, como ocorre no início do episódio do dia 2 de
julho de 2011, com a fala de Paulinho Serra: "Hoje, está de arrepiar os
culhões. Então vamos colocando aí no Twitter '#QUINTACATEGORIA'.
Vamos bombar de palmas também a presença dos Deznecessários" (Quinta
Categoria - episódio 21/06/2011).
Ainda na mensagem audiovisual, o indicador clareza da proposta
recebeu avaliação muito boa em todos os episódios da amostra. Uma das
formas utilizadas para deixar claro o objetivo do programa de fazer o público
rir com os jogos de improviso, é pela apresentação de Paulinho Serra logo no
início de cada episódio, quando ele profere frases como "embarque no
mundo do improviso" ou "o programa mais improvisado da televisão
brasileira" (falada em três das cinco emissões analisadas). Além dessa, outra
forma usada para esclarecer o público sobre o tipo de conteúdo que está
assistindo é explicar as regras de cada jogo antes de começá-lo. Com o nome
e o funcionamento do jogo aparecendo no telão do palco, um humorista fixo
do programa explica para o público como se dará a brincadeira, para que este
possa tomar nota de como serão os próximos minutos e julgar se acha
interessante assistir ou não.
No indicador de qualidade originalidade/criatividade, o Quinta
Categoria também recebeu avaliação muito boa em todas as emissões
analisadas. Em nível mundial, não podemos dizer que o programa foi
inovador, pois, como dito anteriormente, é fruto de um formato já existente
e consolidado no Reino Unido e Estados Unidos. Porém, por se tratar de um
programa novo no cenário nacional e, portanto, pouco conhecido pelo
espectador, é considerado um programa criativo e experimental, pois, além
das adaptações que sofreu para cair no gosto popular, contava ainda com o
talento de quatro comediantes que, na sua maioria, já tinham experiência
com o teatro e com a arte do improviso, o que fomentava a criação dos jogos
e enriquecia a qualidade artística do programa. Observe a seguir a avaliação
que cada indicador teve na mensagem audiovisual:
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No plano do conteúdo, os indicadores de qualidade oportunidade e
estereótipo (seja para afirmar ou descontruir) foram muito bem pontuados,
tendo o primeiro recebido avaliação muito boa e o segundo avaliação boa,
em todas as emissões. Partindo da ideia de que a oportunidade refere-se,
entre outras coisas, à atualidade dos temas, podemos considerar o Quinta
Categoria um programa atual porque utiliza as sugestões dadas na hora pelos
espectadores, fruto das vivências, experiências e concepções de cada um.
Analisando o estereótipo, podemos considerar que o programa utiliza esse
recurso tanto para desconstruí-lo quanto para reafirmá-lo, ou para uma
mistura das duas formas. No episódio do dia 5 de novembro de 2011, por
exemplo, quando aos 18 minutos e 25 segundos Rodrigo Capella anuncia o
jogo da cena em funk, ele estereotipa as pessoas que escutam o estilo musical
funk ("Ahh, é o jogo da cena em funk, pra você que é carioca, ou você que
tem uma gangue, ou você que faz parte de uma facção criminosa"), e depois,
ao perceber a asneira que falou, tenta desconversar o que havia dito ("Não
tem nada a ver com isso rapaz, que aqui é só um funk, é só uma brincadeira")
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fazendo, portanto, a afirmação e a desconstrução do estereótipo na mesma
frase.
O indicador de qualidade diversidade de sujeitos representados
também obteve bons resultados, pois, como já falamos anteriormente, o
programa é inteiramente elaborado por temas sugeridos pelo público,
pertencente às diferentes classes da sociedade. Apesar de a plateia ser
constituída na sua maioria por jovens e brancos, há pessoas de todas as
idades, cores e estilos, que são selecionadas pelos humoristas e têm voz no
programa. Porém, no indicador ampliação do horizonte do público, ao
contrário do anterior, os números já não existem, pois as propostas sugeridas
pela plateia (e até mesmo as selecionadas do site), não são polêmicas,
contraditórias ou férteis no sentido em que podem fazer os telespectadores
refletirem ou debaterem ideias relevantes que contribuirão para ampliar o
seu repertório cultural ou sua visão de mundo. Confira abaixo a tabela dos
indicadores da qualidade do plano de conteúdo com a avaliação de cada um
deles:
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Canal Barbixas
Barbixas é um canal de humor do YouTube criado em 29 de
dezembro de 2007, que conta com esquetes e jogos de improviso baseados no
mesmo programa americano em que o Quinta Categoria se inspirou, o
Whose Line is it anyway?. Publicando vídeos novos todas as terças e quintas,
o canal tinha em setembro de 2015 cerca de 2.259.245 inscritos e 490 vídeos.
Seu conteúdo mescla esquetes de estúdio com apresentações que a Cia.
Barbixas de Humor faz em todo o Brasil desde 2008. O espetáculo
Improvável, idealizado pelos barbixas Anderson Bizzocchi, Daniel
Nascimento, Elidio Sanna e um ator convidado, é um projeto de humor que
se baseia em jogos de improviso feitos ao vivo com a ajuda da plateia. O canal
tem hoje a direção geral de Elidio Sanna, um dos integrantes da companhia,
e a produção e captação de imagens da TJ Produções.
No plano da expressão, são destaques o cenário, a composição
gráfica e a vinheta final de cada vídeo. Em todos os oito conteúdos publicados
no mês de setembro, observamos uma padronização estética do canal, ainda
que conteúdo e formato entre os vídeos de esquetes e os de improviso sejam
diferentes. Nos vídeos de improviso gravados do espetáculo Improvável, o
cenário é sempre o mesmo, independente da localidade em que está sendo
apresentado: o show é sempre em um teatro, com cortina azul escuro ao
fundo, cadeiras e caixas alinhadas também ao fundo, e iluminação focada nos
atores. A composição gráfica, nos dois formatos, é sempre a mesma: nos
primeiros segundos do vídeo aparece à direita da tela o logo do programa
com um espaço amarelo contendo o endereço eletrônico do site dos Barbixas,
e a palavra "inscreva-se". Até o final de todos os conteúdos permanece no
lado direito inferior da tela o logo característico do canal: um rosto redondo
e amarelo, de olhos pretos e sorriso grande, com pequenos pelos abaixo da
linha que delineia o rosto, remetendo às barbas que os integrantes do elenco
têm no queixo.
Quanto às vinhetas, o canal só preserva as finais, já que todos os
vídeos analisados nos levam direto ao conteúdo. As publicações não têm uma
média padrão de tempo, mas nota-se que há uma preferência por vídeos mais
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curtos, de três ou quatro minutos, embora tenha alguns com cinco, seis, e até
oito minutos. Todos os vídeos com o formato de esquete terminam com
blocos retangulares nas cores amarelo, branco e preto subindo na tela em
diagonal, e encerrando com o logo do canal no centro. E nos vídeos de
improviso, anterior a essa parte da vinheta final, aparecem também vários
blocos coloridos que sobem na tela e o nome "Improvável" acima da frase
"um jogo provavelmente bom", no centro.
Quanto aos elementos estéticos, como já falado, o canal preserva
aspectos característicos e semelhantes para os dois formatos que apresenta,
mas com relação ao conteúdo, e consequentemente às suas qualidades, as
diferenças são evidentes. Na mensagem audiovisual, por exemplo, os
indicadores de qualidade clareza da proposta e solicitação da participação
ativa do público receberam avaliação muito boa em todos os quatro vídeos
de improviso do canal. Uma vez que esse formato só é desenvolvido pela
constante participação do público, e que um "mestre de cerimônias" explica
todos os jogos antes de o mesmo ser iniciado, dá os desafios aos atores e
seleciona as sugestões da plateia, a presença desses indicadores torna-se
simultânea ao ato da cena.
Nos esquetes, a presença do indicador solicitação da participação
ativa do público também se faz presente, com avaliação boa em todas as
emissões, mas de forma diferenciada. Por ser um formato que exige roteiro,
produção e gravação prévios, a participação direta do público, como no
improviso, torna-se impossível. No entanto, o indicador é observado para
solicitar a participação indireta do público, pois com uma linguagem clara e
apropriada ao tema proposto o espectador se identifica e se aproxima do
canal; através das diversas redes sociais a que o canal se dispõe, o público
pode deixar comentários e sugestões; e ainda através dos links que aparecem
ao final de cada vídeo, que solicita a sua participação e interação através do
seu clique para outros conteúdos do canal. Na clareza da proposta esse
formato também recebeu avaliação muito boa em todas as emissões
analisadas, pois o canal deixa bem claro o seu objetivo ao trabalhar um
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formato diferente do outro: no improviso, o canal quer apenas que o
espectador ria, e nos esquetes, quer fazê-lo rir e pensar.
No indicador de qualidade originalidade/criatividade, o Barbixas
recebeu avaliação muito boa em todas as emissões analisadas. Apesar de ser
um formato copiado do mercado internacional, a Cia. Barbixas de Humor
ajudou a popularizar esse formato através das apresentações que fazia nos
teatros e da estreia do canal no YouTube, em 2007, que mais tarde inspirou
a criação do Quinta Categoria, exibido na televisão a partir de março de
2008. Os Barbixas são criativos e originais, pois os três comediantes são
talentosos e experientes no que fazem, o que fomenta a criação dos jogos e
dos esquetes e enriquece a qualidade artística do programa. A seguir, o
gráfico da mensagem audiovisual:
Categoria, podemos considerar a atualidade dos temas discutidos no
canal Barbixas pelo fato de utilizar nos jogos de improviso as sugestões dos
espectadores dadas na hora e abordar nos esquetes temas muitas vezes atuais
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No plano do conteúdo, o indicador de qualidade oportunidade foi o único
que recebeu avaliação muito boa em todas as emissões. Assim como o Quinta
e/ou pertinentes para a sociedade. Um exemplo dessa abordagem de
temas importantes está no vídeo publicado no dia 15 de setembro de 2015,
chamado Trem, que alerta para a importância de se discutir o pouco uso da
malha ferroviária do Brasil, e o intenso uso da malha rodoviária, que traz
mais prejuízos se comparado aos trazidos pela ferroviária.
No indicador de qualidade diversidade de sujeitos representados,
somente o vídeo Trem recebeu avaliação razoável, e os demais foram
avaliados como fraco, pois apesar de mencionar pessoas de algumas classes
distintas da sociedade, fica claro que a preocupação do canal não está na
diversidade dos sujeitos que serão representados, mas no roteiro que será
falado (no caso dos esquetes). No caso dos vídeos de improviso, essa
diversidade também não é muito identificada, pois como a plateia, que dá o
tema para jogos, não aparece na tela em momento algum, não tem como
saber se ela é diversa, constituída por pessoas de todas as cores, idades, estilos
e classes sociais.
Ainda no plano do conteúdo, o indicador de qualidade estereótipo
recebeu avaliação fraca em todas as emissões, embora tenha disso utilizado
para a afirmação (e não desconstrução, que é o ideal) nas poucas vezes em
que apareceu. No último indicador de qualidade desse plano, o ampliação do
horizonte do público, percebe-se que somente os vídeos do formato esquete
foram avaliados, sendo dois deles razoáveis, um, fraco, e outro, muito bom.
Em nenhuma das emissões de improviso podemos afirmar que há
preocupação em fazer com que os espectadores interajam e reflitam sobre
assuntos polêmicos ou contraditórios, pois os temas são pontuais, sugeridos
pela plateia e sem maior significação social. Veja a seguir, o gráfico do plano
do conteúdo:
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Considerações finais:
Objetivando divulgar parte do trabalho desenvolvido pela pesquisa
Narrativas Humorísticas, do projeto Observatório da Qualidade no
Audiovisual, da UFJF, com este artigo pretendíamos também investigar o
gênero humorístico e indagar se foi possível unir improviso e humor nos
conteúdos selecionados.
Como mostrado, não foi possível fazer humor com a improvisação
no programa Quinta Categoria ou no canal Barbixas. Tanto um quanto
outro fizeram comédia quando se tratava dos jogos de improviso por não
apresentarem nesse formato ferramentas suficientes para promover a
ampliação da visão de mundo do espectador e o estímulo ao pensamento e
ao debate de ideias.
Porém, o formato de esquetes apresentado no canal Barbixas pode
ser considerado de humor por instigar a reflexão e possibilitar mudanças na
sociedade. Todavia, o canal não pode ser considerado de qualidade
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justamente por não se dedicar inteiramente à reflexão do público, visto que
os vídeos de improviso apenas divertem o espectador e geram o riso cômico.
Referências
BECKER, Beatriz. Jornalismo audiovisual de qualidade: um conceito em construção. Revista
Acadêmica Semestral Programa de Pós-Graduação em Jornalismo Universidade Federal de
Santa Catarina. Santa Catarina. Ano VI - n.2, p. 95 - 111, jul./dez. 2009.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad. Nathanael C. Caixeiro.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
BORGES, Gabriela. A discussão do conceito de qualidade no contexto televisual britânico.
Líbero Revista Acadêmica da Pós-Graduação da Faculdade Casper Líbero, São Paulo, Ano
VII, 2008.
BORGES, Gabriela. Qualidade na TV pública portuguesa: análise dos programas do canal 2:.
Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2014. 264 p.
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2009.
MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo, Ed. Senac, 2003.
MEPHAM, John. The Ethics of quality in television. In Mulgan, Geoff (org) The Question of
quality. London, British Film Institute, 1990.
NACHMANOVITCH, Stephen. Ser criativo - o poder da improvisação na vida e na arte. São
Paulo: Summus, 1993.
PIRANDELLO, Luigi. O Humorismo. São Paulo: Experimento, 1996 (Originalmente
publicado em 1908).
YOUTUBE, Barbixas. Disponível em: <https://www.youtube.com/user/videosimprovaveis>.
Acesso em 29 out. 2015.
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I Love Paraisópolis: reflexões acerca de uma
narrativa audiovisual e sua relação com a
realidade social
Marcia Perecin Tondato – ESPM
Virginia Albuquerque Patrocínio – ESPM
Introdução
De acordo com o entendimento de que a telenovela no Brasil
funciona como mediador cultural e identitário, partimos do conceito da
telenovela como "narrativada nação", cunhada por Lopes (2009), seguindo a
percepção de que "quando uma novela galvaniza o pais, nesse momento ela
atualiza seu potencial de sintetizar o imaginário de uma nação, isto é, a sua
identidade, ou o que é o mesmo, de se expressar como nação imaginada"
(LOPES, 2009, p.31). A telenovela ganha, assim, segundo a autora, status de
representante da realidade cultural e identitária da nossa sociedade. Somado
a isso, cabe considerar que "no Brasil, o consumo midiático é particularmente
relevante, sobretudo com relação à televisão, principal fonte de informação,
e até lazer, para pessoas das classes socioeconômicas C e D" (CUNHA;
TONDATO e CASTILHO, 2013, p. 69), tendo a telenovela adquirido
destaque como sendo um relevante "espaço público de debates de temas
representativos da modernidade" (LOPES, 2009), para além da ideia de mero
entretenimento. Nesse sentido, Martin-Barbero e Rey, ao combater as
constantes críticas feitas à televisão enquanto mediador cultural,
argumentam que
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a televisão tem muito menos de instrumento de ócio e de diversão do que
de cenário cotidiano das mais secretas perversões do social e também da
constituição de imaginários coletivos, a partir dos quais as pessoas se
reconhecem e representam o que têm direito de esperar e desejar (2004, p.
26).
Os autores nos fornecem, assim, pistas do olhar pelo qual Lopes,
Borelli e Resende (2002) direcionam para uma análise em relação aos estudos
de recepção na América Latina que envolve um aprofundamento
metodológico quanto ao "nexo entre os meios de comunicação e as
audiências" (p. 27), seguindo as contribuições dadas pelos estudos culturais
britânicos ao flexibilizar as discussões acerca do entendimento de cultura
(aprofundados mais adiante) e incorporar a temática das culturas populares
nas discussões teóricas, tendo como eixo reflexivo a teoria das mediações
proposta por Martin-Barbero.
É com esta perspectiva, portanto, que lançamos nosso olhar sobre a
telenovela I Love Paraisópolis (Alcides Nogueira e Mario Teixeira, 2015) com
o intuito de analisar empiricamente a tematização da favela do ponto de vista
da recepção, considerando que a mesma contou com uma ambientação
inspirada numa favela real da Zona Sul de São Paulo, Paraisópolis, que
inclusive deu nomeà trama. Localizada no bairro do Morumbi, a favela ocupa
uma área de 1km quadrado, povoado por aproximadamente cem mil
habitantes.
As peculiaridades estéticas e visuais da ambientação da favela, os
pontos de socialização tais como residências, bares, padarias, os perfis sociais
interpretados, os conflitos internos e entre classes sociais e etnias (racismo e
preconceito social)51, tudo isso fez parte do conjunto de sentidos e
significados proposto pela trama, o que se apresenta como subsídios
relevantes na discussão teórica deste artigo acerca da construção midiática
da telenovela enquanto produção cultural que se propõe a refletir e refratar
51 Dados disponíveis em http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/iparaisopolis.htm. Acesso em 10 de jan. 2016.
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uma ordem social vigente, na tentativa de estabelecer um diálogo conceitual
com sua audiência.
A tentativa de representar a favela sob uma perspectiva realista e em
conformidade com os anseios e aspirações de sua audiência fica evidente
quando nos deparamos com dados 52 que afirmam que a cenografia, montada
numa área de dez mil metros quadrados do Projac (estúdio da Rede Globo
no Rio de Janeiro), foi inspirada na estética local da favela em questão,
composta de diversos ambientes de socialização que abrigam as narrativas
apresentadas e dão o tom de cotidianidade dos personagens e suas relações
de consumo. Além disso, cerca de 50 moradores da favela trabalharam como
figurantes e tantos outros inspiraram a construção dos personagens e foram
fundamentais em sua composição. Como no caso de Victor Kreutz,
compositor e intérprete da música tema de abertura da novela, e Antônio
Ednaldo da Silva, conhecido por Berbela53, artista plástico responsável pelas
esculturas feitas de sucatas que ilustram a animação da abertura, ambos
moradores de Paraisópolis.
Unindo-se a isso, percebemos no discurso dos moradores os anseios
e expectativas gerados com esta representação de sua comunidade numa
narrativa ficcional na qual prevalece um olhar positivo e idealizado de uma
realidade pungente, permeada por contrastes e ambiguidades. Segundo
afirmou Gilson Rodrigues, morador de Paraisópolis, em entrevista a UOL:
Existe uma barreira entre condominio e favela e queremos que vejam
Paraisópolis como um bairro. O desejo é que isso se concretize em 2016
com a 'Nova Paraisópolis'. Sabemos que terá um certo glamour, mas
também acredito que a novela vá ajudar a mostrar a luta da comunidade,
os nossos projetos. A ideia é que essa não seja só mais uma novela (SERRA,
2015).
52 Informações disponíveis em http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2015/07/14/visitamos-acidade-cenografica-de-i-love-paraisopolis-conheca-segredos.htm, visto em 11 de jan. 2016.
53 Informações disponíveis em http://gshow.globo.com/novelas/i-loveparaisopolis/extras/noticia/2015/05/abertura-de-i-love-paraisopolis-une-esculturas-de-sucata-euniverso-da-pop-art.html, visto em 11 de jan. 2016.
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É nesse sentido, portanto, que identificamos a construção narrativa
da novela, seguindo e explorando os principais anseios de sua audiência
diante da representação social de seu lugar de moradia e convivência e
seguimos analisando as complexas relações de poder e negociação que
envolvem essa permanente luta pela valorização de seu lugar de
pertencimento, fonte de significados simbólicos e materiais.
Para Além Da Dicotomia Entre Dominantes E Dominados:
Transformações No Conceito De Cultura A Partir Dos Estudos
Culturais
Partindo de uma contextualização histórica, podemos apontar o
período das navegações (segundo a noção instituída de descoberta do "novo
mundo" associada às Américas) como ponto de partida para pensarmos o
modo como a ideia de cultura e organização social foi se estruturando na
história da humanidade a partir de uma dicotomia entre dominantes e
dominados.
Nesse período, havia o propósito imperialista de "civilizar os
bárbaros", ou seja, instituir naqueles povos oriundos desse "novo mundo" a
ordem política, econômica e social europeia (CEVASCO, 2003). A ideia de
civilização enquanto visão de mundo passa a se constituir, portanto, a partir
da expansão imperial europeia e "é diante do 'outro' colonizado que o
europeu tecerá sua definição de individualidade, nacionalidade e
secularização" (JAGUARIBE, 2007, p. 20).
A noção de civilização era, então, percebida em contraponto à
organização social dos "povos primitivos" que habitavam essas terras
colonizadas e estava atrelada à noção de desenvolvimento urbano, mais
intensamente instituída ao longo do século XIX, período em que a Europa
"assistia à consolidação do sistema de fábrica, ao triunfo da ordem burguesa,
ao advento das máquinas e das novas invenções" (PESAVENTO, 1997).
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Da perspectiva desse entendimento do conceito de cultura atrelado
à noção de civilização, Cuche (2002) aponta o surgimento da sociologia e da
etnologia como disciplinas científicas relevantes para esta reflexão. Segundo
ele, "os fundadores daetnologia vão lhe dar um conteúdo puramente
descritivo. Não se trata, para eles, assim como para os filósofos, de dizer o
que deve ser a cultura, mas de descrever o que ela é, tal como aparece nas
sociedades humanas" (CUCHE, 2002, p. 34). Esse caráter descritivo dado ao
conceito de cultura caracteriza-se pela tentativa de neutralizá-la,
compreendendo-a de maneira totalizante, como algo inerente à humanidade
e em oposição à noção de "povos primitivos".
Ao elucidar as ideias do antropólogo Edward B. Tylor54 como
pioneiras na conceituação de cultura, Cuche acrescenta que Tylor
compreendia que "entre primitivos e civilizados, não há uma diferença de
natureza mas simplesmente de grau de avanço no caminho da cultura" (2002,
p. 38). Assim reforça-se a ideia inicial aqui apontada de que os primitivos
precisavam ser civilizados aos moldes da cultura europeia para alcançar um
estágio mais avançado de cultura, ou seja, precisavam ser integrados a uma
nova ordem socioeconômica e política da sociedade capitalista europeia.
Nesse aspecto, percebe-se o caráter hierárquico com o qual se
moldou a ideia de cultura, pautada a partir de desigualdades e diferenças
sociais. Uma hierarquia que Cuche aponta como sendo determinante para o
entendimento a respeito do que seja "cultura" atribuindo-lhe um caráter
classificatório e, portanto, de segregação. Para ele, cultura "é uma produção
histórica, isto é, uma construção que se inscreve na história das relações dos
grupos sociais entre si" e acrescenta que "as culturas nascem de relações
sociais que são sempre relações desiguais" (2002,
p. 143).
Nota-se, portanto, nos primeiros desdobramentos teóricos do
conceito de cultura, uma relação entre cultura e poder hegemônico,
arraigada na ideia de que as formações sociais pressupõem uma evolução
54 TYLOR, Edward B. La civilization primitive. Paris: Reinwald, 1876-1878, 2v. 5.
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cultural a partir de uma noção de civilização gerada em um contexto social
específico, burguês, ocidental/europeu.
Trazendo esta discussão para o século XX, período em que os meios
de comunicação de massa se estabelecem como fundamentais na
configuração dos contextos sociais, enfatizamos a contribuição dos Estudos
Culturais britânicos para a uma nova concepção de cultura, mais ampla e
integradora, compreendida como parte do tecido constitutivo da sociedade.
Para esse entendimento vai ser
fundamental o conceito de hegemonia:
diante de uma perspectiva que desembocava invariavelmente
em reprodução social, a incorporação, sobretudo, do conceito
de hegemonia de Antônio Gramsci permitiu vislumbrar um
movimento mais dinâmico e complexo na sociedade,
admitindo tanto a reprodução do sistema de dominação
quanto a resistência a esse mesmo sistema (ESCOSTEGUY,
2001, p. 97).
A ideia de hegemonia proposta por Gramsci (1985) abrange também
a perspectiva do dominado, assumindo a pluralidade e a relação dialética
entre dominantes e dominados e conferindo a estes também poder e
resistência como forma de constituir-se socialmente. E é a partir desta
concepção de resistência (e não mais de submissão ou dominação) que os
Estudos Culturais passam a conferir destaque às relações cotidianas e a
compreender as diversidades sociais.
Somando-se a isso, podemos compreender a cultura sob a ótica de
uma organização social estabelecida como dominante, porém entendendo
que "o que existe são grupos sociais que estão em relação de dominação ou
de subordinação uns com os outros" (CUCHE, 2002, p.145), distante da ideia
de superioridade e dependência. A hierarquia cultural é, assim, segundo
Cuche, inerente à própria formação social e dela se constitui.
Uma das principais contribuições dos Estudos Culturais na
ampliação do entendimento de cultura e das relações sociais que a envolvem
foi a ênfase dada às diversidades sociais e as diferenças das minorias que
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compõem o todo da sociedade, em oposição ao pensamento mais
funcionalista e estruturalista do século XIX (LOPES; BORELLI e RESENDE,
2002). Ao tratar da cultura como algo inerente à vida em sociedade,
considerando os modos de vida das pessoas nos diversos grupos sociais que
se estabelecem e as relações cotidianas que os envolvem, para além de uma
visão elitista de cultura superior (alta cultura), os Estudos Culturais tornaram
possível pensar a cultura de maneira mais democrática, associada à ideia de
modos de vida em sociedade (ESCOSTEGUY, 2006).
É dessa perspectiva, de que uma cultura dominada não é
necessariamente uma cultura alienada, totalmente dependente, que olhamos
a ambientação ficcional da favela na novela "I Love Paraisópolis". Uma
perspectiva que, do nosso ponto de vista como discutimos adiante, não
incorporou a favela, entendida aqui como o amalgama moradores- vivência
espacial, à formação social da cidade, visualizandoa ainda como um cenário
social "exótico", diferente. Recorrendo a Cuche, há que se pensar a favela
inserida em uma cultura que, em sua evolução, não pode desconsiderar a
cultura dominante, mas que pode resistir em maior ou menor escala à
imposição cultural dominante, ao que acrescentamos que é preciso
considerar com mais ênfase que a recíproca também é verdadeira (2002, p.
145).
É, portanto, deste ponto de vista, e unindo o repertório teórico aqui
discutido ao contexto da favela e possibilitando uma interpretação da
abordagem selecionada pela telenovela aqui discutida, que Jaguaribe conclui
que
a noção de "cultura" antes associada aos domínios da elite letrada ou das
civilizações do passado, assume sua feição antropológica como as visões
de mundo, usos, imaginários e costumes de diferentes grupos e classes
sociais. Nesta perspectiva, as hierarquias entre alta e baixa cultura são
minadas e os julgamentos qualitativos relativizados. Na valorização de
culturas populares, a favela é vista como o local de comunidades que
buscam contornar a escassez, a violência e a pobreza por meio de um
inventivo hibridismo cultural que se adapta e mantém redes de
solidariedade em circunstâncias adversas. É um espaço onde a
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precariedade da existência urbana se transforma em imagens de
resistência e agenciamento (2007, p. 134).
A cultura, dessa forma, relaciona-se ao poder obtido por meio da
negociação e os sujeitos que a compõem passam a ser percebidos como
dotados de um poder de agência, selecionando seus próprios elementos na
formação de sua identidade, determinando a forma como esse sujeito se
posiciona no mundo e na sociedade em que atua (HALL, 2009). Entretanto,
lembramos que é a cultura hegemônica que guia tal sujeito na definição de
sua identidade, influenciando na maneira como ele percebe e significa o seu
contexto social, porém não de maneira impositiva ou dominadora, como
pretendiam os primeiros estudiosos de etnologia. Para uma compreensão
mais nítida da relevância dos grupos dominados no contexto social, citamos
Cuche que nos oferece uma síntese da noção de hegemonia:
dizer que mesmo os grupos socialmente dominados não são desprovidos
de recursos culturais próprios, e sobretudo da capacidade de reinterpretar
as produções culturais que lhes são impostas em maior ou menor grau,
não significa, no entanto, voltar à afirmação que todos os grupos são iguais
e que suas culturas são equivalentes (CUCHE, 2002, p. 144).
Pensar a cultura a partir da complexidade e diversidade de sua
formação, dissociada de uma lógica dominante, também nos exige ir à noção
de ideologia, seguindo Stuart Hall (2009), para quem,
as ideologias não operam através de ideias isoladas; mas em cadeias
discursivas, agrupamentos, campos semânticos e formações discursivas
(...) Assim, uma variedade de sistemas ideológicos ou lógicas distintas está
disponível em qualquer formação social. A noção de uma ideologia
dominante ou de uma ideologia subordinada é uma forma inadequada de
se representar a complexa interação dos distintos discursos ideológicos e
formações em qualquer sociedade desenvolvida moderna (HALL, 2009, p.
170).
Isso reforça a necessidade de compreensão da complexidade que
envolve a noção de cultura e da diversidade das relações com as quais uma
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sociedade se compõe, para além da dicotomia entre dominante e dominado.
Desfazer-se desta dicotomia em nossas concepções teóricas é, portanto,
fundamental para conceber um estudo de recepção, aqui pensado da
perspectiva de análise da ficcionalização da favela e eventuais atribuições de
sentido. Analisar um contexto cultural determinado é adentrar na
complexidade de sua formação social, dos códigos que o compõem e que dão
sentido às suas relações cotidianas, enfim, é soltar as amarras de um discurso
hegemônico e entrar nas particularidades que arquitetam suas relações
sociais.
O antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, no prefácio
da obra de Renato Meirelles e Celso Athayde (2014), exemplifica esta a
relação de negociação e resistência entre dominantes e dominados (no caso,
moradores da favela e dos bairros nobres a ela vizinhos) percorrendo
historicamente os desdobramentos semânticos que envolveram a definição
de favela no Brasil. Segundo Soares (2014, p. 8), caracterizada no início do
século XX como um problema social a ser removido pelo Poder Público
como forma de arejar o ambiente urbano e dar lugar à modernidade,
passando pela ideia de lugar de pobreza, "fonte do mal, sede do perigo, da
ameaça aos bons costumes", as favelas foram se estabelecendo como o lugar
do "outro", mas também como local de "força de trabalho feminina para o
emprego doméstico nas residências da classe média, era conveniente contar
com porteiros e prestadores de serviços, operários e mão de obra explorável
por perto". Um relato que nos remete à Cuche (2002) ao considerar
necessária a hierarquização cultural algo inerente à formação social, como já
citado.
É seguindo este panorama conceitual que aqui refletimos sobre a
narrativa proposta pela telenovela "I Love Paraisópolis" ao explorar
particularidades que envolvem as relações sociais existentes numa favela real
da cidade de São Paulo,numa tentativa, acreditamos, de retratar tais relações
através de um olhar mais romântico e positivo, caracterizando o "exotismo"
que mencionamos do ponto de vista de não ser aquele o lugar "apenas" da
violência. Ao trazer tal contexto social para a trama principal da novela
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(pioneira para o horário, já que as demais novelas que apresentaram tal
temática de favela figuraram o horário das 21 horas, notadamente com maior
apelo dramático e de denúncia social) 55, a narrativa enfatiza a cultura do
dominado, dentro da perspectiva teórica aqui trazida até então.
Fundamentando a discussão aqui proposta, em relação à proposta da
telenovela, continuamos com Soares ao argumentar que
suas diferenças - as que se dão em seu interior e entre as localidades foram e ainda são diluídas na univocidade artificial produzida pela
categoria "favela". Justamente por isso, a resistência político-cultural do
povo das favelas ou das comunidades tem procurado preservar, reafirmar
e redescrever a palavra "favela", transformando-a em valor positivo,
símbolo do orgulho popular, a coesionar os grupos sociais que têm pago
o preço da longeva discriminação, indissociável da exploração econômica.
É claro, porém, que, mesmo a retomada da denominação com sentido
crítico, em benefício da reinvenção afirmativa da identidade coletiva nos
espaços populares, é controversa - nada nesse âmbito tão dinâmico, plural
e crescentemente participativo é consensual (SOARES, 2014, p. 10).
Temos, portanto, um breve panorama do que podemos definir como
caminho teórico na análise da telenovela enquanto construção midiática da
representação social da favela, mantendo uma clara tentativa de explorar
positivamente um contexto sociocultural tão amplamente marcado por
questões relacionadas à violência e à criminalidade, em conformidade com
os conceitos de hegemonia, poder e resistência aqui discutidos e dentro da
perspectiva apresentada por Soares (2014).
55 Em trabalho apresentado no Comunicon 2015 - Encontro de GTs - GT2: IDENTIDADES,
COMUNICAÇÃO e CONSUMO: materialidades e representações da cidadania, apresento um panorama
reflexivo das telenovelas com temática de favela nos últimos 20 anos, de acordo com as faixas de horário
presentes
na
programação
da
Rede
Globo,
disponível
em
http://anaiscomunicon2015.espm.br/GTs/GT2/14 GT02-PATROCINIO.pdf, acesso em 11 de jan. 2016.
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O Sujeito Aculturado e Desterritorializado Da Favela
Diante do exposto até aqui acerca do entendimento de cultura a
partir da ideia de civilização e culminando nas contribuições trazidas pelos
Estudos Culturais britânicos que permitiram uma maior flexibilização deste
conceito, podendo ser definido de maneira mais abrangente como "um modo
de organização dos significados e valores de uma determinada sociedade"
(SANCHES, 2011, p. 191), tomamos ainda em consideração os conceitos de
desterritoralização e mundialização (ORTIZ, 1994) e de aculturação
(CUCHE, 1999) para melhor refletir sobre as questões culturais que
envolvem a contemporaneidade e os espaços sociais em questão.
Ao tratar dos desdobramentos acerca do conceito de aculturação, é
possível melhor compreender a questão das mobilidades e miscigenações
entre as diversas manifestações culturais, não significando necessariamente
"o desaparecimento da cultura que recebe, nem a modificação de sua lógica
interna que pode permanecer dominante" (CUCHE, 1999, p. 118). É a partir
desta ideia que nos distanciamos da noção de uma cultura "pura" tão
amplamente discutida por etnólogos do século XIX e nos aproximamos de
Hall (2011) ao refletir sobre o sujeito pós-moderno e sua relação descentrada
com o contexto social em que vive. Para ele, "as transformações associadas à
modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e
nas estruturas" (HALL, 2011, p. 25), oferecendo a este indivíduo uma maior
mobilidade social, ou seja, uma maior aculturação ou mestiçagem cultural,
não significando necessariamente a dissolução de suas referências culturais
anteriores.
Em se tratando dos reflexos da globalização na cultura, Ortiz (1994)
aborda a questão da desterritorialização como determinante na formação do
não-lugar na sociedade entendendo que "contrariamente aos 'lugares',
carregados de significado relacional e identitário, o espaço
desterritorializado 'se esvazia' de seus conteúdos particulares" (1994, p. 105).
E este esvaziamento dos lugares reflete-se não só nos objetos produzidos de
maneira global como também nas referências culturais que o compõem.
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Assim, no contexto social contemporâneo, segundo Ortiz, "temos apenas
uma série de referências simbólicas que funcionam como sinais de distinção
social no mercado consumidor" (1994, p. 112).
Traçamos, portanto, a partir desses conceitos, um breve
entendimento do contexto sociocultural que se apresenta na
contemporaneidade. O sujeito descentrado de Hall (2011),
desterritorializado de Ortiz (1994) e aculturado de Cuche (1999) convive
com variados referenciais simbólicos e culturais na sua vivência cotidiana,
sem que isso altere sua noção de pertencimento.
É pensando neste sujeito que refletimos sobre o morador da favela e
sua relação com os mais variados referenciais culturais que permeiam seu
convívio social. Ele não está preso ou isolado física nem simbolicamente
"dentro apenas" dos contornos da favela em que reside, apesar de manter nela
uma relação de pertencimento, de raiz social e cultural. "O funk está aí, as
redes sociais estão ligando lan houses, celulares, indivíduos e novas
comunidades. Os sentidos de participação cidadã estão em efervescência
constante" (MEIRELLES e ATHAYDE, 2014, p. 12).
Na trama ficcional em questão, essa mobilidade e miscelânea social
existente entre "favela e asfalto" é frequentemente abordada ao retratar
conflitos e afinidades entre personagens que habitam a favela de Paraisópolis
e o bairro nobre do Morumbi. O protagonismo da novela fica por conta do
casal Mari (Bruna Marquezine) e Benjamin (Maurício Destri). Ela moradora
da favela; ele, do Morumbi. Grego (Caio Castro), líder da comunidade, é
apaixonado por Mari, mas relaciona- se com Margot (Maria Casadeval), exnoiva de Benjamin. E, dessa forma, diversas outras relações amorosas são
constituídas, misturando perfis sociais de classes distintas e dialogando com
a noção de pertencimento e aculturação aqui levantada. Nesse sentido, é a
partir dessa polifonia e miscelânea cultural visível na narrativa que
concordamos com Jaguaribe quando afirma que
as cidades estão crescentemente conscientes de si mesmas enquanto
cenários culturais e estão cada vez mais empacotadas como produtos de
consumo. Entretanto, a dinâmica da metrópole não se esgota na
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renovação, nem na museificação, já que um dos sinais da modernidade
tardia é a hibridação cultural de novas diásporas, vivências históricas e
recombinações de legados culturais que criam justaposições inesperadas
que poderão ou não ser absorvidas e adquiridas como produto cultural
pelo mercado (2007, p. 127).
Assim, a favela é trazida para as telas como produto cultural, sendo
apresentada como cenário de multiplicidade e diversidade aos olhos de quem
dela não faz parte, de quem assiste com um certo distanciamento ao que lhe
é apresentado como próprio da realidade de uma favela, numa tentativa de
reduzir o abismo cultural existente entre "a favela e o asfalto" e até mesmo
possibilitando misturas sociais entre ambos. Porém tal proximidade se dá
apenas simbolicamente, entendendo que há uma hierarquização entre as
culturas (CUCHE, 2002), mas mais fortemente a partir de uma maior
familiarização com um imaginário positivo do que seria o cotidiano de uma
favela do que de uma aproximação propriamente dita.
Considerações Finais
A partir do caminho teórico trilhado por este artigo, com o intuito
de refletir sobre a construção midiática da telenovela enquanto gênero
ficcional relevante nas formações culturais e identitárias do país, tendo por
base os Estudos Culturais, evidenciou-se as questões hegemônicas presentes
nas relações com as quais os habitantes de uma favela veem-se envolvidos em
suas práticas culturais cotidianas dentro e fora da favela e representados na
ficção. Mesmo que refletindo apenas anseios e expectativas deste perfil
identitário. Mesmo que refratando questões muito mais aspiracionais desta
audiência do que representando uma complexidade social envolta na
escassez e nas limitações sociais, econômicas e culturais que as colocam na
posição de dominantes.
Ao envolver os moradores da favela na construção da trama ficcional,
ao inspirar-se em suas histórias de vida, ao recriar seus espaços de
convivência num cenário fictício de grandes proporções, a novela assume
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uma responsabilidade diante desses anseios de modificar ideias
preconcebidas, estigmas e estereótipos acerca da carga semântica que
envolve o termo favela, construída historicamente a partir do processo
econômico, social e político com o qual passou.
Em conformidade com um projeto de pesquisa de recepção que
intenciona refletir sobre as representações sociais construídas
midiaticamente e suas imbricações na forma como os sujeitos compõem suas
identidades locais dentro do contexto da sociedade de consumo e como os
mesmos compreendem estas representações midiatizadas, esta análise acerca
das particularidades sociais e culturais que envolvem a construção narrativa
da telenovela I Love Paraisópolis nos dá um suporte teórico e conceitual
inicial para prosseguir e melhor estruturar uma análise empírica que
contribua para ampliar os estudos sobre os meios e as mediações propostos
por Martín-Barbero (2013) e explorados por Lopes, Borelli e Resende (2002).
Referências
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Webseries - a internet como espaço de
experimentação - da aisthesis a uma nova
poisesis
Maria Inês Almeida Godinho – UNIMAR
Introdução
A internet possibilitou que indivíduos e grupos trouxessem para o
espaço coletivo sua cultura e seu cotidiano, dando visibilidade a novas
produções de saberes, como afirma Martin Barbero (2010). No caso do
conteúdo audiovisual, o compartilhamento de vídeos produzidos por
internautas desvinculados de grandes empresas de produção de conteúdo
acabou relativizando os papéis de produtor e de telespectador como
estabelecido anteriormente pela televisão, onde, como afirma De Certau
(2007, p.94) este último é sempre "afastado do produto, excluído da
manifestação".
A internet torna-se, assim, o campo definitivo para a concepção de
novos formatos e narrativas que podem colocar em xeque a linguagem
audiovisual consumida através da televisão, pois como afirma Lopes (2006),
"a experiência não é apreendida para ser repetida, simplesmente,
passivamente transmitida, ela acontece para migrar, recriar, potencializar
outras vivências, outras diferenças".
Para Jenkins (2009), o usuário da internet não é somente um
consumidor apático, mas sim um construtor de conteúdo, já que é a partir
da experiência estética - a experiência da recepção - que se inicia a
experiência poética: o receptor transforma a aisthesis em poiesis, criando um
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novo texto e um novo posicionamento social ao gerar novos significados.
Barros (2012) complementa a afirmação, comentando que essa operação
circular de imaginar e interpretar "leva o leitor a construir novas formas e
sentidos, a partir de seu contexto, 'transgredindo' as referências propostas no
texto".
Neste artigo tenta-se simular uma análise sobre como a experiência
estética dos internautas em relação à televisão é transformada em experiência
poética na produção audiovisual compartilhada no site Youtube. Este exame
superficial se atém aos aspectos relacionados à linguagem audiovisual
trabalhada em dois episódios - "A Barraqueira da Rua 07" e "A Popozuda do
Jordão Baixo" - das webseries "As pernambucanas" e "As joeenses",
respectivamente, paródias das séries televisivas "As brasileiras" e "As
cariocas", exibidas pela Rede Globo de Televisão entre os anos 2010 e 2011.
Como observa Dewey (apud Esquenazi, 2010), a função da obra de
arte consiste "em propor às comunidades sociais experiências através das
quais revivam de forma renovada as suas práticas cotidianas mais
problemáticas". Assim, a intenção deste artigo é avaliar, ainda que
superficialmente, se nas webseries brasileiras o cotidiano do produtor se faz
presente na narrativa, já que a carga simbólica de uma peça audiovisual não
se resume ao seu 'conteúdo', pois não está descolado da estruturação da
'forma' da narrativa, definida a partir de uma complexa rede de relações entre
os vários elementos de significação que compõem a linguagem audiovisual:
planos, ângulos, movimentos de câmera, música, falas, ruídos, silêncio,
iluminação, figurino, cenário, montagem, etc.
Portanto, a partir da escolha de cada elemento de linguagem, daquilo
que o autor deseja revelar ou esconder, a construção da narrativa audiovisual
apresenta a seus espectadores representações estéticas e ideológicas que na
maioria das vezes não são percebidas. Como comenta Xavier (1984, p. 10), o
audiovisual é "sempre um fato de linguagem, um discurso produzido e
controlado, de diferentes formas, por uma fonte produtora".
Neste artigo, o exame das webseries "As pernambucanas" e "As
joeenses" tem como objetivo verificar como é efeitivada a inclusão do
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cotidiano dos produtores, ou seja, se a narrativa é concebida de forma a
reelaborar o discurso televisivo, subvertendo seus códigos audiovisuais a fim
de compor um retrato mais fiel de sua experiência diária, ou simplesmente
os reproduz, agregando suas regras narrativas, que retiram da peça qualquer
vestígio de individualidade.
Como o foco desta apreciação está no internauta, que consome
televisão e ao mesmo tempo produz peças audiovisuaus para a veiculação na
internet, a análise parte de uma perspectiva sociocultural, no caso o "mapa
noturno" das mediações culturais elaborado por Martín-Barbero (2004;
2008), que se destina a olhar como a comunicação, a cultura e a política se
articulam na recepção da produção midiática.
Séries televisivas e webseries
Na última década as séries televisivas veiculadas principalmente
pelos canais por assinatura, experimentaram uma explosão de audiência. Isso
se deve a inúmeras razões: a baixa qualidade da programação da televisão
aberta, o barateamento dos pacotes de TV fechada, o advento dos canais de
streaming de vídeo e, o mais importante, à qualidade da narrativa trabalhada
nestes produtos audiovisuais.
A hipótese de François Jost (2012, p. 09) é que o sucesso das séries
não se deve aos procedimentos narrativos que utilizam, mas
primordialmente às relações que estabelecem com o espectador através da
abordagem de questões e necessidades do ser humano: "o sucesso das séries
explica-se menos pela sua capacidade de refletir de forma realista sobre o
nosso mundo do que por suas condições de oferecer uma compensação
simbólica".
Para Esquenazi (2010, p. 13), as séries televisivas criaram um novo
registro da arte ao "utilizar rapidamente instrumentos originais, mas
afirmando sempre as suas relações com, por um lado, a imensa herança da
ficção popular e, por outro, com as dificuldades da vida contemporânea".
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De extrema importância é citar a onda criativa verificada nas séries
norte-americanas veiculadas nas TVs por assinatura de todo o mundo no
início dos anos 2000, principalmente a partir da criação de Lost (2004-2010)
e seu ápice de audiência e culto com Breaking Bad (2008-2013). Estas novas
séries parecem ter impulsionado a produção de webseries, conteúdo
audiovisual seriado produzido por internautas e veiculado em sites de
compartilhamento de vídeos como o Youtube e o Vimeo.
A narrativa seriada na internet segue os mesmos passos da série
televisiva, como a predileção do público de todas as idades por histórias bem
contadas e a obsessão ocasionada pela narrativa seriada. Mas, de acordo com
Centellas e Romero (2008), o diferencial das webseries quando em relação
com as séries televisivas é a interatividade com o receptor:
As webseries renovam estratégias narrativas que foram já consolidados
por algum tempo na televisão. Mas elas incorporam recursos on-line
como progressão da história e a participação ativa do público na história
pela facilidade com que este meio interativo permite a geração de
comunidades virtuais - algo que é fundamental para consolidar o universo
ficcional das séries. (CENTELLAS & ROMERO, 2008)
Desta diferenciação nasceu o interesse em analisar como a
linguagem audiovisual consumida através da recepção das séries televisivas
brasileiras influencia na construção das webseries nacionais veiculadas no
Youtube, site de compartilhamento de vídeos mais popular do país.
Da astheisis a uma nova poiesis
As pesquisas iniciais sobre a área de comunicação privilegiaram os
estudos sobre a função do emissor a partir de teorias com ênfase na análise
funcionalista, que supunham um grande poder dos meios de comunicação
de massa em atingir o receptor e ordenar seu contexto social. A partir da
metade do século XX outras correntes teóricas se empenharam em trazer o
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receptor para o centro do processo comunicacional, alterando seu papel de
mero receptáculo de mensagens para o de produtor de sentidos.
Esta revalorização do receptor se inicia nos estudos de hermenêutica,
em torno de autores como Paul Ricoeur e Hans-Georg Gadamer. De acordo
com Casanova (2008b, pp. 68-69), Gadamer não concordava com a
hermenêutica romântica - como ele denominava a hermenêutica clássica -,
pois a considerava insuficiente, já que nela a dinâmica da compreensão e da
interpretação é unilateral, pois procura encontrar um caminho rumo ao
sentido original dado pelo autor da obra. Para Gadamer isto é impossível, já
que não existe um intérprete tão genial da obra de um autor que possa chegar
ao sentido original desta obra, pois o sentido pensado pelo autor do texto
sempre se perde na interpretação. Por isso deve-se levar em conta a inserção
do intérprete no horizonte de realização do compreender.
Ainda segundo Casanova (2008a), para Gadamer essa inserção se dá
através da vinculação da compreensão com a linguagem (meio universal da
realização da compreensão) e com a história (realidade última de nosso ser).
Para ele, toda compreensão e toda interpretação sempre acontecem no
interior da linguagem, uma vez que é somente nela que acontece "a
atualização de sentidos que esperam incessantemente o instante propício
para despertar".
No mesmo texto Casanova explica que para Gadamer a
compreensão mostra-se como uma atividade que não apenas se nutre dos
conteúdos presentes na linguagem, mas que também os amplia
criativamente, levando adiante a vida da linguagem: "a arte nos fornece um
repertório significativo que sempre convida a novos caminhos
interpretativos, e não somente a repetir os já dados".
O entendimento sobre o campo da hermenêutica gadameriana
influenciou os estudos de recepção da escola de Konstanz, a partir de autores
como Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, que, de acordo com Barros (2012,
p. 07) "procuraram revalorizar a figura do leitor no processo de interpretação
das obras literárias, superando o determinismo marxista e a linearidade
formalista".
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Esta linha de pensamento hoje é compartilhada por autores como
Jesús Martin-Barbero e Guillermo Orozco Gómez, expoentes dos estudos
latino-americanos de recepção, que parte para a compreensão da recepção
como o local da negociação e da ressignificação dos discursos. Para MartinBarbero (2008) deve-se enxergar o processo da comunicação integralmente,
e não somente a partir da produção ou da recepção separadamente, onde os
papéis de produtor e receptor são estanques. O autor afirma que esta
polarização acaba levando a uma visão errônea de que o processo é passivo,
somente com a assimilação por parte do receptor, e conclui que o receptor é
também um produtor de sentidos; sentidos estes produzidos através de seu
cotidiano, de suas referências culturais.
Assim o autor pede um deslocamento dos estudos de comunicação
dos meios de transmissão para as mediações culturais, "para as articulações
entre práticas de comunicação e movimentos sociais, para as diferentes
temporalidades e para a pluralidade das matrizes culturais" (2009, p. 261).
Barbero acredita que deslocar-se dos meios de comunicação para as
mediações é um resgate dos espaços sociais e do cotidiano do receptor.
Orozco Gómez (2006, p. 28) resume a proposta da teoria das
mediações através do que chama de 'nova pergunta': "como as pessoas
utilizam os meios de comunicação de massa?", que se contrapõe à 'velha'
pergunta "como os meios influenciam as pessoas?".
No caso deste estudo preliminar, a análise das mediações culturais
que perpassam a produção dos youtubers inclui a recepção da televisão, já
que se trata de produtores que também são consumidores de narrativas
audiovisuais veiculadas pela televisão. Mas como afirma Orozco Gómez
(2006, p. 30), a influência da televisão no espectador não é totalizadora,
apesar da intenção de seus produtores de oferecerem uma leitura
preferencial: "em parte, porque toda tecnologia sempre dá lugar à
criatividade de quem a utiliza. Em parte, também, porque o conteúdo da
programação é polissêmico e pode ser percebido e interpretado pelo
telespectador de diversas maneiras".
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Esta interpretação, de acordo com o autor, também se deve ao fato
de que a televisão não é a única instituição social presente na vida do
espectador; não é a única mediação cultural. Ela coexiste com outras
instituições influenciadoras, a exemplo da família, da vizinhança, da escola,
da igreja, "com os quais compete na tentativa de fazer valer suas significações
e predominar na socialização dos telespectadores" (2006, p. 30).
Gomez alerta, ainda, que estas instituições, denominadas mediações,
juntam-se a outras variáveis, como o acesso à tecnologia, a posição social, a
raça, o sexo e o nível de escolaridade dos receptores, entre outras,
perpassando a vida dos receptores e interferindo nos sentidos propostos pela
televisão, para, finalmente, fazer com que cada indivíduo construa seus
próprios significados. Como resume o autor, os conteúdos da TV são
combinados ao mundo simbólico de cada receptor porque o público da
televisão é um "ente em situação", que se constrói, não nasce feito.
O mapa noturno de Jesús Martin-Barbero
O "mapa noturno" se configura em dois eixos: o diacrônico, que
relaciona as matrizes culturais e os formatos industriais; e o sincrônico,
conectando as lógicas de produção às competências de recepção ou
consumo. Estas categorias se articulam por meio de quatro mediações institucionalidade, tecnicidade, ritualidade, socialidade. De acordo com
Ronsini (2010, p. 60), dessa forma o mapa de Martin-Barbero nos leva a
compreender a recepção da comunicação em uma perspectiva "que envolve
o contexto tecnológico, bem como os aspectos políticos, econômicos,
culturais e sociais que o atravessam".
Neste artigo, a análise dos capítulos "A Popozuda do Jordão Baixo" e
"A Barraqueira da Rua 07" das webseries "As pernambucanas" e "As joeenses"
serádesenvolvida a partir do eixo diacrônico, pensando nas transformações
e rupturas das lógicas de produção e também nas competências da recepção,
e privilegiando a análise da mediação tecnicidade, entendida como a forma
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com que as matrizes culturais perpassam a construção de linguagens e
narrativas.
É o próprio lugar da cultura na sociedade que muda quando a mediação
tecnológica da comunicação deixa de ser meramente instrumental para
espessar-se, adensar-se e converter-se em estrutura. Pois a tecnologia
remete hoje não só, e nem tanto, à novidade dos aparatos, mas também a
novos modos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e
escrituras. (MARTIN-BARBERO, 2014, p. 25)
Da série televisiva às webséries - "As cariocas" e "As brasileiras" X "As
pernambucanas" e "As joeenses"
A série televisiva "As cariocas", veiculada em 2010 pela rede Globo
de Televisão, é uma adaptação do livro homônimo de Sérgio Porto, também
conhecido como Stanislaw Ponto Preta. A obra literária reúne seis crônicas
que contam a história de mulheres de diferentes bairros cariocas, e a série,
por sua vez, foi dividida em dez episódios semanais, ficando no ar durante
três meses (de outubro a novembro).
O roteiro da série televisiva esteve a cargo de Adriana Falcão, Clarice
Falcão, Claudia Tajes, Gregório Duvivier e Marcelo Saback, com redação
final de Euclydes Marinho. A direção foi de Daniel Filho, Cris D'Amato e
Amora Mautner. Cada um dos episódios, independentes entre si, foi
protagonizado por uma atriz diferente e situado em um bairro do Rio de
Janeiro. Entre as atrizes estavam Angélica, Alessandra Negrini e Paola
Oliveira, relacionadas a vários bairros da cidade.
No ano seguinte, 2011, a emissora colocou no ar um spin-off56 de "As
cariocas" chamado "As brasileiras". A nova série foi exibida em 22 episódios,
cada um protagonizado por uma atriz e situado em um estado diferente do
Brasil. Também com direção de Daniel Filho, teve como protagonistas atrizes
56 Spin-off é uma obra narrativa derivada de uma ou mais obras já existentes, que se concentra em um
aspecto particular da narrativa original; como um personagem, por exemplo.
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do casting da emissora, a exemplo de Fernanda Montenegro, Letícia
Sabatella, Giovanna
Antonelli, entre outras, que interpretavam mulheres moradoras de
cidades brasileiras como Olinda, Belo Horizonte e São Paulo.
Logo após a veiculação de "As cariocas" e "As brasileiras" pela Rede
Globo de Televisão, começaram a surgir várias paródias das duas séries no
Youtube, construções espontâneas de internautas motivados por suas
próprias vivências e experiências relacionadas aos estados e cidades
brasileiras, a exemplo de "As pernambucanas", "As baianas", "As paulistas",
"As joeenses" e "As cachoeiranas", entre outras.
A webserie "As joeenses", compartilhada no Youtube a partir de
setembro de 2012, conta, em cinco episódios, as aventuras de cinco mulheres
da cidade de São José dos Campos, estado de São Paulo. No primeiro
programa da série - "A Barraqueira da Rua 07" (09m54) - Joelma (Joana
Langeani) e sua amiga Maria do Socorro (Mariana Ayami) vão viver uma
aventura no centro da cidade, atrás de Ricardo (Leandro Veneziani), ator que
também é autor do roteiro e assina a direção.
"As pernambucanas", com nove episódios, foi produzida pela equipe
do Papeiro da Cinderela, grupo humorístico de Recife. O segundo episódio,
"A Popozuda do Jordão Baixo" (06m58), narra a vergonha de Ekrézia quando
a vizinhança de seu bairro descobre que seu afamado traseiro é, na verdade,
um molde de espuma.
A linguagem audiovisual nas webseries "As pernambucanas" e "As
joeenses" - da aistheis a uma nova poeisis?
Na composição visual e sonora de uma peça audiovisual a "realidade"
não é composta somente pelo oral: a música, os planos de enquadramento,
os movimentos de câmera, a iluminação, o figurino, o cenário, a edição etc.,
não são meros artifícios visuais ou sonoros. Eles são, sim, os elementos de
articulação do cinema ou do vídeo enquanto sistema de expressão.
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Estes signos são normalmente trabalhados nas produções televisivas
da TV aberta e nos filmes comerciais de modo a reconstruir o sentido de
orientação que o espectador experimenta em sua vida cotidiana. O objetivo
é a imposição da representação audiovisual como se fosse a própria realidade
para que o mecanismo de identificação possa ser deflagrado.
Este modelo narrativo foi moldado a partir do sistema industrial
implantado pela indústria do cinema norte-americano a partir da Primeira
Guerra Mundial. O sistema da montagem invisível elaborou com cuidado o
mundo a ser observado através do cinema, desenvolvendo um estilo tendente
a controlar tudo, de acordo com a concepção do cinema como produto de
fábrica.
Consagrado pelo cinema mundial e depois assimilado pela televisão
e pelo vídeo, este tipo de construção narrativa segue uma estratégia de
naturalização do discurso, utilizando-se de uma linguagem quer ser
ignorada, cujas técnicas e modos de produção devem ser invisíveis. É o que
Wollen (1996, p. 78) chama de "texto sem costuras": uma narrativa que não
revela suas lacunas e interrupções para que não se quebre o encanto da
história e os receptores possam mergulhar na narrativa e se identificar com
seus personagens.
Portanto, a experiência da recepção audiovisual permite que o
espectador "mergulhe" na história, esquecendo-se que está separado
fisicamente da peça audiovisual, funcionando como uma janela "que se abre
para um universo que existe em si e por si, embora separado do nosso mundo
pela superfície da tela" (XAVIER, 1984, p. 15).
A trilha sonora, por exemplo, é composta de ruídos (de campo ou de
sala), das falas dos personagens ou do narrador, da música e dos efeitos
sonoros; elementos que podem criar a ambientação ou mesmo sustentar uma
ação, ao sublinhar, comentar, criticar ou até mesmo substituir uma imagem.
O silêncio também faz parte da trilha sonora, e pode pontuar, até melhor que
a intervenção de uma música, a tensão dramática de uma cena, como símbolo
de morte, ausência, perigo, angústia ou solidão.
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Mas o que se constata nas peças produzidas para a televisão,
principalmente aquelas que serão veiculadas na TV aberta brasileira, caso das
séries "As cariocas" e "As brasileiras", é o uso de músicas (melodia e letra),
efeitos sonoros e ruídos que reforçam o conteúdo das cenas - sejam elas
românticas, tristes ou de perseguição -, sem qualquer intenção de subverter
os usos já consagrados.
Já na abertura, temos contato com a utilização da música de maneira
pouco criativa, simplesmente reforçando o que vemos na tela: atrizes
protagonistas desfilam com vestidos de baile em um cenário branco, como
se estivessem em uma passarela. A música "Bela, a Fera", de Pedro Luís e a
Parede, somente ilustra a beleza das mulheres e o ambiente que simula uma
passarela: "Bela, bela, bela. Ela anda na rua como quem passa na passarela, o
mundo é dela. [...] A bela é linda, é nossa ela, é da cor do Brasil".
No caso do episódio "A Barraqueira da Rua 7" da webserie "As
Joeenses", cujo tema é um mal-entendido que envolve uma mulher que
confunde o namorado com seu irmão gêmeo, situação clichê presente em
diversas produções televisivas, sua abertura utiliza a mesma música de
abertura de "As cariocas", o que chamou atenção para a falta de referências
sonoras ao cotidiano das mulheres de São José dos Campos.
Já em "As pernambucanas", o grupo produtor trabalha com efeitos
sonoros e música de composição própria, indo ao encontro de um tipo de
design sonoro que Walter Munch (MENDES, 2006) imprimia a filmes como
"O poderoso chefão" e "Apocalipse noW: música e sons ambientes que não
apenas redundem o espaço da imagem, mas que acrescentem informações
sobre o estado emocional dos personagens.
Os movimentos e ângulos de câmera e os planos de enquadramento
talvez sejam os elementos narrativos audiovisuais onde é mais perceptível seu
uso como recurso para orientar o ponto de vista do espectador, na medida
em que destacam ou ocultam imagens que o conduzam àquilo que deve ou
não ser visto.
Os movimentos de câmera, por exemplo, são utilizados para
reproduzir o movimento dos olhos de quem vê (zoom ou panorâmica) ou
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para acompanhar algo ou alguém em movimento (travelling), como se uma
pessoa estivesse se movimentando.
As metáforas que propõem a lente da câmera como uma espécie de olho
de um observador astuto apoiam-se muito no movimento de câmera para
legitimar sua validade, pois as mudanças de direção, os avanços e recuos,
que permitem as associações entre o comportamento do aparelho e os
diferentes momentos de um olhar intencionado. (XAVIER, 1984, p. 15)
Em relação aos ângulos de câmera, o que se vê nas séries "As
brasileiras" e "As cariocas" são truques desgastados, como na utilização da
câmera baixa para ressaltar o poder dos personagens; o que também se
concretiza nas webseries "As pernambucanas" e "As jooenses".
Para a produção das séries "As cariocas" e "As brasileiras" foram
criados cerca de uma centena de cenários para dar conta das características
regionais das cidades onde viviam as protagonistas. Mas a recriação dos
ambientes não comtemplou a realidade das comunidades retratadas, e sim
tratou de representar as características de "cartão-postal": somente aquilo que
era aprazível, o que deveria ser visto em uma produção bem humorada.
Em uma narrativa considerada mais elaborada, o cenário pode ser
escolhido em função da dominante psicológica da ação, já que condiciona e
ao mesmo tempo reflete o drama dos personagens. Um exemplo é um
deserto usado como locação, que pode exprimir vários sentimentos de um
personagem, como solidão, insegurança ou angústia.
Aqui existe uma grande diferença entre os cenários onde se passam
as ações das webseries "As pernambucanas" e "As jooenses": na primeira, pelo
menos no episódio analisado, as cenas são gravadas em um bairro pobre, com
ruas esburacadas e casas com revestimento de má qualidade, garantindo,
assim, uma maior relação com a realidade dos moradores das periferias
pernambucanas. Em "As joeenses", o conflito se passa no centro comercial e
em uma praça bem cuidada da cidade de São José dos Campos, limitando-se
à mera inserção de um cenário regional na narrativa.
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A iluminação tem a função de criar "clima", isto é, criar a atmosfera
emocional de um filme ou vídeo. É um dos mais importantes efeitos
dramáticos, pois, assim como a maquiagem e o figurino, faz parte dos
elementos da direção de arte que evidenciam emoções e atitudes dos
personagens, "vestindo" sua personalidade.
Nas séries televisivas "As brasileiras" e "As cariocas", a iluminação, o
figurino e a maquiagem são trabalhados dentro do conceito de reforço à ação:
cores fortes e luminosidade quando as cenas são alegres e pitorescas; tons
escuros quando as cenas são tristes, sombrias ou ameaçadoras, além de
matizes quentes, como a utilização da cor vermelha nas cenas de sedução ou
violência.
Quanto às webseries "As pernambucanas" e "As jooenses" optamos
por não analisar a iluminação destas produções, já que partimos do princípio
que em produções amadoras a elaboração da luz fica prejudicada porque
depende de equipamentos pouco acessíveis.
Sergei Eiseintein (2002) teorizou que a montagem de imagens
deveria gerar um conflito entre dois planos unidos, fazendo com que na
mente do espectador surja um terceiro conceito. Exemplo: a imagem da água
mais o desenho de um olho significaria chorar. Já para o teórico André Bazin
(1992), a manipulação da realidade mediante o corte era considerada
perigosa, pois poderia distorcer essa mesma realidade, já que dirige e
controla as emoções do espectador, reorganizando a realidade descrita pelos
planos que constroem a narrativa. Para o autor, a edição de imagens e sons
deveria ser transparente ao espectador.
Mas não é o que acontece na nas séries "As brasileiras" e "As
cariocas", onde a montagem sequencial das imagens e sons funciona dentro
de um conjunto de regras mediante as quais o produto audiovisual deve
transmitir um simulacro de realidade.
Mais uma vez a webserie "As jooenses" não subverte as regras, como
se vê na edição de som e imagem do episódio "A Barraqueira da Rua 07". No
entanto, em "As pernambucanas" o grupo produtor insere na montagem
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efeitos visuais e sonoros e animação gráfica, em uma visível tentativa de
diferenciar-se de produções que seguem à risca os manuais de edição.
Considerações finais
De acordo com Esquenazi (2010, p. 48), "qualquer produto cultural
tem, simultaneamente, um valor mercantil e um valor cultural", na medida
em que são intervenções que refletem situações do cotidiano, confirmando a
perspectiva das mediações culturais propostas por José Martin-Barbero.
Portanto, as webseries devem contar sobre a vida de seus produtores e seus
espectadores, e também sobre o tempo em que vivemos.
Mas após essa breve e superficial análise das webseries "As
pernambucanas" e "As jooenses" se pode afirmar que as produções
audiovisuais compartilhadas na internet ainda estão presas às regras
manipulatórias dos elementos significantes trabalhados pelas emissoras de
televisão e consumidas pelos internautas em décadas de consumo
audiovisual.
Mas, apesar dos limites analíticos deste exame precário, a webserie
"As pernambucanas" pode ser tomada como um exemplo de experiência
estética que se transforma em experiência poética ao fazer circular a leitura
de mundo de seus receptores-produtores na medida em que, desde sua
abertura, utiliza referências a seu cotidiano, como tipos humanos que
normalmente não estão representados na televisão, como anões, obesos,
transexuais, em uma crítica aos estereótipos e preconceitos que povoam as
produções televisivas nacionais.
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Do fundo do baú para as telas do cinema –
reflexões sobre a prática de apropriação de
imagens de arquivo pelo cinema
Mili Bursztyn – UFRJ
Introdução
Este trabalho propõe uma reflexão sobre as imagens que são
produzidas por pessoas comuns ao longo de suas vidas, ou são colecionadas
pelas mesmas de forma a integrar seus acervos privados e afetivos. Por
motivos diversos estas imagens sobrevivem ao tempo e, quando retomadas
no presente, se prestam ao papel de transmissoras de lembranças e memórias
particulares. Estes registros têm recebido cada vez mais atenção de teóricos
dos campos da história e do cinema. Para o historiador Pierre Nora (1993),
nenhuma época foi tão produtora de arquivos como a nossa. Se, por um lado,
podemos entender este processo como consequência do desenvolvimento
tecnológico, que permitiu a democratização do consumo de equipamentos
como câmeras fotográficas e filmadoras, por outro lado, não devemos
descartar, ao analisar este fenômeno, uma forte preocupação do indivíduo
contemporâneo com a preservação e perpetuação de suas lembranças e
origens. Para Nora esta preocupação se deve, em grande parte, ao
desaparecimento da memória tradicional, que é aquela que "emerge de um
grupo que ela une" (NORA, 1993, p. 15).
"À medida em que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos
obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos,
documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se esse
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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dossiê cada vez mais prolifero devesse se tornar a prova em não se sabe
que tribunal da história." (NORA, 1993, p. 15)
Para refletir sobre os efeitos desta tendência "arquivista" e os usos
que se faz das imagens produzidas sob influência desta lógica, propomos a
análise de dois filmes do cineasta francês Henri-François Imbert: o médiametragem Sur la Plage de Belfast (França,1996) e o longa-metragem No
passaràn, Album Souvenir (França, 2003). As duas obras partem do
encontro do cineasta com diferentes tipos de imagens de arquivo. No
primeiro caso, Imbert acha dentro de uma câmera super 8, comprada de um
antiquário, um rolo de filme de família provavelmente esquecido dentro da
filmadora pelos proprietários anteriores. Já no segundo, o diretor descobre
entre os pertences de seus bisavós alguns cartões postais pertencentes a uma
série que retrata a entrada na França, em 1939, de um grupo de republicanos
espanhóis fugidos do regime franquista. A partir da descoberta destes
registros, Imbert inicia tanto no média, quanto no longa, uma busca pelo que
está escondido naquelas imagens e que não pode ser apreendido à primeira
vista.
Apesar de pertencerem a diferentes categorias, as imagens que
aparecem em cada um dos dois filmes estão inseridas em um mesmo
contexto social de crescente preocupação com o registro e a preservação de
uma memória particular. Embora os cartões postais não se enquadrarem na
definição mais tradicional de imagens de família, entendemos que, por
retratarem eventos marcantes na vida dos parentes do cineasta, os postais
também se prestam ao papel de conservar as lembranças de um evento
passado. Neste sentido, eles se aproximam da função social dos filmes de
família e compõe o mosaico de memórias íntimas e subjetivas de um grupo
específico de pessoas.
Retomando as palavras de Pierre Nora, "produzir memória é um
imperativo da época", uma vez que, ainda segundo ele, quanto "menos a
memória é vivida coletivamente, mais ela tem necessidade de homens
particulares que fazem de si mesmo homens-memórias" (NORA, 1993, p.
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18). Além do aspecto político e social que une as imagens trabalhadas por
Imbert, o cineasta adota em ambas as produções a mesma postura
indagadora perante o que vê, procurando tanto no filme de família de Sur la
Plage de Belfast, quanto nos cartões postais de No passaràn, Album
Souvenir, identificar e isolar os detalhes que podem levá-lo a desvendar os
mistérios, que como veremos a seguir, estão no centro do enredo de cada
filme. A preocupação com o que se esconde no detalhe dos registros é,
segundo a historiadora Sylvie Lindeperg (2013), fundamental para a análise
de documentos como os trabalhados pelo diretor. Lindeperg destaca que a
partir da década de 1990 as imagens de arquivo passaram a chamar cada vez
mais atenção da indústria cultural. Porém, apesar do crescente interesse,
pouco se explorou "o momento singular do registro da imagem"
(LINDEPERG, 2013, p. 10). Reconstituir as circunstâncias em que os
registros foram efetuados nos permite extrair da imagem novas informações
que de alguma forma ultrapassam aquilo que elas nos dizem à primeira vista.
No entanto, este exercício exige um olhar atento e sensível aos "pormenores
negligênciáveis" - assim nos diria outro historiador, Carlo Ginzburg (2002) contidos na imagem de arquivo. Imbert faz uma abordagem dos documentos
próxima do que Lindeperg propõe quando sugere que se siga "o caminho das
imagens" (LINDEPERG, 2013, p. 10). Na tentativa de reconciliar passado e
presente, o diretor tenta encontrar os locais exatos em que os registros
investigados foram efetuados. Assim, como veremos a seguir, ao atualizar as
imagens de arquivo no presente, o diretor traz para a tela uma dimensão
extra-campo riquíssima que nos permite pensar sobre a prática de produção
e preservação de imagens dentro de um universo privado, seus possíveis usos
em âmbito público e os sentidos e interpretações que estes registros
permitem. Porque nos preocupamos em eternizar certos eventos em forma
de filmes e fotografias? O que nos leva a guardar determinadas imagens e
perder outras? De que forma estes registros podem ser atualizados no
presente, revelando novos olhares sobre temas passados e contemporâneos?
Para discutir estas questões propomos uma reflexão sobre a relação entre
memória e história, explorando desde aquilo que identificamos como
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intencional nos registros, até o que pode ter aparecido por acaso, sem que o
autor das imagens se desse conta no ato da tomada. Há algo a mais nas
imagens analisadas por Imbert. Algo que ultrapassa a relação de indicialidade
e referencialidade com o real. Este algo a mais vem à tona através do olhar
particular e sensível do cineasta. Como veremos a seguir, o gesto de Imbert
abre essas imagens para novas interpretações, permitindo que novos olhares
se lancem sobre eventos passados.
Sur la plage de Belfast
Sur la Plage de Belfast é um documentário francês de 1996. Sua
história começa alguns anos antes quando Imbert encontra dentro de uma
câmera recém-adquirida por sua namorada em uma viagem à Belfast, na
Irlanda do Norte, um rolo de filme super 8. O filme abre com uma sequência
de três situações que se passam em cenários diferentes. Na primeira situação
a câmera revela uma praia qualquer em que duas mulheres vestidas de branco
caminham em direção ao mar. A câmera faz um zoom in e percebemos ao
fundo a presença de mais duas pessoas, um homem e uma criança. Sobre a
sequência da família entra a voz de Imbert em off. O tom de voz do cineasta
é sempre muito intimista e calmo. Imbert começa introduzindo as
circunstâncias em que encontrou o rolo de super 8 com as imagens que o
espectador vê na tela. Como o filme havia ficado inacabado dentro da
câmera, o cineasta conclui que alguém o esqueceu ali.
É interessante perceber como Imbert introduz através de sua fala e
de algumas imagens a sensação constante de passagem do tempo. A escolha
por narrar os fatos de forma cronológica e linear permite que o espectador
compartilhe das emoções que guiam o diretor ao longo de sua jornada. O
cineasta consegue imprimir no documentário o ritmo lento e reflexivo que
caracterizam as suas tomadas de decisão. Aos poucos o espectador se dá
conta de que o objeto central de Sur la Plage de Belfast não é o rolo
encontrado, nem as pessoas que aparecem no filme de família, e sim o
percurso realizado pelo diretor desde o momento em que se depara com o
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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rolo dentro da filmadora até as andanças por Belfast na tentativa de devolvêlo aos seus verdadeiros donos. Para compartilhar com o espectador uma
dimensão sensível deste percurso, Imbert explora a passagem do tempo. Da
descoberta do rolo até a sua revelação, das inúmeras vezes em que assiste ao
pequeno filme até a decisão por procurar aquela família, das pessoas que
conhece ao longo do caminho até as pistas que o diretor "arranca" delas, em
todos esses momentos o texto de Imbert indica pausas, intervalos, momentos
de reflexão que antecedem novas tomadas de decisão e alteram os rumos do
filme. O interessante é que a sensação de passagem do tempo no filme se dá
sem que o diretor faça necessariamente uso de medidas formais como o
calendário e o relógio. O tempo no filme de Imbert é medido pela erosão e
transformação que agem sobre as paisagens e objetos que ele retrata. Antes
de dar início à sua jornada, Imbert levou o rolo de super 8 para ser analisado
em um laboratório especializado onde, com ajuda de um técnico, consegue
determinar algumas características físicas do objeto, como por exemplo, sua
data de fabricação. Por se tratar de um modelo de super 8 fabricado no início
da década de 1980, pelo menos 10 anos haviam se passado desde o momento
da tomada das imagens. Com esta informação em mãos, o diretor parte para
a Irlanda do Norte em busca do impossível: reunir-se com a família retratada
nas filmagens de uma década atrás. Uma vez em Belfast, Imbert procura por
pistas que possam auxiliá-lo em sua investigação. Para isso ele conversa com
habitantes da cidade e mostra a eles frames do filme. É assim que ele descobre
ao acaso a loja de antiguidades que aparece nos planos finais do rolo. A
identificação da loja é feita a partir de três detalhes que aparecem nas imagens
e que permaneceram intactos apesar dos anos: a fachada da loja da frente
conservava o mesmo letreiro, a porta de entrada do estabelecimento era a
mesma, assim como a sua maçaneta dourada e o chão quadriculado.
Guardadas as devidas proporções, o roteiro de Imbert lembra a
escrita poética de Virgínia Woolf em O tempo passa, segunda parte do livro
Ao Farol. Segundo Michael Serres, enquanto escrevia este livro, Virgínia
Woolf lia Proust (SERRES, 2013, p. 41). Para Serres tanto Proust, quanto
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Woolf tinham o dom de dar vida às coisas. Em uma análise sobre a segunda
parte do livro, ele destaca que
"Para medir o tempo, precisava de um relógio; ela [Woolf] utilizou uma
casa. Quem não viu, quem não sabe como envelhece uma moradia
abandonada? Ventos encanados se esgueiram, as águas se infiltram nos
interstícios; os ratos tomam conta; obstinadas, as aranhas tecem e se
multiplicam; o pó se amontoa sobre as tábuas desconjuntadas... até o breve
instante, leve como uma pluma, em que a cumeeira e o teto vêm abaixo de
uma vez só. Em meio às urzes, amantes farão dessas ruínas sua pousada,
intrusos aí farão seu piquenique... Da mesma maneira que o rosto e as
mãos dos velhos se cobrem de rugas até a hora, leve como uma pluma... A
cumeeira e as paredes carregam as marcas das intempéries e das semanas,
das tempestades e dos tempos. (SERRES, 2013, p. 41)
Imbert possui um dom parecido ao que Serres atribui à Woolf. De
forma semelhante à da escritora ele constrói uma narrativa impessoal, que
não está ancorada em um personagem central. Uma narrativa preocupada
com a descrição dos lugares, conferindo vida e autonomia às coisas
inanimadas. Ao seu modo ele também dá vida ao que observa pelo caminho
e, assim como Woolf e Proust, o cineasta francês não conta o tempo pelo
relógio e sim a partir dos efeitos que a passagem do tempo tem sobre a
paisagem, os objetos e as pessoas. Se a maioria dos habitantes de Belfast com
quem Imbert conversa não contribuem efetivamente para a resolução do
mistério do filme perdido, é porque o filme no final das contas não é sobre
descobrir a verdade oculta por trás de um evento (no caso o esquecimento
do rolo inédito dentro da câmera), e sim sobre os encontros desencadeados
por um simples objeto. Em Sur la Plage de Belfast o pequeno filme, como
Imbert se refere ao rolo de super 8, é o que inspira a produção do
documentário. Porém, logo deixa de ser a questão central do filme, cedendo
espaço para algo muito mais interessante: os diferentes olhares que o cineasta
consegue costurar. O importante não é o desfecho de sua viagem, mas o
caminho que ele percorre, os encontros com os habitantes de Belfast.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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No passarán, álbum souvenir
Quase uma década depois de rodar Sur la Plage de Belfast (1996),
Imbert lançou o longa No passarán, álbum souvenir (2003). Neste segundo
filme, o diretor também trabalha com imagens de arquivo, porém não com
um filme de família, e sim com seis cartões postais encontrados entre os
pertences de seus bisavós. Intrigado com as imagens que aparecem nos
postais e com as poucas informações impressas no verso de cada uma, Imbert
resolve pesquisar a origem daqueles registros. É assim que o cineasta
descobre se tratar de uma série de 29 cartões lançada em 1939 quando um
grupo grande de republicanos espanhóis cruzou a fronteira do país com a
França fugindo do regime de Franco. Diferente do documentário anterior,
Imbert não abre este filme com as imagens descobertas. O primeiro plano de
No passarán, álbum souvenir mostra as ondas do mar quebrando em uma
praia. O som do mar e do vento se misturam a uma música muito parecida
com a trilha sonora de Sur la Plage de Belfast. Após poucos segundos de
silêncio entra a voz serena de Imbert ainda sobre as imagens da praia. No
mesmo tom intimista do filme de 1996 ele narra:
"um dia, quando era criança, olhando os cartões postais dos meus bisavós,
me debrucei sobre alguns cartões que estavam sem remetente. Na legenda
aparecia o nome da cidade dos meus bisavós, nos Pirineus Orientais, perto
da fronteira com a Espanha: Le Boulou"57.
Logo após uma breve introdução sobre como, ainda pequeno,
escutava as histórias da Guerra Civil Espanhola que seu pai lhe contava,
Imbert apresenta os cartões colecionados por seus bisavós. Os postais
aparecem estáticos sob um fundo preto, sem que nenhuma intervenção seja
feita sobre eles. Neste primeiro contato, o espectador tem a oportunidade de
observá-los em sua forma original. O fundo preto, por sua vez, serve como
uma moldura que evidência os limites que os enquadramentos escolhidos
57
Transcrição de trecho do off de No passarán, álbum souvenir (2003). A tradução é
minha.
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pelos fotógrafos impõem. Ao trazer para o filme uma reflexão sobre os
detalhes que cercam o momento da tomada de uma das fotos da série, o
cineasta confessa que olhando atentamente para as imagens, as pessoas nelas
parecem cada uma mais enigmática que a outra. Enquanto mostra os postais
para o espectador, Imbert lê as legendas impressas no verso deles. Ao fundo,
o barulho do mar do primeiro plano imprime um tom de suspensão do
tempo. Em conjunto à serenidade da voz do diretor, o barulho de mar traz
um certo ar de monotonia ao documentário.
As poucas imagens em movimento usadas em No passarán, álbum
souvenir dão a impressão de que Imbert filmou menos que em Sur la Plage
de Belfast. Pelo menos é o que os escassos e repetitivos planos em
movimento sugerem. Neste documentário além das fotografias impressas
nos postais, o diretor também utiliza fotos em outros momentos para
mostrar lugares visitados por ele no presente. Por outro lado, o tempo
dedicado a este filme parece ter sido mais longo. Segundos as palavras do
diretor: "por anos eu guardei esses cartões como imagens misteriosas, sem
nunca chegar a entendê-las"58. Imbert tem o costume, nos dois filmes, de
passar grande parte da informação através de seus ofTs. Algumas vezes ele
coloca trechos das conversas que teve com as pessoas que encontrou no meio
do caminho. Porém, muitas vezes ele apenas descreve o evento relatando
com as próprias palavras o que a pessoa contou sem nem ao menos mostrar
o rosto do entrevistado. Nestes momentos da narrativa, os cartões postais,
as tomadas poéticas do mar e os planos sequência de estradas filmadas de
dentro de um veículo em movimento se alternam na função de imagens de
cobertura. O mar, aliás, é uma paisagem recorrente em No passarán, álbum
souvenir e surge nos momentos de contemplação, quando um respiro se faz
necessário, o que nos remete novamente ao texto O tempo passa de Woolf:
"As ondas quebrando pareciam a noite jogando a cabeça para trás e
deixando, desesperadamente, cair a sua escuridão, e meditando e
pranteando como se lamentasse a fatalidade que afogava a terra e
58
Trancrição de trecho do off de No passarán, álbum souvenir (2003). A tradução é minha.
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extinguia suas luzes e de todos os navios e vilarejos nada deixava restar. A
onda varre a praia; a noite pranteia o infortúnio humano; a beleza do mar
consola; assim o vento pode ter respondido aos adormecidos, aos
sonhadores que palmilhavam a areia perguntando: Por que nos embrulhar
na beleza do mar, por que nos consolar com o lamento das ondas
quebrando, se, em verdade, tecemos essa roupa por puro terror, urdimos
essa vestimenta para nada?" (WOOLF, 2013, p.4)
Nos embrulhando na beleza do mar, Imbert narra o destino de
centenas de espanhóis que, ao fugirem para a França, acabam confinados
pelo governo francês em campos de concentração. É possível que o mar
cumpra no filme a função de, com a sua beleza, consolar o infortúnio
humano? O vai e vem das ondas apontam para uma relação cíclica entre
passado e presente e ilustram a ideia de um eterno retorno, de um passado
recente não superado e que pode ser reconhecido em novas situações e
circunstâncias no presente. Na tentativa de refazer os passos dos
republicanos espanhóis em solo francês, Imbert procura pelos locais exatos
em que os campos foram montados. Curiosamente muito deles ficavam em
praias. Comparando os postais de 1939 com as paisagens atuais, mal dá para
imaginar que naquelas mesmas praias, onde hoje as pessoas se divertem, ali
onde hoje encontramos campings, onde famílias passam suas férias, naquele
mesmo lugar os primeiros campos de concentração foram implantados.
Campos de concentração estes, que segundo o diretor, teriam servido de
inspiração para os campos nazistas que vieram depois, com a Segunda
Guerra Mundial. Mal dá para acreditar também que, ainda hoje, na mesma
França, novos refugiados, desta vez fugidos de países do oriente médio,
sofrem, mais de meio século depois, dramas muito parecidos com os de seus
precursores espanhóis. Enquanto pesquisa sobre a existência dos campos de
concentração franceses e a relação deles com os cartões postais de seus
bisavós, o cineasta procura entre colecionadores e vendedores especializados
os 23 exemplares que faltavam para completar a coleção. É assim que ele
conhece alguns personagens interessantes, muitos dos quais testemunhas
oculares dos eventos retratados no filme.
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Campo e Extra-campo
Em uma conferência realizada em 1971 na Tunísia, Foucault analisa
a partir de 12 obras do pintor impressionista Manet, as inovações artísticas
introduzidas pelo artista francês que possibilitaram, segundo o filósofo, não
apenas o surgimento de um novo movimento artístico, como abriram
caminho para "toda a pintura posterior ao impressionismo" (FOUCAULT,
2011, p. 260). Assim, continua Foucault (2011), antes de Manet, a pintura
representativa ocidental do quattrocento tinha uma forte preocupação em
mascarar as limitações físicas do quadro. Era intenção deste tipo de arte criar
um artifício que permitisse que o observador esquecesse que estava diante de
uma pintura. Para apagar as linhas que separavam o mundo representado no
interior da tela do mundo que servia de referência para a mesma, o principal
recurso utilizado era o de criar uma ilusão de tridimensionalidade na pintura,
mascarando a bidimensionalidade da tela.
"Era preciso negar que o quadro fosse um pedaço de espaço diante do qual
o espectador podia se deslocar, em torno do qual o espectador podia girar,
do qual ele podia, em consequência disso, perceber um canto ou
eventualmente as duas faces, e é porque essa pintura, depois do
quattrocento, fixava um certo lugar ideal a partir do qual, e somente a
partir do qual, podia-se e devia-se ver o quadro; de modo que, se vocês
quiserem, essa materialidade do quadro, essa superfície retangular, plana,
iluminada realmente por uma certa luz e em torno da qual, ou diante da
qual, podia-se deslocar, tudo isso estava mascarado e desviado por aquilo
representado no próprio quadro; e o quadro representava um espaço
profundo, iluminado por um sol lateral e visto como um espetáculo, a
partir de um lugar ideal." (FOUCAULT, 2011, p. 261)
Conforme Foucault avança em sua apresentação, ele demonstra
como a pintura de Manet explora justamente aquilo que o campo das artes
negava até então: a materialidade da tela. No cerne da modificação que
Manet introduz neste campo está a "invenção do quadro-objeto"
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(FOUCAULT, 2011, p. 262). Ao longo da palestra Foucault analisa as telas
de Manet sob três perspectivas:
"(...) primeiramente a maneira pela qual Manet tratou do próprio espaço
da tela, como ele fez agirem as propriedades materiais da tela, a superfície,
a altura, a largura, de que maneira ele fez agirem essas propriedades
espaciais da tela naquilo que ele representava sobre essa tela. (...) na
sequência, em um segundo conjunto, buscarei mostrar-lhes como Manet
tratou do problema da iluminação, como nos seus quadros ele utilizou não
uma luz representada que iluminaria do interior o quadro, mas sim a luz
exterior real. Em terceiro lugar, como ele fez agir também o lugar do
espectador em relação ao quadro; e, para esse terceiro ponto, eu não
estudarei um conjunto de telas, mas uma apenas, que de resto resume, sem
dúvida, toda a obra de Manet, que é, além disso umas das últimas e umas
das mais desestabilizadoras de Manet, Un bar aux Folies-Bergère."
(FOUCAULT, 2011, p. 262)
Ao longo de sua palestra, Foucault faz uma exposição interessante
sobre como, através de suas telas, o artista francês levanta questões sobre
temas que na época começavam a chamar atenção de outros campos como,
por exemplo, o da psicanálise, da filosofia e da medicina. Uma destas
questões era o problema da atenção que, de acordo o teórico Jonathan Crary
(2013), se torna um assunto central a partir da modernidade. Assim como
Foucault, Crary também recorre às obras de Manet para demonstrar como a
noção de atenção e percepção se transformaram, desde o século XIX, e como
isto ocorreu junto com o desenvolvimento tecnológico que possibilitou o
surgimento de novas formas de entretenimento (cinema) e registro
(fotografia). O objetivo de Crary é demonstrar como na modernidade "a
visão é apenas uma das camadas de um corpo que pode ser capturado,
modelado ou controlado por uma série de técnicas externas" (CRARY, 2013,
p. 27). A análise dos trabalhos de Manet nos serve para pensar o papel da
subjetividade na construção de uma obra audiovisual como um
documentário.
Um dos pontos destacados por Foucault na obra de Manet é a
iluminação de suas telas. Diferente do que era comum até a época, o foco de
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luz que iluminava os espaços no quadro não estavam representados em seu
interior. A luz não vinha de uma janela pintada no interior da tela. Ela vinha
de algum lugar localizado fora do quadro, fora do campo de visão do público.
Com isto, o pintor francês sugeria a existência de um campo exterior à tela,
um extra-campo que de alguma forma se relacionava com o que era retratado
sobre a tela.
Esta relação campo e extra-campo também pode ser explorada pelo
documentário de forma a colocar em evidência o jogo entre o "real" e o "real
capturado pela câmera". Mesmo na mais fiel reprodução do mundo, como
pode ser o caso de uma fotografia, o instante capturado é apenas uma fatia
do mundo feito sob influência do ponto de vista de quem escolheu o
enquadramento e operou o registro. Ao posicionar a luz fora da tela, estaria
Manet apontando para o seu próprio olhar? Como se o olhar observador do
artista jogasse luz sobre as coisas do mundo? Nos dois filmes apresentados
neste trabalho reconhecemos a importância do olhar do diretor para extrair
sentidos dos objetos encontrados que ultrapassem aquilo que eles sugerem
superficialmente. Existe um esforço nítido de Imbert em desbravar e
apresentar ao espectador um pouco do extra-campo das imagens trabalhadas
nos documentários. Em No passarán, álbum souvenir o extra-campo surge
em alguns momentos através de descobertas que Imbert faz sobre os eventos
registrados nos postais em jornais de época pesquisados. Lendo as matérias
é possível sentir o clima, perceber como a situação era retratada e transmitida
à sociedade. Entender as circunstâncias históricas do momento tal como ele
foi percebido pelos meios de comunicação, certamente dão outra dimensão
às cenas em que os espanhóis marcham na esperança por liberdade, ou o
soldado francês oferece um cigarro a um membro das tropas de Franco,
enquanto um grupo de republicanos atravessa a fronteira da Espanha com a
França.
Para Sylvie Lindeperg é fundamental que se volte "ao ponto de
origem das imagens", para recuperar a "historicização do registro"
(LINDEPERG, 2013, p. 10). No entanto, não é apenas através deste recurso
que as imagens trazem para o primeiro plano o extra-campo situado ao seu
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redor. Os relatos que o diretor coleciona ao longo do caminho também
sugerem uma dimensão extra-quadro. As falas dos diversos atores que de
alguma forma compartilham de uma mesma experiência e de um mesmo
passado, produzem como efeito uma reflexão sobre os múltiplos olhares que
convergem sobre um mesmo evento. Tanto No passarán, álbum souvenir,
quanto Sur la Plage de Belfast, transitam nos limites entre uma história
universal e uma memória particular. Se as imagens que servem de inspiração
para os documentários são oriundas de um espaço privado, a dimensão que
o diretor consegue dar a elas transcendem tais limites. Ao filmar Sur la Plage
de Belfast durante o processo de paz por qual a Irlanda do Norte passava no
início da década de 1990, Imbert consegue transformar a história particular
de uma família que perdeu um filme dentro de uma câmera em uma história
sobre o cotidiano de pessoas que vivem em um contexto de longo conflito
político. Sutilmente as trajetórias dos habitantes de Belfast são costuradas
formando um mosaico de relatos simultaneamente únicos e
complementares. Este é mais um ponto em comum entre os dois
documentários. Os testemunhos que Imbert reúne ao longo do caminho
permitem "elaborar uma história dos olhares e seus imbricamentos"
(LINDEPERG, 2010, p. 335). A afirmação de Lindeperg foi extraída de uma
entrevista publicada no Brasil em 2010 sob o título Imagens de Arquivo:
Imbricamentos de Olhares. Destacamos a palavra "imbricamento", pois ela
resume perfeitamente o cinema de Imbert. Na mesma entrevista, Jean-Louis
Comolli reflete sobre os usos da imagem do arquivo no cinema e o que resulta
disto:
"A história desemboca na História. Ao mesmo tempo, o fato de que se
trata de planos, de imagens cinematográficas, convida a essa espécie de
"desterritorialização": desde Vertov, o cinema joga com suas imagens
cinematográficas como num jogo de cartas. Como se o cinema armasse
um campo onde todos os jogos são permitidos e tentadores. Tomemos o
exemplo do filme de Pelechian, Nosso século. Teria um funcionamento
autônomo, específico, da 'bolha' cinematográfica onde poderíamos nos
liberar das obrigações e pressões do tempo histórico e da dimensão
política." (COMOLLI, 2010, p. 343)
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O cinema é um campo possível de organização de imagens de
arquivos familiares e íntimos como as trabalhadas nos filmes de Imbert. Por
não se impor um compromisso rígido com a transmissão de um discurso de
verdade, fiel à realidade, por alternar entre um olhar objetivo sobre as coisas
do mundo e um outro subjetivo, Imbert caminha com liberdade, e parece
transitar com certa facilidade entre os campos da História e o da memória.
Para construir, ou revelar o extra-campo que circunda as imagens de arquivo
trazidas a público, Imbert lança mão de três recursos: o primeiro diz respeito
aos depoimentos subjetivos e pessoais que ele extrai dos personagens que
conhece durante a jornada, o segundo às impressões do próprio diretor que
aparecem por meio de seus offs e o terceiro recurso que identificamos é o
esforço em atualizar as imagens no presente, buscando inclusive os locais
exatos em que os registros foram feitos. Este último recurso confere aos
filmes de Imbert uma estética de colagem em que é quase possível imaginar
o diretor desenhando em torno da imagem a parte da paisagem que foi
cortada do quadro original.
Bergson descreveu a imagem como "uma certa existência que é mais
do que aquilo que o idealista chama uma representação, porém menos do
que aquilo que o realista chama uma coisa - uma existência situada a meio
caminho entre a 'coisa' e a 'representação'" (BERGSON, 1999, p. 1-2). Existe,
portanto, segundo o filósofo uma dissociação entre a existência e a aparência
de uma imagem e nós só somos capazes de perceber a existência de algo e
deduzir aquilo que representa a partir de experiências anteriores guardadas
em nossa memória que, por sua vez, determinam a aparência que a imagem
assumirá para nós. Deleuze, por sua vez, reconheceu que o gesto de perceber
é antes de tudo um gesto de subtração, em que subtraímos o que não nos
interessa ou aquilo que não somos aptos a perceber. Para o filósofo "há
sempre um menos na nossa percepção" (DELEUZE, 1992, p. 58). Será que ao
voltar no tempo para reconstituir os eventos que aparecem parcialmente nas
imagens encontradas (o rolo de super 8 e os 6 cartões postais), Imbert
consegue driblar as armadilhas que a subjetividade coloca no caminho da
nossa percepção?
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Existe uma crescente preocupação de um certo documentário
subjetivo em assumir as falhas, as lacunas e as incoerências que aparecem
quando o assunto é memória. Quando uma imagem está descolada de seu
lugar de origem, quando ela viaja no tempo e no espaço como o filme de
família em Sur la Plage de Belfast ou os cartões esquecidos entre outros
objetos de lembrança em No passarán, álbum souvenir, como reconstruir
as circunstâncias e as intenções que determinaram a produção das mesmas?
Para Lindeperg a abordagem destas imagens exige
"(...) a adoção de uma 'visão próxima' do cinema, atenta aos detalhes e aos
indícios, aos panos de fundo e aos personagens secundários. Ela se inspira
no modelo estabelecido por Daniel Arasse para a pintura quando ele
preconiza 'uma prática próxima do pincel e do olhar' e define o detalhe
como o 'lugar de uma experiência' (Arasse, 1992, reed. 1996). Ela supõe
que se entre em intimidade com o 'corpo dos filmes'. Ela passa pela
descrição detalhada, a câmera lenta, os retornos pacientes diante da
imagem. Os planos analisados abrem assim o caminho, até mesmo em sua
fragilidade e em suas lacunas, para uma história do sensível próxima
daqueles que fizeram o evento, foram seus vencedores ou suas vítimas."
(LINDEPERG, 2013, p. 10)
No artigo A noção de documento e a apropriação de imagens de
arquivo no documentário ensaístico contemporâneo, os autores indagam:
"Seria essa perda de referentes o 'destino' inevitável das imagens do passado?
Como trabalhar com imagens descoladas de seu contexto social, histórico e,
ao mesmo tempo, evocar a história complexa dos olhares que se colocaram
sobre elas?" (LINS, REZENDE, FRANÇA, 2011, p. 14). São os próprios
autores que respondem a questão destacando a importância de se pensar
como a
"mistura de tempos, lugares e circunstâncias, não resulta necessariamente
em um projeto unificador mas, ao contrário, em uma prática que
reconhece, nas imagens, singularidades que não podem ser lidas de outra
forma sem uma significativa perda de seus referenciais" (LINS,
REZENDE, FRANÇA, 2011, p. 14).
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Conclusão
Em determinado momento do filme No passarán, álbum souvenir
Imbert conhece Casimir Carbo, um velho espanhol que fixou moradia em
Bram, na França, depois de ter passado por um dos campos de concentração
da região. Haviam sugerido ao diretor procurar pelo senhor, pois ele era
provavelmente a única pessoa que se interessaria pelos cartões nas
redondezas. Em depoimento ao cineasta, Casimir Carbo contou que logo
depois de receber os refugiados espanhóis, o governo francês reconheceu o
governo de Franco. Por isso, muitos dos que haviam buscado abrigo em
território francês acabaram "trancados" em campos de concentração. Apesar
dos muitos anos que se passaram e de ter continuado na França mesmo
depois do fim do regime franquista, o velho afirmou convicto para a câmera
de Imbert que nunca tiraria a nacionalidade francesa. Ele era, segundo as suas
palavras, "um filho da Catalunha"59. Em seguida Carbo diz que não falaria
mais nada, pois o cineasta sabia que haviam coisas que não podiam ser ditas.
A entrevista termina assim, e Imbert pelo visto não conseguiu extrair muita
informação daquele sobrevivente. Mesmo assim, ele inclui a conversa no
filme. Sua função parece ser a de literalmente sustentar que existem certos
lugares que não são fáceis de acessar ou simplesmente não podem ser
acessados. Se Carbo não iria falar, havia um motivo para o seu silêncio e era
preciso respeitá-lo. Sua recusa em se abrir era carregada de sentidos e de
posicionamento político. Incluí-lo no filme era um gesto de respeito por sua
experiência.
O documentário de Imbert se movimenta na fronteira poética entre
a memória e a História. Sua voz em off é o que dá liga aos eventos históricos
e aos depoimentos reunidos pelo diretor ao fim de sua busca. Talvez seus
filmes não sejam apenas sobre os encontros, mas antes de tudo sobre o que
nos cerca. O ato de perceber é muito próximo do de enquadrar. Ambos
subtraem, mesmo que inconscientemente. Para recuperar o que foi
59
Trancrição de trecho do off de No passarán, álbum souvenir (2003). A tradução é minha.
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descartado é preciso interrogar cada detalhe. É preciso duvidar de nossa
História institucional tanto quanto das lembranças pessoais e traiçoeiras.
No final, o que importa não é a reconstituição perfeita dos fatos,
mas aceitar a imprecisão. O documentário subjetivo contemporâneo,
representado por realizadores como Imbert, tem a capacidade de reunir em
um só filme diversas visões, linguagens e formas de representar o real. Ao
que parece, o caminho é o de reconciliação com nossos limites. Aceitar a
miopia de nosso olhar.
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- 210 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Interface e estética: um levantamento das
práticas que apontam a dinâmica da narrativa
audiovisual contemporânea
Rafael Toscano - UFPB
Valdecir Becker – UFPB
Introdução
Este trabalho analisa as novas apropriações de interface e estética
pela narrativa audiovisual e suas diversas formas de significação para a
construção de sistemas audiovisuais inteligentes. De forma a dialogar com
pesquisas já realizadas por meio de um estudo exploratório, este artigo
aponta práticas potenciais para o processo de criação, distribuição e
consumo de um produto, ou sistema, audiovisual contemporâneo. De modo
geral, é possível identificar processos de migração dos dispositivos, das
interfaces que buscam entender o cenário de exposição do conteúdo, das
imagens que englobam cada vez mais dados, e por isso são escalonáveis, e
principalmente do espectador, que cada vez mais se configura como usuário
interator e co-autor da narrativa.
Dessa forma, torna-se pertinente analisar como novos recursos
narrativos, baseados em uma postura mais ativa do expectador, afetam a
extensão do universo narrativo. Tradicionalmente, histórias são contadas
por diretores e produtores usando recursos técnicos e estéticos baseadas na
sala escura, e, em menos escala, em sistemas de transmissão televisiva. Com
a disseminação da internet e outros recursos interativos ocorreu uma
pequena reestruturação da organização da narrativa, que pode ser
completada nestes ambientes digitais (JENKINS, 2006). Dessa forma, abrem- 211 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
se potenciais narrativos que podem individualizar parte da experiência
fílmica.
A inclusão de novos recursos, como sistemas inteligentes que
moldam os produtos audiovisuais à experiência prévia do expectador,
fazendo uso de bancos de dados e oferecendo interfaces de manipulação
direta dos elementos narrativos, permite expandir ainda mais a
individualização da experiência fílmica. A presente pesquisa analisa essa
expansão, a partir de exemplos que fazem uso de diferentes recursos
narrativos.
2. A relação entre usuário e universo narrativo
O estado da arte da narrativa contemporânea mostra uma condição
de estreitamento dos formatos cinema, TV, vídeo, internet e infográfico. De
forma a evitar o impasse acerca da natureza de um produto e avançar no
entendimento das práticas potenciais, o presente trabalho usa uma
nomenclatura mais abrangente do que tradicionalmente é praticado na
literatura. O termo audiovisual, de acordo com (AUMONT; MARIE, 2003),
se refere a "Obras que mobilizam a um só tempo, imagens e sons". A
definição segundo o próprio autor, é vaga e não engloba as novas
apropriações. Ao acrescentar novos elementos como interface, bancos de
dados e automação, este trabalho reconhece estas produções como sistemas
audiovisuais inteligentes.
Desde a concepção inicial de cinema, que surge como apropriação
de um dispositivo e depois engloba o elemento narrativo, diversos recursos
tecnológicos e comunicacionais passaram a ocupar espaços de transmissão
de informação e contação de histórias. As novas mídias, Internet,
computadores e dispositivos móveis (BIEGING; BUSARELLO, 2013) tem
sido coeficientes de mutação do formato tradicional do cinema. Formato este
que pode ser definido como integração de filme (narrativa visual),
espectador, instituição (dinâmica cultural e econômica), e dispositivo
(DUBOIS, 2013). Esse entendimento do cinema também pode ser obtido por
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
outra classificação: arquitetônica (condições de projeção de imagens);
tecnológica (produção, distribuição das imagens); e discursiva (MACIEL,
2009). O paralelo entre Dubois e Maciel é extremamente válido para o avanço
desse entendimento do que se tornou o cinema de culto à imagem, e a forma
cinema. Maciel avança a discussão propondo que "Não devemos, portanto,
permitir que a (forma cinema) se imponha como um dado natural, uma
realidade incontornável". Prosseguindo o pensamento, Dubois elenca uma
nova configuração de cinema que marca toda evolução, ruptura e correlação
ao modelo tradicional. A este fenômeno o autor atribui o termo pós-cinema.
Outro elemento que aponta essa transferência de espaço, e
dispositivo, é a própria fragilidade do ideal de cinema. Considerando que o
ambiente ideal de projeção (sala escura, silêncio, equipamento de projeção e
de áudio adequados) muitas vezes está ausente, e que nem sempre a narrativa
é clássica, com uma história estruturada, muitos filmes são atracionais,
abstratos ou experimentais (MACIEL, 2009). O modo de perceber as
imagens ganhou um novo significado no momento em que o processo
analítico e o manuseio técnico passaram a fazer parte da construção
narrativa, em oposição ao consumo passivo por parte do público.
"A relação entre representação e realidade representada, uma vez que a
obra digital já não é mais a marca de um sujeito (O autor, que dá sentido
à obra), posto que ela é realizada por outro: o leitor usuário. Nesses
termos, o espaço se configuraria como um campo de possíveis, em que o
sujeito-enunciador fornece elementos e o sujeito-atualizador realiza a
parte de suas possibilidades, podendo o usuário ser encarado como coautor de uma obra digital já que contribui, de maneira efetiva, para sua
formação. Nesse caso, não há um sentido preexistente à apreensão do
usuário, pois é a própria experiência que constrói o sentido" (MACIEL,
2009)
Ainda sobre a dimensão do segundo sujeito da narrativa (o usuário),
(CANNITO, 2010) afirma que o espectador não busca apenas a superfície da
história, ele quer entrar na imagem. Essa imagem, por sua vez, está entre duas
dimensões: o espelho ficcional e uma interface de controle do computador
- 213 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
(CANNITO, 2010). Com base neste levantamento teórico, é possível
identificar o primeiro elemento de expansão. O leitor, ou espectador, se
apresenta de forma ativa na relação com o universo narrativo. Essa relação
entre usuário-universo pode ocorrer em diversas proporções, seja pela
escolha ou expansão narrativa através de alternativas, seja pelo
consentimento de dados, pelos rastros de navegação ou pela manipulação
estética da estrutura visual.
2.1. Mídias digitais e os limites da narrativa
Da ordenação dos diversos cinemas, elencados por (MACIEL, 2009;
(ALY, 2012), surge um "novo" paradigma na interpretação do pós-cinema.
Um período/etapa do cinema apontando pelos autores como digital é a base
para a construção dos exemplos a seguir. A possibilidade de uma
representação numérica comum possibilita ao vídeo, que antes era uma
experiência de fluxo, se relacionar como um sistema de arquivos flexíveis e
manuseáveis. Essa dinâmica de narrativas fluídas e adaptativas trazem novos
caminhos de fruição (CIRINO, 2010). De acordo com Manovich (2001), as
características identificadoras das novas mídias são: representação numérica,
automação, modularidade, variabilidade e transcodificação. Um pequeno
aprofundamento nesses conceitos é importante para a identificação de
apropriações estéticas que fogem da construção tradicional. (CIRINO, 2010)
relaciona as definições propostas por Manovich e exemplifica no trecho a
seguir.
As possibilidades das novas mídias permitem-nos tratar o filme como um
conjunto de blocos narrativos (modularidade), manuseáveis
(variabilidade), que podem ser vistos tanto no computador como em
quaisquer outras mídias digitais (representação numérica). Esses blocos
podem inclusive serem gerados aleatoriamente [...](automação) e podem
apresentar interfaces para que o usuário escolha que parte deseja ver do
filme (transcodificação). (CIRINO, 2010)
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
A partir da análise da literatura será reconhecido por esse trabalho
que, além da significação inicial, os sistemas narrativos têm como atributo a
justaposição de blocos informacionais contendo cenas, ou pequenas
unidades dramáticas, que podem ser conectadas entre si. A construção do
coeficiente de adaptação, ou melhor, da responsividade (seção 4.2), é o que
confere ao sistema a perspectiva de expandir os limites da narrativa.
3. Interface e estética da narrativa audiovisual
Analisando a estrutura visual, Nogueira diz que "A forma como
dispomos os elementos em relação aos outros, constituirá, portanto, a
primeira preocupação discursiva, e estética, na criação de uma imagem
cinematográfica" (NOGUEIRA 2010). Na estrutura de cinema tradicional, a
construção do quadro se dá pelo recorte visual da cena. Com a integração as
novas mídias, o conceito de interface gráfica (GUI- Graphical user interface)
passa a ocupar um lugar de importância. "Se a interface é o lugar comum da
interatividade entre homem e máquina, faz-se necessário estudá-la como o
veículo para a fruição das narrativas "(CIRINO, 2010). A interface ocupa não
apenas a função de mediar, ou traduzir visualmente a relação entre usuário e
estrutura narrativa fílmica tradicional, mas em muitos casos ela também
integra o coeficiente narrativo. Aumont e Marie expandem o conceito de
composição desta estrutura:
Ela pode ser considerada segundo o eixo da sucessão ou da
simultaneidade: Formas de encadeamento por continuidade, rupturas,
fusões etc, por um lado; relações entre os elementos co-presentes em um
dado momento do filme, por outro (contrastes, encobrimentos parciais ou
completos, contrapontos etc). (AUMONT; MARIE, 2003)
Podemos considerar ainda a abordagem de Crary, relacionada por
(CIRINO, 2010), em que o interator está diante de dois modos de fruir o
filme: através da visibilidade ou da fantasmagoria. Essa relação de presença
ou não da interface é relevante pois existem experimentos das duas diretrizes
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
que proporcionam experiências complexas e ricas aos usuários. Neste
trabalho iremos apresentar apenas estruturas narrativas que fazem uso da
interface, contudo podemos citar o trabalho de (MORAIS et al., 2012), que
através das linguagens interativas gestuais (LIG) realizou experimentos de
narração a partir da ausência de interface implementação de multicritérios
de elementos visuais e não visuais.
4.
Práticas potenciais
A ruptura com o valor de culto trouxe a tona o valor do manuseio
técnico e discursivo das imagens. Atrelado a um posicionamento ativo dos
usuários, novas dinâmicas foram surgindo, como o cinema digital, o cinema
expandido, o cinema expandido digitalmente, o cinema interativo, o cinema
quântico/neurocinema e, finalmente, o live cinema (MACIEL, 2009; (ALY,
2012). De modo a dialogar com os estudos desenvolvidos e apresentados, este
trabalho relaciona dinâmicas de apropriação de estética e interface, de forma
a contribuir com o levantamento já documentado.
A seleção de obras/conceitos para a presente pesquisa se dá pela
configuração de três grupos: 1) Práticas oriundas do empoderamento do
usuário; 2) Sistemas narrativos inteligentes; 3) Convergências e apropriações
estéticas; Cada conceito ou apropriação técnica/estética que será
aprofundado, fará uso de um exemplo único, todavia esse agrupamento não
exclui o objeto de conter mais de uma prática potencial. Os itens para análise
são: Colaboração/crowdsourcing, historicidade/responsividade, construção
generativa e campo exploratório.
4.1 Colaboração (Crowdsourcing)
O primeiro objeto de análise é o experimento realizado por
pesquisadores franceses da Universidade de Toulouse em parceria com a
Universidade Nacional de Singapura. Este trabalho apresenta uma aplicação
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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para o posicionamento ativo dos consumidores, que ao se deparar com
vídeos de altíssima resolução (4k, 8k, 16k) em seus dispositivos móveis estão
diante de uma perda de compreensão dos detalhes da imagem, e por isso
fazem uso do escalonamento como subsidio ao consumo narrativo. Essa
prática pode ser denominada de campo exploratório e, por questões de
organização do trabalho, será abordada nas seções seguintes.
Figura 1. Diagrama de construção (1) Vídeo original (2) Mapa de importância (3) Vídeo para análise com
grupo (4) Mapa de interesses (5) Junção dos mapas (7) Vídeo final. Fonte: (CARLIER et al., 2011)
A pesquisa propõem a criação de um vídeo com base na construção
colaborativa de pontos de vista recomendados por usuários. As indicações de
cada etapa da coleta de informações de feedback dos usuários é denominada
crowdsourcing (CARLIER et al., 2011). O processo é construído a partir de
um mapa de importâncias, predefinidos pela equipe de pesquisa e somados
a um mapa de interesses com base na experiência de uso de um grupo de
consumidores, conforme esquematizado na Figura 1.
Essa prática de construção colaborativa em vídeo é o resultado
proposto para solucionar alguns problemas de experiência de consumo e
produção, como por exemplo, o acompanhamento de objetos em
movimento, uma vez que na expansão da imagem (zoom) o usuário teria que
modificar a todo instante o posicionamento visual para acompanhar seu
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objeto de interesse, caso ele não ocupasse mais a região selecionada. Embora
exista a opção de automatizar esse processo, a equipe do projeto optou por
realizar este procedimento de forma "manual", no qual cada movimento
realizado em teste pelos voluntários é computado e inserido no sistema,
como uma forma de biblioteca de interesses por perfil e gênero narrativo.
A compreensão do usuário acerca das possibilidades de pontos de
vista durante o consumo da narrativa se dá pela inserção de uma interface
gráfica que aponta o campo de possibilidades. Muito além da utilização da
interface gráfica, este experimento aplica a narrativa como campo gerador de
novas interfaces, uma vez que cada usuário, ao demarcar novos
posicionamentos (escalonamentos), também computa um recorte e sugere
um novo ponto de vista. Este processo é similar ao trabalho de (MORAIS et
al., 2012), em que a simplificação ou redução da interface dá espaço a
multicritérios de elementos visuais. O uso de sistema aberto a inputs
possibilita uma dinâmica nova para compreensão narrativa. Além disso o
experimento dialoga com as características das novas mídias de
(MANOVICH, 2001), como automação, variabilidade e transcodificação.
A solução proposta nesse experimento apresenta grande potencial
para aplicação em produtos audiovisuais de caráter colaborativo. O
crowdsourcing, como ciclo de ressignificação e finalização do conteúdo, é
um workflow potencial para esquemas de produção de sistemas narrativos
inteligentes. A validação de "interesse" de pontos de vista recomendados
sobre a trama é fundamental, uma vez que existem diversos níveis de
engajamento por parte de usuários. Sendo assim, o agrupamento narrativo
deve ser capaz de oferecer a melhor experiência de consumo para cada perfil,
seja ele espectador ou usuário.
4.2 Historicidade e responsividade
O segundo elemento potencial se enquadra no grupo dois, Sistemas
narrativos inteligentes. A relação estabelecida por Cirino da análise da
construção do cinema interativo feitas por (RAFAELLI, 1998) e
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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(MANOVICH, 2001) permite interpretar o sistema audiovisual como um
agrupamento de módulos organizáveis a partir da intervenção direta do
espectador. O enfoque da historicidade está na compreensão apresentada por
MACIEL (2009) em que a construção da narrativa se dá pela relação com o
campo de possibilidades narrativas, obtendo, assim, uma abertura do
universo narrativo. (CIRINO, 2010) aponta a possibilidade de integração
destes módulos por meio de uma nova dinâmica de produção, que ao invés
de uma divisão em cenas, busca um agrupamento com foco na
responsividade de suas ligações.
Uma ressalva que surge ao se deparar com o conceito de
historicidade é sua diferença para os filmes interativos que dispõem de uma
interface meramente reativa. De acordo com RAFAELLI citado por CIRINO
(2012), "as trocas de informações de um ambiente interativo devem
considerar todo um percurso de construção da informação e não apenas um
último estímulo". Deste modo o autor faz a diferença do que considera um
sistema simples de reação para um sistema inteligente capaz de programar
respostas narrativas ao histórico de navegação do usuário.
De forma a exemplificar o potencial dos conceitos apresentados, é
destacado ocase The sound of energy60 (Figura 2), um vídeo interativo
agrupado em blocos (modularidade) e manuseável pelo usuário através de
uma interface gráfica em overlay ao vídeo. O sistema tem a capacidade de
processar a historicidade de forma dinâmica e estabelecer a responsividade
dos blocos de maneira a criar um clipe personalizado para cada execução do
usuário. Outro atributo é a capacidade de variabilidade do produto por parte
do usuário, uma vez que suas escolhas resultam em novas composições
narrativas e estéticas de enquadramento, edição de sons e imagem.
60Disponível no site: http://www.shell.com.au/aboutshell/lets-go-tpkg/sound-of-energy.html
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Figura 2. Campanha The sound of energy. Lado esquerdo (vídeo + interface gráfica) Lado direito (Tela
final com gráficos do resultado do percurso) Fonte: http://www.shell.com.au/aboutshell/lets-gotpkg/sound-of-energy
A interface desempenha o campo de interação no período de
exibição do vídeo e no pós-vídeo, apresenta o trajeto de escolhas que o
usuário realizou. Além do gráfico indicador das escolhas feitas, é possível
rever o vídeo gerado (automação) sem a interface de criação e compartilhálo em mídias sociais. A aplicação do conceito de historicidade e
responsividade representa um potencial para estruturas audiovisuais em que
a relação com o processo de construção é fundamental. "O propósito do
histórico é mostrar ao usuário quanto ele explorou [...] num vídeo educativo,
faria muito sentido mostrar ao aluno onde ele está e o que há de vir."
(MORAIS et al., 2012).
4.3 Construção generativa
O termo construção generativa foi utilizado neste trabalho para
representar sistemas audiovisuais inteligentes que fazem uso de dados do
usuário, ou do dispositivo de reprodução, para construir relações narrativas.
A capacidade de um software gerar agrupamentos narrativos que se
relacionam com a estrutura de módulos de forma responsiva é apresentada
por (CIRINO, 2010) como o princípio da automação. Com o intuito de
ilustrar essa dinâmica foi escolhido o projeto Bear 71 61 desenvolvido pela
National Film Board (Figura 3).
61
Disponível no site: http://bear71.nfb.ca/#/bear71
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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O sistema audiovisual Bear 71, é uma aplicação audiovisual
interativa e colaborativa que apresenta a história do Parque Nacional de
Banff, com foco na conscientização da relação do homem e espaço (fauna e
flora). A premissa inicial do projeto é acompanhar o trajeto de um urso que
foi identificado pelo rastreador de número 71. A partir desta apresentação, o
usuário se depara com um ambiente virtual que representa toda a extensão
geográfica do parque. Esta interface é extremamente rica em dados, como:
câmeras de monitoramento, rastros de movimento do urso 71 e de outros
animais, pequenos módulos de vídeos explicativos e instâncias de input de
dados como áudio e vídeo. Ao contrário dos experimentos já apresentados,
o bear 71 foi desenvolvido na direção de uma experiência de vídeo jogo e
visualização de dados para a colaboração de múltiplos usuários em tempo
real no universo narrativo. A experiência exploratória é inicialmente limitada
a 20 minutos por acesso, contudo este tempo aumenta a medida que o
usuário/interator dialoga com as funcionalidades do experimento.
Figura 3. Captura de tela - Sistema audiovisual Bear 71. Fonte: http://bear71.nfb.ca/#/bear71
Uma segunda significação pode ser atribuída ao termo construção
generativa, relacionada à aplicação da estrutura de módulos narrativos para
construir uma interface por meio da visualização dos dados. O bear 71 aplica
essa dinâmica demodo a reforçar a espacialidade do parque. Pequenos
módulos de vídeo são distribuídos pela superfície de acordo com seu
posicionamento geográfico e pela composição da premissa narrativa do
autor e dos usuários.
Estruturas audiovisuais com base nos dados do usuário são práticas
potencias para geração de conteúdo personalizado. Outra aplicação dessa
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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dinâmica são as ações do facebook62, que através de um algoritmo constrói
vídeos personalizados para cada um dos usuários com base nas atividades e
interações na plataforma. De forma geral, essas aplicações são válidas para
relacionar os rastros de navegação afim de retomar a historicidade do usuário
e promover uma relação com a marca, ou simplesmente, com o universo
temático narrativo em questão. Outro case que ilustra bem o potencial desta
dinâmica é o documentário interativo Limbo63. O filme coleta dados de
email, mídias sociais, câmera e microfone, para inserir as informações na
estrutura narrativa como mecanismo de validar o argumento do filme,
mantendo um memorial coletivo e digital construído, que normalmente se
perde ao longo dos anos.
4.4 Campo exploratório
O quarto objeto se configura entre os dois primeiros grupos, uma vez
que se baseia no posicionamento ativo do usuário e na capacidade dos
sistemas audiovisuais de oferecer uma dinâmica visual para melhor
compreensão da narrativa. A relação entre mundo real e mundo da tela se dá
pelo recorte visual escolhido pelo diretor, logo pontos de interesse do usuário
podem ficar de fora (BLOCK, 2010). "Desse modo elementos do extra quadro
são desconsiderados como parte consumível. [...] No entanto, há cenários em
que os elementos tanto do extra quadro quanto do intra quadro possuem
relevância." (TOSCANO; BECKER, 2015). Somado a essa questão dois
fenômenos enriquecem a discussão: 1) Evolução constante das resoluções em
vídeo (4K,8K,16K); 2) Crescimento do consumo de vídeo por dispositivos
móveis; Sobre esta relação,
Com os recentes sistemas de captura de vídeo UHD, novos tipos de
experiências de mídia são possíveis, onde os usuários finais têm a
possibilidade de escolher o seu nível de direção, de visualização e zoom
62 Disponível no site: http://newsroom.fb.com/news/2016/02/friends-day/
63 Disponível no site: http://inlimbo.tv/en/documentary
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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[...] Por exemplo, no setor de entretenimento, soluções de aplicativos para
celular e web streaming estão disponíveis para cobertura de eventos com
uma câmera de vídeo de 360 graus. (REDI; D'ACUNTO; NIAMUT, 2015)
Essa relação de transferência da responsabilidade, retratada como
campo exploratório (REDI; D'ACUNTO; NIAMUT, 2015) é uma dinâmica
de expansão da narrativa visual por meio da relação com a interface. Ainda
sobre o papel das imagens em altíssimas resoluções a produção da
escalabilidade é uma das motivações principais (ALMEIDA, 2014).
O empoderamento do usuário em direcionar o recorte visual de um
registro, ou seja sua capacidade de priorizar novos elementos, gera
questionamento sobre as formas de consumo do universo temático.
Dialogando com essa questão, Manovich (2014) apresenta uma resposta que
relaciona a divisão de superfície (BLOCK, 2010) como estratégia de manter
a dimensão macro e micro ao mesmo tempo (ALMEIDA, 2014). "Em outras
palavras, como você continua a ver a imagem inteira enquanto examina os
detalhes, o sentido de contexto em que cada detalhe se encaixa permanece."
(MANOVICH, 2014).
Como exemplo dessa dinâmica, podemos citar o Instituto
Fraunhofer, que desenvolveu um experimento objetivando a criação de
imagens panorâmicas de altíssima resolução para eventos ao vivo, através de
5 câmeras 2K. O agrupamento das câmeras de forma a originar uma imagem
super wide com uma deformação óptica possibilita ao usuário que se depara
com a imagem escalável em um dispositivo móvel uma experiência
diferenciada. É possível definir essa nova percepção através da aplicação de
dois conceitos básicos do audiovisual: deformação óptica e movimento
relativo, em que o usuário tem a percepção de espacialidade e profundidade
do movimento. Ao invés dos experimentos tradicionais de zoom que
simulam unicamente o deslocamento de uma máscara virtual nos eixos X e
Y da imagem, o experimento do instituto apresenta uma dinâmica de
captura, processamento, distribuição e interação viabilizadas totalmente
pela rede de internet. Nesse experimento, para evitar o tráfego de informação
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altíssimo, no qual cinco câmeras 2K emitem sinal ao mesmo tempo, foi
desenvolvido um sistema de processamento apenas dos dados em quadro e
um pré carregamento das áreas mais próximas. Solução semelhante ao
experimento apresentado por (REDI; D'ACUNTO; NIAMUT, 2015) que
nomeia essa divisão de visualização por Tiled Streaming.
Figura 4. Imagem formada pelas 5 câmeras e ao lado seleção feita pelo usuário. Fonte: (GADDAM et al.,
2014)
Este conceito de campo exploratório apresenta grande potencial para
a relação entre vídeos de altíssimas resoluções e dispositivos móveis,
redirecionamento de pontos de interesse e relação ativa do usuário. Como
vimos, outras aplicações que expandem este conceito são a integração com a
colaboração de usuários, vídeo 360 graus e realidade virtual.
Conclusão
O presente estudo sistematizou práticas que indicam potencialidades
para a narrativa audiovisual contemporânea. A junção de diferentes recursos,
configurações e agrupamento de formatos de interface e estética podem gerar
sistemas audiovisuais inteligentes, viabilizando uma infinidade de recursos
narrativos. Toda essa atribuição de significados na relação entre interface e
narrativa atua como elemento integrador e catalizador da fruição e expansão
do conteúdo. Os experimentos audiovisuais discutidos tornam-se,
paulatinamente sistemas complexos. Em comum, possuem três
características chave: 1) O posicionamento ativo do usuário; 2) A capacidade
de manipular, adaptar e reordenar a estrutura de acordo com ações de seu
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contexto de consumo; 3) A convergência de novos elementos e apropriações
estéticas.
Analisando possíveis evoluções da narrativa audiovisual, algumas
características podem ser identificadas. A colaboração, tanto para consumo
quanto para o fluxo de criação de narrativa, é um elemento central no
desenvolvimento de novas práticas estéticas e narrativas. Além disso, a
capacidade dos sistemas em dialogar com a historicidade do usuário, e deste
modo, ofertar um conteúdo personalizado através da relação construída na
plataforma e pelos rastros de navegação do usuário na internet tende a gerar
uma quantidade significativa de novos produtos audiovisuais. A experiência
sensorial e imagética da percepção fílmica se individualiza, criando obras
esteticamente diferentes a cada visualização. Neste ponto, pode-se inclusive
questionar conceitos consolidados na teoria cinematográfica. Temas
centrais, como filme e cinema, carecem de releituras analíticas no âmbito das
novas tecnologias e do pós-cinema.
Finalmente, a capacidade do manuseio da imagem e do som, de
modo a valorizar a interface exploratória da narrativa, altera processos de
consumo e compreensão no usuário. Dessa forma, as potencialidades
identificadas no presente trabalho expandem a capacidade de contar
histórias (e compreendê-las) quando ofertadas em paralelo, podendo ainda
agregar valor se somadas a campos de atuação como realidade virtual,
neurocinema ou cinema quântico e internet das coisas. Os impactos destes
elementos a cargo de estudos futuros, na continuação desta pesquisa.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
O Desenho de Som no primeiro Episódio de
House of Cards
Wellington César Martins Leite – FIB
Os esforços de cineastas e produtores audiovisuais em criar sons,
ruídos e música para preencher (e enriquecer) as cenas de seus trabalhos é
um esforço de aparente preciosismo e que nos lembra dos primeiros
criadores de efeitos especiais no rádio.
Assim, analisando o primeiro episódio da websérie House of Cards,
produzido pelo portal de vídeos por streaming Netflix, nosso texto divide-se
em:
1) breve levantamento histórico e técnico sobre a série, seus
prêmios e indicações;
2) sucinta descrição teórica sobre Desenho de Som;
3) e traçar paralelos entre os usos do som na série e os
ensinamentos de Kaplún
Dessa maneira, esperamos chamar atenção para o planejamento e
criação de som, bem como, suscitar novas iniciativas de produção
audiovisual populares e análises e pesquisas que possam ser aplicadas aos
produtos audiovisuais contemporâneos.
1)
Breve levantamento histórico e técnico sobre a série
Um barulho de freada brusca soa antes do personagem principal de
House of Cards, Frank Underwood, aparecer em frente a sua casa e poder
ouvir alguém dizer, em off, “o que você está fazendo?”.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
É o início da série, que logo fechará a cena com o protagonista e seu
segurança olhando o ocorrido: o cachorro dos vizinhos, os Warton, foi
atropelado por um Toyota Camry azul.
Até o cão agonizante, os sons dos sapatos de Frank e seu guardacostas os acompanham, enquanto são enquadrados de frente, caminhando
para a câmera. Os sons também se encarregam de substituir o cão de raça
ignorada, apenas sofrendo a fria ação de Underwood: uma eutanásia. Logo,
o personagem fala para nós, olhando para a câmera – uma das marcas da
série - que detesta “a dor inútil”.
Frank Underwood consola os vizinhos e promete solução. Após esse
momento a música é suave. O personagem aparece lavando as mãos, como
se estivesse simplesmente eliminando a sujeira e olha para a câmera, como se
já soubesse que o público é seu cúmplice. Vai até a mulher, sobe o zíper das
costas de seu vestido (ouvimos perfeitamente este efeito) e a elogia.
Na cena seguinte, o réveillon de 2013 e a festa de posse do novo
presidente dos EUA. O som se encarrega de mostrar a alegria dos convivas.
Frank aplaude sorrindo e, novamente, se volta para a câmera: diz que não
gosta do empossado, descreve as pessoas com certo desdém, diz-se vital para
o novo governo, sem saber que logo será traído, não terá o cargo que tanto
almeja.
Essa será sua motivação em uma escalada de poder usando todos os
meios possíveis. A quarta temporada do drama político, inspirado no
romance de Michael Dobbs e adaptado por Beau Willimon para o serviço de
streaming, está marcada para março de 2016. As três primeiras temporadas
exibiram trinta e nove episódios 64.
Entra a vinheta de abertura da série da Netflix, basicamente o tema
principal acompanhando paisagens da capital norte-americana,
Washington, sem pessoas. O tema é orquestral, grandiloquente e um pouco
64
https://pt.wikipedia.org/wiki/House_of_Cards_(s%C3%A9rie_americana)
acesso em fevereiro de 2016.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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tenso, propício ao drama político. Sopros e cordas com algumas distorções
de guitarra e piano, uma criação do trompetista Jeff Beal.
House of Cards ancora-se muito em diálogos e efeitos sonoros,
muitas vezes sem música de fundo – em nossa opinião, um texto muito bem
feito e bem interpretado pelos atores, sempre deixando claro que boas
intenções e experiência nunca superam as habilidades de obter doações em
dinheiro e adesões de grandes grupos. A música entra em momentos
específicos da cena, como por exemplo, quando Frank é enquadrado de baixo
para cima e a trilha surge grandiloquente. Ao saber-se traído, silêncio. E
assim, intercalam-se música (solos de piano, violino), trechos da trilha de
abertura, foleys diversos e precisos. Neste primeiro episódio, fica claro o
cuidado com a captação de diálogos e a produção de efeitos. Não percebemos
discrepâncias graves de profundidade, por exemplo. Quando os personagens
estão na igreja, os atrasos comuns a ambientes propícios à produção de eco,
quando estão em salas fechadas, o som não é tão límpido como se estivesse
em um estúdio65.
O uso de sonoridades não-diegéticas continuam, como quando
Underwood está jogando videogame, um de seus passatempos, mas ouve o
som de orquestra em seu fone de ouvido – efeito habilmente interrompido
quando a esposa o chama para ir deitar levantando os fones.
Já sonoridades diegéticas reforçam não somente os diálogos, mas
também o uso de foleys como se fossem vinhetas de passagem de cena (uma
porta batendo ou copos quebrando quando o personagem principal é
contrariado são exemplos).
A apresentação dos personagens e tramas iniciais acontece
gradualmente e, pouco antes do fim, Frank Underwood finaliza seu primeiro
65 Em 2014 House of Cards ganhou o Emmy do Primetime por melhor mixagem de som em série e uma
indicação em 2015, na categoria série dramática como podemos ver no link
https://www.google.com.br/search?q=house+of+cards&oq=house+of+cards&aqs=chrome..69i57j0l5.61
26j0j7&sourceid=chrome&es_sm=93&ie=UTF8#q=Melhor+Mixagem+de+Som+em+S%C3%A9rie+(1+hora)&stick=H4sIAAAAAAAAAOPgELSz9U3yDAuKrOsUAKzsy0yqiyqtGSzk630E8sTi1IgZHx5Zl5eapEVmFMMACsH6E45AAAA acesso
em fevereiro de 2016.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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golpe de vingança: a publicação dos primeiros planos da reforma
educacional, culpando inocentes e complicando a vida de seus inimigos
políticos. O desenho de som durante todo o episódio varia entre diálogos sem
fundo musical, diálogos acompanhados por música, silêncios, mas muitos
efeitos sonoros e foleys.
O episódio acaba com o olhar frio do personagem respondendo ao
seu garçom que gostaria de outro prato de costelas, pois estaria com uma
“fome de tubarão”. Como se a guerra lhe aumentasse o apetite – tudo ao som
da trilha original. Não sem antes sabermos que o carro que atropelou e
“matou” o cachorro dos vizinhos foi localizado pela polícia – enfatizando a
ideia de que a personagem tem muito cuidado com sua reputação, apesar de
jogar sujo nos bastidores.
Resumidamente, é assim que ouvimos o primeiro episódio de House
of Cards. Sem dúvida, um trabalho muito bem planejado e realizado (usado
por nós em aulas sobre Desenho de Som, especialmente quando tratamos da
pós-produção, ou seja, dos elementos inseridos após o término da captação
de imagens).
A série, admirada pelo presidente dos EUA, Barack Obama, foi a
primeira série online a ser indicada ao Emmy, um marco interessante na
relação dos espectadores com o streaming. Outro dado interessante é que
House of Cards teve outra edição, uma minissérie de quatro capítulos,
produzida e exibida pela BBC de Londres 66. O ator Kevin Spacey, que
interpreta o protagonista, é também produtor executivo da série. Outro
produtor executivo, David Fincher (diretor de Clube da Luta, entre outros),
dirigiu os dois primeiros capítulos da série, que conta com diversos outros
diretores67.
2)
Descrição teórica sobre Desenho de Som
66 https://junkiesdeconteudo.wordpress.com/2015/02/27/13-curiosidades-sobre-house-of-cards/ acesso
em fevereiro de 2016.
67 www.netflix.com acesso em fevereiro de 2016.
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Sabemos qual o papel do ouvido na opinião de McLuhan.
“Hipersensível”, “mais envolvente e inclusivo” são alguns dos adjetivos que
o autor dá ao ouvido no mundo tribal (oral, não letrado), encantado e
tirânico (2005, p.179). “Hiperestético”, “intolerante, fechado e exclusivo”
podemos ler mais adiante quando ele compara o ouvido ao olho “aberto,
neutro e associativo” (2005, p. 339).
De fato, o som preenche lacunas do que vemos ou cria imagens
quando não podemos ver. Quando falamos de mídia, o áudio pode ser
independente ou combinado com outros recursos visuais, “mudando e
enriquecendo a experiência dos recursos visuais autônomos” (ROBERTSBRESLIN, 2009, p.119). Não nos referimos apenas ao diálogo e à narração,
fundamentais para compreensão de produções audiovisuais. O som
ambiente pode ajudar a sentir melhor a narrativa.
Mais do que captar sons, o desenho de som é o planejamento do que
o espectador ouvirá, com maior ou menor ênfase. Sound Design, Projeto de
Som, Estudos de Som, Design Sonoro são alguns dos termos usados para
enfatizar que, assim como a captação de imagens, a captação sonora também
requer planejamento. Além da fala humana (diálogos e narrações) e da trilha
sonora, nos preocuparemos em mostrar a “ambiência”, ou seja, o som do
espaço onde ocorre a cena, os “efeitos sonoros”, sons extras que podem
substituir sons naturais, complementar, criar e até substituir uma imagem
(2009, p.151) – como ocorreu na cena da eutanásia do cachorro descrita no
início do artigo. Em outras palavras, desenhar o som é pensar o som (SÁ;
COSTA, 2012, p.12).
Evidentemente, é preciso registrar, que não estamos defendendo a
independência do som em relação ao filme. A relação de imagem e som é
simbiótica, sendo o desenho de som um dos elementos que constituem o
todo que é o produto audiovisual. O estudioso do som de cinema Michel
Chion chega a afirmar que a pista sonora não existe68. Assim, nosso trabalho
68 http://www.proppi.uff.br/ciberlegenda/%E2%80%9C-pista-sonora-n%C3%A3o-existe%E2%80%9D
acesso em fevereiro de 2016.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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tem o intuito claro de ressaltar a importância do som ao enfatizarmos
emoções na obra audiovisual, especialmente nos estudos sobre a prática
audiovisual.
Cláudia Gorbman, em artigo sobre o canto amador em várias obras
cinematográficas (SÁ;COSTA, 2012, p.23), traduzido por José , enfatiza as
sensações que o canto diegético, à capela, treinado para parecer
despretensioso em uma cena de cinema, ou seja, sem tratamento de musical,
não “profissional” pode gerar no público: pode passar despercebido, pode
significar tristeza ou alegria, cumplicidade entre personagens, pode ser um
ritual, pode significar que a personagem está distraída, enfim, pode significar
muitas coisas. Mas, ela afirma, “certamente, é uma forma de evocar
personagens, subjetividade e inter-relações” (idem, p.40).
Bruna Reppetto, em sua dissertação “Quando a Música entra em
cena” (2011, p.15), a música “é um dos fios condutores, se não o principal,
que leva o público para o caminho da subjetivação”. A autora nos recorda
que, nos primórdios, a música ambiente de “pianeiros”, era usada para cobrir
o barulho dos projetores. Logo, o cinema-mudo é mais um conceito que uma
realidade – ou como diria Luiz Manzano “o filme era mudo por não
reproduzir fisicamente o som”, mas “se pretendia sonoro” por “sugerir sons”
(2003, p.11).
Pra encerrar esse breve levantamento sobre os efeitos da música,
Suzana Reck Miranda lembra que “associar sentimentos à música tem gerado
intensos debates desde a Grécia Antiga” (SÁ; COSTA, 2012, p.51). Neste
nosso trabalho não nos importa se a música tem o poder de suscitar um
sentimento específico, o que poderia gerar algum debate sobre subjetividade
– o que não nos interessa. Mas sim, se consegue enriquecer a experiência
audiovisual das diversas audiências.
José Cláudio Castanheira nos lembra que, na história do cinema, o
uso de sons que acompanhavam as imagens projetadas, causava dúvidas
sobre o melhor acompanhamento, o que deixa patente o quanto o cinema
demorou a se “harmonizar” enquanto forma (SÁ; COSTA, 2012, p.80). E ele
arremata:
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Os estudos de som, por sua abrangência e flexibilidade, podem [...] ajudar
nessa investigação da experiência do cinema. [...] Abrem-se novas
perspectivas sobre o estudo do som que, cinematográfico ou não, faz parte
de uma relação com o mundo muito maior do que o que temos nos
permitido “ver” até agora. (SÁ; COSTA, 2012, p.106).
3)
Paralelos entre os usos do som em House of Cards e os ensinamentos
de Mario Kaplún
Ao tomarmos conhecimento das diversas técnicas de sonorização
dos produtos audiovisuais, imediatamente, pensamos no rádio. O uso
criativo e, por vezes, improvisado de apetrechos inusitados para gerar um
som, criar ambiência para as narrativas, foi realidade nos primórdios do
rádio. Depois, a caricatura mostrada em programas de TV e filmes de
sonoplastas manejando cascas de coco para criar o trotar de cavalos, folhas
de zinco para simular o barulho do trovão, entre outros, ficaram
impregnados em nossa mente.
Ao lermos “Kaplún, intelectual orgânico. Memória Afetiva” de
Gabriel Kaplún, filho de Mario Kaplún, no livro “Educomídia: alavanca da
cidadania” (MELO et al, 2006, p.35), especialmente a passagem que fala do
início profissional do pai no rádio:
Ao que parece, aqueles programas eram bastante retóricos e
grandiloquentes e Mario recordava mais desses dias a aprendizagem de
um ofício: escrever dois roteiros por semana, dirigir equipe de atores e
técnicos, ir ao ar com um mínimo de ensaio, criar uma ambientação
sonora convincente com efeitos artesanais [...] e tudo ao vivo, sem
gravações. (MELO et al, 2006, p.36). Tradução nossa.69
Notamos que Kaplún, como homem a frente de seu tempo, unia
crítica social com os sonhos dos que ouviam rádio e nunca poderiam escrever
69 Según parece aquellos programas eran bastante retóricos y grandilocuentes y Mario rescataba de esos
días más bien el aprendizaje de um oficio: escribir dos guiones por semana, dirigir um equipo de actores
y técnicos, salir al aire con un mínimo de ensayo, crear una ambientación sonora convincente con efectos
artesanales [...] y todo diretamente al aire, sin grabaciones.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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um roteiro (não por incapacidade, mas por falta de oportunidade). Unia
humor e poesia, razão e rigor ao seu fazer radiofônico e novelístico.
Como sabemos, Mario Kaplún conseguiu levar sua formação de
educador aos meios de comunicação e publicidade. Rechaçava o “didatismo”
usando as melhores técnicas de comunicação e, principalmente, “atenção ao
receptor” (MELO et al, 2006, p.38). A isso, Gabriel atribui à experiência do
pai, nos anos 1970, na “prática como comunicador com grupos de base”
(idem, p.39).
Assim como no rádio, percebemos que as orientações de Kaplún
ainda são úteis e interessantes no fazer audiovisual. É possível perceber isso
ao assistirmos aos making ofs de animações e filmes em geral: a criação do
som (não o uso indiscriminado das chamadas bibliotecas de áudio) é
trabalhosa e exige muita criatividade. E para quê? Para ampliar a experiência
e imersão do público na narrativa.
E por quê? Porque as gravações ou filmagens das cenas não captam
o som com a qualidade requerida atualmente, exigindo um longo trabalho
de pós-produção (ROBERTS-BRESLIN, 2009, p.137). Igualmente comum é
a “substituição automática do diálogo” (idem, p.151), a dublagem dos atores
de suas próprias falas, mas em estúdio, com mais qualidade e isolamento. O
mesmo vale para o scoring, sincronização de cada movimento com “seu” som
respectivo (onde também entram os foleys, muito usados na série). Na série
House of Cards a pós-produção da terceira temporada em 6k, ou seja, seis
vezes mais definição que o HD, custou soma vultosa, não divulgada 70 (as duas
primeiras foram gravadas em 4k).
Em nossa visão, como já dissemos, o som bem planejado ajuda a
aumentar a emoção da cena, logo, o engajamento por parte do público. Para
um drama político, além de poder e elegância, a magnificência deve
amedrontar, causar tensão, parecer intransponível às leis a que nós temos
que responder. Pensamos que os produtores de House of Cards conseguem
70
http://tecnologia.terra.com.br/terceira-temporada-de-house-of-cards-usou-tecnologia6k,f08a1c607ba0c410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html acesso em fevereiro de 2016.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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isso – além de desnudar a prática política atual, mais propensa aos que
conseguem levantar somas de dinheiro e apoio político do que aos idealistas
e bons administradores.
E é sobre a narrativa e seus caprichos que Kaplún parece atual e
necessário, especialmente quando falamos da possibilidade de produções
audiovisuais populares.
Lições que o rádio ainda guarda e que Kaplún escreveu para orientar
futuros radialistas (de rádio e de televisão) – época em que, em sua região, o
rádio alcançava 61% da população, a televisão 34% e a imprensa 21% (1999,
p.27). Por vezes, o uso indiscriminado de BG (música de fundo) e locução no
rádio, faz parecer que os estudos de som são mesmo criação e não apenas
exclusividade do cinema.
O rádio, como toda mídia sonora, deve usar seu poder de sugestão.
Ao planejarmos uma emissão sonora, assim como é feito em House of Cards,
é ensinado por Kaplún: abusemos de imagens auditivas (idem, p.69). O que
seriam: o ganido do cachorro, o som forte de porta batendo para mostrar
insatisfação, o som de vidros quebrando para mostrar raiva (poupando
copos), enfim, esses sons não precisam acompanhar uma imagem, bastam
soar. O público completa a cena.
Kaplún afirma que o poder de criar som é vastíssimo e isso é verdade
na produção audiovisual também: há inúmeras possibilidades. Uma vez
criado o som, aliado à imagem, não importa como o som foi produzido. A
partir daquele momento, aquele gesto tem o som que criamos - não limitado
a efeitos, mas a palavras e silêncio (idem, p.71).
Devido a sua experiência na TV, Mario Kaplún sabe da capacidade
maior dos produtos audiovisuais manterem a atenção do público71. Assim,
ele reparou na necessidade de usarmos músicas intercaladas ao diálogo. Por
diversas vezes no primeiro capítulo da série, percebemos o uso econômico
71 http://www.infoamerica.org/documentos_word/Mario%20Kapl%FAn.htm acesso em fevereiro de
2016.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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de música, especialmente na hora de enfatizar ideias ou clímax das armações
do personagem principal – ora com solos de piano, ora com o tema original.
Quando Mario Kaplún menciona a comunicação afetiva como
ferramenta para incrementar a comunicação entre quem fala e o público
(idem, p.72), imediatamente nos recordamos das falas dirigidas de Frank
Underwood à câmera, invadindo o que se chama “quarta parede” – ou seja,
ele fala para nós, excluindo os outros personagens. O efeito disso é, em nossa
visão, grande diferencial da série, pois joga-nos como cúmplices de
Underwood. Nesse caso, a “palavra-emoção” (idem, p.74) de Frank
Underwood são confissões inescrupulosas, cheias de vícios e maldades.
Ademais, a série estimula a sensação de participação do público com isso
(idem, p.136).
Porém, quando Kaplún menciona a empatia (idem, p.76), ocorre
algo, em nossa opinião, inusitado, ao assistirmos House of Cards: o
personagem principal coloca-nos em seu lugar. Ele jamais se coloca como
alguém como nós, ou seja, inverte o papel empático proposto por Kaplún,
inspirado por Luis Ramiro Beltrán. Cremos que isso ocorra devido o grande
apelo da interpretação de Kevin Spacey ao fazer as confissões. Claro que a
série não é baseada em um monólogo, há diálogos, apesar de pouca ação. Mas
a linguagem é acessível e as ideias previamente apresentadas à audiência,
outro ponto defendido por Kaplún (idem, p.104).
A veemência com que Frank Underwood reforça seus atos e a
maneira clara com que traça seus objetivos, também deixam a narrativa fácil
de acompanhar. É o que Mario Kaplún chamaria de decodificação (idem,
p.106). A mensagem como um todo é facilmente captada.
Como a série é, basicamente, gravada em ambientes fechados, há
pouco espaço para ruídos externos. Todas as falas têm grande clareza e
pureza. Dessa maneira, House of Cards também têm outra característica para
uma boa comunicação, segundo Kaplún: a ausência de ruído (idem, p.115).
Somado ao diálogo fácil, bem feito, em que personagens ora perguntam, ora
reafirmam suas ideias (numa redundância discreta), contamos outro ponto
de clareza (idem, 135).
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Conclusão
Nosso intuito com este trabalho foi mostrar o que, muitas vezes, o
ouvido capta, mas não registra: o som em simbiose com a imagem, que pode
passar despercebido. Mas, ao experimentarmos apenas ver um produto
audiovisual, sem ouvi-lo, perceberemos que quase todas as sensações e
emoções esvaíram-se com o áudio. Portanto, o som é fundamental para a
experiência audiovisual.
A comparação que fizemos com os ensinamentos de Kaplún teve um
objetivo único: mostrar a simplicidade e preciosismo daqueles que
constroem os sons das narrativas. Assim, esperamos que futuras produções
audiovisuais possam permitir um novo olhar (novo ouvir?) das obras e
permitir um aumento da imersão da audiência, facilitando o engajamento do
público. Como todo trabalho audiovisual, muito trabalhoso, que exige
capricho. Mas não é impossível de reproduzir.
Como produtores de conteúdo para mídias diversas, cremos que o
intuito é, cada vez mais, mostrar a facilidade de produzir conteúdo de
qualidade a baixo preço.
Se a série analisada, por um lado, teve orçamento imenso e elenco
estelar (à frente e por trás das câmeras), esperamos ter deixado claro que seus
principais atributos foram o diálogo bem feito, sons nítidos e efeitos sonoros
primorosos, em que nem tudo foi mostrado ao público, mas tudo o que era
necessário à narrativa estava presente. E isso é escolha do produtor.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
O jornalismo audiovisual em 360º: uma análise
das produções “VICE NEWS VR: Millions
March” e “A Esperança de Mariana”
Andressa Kikuti – Faculdades Secal
Bruno Guerra – Faculdades Secal
Introdução
O fazer jornalístico é marcado por mudanças influenciadas por
avanços tecnológicos. No século XXI, a principal delas foi a criação e
popularização dos dispositivos móveis, como smartphones e tablets, que
transformou tanto a produção (agora é possível contar com aplicativos
diversos para ajudar na apuração e registro de informações) quanto a
circulação (o crescimento destes dispositivos intensificou o uso de redes
sociais como o Facebook, Youtube e Twitter para disseminação de notícias)
e o consumo (a leitura possui um padrão mais ágil, e cresce a importância da
personalização de conteúdos). A realidade virtual, utilizada principalmente
para fins militares desde os anos 1950, expande seus usos no século XXI e
passa a ser aplicada (com o auxílio de dispositivos móveis) em diferentes
áreas, como os games, a arquitetura, e tem gerado experimentos também no
jornalismo.
Robert Hernandez (2015), em seu artigo intitulado “The Year Virtual
Reality Becomes Reality”, produzido para a série Predictions for Journalism in
2016, do Nieman Lab, afirma que o maior desafio para a indústria do
jornalismo é descobrir como investir e inovar em tecnologias emergentes que
ainda não se tornaram mainstream, como a realidade virtual (RV). Para ele,
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é hora de o jornalismo se preparar para liderar experimentos nesta área,
mesmo que alguns projetos falhem, outros pareçam forçados, pois é através
destes rascunhos que se poderá chegar perto de compreender o que o
jornalismo será quando se tornar vestível e imersivo.
Empresas de tecnologia têm investido no desenvolvimento de
produtos que possibilitem o uso desta tecnologia, como os óculos virtuais. Só
em 2016, foram anunciados 72 os lançamentos do Oculus Rift (do Facebook),
do HTC Vive (da Valve) e do Playstation VR (da Sony). O CEO de uma
empresa de comunicação e RV, Guilherme Campos, afirmou 73 durante
palestra na Campus Party Brasil 2016 que a realidade virtual é uma tecnologia
que em breve fará parte do cotidiano das pessoas, e que alternativas de baixo
custo como o Cardboard74 – protótipo de realidade virtual lançado pelo
Google, feito de papelão e com código aberto -, são a prova de que a
tecnologia tem espaço para se popularizar.
Uma das possibilidades geradas pela realidade virtual e que
começam a ser utilizadas pelo jornalismo são os vídeos em 360º, que para
Hernandez (2015) são os frutos maduros da RV. A técnica de gravação em
360º utiliza câmeras interligadas que capturam todos os ângulos possíveis em
uma cena. A tecnologia consiste em seis câmeras com lentes olho de peixe
posicionadas uma de costas para a outra (em formato de cubo), e um software
específico para a junção de todas as imagens. Este sistema foi desenvolvido
para acompanhar as tecnologias de realidade virtual já empregadas em games
e produções 3D que utilizam óculos de RV.
Os vídeos 360º permitem que o usuário explore qualquer ângulo
dentro da cena que está se desenrolando, e pode fazê-lo a partir de três
experiências físicas diferentes: usando um óculos de RV, que permite
72 Disponível em: http://olhardigital.uol.com.br/noticia/playstation-vr-chega-as-lojas-na-segundametade-do-ano/55202. Acesso em 21/02/2016 às 18h48.
73 Disponível em: http://m.olhardigital.uol.com.br/noticia/realidade-virtual-e-a-maior-revolucaodesde-a-tv-diz-especialista/54710. Acesso em 21/02/2016 às 18h36.
74 Disponível em: https://www.google.com/intl/pt-BR_ALL/get/cardboard/get-cardboard/. Acesso em
22/02/2016 às 11h22.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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acompanhar o movimento da cena com o movimento da cabeça; com o
cursor do mouse do computador, que permite a mudança de ângulo em todas
as direções ao clicar e arrastar em qualquer parte do vídeo; ou com o toque
dos dedos em telas touchscreen, que substituem o mouse em tablets,
smartphones e monitores com esta tecnologia.
A popularização destas produções se acentuou partir do momento
em que algumas das principais plataformas de conteúdo conhecidas
atualmente, como o Facebook e o YouTube 75, começaram a suportar tais
formatos. Assim, obter hardwares e softwares específicos para RV deixou de
ser pré-requisito para acessar tais produções, pois é possível assisti-las
usando plataformas simples e populares. No entanto, de acordo com um
estudo produzido por Sarah Jones (2016) divulgado no VR UK Festival, a
experiência com gadgets próprios para RV aumenta a imersão, porque não
há possibilidade de distração do público, como ocorre ao assistir TV, por
exemplo, quando o usuário assiste ao programa e mexe no smartphone ao
mesmo tempo, o que os tornam ferramentas poderosas para o jornalismo.
Este artigo propõe uma breve análise de duas produções audiovisuais
que utilizam a tecnologia de captura de imagem em 360º para a geração de
produtos jornalísticos: a reportagem “Millions March”, realizada pela Vice
em janeiro de 2015, e “A Esperança de Mariana”, feita pela startup de
realidade virtual DIVR. As duas produções foram escolhidas para esta
pesquisa porque propiciam duas análises diferentes no campo do jornalismo
ao utilizarem o sistema 360º com linguagens diferentes. A primeira é um
documentário em movimento, no qual os jornalistas – repórter e cinegrafista
– acompanham uma caminhada no centro da cidade de Nova York, junto
com 60 mil populares que protestavam contra a brutalidade exercida pela
polícia na comunidade afrodescendente. A segunda é uma produção
universitária e experimental, que reúne uma série de entrevistas com as
75
Canal
de
vídeos
em
360º
do
https://www.youtube.com/channel/UCzuqhhs6NWbgTzMuM09WKDQ/featured.
22/02/2016 às 11h50.
YouTube:
Acesso
em
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
vítimas do desastre ambiental na cidade de Mariana (MG) devido ao
rompimento de uma barragem da mineradora Samarco.
Os pontos de análise foram escolhidos para encontrar as
possibilidades do fazer jornalístico ao se apropriar do formato 360º, tendo
em vista as técnicas de enquadramento e captação de imagem e conceitos de
narrativa. O mais interessante é ter em mente que jornalistas estão
produzindo e pensando na melhor forma de contar uma história utilizando
esta nova técnica, e isto implica em considerar uma série de fatores que
podem resultar na quebra de convenções previamente estabelecidas para a
produção audiovisual. De acordo com Jones (2016), a grande diferença com
relação a assistir uma notícia na televisão e em 360º é que na TV se assiste
apenas uma vez, enquanto no outro tipo de conteúdo os usuários costumam
assistir repetidamente ao material, para ter certeza de que viram tudo – o que
levanta questões sobre o lugar dessas produções no jornalismo.
1.
A participação como alicerce do jornalismo imersivo
Falar sobre a produção do jornalismo em vídeos de 360º aponta a
necessidade de abordar conceitos-chave para o seu entendimento. O
principal deles é a imersão, que tem a ver diretamente com a experiência do
usuário. Outros são noções de perspectiva e de composição do audiovisual,
como enquadramento e planos, pois estes são reconfigurados no momento
em que o usuário faz intervenções no vídeo durante o ato de assistir. A seguir,
traz-se uma breve discussão de tais conceitos, e a sua relação com o tema
desta pesquisa.
Há distintas maneiras de compreender o conceito de imersão dentro
do jornalismo. Uma delas é no sentido do envolvimento e participação de
repórteres nos eventos noticiosos, de forma a reportá-los de maneira mais
aprofundada e complexa. Antônio Brasil e Samira Frazão (2013) dão como
exemplo de grupo de mídia que utiliza esta estratégia o coletivo Mídia NINJA
(sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), cuja estratégia é
cobrir manifestações públicas no meio da multidão, opondo-se às práticas
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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regulares da mídia tradicional de “subir no telhado” ou até mesmo utilizar
helicópteros para filmar os protestos de rua, distanciando-se da realidade.
Como define Ana Carolina Temer et.al. (2014, p.80), a inserção de repórteres
no ambiente dos acontecimentos tem o objetivo de “compreendê-los no bojo
de seus contextos (...) e a reportá-los de maneira complexa em formas de
expressão que assim os permitem, como é o caso da reportagem”. Esta
interpretação de imersão no jornalismo possui, portanto, uma perspectiva
antropológica, focada nos produtores da notícia e no método de apuração
das informações.
Outra interpretação do que se pode denominar jornalismo imersivo
é descrita pelas autoras Geane Alzamora e Lorena Tárcia (2012), para as quais
o conceito está mais ligado ao consumo das notícias do que a apuração dos
fatos. Nesta perspectiva, utilizam-se tecnologias digitais para que a produção
jornalística proporcione ao público a oportunidade de experimentar as
situações e eventos descritos em uma reportagem no papel de protagonista.
Para as autoras, o jornalismo imersivo está associado ao jornalismo
transmídia, e sua ideia fundamental seria “permitir ao participante entrar em
um cenário representativo da história, criado virtualmente” (ALZAMORA e
TÁRCIA, 2012, p.31). Esta é a compreensão que adotamos como base para a
proposta deste artigo, cujo aspecto central é avaliar produções de vídeos em
360º no jornalismo.
Entre todas as linguagens disponíveis para a web 2.0, a linguagem
audiovisual é a que mais apresenta proximidade com a realidade, segundo os
autores Catalina Mier e Denis Porto-Renó (2009), por conta de sua imagem
em movimento, som e efeitos presentes desde a criação do cinema. Quando
se amplia o plano de filmagem a ponto de cobrir todos os ângulos possíveis
de visão de uma cena, como nos vídeos produzidos em 360º, o resultado é
um material que aproxima ainda mais o espectador da realidade, pois
permite ver a cena de forma integral, podendo direcionar o olhar até mesmo
para o lado oposto de onde estaria a câmera em um vídeo comum. Este
processo amplia a experiência de imersão, pois atinge a sensorialidade visual
do público ao transportá-lo diretamente para a cena relatada.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Gonçalo Noronha (2012) explica que o nível de imersão de um vídeo
pode ser medido pela forma como o utilizador o experiencia, ou seja, pelo
grau de envolvimento do espectador com o produto. Logo, ele depende não
somente da qualidade dos conteúdos, mas também da forma como o vídeo é
apresentado e das funcionalidades que estão à disposição do utilizador para
tornar a visualização mais cativante. Segundo o autor, há dois tipos de
imersão possíveis nos vídeos: a imersão física, que estimula os sentidos físicos
do utilizador, como a visão e o tato, e há também a imersão de participação,
onde quem assiste é estimulado a interagir no desenrolar da cena em sua
experiência de visualização. Os vídeos produzidos em 360º cobrem estas duas
bases e, como tal, tornam-se conteúdos altamente imersivos, pois além de
estimular o sentido da visão e da audição, dependem da interação
(participação ativa) do utilizador - que pode trocar de ângulo, aumentar ou
diminuir o zoom – na construção de sentido. Nesta perspectiva, não há uma
única forma de consumir o conteúdo apresentado, e sim várias formas,
ficando a critério do usuário decidir e personalizar a sua própria experiência.
Em outras palavras, as narrativas utilizadas para produções em 360º
são ao mesmo tempo lineares e não lineares. Vicente Gosciola (2003) define
a narrativa não linear como aquela que possibilita uma leitura livre da
história, onde o espectador pode seguir um caminho próprio. Este fator
ocorre em todas as produções que utilizam o recurso 360º. Ao mudar o
ângulo da imagem o espectador acaba criando seu próprio percurso, e isso
ocorre mesmo em narrativas que discorrem de forma linear, como é o caso
da Millions March, que acompanha a sequência dos acontecimentos em
ordem cronológica, e também em A Esperança de Mariana, na qual os
entrevistados contam a sequência dos acontecimentos de acordo com a sua
vivência particular e a relevância que atribuem aos fatos.
2.
Enquadramento, plano e profundidade em 360º: noções do
audiovisual rediscutidas
É interessante observar como as possibilidades de participação
oferecidas pelos vídeos em 360º rediscutem noções básicas da composição
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
das produções audiovisuais, como enquadramento, plano e profundidade.
Estas decisões, antes pertencentes exclusivamente aos produtores, agora
passam a ser compartilhadas também com o público, pois este passa a
escolher o ângulo e a distância em que observa a cena, influenciando também
na sua percepção da história. Usando a definição de John Hedgecoe (1996),
o enquadramento é a “moldura”, ou seja, a escolha do que irá compor a
produção, que exerce uma influência direta na forma como o espectador irá
perceber as imagens da história que está sendo contada. Estética e narrativa
estão entre os fatores mais presentes dentro do enquadramento quando se
refere a um produto cinematográfico ou documental, o que faz do
enquadramento uma ferramenta de linguagem.
Para decidir o enquadramento é necessário levar em conta o plano,
que é a distância entre a câmera e o objeto capturado, e o ângulo, horizontal
e vertical. Outras noções importantes são o foco – ponto principal a ser
ressaltado em uma imagem - e a profundidade de campo – que é a área focada
na imagem. Estes fatores definem a qualidade e compreensão da narrativa,
influenciando diretamente no resultado das produções. Ao produzir uma
imagem (ou vídeo) em 360º, na qual a premissa é a utilização de várias
câmeras com ângulos distintos, não é possível focar em apenas um ponto
específico ou usar uma profundidade de campo reduzida, pois é preciso
deixar que o usuário defina onde quer focar. Os planos também precisam ser
pensados para que o usuário consiga explorar a cena, mas tomando cuidado
para que a grande quantidade de elementos não desvie a atenção do elemento
principal, causando confusão. Sendo assim, para aproveitar melhor as
potencialidades deste formato, toda a elaboração do produto deve levar em
conta quais imagens ficam melhores seguindo estas características e quais
não, o que cria um desafio para as produções deste escopo.
O ângulo de visão humana estático compreende uma média de 180º
do campo na horizontal, por isso a composição de cenas neste formato é
entendido como mais natural. Pintores, fotógrafos e cineastas se apoiaram
por séculos neste fundamento para desenvolver enquadramentos de acordo
com a realidade, sem causar estranheza aos observadores de tais obras. Já as
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
produções em 360º abrangem um novo caráter dentro deste fator realidade
da visão humana, o movimento. Olhar não é apenas fixar um panorama e
observar aquilo que os olhos alcançam, mas também a movimentação que
contribui para que nenhum limite deixe de ser explorado. Isso que torna
natural a observação orgânica remete a questões inexploradas no campo
audiovisual com o sistema 360º.
Com os olhos é natural movimentar a cabeça para ver melhor o que
está ao lado, uma vez que indivíduo é seu próprio diretor e decide o que quer
ver e por que. Em um documentário tradicional, a narrativa se apoia
principalmente no enquadramento das cenas que são oferecidas para o
espectador. Não é ele que decide o que vai ver, apenas aceita o desenrolar das
cenas já enquadradas, editadas e disponibilizadas na sequência decidida pelo
diretor, o que possibilita a maior compreensão da narrativa proposta. Nas
produções em 360º o diretor decide o local e a hora dentro de um
acontecimento e, embora possa escolher a câmera principal a partir da qual
o vídeo será apresentado, o enquadramento fica a cargo do espectador, que
tem o controle da visão em todos os lados.
3.
Análise das produções audiovisuais jornalísticas em 360º
“Millions March” e “A Esperança de Mariana”
Para a análise proposta nesta pesquisa foi escolhido o método
exploratório, uma vez que as produções em 360º no jornalismo ainda são
recentes, e não possuem padrões de produção identificados, ou mesmo de
análise consolidados por outras pesquisas. A pretensão foi observar e
descrever o que foi encontrado nos dois produtos selecionados - “Millions
March” e “A Esperança de Mariana” -, a partir de duas categorias: 1)
enquadramento e captação da imagem, e 2) imersão da narrativa. Os vídeos
foram assistidos a partir do computador e dos smartphones dos
pesquisadores (para obter duas experiências com o material investigado),
ambos na plataforma YouTube.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
3.1.
2016
Vice News VR: Millions March76
Na reportagem Millions March, produzida pela Vice em dezembro
de 2014, as imagens são capturadas no meio de uma manifestação de
populares contra a brutalidade das ações da polícia de Nova York na
comunidade negra. Em qualquer ângulo que o espectador direcione a câmera
(exceto o céu e o chão), é possível ver algum acontecimento relacionado ao
tema da narrativa. Porém, em todas as cenas existe um ponto principal,
marcado como a frente da câmera, que também é utilizado como referência
para a equipe de produção e também para o espectador. É deste ponto que
abre o fade-in, e surgem caracteres e vinhetas. No caso de Millions March,
em vários momentos o ponto principal é marcado pela presença da repórter,
que narra os acontecimentos e acompanha a caminhada.
Figura 1: abertura de Millions March, em panorâmica, vista no YouTube pelo computador
Os diferentes ângulos possibilitam uma experiência diferente para
cada expectador de Millions March, pois há inúmeros detalhes para analisar:
expressões fisionômicas, movimentação das pessoas, veículos parando e
diversos acontecimentos que ocorrem no entorno da manifestação. O
enquadramento flexível contribuiu com a produção da Millions March, pois
mesmo em cenas de entrevistas, as informações contidas nas adjacências
contribuíam com a narrativa, reforçando a sensação do espectador de estar
em um ambiente de protesto, onde várias coisas aconteciam ao mesmo
76 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=N9cZRfp6mOA. Acesso em 22/02/2016 às 15h20.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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tempo. As vozes que estavam inicialmente fora do alcance da câmera
principal compunham uma espécie de off, que se transformavam em sonoras
ao redirecionar a câmera para a direção na qual se ouvia a voz, utilizando o
mouse (ou o dedo, no caso dos smartphones).
Em Millions March o som e as imagens da manifestação transportam
o espectador para o acontecimento, e com isso vem a sensação de “estar
presente” no momento em que os fatos ocorriam, além da possibilidade já
descrita de interagir com os ângulos da cena. Isso deixa claro o caráter
imersivo da narrativa, cobrindo as duas bases descritas por Noronha (2012)
para a imersão física e de participação. Além disso, a produção da Vice possui
também outro tipo de imersão: aquela focada nos produtores da notícia e no
método de apuração das informações, com a repórter e cinegrafista que
“mergulham” na manifestação para obter os seus relatos, inclusive com a
câmera em movimento.
3.2.
A Esperança de Mariana77
A Esperança de Mariana, primeiro documentário em 360º no
Brasil78, foi produzido de maneira independente pela startup de realidade
virtual DIVR. A produção retrata os desabrigados dos distritos de Mariana
(MG), que foram vítimas da lama decorrente do rompimento das barragens
da mineradora Samarco em 05 de novembro de 2015 – considerado um dos
maiores desastres ambientais do país.
A maneira mais imersiva de assistir ao documentário, de acordo com
seus criadores, é utilizando um óculos de realidade virtual como o Google
Cardboard acompanhado de um smartphone. Por não possuirmos o
aparelho, optamos por assistir da maneira “menos imersiva”, que é assistir
77 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LAAcneKwS8c. Acesso em 22/02/2016 às 15h20.
78 De acordo com notícia do Portal R7, “Primeiro documentário em filme 360 graus no Brasil retrata o
desastre ambiental de Mariana”. Disponível em: http://noticias.r7.com/dino/brasil/primeirodocumentario-em-filme-360-graus-do-brasil-retrata-o-desastre-ambiental-em-mariana-09122015.
Acesso em 24/02/2015 às 01h25.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
ao vídeo na plataforma YouTube 360º, pelo computador e pelo smartphone.
É a partir desta experiência que se obteve os resultados descritos a seguir.
Figura 2 abertura do documentário A Esperança de Mariana, visto através do Youtube
A captação da imagem foi feita com planos abertos, que permitiam
visualizar todo o entorno da cena. Tal possibilidade se refletiu em vantagem
quando se tratava das cenas que mostram as consequências do desastre, o
amontoado de lama cobrindo o que antes foram ruas, casas, carros e pessoas,
ampliando para o público a noção da tragédia. No entanto, há outras cenas
gravadas em locais cujo cenário não possui informações relevantes para o
tema em todos os ângulos – o que seria ideal para o formato de 360º -,
desestimulando o espectador a mudar o ângulo do vídeo. É o caso, por
exemplo, de uma escola onde foram feitas boa parte das entrevistas. A
imagem da escola em si não acrescenta informações para as falas dos
entrevistados, e as crianças correndo, outras pessoas assistindo à entrevista e
o barulho do entorno chegam a tirar a atenção do foco principal, que são os
depoimentos. Tal percepção leva a pensar que, para este tipo de cena, um
enquadramento de vídeo tradicional, fechado na fonte e direcionando toda a
atenção para a fala, talvez enriquecesse mais o material do que o modelo 360º.
Esta constatação dificulta uma imersão profunda no conteúdo, no
sentido da participação, ao menos no formato disponível no Youtube.
- 250 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Possivelmente a experiência neste sentido específico seja melhor aproveitada
com o uso de óculos de realidade virtual, pois seu pressuposto é utilizar a
tecnologia para fazer o espectador sentir-se parte da cena. Diferente de
Millions March, A Esperança de Mariana foi gravada após o acontecimento,
e não durante, e por isso a imersão no sentido da apuração não acontece. No
entanto, o esforço de produzir um material de grande interesse público e
relevância social, em um formato ousado e novo para o jornalismo, é
certamente digno de atenção.
4.
Conclusão
A breve análise proposta neste artigo possibilitou conhecer e
explorar duas produções jornalísticas em 360º a partir de dois eixos: do
enquadramento e captação das imagens, e da imersão da narrativa. Esse
modelo de produção começa a ganhar força no jornalismo na medida em que
as tecnologias (de produção e consumo) vão sendo popularizadas, e mais
experimentações vão sendo feitas. Além das plataformas que hospedam o
formato e acessórios que otimizam a experiência, como os já mencionados
óculos virtuais, a possibilidade captura de cenas em 360º com smartphones
foi anunciada em fevereiro de 2016, por empresas como a Samsung e a LG,
com lançamentos previstos para o segundo semestre do mesmo ano. É um
grande passo para tornar a utilização do formato mais popular, criando um
novo relacionamento da sociedade com o consumo da RV. Fatores como este
fortalecem a importância do uso do sistema pelo jornalismo, e recuperando
a afirmação de Hernandez (2015), “2016 será o ano em que a realidade virtual
se tornará realidade”. Cabe às empresas jornalísticas decidirem se aceitam o
conselho e passam a experimentar as novas possibilidades, ou se aceitam ficar
para trás.
Os resultados encontrados permitem criar um panorama inicial
sobre esse modelo de produção. O fato de haver poucos estudos anteriores
na área (o mais relevante encontrado foi o de Jones (2016), apresentado fora
do país) foi um desafio a ser enfrentado. No entanto, este fator reforça a
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relevância deste estudo inicial, pois poderá contribuir com outras pesquisas
similares na área, sobretudo no Brasil.
Millions March e A Esperança de Mariana têm em comum o fato de
terem sido produzidas com a tecnologia 360º, mas vêm de fontes distintas: a
primeira é uma reportagem produzida pela empresa de mídia Vice, que
possui estrutura e modelos de produção mais consolidados, e a segunda
produção tem um caráter mais experimental, produzida por uma startup
brasileira. A escolha de analisá-las foi interessante, pois permitiu verificar
níveis distintos de utilização da técnica, e ao mesmo tempo perceber como
as produções surgem de vários lugares.
Na categoria enquadramento e captação, o planejamento do local e
a ocasião das filmagens se mostram relevantes nas produções em 360º, pois
os jornalistas precisam ter em mente que todos os lados do ambiente serão
capturados, e podem ser enquadrados por meio da interação do espectador,
se assim ele quiser. Se houver excesso de vazios informativos na cena, ou
informações que não contribuem para a narrativa que se pretende mostrar,
o produto se tornará cansativo. Portanto, a composição das cenas deve ser
pensada de forma minuciosa, respeitando as características do formato. No
caso da profundidade de campo, ela deve ser elaborada de forma a permitir
que o espectador tenha uma visão ampla da cena, e ao mesmo tempo
detalhada, no caso de a produção possibilitar o uso de zoom. O foco,
portanto, torna-se variável.
No aspecto da narração o leque se abre, e desabrocham
possibilidades de criar uma narrativa linear e não linear concomitantemente.
Millions March trouxe em primeiro plano a narrativa linear, seguindo a
sequência dos acontecimentos em ordem cronológica, mas pelas mãos do
espectador ela pode transformar-se em não linear, pois ele poderá mudar a
direção da câmera e acompanhar o os acontecimentos por meio de fatos
paralelos ao central, desprezando a visão dada pelo jornalista.
Fruto da web 2.0, a produção em 360º tira sua maior vantagem para
o jornalismo na imersão. Em algumas cenas, A Esperança de Mariana leva o
espectador a locais onde ele pode se sentir de frente com a tragédia, vendo os
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resultados do desastre causado pela lama ao mesmo tempo em que escuta o
depoimento dos sobreviventes. Millions March se aproveita do ambiente
caótico de manifestação para causar efeito semelhante, imergindo o público
numa sensação de estar dentro do protesto. Essa interação possibilitada pelo
sistema colabora para o fazer jornalístico para a web, pois proporciona um
relacionamento sensorial com a informação. Esse aspecto faz do sistema de
gravação em 360º uma ferramenta poderosa para o webjornalismo, embora
a produção destas narrativas seja desafiadora para quem faz, pois ninguém
possui uma ideia exata de como a audiência irá se engajar com elas.
Utilizando a afirmação de Jones (2016, tradução nossa), “a preocupação do
momento é que temos uma ferramenta em potencial, mas se não a usamos
apropriadamente, pode ser muito prejudicial, então estudos precisam ser
feitos para ver o que está funcionando e o que as pessoas esperam79”.
Referências bibliográficas
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narrativas emergentes em jornalismo. In: Brazilian Journalism Research. V. 8 N. 1. 2012.
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GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para as novas mídias: do cinema às mídias interativas. 2003,
SP: SENAC, 2ª Ed., 2008.
HEDGECOE, John. Guia completo de fotografia. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
79
"The worry at the moment is that we have a great potential tool, but if it is not
done properly, it could be really detrimental, so studies need to be done to see what
is working and what people want."
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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HERNANDEZ, Robert. The Year Virtual Reality Becomes Reality. Nieman Lab, 2015.
Disponível em: http://www.niemanlab.org/2015/12/the-year-virtual-reality-becomesreality/. Acesso em 24/02/2016.
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Disponível em: https://www.journalism.co.uk/news/disrupting-the-narrative-telling-storieswith-360-degree-video/s2/a609976/. Acesso em 24/02/2016.
NORONHA, Gonçalo Nuno Sousa da Piedade. Sight Surfers: partilha e geonavegação em
vídeos 360º. Dissertação de Mestrado em Engenharia Informática. Departamento de
Informática: Universidade de Lisboa, 2012.
TEMER, Ana Carolina Rocha Pessôa; ASSIS, Francisco de; SANTOS, Marli dos. Mulheres
Jornalistas e a prática do jornalismo de imersão: por um olhar sem preconceito. In: Media &
Jornalismo, Nº 25, Vol. 14, Media & Jornalismo, 2014.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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ComunicaNER
Antonio Francisco Magnoni – UNESP
Barbara Cristina Meireles Alves – UNESP
Mateus Filippini Caetano de Mello – UNESP
Sillas Carlos dos Santos – UNESP
Introdução
O projeto Comunica-NER é desenvolvido pelos bolsistas e
voluntários do Projeto Interdisciplinar de Educação Tutorial de Rádio e TV
(PET-RTV), como atividade semanal de extensão à comunidade, que é
realizada durante o período letivo com um grupo de alunos do Núcleo
Municipal de Ensino Renovado (NER). O Comunica-NER mantém uma
parceria anual com a equipe da “Locomotiva”, empresa júnior do Curso de
Rádio e TV da FAAC-UNESP/Bauru. O objetivo principal das atividades
desenvolvidas é de aproximar as crianças e adolescentes do NER, das
linguagens e das técnicas para produção crítica e criativa de formatos
audiovisuais, além de ensiná-los a fazer uso consciente das novas mídias
digitais e das redes sociais. As atividades são guiadas por temas sociais
contemporâneos, que são escolhidos a cada mês para guiar as atividades
semanais realizadas pelos alunos do NER e pelas equipes do PET-RTV e da
Locomotiva Jr., na sala-laboratório do projeto. Os alunos recebem
informações sobre a produção de roteiros, registro de imagens e edição
audiovisual, conhecimentos e técnicas de expressão artística e comunicativa,
que atraem gerações de nativos digitais acostumados a produzir
empiricamente, pequenos fragmentos de peças audiovisuais para difundir
nas redes sociais.
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Nos dias atuais, a maioria das pessoas que vive em sociedades com
alguns recursos e hábitos modernos são dependentes das novas redes
informáticas, dos versáteis aplicativos e dos dispositivos multimídia
domiciliares ou portáteis. A internet é, acima de tudo, um sistema
informático de transmissão de dados com diversas finalidades, um veículo
público com fluxos multilaterais instantâneos para difundir comunicação
oral, escrita, imagética e audiovisual.
Foi a partir da disseminação da computação como ferramenta
múltipla e adaptável para a realização de incontáveis atividades humanas,
sejam materiais ou simbólicas, que se tornou viável para os arranjos
capitalistas pensarem na globalização das telecomunicações, dos mercados
financeiros, e especialmente, na padronização e ocidentalização das várias
formas de comunicação midiática e de cultura de massa.
O desenvolvimento das tecnologias digitais não foi motivado pelas
necessidades de evolução das sociedades civis e tampouco teve origem
pacífica. As pesquisas iniciais sobre os computadores atendiam durante a
“guerra fria”, as demandas bélicas e estratégicas dos EUA seus aliados
europeus. No entanto, o uso empresarial civil e militar da informática serviu
objetivamente para alavancar a partir da década de 1970, o primeiro surto
capitalista de automatização industrial e dos sistemas de telecomunicações
terrestres e por satélites.
Foi também, a partir do desenvolvimento e comercialização dos
primeiros consoles de videogames e dos microcomputadores pessoais, que a
informática alcançou a sociedade civil e também os diversos setores
comerciais de produção de conteúdo e de mensagens para a comunicação de
massa, como as artes gráficas, a editoração e todas outras formas de produção
de conteúdos e de formatos noticiosos, ficcionais e as variedades lúdicas que
sustentaram desde os primeiros instantes do século 20, o amplo
desenvolvimento das indústrias criativas do capitalismo cultural.
O entretenimento e o consumo de massa, que são refinados
instrumentos ideológicos da cultura capitalista contemporânea, passaram a
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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adquirir com as redes e os dispositivos informáticos, uma abrangência
infinitamente maior que aquela alcançada pelos veículos e os produtos
comunicacionais produzidos na “era analógica”. A emergência e a
propagação de tais tecnologias durante as últimas três décadas do século 20,
permitiram articular com as bases da economia tradicional, uma nova
plataforma produtiva e cultural constituída por meios de informação sempre
mais velozes, precisos e envolventes.
No entanto, sempre é pertinente lembrar ao leitor, que comunicação
comercial de massa é um fenômeno relativamente novo na cultura mundial,
porque se consolidou primeiramente com o aperfeiçoamento do maquinário
gráfico combinado com um modelo de negócio editorial, que passou a ser
viável em todas as cidades comerciais e industriais dos EUA e da Europa,
com populações escolarizadas e com crescente hábito de leitura, além de
renda suficiente para comprar jornais, revistas, livros ou assistir espetáculos
teatrais e musicais.
A imprensa se desenvolveu sistematicamente durante a segunda
metade do século 19, como um negócio editorial sustentado pela conjugação
da venda de anúncio publicitário, de assinaturas e de exemplares avulsos,
além dos editores venderem “sigilosamente” matérias de interesses diversos,
que eram publicadas com “vernizes jornalísticos”. A prática do “jabá”, ou seja
da publicidade disfarçada de notícia, já nasceu com o jornalismo. Desde os
primeiros instantes do século 20, imprensa e a publicidade estiveram
presentes na formação da opinião públicas das parcelas alfabetizadas,
enquanto a ambiciosa indústria do entretenimento projetava em enormes
salões populares, ou em teatros requintados, as novidades do cinema mudo
e as atrações musicais populares e clássicas; enquanto isso, vendia fonógrafos
e vitrolas de corda para os consumidores mais abastados.
A comunicação midiática contemporânea foi se consolidando e
ampliando a sua abrangência populacional, conforme eram desenvolvidos ao
logo do século 20, novos veículos de comunicação. Todos eles adaptaram e
mesclaram técnicas de produção e difusão de mensagens e até as práticas
comunicativas de meios mais antigos, com novas técnicas e novos
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conhecimentos sobre a produção de gêneros, de formatos e linguagens
comunicativas.
Nesta lógica de evolução sucessiva, a imprensa, o jornalismo, a
publicidade, a literatura e as artes dramáticas transferiram as suas
experiências expressivas para o rádio e o cinema sonoro. A televisão absorveu
linguagens e recursos profissionais já mais amadurecidos pela comunicação
radiofônica e cinematográfica, seja dramatúrgica, noticiosa, ou de
entretenimento; também a produção musical das gravadoras e dos musicais
do cinema, além dos programas humorísticos e os famosos programas
radiofônicos de auditório, que sobrevivem até hoje na televisão aberta.
A evolução dos veículos eletrônicos e da comunicação no Brasil
A partir da década de 1920, radiodifusão ampliou mundialmente a
abrangência da cultura de entretenimento e de consumo, que fora criada
pelas revoluções industriais iniciados no século anterior, em alguns países da
Europa e nos EUA. No Brasil, desde 1923 até o início da década de 1930,
foram instaladas em todo o país, cerca de 40 emissoras, que funcionavam
sustentadas por associações de ouvintes-contribuintes. Todas elas estavam
concentradas nas regiões brasileiras mais desenvolvidas e geridas pelas
parcelas ricas, que podiam importar os caros receptores e pagar as taxas de
ouvinte associado. Não havia uma política governamental para legalizar o
funcionamento comercial das estações instaladas. O levante político e militar
liderado por Getúlio Vargas pôs fim à velha república e ao ciclo das emissoras
associativas, que não conseguiram resistir à concorrência das rádios-empresa
e as novas exigências para o exercício da radiodifusão,, que foram
estabelecidas pelo Decreto presidencial nº 21.111 1º de março de 1932.
Na prática, a sociedade brasileira não teve oportunidade para conceber
outros modelos de emissoras, a não ser a fórmula comercial mais eficiente
e lucrativa, que os grupos privados escolheram para explorar a
radiodifusão em escala local, regional e nacional. A programação das
emissoras comerciais, desde o início, já era destinada ao entretenimento e
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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a promoção do consumo de mercadorias. A informação jornalística
também adquiriu regularidade e importância editorial na programação e
o rádio comercial logo firmou a sua identidade nacional, sustentado pela
expansão urbano-industrial, o principal projeto do Governo de Getúlio
Vargas. O governo de Vargas criou o Ministério da Educação como parte
da mesma estratégia modernizadora do país, e estimulou a instalação de
salas de exibição de cinema sonoro em cidades e povoados pelo interior
do país. Vargas também intensificou a distribuição de concessões de
emissoras comerciais para cidades com potencial de desenvolvimento
econômico. O início da indústria brasileira do audiovisual também foi
induzido pelo governo federal, que deu recursos para Roquette Pinto
organizar em 1936, o Instituto Nacional do Cinema Educativo.
(MAGNONI, 2001, p.29)
A partir da década de 1950, a potência da comunicação de massa
seria muitíssimo fortalecida pela televisão. Entre os países menos
industrializados e importadores de tecnologias, o rádio e o cinema sonoro
haviam conseguido incluir entre o público da cultura de massa, os milhões
excluídos da comunicação jornalística e da cultura livresca, seja literária,
educativa, didática especializada, religiosa etc.
Com a expansão da comunicação midiática e com o
desenvolvimento da publicidade, até em locais muito isolados foi possível
estimular nas populações, novas necessidades de consumo, que permitiram
sustentar novas estruturas de produção e de comercialização de mercadorias
industrializadas. Assim, os mercados internos e externos dos países
industrializados foram sendo ampliados rapidamente. Durante os anos
fartos que antecederam a grande depressão econômica dos anos 1930, uma
profusão de mensagens sonoras foram difundidas pela indústria
eletroeletrônica de rádios, fonógrafos e discos. Elas inundaram o mercado
interno dos EUA e dos países ocidentais sob a influência comercial ianque
(MAGNONI, 2001).
No começo da década de 1930, os brasileiros viviam duas grandes
incertezas: a primeira era causada pelos efeitos desestabilizadores da crise
internacional iniciada em 1929, que incidia impiedosamente sobre a frágil
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economia interna, agropecuária e exportadora de matéria-prima. A
segunda derivava dos ressentimentos causados pelo levante político e
militar liderado por Vargas, que havia encerrado o ciclo da “república
velha” e alijado temporariamente do poder central, as poderosas
oligarquias agropecuárias, especialmente, as dos paulistas e dos mineiros.
O projeto modernizador de Getúlio Vargas foi desfechado em meados
daquela década, período em que a radiodifusão comercial e a educação
pública começaram a ser desenvolvidas pelo Estado brasileiro, como peças
complementares da mesma estratégia nacionalista e desenvolvimentista,
que o caudilho havia adotado como diretriz política e econômica de seu
governo. Assim, o populismo varguista inaugurou no Brasil, desde o
momento em que optou pelo projeto pragmático de distribuir concessões
públicas de emissoras, o modelo autoritário e concentrador de
radiodifusão, que ainda persiste no início do século 21. (MAGNONI,
2001, p.27)
Durante os anos 1940 houve aceleração das mudanças em vários
setores da sociedade brasileira, como resultado do crescimento da economia
industrial e comercial, da ampliação da estrutura burocrática do Estado e do
aumento do fluxo de urbanização da população. Cresceram o operariado, as
camadas sociais médias e o mercado de bens de consumo em geral. O rádio,
o cinema sonoro e a propaganda se firmaram naquela década, como
componentes decisivos da ordem econômica, política e como instrumentos
de referência para a complexa cultura nacional. Tais fatores exigiram dos
meios de comunicação uma readequação estrutural constante para atender a
nova realidade brasileira, que de fato se modernizava. Em 1945, ocorreu a
deposição de Getúlio Vargas da presidência da República e começou no
Brasil, uma relativa redemocratização política, com a convocação de eleições
gerais e a aprovação de uma nova Constituição em 1946, um contexto que
favoreceu o crescimento das organizações classistas e da atuação política dos
trabalhadores brasileiros. (MAGNONI, 2001)
Os anos 1950 marcaram ao mesmo tempo, o apogeu econômico e
profissional do rádio como meio de comunicação eletrônica mais popular e
abrangente, e o início de um ciclo permanente de decadência do faturamento
comercial das emissoras, que foi motivado pela instalação experimental e
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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pela gradual ascensão da televisão comercial. Nos primeiros 20 anos da
televisão brasileira, houve a multiplicação de emissoras comerciais apenas
nas grandes cidades. Os anos 1950 e 1960 representaram o período de
consolidação técnica, profissional e publicitária de um meio caro, ainda de
difícil produção e que tinha apenas transmissão local, uma vez que a
transmissão nacional dependia ainda dependia de redes de
telecomunicações, uma infraestrutura que seria construída pela ditadura
militar, no final de década de 1960.
Os estrategistas da ditadura de 1964 entenderam logo no começo do
regime militar, que uma rede nacional de televisão comercial bem gerida e
articulada com todos os setores dominantes serviria como instrumento
essencial para difundir e unificar com ações publicitárias e informações
massivas, os propósitos ideológicos, econômicos e culturais que garantiam
os interesses comuns entre a iniciativa privada nacional, os conglomerados
multinacionais que aqui haviam se instalado e o projeto capitalista bastante
conservador, que era então patrocinado pelo Estado autoritário brasileiro.
Durante os 21 anos de militarismo e autoritarismo político, o
oligopólio constituído por redes de rádio e de televisão conjugadas com
outros meios de comunicação passou a exercer em enormes populações
urbanas pobres e pouco escolarizadas, uma ação ‘informativa e pedagógica’
com capacidade de doutrinar milhões de pessoas, de forma “gratuita”,
domiciliar e diária. A Rede Globo começou a se formar efetivamente em 1º
de setembro de 1969, quando foi inaugurada a transmissão do Jornal
Nacional. A sintonia nacional da TV carioca tornou-se possível com o uso
das estações repetidoras de microondas do governo federal. Além disso, a
rede de televisão de Roberto Marinho convenceu prefeitos e vereadores a
custear com dinheiro público, a instalação de antenas receptoras municipais.
Nos anos 70, o governo investe na criação de canais de microondas,
estações repetidoras, ampliando a Rede Embratel, da qual a Globo foi a
emissora que tirou maior proveito, espalhando rapidamente seu sinal pelo
terrítório brasileiro. Segundo Maurício Shermann, em entrevista
concedida à Funarte em 1981: ‘A Embratel fez apenas dois links
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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brasileiros, e a Globo aluga um deles em tempo integral.’ É claro que
nenhuma emissora poderia arcar com as despesas das instalações das
torres retransmissoras de sinais de televisão [...], de modo que a Embratel
é a dona de todos os links, impondo as regras do jogo da transmissão em
rede por todo o país. Ao mesmo tempo aluga a quem pode pagar, o que
na opinião de Maurício Shermann é injusto: se é um serviço público, não
poderia ser concedido a quem tem o maior poder econômico, mas deveria
haver algum tipo de concorrência ou sorteio para decidir qual emissora
poderia ocupar o link e em que horário etc.. (KEHL et al., 1986. p.191)
A televisão em rede construiu rapidamente uma linguagem que
utiliza a imagem com alta definição como principal atrativo, mas que
sustenta de fato sua interação com o público na narrativa oral/sonora, que
foi constituída ao longo de três décadas de experiência acumulada pelo rádio
brasileiro, antes que a televisão se firmasse como um veículo de massa
(MAGNONI, 2001).
Em 1972, a Rede Globo implantou o sistema em cores (PAL-M) também
financiado pelo governo federal. O presidente General Emílio G. Médici
inaugurou a primeira transmissão brasileira em cores durante a Festa da
Uva de Caxias do Sul, realizada em 10 de fevereiro. Ao dispor de uma
posição privilegiada, a Globo pode impor seu padrão de qualidade, ao
apresentar ao público um nível técnico de transmissão e recepção de que
nenhuma outra emissora dispunha, e uma programação com excelente
qualidade de produção de linguagem e de formatos, e com imensa
competitividade publicitária. Assim, conseguiu desenvolver um modelo
de gestão racionalista e “científico” para orientar sua programação com
pesquisas permanentes de opinião (hoje em dia a mensuração de
audiência ocorre em tempo real) e pode direcionar seus programas de
acordo com o “gosto” do público, fator que a colocou rapidamente na
liderança da programação nacional e entre as melhores emissoras
comerciais do mundo.(MAGNONI, 2001, p. 140)
Para Ortiz (1988), a expansão dos meios de comunicação, da
indústria cultural e do mercado publicitário desde a década de 1960, também
estiveram vinculados aos recursos do Estado, principal investidor naquele
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período. É por conta desse papel de Estado “patrocinador” que os
proprietários dos meios de comunicação e de cultura conviveram e
suportaram a censura de peças, livros, filmes, etc. durante a ditadura militar:
“eles têm consciência que é o Estado repressor que fundamenta suas
atividades”. Durante os anos 1970, a época do “milagre brasileiro”, a TV em
rede foi a principal responsável pelo estímulo ao consumo de todo o tipo de
mercadorias, essenciais e supérfluas, produzidas pela indústria brasileira e
também pela propaganda massiva que sustentou a ditadura militar durante
o período mais conturbado do governo dos generais.
Nesse contexto, a TV se tornou, no decorrer das décadas de 1970 e 1980,
o meio de expressão encarado pela intelectualidade brasileira como o
lugar da genuflexão aos poderosos de plantão, do acatamento acrítico a
tudo que o novo regime tentava impor à população. Enquanto o cinema,
o teatro, as artes plásticas e a MPB manifestavam uma posição crítica, a
TV se voltava para a telenovela escapista, de clara inspiração no
melodrama mexicano [...]. A Tupi, a Excelsior e a recém-inaugurada TV
Globo mergulharam de cabeça no gênero. Esta última adotou uma linha
popularesca em sua programação, destacando Dercy Gonçalves, Silvio
Santos e o programa Casamento na TV, apresentado por Raul Longras
[...] [A TV brasileira] adere de corpo e alma aos projetos da ditadura
militar, cuja prioridade era afastar de cena pública, os artistas e intelectuais
mais influentes, substituindo-os por gente mais cordata, convencida pelas
teses de segurança nacional.” (BUCCI, 2000. p.70-1).
Para Magnoni (2001), quando a Rede Globo assumiu em 1978 a
tarefa de implementar o Telecurso 2º grau, ela ampliou ainda mais seu
poderio ideológico perante a sociedade, porque sua ação, que antes se
restringia ao território do entretenimento, passou, com a teleducação, ao
território formal da educação e da cultura. Ao tornar-se braço institucional
e remunerado do Ministério de Educação e Cultura, subjetivamente a Globo
passou a significar para as classes populares, o espaço real da própria
educação e da cultura nacionais.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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O lançamento experimental do Telecurso em São Paulo foi tão bem
sucedido que em poucas semanas o projeto foi estendido para todos os
Estados e as teleaulas passaram a ser retransmitidas por 40 emissoras de
televisão, dando origem à Rede Nacional de Telecurso de 2º Grau. A
“cruzada educativa televisual”, promovida pela sociedade da Globo com o
regime militar e custeada majoritariamente pelo erário público, mobilizou
a grande imprensa paulista e nacional e os órgãos representativos do
grande empresariado na sustentação política e estrutural ao Telecurso.
(MAGNONI, 2001 p. 110)
No começo da década de 1980, a comunicação audiovisual do
cinema e da tevê ganhou reforço do videocassete. O aparelho doméstico é
derivado do videoteipe profissional desenvolvido nos EUA em 1956. Naquela
década, também surgiram no mercado eletrônico câmaras e gravadores de
vídeo semi-profissionais que permitiram ao vídeo desenvolver-se como um
formato comunicativo independentemente da televisão. O videocassete se
firmou rápido, tanto como equipamento alternativo para produção de
conteúdos e mensagens para múltiplas finalidades, quanto como meio de
entretenimento domiciliar adequado para reprodução de fitas comerciais de
filmes e para realizar gravações da programação de televisão.
No Brasil, o fato da tevê por assinatura ter surgido só nos anos 1990
e ter permanecido restrita a uma faixa de assinantes da classe média para
cima ajudou bastante a expansão do videocassete, em primeiro lugar como
meio de entretenimento complementar à tevê: uma profusão de
videolocadoras se espalharam pelas cidades brasileiras, com lançamentos de
títulos novos e antigos, de produção dos EUA, em sua maioria. Mas o vídeo
projetou-se também como um meio versátil e eficiente para veicular manuais
de instrução de equipamentos, como meio de formação e treinamento
profissional, como veículo de registro de aulas, palestras e conferências e
como veículo de comunicação pedagógica em sala de aula, etc.
Em 1980, a Globo manipulou claramente as informações sobre as greves
dos metalúrgicos do ABC e em 1984 ela foi a última emissora a noticiar a
mobilização nacional que exigia eleições diretas e a redemocratização do
Brasil. No final daquele ano, a emissora aderiu à candidatura de Tancredo
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Neves, depois que o ex-governador baiano Antônio Carlos Magalhães,
amigo pessoal de Roberto Marinho e proprietário de estações filiadas à
Rede Globo, abandonou o “barco avariado” da ditadura e embarcou no
“encouraçado” da chapa presidencial que derrotou os militares no Colégio
Eleitoral. No dia da votação no Colégio Eleitoral, a Globo que transmitia
noticiários para os brasileiros há 20 anos, usou pela primeira vez o termo
“regime militar” durante o Jornal Nacional. ACM, com a adesão oportuna
à chapa Tancredo e Sarney, tornou-se ministro das Comunicações da
Nova República e assegurou a continuidade dos privilégios das
Organizações Globo no regime democrático que se iniciava.
Nos anos 1990, o hábito massificador da televisão começou a
arrefecer a partir da possibilidade de uma comunicação por demanda, que
surgiu com a digitalização dos conteúdos sonoros e audiovisuais e com o
gradual aperfeiçoamento da difusão de tais linguagens pela internet, graças
às tecnologias de streaming. Desde a década anterior, que as redes de
computadores passaram a ser utilizadas para automatizar e racionalizar as
estruturas produtivas e financeiras, por meio da unificação de todos os
sistemas isolados de informação e de comunicação.
No Brasil, mesmo a notável expansão das várias plataformas e
dispositivos digitais ainda não afetou significativamente o exuberante
patrimônio econômico, político e cultural das grandes emissoras de televisão,
que foi acumulado em mais de meio século de existência privilegiada. As
grandes redes souberam armar, graças aos artifícios legais para explorar
simultaneamente vários campos de atividades simbólicas e de serviços
públicos de comunicação, grande conglomerados que ainda garantem a
sobrevida lucrativa de suas atividades analógicas, em plena escalada digital.
É pela experiência acumulada durante quase meio século que as grandes
redes (e a Globo mais que todas) obviamente não esperam passivas que o
governo defina por elas o rumo dos negócios bilionários e monopolizados da
televisão brasileira.
Os grandes conglomerados continuam pautando o debate sobre as
políticas públicas, sobre os interesses estratégicos do universo privado e
sobre as grandes manifestações sociais e culturais da população. Apesar do
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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avanço considerável das tecnologias informáticas, o rádio e a TV conservam
as suas posições como os meios eletrônicos mais populares (MAGNONI,
2010), e com a digitalização passaram a integrar definitivamente o
ciberespaço e a incorporar também todas as possibilidades comunicativas da
internet. A comunicação de massa sempre se desenvolveu transferindo de
um veículo para outro, as matrizes técnicas, conceituais, os gêneros, os
formatos e as linguagens; além de processos produtivos e práticas
profissionais.
Os estrategistas e os profissionais sempre manejaram
pragmaticamente modelos e ferramentas de acordo com as necessidades
técnicas, econômicas, publicitárias e comunicativas, existentes em cada meio.
Na era digital, o processo de hibridização de técnicas e tecnologias e de
sincretismo de linguagens alcança e padroniza as informações jornalísticas,
de utilidade pública, os repertórios musicais, a programação de
entretenimento e os conteúdos publicitários de todos os veículos partícipes
da indústria cultural.
O Brasil é principal mercado latinoamericano de televisão comercial,
com sintonia aberta em 97% dos domicílios brasileiros, o que pode significar
audiência próxima de 175 milhões de pessoas. A indústria de conteúdos para
a televisão brasileira produz 70 mil horas/ano de programação informativa,
de entretenimento, publicidade e prestação de serviços. Quase 70% do
conteúdo veiculado é de produção nacional, uma atividade contínua que
sustenta mais de 200 mil postos de trabalho, diretos e indiretos.
Os novos recursos e cenários para a comunicação audiovisual brasileira
No Brasil, a eventual aprovação de uma nova regulação para proibir
a propriedade cruzada dos meios comerciais e estabelecer a exigência de
produção e exibição de conteúdos regionais poderia ampliar imensamente o
mercado interno. Seria uma expansão tão significativa, que as estruturas de
produção existentes ou novas teriam que receber enormes investimentos
públicos e privados para conseguir atender em médio prazo a demanda por
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produtos audiovisuais. Se a nova legislação impusesse cotas de exibição para
conteúdos internacionais na televisão e no cinema, o mercado interno para
os conteúdos nacionais se tornaria ainda mais amplo. São bandeiras
fundamentais, mas que exigem coragem política e amplo apoio social.
A internet comercial, ao intensificar desde a década de 1990, a
digitalização de todos os suportes, veículos e linguagens comunicativas, foi
também se desenvolvendo como um canal mundial para difusão de
conteúdos e linguagens de outros meios, enquanto era favorecida pela
evolução tecnológica contínua do ciberespaço. A Web 2.0 e 3.0
transformaram as redes e comunidades virtuais em canais autônomos para
produção e transmissão multilateral de conteúdos e de todas as formas de
mensagens midiáticas, além de permitir a multiplicação incontável de
aplicativos para produção e transmissão comunicativa e de espaços virtuais
para a postagem e recepção de informações individuais e grupais.
Com a popularização da internet, e com o crescimento inevitável da
digitalização e da convergência midiática, cada nova tecnologia de
comunicação massiva adaptou as suas linguagens e processos específicos
para poder formatar e transmitir pela rede, os conteúdos informativos,
publicitários e de entretenimento e buscou ampliar as suas possibilidades de
interação com os internautas. Ou seja, as rápidas mudanças tecnológicas
passaram a incidir diretamente no resultado econômico, na ação
profissional, nos sentidos da linguagem e da estética dos meios, tanto em seus
canais convencionais, quanto nos nichos que eles conseguiram criar nas
redes do ciberespaço. No entanto, a maior mudança havida em mais de duas
décadas de evolução da internet, ocorreu na maneira do público receber,
interpretar e interagir com as mensagens recebidas pelos diversos terminais
e dispositivos digitais.
O desenvolvimento da informática vai gerando continuamente
tecnologias híbridas, que já não separam mais a comunicação midiática e os
serviços comerciais de telefonia e de telecomunicações, da comunicação
pessoal e interpessoal. Os meios digitais estão gerando em os seus usuários,
novos hábitos de recepção e de fruição de informações, que são bem distintos
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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daqueles oferecidos pelos meios analógicos. Os sistemas virtuais e as redes
sociais do ciberespaço, além de servir como ambientes digitais para
armazenar informações e também como canais multilaterais para difusão e
recepção de diferentes formas de comunicação, tanto interpessoais, quanto
midiáticas, também oferecem aplicativos bastante aptos para realizar
inúmeros tipos de atividades produtivas, individuais e grupais, tanto as
simbólicas, quanto as materiais. Depois do desenvolvimento e popularização
da internet comercial, cujo foco concentra-se na organização de redes sociais
voltadas para a comunicação interpessoal, para a difusão midiática, para a
difusão publicitária de bens de consumo e de entretenimento, o teletrabalho
pela rede se tornou uma realidade efetiva e crescente em inúmeras atividades
produtivas da atualidade.
As sucessivas versões da rede web passaram a interferir nas antigas
formas e processos de edição e publicação de conteúdos, especialmente dos
formatos sonoros e audiovisuais e também causaram alterações significativas
nos modos de seleção, captação e difusão de informações - um exemplo são
as novas práticas de cobertura jornalística, que permitem publicação
multimidiática em tempo real. A convergência induziu uma mescla maior de
formatos e a produção de linguagens cada vez mais sincréticas, enquanto a
unificação dos suportes de difusão introduziu mudanças radicais nas
maneiras de recepção e de fruição online.
O veloz movimento informacional passou a interferir e até
desarticular antigos arranjos produtivos, a superar rapidamente modelos
consagrados de captação de recursos publicitários. A digitalização é
irreversível e intangível para os meios, produtos e culturas mediadas de
comunicação, que se desenvolveram desde os primórdios da imprensa. Os
veículos que entraram no fluxo da internet, gradativamente agregam
notáveis reforços comunicativos da multimediação, da interatividade e da
transmediação.
No caso da televisão digital brasileira, que ainda não completou a
transição tecnológica (e ainda realiza intentos para desenvolver a
visualização em segunda tela e busca recursos mais eficazes de interatividade
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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ou formas de sustentar a multiprogramação), a cultura de recepção
prioritária pelos dispositivos móveis praticada pelos jovens deveria
preocupar mais os estrategistas das redes de emissoras. Afinal, para as
gerações mais recentes, a segunda tela será sempre a televisão. Os jovens
nascidos com a internet já constituem a primeira geração de adultos nativos
digitais. O que eles assistem e conhecem de TV aberta, quase sempre, foi visto
pelas telinhas dos dispositivos informáticos e, muitas vezes, consumido de
modo não linear.
Entre o final dos anos 90 e o início dos anos 2000, um movimento
cultural de origem periférica tomou conta do cenário audiovisual brasileiro,
ora dividindo espaço com outros gêneros, ora retratando outras
manifestações da cultura suburbana, como o rap, o grafite e o funk, que logo
passam a narrar as suas histórias utilizando os novos recursos de registro e
edição e os canais digitais de difusão. Ao mesmo tempo, o cinema brasileiro
ensaiou um recomeço dinâmico, depois da intensa crise dos anos 90. As
novas produções audiovisuais também destacaram a importância da cultura
suburbana, em produções como O invasor (2001), de Beto Brant, Cidade de
Deus (2002), de Fernando Meirelles, Carandiru (2003), de Hector Babenco,
O prisioneiro da grade de ferro (2004), de Paulo Sacramento, e Tropa de elite,
de José Padilha (2007). As histórias dramáticas das camadas sociais
periféricas e marginalizadas ganharam destaque e público na “tela grande” e
garantiram uma vasta gama filmográfica, sobretudo, do gênero documental.
É o caso de Arte na Perifeira (2007), de Peu Pereira, A Periferia é o Centro
(2014), do Coletivo Ponte, A Batalha do Passinho (2012), de Emílio
Domingos, entre tantos outros.
Foi um recomeço marcado por filmes completamente autênticos,
que apresentaram discursos autônomos, tanto de forma como de conteúdo,
repercutindo em mostras e festivais cinematográficos internacionais, antes
frequentados pelas elites do cinema brasileiro. Dessa forma, surgiu um novo
mercado com novas pretensões discursivas, colocando em voga a cultura
marginalizada em seus pormenores, criando suas próprias referências, dando
espaço para novas vozes da indústria audiovisual e do cinema independente.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Diante dessas transformações, as minorias passam a enxergar suas vivências
como atos políticos, de resistência social e preservação cultural.
Assim, denota-se a importância desse tipo de cinema e a
multiplicação de outras produções audiovisuais independentes, no sentido
cultural, ideológico e econômico, como formas expressiva para firmar uma
identidade pública, social, para a juventude negra e periférica que passou,
enfim, a se reconhecer em histórias e narrativas complexas, e livre das
caricaturas marcadas nos mesmos papéis de classe, que foram formatados
pela televisão brasileira, em suas representações massivas, novelescas e
estereotipadas. É neste cenário de disponibilidade de novos recursos de
produção e de renovação das representações simbólicas do audiovisual
brasileiro, que destaca a importância de empoderar e conscientizar o jovem
periférico quanto ao seu poder de transformação social.
O grupo ComunicaNER mantido pelo Programa de Educação
Tutorial interdisciplinar em Rádio e Televisão (PET-RTV) em parceria com
A Locomotiva Empresa Jr. e a Escola Municipal de Ensino Fundamental
Lydia Alexandrina Nava Cury (EMEF-NER) tem como objetivo desenvolver
temáticas audiovisuais presentes no cotidiano das crianças e jovens
participantes do projeto. O objetivo principal das atividades desenvolvidas é
de aproximar as crianças e adolescentes do NER, das linguagens e das
técnicas para produção crítica e criativa de formatos audiovisuais, além de
ensiná-los a fazer uso consciente das novas mídias digitais e das redes sociais.
O projeto trabalha a produção audiovisual ligada à questões do universo
existencial e cultural destes adolescentes, ao mesmo tempo que discute a
democratização da produção e consequente o fortalecimento da
representatividade do jovem suburbano no audiovisual.
As atividades são guiadas por temas sociais contemporâneos, que são
escolhidos a cada mês para guiar as atividades semanais realizadas pelos
alunos do NER e pelas equipes do PET-RTV e da Locomotiva Jr., na salalaboratório do projeto. Os alunos recebem informações sobre a produção de
roteiros, registro de imagens e edição audiovisual, conhecimentos e técnicas
de expressão artística e comunicativa, que atraem gerações de nativos digitais
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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acostumados a produzir empiricamente, pequenos fragmentos de peças
audiovisuais para difundir nas redes sociais.
Métodos e materiais
O projeto estrutura-se em ciclos compostos de quatro a seis
encontros, organizados de forma semanal, sendo que primeiramente é
trabalhado o tema-chave de concepção de um vídeo. Em seguida, é discutida
a técnica para tal explorando as três grandes etapas de realização de um
produto audiovisual: pré-produção, produção e pós-produção,
respectivamente. O projeto busca nos assuntos abordados desenvolver e
explorar elementos condizente a realidade dessas crianças, que distribuemse numa faixa etária entre 9 e 12 anos, todas cursando o Ensino Fundamental.
O primeiro ciclo seguiu a proposta de trabalhar o uso consciente de
mídias sociais para a elaboração de um curta ficcional. Para produzirem o
filme, os jovens utilizaram as reflexões e discussões levantadas nos primeiros
encontros sobre o seu uso pessoal de redes sociais e de dispositivos para
registro de imagens e vídeos. Os encontros conduziram um debate dinâmico
que os instigou a pensar sobre a sua exposição nas mídias, a veracidade dos
fatos encontrados em notícias e artigos espalhados pela internet, a imagem
que passam ao compartilhar, postar e comentar diversos assuntos no meio
virtual, os efeitos que podem causar em outros usuários e até mesmo sobre o
tempo que passam conectados na rede.
A questão do cyberbullyng foi outro tema de grande relevância
desenvolvido durante as dicussões. O grupo organizou um encontro
exclusivamente para conversar sobre o que é o bullying de internet. Foram
trabalhadas as mais diversas maneiras de se identificar o bullying virtual, bem
como formas de se prevenir, defender e, acima de tudo, reportá-lo,
salientando não ser apenas uma prática imoral, mas criminosa e altamente
nociva.
Nos demais encontros, foi trabalhada a parte técnica de produção
audiovisual, com oficina e produção de roteiro – onde os alunos criaram o
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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enredo, o problema vivido pelo personagem principal e uma solução para o
mesmo. Durante esse processo, o ciclo também abrangeu aulas técnicas sobre
o uso de equipamentos para a gravação do microcurta, além de um encontro
especificamente voltado a edição de vídeo pelo Adobe Premiere.
O segundo ciclo abordou conceitos de sustentabilidade traduzidos
num formato mais lúdico, o stop motion. Foram quatro encontros apenas,
sendo que o primeiro trouxe referenciais de vídeos, abordando a história do
stop motion e a técnica empregada, testou o conhecimento dos jovens acerca
da durabilidade e tempo de decomposição de certos materiais descartados no
lixo, dando alternativas de reaproveitamento e descarte consciente para cada
um deles, além de alertá-los a respeito do desperdício de recursos naturais no
dia a dia, levando-os a perceber tal realidade em seus cotidianos.
No segundo encontro, os alunos organizaram-se em grupos e
elaboraram um storyboard, criando a narrativa, personagens e cenários, de
forma a confeccioná-los depois em plasticina colorida e materiais reciclados.
Quando toda a pré-produção já estava concebida, realizaram as fotografias
frame a frame do vídeo, concluindo a elaboração do produto audiovisual em
sua edição.
Ao final de ambos os ciclos, o grupo realizou uma pequena mostra
para que os alunos pudessem apreciar a conclusão de seus projetos,
salientando os conceitos técnicos aprendidos, o resultado pessoal dos temas
articulados em suas vidas e fomentando a nova visão adquirida pelos jovens
sobre a viabilização do audiovisual enquanto linguagem democrática,
podendo trabalhar-se assuntos das mais variadas matrizes e formatos com a
finalidade de passar uma mensagem.
Resultados e discussões
Ao fim dos dois primeiros ciclos pode-se entender a relação dos
alunos com as novas tecnologias de informação e perceber o resultado do
projeto na percepção das crianças e na relação delas com a produção
audiovisual.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Em cada ciclo um tema diferente foi abordado e as discussões destes
temas resultaram pequenos curtas-metragens produzidos pelas crianças e
adolescentes. O primeiro ciclo, cujo o tema abordado foi o uso consciente
das novas mídias, os alunos participantes produziram ao final do curso dois
curtas-metragens, que discutiam a questão dos cyberbullying e das novas
formas de se relacionar com as mídias. No segundo ciclo, foram produzidos
outros dois curtas de animação, através da técnica de Stop Motion que
trataram a questão do descarte do lixo.
Conseguimos trabalhar questões relevantes e sugeridas pela
coordenação da escola de forma lúdica e eficaz. Para produzirem os roteiros
de seus curtas, os alunos precisaram debater e discutir as questões propostas,
imergindo e propondo soluções e reflexões sobre as problemáticas
trabalhadas por eles. Deste modo, a produção de conteúdo audiovisual
surgiu serviu como meio reflexão sobre assuntos considerados relevantes
pela coordenação da escola para melhorar o convívio dos estudantes.
Indo além das produções realizadas, foi possível observar
importantes questões relacionadas aos jovens que participaram do projeto.
No decorrer dos encontros eram promovidas rodas de conversas para
conhecer melhor a relação deles com o audiovisual. A maioria dos jovens
declarou preferir conteúdos disponibilizados em plataformas digitais como
o YouTube a conteúdos veiculados nos meios de comunicação tradicionais
como a televisão. Outra característica interessante é a intenção de alguns
deles de se tornarem YouTubers80 famosos. Alguns, inclusive, já tinham tido
a experiência de produzirem vídeos para alimentarem seus canais no site. No
entanto, desistiram com o passar do tempo. Ao término do primeiro ciclo,
um dos alunos retomou seu canal onde posta vídeos sobre games.
Também pode-se ratificar a familiaridade que estes jovens têm com
as novas tecnologias de comunicação e a importância de se proporcionar o
aprendizado correto da linguagem audiovisual para eles. Todos os alunos
participantes do projeto portavam smartphones, e celulares. Comumente
80 Produtores de conteúdo audiovisual para a plataforma YouTube.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
registravam o momento através de aplicativos como Snapchat e Instagram.
Muitos deles já operavam equipamentos de captura de vídeo e fotografia,
mesmo que sendo os mais simples, como o celular. Ao ensinar-se a base
da linguagem audiovisual, percebeu-se a facilidade deles de aplicar este
conhecimento às suas produções.
Conclusão
O PET-RTV por meio do projeto Comunica NER constrói laços de
aprendizado e ensino com as crianças e todos os envolvidos no programa.
Então, por meio dos ciclos que foram utilizados nas dinâmicas ocorridas no
projeto, foi possível visualizar o interesse dos jovens pelas tecnologias e as
funções possíveis na linguagem audiovisual. Ao trabalhar com a questão do
cyberbullying e da sustentabilidade, temas recorrentes do cotidiano, as
crianças puderam através da linguagem audiovisual explorar ainda mais
essas temática.
Ao desafiar os estudantes do NER a produzir produtos audiovisuais,
explicamos alguns dos processos da confecção desse gênero de projeto.
Desde a elaboração de roteiros em um brainstorm até a pós-produção. Por
meio desse processo, os estudantes passam a entender um pouco mais da
dinâmica dos produtores do audiovisual, além de de terem sido estimulados
a desenvolver um olhar mais crítico para os produtos que se vê por aí. Afinal,
o receptor não deve ser passivo, como adverte Jesus Martín-Barbero. Hoje o
Youtube se transforma em uma plataforma de oportunidades e de elementos
que compõe o aprendizado desta geração de crianças e adolescentes com as
quais o grupo PET-RTV trabalhou no Comunica NER.
O projeto converge também a apropriação técnica dos fazeres
comunicacionais na produção audiovisual, assim tornando as crianças e
adolescentes capacitadas de adentrar no cenário vigente da comunicação e
criando um patamar de inclusão nas mídias sociais, desde as publicações até
o funcionamento técnico dos elementos apropriados para a difusão de
conteúdos atualmente situados em grande escala nas redes sociais da
internet.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Portanto assim, construindo essa relação de produção e de
idealização de projetos, em que se dá voz e se cria um novo parâmetro para
que as crianças e adolescentes possam se utilizar da linguagem audiovisual.
Seja por meio de uma análise de um produto que viu no Youtube ou na
televisão. Assim como na construção de um produto autoral e que traz o
diálogo dessas crianças e adolescentes com as questões que eles abordam nos
trabalhos sobre o Cyberbullying e Sustentabilidade, ou em projetos futuros.
A importância do domínio da linguagem audiovisual também se associa com
o alcance que os estudantes podem dar para seus projetos. Se um produto
está na internet, basta se obter o link para se assistir aquele conteúdo se for
um vídeo. Dando assim margem para ações expressivamente relevantes com
a linguagem utilizada por crianças e adolescentes.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Sense8: Classificação de estrutura e gênero
segundo Robert McKee
Driele Fernanda da Silva – UNESP
Leticia Passos Affini – UNESP
Introdução
As séries de televisão estão se tornando cada vez mais populares; com
uma maior liberdade de criação para os autores e sofisticação do texto, e um
público cada vez mais assíduo, é crescente a migração de roteiristas, autores
e atores do cinema e teatro para a televisão. E a popularização dos serviços
de streaming complexificam questões relativas ao futuro da TV. O sistema é
simples e, com apenas um clique, o assinante assiste a conteúdos
audiovisuais, ao contratar o serviço o assinante tem acesso a um vasto
catálogo.
Entre diversas marcas (Amazon, Apple TV, Hulu etc.), a Netflix
lidera esse segmento até o momento. Fundada em 1997, a Netflix está
presente em 190 (cento e noventa) países, com uma média de 75 (setenta e
cinco) milhões de assinantes. Segundo informações da própria empresa: “O
assinante Netflix pode assistir a quantos filmes e séries quiser, quando e onde
quiser, em praticamente qualquer tela com conexão à Internet. O assinante
pode assistir, pausar e voltar a assistir a um título sem comerciais e sem
compromisso”81. Além disso, a empresa não interfere no conteúdo de suas
séries originais. Após a aprovação do roteiro, o mesmo já é encaminhado
para a produção.
81 Disponível em https://media.netflix.com/pt_br/about-netflix.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
O objetivo desse artigo é fazer um estudo de caso com base no teórico
Robert K. Yin. Selecionou-se como objeto o roteiro e como corpus a primeira
temporada da série original Netflix, Sense8, dirigida pelos irmãos Ana e
Landy Wachowski e roteirizada por J. Michael Scraczynski. Observou-se que
os autores fazem uso das estruturas clássicas de roteiro. Assim, o estudo
busca compreender o que o torna uma obra de alta complexidade. A partir
da observação de cada personagem e de seus conflitos, estabeleceu-se o
triângulo da história e os gêneros cinematográficos utilizados.
Sense8 conta a história de 8 (oito) pessoas, cada uma delas vinda de
uma parte do mundo, com culturas diferentes. Capheus “Van Damme” (Aml
Ameen), de Nairóbi, Quênia, é um homem humilde, que ganha a vida
dirigindo uma van de transporte público na sua cidade e cuida de sua mãe,
portadora do vírus HIV. Sun Bak (Doona Bae), de Seul, Coreia do Sul, é uma
economista que convive com o machismo do pai e do irmão na empresa da
família, e também é uma lutadora nas horas vagas. Nomi Marks (Jamie
Clayton), de San Francisco, EUA, é uma hacker transexual e lésbica, que sofre
com o preconceito e a falta de aceitação da mãe sobre seu gênero e
sexualidade. Kala Dandekar (Tina Desai), de Mumbai, Índia, é uma jovem
cientista, farmacêutica, que convive com o dilema de casar sem amar o noivo,
apenas para fazer a vontade da família. Riley Blue (Tuppence Middleton), de
Londres, UK, é uma DJ com um passado perturbado. Will Gorski (Brian J.
Smith), de Chicago, EUA, é um policial que é assombrado por um assassinato
mal resolvido na sua infância. Lito Rodriguez (Miguel Ángel Silvestre) é um
ator que esconde a sua homossexualidade para preservar sua imagem de galã
e o sucesso com as mulheres. E, por fim, Wolfgang Bogdanow (Max Riemelt),
de Berlim, Alemanha, é um ladrão, especialista em arrombar cofres, que
possui problemas mal resolvidos com o falecido pai e seus parceiros de
trabalho.
A partir do momento que essas oito personagens têm a visão de
Angélica, elas se tornam sensates e passam a compartilhar das mesmas visões,
pensamentos, habilidades e sentimentos. Isso faz com que passem a interagir
entre si, quebrando as fronteiras físicas de seus lugares de origem. Até o final
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
da temporada, os protagonistas não encontraram explicações para tudo que
vem acontecendo a eles.
Robert Mckee propõe em seu livro, Story, 25 (vinte e cinco) gêneros
cinematográficos que seriam os mais utilizados pelos roteiristas na ficção. Há
uma evolução nos 25 gêneros e, conforme roteiros são escritos, surgem
subgêneros, ou seja, uma ramificação dos gêneros. Identificam-se:
1. Estória de Amor. Seu subgênero, Salvação do Amigo, substitui o
amor romântico pela amizade.
2. Filme de Terror. Esse gênero divide-se em três subgêneros: o
Mistério, em que a fonte do terror é assombrosa, porém sujeita a
explicações “racionais”, como seres de outros planetas, monstros
criados pela ciência, ou um maníaco; o Sobrenatural, em que a
fonte do terror é um fenômeno “irracional” do reino dos
espíritos; e o Supermistério, em que o público tenta adivinhar a
fonte do terror entre as duas possibilidades acima.
3. Épico Moderno (o indivíduo contra o estado).
4. Faroeste. A evolução desse gênero e seus subgêneros é
brilhantemente traçada em Six Guns and Society, de Will Wright.
5. Filme de Guerra. Apesar de a guerra ser frequentemente pano de
fundo para outro gênero, como a Estória de Amor, o filme de
guerra é especificamente sobre o combate. Pró-Guerra contra
Antiguerra são seus subgêneros primários. Filmes
contemporâneos geralmente se opõem à guerra, mas, por muitas
décadas, a maioria glorificava-se secretamente, até mesmo em sua
forma mais terrível.
6. Trama de Maturação ou a estória sobre a vinda da idade.
7. Trama de Redenção. Aqui, o arco do filme é focado em uma
mudança moral interior do protagonista, indo do mal para o bem.
8. Trama de Punição. Nesse tipo de filme, o bom rapaz torna-se mau
e é punido.
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9. Trama de Provação. Estórias sobre a força de vontade contra o
desejo de se render.
10. Trama de Educação. O arco desse gênero é focado em uma
mudança profunda na visão do protagonista sobre a vida, sobre
as pessoas ou sobre si mesmo, indo do negativo (ingênua, cética,
fatalista, autodepreciativa) ao positivo (sábia, crente, otimista,
autoconfiante).
11. Trama de Desilusão. Uma mudança profunda na visão de mundo,
do positivo ao negativo.
12. Comédia. Subgêneros vão da Paródia à Sátira, passam pelo Sitcom
e a Comédia Romântica até o Pastelão, a Farsa, o Humor negro,
todas com diferentes focos para o ataque cômico (asneiras
burocráticas, modos das classes mais abastadas, paqueras
adolescentes etc.) e graus de ridicularização (branda, cáustica,
letal).
13. Crime. Subgêneros variam primordialmente de acordo com a
resposta para a seguinte pergunta: de qual ponto de vista
enxergamos o crime? Mistério de assassinato (PV do detetivechefe); Caper (PV do chefão do crime); Detetive (PV do policial);
Gângster (PV do mafioso); Thriller ou Conto de Vingança (PV da
vítima); Tribunal (PV do advogado); Jornalístico (PV do
repórter); Espionagem (PV do espião); Drama de prisão (PV do
prisioneiro); Filme Noir (PV de um protagonista, que pode ser
parte criminoso, parte detetive e parte vítima de uma femme
fatale).
14. Drama social. Esse gênero identifica problemas na sociedade –
pobreza, sistema educacional, doenças contagiosas, os
desfavorecidos, revoltas contra a sociedade e assim por diante –
e, então, constrói uma estória demonstrando uma cura. Ele tem
um número de subgêneros com focos bem específicos: Drama
Doméstico (problemas com a família), Filmes Femininos (dilemas
como carreira contra família, amante contra crianças), Drama
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16.
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político (corrupção na política), Ecodrama (batalhas para salvar o
meio ambiente), Drama Médico (lutas contra doenças físicas),
Psicodrama (lutas contra doenças mentais).
Ação/Aventura. Esse gênero frequentemente empresta aspectos
de outros gêneros, como Guerra ou Drama Político, como
motivação para ação explosiva e arrojos. Se um filme de
Ação/Aventura incorpora ideias como destino, hubris82 ou
espírito, ele torna-se o subgênero Alta Aventura. Se a Mãe
Natureza é a fonte do antagonismo, é um filme de
Desastre/Sobrevivência.
Drama Histórico. A história é uma fonte inesgotável de material
para a estória, e abrange todo o tipo de narrativa imaginável. O
baú do tesouro da história, porém, é selado com esse aviso: o que
é passado tem de ser presente. Um roteirista não é um poeta que
espera ser descoberto após a morte. Ele deve procurar um público
que é contemporâneo. Portanto, o melhor uso da história, e a
única desculpa legítima para ambientar um filme no passado e,
portanto, adicionar milhões ao orçamento, é o anacronismo –
usar o passado como um vidro transparente, através do qual nos
mostra o presente.
Biografia. Esse primo do Drama Histórico é focado em uma
pessoa, em vez de uma era. A Biografia, porém, nunca pode se
tornar uma simples crônica. O fato de que alguém viveu, morreu
e fez coisas interessantes nesse ínterim é de interesse meramente
acadêmico. O biógrafo deve interpretar os fatos como se fossem
ficção, encontrar o significado da vida do sujeito e, então, colocálo como protagonista de um roteiro do gênero que for adequado.
Docudrama. Um segundo primo do Drama Histórico, o
docudrama é centrado em eventos recentes, em vez do passado.
Hubris: do grego, orgulho ou autoconfiança exagerada, que resulta em uma retribuição
fatal. (N. do T.).
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19. Mocumentário. Esse gênero finge ser enraizado na verdade ou na
memória, comporta-se como um documentário ou autobiografia,
mas é pura ficção.
20. Musical. Descendente da ópera, esse gênero nos apresenta uma
“realidade” em que os personagens cantam e dançam suas
estórias.
21. Ficção científica. Em futuros hipotéticos, que tipicamente são
infernos tecnológicos de caos e tirania.
22. Filmes esportivos. Esporte é um ambiente típico para mudança de
personalidade.
23. Fantasia. Aqui, o autor brinca com o tempo, o espaço e o corpo
físico, transformando e misturando as leis da natureza e do
sobrenatural.
24. Animação. Aqui, as leis do metamorfismo universal imperam:
qualquer coisa pode virar outra.
25. Filme de Arte. A noção de vanguarda sobre escrever fora dos
gêneros é ingênua. Ninguém escreve no vácuo. Após milhares de
anos de estória, nenhuma estória é tão diferente a ponto de não
ter nenhuma similaridade com tudo aquilo que já foi escrito. O
Filme de arte transformou-se em um gênero tradicional, divisível
e dois subgêneros, Minimalismo e Antiestrutura, cada qual com
seu complexo de convenções formais de estrutura e cosmologia.
Assim como o Drama histórico, o Filme de arte é um supragênero
que envolve outros gêneros básicos: Estória de amor, Drama
político etc.
(MCKEE, 2006, p.78-92).
Dentre esses 25 gêneros, procuram-se identificar, na série Sense8, os
gêneros predominantes, analisam-se as personagens principais da série e o
arco dramático em que as mesmas estão inclusas. Dentro dos conceitos de
trama e estrutura propostos por Mckee no triângulo da estória, estão:
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Quadro 1 – Triângulo da Estória
Design Clássico
Arquitrama
Coincidência
Tempo não-linear
Realidades inconsistentes
Causalidade
Final fechado
Tempo linear
Conflito externo
Protagonista único
Realidade consistente
Protagonista ativo
Minimalismo (Minitrama)
Final aberto
Conflito interno
Multiprotagonista
Protagonista passivo
Antiestrutura (Antitrama)83
83 MCKEE, 2006, p.56.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Compreendendo cada conceito do triângulo, temos Arquitrama,
Minitrama e Antitrama. A Arquitrama é o Design Clássico da estória:
Design Clássico é uma estória construída ao redor de um protagonista
ativo, que luta contra forças do antagonismo fundamentalmente externas
para perseguir seu desejo, em tempo contínuo, dentro de uma realidade
ficcional consistente e causalmente conectada, levando-o a um final
fechado com mudanças absolutas e irreversíveis (MCKEE, 2006, p.57).
Portanto, Segundo Mckee, para haver uma Arquitrama, é necessário
que haja causalidade:
Causalidade conduz uma estória que as ações causam efeitos que, por sua
vez, se transformam em causas de outros efeitos, e assim interligando os
vários níveis de conflito em uma reação em cadeia de episódios até o
Clímax da Estória, expressando a interconectividade da realidade
(MCKEE, 2006, p.62).
E também que possua um Final Fechado: “Um clímax da Estória com
mudanças absolutas e irreversíveis que responda a todas as questões
levantadas pela narrativa e satisfaça todas as emoções do público é um final
fechado” (MCKEE, 2006, p.58). E trabalhe com o tempo linear: “Uma estória
com ou sem flashbacks e arranjada em uma ordem temporal de eventos que
o público pode seguir é contada em tempo linear.” (MCKEE, 2006, p.61).
Predominar Conflitos Externos:
A Arquitrama coloca ênfase no conflito externo. Apesar de os personagens
frequentemente lidarem com seus fortes conflitos internos, a ênfase recai
sobre sua luta nos relacionamentos pessoais, instituições sociais e as forças
do mundo físico (MCKEE, 2006, p.59).
E um Protagonista único:
A estória classicamente contada, geralmente coloca um único
protagonista – homem, mulher ou criança – no coração da narrativa. Uma
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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estória maior domina o tempo de duração do filme e seu protagonista tem
o papel de grande estrela (MCKEE, 2006, p.59).
E ainda, Realidade consistente:
Realidades Consistentes são ambientes ficcionais que estabelecem modos
de interação entre os personagens e seu mundo, mantidos
consistentemente ao longo da narrativa para explicitar seu significado
(MCKEE, 2006, p.63).
No canto esquerdo do triângulo encontra-se a Minitrama:
Minitrama não signfica sem trama, pois a estória precisa ser tão bem
executada quanto na Arquitrama. Na verdade, o minimalismo procura a
simplicidade e a economia enquanto absorve o suficiente de clássico, de
maneira que o filme ainda assim satisfaça ao público e faça-o sair do
cinema pensando “que estória boa!” (MCKEE, 2006, p. 56).
Na Minitrama, o final é aberto. “Um Clímax da Estória que deixe
uma ou duas questões não respondidas e algumas emoção não satisfeita é
final aberto” (MCKEE, 2006, p.58).
As personagens vivem predominantemente num conflito interno:
Na Minitrama, ao contrário, o protagonista pode lidar com fortes
conflitos externos com a família, a sociedade e o ambiente, mas a ênfase
recai sobre as suas batalhas com seus próprios pensamentos e
sentimentos, consciente ou inconscientemente (MCKEE, 2006, p.59).
Há mais de um protagonista:
Porém se um escritor divide o filme em várias estórias relativamente
pequenas, com o tamanho de uma subtrama, cada uma com um
protagonista diferente, o resultado minimiza a dinâmica da montanharussa da Arquitrama e cria uma variação da Minitrama, a Multitrama, que
cresceu em popularidade desde os anos 1980 (MCKEE, 2006, p.59).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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E os protagonistas são passivos: “Um protagonista passivo é
externamente passivo enquanto busca o desejo internamente, em conflitos
com aspectos de sua própria natureza.” (MCKEE, 2006, p.60).
E, por fim, na Antitrama:
No canto direito está a Antitrama, a contrapartida do cinema para o
antirromance ou Novo Romance e o Teatro do Absurdo. Esse
agrupamento de variações da antiestrutura não reduz o Clássico, mas
reverte-o, contradizendo as formas tradicionais para explorar, talvez
ridicularizar, a ideia dos princípios formais. O criador de Antitramas
raramente quer suavizar sua visão, ou mostrar uma austeridade quieta;
geralmente, para deixar claras suas ambições “revolucionárias”, o filme
tende para a extravagância e o exagero autoconsciente (MCKEE, 2006,
p.56).
Na Antitrama, há coincidência:
Coincidência conduz um mundo ficcional onde ações não motivadas
engatilham eventos que não causam mais efeitos, portanto, fragmentando
a estória em episódios divergentes, e leva a um final aberto, expressando a
desconexão da existência (MCKEE, 2006, p.62).
O tempo narrativo não é linear:
Uma estória que salta aleatoriamente através do tempo, ou que obscureça
tanto a continuidade temporal que o público não consiga entender a
ordem dos acontecimentos, é contada em tempo não linear (MCKEE,
2006, p.61).
E a realidade é inconsistente:
Realidades inconsistentes são ambientes que misturam modos de
interação de uma maneira que os episódios da estória pulem
inconsistentemente de uma “realidade” para a outra, criando um senso de
absurdo (MCKEE, 2006, p.63).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Materiais e métodos:
Busca-se fazer um estudo de caso (YIN) sobre a série Sense8, mais
especificamente sobre sua trama e gênero, aplicando os conceitos de Robert
Mckee sobre os mesmos. Para tanto, faz-se necessário empreender uma
análise sobre seus personagens e os conflitos vividos. Utilizam-se como
categorias para a análise os 25 gêneros cinematográficos clássicos propostos
por Mckee; os gêneros são recorrentes e aplicados em renomados roteiros
cinematográficos ao redor do mundo. Com essas classificações, é possível
compreender alguns dos elementos que a tornam tão popular entre os
assinantes do serviço de streaming. Recomenda-se ao leitor do artigo que
assista a série, para uma melhor compreensão da mesma.
Resultados e discussões:
Com a análise, pode-se observar que Sense8 não se encontra em um
extremo do triângulo da estória. Há causalidade, ou seja, tudo ocorre por
uma razão, nada é obra do acaso. O final é aberto, por se tratar de uma série
que se encontra ainda na primeira temporada; ter questões em aberto é
comum para que se obtenha o gancho e, ao mesmo tempo, atraia o público
para assistir a uma nova temporada. O tempo é linear. Há oito protagonistas
na trama, os oito sensates. Os protagonistas, apesar de não estarem isentos de
um conflito externo, vivem predominantemente em um conflito interno, na
condição de sensitivos. Assim como são protagonistas ativos em seus
conflitos externos, porém passivos nos conflitos internos. A realidade é
consistente dentro das regras estabelecidas pela fantasia de Sense8.
Todas as características de trama citadas acima transitam entre
Arquitrama e Minitrama. Segundo Robert Mckee:
Todas as possibilidades da narrativa estão distribuídas dentro do triângulo
do design da estória, mas pouquíssimos filmes são tão puros em sua forma
a ponto de se localizar nos vértices. Cada lado do triângulo é um espectro
de escolhas estruturais, e os roteiristas deslizam suas estórias na área do
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
triângulo, misturando ou emprestando elementos de cada extremo
(MCKEE, 2006, p.65).
Encontrou-se, entre os vinte e cinco gêneros propostos por McKee,
a predominância de: História de Amor, Trama de Redenção, Trama de
Provação, Crime, Drama Social, Comédia, Ação/Aventura e Fantasia.
Sobre os gêneros de Mckee encontrados em Sense8, têm-se:
Gênero
Estória de amor
Trama de Redenção
Trama de Provação
Comédia
Ação/Aventura
Crime
Drama Social
Fantasia
Tabela 1 – Gênero e personagens
Personagens
Nomi e Amanita; Lito e Hernando; Wolfgang e Kala; Riley e
Will; Angélica e Jonas
Wolfgang Bogdanow desistindo do crime para ajudar o amigo
Will não desistindo de salvar Riley dos sussurros
Lito (Comédia Romântica)
Wolfgang e a máfia alemã (Alta Aventura); Lito como ator
Capheus “Van Damme” contra os bandidos que roubam os
remédios de sua mãe (Thriller); Capheus e Peter, quando o
primeiro passa a trabalhar para o segundo (Gângster); Will
Gorski na sua função de policial (Detetive); Wolfgang e Max em
seus roubos (Gângster).
Sun, Kaang e Joong (Drama Doméstico); Nomi e sua mãe
(Drama doméstico); Capheus e Chichi (Drama doméstico e
médico); Will e o menino que ele salva; Riley e o problema com
as drogas.
Toda a série; os sensates
Fonte: Sense8/Netflix 84
No universo da escrita de roteiro é quase impossível abordar
apenas um gênero; um conflito acaba alimentando outros e, assim,
cria-se uma teia complexa no mundo da ficção:
84
Disponível em < https://www.netflix.com/br/>
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Apesar da lista ser razoavelmente abrangente, nenhuma lista pode ser
definitiva ou completa, pois as fronteiras entre os gêneros sobrepõem-se
frequentemente, e eles influenciam-se e fundem-se uns aos outros.
Gêneros não são estáticos ou rígidos, e sim, flexíveis e expansíveis, mas
ainda são firmes e estáveis o suficiente para serem identificados e
trabalhados, assim como um compositor brinca com os movimentos
maleáveis dos gêneros musicais (MCKEE, 2006, p.93).
Conclusão:
Destaca-se a utilização de oito dos 25 gêneros cinematográficos
propostos por McKee: Estória de Amor, Trama de Redenção, Trama
de Provação, Trama de Provação, Crime, Drama Social, Comédia,
Ação/Aventura e Fantasia. No entanto, uma história pode conter
elementos de vários outros gêneros, caminhando para subgêneros já
classificados e, muitas vezes, criando novos. Assim, as personagens
têm o potencial de vivenciar alterações de comportamento e/ou afetiva
ao longo da história, podendo culminar em uma alteração do gênero
proposto pelo roteirista ou em uma impossibilidade de classificação
em gêneros.
A trama de Sense8 possui elementos do Design Clássico da
Arquitrama e do Minimalismo da Minitrama, mesclando elementos
de cada trama, mas ainda utilizando elementos de estruturas clássicas;
o roteirista escapa das classificações absolutas e contribui para uma
maior sofisticação do texto, sendo essa uma das razões para muitos
roteiristas preferirem a televisão e as empresas de streamings ao
cinema. A Netflix proporciona liberdade para os roteiristas na criação
de séries, e por sua facilidade e preço acessível traz comodidade e
maior público.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
É na criação de uma rede de conflitos internos e externos que
Sense8 consegue prender um público cada vez mais crítico, que
conhece todos os gêneros e desafia o roteirista a surpreendê-los. E a
resposta para esse desafio está no sucesso que Sense8 vêm propagando
ao redor do mundo. Trata-se de uma obra audiovisual de alta
complexidade, que cria ênfase nos conflitos mentais, semelhantes em
todas as personagens e conflitos externos totalmente distintos. Temse, em Sense8, uma obra que manipula com perfeição a construção
narrativa.
Referências bibliográficas
MCKEE, R. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba.
Ed: Arte & Letra, 2006.
YIN, R. K. Estudo de Caso: planejamentos e métodos. Porto Alegre. Ed: Bookman, 2010.
SILVA, M.V.B. Cultura das séries: forma, contexto e consumo de ficção seriada na
contemporaneidade. São Paulo. Ed: Galáxia, 2013.
TEXTO
sofisticado
sustenta
bonança
das
séries.
Disponível
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/12/1197187-texto-sofisticado-sustentabonanca-das-series.shtm>. Acesso em: 11 de fevereiro de 2016.
em:
O
FENÔMENO
Netflix
e
o
futuro
da
TV.
Disponível
em:
http://observatoriodaimprensa.com.br/monitor-da-imprensa/o-fenomeno-netflix-e-ofuturo-da-tv/. Acesso em: 11 de fevereiro de 2016.
SENSE8. Disponível em: <pt.wikipedia.org/Sense8>. Acesso em: 11 de Fevereiro de 2016.
‘STREAMING’, o cabo das tormentas da TV tradicional. Disponível em:
<http://www.dn.pt/media/interior/streaming-o-cabo-das-tormentas-da-tv-tradicional4952276.html>. Acesso: em 13 de fevereiro de 2016.
FIRST Trailer For The Wachowskis’ Sense8 Released. Disponível em: <
http://www.gamesradar.com/first-trailer-wachowskis-sense8-released/>. Acesso em: 13 de
fevereiro de 2016.
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SOBRE a Netflix. Disponível em: <https://media.netflix.com/pt_br/about-netflix> Acesso em:
13 de fevereiro de 2016.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Visual Novel como gênero de audiovisual
interativo e educativo
Janaina Azevedo – UNESP
Antonio Francisco Magnoni – UNESP
Introdução85
Este artigo apresenta uma breve análise sobre os jogos digitais do tipo
Visual Novel, (ビジュアルノベ, em romadi – versão em alfabeto românico
do silabário japonês – bijuaru noberu), apresentando uma breve análise do
gênero enquanto audiovisual interativo. Os Visual Novels são games de ficção
interativa caracterizados principalmente por gráficos estáticos ou por
pouquíssimas animações que utilizam estéticas de anime ou de mangá
(histórias gráficas japonesas), HQs e Comics, que são histórias gráficas
americanas e europeias, e até mesmo live-action, que é uma espécie de
fotonovela em que os atores encenam a história com registro fotográfico ou
videográfico, com falas reproduzidas por escrito. Entendemos que a análise
deste gênero se justifica por sua importância midiática, uma vez que os
Visual Novels podem ser considerados um desdobramento digital dos
chamados livros-jogos, que foram a principal influência mundial para a
produção dos jogos digitais, analógicos e RPGs (Role-Playing Game) de
aventura e fantasia; e que são os produtos de entretenimento
85 Assinalamos aqui que este artigo é parte do desenvolvimento da Dissertação de Mestrado da autora, e
que muitas das referências, além das citadas na bibliografia ao final (que deram embasamento à pesquisa
e aos conceitos aqui apresentados, mas não foram citadas integralmente, direta nem indiretamente), não
foram inseridas por estarem, principalmente, em língua japonesa, em processo de estudo e tradução
formal. Este artigo é um esboço da pesquisa documental e dos levantamentos pertinentes à Dissertação
em desenvolvimento.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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contemporâneos responsáveis pelo grande interesse dos produtores de séries
e pelas franquias de versões para TV e cinema.
Visual Novels são um gênero distinto dentre os jogos de narrativa
interativa, destacando-se de outros tipos de jogos pela sua jogabilidade
extremamente minimalista – usualmente a interação do está condicionada e
limitada a clicar para manter o texto, os gráficos e o som em atividade.
A maioria de tais narrativas interativas digitais apresenta várias
histórias e inúmeros finais, que dependem das escolhas dos jogadores; as
mecânicas consistem, habitualmente, de apresentam pontos de decisão
(encruzilhadas), com escolhas múltiplas intermitentes, em que o jogador
escolhe uma direção para a qual deseja levar o jogo.
Consideramos que os Visual Novels podem ser lidos e entendidos
como uma tecnologia de produção gráfica animada, que poderá gerar
formatos com linguagens interativas bastante propícias para se produzir
conteúdos didáticos-pedagógicos para diversos suportes e plataformas
multimidiáticas, que poderão atender os vários níveis de educação escolar,
como recursos de desenvolvimento educacional presencial ou virtual,
especialmente para as áreas de ciências sociais e de linguagens.
Os novos instrumentos pedagógicos audiovisuais que dispõem de
recursos de multimidialidade facilitam as ações pedagógicas com finalidades
interdisciplinares, além de atualizar as possibilidades educacionais e
estimular os professores a realizarem experimentações didáticas, tanto em
aulas presenciais, como em sistemas remotos de ensino. Os recursos
audiovisuais “gameficados” permitem o desenvolvimento de novos métodos
mais “vivos e ativos” para ensinar conteúdos de áreas mais teóricas e
interpretativas, como é o caso de história e geografia, de filosofia, letras,
sociologia, antropologia, artes e outras áreas que exigem interpretações
conjunturais, contextuais e culturais, que derivam de conceitos ou de
referências mais abstratas. Com o uso pedagógico de conteúdos didáticos
apresentados em animações ao estilo Visual Novels, todas as temáticas
abordadas, por mais abstratas e complexas que sejam, com certeza
conseguirão despertar mais atenção e interesse dos públicos escolares
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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compostos por crianças, adolescentes e jovens, porque estarão utilizando
uma linguagem muito mais familiar e atraente para as novas gerações, que os
recursos didáticos convencionais. Sem contar que as aulas “animadas”
poderão reproduzir um fenômeno comum entre as gerações de “nativos
digitais”: eles assistem primeiro as versões de livros adaptados para TV,
cinema ou games e depois buscam os originais para ler e interpretar a história
de maneira mais profunda ou completa.
Os Visual Novels, como instrumentos didáticos tecnológicos,
poderão promover a interação midiática na educação escolar facilitando a
entrega de conteúdos de ensino e o desenvolvimento pedagógico mais
satisfatório para professores, que são os usuários intermediários e
aplicadores das mensagens educativas e os alunos, que são os usuários finais
de um sistema educacional, que se renova e se torna mais eficiente ao
conseguir transmitir conteúdos clássicos utilizando instrumentos e
linguagens, que para as novas gerações, são plenamente contemporâneas e
assimiláveis. O modelo de aplicação proposto neste artigo servirá para
desenvolver interfaces que sejam compatíveis com os níveis de convergências
de tecnologias, de linguagens, de formas de recepção de informações e de
interações culturais, com as quais a maior parcela dos alunos das gerações de
nativos digitais está habituada a lidar nas suas relações cotidianas.
O objetivo de pesquisa é conseguir desenvolver produtos
audiovisuais educativos e no formato de jogo digital (para plataformas fixas
e computadores pessoais, consoles e mobile) que possam abranger e atender
os perfis majoritários dos estudantes brasileiros. Afinal, vivemos em contexto
social e cultural, que se torna indispensável que os professores dos sistemas
escolares públicos passem a dispor e a utilizar conhecimentos, tecnologias,
suportes, formatos e linguagens audiovisuais interativas. Só assim, será
possível criar condições de ensino-aprendizagem para que as gerações em
formação tenham plenas condições de se inserir de maneira abrangente e
competitiva, na pretensa sociedade da informação e do conhecimento.
Uma pesquisa focada neste tipo de jogo digital também contribuirá
com o desenvolvimento de uma cultura cognitiva com repertórios
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2016
sistematizados acerca de uma série de conteúdos, de linguagens, de relações
e de comportamentos interpessoais-virtuais, que já estão integrados ao
cotidiano da cibercultura. As áreas das Ciências Humanas e de Linguagens,
que constituem uma série de temas e referências obrigatórios, que são
sempre transversais ou direcionais para a educação escolar e para a cultura
em geral, serão as principais contribuintes e também as maiores beneficiárias
dessas novas formas de construção em dispositivos digitais, de narrativas
audiovisuais didáticas para ensino-aprendizagem. Os novos enredos
interativos dispostos em suportes virtuais e transmidiáticos, podem adotar
sequências narrativas lineares ou descontínuas, que são muitos familiares aos
indivíduos habituados ao uso cotidiano dos recursos virtuais do ciberespaço
e ao sofisticado manejo dos consoles de games. Para as novas gerações,
mesmo quando não se tratam de recursos para entretenimento ou para
interação interpessoal lúdica, fica mais fácil ensinar ou aprender com o uso
das linguagens e dos dispositivos derivados do universo informático, cujas
interfaces mais elementares são há muito tempo, multimidiáticas,
audiovisuais, interativas, cooperativas e utilizáveis em terminais individuais
e portáteis.
Histórico brevíssimo
As primeiras manifestações deste subgênero, dos Visual Vovels, estão
relacionadas na verdade, aos livros-jogos, que são conhecidos em inglês
como livros de Choose Your Own Adventure (ou CYOA) – histórias
narrativas em texto, com páginas em cujo final o jogador assume o papel do
protagonista fazendo escolhas que o redirecionariam a uma nova página, que
poderia ou não estar dispostas em sequência linear, pois as sequências
narrativas dependem de suas ações. Havia diferentes finais, além de um
habitual final canônico, em geral mais longo, bem desenvolvido e
“triunfante”, ao qual o jogador poderia chegar ou não, pois era dependente
de suas próprias ações. Os Visual Novels podem ser considerados um
desdobramento midiático digital dos chamados livros-jogos, que foram a
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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principal influência mundial para a produção dos jogos digitais, analógicos e
RPGs de Aventura e Fantasia. A popularidade deste tipo de literatura, seja
mítica, aventureira, ou fantástica, também foi responsável pelo grande
interesse pela produção de séries e franquias como Dungeons & Dragons, que
também migraram dos games para o cinema e para às séries de televisão, e
que hoje constituem produtos audiovisuais em franca expansão.
Os primeiros livros-jogos de que se tem registro formal, entre a
Europa, a Rússia e a América do Norte, surgem entre meados de 1940 e 1950,
para apresentar conteúdos pedagógicos e educativos. Os primeiros livrosjogos voltados ao entretenimento começaram a despontar nos mesmos locais
no final da década de 1960 e ganharam efetiva popularidade na década de
1970. A obra Packard’s Sugarcane Island (A Ilha do Canavial, tradução livre)
inaugurou o gênero comercialmente em 1976. O livro foi publicado por
Constance Cappel's and R. A. Montgomery's Vermont Crossroads Press,
sobre o conceito artístico de Edward Packard da série Adventures of You
(Aventuras de Você, tradução livre).
Os Visual Novels desenvolveram-se a partir das narrativas interativas
calcadas nos princípios desenvolvidos pelos livros-jogos, em meados dos
anos 1990. Eles foram constituídos e se firmaram no Japão, como jogos de
ficção interativa. Naquele país, até hoje os produtos de Visual Novels que são
lançados têm larga aceitação. Lá, a procura por estes jogos populares
representa cerca de 70% das vendas nacionais de games para PC e para outros
dispositivos móveis. Atualmente, as plataformas como STEAM, PlayStore e
Windows Marketplace, ou consoles pessoais como Nintendo DS e PSVita
estão promovendo larga divulgação e comercialização dos produtos das
Visual Novels no mundo ocidental.
Sakura Taisen publicada pela Sega em 1996 (com continuação até
meados de 2005), foi a obra que “inaugurou” e deu “origem” formal ao
gênero, com uma série de produções bem sucedidas, que até hoje são as
principais referências para um séquito mundial de fãs. A segunda grande
produção do gênero viria logo em 1997: To Heart publicada pela Leaf, foi
quem deu o tom às produções seguintes que norteariam toda a indústria de
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games. A franquia de To Heart continua em produção e é um dos grandes
filões lucrativos de toda a cadeia industrial relacionada com os setores de
jogos digitais e de entretenimento multimediático interativo.
Os Visual Novels japoneses chegaram ao ocidente em meados de
2008 graças aos esforços de blogueiros do Hau Omochikaeri, que divulgavam
discussões e traduções (em inglês) sobre todos os volumes de Visual Novels
que eram lançados mensalmente no Japão– e o fazem até os dias atuais. O
Hau Omochikaeri é o único blog que mantém com disposição e método, um
registro de como as mídias de Visual Novels foram trazidas ao ocidente.
O gênero, naquele momento havia crescido tanto, que muitos jogos
foram adaptados para formato anime e, posteriormente, para edições de
mangás. Isto gerou um movimento que até então, era contrário às realizações
do mercado e que havia sido fracassado em outras modalidades de jogos –
isso por que a adaptação para narrativas mais lineares, em suportes
analógicos e com linguagem menos interativas dependia de profundidade na
criação do texto, da literatura, da estrutura de roteiro, além de densidade
narrativa que permita a adaptação e a transposição para outras mídias.
As Visual Novels, em seus suportes originais tendem a apresentar
pouca jogabilidade, e se constituem de narrativas básicas centradas nas
decisões tomadas pelo jogador, que assiste uma história se desdobrar perante
seus olhos e dependentes das decisões que vai tomando e cujas consequências
ele também sofre; as ações de quem joga consiste em manter os cliques ou
toques para continuar a “rolagem” de texto, a movimentação de personagens,
dos cenários e das cenas. Tal qual os livros-jogos, os Visual Novels possuem
múltiplos caminhos narrativos, que podem desencadear em distintos finais.
No entanto, são os enredos e o desenvolvimento muito mais complexo e
profundo, tanto de cenários, quanto de personagens, os fatores que podem
permitir a fixação de uma variedade de ferramentas narrativas. A nãolinearidade das histórias permite mais liberdade de escolha aos jogadores,
com uma gama de variações de resultados que estabelecem curvas de
aprendizado exponenciais, tanto relacionadas às narrativas inerentes – que
podem ser das mais diversas – quanto das emergentes.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Dadas as características aqui apresentadas, consideramos que os
Visual Novels sejam uma das ferramentas narrativas e interativas com
excelente potencial para o desenvolvimento de jogos digitais educativos para
as Ciências Sociais e Linguagens, desde que sejam desenvolvidos, delimitados
e apresentados com parâmetros claros de desenvolvimento técnico,
pedagógico, narrativo e de conteúdos específicos para ensino-aprendizagem
escolar. Além disso, os projetos de Visual Novels com finalidades didáticas
oferecem boa viabilidade de produção e de financeiro para os
desenvolvedores e, por fim, ótimos parâmetros históricos, culturais, e
filosóficos, quanto à pertinência das temáticas abordadas nos modelos de
aplicação propostos.
Narrativas Ramificadas, RPGs Híbridos & Interatividade
As ramificações dos veios narrativos das Visual Novels são, em geral,
não-lineares e frequentemente usam várias ramificações que dependem da
interatividade e das ações do jogador para atingir múltiplos finais diferentes,
permitindo a liberdade de escolha ao longo do caminho não-linear. As
encruzilhadas de decisão dentro de uma Visual Novel apresentam
frequentemente a opção de alterar o curso dos acontecimentos durante o
jogo, levando a muitos resultados possíveis diferentes. Um exemplo
aclamado é 999.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Figura 3 - Visual Novel 999, exemplo.
O jogo baseia-se no conceito de 9 veios narrativos que se desdobram
em outros tantos, diversos. “Nove horas, nove pessoas, nove portas”: quase
toda ação e todo diálogo pode levar a escolha inteiramente novos caminhos
de ramificação e finais. Cada caminho só revela certos aspectos do enredo
geral e é só depois de descobrir todos os caminhos possíveis diferentes,
somando todos os resultados por meio de múltiplos playthroughs86, é que isso
tudo se aglutina para formar uma história coesa e coerente.
Como dissemos anteriormente, as narrativas interativas encontradas
nas Visual Novels são uma evolução dos livros-jogos do tipo “Choose Your
Own Adventure”, contudo, há que se considerar que o meio digital permite
melhorias significativas na jogabilidade, nas interfaces e na interação, sendo
que é possível explorar uma infinidade de aspectos técnicos e perspectivas de
uma história. Em “Fate / stay night”, por exemplo, a forma como o
personagem do jogador se comportou com personagens diversos, no curso
do jogo afeta a maneira como eles reagem ao personagem do jogador em
cenas posteriores. Por exemplo, influencia como eles escolhem, ou não,
86 Tradução livre: percurso de jogo, do início ao fim.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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ajudar nos problemas, nas tomadas de decisão, ou mesmo nos riscos. Isso
seria muito mais difícil de controlar com os livros físicos.
Figura 4 - Fate / stay night, exemplo.
Uma das grandes vantagens de trabalhar com as Visual Novels é que
estas não enfrentam as mesmas restrições de edição, tamanho, ou mesmo
conteúdo que um livro físico. Para uma pequena comparação, tomemos a
tradução oficial para o idioma inglês (a partir do japonês) do mesmo jogo
citado anteriormente, “Fate / stay night”: considerando todos os caminhos
de ramificação, a contagem de palavras e de laudas traduzidas excede, em
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muito, a contagem de palavras e laudas, por exemplo, de uma grande obra
como O Senhor dos Anéis.
Justamente por isso, o gênero consegue apresentar narrativas longas
e complexas, com temas transversais e educativos, discussões de temas
sociais, de gênero, entre outros, em formatos consistentes que integram o
audiovisual e a interatividade de forma que os livros físicos e mesmo jogos
de outras categorias (como plataforma, point and click, aventura, etc),
anteriormente, não conseguiam fazer, pois estavam limitados pelo físico.
Outra característica comum às Visual Novels é que elas tenham
vários protagonistas, o que confere à narrativa uma diversidade de
perspectivas sobre a história. Uma Visual Novel que inovou nesse quesito foi
“EVE Burst Error”, de 1995, da C’s Ware.
Figura 5 - EVE Burst Error, exemplo.
Este jogo introduziu uma mecânica interessante no sistema, que
permitia ao jogador alternar entre os protagonistas a qualquer momento
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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durante o jogo, ao invés de ter de terminar o jogo com um protagonista, antes
de poder jogar com outro. Além disso, os protagonistas são obrigados a
cooperar com uns aos outros em vários pontos durante o jogo, com opções
de que o que um faz afete o cenário dos demais. “Fate / stay night” é outro
exemplo que apresenta múltiplas perspectivas.
Outros exemplos notáveis de narrativa não-linear no âmbito das
Visual Novels incluem YU-NO (1996), da produtora ELF, que contou com
uma trama de ficção científica que gira em torno viagem no tempo e
universos paralelos. O jogador viaja entre mundos paralelos usando um
dispositivo que emprega um número limitado de pedras para marcar uma
determinada posição como um local de retorno, de modo que se o jogador
decidir refazer os passos, ele pode ir para um universo alternativo ao tempo
utilizando o dispositivo e suas pedras, para rever e reviver a história. Para
tanto, utilizou-se um sistema original chamado ADMS ou Sistema de
Mapeamento Divergente Automático, que exibe uma tela em que o jogador
pode verificar a qualquer momento a direção em que estão indo ao longo das
linhas de enredo de ramificação.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Figura 6 - YU-NO, exemplo.
As Visual Novels são comumente caracterizadas com caixas de
diálogo e sprites denotando o alto-falante. O gênero evoluiu seguindo uma
forma estilística diversa dos romances de impressão, o que faz com que estes
jogos sejam mais propensos a serem narrados na primeira pessoa do que na
terceira, e apresentem os eventos do ponto de vista de apenas um
personagem por vez – ainda que haja uma troca de protagonista. É bastante
comum que a unidade estrutural primária seja o dia, desde quando o
personagem acorda, até o momento em que ele vai se deitar, tornando as
narrativas o mais próximo do cotidiano possível. Há, naturalmente, muitas
exceções a estas generalizações.
Assim, na Visual Novel típica, os gráficos compreendem um
conjunto de fundos genéricos (normalmente apenas uma para cada local no
jogo), com sprites de personagens, e a perspectiva sendo em primeira pessoa,
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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mantém o protagonista sem ser visto durante a aventura, apenas nas artes
conceituais.
Quanto ao conteúdo, podemos dizer que estas Visual Novels se
centram, usualmente, em torno do drama pessoal, da construção do caráter
do indivíduo com base em uma ocorrência particular, em geral envolvendo
temas ou família, havendo também aquelas narrativas que envolvem ficção
científica, fantasia e terror.
Potencial para a Educação
Por desenvolver-se em torno de narrativas interativas que se
constroem a partir das escolhas dos jogadores-alunos, este gênero específico
dos Visual Novels propicia o incentivo à leitura, o desenvolvimento da
interpretação de texto e a interação com os fatos literários, históricos,
políticos e culturais de maneira efetiva, favorecendo a interlocução constante
e o entendimento aprofundado acerca dos conteúdos apresentados, nas áreas
de Ciências Sociais e Linguagens na Educação Básica. As Visual Novels, por
toda a sua estrutura e densidade lúdica, são ideais, por exemplo, para a
produção de jogos que abarquem:
1.
Temas transversais (como questões étnico-raciais, diversidade
de gênero, orientação sexual, entre outros);
2.
Temas complementares da LDB (como aqueles delimitados por
leis federais como a 10.639/03 e a 11.645/08, que versam sobre
a obrigatoriedade de temas relacionados ao ensino de história,
cultura, sociedade e linguagem de África, dos povos afrobrasileiros e indígenas);
3.
Temas integrados ou próprios do ensino de idiomas
(especialmente, inglês e espanhol)
4.
Adaptações literárias e fatos históricos apresentados como
narrativas transmidiáticas interativas;
5.
Temas sobre cidadania e diversidade social e cultural, entre
outros.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Dadas as características apresentadas, consideramos que os Visual
Novels sejam uma das ferramentas mais apropriadas ao desenvolvimento de
jogos digitais educativos para as Ciências Sociais e Linguagens, desde que
sejam desenvolvidos, delimitados e apresentados parâmetros claros de
desenvolvimento técnico, pedagógico, narrativo e de conteúdo, de
viabilidade de produção e viabilidade financeira e, por fim, parâmetros
históricos, culturais, e filosóficos, quanto às temáticas abordadas para os
modelos de aplicação propostos.
Na medida em que delimitamos e definimos os jogos digitais como
uma tecnologia propícia para produção de conteúdos e de linguagens
interativas viáveis como suportes midiáticos aos diversos níveis de educação
escolar, os Visual Novels podem ser utilizados para o desenvolvimento e
disseminação de conteúdos multimidiáticos com finalidades educacionais e
pedagógicas, especialmente para as áreas de ciências sociais e linguagens,
com contatos com a interdisciplinaridade que norteia o programa.
No que se refere à caracterização dos ambientes midiáticos, propor
um jogo desta espécie voltado a conteúdos educacionais configura-se como
uma produção interdisciplinar, com caráter de inovação ao gerar recurso
para a difusão da ciência e tecnologia, trazendo e adaptando uma técnica ao
Brasil, empreendendo a formação de uma nova ambiência digital no âmbito
escolar.
Por fim, entendemos que as Visual Novels se configuram como
instrumentos tecnológicos para promover a interação midiática na educação
facilitando a entrega de conteúdos e o desenvolvimento pedagógico a partir
destes, entre usuários intermediários aplicadores (professores) e usuários
finais (alunos). É necessário, assim, empreender pesquisas acerca desta
modalidade de audiovisual interativo para que se desenvolvam interfaces que
sejam compatíveis com os níveis de convergências em que os alunos nativos
digitais estão inseridos, que consiga abranger o perfil majoritário dos
estudantes brasileiros, no contexto da pretensa sociedade da informação e do
conhecimento e que contribua com o desenvolvimento de uma cultura
cognitiva acerca de uma série de conteúdos da cibercultura, das áreas das
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Ciências Humanas e de Linguagens, e de uma série de temas transversais da
educação escolar e da cultura em geral.
Considerações Finais
A partir de tudo quanto se apresentou neste artigo, entendemos que
a utilização das Visual Novels, como instrumentos didático-pedagógicos
pode representar um maior e melhor desenvolvimento de séries e linhas de
publicação digital de baixo custo de reprodução e distribuição,
caracterizando-se como uma alternativa mais barata e acessível que os atuais
livros didáticos e paradidáticos, que muitas vezes não chegam a todas as
unidades escolares, nem tampouco estabelecem pontes efetivas com as
tecnologias digitais, plataformas, dispositivos, conteúdos e linguagens que as
caracterizam.
Também pode caracterizar-se como um elemento de integração
efetiva dos conteúdos das Áreas de Ciências Sociais e Linguagens,
propiciando integração dos jovens alunos nativos digitais, hoje os mais
afastados das tecnologias durante as atividades didático-pedagógicas,
prioritariamente analógicas, com a tecnologia;
E pode abrir a possibilidade de reproduzir com fidedignidade e sem
a ocidentalização ou exotização, num ambiente midiático digital e de fácil
difusão internacional, as características das narrativas tradicionais e da
oralidade das culturas representadas, especialmente as características das
culturas e das linguagens regionais brasileiras, que precisam de um modelo
narrativo que abarque uma grande quantidade de conteúdos e informação,
ao mesmo tempo em que se adapta às necessidades dos nativos digitais,
levantando questões de ordem social, histórica, tecnológica e científica.
Todas as proposições devem ser tomadas e avaliadas a partir da abrangência
e das possibilidades de desenvolvimento e mudança que os estudos e a
pesquisa podem gerar, como promover a aproximação, o desenvolvimento e
a instrumentalização dos conteúdos relacionados – especialmente as Novas
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Mídias, dentre as quais os jogos digitais, e mais especificamente, as narrativas
interativas.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
R.U.A. Realidade Urbana Aumentada - M.A.U.
Mapeamento artístico Urbano em Bauru e a
prática audiovisual na qualidade de agentes
do patrimônio cultural contemporâneo
José dos Santos Laranjeira – UNESP
Lilian Amaral – UNESP
A experiência urbana contemporânea nos desafia na arte a
estabelecer com a realidade, além de um processo árduo de leitura, análise e
interpretação, uma exigente disposição a fazê-lo com viés poético, qualidade
estética e primor reflexivo e crítico, próprios da atividade artística.
A realidade urbana, nos provoca, nos instiga, nos desafia. Impõe e
sobrepõe em suas camadas inúmeros desafios ao transitar sobre uma
topografia diversa e complexa. Afinal, transitar entre territórios tem-se
convertido em uma condição humana contemporânea. Territórios culturais,
afetivos, religiosos, para muito além dos geográficos, territórios que tem
configurado novas possibilidades de ação artística em cartografias cognitivas.
A experiência realizada no projeto artístico workshop "R.U.A. REALIDADE URBANA AUMENTADA / M.A.U. - MAPEAMENTO
ARTÍSTICO URBANO - BAURU (Figura 1, p.3) ministrado pelos artistaspesquisadores Profa. Dra. Lilian Amaral (MediaLab UFG) e o Prof. Dr. José
Laranjeira (FAAC-UNESP Bauru), encara esses desafios concebendo um
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
espaço criativo interdisciplinar, para onde convergiram artistas, arquitetos,
ativistas, alunos de artes visuais e pessoas interessadas no desenvolvimento
de cartografias artísticas e sociais em contextos urbanos, no âmbito da
confluência entre Arte-Ciência-Tecnologia-Sociedade.
Figura 1: Banner do Workshop.
O
workshop
"R.U.A.
BAURU:
REALIDADE
URBANA
AUMENTADA /M.A.U. - MAPEAMENTO ARTÍSTICO URBANO" partiu
do desafio geral de confrontar a realidade urbana brasileira/latino-americana
a partir de uma pequena amostragem, de um trecho periférico da cidade de
Bauru, interior do Estado de São Paulo. Amostragem singela, embora
relevante o suficiente para entusiasmar, pois, apesar de estar circunscrita e
ser uma realidade urbana local específica que detêm circunstâncias e
características muito próprias, estas não lhe são, absolutamente, exclusivas.
Ao contrário, elas são reveladoras, de circunstâncias e características que
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
integram a realidade urbana do Brasil e de boa parte da América Latina.
Circunstâncias e características que revelam muito do perfil antropológico e
os estágios de desenvolvimento comportamental, social e cultural do
continente Latino Americano.
R.U.A./M.A.U-Bauru explorou as possibilidades das narrativas
audiovisuais não lineares e os processos artísticos colaborativos que ajudam
a visualizar zonas de conflito e os complexos processos de transformação que
tem
lugar
nos
contextos
urbanos
contemporâneos.
Durante
o
desenvolvimento do mesmo foram apresentados os conceitos que norteiam
ações artísticas em contextos urbanos, assim como a elaboração de mapas,
cartografias, convertendo-as em territórios poéticos. Ao longo de três
encontros de pesquisa foram apresentados conceitos sobre arte
contemporânea e abordadas questões e estudos de caso que estruturam a
ação artística em dialogo com a cidade como patrimônio cultural
contemporâneo.
Dentro desse contexto tratou-se do caminhar como prática estética,
práticas da deriva, deambulações e percursos urbanos. Entendemos as
cartografias como formas de abordar as distintas camadas de memorias,
palimpsestos urbanos que configuram as heterocromias e as distintas
fisionomias da cidade.
Se tratou de aprofundar os conhecimentos sobre “geopoética”
apresentando estratégias para efetuar a coleta de dados multisensoriais em
contextos diversos. Estratégias que tiveram a finalidade de qualificar a ação
artística e compor uma cartografia sensorial e crítica da zona sul da cidade
de Bauru, território da favela, denominada “Villággio Zero”.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
O evento preparatório ocorreu nas instalações do SESC/Bauru, na
Sala de Uso Múltiplo ao tempo que a elaboração propriamente da cartografia
poética teve lugar no OEDH-Observatório de Educação em Direitos
Humanos, câmpus universitário da UNESP em Bauru. A cartografia poética
foi desenvolvida a partir do material coletado em ”PerfoDerivas - atividades
de campo” realizadas pelos alunos e pesquisadores participantes, autores da
edição, montagem e georeferenciamento das paisagens sonoras, visuais,
olfativas, gustativas, etc.
Para qualificar a preparação e aprofundar as experiências, contou-se,
ainda, com a realização de uma videoconferência internacional com artistaspesquisadores do IEMBA- Instituto Escuela Nacional de Bellas Artes da
UDELAR- Universidad de la República do Uruguai e liderados pelo
pesquisador Daniel Argente. A videoconferência celebra a Rede de
Narrativas Hipertextuais [NHT] e a Rede de lo Patrimoniable América
Latina / Rede Internacional de Educação Patrimonial-RIEP, Espanha.
Pretende-se que, nas artes, particularmente, no âmbito das artes
visuais e sonoras, a relação com a realidade urbana esteja sempre pautada por
uma disposição intrínseca à observação profunda, dinâmica, relacional,
criativa e crítica dessa realidade. Na arte, a observação deverá explorar ao
máximo as capacidades perceptivas dos sentidos e intuição. Curiosamente,
essa disposição a usufruir plenamente da capacidade sensorial e intuitiva,
constitui-se na principal plataforma sensível para outorgar significados no
plano intelectual, semântico e criativo. São esses significados particulares que
emergem do contato sensível e intuitivo que, confrontados aqueles outros
significados que já integram o âmbito coletivo e social, âmbito da cultura e
universo simbólico, haverão de tecer as expressões artísticas. A expressão
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
artista adquiri, neste sentido, a responsabilidade de consolidar plenamente
no pensamento e na linguagem, a qualidade estética e ética com função
poética.
Baseamo-nos na capacidade que possuímos de desenvolver leituras
e interpretações do mundo, das realidades sociais, por meio das práticas
culturais, artísticas e educativas que incorporam o âmbito corporal,
amplificando a percepção através da observação mais aguçada e reveladora
de diversas camadas que complementam a ação e intervenção no território
como prática artística.
A experiência urbana R.U.A./M.A.U-Bauru, revelou aspectos
fundamentais que convertem a cartografia numa representação artística e
cultural da realidade que hoje trabalha com a dinâmica da mudança, cria
fluxos entre o visível e o invisível e adquire concretude, precisamente nesses
mapas resultantes da experimentação e de interpretação de uma realidade
que opera simultaneamente em vários níveis, do local ao global, do real ao
virtual.
Os “mapas” e cartografias artísticas trazem imagens, sons, cheiros,
sentimentos, sensações, estados de espírito e sonhos que são tão necessários
de serem realizados, quanto outros, como os topográficos, de estradas e redes
de comunicação. Como propõe Merleau-Ponty, não se trata de proporcionar
apenas mais informação, mas o que realmente se faz necessário é deixar o
testemunho. E este testemunho que ora aportamos como narrativa
audiovisual, na qualidade de agentes do patrimônio cultural contemporâneo.
A provocação dos sentidos na arte contemporânea acende novos e
velhos repertório. Tem colocado a existência humana no centro de suas ações
com efusiva persistência, como se esta constitui-se verdadeiramente sua
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
pauta fundamental. A existência humana vem sendo para a arte um
acontecimento singular, descontínuo, ahistórico e passível de infinitas
transformações. De certo modo, a experiência da contemporaneidade é
como se nos permitisse uma “ultrapassagem” capaz de impulsionar o
“construir sobre o construído”, e ainda, colocando-nos fora dos limites
tradicionais. Entre suas principais funções destaca-se “a resistência”,
entendida esta, como um questionamento constante dos próprios limites,
dos próprios axiomas, do próprio lugar, seja, em sua relação com o público,
seja no âmbito de sua realização, onde se nos permite adotar o disfarce, a
negação, o hibridismo, a contestação e a transformação.
Referir-se às ações de arte contemporânea demanda, entretanto,
estabelecer ou possuir um vínculo com o presente, na vivencia dos
acontecimentos, eventos e processos que ocorrem no eixo diacrônico, e sem
subestimar, ao mesmo tempo, a percepção sutil e sofisticada que emana das
sincronicidades como instancias qualitativas que alinhavam uma experiência
extensa da realidade no espaço/tempo.
Se levarmos em consideração que contemporâneo é pertencente ou
relativo ao tempo ou época em que vivemos, podemos permitir-nos situar
com pertinência e segurança a contemporaneidade a partir das próprias
referências pessoais que possuímos. Nada mais contemporâneo do que a
própria vivência, particularmente, aquela que aporta uma experiência
qualitativa e sensível e que vimos acumulando ao longo do tempo como
experiência artística e cultural. Repertórios que acumulamos no âmbito da
percepção, significação e reflexão da realidade a partir do andar, do caminhar
e a deriva como principais estratégias de ação.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Trata-se de instalar o andar como prática artística, como exercício
privilegiado cuja ação nos impele a confrontar a realidade com um impulso
dinâmico do caminhar à deriva e seu potencial criativo. A criação como uma
instância qualitativa única de tradução, reflexão e poiésis.
A contemporaneidade é um período que se revela fecundo e
relevante para arte e a comunicação. Principalmente, se levamos em
consideração o uso cada vez mais intenso de todos os recursos tecnológicos
e mídias hoje disponíveis. A ocorrência de um incremento substancial na
produção de ambas, apesar de ser muito recente, é responsável por
impulsionarem uma verdadeira revolução cognitiva. Uma revolução que se
alicerça na “disponibilidade” de meios e repertórios que estendem nossas
experiências perceptivas, reflexivas, expressivas e críticas sobre a realidade.
Tudo isto se reflete e se torna evidente quando focamos a produção
artística contemporânea que emerge da vivência urbana, de sua percepção e
desdobramentos poéticos. A cidade como foco, o ambiente urbano como
instância de expressão e linguagem. Afinal, “a percepção urbana é uma
prática cultural que concretiza certa compreensão da cidade e se apoia, de
um lado, no uso urbano e, do outro, na imagem física da cidade, da praça, do
quarteirão, da rua...” (FERRARA, L. 1988, p.3)
Assim como a palavra enunciada é prática da língua, o passeio pela
cidade é uma prática do sistema urbano, um ato de enunciação da cidade,
um exercício da espacialidade que nos permite traduzir a experiência com
expressões criativas e poéticas. O caminhar se integra como ação
fundamental, como um exercício privilegiado da experiência urbana.
Parafraseando Certau (1998), nossa história também começa e se faz
ao rés do chão, com passos cuja agitação traz um inumerável de
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
singularidades e onde os jogos dos passos que adotamos moldam os espaços.
Tecem lugares e é sob esse ponto de vista que nossa motricidade de pedestres
forma um sistema real cuja existência faz efetivamente a cidade.
Como ele lembra ,
“os jogos dos passos moldam espaços, tecem os lugares e certamente os
processos de caminhar podem reportar-se em mapas urbanos de maneira
a transcrever-lhes os traços e as trajetórias. Traços que nos remetem à
ausência daquilo que experimentamos, vivenciamos, refletimos. Os
destaque s do percurso perdem o que foi: o próprio ato de passar a
operação de ir e de poder vagar o nosso olhar, a atividade de passantes é
transposta em pontos, pontos que transportam a experiência a sua
representação, uma linha dinâmica, ”totalizante e reversível”. (CERTAU,
1998, p.176)
Só conseguimos captar o resíduo colocado no “não-tempo” de uma
superfície de representação, uma representação visível na projeção.
O visível como operação de registro cartográfico se torna possível.
Uma forma de fixar a memória e reverter o seu esquecimento. O traço no
mapa recupera a experiência, a prática, o exercício da percepção espacial. Se
manifesta a voracidade que o sistema geográfico tem e o seu poder de
metamorfosear o agir com legibilidade, deixando de lado outras maneiras de
estar no mundo.
O ato de caminhar adquire, segundo Certau, o mesmo caráter da
enunciação verbal:
“uma comparação com o ato de falar permite ir mais longe e não se limitar
somente à crítica das representações gráficas, visando, nos limites da
legibilidade, um inacessível além. O ato de caminhar esta para o sistema
urbano como a enunciação (o speech act) está para a língua ou paras os
enunciados proferidos. Vendo as coisas no nível mais elementar, ele tem
com efeito uma tríplice função enunciativa”: é um processo de
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
apropriação do sistema topográfico pelo pedestre; é uma realização
espacial do lugar (assim como o ato de palavra é uma realização sonora da
língua); enfim, implica relações entre posições diferenciadas, ou seja,
“contratos” pragmáticos sob forma de movimentos( assim como a
enunciação verbal é alocução”, coloca o outro em face” ao locutor e põe
em jogo contratos entre locutores). O ato de caminhar parece, portanto,
encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação.
“(CERTAU,1998, p.177)
Ou seja, essa problemática se estende aos atos de representação, atos
expressivos capazes de transportar as relações à elementos sintáticos. Uma
forma que obtemos de codificar a experiência do urbano que em sua lógica
supõe o reconhecimento da sintaxe para, através da forma, identificar a
experiência do caminhar .
Se bem é verdade que existe uma ordenação na realidade espacial que
organiza o território como conjunto de possibilidades, é o artista, ao
caminhar que as atualiza e as destaca. Somos nós, nos registros e inclusão
visual ou sonora que assumimos a responsabilidade de fazer ser, destacar,
fazer aparecer certa ordem espacial e não outra. Exercemos o poder de
deslocar e inventar privilegiando certos aspectos e ocultando outros. No
próprio processo de deslocamento insere-se o poder de enfatizar ou ocultar
certos aspectos dos lugares, provocando destaques ou concedendo inércia,
ou, ainda, condenando ao desaparecimento. No caminhar temos o poder de
criar um discurso, um poder retórico intrínseco à caminhada. Caminhar
configura-se, assim, em um ato narrativo.
A localização necessariamente implicada pelo ato de andar é
indicativa da apropriação dinâmica que fazemos do espaço. A cidade, através
do andar como discurso poético, torna-se crítica. As propriedades do
território são identificadas e classificadas articulando a reflexão e situando
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
características que resultaram dos processos de ocupação, uso e gestão desse
território. Percebem-se neles os níveis de investimento, ou descaso, que
provêm da indiferença, do desvio ideológico e que resultam na segregação,
na contaminação, na doença, e na morte da natureza.
O passeio pela cidade transforma-se em um exercício do sistema
urbano, um ato de enunciação, onde a cartografia assume a disposição
criativa de articulação da vivência no território, como apropriação e texto
poético.
A experiência quotidiana do território ao imaginar percursos e
conceber a sua representação cartográfica no mapa produz uma geografia da
ação ordenando a realidade urbana como metáfora dela mesma.
O enfoque metodológico investido na ação poética é qualitativo. A
atenção à realidade ocorre de maneira à privilegiar a ação indagativa de
forma dinâmica e em vários sentidos, explorando fatos e gerando suas
interpretações de forma flexível. As atividades exploratórias serviram para
apontar quais seriam as questões mais relevantes, para aprimorá-las e
problematiza-las por meio das proposições corporais, textuais, visuais e
sonoras que integraram o trabalho de cartografia artística e social.
O raciocínio oscilou entre a indução e a abdução. Ao partir do
particular ao geral, assume-se claramente o caráter indutivo. Entretanto,
quando se fazem descobertas que impelem a alcançar explicações gerais,
próximas à “lógica da invenção”, assume-se, então, o caráter abdutivo.
Imprime-se em tais raciocínios uma dinâmica circular, ora indutiva, ora
abdutiva, formas de agir que, entende-se, implementam a capacidade de
enfrentar e interpretar com maior flexibilidade e criatividade, a
complexidade intrínseca da realidade urbana contemporânea.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
O percurso realizado no território, ou seja, a caminhada na região do
“Villággio Zero” (Figura 2) durante a experiência RUA / MAU Bauru, apesar
de sua aparente e singela especificidade, permitiu identificar nitidamente
algumas instâncias gerais que integram a experiência antropológica do
espaço, onde a dicotomia homem/espaço traz apenas um dos
desdobramentos estéticos e éticos possíveis, sendo, ainda, reveladoras de
outras tantas questões que puderam ser categorizadas, como por exemplo, a
relação homem/natureza, homem/cidade, homem/periferia, importantes
dicotomias que estão diretamente vinculadas à presença, ou não, do homem
no território e que portanto, são reveladoras de suas ações e seus
comportamentos, de sua vivência social e de seus valores simbólicos.
Instâncias fundamentais que revelam, das mais diversas formas, as
estratégias de ocupação e uso adotadas no território enquanto experiência
coletiva, social e cultural. Enfim, um universo com características que se
assentam em valores simbólicos transformados em instrumentos e suportes
de ação poética e de emponderamento e, portanto, instrumentos de análise e
reflexão crítica.
A experiência durante a caminhada no projeto artístico processual
RUA / MAU Bauru, ainda revelou outras possíveis dicotomias como
cidade/natureza e, principalmente, aspectos que referendam seus limites e
fronteiras, faixas periféricas onde se pode identificar com maior nitidez a
transição e o jogo da sobreposição, da intersecção ou da proporção dos
valores imbricados no território.
A cidade, a natureza e a periferia ganham destaque como elementos
de um organismo urbano regido por valores simbólicos instrumentais de
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
emponderamento. Elementos que, apesar da tentativa de serem regidos pela
fragmentação, são altamente interdependentes.
A experiência que desencadeou os primeiros contatos com a
realidade do “Villággio Zero”, na cidade de Bauru, esteve pautada por vários
níveis de aproximação que se integraram como experiência singular e única,
acumulada sobre esse território ao longo de mais de vinte anos. Experiência
múltipla e diversa de uma realidade complexa, pois implicou vários níveis de
atravessamentos - poéticos, éticos e estéticos, envolvendo distintos planos de
percepção.
É na sobreposição desses vários níveis de aproximação e
atravessamentos onde associam-se as diversas condições que determinaram
a relação como sujeitos e que nos definiram, ora como cidadãos, enquanto
moradores e vizinhos, ora como profissionais, como educadores, professores
de arte e artistas.
No projeto R.U.A./M.A.U. - Bauru pautou-se pelo aprofundamento
dos estudos da paisagem sonora articulando-os, concomitantemente, com as
diferentes possibilidades e dimensões narrativas, textuais e audiovisuais.
Acreditamos que estas possuem um significativo potencial expressivo e
comunicacional capaz de proporcionar-nos, além de uma garantida
visibilidade, uma perspectiva promissora de provocação, que poderão
resultar na transformação efetiva de algumas circunstâncias problemáticas
desse território.
Como estratégia preparatória à realização do workshop, optamos
inicialmente por realizar com os alunos do curso de artes visuais da
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru,
interessados em participar do evento, algumas expedições de contato prévio
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
com a realidade do território escolhido. Seguindo um percurso, que fora
também, previamente determinado de acordo com critérios que emergem da
experiência acumulada pelo artista-pesquisador José Laranjeira e que põe em
evidencia e destaque as três instâncias principais identificadas no traçado da
cartografia e que se encontram diretamente relacionadas às dicotomias já
mencionadas,
homem/cidade,
homem/natureza
e
homem/periferia,
respetivamente.
Esse contato prévio teve a intenção de promover nos alunos um
envolvimento mais profundo com as referidas instâncias, particularmente
aquelas que detêm naturalmente uma maior capacidade de estranhamento
para a maioria dos participantes e que está vinculada à dicotomia
homem/periferia, pois inclui a crua realidade da favela no “Villággio Zero”.
O roteiro da caminhada não foi improvisado, ao contrario, seguiuse um traçado predeterminado que fora elaborado baseado na experiência
acumulada e no conhecimento que o pesquisador adquiriu sobre esse
território, não só enquanto artista-pesquisador, mas principalmente, como
morador e vizinho dessa região da cidade. O traçado teve a intenção de
permitir aos participantes da caminhada um contato inicial pautado pela
sensibilização.
A sensibilização do grupo permitiu a realização de uma experiência
reveladora desse território. Uma experiência que foi disponibilizando
inúmeras sensações à medida que a caminhada avançava e que permitiram
efetuar um contato intenso e profundo com as qualidades e os índices que
caracterizam as três instâncias principais. Instâncias identificadas enquanto
unidades dicotómicas, pois como já mencionamos, estão associadas
diretamente
às
relações
homem/cidade,
homem/natureza
e
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
homem/periferia,
respetivamente.
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Relações
que
resultam
do
desenvolvimento nesta região da cidade na apropriação do território durante
a ocupação e uso do mesmo e que conseguimos identificar como se se tratasse
de unidades relacionais dicotômicas independentes, pois embora se integrem
no território, diluindo abruptamente suas fronteiras, permanecem
autónomas e indiferentes entre si.
Acreditamos que o contato prévio dos alunos participantes seria um
aliciente importante, e por vários motivos. Entre eles, torna-se evidente o
estímulo à perspectiva criativa capaz de capturar determinadas
características e qualidades contidas no percurso, que por destacarem as
instâncias dicotômicas dessa realidade seriam capazes de incitar-lhes
insights.
Duas expedições foram realizadas com o objetivo de mapear,
catalogar, analisar e sistematizar os dados e vivências previamente para,
posteriormente compartilhar esse material com todos os participantes a fim
de co-pesquisarem e co-criarem narrativas geopoéticas multisensoriais.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Figura 2: experiências no território.
Do contato e experiência das expedições, resultou um material visual
e sonoro precioso acerca da realidade desse território. Um território antes
circunscrito a uma experiência pessoal. A experiência realizada desta forma
exercitou com plenitude uma dimensão poética, política e pedagógica,
incorporando, principalmente, a dimensão cidadã que promoveu o
engajamento dos participantes numa discussão reflexiva profunda sobre a
realidade encontrada. Uma discussão reflexiva que se alicerçou
qualitativamente na dimensão politica por meio da prática artístico-crítica,
coerente com a cartografia crítica.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Uma experiência acumulada durante todo o processo do workshop,
por tratar-se de uma vivência coletiva e processual, permitiu aprofundar com
bastante ênfase, também, a dimensão performativa.
Tivemos o objetivo de preparar o corpo dos pesquisadores
participantes para uma intervenção performativa com a intenção de produzir
narrativas audiovisuais
compartilhadas publicamente. Pretendíamos
produzir e criar um contexto investigativo dentro do IX Encontro de Arte e
Cultura.
Foi assim que, ao longo de três dias, o grupo de pesquisadores
liderados e coordenados por artistas-pesquisadores Profa. Dra. Lilian Amaral
e Prof. Dr. José Laranjeira compartilhou no evento uma série de conceitos e
projetos de arte urbana contemporânea, debruçando-se sobre conceitos e
práticas de arte que subsidiariam, assim, a escolha de estratégias e
proposições metodológicas para sair a campo com vistas ao desenvolvimento
das ações poéticas a partir do encontro efetivo com o território. A análise do
território foi exaustiva, pois considerou amplas possibilidades do ponto de
vista sensorial - visual, auditivo, tátil , olfativo, etc., semântico, recuperando
memórias e atribuindo significados, e principalmente, no nível pragmático,
onde a experiência coletiva e colaborativa confrontou a crueza do universo
simbólico, da exclusão e do descarte urbano e humano.
Foi no segundo dia, divididos em grupos, que os pesquisadores
partiram para o mapeamento coletivo, a coleta, documentação e registro das
distintas paisagens e situações encontradas, verdadeiros índices crus da
realidade confrontada.
Uma vez realizados o mapeamento e os registros, esse material foi
analisado e processado coletivamente durante o workshop.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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As ações poéticas, iniciadas com a conversa onde foram expostos os
conceitos que regem este tipo de prática artística, deslocaram-se para o
território, e por fim, ganharam corpo e concretude em inovadoras e
colaborativas narrativas audiovisuais, textuais e performativas, resultados
que no mesmo e ultimo, dos três dias de imersão, foram apresentadas
publicamente aos participantes do IX Encontro de Arte e Cultura, no
auditório do SESC BAURU.
O projeto processual previu a apresentação e compartilhamento
também junto à comunidade do “Villággio Zero”, inscrevendo, assim, uma
nova instancia narrativa que implicaria na perspectiva dos próprios
moradores do “villággio” virem a tornar-se narradores e, tal vez, agentes da
transformação efetiva dessa realidade.
A convivência e o vinculo afetivo existente com a comunidade
permitiu alcançar um convívio poético singular envolvendo os moradores
como co-criadores, artógrafos [artistas co-autores de uma mesma narrativa
ou texto poético, segundo Rita Irwin, 2008], permeados por sentimentos de
familiaridade e cumplicidade. Um fenómeno significativo e uma
circunstância indispensável, se levamos em consideração que a comunidade
é fechada e seu território restrito, pois, não aceita com facilidade a presença
de pessoas estranhas e sem nenhum vínculo direto com aquele contexto, uma
vez que vivem em áreas ilegais e em frágeis condições vida.
O vínculo estabelecido ao longo do tempo permitiu que o convívio
poético se transformasse numa perspectiva emancipatória, criando a
perspectiva dos próprios moradores gerarem textos e narrativas em primeira
pessoa.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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A ideia principal que norteou nossas ações, enquanto cidadãos prevê
que os próprios moradores possam ser os principais agentes de
transformação. Assumindo o papel de sujeitos das ações de transformação,
onde o trabalho com arte pode lhes permitir melhorar consideravelmente a
autoestima, ganhar folego e poetizar sobre a realidade, amplificando a
reflexão de certas questões e conflitos, tornando-os visíveis ao ponto de
legitimar, nas narrativas cartográficas, suas genuínas reivindicações e anseios
por respeitabilidade, visibilidade e mudança.
Finalmente, podemos concluir com satisfação que o R.U.A. / M.A.U.
Bauru, conseguiu imprimir novas relações aos entornos urbanos,
significando-os e re-significando-os como experiência urbana cotidiana. A
atividade artística obteve novas relações na cidade como campo poético e
político ao representar esses trajetos de interterritorialidades como caminhos
dialógicos e relacionais, reafirmando a importância da cartografia social
contemporânea como vivência profunda do território vivido e mapeado,
convertido em uma nova experiência criativa, singular, individual e ao
mesmo tempo, coletiva.
Entretanto, sabemos que o processo não se esgotou, pois, apesar de
termos alcançado resultados significativos nas proposições e narrativas
realizadas, ainda, resta-nos muito a fazer visando promover nos moradores
do “Villagio Zero” a perspectiva de inscrever com intensidade suas reflexões
nas próprias narrativas, legitimando reivindicações e anseios por
respeitabilidade, visibilidade e mudança.
A “caminhada” continua...
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Disponível
emwww.cibercultura.org.br/tikiwiki/tikiindex.php?
page=cartografia+colaborativa - Acesso em 18 de julho de 2013.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Daemonium: websérie ou filme episódico?
Rosângela Fachel de Medeiros – URI Alto Uruguai e das Missões
A ascensão das Webséries
É notório o papel da internet como plataforma de entretenimento,
principalmente, através da exibição de material audiovisual seja
disponibilizando tanto produções televisivas e cinematográficas (legal ou
ilegalmente), quanto produções originalmente produzidas para o ambiente
da internet, as quais tem o YouTube e o Vimeo como plataformas
norteadoras. Pela facilidade de acesso a seus conteúdos (através de
computadores, tablets, celulares), e pela liberdade em relação às grades de
programação da televisão convencional, permitindo ao espectador escolher
o local e o momento em que deseja assistir a um filme, a um programa ou a
uma série, a internet (através de diferentes plataformas, como a Netflix, o
Youtube e o Odeon, entre tantas outras) transformou-se no mais eficiente
meio de acesso à produção audiovisual nacional e internacional.
Dentre os múltiplos formatos de produtos audiovisuais realizados,
especificamente, para o ambiente da internet vem ganhando destaque as
webséries, cujo formato deriva diretamente das produções audiovisuais
seriadas, que na contemporaneidade, muitas vezes, assumiram a liderança na
reconfiguração, transformação e inovação da linguagem audiovisual. Apesar
de sua ligação original com um modelo consagrado pela televisão, sem
esquecer que as narrativas seriadas advêm dos primórdios da produção
industrial cinematográfica, as Webséries possuem características específicas,
que respondem às especificidades do meio a que se destinam e que as
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diferenciam de suas correlatas televisivas. Conforme a definição de Paula
Hernandez:
Las webseries son series de ficción creadas para ser emitidas por Internet.
Se trata de una nueva forma de producción de ficción, dirigida a un nuevo
público y emitida en un nuevo medio, que presenta características propias
diferentes a las ofrecidas por las ficciones de los medios tradicionales.
(HERNÁNDEZ, 2014)
Uma das principais diferenças é a duração dos episódios, enquanto
as séries convencionais têm em média quarenta e cinco minutos, os capítulos
das Webséries não possuem uma duração padrão, sendo geralmente mais
curtos, mas podem variar de capítulos enxutíssimos, de dois ou cinco
minutos, a capítulos que se assemelham ao formato tradicional de quarenta
e poucos minutos. Além disso, a Websérie nasce como produto destinado a
uma audiência específica da internet, a audiência 2.0, e, por isso, apresenta
um formato ágil e hipertextual, orientado para um consumo rápido, viral e
curto.
A audiência 2.0 deriva da ideia de Web 2.0; que marca a transição de
sites estáticos para sites dinâmicos, que possibilitam e fomentam a
participação, criação e o compartilhamento de informações, nesse sentido,
são audiências que abandonam a posição passiva e se inserem como
coprodutores dos conteúdos que consomem seja através da ação de adaptalos a seu tempo, seus gostos e suas referências, ou ainda assumindo a autoria,
atuando como criadores dos próprios conteúdos multimídia audiovisuais
que desejam consumir, entrando em competição com os meios tradicionais
e meios digitais.
O desenvolvimento das câmeras digitais de alta resolução, bem como
de outros aparatos com câmera de boa qualidade, como celulares e tablets,
facilitou que jovens realizadores produzissem obras audiovisuais de
qualidade com custos muito baixos, os quais em seguida podiam ser
disponibilizados sem custos tanto para exibidores quanto para espectadores
nas plataformas de vídeo da internet (YouTube, Vimeo), estando
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irrestritamente disponíveis, vinte e quatro horas do dia, a partir de qualquer
dispositivo com conexão à Internet. Hernández lista algumas das
características que devem ser levadas em consideração para a produção de
Webséries:
Optimización página web: Es la primera impresión de nuestro producto,
la cara vista. Tener una buena plataforma transmite buenas sensaciones, y
de esta forma parece que la webserie vaya a ser también de buena calidad.
Crear para nichos: La distribución en la Red es gratuita y la creación puede
llegar al mundo entero (siempre y cuando tenga acceso a Internet). Si
tenemos en cuenta la filosofía de la long tail (Anderson, 1961) cada nicho
de la sociedad tiene su público y si creamos para un nicho específico se
suelen sentir más identificados y se convierten en fans de la producción.
Inexistencia marco regulador de contenido: Permite una libertad de
contenidos inexistente en los medios tradicionales. Aspecto que nos puede
ayuda a testear formatos o temáticas imposibles en otros
medios.(HERNANDEZ, 2014)
E, além disso, estas plataformas “ainda” estão livres de um marco
regulador, permitindo a disponibilização de todo tipo de conteúdo. A
liberdade criativa encontrada no formato da Websérie é destacada por
Santiago Bianchetti, um dos fundadores da produtora Mancha e diretor da
Websérie argentina de sucesso Embarcados (2008):
A la tele es muy difícil llegar con tu idea tal como la pensaste, no importa
tanto el contenido sino cuestiones más políticas. En Internet, hay que
rebuscárselas porque los costos son mucho más bajos, pero los proyectos
se mueven con energía. Por eso se ven cosas que en la tele no aparecen,
temáticas marginales que están ahí, esperando salir. (BIANCHETTI apud
TURCO, 2013)
Não podemos deixar de lado, no entanto, o fato de que já existe uma
linha de produção “profissional” de Webséries, como as produzidas pelo
Netflix (House of Cards, Orange is the New Black e Narcos)
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Atualmente, estimamos que existam aproximadamente quarenta e
dois festivais destinados a Webséries no mundo, dentre os mais prestigiosos
estão o LAWebFest, de Los Angeles, criado em 2010; o HollyWeb Festival,
em atuação desde 2012; o London Web Fest, desde 2013; e o FEW Webfest,
que estreou em 2014.
Desde novembro de 2013, está no ar o sítio argentino FWTV 87,
primeiro canal de WebTV da América Latina, cuja programação é pensada
exclusivamente para Internet, que vem ganhando espaço principalmente
com obras direcionadas a adolescentes. E a disseminação e repercussão das
Webséries no contexto cultural da América Latina, resultou na criação do
BAWebFest (Buenos Aires Web Festival)88, em 2015, primeiro festival
internacional dedicado às Webséries realizado na América do Sul, que
acontece em Buenos Aires, Argentina, sob os auspícios da Universidad Del
Cine e do Centro Cultural Ricardo Rojas. A respeito das especificidades da
Websérie, Martín Lapissonde, diretor do festival, destaca que:
Si pensamos en el soporte en el que habitualmente es consumido este tipo
de contenido, se debe tener en cuenta una composición de cuadro simple,
una iluminación poco contrastada y un sonido muy claro en los diálogos
que se emiten. No importa la cantidad de capítulos que tenga pero sí la
duración de éstos, porque un capítulo corto es rápidamente consumido y
compartido por diferentes redes sociales, generando la viralización y
difusión que la Red ofrece hoy en día. (LAPISSONDE apud SOTO, 2015)
A primeira Websérie argentina, El Mono Mario, estreou em 2000,
sendo seguido por outras pioneiras: Amanda O, El Vagoneta e Plan B.
Atualmente, há universidades argentinas funcionam como incubadoras para
a realização de Webséries nacionais como, por exemplo, a Universidad Tres
de Febrero, onde foram produzidas as Webséries: Eléctrica, Tiempo Libre e
Buscando a X; ou a Universidad Nacional de Quilmes, que produziu a
Websérie Cuatro Cuartos.
87 FWTV: https://www.fwtv.tv/
88 BAWebFest: http://www.bawebfest.com/
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Daemonium: do YouTube para as salas de cinema
Projeto trasmidiático, independente, coletivo e autofinanciado,
Daemonium faz parte de um movimento de ascensão dos gêneros de horror,
fantasia e ficção-científica no audiovisual argentino, que fomentou a
profissionalização dos efeitos especiais e o surgimento de produtoras, como
a Studio Patna e a Rabbid FX. Das quais fazem parte Daniel Casco e Simon
Ratziel idealizadores do projeto que iniciou com as fotos de personagens, que
estrelariam o trailer de um filme que não existiria. Convidado a dirigir esse
trailer, Pablo Parés, da Farsa Produções, propôs que a história desses
personagens fosse contada. Assim, ao invés de um trailer fake, foi filmado o
primeiro capítulo de Daemonium, websérie idealizada como um filme
episódico. Os capítulos eram lançados sempre ao final do ano:
Daemonium: Capítulo 1 – Bauptismo (13min), foi lançado em
dezembro de 2011; Daemonium: Capítulo 2 – La hora cero (23min), foi
estreada em dezembro de 2012; Daemonium: Capítulo 3 – Hanya Shibari
(40min), estreada en em dezembro de 2013, e Daemonium: Capítulo 4 – El
lobo y el mago (23min), estreada em dezembro de 2014.
Os episódios não apresentam uma estrutura formal fixa, possuindo
durações diferentes. E, apesar de estarem intrinsecamente conectados pela
trama e pelos personagens que os perpassam, cada um dos episódios possui
uma identidade narrativa e estética própria, que permitiu inclusive repensar
a estrutura e a sequência narrativa quando de sua remontagem para o
formato longa-metragem.
O projeto durou cinco anos, envolveu mais de trezentas pessoas e
acumulou mais de cinquenta jornadas de rodagem, disponibilizado um
capítulo por ano, na página DaemoniumSaga89 no YouTube, até novembro
de 2015, quando Daemonium: soldado del inframundo foi lançado no Buenos
89 DaemoniumSaga: https://www.youtube.com/user/DaemoniumSaga;
Facebook: https://www.facebook.com/DAEMONIUMSAGA/?fref=ts
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Aires Rojo Sangre, sendo eleito o Melhor Filme do festival pelo voto popular.
E, na edição 2015 do Festival de Mar del Plata, o longa-metragem recebeu o
Prêmio Ventana Sur, Melhor Filme de Panorama Midnight Screening. No
entanto, por uma estratégia comercial, o filme foi lançado na época em que
deveria ser disponibilizado o quinto e último capítulo, que, até então, segue
inédito e os capítulos anteriores só estão disponíveis em links privados.
Daemonium nasceu transmidiaticamente expandindo-se
das fotos que criaram os personagens para os capítulos da série e do comic,
narrativas que foram reconfiguradas pela edição, que alterou a ordem dos
capítulos e inseriu novas cenas para a criação do filme, e que seguem se
expandindo risomaticamente rumo ao videogame e a um jogo de cartas, que
retornará às fotografias originais.
Daemonium: mosaico de citações da cultura pop
A história de Daemonium acontece em um futuro pós-apocalíptico
e distópico, no qual a tecnologia e a magia coexistem e estão intimamente
relacionadas à vida e à morte das pessoas. Nas idas e vindas temporais da
série, o primeiro episódio da saga conta o meio da trama, acompanhamos a
acessão de Razor de um simples mercenário a um déspota poderoso graças
ao pacto que faz com um demônio. No entanto, esse pacto tem um prazo, e
o motor da trama será a busca de Razor por Fulcanelli, o Mago, único capaz
de reverter sua sentença. Enquanto, a esposa de Razor é sequestrada pelos
inimigos do esposo, e ao sentir-se abandonada une-se a seus algozes na busca
por vingança.
Daemonium se configura como um Aleph de gêneros, que combina
sem hierarquia elementos do Cyberpunk, do Anime, de Pulp e do cinema
comercial de ação e de terror, em uma superfície narrativa intertextual que
parece de expansão infinita.
A trama da narrativa remete a uma lista intricada de referências
cinematográficas e televisivas reconfiguradas e entrelaçadas pelos roteiristas
e diretores: ficção científica estadunidense, mangas japoneses, magia e
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demônios da literatura e do cinema de Clive Barker, e muitos tiros. Com
referências que vão desde os filmes de Steven Spielberg, a Mad Max e Kill
Bill, passando pelas séries de TV da década de 1980.
Essas referências foram decisivas na composição estética da
Websérie, que não por acaso nasceu justamente da composição visual e
imagética de seus personagens, absolutamente, norteada pelas memórias
visuais dessas obras.
Sobre a configuração híbrida de gêneros “marginais” em
Daemonium discorrem seus realizadores na apresentação da página da
Websérie:
Durante muchos años, nuestro país solo nos brindó cine de unos pocos
géneros, centrándose en el drama, la comedia y el policial. Dejando afuera
a un segmento de público enorme que, sin opción, se volcó por el cine de
otros países. Pero poco a poco esto comenzó a cambiar, con la aparición
de productoras especializadas en cine de géneros inusuales, como el
terror, la fantasía o la ciencia ficción y empresas que se dedicaron
profesionalmente a la realización de efectos especiales. DAEMONIUM es
el resultado de la asociación de varias de estas productoras, con el objetivo
de realizar una saga de ciencia ficción que eleve el standard de calidad
medio. Un proyecto multimedial que abra las puertas a otros géneros y a
más diversidad de ideas.90
As series de TV foram também a referência decisiva para escolha pela
dublagem da Websérie ao espanhol neutro, emulando a estética das séries
apresentadas na televisão argentina na década de 1980. E para reforçar essa
memória foram contratados dubladores famosos na Argentina, como
Humberto Vélez, Paty Acevedo, René García e Mario Castañeda, cujos
nomes talvez não sejam reconhecidos pela maioria dos espectadores, mas,
com certeza, serão identificadas as vozes de Homer e Lisa Simpson, e as de
Goku e Mc Gyver. Essas vozes familiares, escutadas durante anos na
televisão, vozes que estão no imaginário dos espectadores, que
90
Apresentação da série no site Daemonium Tumblr:
http://daemonium.tumblr.com/
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imediatamente estabelecem a conexão, foram as vozes escolhidas para as
personagens de Daemonium. E, conforme os idealizadores, essa não foi
apenas uma decisão estética, mas também comercial, acreditando que o
espanhol neutro tornaria mais fácil a circulação da Websérie na América
Latina.
Mas, apesar da intricada rede de referências e citações, Daemoinum
não se parece diretamente com nenhuma dessas obras, revelando assim o
sucesso dos processos de transculturação que realiza.
A qualidade narrativa e estética da Websérie foi reconhecida pelo
International Academy of Web Television – AWTV, que, em 2015, a premiou
como a Melhor Série Estrangeira, como os Melhores Efeitos Especiais e como
a Melhor Maquiagem. Assim como o trabalho de Pablo Pares como diretor
da Websérie, premiado no Bilbao Web Fest 2015, Espanha. É Pares quem
define de maneira simples, porém contundente, o objetivo da equipe que se
uniu para realizar Daemonium:
En el cine independiente y en el industrial hay dos ramas bien marcadas:
los que lo hacen sólo por diversión, sin preocuparse mucho por el
resultado, y los que apuntan a obras que trasciendan un poco más.
Nuestro foco está en hacer una película que pueda ser disfrutada los
próximos 20 o 30 años. (PARES apud ZUCARELLI, 2013)
Só o tempo dirá se Daemonium, como Webserie e/ou filme seriado,
deixará um legado para a produção audiovisual argentina e latino-americana.
Considerações finais
Cada vez mais é difícil delimitarmos territórios para as produções
audiovisuais, formatos e plataformas se imbricam e as narrativas deslizam de
um formato a outro de uma plataforma a outra se ramificando
transmidiaticamente. O modo particular como Daemonium foi produzido e
exibido, bem como a forma como foi assistido (na internet e nas salas de
cinema, como Websérie e como longa-metragem), mais do que revelar as
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possibilidades de produção e de consumo audiovisual instauradas por essas
novas tecnologias e plataformas anuncia novas formas de pensar a sociedade.
Pois, como já anunciava Marshall McLuhan em 1964:
“O meio é a mensagem” significa, em termos da era eletrônica, que já se
criou um ambiente totalmente novo. O conteúdo deste novo ambiente é
o velho ambiente mecanizado da era industrial. O novo ambiente
reprocessa o velho tão radicalmente quanto a TV está reprocessando
cinema. (McLUHAN, 1974, p. 11)
Pensando a partir dessa perspectiva mcluhaniana de que o meio é a
mensagem, uma vez que a transformação que esse meio acarreta no ambiente
e a “mudança de cada escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia
introduz nas coisas humanas” (McLUHAN, 1974, p. 22), é mais importante
do que o conteúdo que ele veicula; deveríamos, mais do que analisar o
conteúdo das Webséries, refletir sobre o que essas produções e a forma como
as consumimos, de maneira fugaz, elíptica e móvel, têm a dizer de nossa
sociedade, de nós e da maneira como vivemos.
Referências bibliográficas:
McLUHAN, Marshall. O meio e a mensagem: os meios de comunicação como extensão do
homem. São Paulo: Editora Cultrix, 1974.
HERNÁNDEZ, Paula. Conferencia: Estrategias creativas para el desarrollo de formato s
web de ficción. 2014. Disponível em:
http://riuma.uma.es/xmlui/bitstream/handle/10630/8592/Conferencia%20Paula%20Hern%
C3%A1ndez%20RIUMA.pdf?sequence=1 Acessado em: 25 de mar. de 2016.
SOTO, Ivan. Webseries: breves, ágiles y siempre disponibles. In: Revista de Cultura. Clarín.
Buenos Aires. 25 de mar. 2015. Disponível em:
http://www.revistaenie.clarin.com/escenarios/Webseries-BAWebFest-Breves-agilessiempre-disponibles_0_1316268392.html Acessado em 25 de mar. de 2016.
TURCO, Lucia. Webseries: latelevision sin horarios. Escenario – televisión. Revista de
Cultura N. Clarín. Buenos Aires. 06 de agos. de 2013. Disponível em:
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http://www.revistaenie.clarin.com/escenarios/television/Webseries-TVinternet_0_967703273.html Acessado em: 25 de mar. de 2016.
ZUCARELLI, Stephanie. Furor antecipado por el tercer episódio: “Con Daemonium hicimos
cine pochoclero”. Suplemento NO. Pagina 12. Buenos Aires. 21 de nov. de 2013. Disponível
em: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/no/12-6718-2013-11-21.html
Acessado em: 25 de mar. de 2016.
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CINEMA E ARTES
VISUAIS
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Pautas metodológicas para estudiar el videoclip
desde una perspectiva crítica
Ana María Sedeño Valdellos – Universidad de Málaga
1. Introducción: El videoclip en el panorama audiovisual contemporáneo.
Como formato de referencia en el complejo panorama audiovisual
contemporáneo el videoclip musical se asienta sobre nuevas bases de
creación, más colectiva en relación con su producción procedente del fan y
el usuario empoderado y de difusión, generalizada en el ámbito transmedia.
Si el videoclip fue en los ochenta, el género puntero en la televisión, campo
de prueba de todos los novedosos efectos videográficos de esta década, en la
primera década del siglo XXI se ha consolidado esta idea de
experimentalidad extrema, con la salvedad que se ha desarrollado su
interrelación con otros géneros.
Creemos con Brisset (2011) que la actitud analítica y el sentido
critico son indispensables para la correcta formación humana. Pretendemos
incorporar una serie de conceptos teóricos al análisis del videoclip como
realización publicitaria que sea a su vez una guía en el camino de la
investigación pero también una herramienta didáctica. Como dicen Jacques
Aumont y Michel Marie “habrá análisis de filmes mientras haya enseñantes,
investigadores, animadores, críticos para practicarlos (pero) la historia
estética y formal todavía no ha conseguido integrar los avances de los análisis
fílmicos estructurales” (AUMONT y MARIE, 1990, p. 181). Y ello puede
aplicarse a cualquier formato audiovisual, como fuente para despertar el
interés de los alumnos de comunicación hacia los formatos audiovisuales.
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La imagen se convierte en una herramienta con la que pensar otras
realidades, gracias a su potencial si la pensamos como huella, síntoma,
fantasma, gesto... (DIDI-HUBERMAN, 2009). Estamos convencidos
entonces de la capacidad de análisis epistemológico de la imagen, como bien
defienden por ejemplo el propio Didi-Huberman y el antropólogo Hans
Belting. Nos disponemos a aproximarnos al videoclip desde posiciones
cercanas a paradigmas de pensamiento y reflexión crítica de la imagen.
Este es un objeto de investigación nuevo que necesita de su encuadre
epistemológico, no siempre fácil en este caso: existen algunas dificultades. En
primer lugar, el videoclip musical ha sido abordado por el ámbito académico
desde fechas ciertamente recientes. En segundo lugar, se ha prestado escasa
atención desde el núcleo de la teoría y el análisis audiovisual, debido quizás
a su ubicación como formato intermedia, que se produce en unas
condiciones y se difunde y disfruta en multitud de canales, además de género
que se desarrolla en los intersticios de los lenguajes del cine, la televisión y la
red, junto a todas sus referencias.
De esta forma, la identificación de la materialidad del videoclip se
produce de manera relacional con otros formatos televisivos: si suponemos
que el público posee un mapa de expectativas y usos comunicacionales, cada
formato ocupará en tal mapa un lugar particular, en el que existen vías de
comunicación. Se establece un contrato tácito de producción-consumo entre
creadores y espectadores, una forma práctica y muy elemental, aunque no
simple, de establecer qué es, en este caso, un videoclip y qué no.
Creemos que el videoclip puede ser un componente esencial para el
análisis del imaginario de la sociedad contemporánea, cuya estructura del
imaginario es, según Martín Barbero y Muñoz (1992, p. 35) generada como
mezcla de "los espacios y objetos que “puestos en imágenes” producen
atmósferas y climas dramáticos identificadores o proyectores; los tiempos
referidos o eludidos en la producción de diferentes verosímiles: el del pasado
remoto, el sin tiempo; y las oposiciones simbolizadoras entre lo noble y lo
vulgar, lo moderno y lo tradicional, lo rural y lo urbano, lo masculino y lo
femenino".
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El carácter social del videoclip lo hace fluctuante y dinámico en tanto
que admite la posibilidad de modificación o evolución diacrónica de díficil
seguimiento. Algunos teóricos de la comunicación han descrito su carácter
híbrido de toda la historia del cine mediante el concepto de intergénero:
Es el género más intrinsicamente posmoderno. Intergénero: mezcla de
música, imagen y texto. Transtemporal: reúne melodías e imágenes de
varias épocas, cita despreocupadamente hechos fuera de contexto; retorna
lo que habían hecho Magritte y Duchamp, pero para públicos masivos.
Algunos trabajos aprovechan la versatilidad del video para engendrar
obras breves, aunque densas y sistemáticas: Fotoromanza, de Antonioni,
Thriller de John Landis, All Night Long de Bob Rafelson, por ejemplo.
Pero en la mayoría de los casos toda acción es dada en fragmentos, no pide
que nos concentremos, que busquemos una continuidad. No hay historia
de la cual hablar. Ni siquiera importa la historia del arte o de los medios;
se saquean imágenes de todas partes, en cualquier orden. (CANCLINI,
1990, p. 286.)
Si bien Oliveira de Araujo (2009) ha dirigido ya su enfoque a la reflexión
sobre el videoclip como tecnología social, al modo en que Foucault hablaba
de tecnología del yo (FOUCAULT, 1990), entendiendo como tal el
entramado de elementos que los individuos se dan a sí mismos para
configurarse en sujetos éticos, creemos que este enfoque de análisis crítico
del vídeo musical no se agota aquí.
Creemos que el análisis crítico de los textos es necesario incluso cuando se
trata de productos efímeros y procedentes de la industria musical.
Entendemos como Didi-Huberman, con su concepto de imagen-síntoma
que llega desde su acepción freudiana, que en la imagen se articulan
significaciones complejas, escondidas pero actualizadas al momento
contemporáneo y sus particularidades. Si la imagen trae desde un tiempo
anacrónico algo que había quedado en el inconsciente, la imagen se vuelve
incómoda en la representación: "La imagen es un síntoma de un tiempo
cronológico que rescata algo que está en el inconsciente de la historia"
(diDIDI-HUBERMAN, 2006, 64)
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2. Reflexión sobre el videoclip y su estudio desde una perspectiva crítica.
Los videoclips son portadores de mensajes y valores que van más allá
de un contenido literal y conducen a lo simbólico y la creación de
imaginarios: el videoclip se enmarca plenamente en la concepción
espectáculo- mercancía dominante en la sociedad contemporánea de la que
hablaba Débord: “El mundo al mismo tiempo presente y ausente que el
espectáculo deja ver es el mundo de la mercancía dominando todo lo vivido”
(DEBORD 1995: aforismo 37).
De esta manera, igual que el packaging o el aspecto visual del
producto, los expertos en marketing, los AR (art and repertory) y los
productoras, construyen la imagen pública de los intérpretes, a través de su
puesta en escena, mezcla de gestualidad, vestuario, look y estética visual.
A comienzos de los años noventa, Goodwin (1992) ya señaló cómo
la industria musical persigue la creación de una narrativa en torno a todo
artista (solista o grupo). La suma de una serie de técnicas y medios diversos
en torno al producto musical y sus creadores constituyen un texto-estrella.
Se trata de un concepto genérico diferenciador que supone una mezcla de
ficción, narrativa personal e identidad. En este contexto, el videoclip ha
tenido un papel importante como creador de sentido, junto a elementos
como la portada del disco, puesta en escena del concierto, entrevistas… a su
vez, este conjunto de ideas e imaginario en torno al artista influye sobre la
recepción del discurso de cada videoclip o conjunto de videoclips de un
artista, en un bucle continuo de creación de sentido. Este mecanismo permite
que convivan más de una identidad del artista dentro del mismo texto: la
importancia que algunos artistas como Madonna o Bowie han depositado en
el videoclip como gestor de su personalidad frente a sus públicos, puede dar
una idea de ello.
Existen otros factores de definición del texto-estrella, como los
provenientes de los géneros musicales y sus universos de puesta en escena. El
rap, el rock, el heavy, todos los géneros musicales básicos de la música
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popular buscan una puesta en escena básica y tienden a consolidarla a través
de los diferentes “textos” con los que se visibiliza y proporciona a través de
diferentes medios. Por ello parece necesario iniciarse en el análisis y la
reflexión en dos variables en todo clip: el cuerpo y el rostro.
El cuerpo se ha convertido en un componente esencial en los
estudios de ciencias sociales, que se han ocupado en controlar sus múltiples
facetas y potencialidades para el análisis social y cultural. El cuerpo es un
objeto polisémico para las ciencias humanas.
El cuerpo es la base materialista, un campo metodológico para
investigaciones sobre política, historia e identidad. El cuerpo es
simultáneamente evidencia y testimonio material del proceso de
metamorfosis aquí incorporado. Esa metamorfosis es el resultado de
innovaciones radicales en la ciencia, en la medicina y en la tecnología.
(Kauffman, 1997: 13)
Como apunta Comolli, los textos son espectáculos mediales en tanto
el ambiente social se incorpora en el cuerpo de los individuos que son
mediados (Documento y espectáculo, 2014).
También desde posicionamientos fenomenológicos se ha
conformado una metodología sólida para el estudio de la existencia humana
y la experiencia física del cuerpo a través de términos como tactilidad o
embodiment: la encarnación del cuerpo en el mundo es un motivo de análisis
contemporáneo fructífero en la actual sociología de la imagen y antropología
visual. También ha sido abordado desde la filosofía del arte. Belting describe
el cuerpo como “un concepto general que se define constantemente según la
situación histórica y social concreta” (BELTING, 2011). El cuerpo es aquello
que nos permite interactuar con el entorno pero este sólo se concretiza a
través de la imagen, que está en cambio permanente.
Por su lado, Katherine Hayles en How we became postuman: Virtual
bodies in cybernetics, Literature and informatics, habla de virtualidad
encarnada (embodied virtuality (HAYLES, 1999, p. 15), para situar cómo el
ambiente audiovisual y cultural hipermediatizado contemporáneo se
encuentra integrado incluso corporalmente, tanto en la construcción del
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cuerpo de artistas, músicos, actores y demás personajes mediáticos, como en
el de los receptores.
Como apunta Juan Anselmo Leguizamón, "el videoclip moviliza
cuerpos, corporiza el imaginario social y el imaginario del cuerpo”.
(LEGUIZAMÓN, 1998, p. 55). Recientemente, el trabajo de investigación
“Videoclip y cuerpo: el entre-lugar de los corpus mutantes” (OLIVEIRA DE
ARAUJO, 2009) explora las implicaciones del cuerpo-videoclip, analizando
mediante categorías del cuerpo mutante, el monstruo… las posibilidades de
mutación de la identidad del artista a través de conceptos procedentes de las
más famosas investigaciones de Dona Haraway, Judith Butler y
comparándolos con las prácticas artísticas del performance y el body art de
Orlan, Stelarc, etc.
Por su lado, Vernallis (2004) realiza una revisión de cómo el
vestuario, las localizaciones, la iluminación, la composición y la planificación
y demás códigos visuales son planteados por el director para apoyar el look
del artista o banda y su encuadre dentro del género audiovisual determinado.
"Para vender la banda y la canción, un vídeo muy a menudo emplaza
al cantante en el frente y en el centro. (...) El cantante permanece
perpetuamente en movimiento girando a veces para dirigirse a nosotros, a
veces hacia las figuras del fondo. Esta continuidad del movimiento trabaja
para mantener el flujo de la imagen contra la música". (Vernallis, 2004).
El videoclip permite que el individuo contemporáneo desarrolle una
mirada a las formas normativas de identidad y reconocimiento social (a
través de su comparación con los artistas musicales): "disemina arquetipos
de conducta, maneras de comportarse, vestirse, peinarse. Y por supuesto, hay
un elemento que juega un papel muy importante en medio a todo eso: el
cuerpo; el del cantante –o de los músicos de determinada formación
musical–, pero también el del público, cuerpo mediador de la fruición
musical". (OLIVEIRA DE ARAUJO, 2009, p. 27).
En el videoclip se construye cierta idea de autenticidad del grupo o
músico a través del videoclip, como aparece en las ideas de Simon Frith, que
ha estudiado el tema desde una aproximación de la sociología de la música
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popular.
La implicación en la emocionalidad que supone el cuerpo en
movimiento nos permite ver en algunos clips una forma emergente, híbrido
entre lo que es un videoclip performance (basado en la actuación del
cantante) y uno conceptual... La ventaja para esta parte conceptual se
resuelve en la generación del cuerpo como discurso rítmico emocional,
posibilitando la creación de significación visual, no ligada a una narrativa
sino a un componente kinético de interrelación corporal: Pavis, afirma que
el bailarín atrae el cuerpo del espectador en su totalidad. (…). La percepción
del bailarín está ligada a la imagen corporal del observador y es ante todo
motriz y kinestésica (2002, p. 137). En Saint Claude de Christine and the
Queens91 se responde a un concepto de autenticidad a través del gusto por la
transformación del cuerpo en movimiento a través de plug-ins de distorsión
de imagen y el juego de su levitación final. En videoclips como este o Nuit 17
a 52, se traduce un interés por el tema del doble, la confusión de géneros y
cuerpos (la cantante asume todos los roles de género y dramáticos). En este
caso, se repite la superación de las limitaciones físicas corporales y la
construcción de cuerpo humano superior, que ya decíamos (Sedeño, 2002)
que era una característica del videoclip musical desde sus inicios:
multiplicación, superación de la coherencia espacio temporal, vuelo o
levitación, resistencia física... todos son efectos que el videoclip ha utilizado
para hacer que el cantante aparezca como un ser superior o excepcional.
En cuanto al segundo de nuestros conceptos clave, se trata de
establecer las formas de encuadrar el rostro del artista (especialmente del
frontman y/o cantante). Como apuntaba ya Goodwin (1992) "Las exigencias
de la discográfica incluyen la necesidad de gran cantidad de primeros planos;
el artista puede desarrollar motivos que se repiten a través de su trabajo (un
estilo visual)". Este estilo visual parece ser necesario para un culto a la
personalidad, fundada en la individualidad y en una mostración del rostro
en la explicitación de sus rasgos.
91
https://www.youtube.com/watch?v=ZzFYmz2lfT4
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En este gusto por el primer plano como intensificación del rostro se
localiza una doble componente, por un lado, el gusto por la singularidad y la
adjetivación del producto publicitado, la dimensión física única facial. Por
otro, su inserción en un plural singular que vincula el rostro humano con su
pertenencia a la especie. En palabras de Didi-Huberman (2014): "el aspecto
humano en el espacio histórico donde este se despliega siempre de manera
diferente”. Según el autor es algo completamente diferente a lo opuesto entre
identidad y alteridad, es un cruce entre lo que en un rostro aparece como
genérico y sus rasgos particulares.
Para Deleuze “el efecto-primer plano hace perder al rostro sus
aspectos individuante, socializante, comunicante, para conferirle la
impersonalidad del afecto” (AUMONT, 1998, p. 103). Deleuze habla de
gestus, fórmula que trata de explicar la capacidad del cine moderno (imagentiempo) de operar suertes de desmenuzamiento, disolución o fragmentación
sobre el cuerpo. En La imagen-tiempo el autor dibuja buena parte del cine
francés de los ochenta en torno al vínculo cine-cuerpo-pensamiento, donde
“las categorías de la vida son precisamente las actitudes del cuerpo, sus
posturas” (DELEUZE, 1987, pp. 251-295). Como han descrito Jacques
Aumont (1998) y Gilles Deleuze (1987), el primer plano es utilizado en su
función específica mucho después de su origen (ya en el cine primitivo se
empleaba pero no con su potencial de liberación de la expresión) y el cuerpo
completo se transforma por su efecto, deviniendo en medium para exponer
los afectos. Tanto Balàzs como Bonitzer o Eisenstein se han posicionado en
torno al rostro y el primer plano. Si para los dos primeros supone una unidad
orgánica (el primer plano es la “condición técnica del arte cinematográfico”
en tanto que permite que con el rostro se planteen todos los problemas del
film), para el segundo supone desmembramiento y desconexión.
El primer plano del cantante o frontman resulta una fuente de
significación en tanto contiene su propia retórica y aspectos de significación.
Por su escasa duración temporal, los planos en este tamaño vienen editados,
con frecuencia, con planos de alta fragmentación -muy breves-, que dejan en
cuadro gestos muy concretos de los cantantes. Esta intensificación del gesto
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es propia del cine mudo y experimentos gestuales de prácticas escénicas de
las segundas vanguardias provenientes como el happening, el performance o
el arte de acción...
Siguiendo esta tradición el videoclip performance retomó un modelo
de presentación artística dirigida directamente al espectador donde se
construye visualmente un icono musical. El cuerpo en el clip establece a veces
una suerte de multiplicación. Este efecto no parece constituir una novedad
específica, si se conoce el detalle específico de su existencia desde Bohemian
Rhapsody de Queen (1975). En Not the same92 de Tanlines, el duo formado
por Jesse Cohen y Eric Emm van apareciendo consecutivamente con
diferente vestuario e instrumentos a lo largo de un plano secuencia con ritmo
en el tempo musical de la canción.
La tendencia del videoclip a usar la presencia física del frontman
como recurso conceptual o descriptivo de la situación emocional de la
canción se puede encontrar en ese gusto por el primer plano que se observa
por encarar la implicación y honestidad de la mirada a cámara (al espectador)
del intérprete vocal: en Nothing compares to you de Sinead O´connor la
fórmula tuvo éxito y desde entonces se ha convertido en un estándar del
videoclip de cantante femenina en solitario.
En videoclips como Close-up de Zendaya93 la exposición física frontal
en todo tipo de planos editados bajo las características de modificación de
parámetros musicales de la canción permite una sincronía minimalista con
los cambios visuales de plano y ritmo visual.
El videoclip musical del tema No me canso94 se estructura sobre una
hibridación de performance de la cantante sobre un fondo poblado por
multitud de personajes que representan corporalmente las opciones sexuales
o modalides del amor en la actualidad: parejas heterosexuales, homosexuales
(gays y lesbianas), de diferente edad... se combinan para aportar detalles al
concepto de la canción y su letra.
92
93
94
https://www.youtube.com/watch?t=141&v=UlmRLktGPII
https://www.youtube.com/watch?time_continue=73&v=LkWJkPqvqmE
https://www.youtube.com/watch?v=L5JcZAo2VBA
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3. Conclusiones
Como formato pionero de la estética contemporánea, el videoclip
puede emplearse como campo desde el que reflexionar sobre sus debates
centrales. El cuerpo, su relación con la imagen, y su función en la creación
del sujeto contemporáneo o como aspecto desde el que problematizar el
universo social actual son algunas de las facetas que, desde un punto de vista
social, podrían abordarse.
Por un lado, sería interesante afrontar a través del videoclip como
creación industrial de la música contemporánea y dirigir la mirada sobre las
formas en que se construye y despliega el cuerpo de cantantes y músicos y
cómo se consigue establecer una autenticidad en los mensajes simbólicos de
la industria musical.
En la actualidad, el aparato crítico de la fenomenología, la
antropología y la posthumanismo permiten abordar cómo el panorama
cultural contemporáneo se encarna en el cuerpo del ser humano, en su
modificación, en sus posibilidades de generar narrativa.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Aproximación a la narrativa, lenguaje y
estética del cineminuto
Carlos Ignacio Trioni Bellone - Universidade Nacional de Córdoba
Introducción
El volumen, calidad y éxito de los cineminutos realizados en el país
y el mundo durante los últimos años conduce a pensar en la relevancia
adquirida por el formato dentro del ecosistema mediático actual. Museos,
galerías de arte, tradicionales festivales de cine, la televisión y, sobre todo, las
redes sociales están dirigiendo su atención a los mismos ya sea por lo
atractivo de la premisa (narraciones audiovisuales de sesenta segundos de
duración), la originalidad de sus relatos, el uso creativo de los recursos
estéticos o la facilidad de acceso a los mismos. Paralelamente, ya sea por su
practicidad o asequibilidad, pero fundamentalmente por la imperiosa
necesidad de una rigurosa planificación, el cineminuto ha sido revalorizado
en el ámbito académico como una importante herramienta pedagógica para
la enseñanza en el campo audiovisual.
Dicho contexto obliga necesariamente a considerarlo como un
formato con una interesante potencialidad y productividad. Pero sabemos
poco y nada acerca del mismo. Evidentemente un cineminuto, videominuto
o filminuto es mucho más que una película de sesenta segundos de duración.
En principio se percibe como una pieza que presta especial atención sobre
ciertos elementos de la narrativa, el lenguaje y la estética cinematográfica que
permiten resolver mejor la premisa de contar historias en poco tiempo. La
anécdota, el encuadre que privilegia la elipsis, el fuera de campo visual y la
acusmática conjugados con el montaje expresivo son algunos de los recursos
que le permiten configurar un entramado audiovisual propio, a su vez
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influenciado por las condiciones y usos de Internet y las nuevas tecnologías,
alternativas de producción, distribución y exhibición más acordes al formato
y su público potencial.
La observación y el análisis de la vasta producción surgida en el
último tiempo confrontada con la teoría clásica del cine (intentando
determinar de qué forma dichos conceptos atraviesan el planteo, se adaptan
o no a las exigencias del género y presentan relación alguna con los diferentes
lenguajes multimedia) ha sido la metodología escogida para recopilar,
sistematizar y dar a conocer ciertos conocimientos y planteos en torno al
estudio del formato en cuestión: la elaboración de una definición de
cineminuto como aporte al proceso de construcción del objeto de estudio y
la enumeración y descripción de las características narrativas, técnicas,
estéticas y de realización fundamentales del mismo han sido hasta el
momento los avances más importantes del presente trabajo de investigación
sobre la que considero es una de las tendencias más innovadoras en relación
a contar historias audiovisuales.
En busca de una definición
En principio, se puede determinar que el cineminuto es una forma
particular de cortometraje que guarda ciertas similitudes narrativas,
estéticas, técnicas y de realización con algunos otros formatos tales como la
publicidad audiovisual, el videoclip y/o el tráiler cinematográfico.
Indudablemente, el abismo de tiempo y contenido entre uno y otros es
considerable y ninguna de las conceptualizaciones preexistentes se ocupa de
ir más allá de los sesenta segundos como elemento determinante. Por ello, es
necesario encontrar y/o elaborar una definición más acotada, apropiada o
específica.
Al igual de lo que sucede con el cortometraje, una definición de
cineminuto debe contemplar mucho más que una cuestión numérica. El
tiempo acotado no se trata de un objetivo en sí mismo ni de una restricción,
sino más bien de un desprendimiento lógico de aquel contenido que se quiere
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transmitir. Es el propio mensaje el que demanda e impone una duración
determinada y si para resolver su planteo insume entre uno y sesenta
segundos, podemos decir que estamos frente a un cineminuto. Pero no
cualquier tipo de argumento es factible de ser tratado en este formato. Un
cineminuto plantea una acción concreta, una situación determinada, una
anécdota aislada muchas veces sin consecuencias o transformaciones
trascendentales en los personajes y/o su mundo, y que obligadamente
necesita de la concisión para poder revelarse y no perder efectividad. Se trata
de un estallido, un suceso aplastado entre un principio y un final, atrapado
entre un antes y un después.
El cineminuto utiliza muchas de las herramientas o recursos de otros
formatos más fuertemente desarrollados pero a la búsqueda de resultados
diferentes, novedosos o poco explorados. La selección y significación de
forma precisa y exacta de cada una de las partes constitutivas de la obra
(encuadres, duración de los planos, movimientos de cámara, piezas
escenográficas o de vestuario, iluminación, presencia o ausencia de líneas de
diálogo, ruido o música, etc.) es quizás el proceso determinante de todo
cineminuto, influyendo además en cada una de las distintas fases creativas.
Resumiendo: el cineminuto se trata de una forma audiovisual ultrabreve, una narración de una duración máxima de sesenta segundos, que
plantea una situación concreta la cual generalmente no provoca
transformaciones trascendentales en el universo propio del relato, y que se
plasma en pantalla a partir de la toma precisa de decisiones narrativas y
estructurales y la selección específica de cada uno de los elementos (visuales
y sonoros) que componen la obra.
Estrategias y estructuras narrativas
Al igual que en toda obra audiovisual, el desarrollo del guion es el
punto de partida para la creación de cualquier micro-relato. El factor tiempo,
tal como ha sido señalado, incide considerablemente tanto en la elección del
argumento como en la forma en que se lo trabaja. En ese sentido, el
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cineminuto aplica, potencia e incluso lleva al límite de sus posibilidades la
mayoría de las estructuras y estrategias narrativas utilizadas en el
cortometraje. Los conceptos vertidos por Irene Ickowicz (2008) en relación
a dicho tema son fundamentales, paradigmáticos y una referencia obligada
para la siguiente descripción.
En primera instancia, podemos señalar que todos y cada uno de los
elementos constitutivos de un cineminuto, que responden obligadamente a
un mismo tema, trabajan básicamente en función del climax. El desarrollo
no es tan importante o trascendente como lo es la resolución, cuya
importancia se funda en la resignificación que le otorga a la acción o el suceso
previamente visto y oído; generalmente descubriendo algo que se mantenía
oculto o sorprendiendo ante una acción imprevista. El cineminuto Game
(GROSEVA, 2006) presenta a un niño relatando desde la ventana de su
habitación un partido de fútbol disputado por un grupo de pares en la calle.
La situación adquiere otro valor al revelarse su invalidez hacia el final del
metraje. Como vemos en este ejemplo, el sometimiento o subordinación de
las partes tiene como objetivo alcanzar una concentración de información
innegable que se traduce en la intensidad necesaria para que el relato logre
cierta efectividad, más aun teniendo en cuenta el escaso tiempo disponible.
Este aspecto, distintivo y característico del formato, en ocasiones también
puede resultar contraproducente, transformando al cineminuto en un
artificio, un vehículo efectista para provocar un susto, generar una sorpresa
o simplemente contar un chiste.
En segundo lugar se encuentran aquellas consideraciones referidas a los
personajes. Indudablemente, el escaso tiempo disponible no permite enseñar
demasiados matices de los mismos. Debido a ello, los personajes
intervinientes en un cineminuto responden a estructuras de modelización
clásicas o tipo (e incluso también de estereotipo): presentan rasgos físicos,
psíquicos y/o morales conocidos de antemano por los espectadores lo que
permite un fácil y rápido reconocimiento. En Chop Chop (BLADES, 2012) el
protagonista es un valiente príncipe, en A new prayer (Pene, 2010) Jesucristo
y en Náufrago (MELER, 2010) un hombre perdido en una isla desierta. Por
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otra parte, la transformación de los personajes es casi inexistente. En pantalla
no presenciamos más que una simple experiencia o un hecho aislado de su
vida cotidiana. Por ende no se distinguen cambios significativos en sus
entidades o mundos de referencia. Esto, que podría derivar en el desinterés
por parte del espectador respecto a la obra (como seguramente ocurriría en
una estructura de largometraje o incluso de cortometraje), se compensa a
partir de las características que hacen del cineminuto algo único: la anécdota
se presenta en un tiempo muy breve y el clímax imprime una fuerza
particular al conjunto de la narración permitiendo que el relato nunca pierda
impulso, aún ante la ausencia de cambios en los personajes. Asimismo, la
cantidad interviniente es otro dato importante a destacar y tener en cuenta.
La regla del cineminuto parece ser la presencia de sólo uno o dos
protagonistas, que obligadamente se relacionan entre sí a partir de un solo
hecho, suceso o evento concreto que indefectiblemente los involucra.
Por último es preciso referirse a las estructuras narrativas utilizadas
en los micro-relatos audiovisuales. Si bien es casi imposible despegarse
totalmente del clasicismo aristotélico, por lo general el cineminuto incluye
un solo punto de acción que da inicio a la narración y que además conduce a
la conclusión del relato. Es casi imposible hacer una diferenciación exacta o
definir la proporción de los diferentes actos (introducción, desarrollo y
desenlace) ya que los mismos se presentan de forma difuminada, todos al
mismo tiempo o individualmente, generalmente privilegiando el tercero. El
cineminuto Loop (MORENO, 2011) es un ejemplo perfecto de ello: el relato
comienza directamente con un personaje que ha sufrido un grave accidente.
Las bases de un lenguaje propio: de la publicidad al cineminuto
La publicidad televisiva, el video clip y el avance cinematográfico son
referencias obligadas del cineminuto. No sólo se nutre de sus estructuras y
estrategias narrativas, también toma prestados varios elementos del lenguaje
o herramientas técnicas y estéticas de la puesta en escena y puesta de cámara
de dichos formatos.
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La condensación, que parece ser la regla general en torno al tema, no
sólo se aplica a la narración, también a la composición. La síntesis y
superposición de elementos (visuales, sonoros o gráficos) en el encuadre
permiten destacar o agrupar una mayor cantidad de elementos. Los planos
cortos y las tomas breves combinadas a partir de una edición acelerada y un
montaje rítmico, también contribuyen a ello. Hamburgz (SCHMELZER,
2011), mediante la predominancia de primeros planos, tomas ultra-breves y
un montaje subordinado a la música, plantea una estética propia del video
clip. Por su parte, Fun time (ANDRIANOV, 2006) explora sin complejos el
recorte de la duración de las tomas que lo componen. La mirada a cámara,
otra estrategia propia de la publicidad, también ha sido explorada y
aprovechada al máximo por el cineminuto. No man's land (CHAMBERS,
2011) y Good Bye Mr. Nice Guy (ILIESIU, 2010) hacen un excelente uso de
este recurso, sin el cual no se alcanzaría la eficacia del relato.
Otro aspecto a destacar en torno a dichos procesos de realización es
el referente a la utilización de material previo. La técnica del found footage95,
nacida con la publicidad misma y tan explorada por el cine en la actualidad,
también ha sido aplicada por muchos de los realizadores de cineminutos.
Archivos fílmicos y videográficos de distinta índole han sido apropiados,
reciclados, reutilizados y resignificados con enormes dosis de creatividad, ya
sea a partir del código del documental, la ficción o el cine experimental. Dan's
L'ombre (MATHIEU, 2011) toma como materia prima las películas del cine
negro clásico; The days before that (BAKER, 2011) a partir de imágenes de
archivo y una estructura de falso documental construye un relato de ciencia
ficción; y Elvira en el rio Loro (VILLAFAÑE, 2009) trabaja la técnica desde el
género documental.
El tiempo fílmico en el cineminuto
95 El un tipo de práctica utilizada para elaborar películas mediante la técnica del collage y a partir de
material previamente utilizado en otros filmes.
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Marcel Martin (2002) formula que el tiempo es el factor encargado
de diseñar, de un modo fundamental y concluyente, el plan de todo relato
cinematográfico. Teniendo en cuenta la importancia y trascendencia que el
cineminuto le adjudica al mismo, creo necesario detenerse en las formas,
usos y relaciones en torno al manejo de las distintas estructuras temporales.
Los conceptos previamente desarrollados parecerían indicar que a
los relatos breves obligadamente le corresponde la utilización del tiempo
condensado. La supresión de los tiempos débiles o inútiles (aquellos que no
participan de forma directa en la definición y el progreso de la acción
dramática), con el objetivo de evidenciar una continuidad causal y lineal,
produce una notable densificación en el relato; característica a la que he
referido innumerable cantidad de veces como un objetivo central de los
relatos breves. En relación a dicha estructura, entra en juego el concepto de
elipsis. "El cineasta, capaz de mostrar todo y conociendo el formidable
coeficiente de realidad que impregna a todo lo que aparece en la pantalla,
puede recurrir a la alusión y hacerse comprender en media lengua"
(MARTIN, 2002, p.83). Su vocación no es tanto suprimir los momentos
perdidos como sugerir lo sólido y lo pleno, dejando fuera de representación
aquello que la inteligencia del espectador puede suplir sin dificultad. Todo lo
que se muestra en pantalla ha de ser significativo, mucho más en el
cineminuto. Por ende, la utilización de la elipsis, en especial aquellas
motivadas por razones dramáticas se constituye como una de las principales
herramientas con la que cuenta todo realizador que desea embarcarse en la
difícil tarea de contar más en menos tiempo.
Pero el cineminuto también puede alcanzar sus metas, sacar
provecho o ver beneficiada su eficiencia a partir de otras estructuras
temporales. Estructuras diferentes que necesariamente no se orientan a la
condensación, aunque ello parezca contradecir las bases fundantes del
formato. Los relatos ultra-breves también hacen un uso especial del llamado
tiempo fiel, una forma de organizar el relato que trata de respetar el
transcurso del tiempo en su totalidad, representando en pantalla una acción
cuya duración es idéntica a la del film mismo. De difícil aplicación en el
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largometraje (al menos en su totalidad), la concisión concerniente a los
sesenta segundos de duración y las condiciones argumentales propias del
formato (tal como señalamos anteriormente, por lo general el cineminuto
cuenta una anécdota simple, una acción concreta, un momento particular)
han permitido su uso y práctica constante. Y en ocasiones lo hace a partir del
plano secuencia, toma de larga duración que instaura una continuidad
espacio-temporal en la cual la duración es determinante. Tal es el caso de
Quick (PAPAI, 2008) o I'll get the ice-creams (GROVES, 2012).
En resumen, el tiempo no puede ni debe constituir un objetivo en sí
mismo. La forma en que se lo emplea es quizás mucho más determinante y
trascendente para entender tanto al cine en general como al cineminuto en
particular.
El espacio fílmico en el cineminuto
La naturaleza del espacio en el cine, según palabras de Noel Burch
(1970), necesariamente debe considerarse a partir de dos facetas: la que
comprende al campo y la que está fuera de campo. La primera incluye todo
lo que el ojo distingue en pantalla y que habitualmente se percibe como la
única parte visible de un espacio mucho más amplio que sin lugar a dudas
existe a su alrededor. La segunda es más compleja de determinar. Es un
espacio invisible que prolonga aquello visible y se estructura a partir de seis
segmentos. Los confines inmediatos de los cuatro primeros están
determinados por los bordes del encuadre, configurándose como
proyecciones imaginarias de los mismos. El quinto se refiere al espacio
ubicado detrás de la cámara; y el último a todo aquello que se encuentra
detrás del decorado. El fuera de campo, en todas sus dimensiones, está ligado
esencialmente al campo, puesto que solo existe en función de éste.
Muchas veces la importancia de un espacio fuera de campo iguala o
supera a la de un espacio incluido en el campo. Pues puede aportar
información novedosa y valiosa para el desarrollo del relato de un modo
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totalmente diferente. Un realizador puede valerse de dicha dimensión a
partir de las siguientes formas:
Entradas y salidas al campo: cada vez que un personaje y/u
objeto ingresa o egresa, las partes invisibles del espacio se
materializan para el espectador. Fun time y Quick proponen un
uso dramático del espacio fuera de campo a partir de esta forma.
Miradas en off: es una de las diversas interpelaciones directas
del fuera de campo a partir de un elemento incluido en el
campo. En ocasiones, la mirada de un personaje, en primer
plano o plano cercano y dirigida hacia otro ubicado en el fuera
de campo, es tan intensa que el otro adquiere tanta o más
importancia que aquel que está encuadrado. Por ejemplo, en
Good Mr. Nice Guy el personaje femenino mira y habla hacia el
espacio fuera de campo, otorgándole una importancia crucial,
la cual se potencia al descubrir la naturaleza de su interlocutor.
Personajes o elementos del campo: si una parte de sus cuerpos
se halla fuera del encuadre, automáticamente la existencia de un
fuera de campo que contiene sus partes no visibles queda
implícita. Pero, cabe destacar que el fuera de campo tiene una
existencia episódica o fluctuante a lo largo de cualquier filme. Y
es la estructuración de dicho flujo de información lo que puede
forjarse como un instrumento poderoso en manos del
realizador. Por ejemplo, Game, No man's land y Quick utilizan
el encuadre ocultador con fines dramáticos. Y el
descubrimiento del espacio fuera de campo sirve para resolver
la trama y potenciar el clímax.
Por último, es importante destacar la importancia del campo vacío.
Cuanto más se prolonga en el tiempo, el fuera de campo toma la delantera
sobre el espacio incluido en el encuadre, dando lugar al nacimiento de una
tensión particular, tal como ocurre en Dark Valley o The Black Hole
(SANSOM, 2009). Los realizadores de cineminutos pueden servirse de esta
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dialéctica con fines estructurales, aprovechando aquellos elementos que
quedan fuera y pueden ser sugeridos.
Pero la escena fílmica no se define únicamente por los rasgos
visuales, por aquello que se ve o deja de verse. La dimensión sonora es muy
amplia y también juega un rol importantísimo a partir de su capacidad de
evocación espacial. Va más allá de la recreación de los ambientes que los
incluye y se materializa principalmente por medio del plano sonoro y la
acusmática. El primero equivale a distancia aparente y su función es dar la
impresión de lejanía o de proximidad a la fuente. La segunda se refiere a
aquello que se escucha sin ver la causa. Michel Chion (1993) plantea que la
noción fundamental de la escritura audiovisual se apoya precisamente en la
oposición entre lo acusmático y lo visualizado. Y con ello hace referencia
nada más y nada menos que al fuera de campo, concepto previamente
desarrollado desde la dimensión visual. En relación al mismo, la espacialidad
sonora puede estructurarse en:
Sonido in: es aquel sonido cuya fuente aparece en imagen y
pertenece a la realidad que ésta evoca.
Sonido fuera de campo: es el sonido cuya fuente es invisible
temporal o definitivamente. Por ejemplo, en Loop el ruido de
un teléfono descolgado, que no vemos en pantalla, es utilizado
con fines dramáticos; en Quick escuchamos los gemidos de una
pareja, lo que sugiere algo que nunca se ve en pantalla; y en No
man's land el ruido fuera de campo de la horca permite
completar aquello que se ve en pantalla.
Sonido off: es el sonido cuya fuente supuesta, además de ausente
en la imagen, es no diegética. O sea, está situada en un tiempo y
un espacio ajenos a la situación directamente evocada.
Al igual que lo que ocurre en el espectro visual, muchas veces un
sonido fuera de campo o sonido off (ya sea voz, música, ruido o silencio)
puede superar en importancia o jerarquía a los sonidos in o ambiente.
Básicamente porque saben desprenderse de aquello que se ve en pantalla,
aportando información diferente, complementaria o de gran peso para la
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narración. Los hacedores de cineminutos también pueden valerse de ello
para el diseño de una puesta en escena compleja y completa, que permita
incluir más elementos o información valiosa para el relato.
Cineminuto y montaje
El montaje es el fundamento más específico del lenguaje audiovisual.
Según palabras de Marcel Martin, "es la organización de los planos de un film
en ciertas condiciones de orden y duración" (MARTIN, 2002, p.144). Su
aspecto más sencillo e inmediato resulta de la reunión de planos según una
secuencia lógica o cronológica con vistas a relatar una historia. Pero esa no
es su única función. El montaje puede crear movimiento, ritmo o generar
una idea a partir del encuentro de dos imágenes, dejando de ser un medio
para convertirse en un fin en sí mismo.
Los caracteres generales de la imagen fílmica se relacionan en forma
dialéctica con el espectador en un complejo afectivo e intelectual. El
significado que adquieren en pantalla depende tanto de la actividad mental
del espectador como de la voluntad creadora del realizador. La relativa
libertad interpretativa recae en el hecho de que toda realidad, acontecimiento
o gesto es un signo. Asimismo, el significado de una imagen depende en gran
medida de su confrontación con las contiguas. En definitiva, todo lo que la
pantalla muestra tiene un sentido y un segundo puede aflorar a partir de la
reflexión, pues toda imagen implica más de lo que explica. La mayoría de las
películas son interpretables en varios niveles dependiendo del grado de
sensibilidad, imaginación y cultura que tenga el espectador. Su mérito es
sugerir más allá de la inmediatez dramática de una acción. El empleo de los
símbolos y metáforas en el cine consiste precisamente en recurrir a imágenes
capaces de sugerir más de lo que la sola percepción del contenido aparente
puede brindar.
Marcel Martin (2002) define la metáfora como la yuxtaposición de
dos imágenes mediante el montaje, cuya confrontación necesariamente debe
producir un golpe psicológico en la mente del espectador con el fin de
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facilitar la percepción y la asimilación de la idea que el realizador desea
expresar. La primera de estas imágenes suele ser un elemento de acción; pero
la segunda generalmente constituye un hecho cinematográfico sin relación
alguna con dicha actuación y su valor está dado en relación con la imagen
precedente. Loop propone un interesante ejemplo de metáfora. Luego de que
el personaje resbala y cae, vemos que el teléfono también lo hace,
generándose un paralelismo entre ambas acciones.
Por el contrario, el autor se refiere a símbolo cuando el significado
reside en la imagen misma. Se trata de planos o escenas que además de su
significado directo se hallan cubiertas de un valor mucho más profundo y
amplio. Un símbolo es mejor cuando menos visible es desde un principio y
cuanto menos fabricado y artificial parece. Su proceso normal consiste en
hacer brotar un segundo significado a partir del contenido inmediato y
evidente. Quick plantea un claro ejemplo de la utilización de símbolos
visuales. En pantalla vemos a dos niños que por medio del juego con
muñecos representan la acción que sucede fuera de campo. En How to use
time flexibly (KRUSE, 2010) vemos distintas acciones visuales combinadas
con elementos sonoros (el ruido del reloj) o inscripciones que subrayan el
sentido de la acción (las didascalias que ironizan sobre los distintos usos del
tiempo).
El montaje puede irrumpir en la mente del espectador y hacer más
vívida la idea expresada por el realizador y traducida por la confrontación de
los planos. Las distintas prácticas y técnicas mediante las que se disponen y
relacionan cada uno de los elementos intervinientes en un filme permiten
sistematizarlo en torno a categorías. Marcel Martín (2002) propone en
primer lugar la de montaje rítmico, que es la forma primaria, elemental y
técnica del montaje. Dicha clasificación propone un aspecto métrico que
concierne a la longitud de las tomas, determinada por el grado de interés
psicológico que suscita su contenido. El ritmo cinematográfico se define
como la coincidencia entre la duración de cada plano y los movimientos de
atención que suscita y satisface. Por lo general, los cineminutos recurren a las
tomas cortas (tal como ocurre en la publicidad o el video clip) en detrimento
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de las largas, consiguiendo un efecto rápido, nervioso, dinámico y/o
fácilmente trágico, tal como ocurre en Hamburgz o Fun time. El ritmo
acelerado imprime un sentido de velocidad y creciente tensión, de
acercamiento al nudo dramático, mientras que un ritmo lento, signado por
tomas largas, conduce a una impresión de aplacamiento, languidez u
ociosidad. Aunque ello no es privativo. Como hemos señalado
anteriormente, los micro-relatos recurren en ocasiones a la utilización de un
solo plano o plano secuencia, cuya duración equivale a la de todo el metraje.
También es importante destacar que un cambio brusco de ritmo puede crear
vigorosos efectos sorpresa, artificio al que los micro-relatos acuden con
frecuencia.
La segunda categoría corresponde al montaje ideológico, el cual
designa las relaciones entre tomas destinadas a comunicar una idea, un
sentimiento o un punto de vista más o menos preciso y general. El montaje
cumple una función intelectual propiamente dicha al crear o manifestar
relaciones entre acontecimientos, objetos o personajes. Afinagao da
interioridade (BERLINER, 2008) y Masturbagao (GRAZIOSI, 2005) utilizan
este tipo de montaje. En el primer caso, el desorden en la organización de los
planos remarca la dificultad que tiene el personaje para expresarse. En el
segundo, el recorrido hacia el clímax narrativo se corresponde con el de la
acción mostrada en pantalla.
Por último, el autor propone la categoría de montaje narrativo como
aquel que tiene por objetivo relatar una acción, desarrollar una serie de
acontecimientos. A veces se refiere a relaciones entre toma y toma, pero en
especial a aquellas entre escena y escena o secuencia y secuencia, lo cual nos
conduce a considerar al filme como una totalidad. Se diferencian cuatro tipos
de montaje narrativo, a los cuales se reducen las diversas clases de narración:
Montaje lineal: designa la organización de las acciones de una
película siguiendo un orden lógico y cronológico. Es la forma
de montaje utilizada con más frecuencia por el cineminuto.
Montaje invertido: es aquel que altera el orden cronológico en
favor de una temporalidad subjetiva y eminentemente
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dramática, que salta del pasado para volver al presente. Debido
a su naturaleza, el formato del cineminuto no es propenso a
adoptarlo con naturalidad o facilidad, aunque existen algunos
casos, como Fun time.
Montaje alternado: es el montaje basado en la
contemporaneidad estricta de dos (o varias) acciones
yuxtapuestas que, por otra parte, terminan reuniéndose al final
de la película. Su combinación con un montaje acelerado es
capaz de expresar con notable vigor la clase de unanimidad y
fusión dramática que se puede producir entre dos personajes
dentro del mismo curso fatal de acontecimientos. Debido a la
concisión del tiempo y sus características argumentales, es una
forma poco usual en el cineminuto aunque en Garbage
(KOVACEVICH, 2010) se percibe la utilización de este tipo de
montaje.
Montaje paralelo: es aquel en el que dos acciones se hacen
simultáneas mediante la intercalación para que de su
confrontación surja un significado. En una estructura narrativa
brevísima, como lo es la del cineminuto, dicha confrontación
puede presentarse como una metáfora, generalmente en el
cierre del relato, creando un efecto sorpresa y disparando una
reflexión en el espectador, inquietud que puede perdurar más
allá de la proyección.
La presentación o articulación de distintos elementos visuales y
sonoros no específicos al cine (como la iluminación, el vestuario, el decorado,
el color o el desempeño actoral) también pueden aportar significados
distintos a los explicitados en la imagen. Estas herramientas del lenguaje
audiovisual permiten exponer contenidos, informaciones, mensajes o ideas
de forma simultánea a la acción dramática. Servirse de ellas puede resultar en
un mejor desarrollo de la obra fílmica, enriqueciéndola aún más. Y el
cineminuto no puede ignorar esto. Al aprovecharse de las metáforas, los
símbolos y los distintos usos del montaje, los realizadores pueden aportar
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multiplicidad de significados a las imágenes y sonidos que presentan en
pantalla, favoreciendo una vez más la constante de contar más en menos
tiempo.
Reflexiones finales
Tal como señalan las ideas expuestas en el presente trabajo, el
formato del cineminuto propone un uso particular de las distintas formas del
lenguaje audiovisual, evidenciando un entramado narrativo, técnico y
estético propio.
Teniendo en cuenta cierto vacío bibliográfico sobre el tema, los
primeros conceptos surgidos a partir de este análisis resultan de gran
importancia para futuras teorizaciones; aun cuando los mismos han de
redefinirse en un futuro cercano debido a la propia naturaleza evolutiva del
formato y del medio de comunicación en el que se encuentra inmerso.
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GRAZIOSI, G. (Director). Masturbacáo [Cinta cinematográfica] Brasil: 2005.
GROSEVA, K. (Directora). Game [Cinta cinematográfica] Bulgaria: 2006.
GROVES, A. (Director). Hl get the ice creams [Cinta cinematográfica] Inglaterra: 2012.
ILIESIU, A. (Directora). Good bye Mr. Nice Guy [Cinta cinematográfica] Rumania: 2010.
KOVACEVICH, D. (Director). Garbage [Cinta cinematográfica] Croacia: 2010.
KRUSE, E. (Director). How to use time flexibly [Cinta cinematográfica] Alemania: 2010.
MATHIEU, F. (Director). Dan's L'ombre [Cinta cinematográfica] Francia: 2011.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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MELER, J. (Director). Náufrago [Cinta cinematográfica] España: 2010.
MORENO, A. (Director). Loop [Cinta cinematográfica] España: 2011.
PAPAI, P. (Director). Quick [Cinta cinematográfica] Hungría: 2008.
PENE, D. (Director). A new prayer [Cinta cinematográfica] Rumania: 2010.
SANSOM, P. (Director). The black hole [Cinta cinematográfica] Inglaterra: 2009.
SCHMELZER, J. (Director). Hamburgz [Cinta cinematográfica] Estados Unidos: 2011.
VILLAFAÑE, J. (Director). Elvira en el Río Loro [Cinta cinematográfica] Argentina: 2009.
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A estética transversal entre o cinema de Lars
Von Trier e a gravura de Dürer em Melancolia
Cristina Susigan – Universidade Presbiteriana Mackenzie
Introdução
O termo melancolia se origina do grego melagcholía (mélas, negro,
e cholé, bílis). A melancolia nasceu como uma doença, um estado mórbido
caracterizado pelo medo e a depressão, tal como o médico grego Hipócrates
(406 a 377 aC), considerado o "pai da melancolia", fundou a teoria dos quatro
humores corporais. Hipócrates assim diagnosticava a melancolia: uma
afecção sem febre, na qual o espírito triste permanece, sem razão, fixado em
uma mesma idéia, constantemente abatido. E cujos sintomas eram citados:
perda de sono, falta de apetite, desejo de morte, falta de entusiasmo, etc. A
melancolia, segundo Hipócrates, teria influência de Saturno, que seria o
responsável por escurecer o humor e a alma do indivíduo, provocando nele
a secreção excessiva de bílis negra, fria e seca. Contudo, não há,
concretamente, vestígios dessa substância até hoje, nos organismos do ser
humano. A teoria dos humores é um marco histórico, pois a ciência biológica
começa a se sobrepor ante a mitologia através do início de uma observação
clínica mais contundente.
Um momento central na história da melancolia deu-se com
Aristóteles, em seu problema XXX ao questionar:
Por que todos os homens de exceção, no que concerne à filosofia, à
ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos, e
alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem
(...)? (PIGEAUD, 1998, p. 78). Tal texto é a fagulha inicial da associação entre
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melancolia e genialidade, que vai gerar inúmeras imagens de artistas e
pensadores como homens de exceção por conta da melancolia que os
constitui. Na proposição acima, Aristóteles considera que todo o homem
excepcional é melancólico, universalizando seu objeto de estudo e
interrogando qual seria a derivação desse propósito, ou seja, por que isso
acontece?
Diferentemente de Hipócrates, não aborda o temperamento
melancólico, a princípio, mas as doenças que acometem os melancólicos. No
caso de Hércules, referindo-se aos seus excessos de crises epilépticas, úlceras,
fúria contra os filhos, etc. o comportamento é conseqüência de suas dores
físicas -úlceras, feridas e de situações mentais - loucura, cólera.
Aristóteles apresenta ainda outros exemplos e, em qualquer um
deles, esses homens, considerados excepcionais, apresentam-se com
comportamentos que a medicina antiga julga relacionados às doenças do
humor melancólico. O filósofo faz a seguinte diferenciação: seres humanos
normais podem ser arrebatados pela melancolia, porém ao gênio existe uma
predisposição natural, ou a doença advém da natureza (physis) congênita da
própria bílis. Tal qual o vinho que possui a característica de atuar sobre a
mente, a própria bílis negra do gênio atuaria de forma correspondente
naturalmente.
Nessa medida, os gregos, notadamente Aristóteles, interferem e
influenciam a medicina apresentando uma relação indissociável entre corpo,
mente (psichê) e alma. Dessa forma, a melancolia, a partir de Aristóteles,
começa a ser melhor compreendida como uma doença relacionada ao
desequilíbrio não mais de fluidos corporais, mas de alma e corpo.
Marsilio Ficcino, filósofo italiano, considerava a melancolia por
acidente, como uma manifestação do anseio humano com relação à
eternidade. Ele reforça a idéia de Aristóteles de que todo gênio é melancólico
por essência, naturalmente (physis). Já na Inglaterra, a melancolia foi
compreendida como influência de "anjos maus" que se "intrometiam" nos
humores dos sensibilizados, porém os mesmos eram destituídos de qualquer
culpa por isso.
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Segundo Nietzsche, lembra-nos Deleuze, artistas, assim como
filósofos, tem uma saúde frágil:
porque viram na vida algo de grande demais para qualquer um, de grande
demais para eles, [trazem em si então] a marca discreta da morte. Mas esse
algo é também a fonte ou o fôlego que os faz viver através das doenças do
vivido. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 224)
Iconologia: a gravura de Albrecht Dürer
O conceito de iconologia pode tornar-se chave para encaminhar a
análise imagética da gravura de Albretch Dürer, Melancolia I, uma vez que
permite "passear" pela interligação conjunta das imagens visuais e não visuais
que compõem as sociedades. Para W. J. Mitchell (2009), a iconologia é uma
crítica ideológica a partir da noção de imagem, que toma seu objeto como
imagem e observa as diversas interligações visuais e não visuais. A iconologia
permite a problematização da cultura visual, e insere o cinema numa
dinâmica da história das representações e suas sucessivas crises.
A noção de iconologia remete à tradição dos estudos da história da
arte alemã, em especial, aquela desenvolvida por Aby Warburg, cuja
percepção ampliada de uma "ciência da imagem" já fazia o que os atuais
estudos visuais almejam. Alguns historiadores (BURUCUA, 2003)
sustentam que Warburg pensada na sempre interessante discussão do
significado da "volta da vida ao antigo" (das Nachleben der Antike), ou
sobrevivências das imagens.
Se tranpormos o pensamento de Leopoldo Waizbort, na
apresentação de seu livro "Histórias de Fantasmas para Gente Grande", o
filme de Lars Von Trier, Melancholia é uma "viajante", uma imagem
sobrevivente da gravura de Durer, ou seja, segundo Waizlort:
O objeto (uma tela, uma gravura, etc.) permanece irradiando sentido, que
pode ser recebido, negligenciado ou perdido (...); para Warburg, as
imagens são tanto objetos materiais como formas de pensamento, modos
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de conceberm de pensar, de assimilar, de formular (um pensar com
imagens). (WAIZLORT, 2015, p. 19)
Isso implica compreender que Von Trier faz uma analogia da
gravura sem ao menos colocá-la em cena, como acontece com outras telas.
Neste caso transpõe para o filme, através de seus personagens, as figuras
simbólicas da gravura: o anjo, o cão, utilizando-se da teoria de Warburg: as
imagens no filme adquirem dimensões simbólicas, impregnadas de
sentidos, marcadas por transformações, que ganham novo sentido. Para
Warburg também era importante os estudos da astrologia. No filme, o
personagem John é um homem ligado as ciências, estuda os movimentos
astrais, - neste caso a astronomia - a aproximação do planeta Melancholia da
terra. Desde muito cedo, olhar os astros foi uma forma de o homem perceber
e determinar a posição do mundo e no cosmos, e se orientar. Se na gravura
de Dürer vislumbramos o astro rei, o sol, no filme, vemos num primeiro
momento a referência à um planeta vermelho, Antares, na constelação de
Escorpião, distante da Terra, que posteriormente vai se aproximando: o
planeta Melancholia. E assim como na gravura de Dürer, todo o
conhecimento e tecnologia representados pelos instrumentos - compasso,
serrote, pregos, ampulheta, a esfera perfeita, o poliedro, a tábua dos números
- vai ser inútil, o telescópio, o automóvel, a limusine, o carrinho de golf, o
computador, o conforto e a segurança do próprio castelo, também serão.
No entanto, "melancolia" torna-se uma palavra de duplo sentido
dentro do filme: liga-se ao planeta e a ciência que estuda os astros, mas
também ao sentido melancólico que afeta os personagens, e neste sentido,
mais uma vez a relação de sobrevivência das imagens, ressaltada por Waizort
na citação acima: a sobrevivência de pensamentos. O agenciamento de
tradições aparentemente estranhas umas às outras em contextos históricos
diversos é um dos traços da tradição de Aby Warburg e de estudiosos a ele
relacionados.
Albrecht Dürer (1471 - 1528), séc XV, foi entre outras coisas, pintor
e ilustrador alemão. Humberto Eco considera sua obra Melancolia I um
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emblema da época, na qual a melancolia se encontra com a geometria e
adquire alma, enquanto a melancolia se apropria do racionalismo pleno,
fazendo imergir a beleza melancólica.
Melancolia I, Albrecht Dürer, c. 1514 - gravura: 31 x 26 cm
Na obra de Dürer, vemos em primeiro plano, um anjo, melancólico,
entediado, costas curvadas, mão no queixo, cabeça inclinada, olhar perdido,
em direção ao chão, de "asas caídas", à espera de algo, de mudança.
O escritor brasileiro Moacir Scliar faz a seguinte análise da obra de
Dürer:
A Melancolia, na gravura, é representada como uma mulher de asas
potencialmente capaz de altos voos intelectuais. Mas ela não está voando.
Está sentada imóvel, na clássica posição dos melancólicos, com o rosto
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apoiado em uma das mãos (...) a cabeça lhe pesa, cheia que está de
mórbidas fantasias. Os músculos da nuca, que deveriam manter erguida
aquela cabeça, de há muito cansaram. No ansioso esses músculos estão
sempre tensos; é uma tensão arcaica, a mesma que faz o herbívoro erguer
a cabeça, alarmado quando fareja um carnívoro. Na Melancholia I, às
voltas com demônios interiores, a ameaça externa, real ou imaginária, não
importa muito. Permanece imóvel como se lhe faltasse ânimo para
movimentar-se ou (... ) a figura encontra-se em intenso transe
visionário(...).Sua fronte está coroada com plantas aquáticas destinadas a
combater a secura que, como vimos, é uma das características dos
melancólicos. (SCLIAR, 2003, p. 8285)
Junto à Melancolia, um cão adormecido. Dizia-se então que o
organismo do cão é dominado pelo baço (...). Na gravura ainda há uma
profusão de objetos usados no cotidiano, em vários ofícios e na ciência.: uma
balança, uma ampulheta, uma sineta, martelo, serrote, pregos.
Aparentemente eles não estão ali para serem usados; ao contrário, sugerem
imobilidade - a mesma imobilidade que transparece na própria Melancolia e
no sono do cão. O tempo está congelado: os dois compartimentos da
ampulheta contém a mesma quantidade de areia. Uma tábua numérica cujos
números somados dão sempre o mesmo resultado, na horizontal ou na
vertical - uma alusão à geometria, muito valorizada então como fonte de
conhecimento não apenas teórico. As chaves na cintura e a bolsa no chão chave significa poder e a bolsa, riqueza. Estas são anotações do próprio
Dürer.
Ela tem tudo isso, mas falta disposição para ir em busca de novos
espaços. A bolsa remete à avareza característica tradicionalmente atribuída
aos melancólicos. Aliás, a Melancolia se apresenta com o punho cerrado, o
PUGILLUM CLAUSUM que até hoje é um símbolo clássico da avareza.
Walter Benjamin chama a atenção para a pedra. Dura e fria, é um símbolo da
melancolia e da loucura também. No final da Idade Média havia um
procedimento para tratar os loucos: fazia-se uma incisão no crânio do doente
'abrindo-lhe' a cabeça. Depois era lhe apresentar uma pedra supostamente
dali retirada, a pedra 'causadora da loucura'.
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Walter Benjamin, em seu estudo sobre o drama barroco, tece e
agrega considerações importantes à teoria da melancolia, referindo-se a
noções antigas e medievais, tais como: Aristóteles, planeta Saturno, deus
Cronos e à bile negra. O filósofo associa a melancolia à noção de perda e de
desinteresse pela vida. Segundo Benjamin, a melancolia pode relacionar-se
historicamente como reação ao acúmulo de catástrofes, a um estado geral de
perda. A história, sob a ótica Benjaminiana, é marcada pela humilhação e
morte de inúmeros seres humanos e dessa forma só pode ser avaliada
melancolicamente.
Para o filósofo alemão existe uma relação entre a postura melancólica
e o pensamento contemplativo. A bílis negra seria a responsável pela
motivação do espírito conduzindo-o a contemplação. O anjo contempla o
passado e, horrorizado com o que vê, torna-se melancólico, sobre o prisma
Benjaminiano, em Dürer, os objetos e utensílios estão dispersos no chão, sem
serventia. A contemplação melancólica não se restringe ao passado. Existe
uma relação direta inegável entre passado e presente, pois, o tempo que
escreve a história é segundo Benjamin, em Origem do Drama Barroco, tese
XIV, "saturado de ágoras".
Albrecht Dürer teria representado os quatro humores hipocráticos
em sua obra os Quatro Apóstolos, em mil quinhentos e vinte e seis, na qual
cada humorteria sua equivalência a um determinado apóstolo: São João, o
melancólico; São Pedro, o sanguineo; São Paulo, o colérico e São Marcos, o
fleumático.
O devir na Melancholia de Lars Von Trier
Em Melancholia (2011), o diretor dinamarquês Lars von Trier
constrói uma repositivação da melancolia retomando a associação entre
tristeza aguda e gênio criativo, numa representação cinematográfica
atualizada do mal do século. Tragédia dividida em um prólogo e duas partes,
a obra declara sua filiação à estética romântica já na sua apresentação
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introdutória, na qual os personagens estão representados em planos fixos,
numa evocação à pintura, notadamente a do século XIX.
Nesses pequenos "quadros", os tons frequentes do neo-classicismo
romântico francês assim como os aspectos narrativos estão fortemente
enfatizados96. Os personagens estão presos num espaço - o cenário de um
ambiente natural - que se degrada: pássaros caem mortos enquanto o olhar
vazio da protagonista procura no do espectador a confirmação de seu estado
de impotência. Aqui, toda ação será inútil.
Os Caçadores na Neve, Pieter Brueguel, o Velho, c. 1565 - óleo sobre painel: 117 x 162 cm,
Kunsthistorisches Museum, Viena
O trágico será anunciado com mais vigor no plano que mostra a
pintura Caçadores na neve (Pietter Bruegel, 1565) convertendo-se em cinza.
Em slow motion e ao som do Préludio de Tristão e Isolda, de Wagner, mais
96 Tais quadros, que mostram diferentes representações das protagonistas Justine e Claire, acompanhadas
pela criança, são variações livres de um paradigma pictórico no qual o tema da melancolia está associado
à figura de anjos.
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que introduzir, o prólogo resume a narrativa. Todos os elementos dramáticos
que a comporão aí estão apontados, ainda que não linearmente: o casamento
- símbolo máximo de uma sociedade em decadência cujos rituais de
renovação estão esvaziados (que serão representados pelas imagens
geométricas de Kazimir Malevich); o caos -insetos que voam para trás e a
dupla sombra dos arbustos; a impossibilidade de fuga - Claire, que afunda no
terreno de golfe abraçada ao filho, e Justine, em cujas pernas prendem-se
amarras que a impedem de caminhar. O pequeno Leo, filho de Claire,
afiando um graveto no meio da floresta, o possível anjo da pintura de gravura
de Lucas Cranach, o Velho, mais uma referência, um devir, uma imagem que
volta a ter sua força, uma resignificação que transpõe o tempo e o espaço. E
a catástrofe final, inevitável.
Melancholy, Lucas Cranach, o Velho, c. 1528 - óleo sobre painel: 119,4 x 83,2 cm Columbus Museum of
Art, Ohio
Mostrada do interior da biblioteca, a imagem do início do choque do
Melancolia contra a terra na paisagem longínqua. Além de remeter à
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aproximação do fim do mundo, a uma sensação de inutilidade, indiferença,
de falta de sentido, tais como os objetos que cercam o anjo de Dürer,
metaforicamente, é uma alegoria à influência de Saturno sobre os
melancólicos e alude ao planeta que também se anuncia na Melancolia I de
Dürer.
Seguida de um plano no qual Justine, vestida de noiva, "jaz" numa
espécie de ataúde natural traçado pelo leito de um rio. Inspirado no quadro
A morte de Ofélia (1852) - representação do personagem de Hamlet feita
pelo pintor inglês John Everett Millais -, o plano sublinha o aspecto trágico e
reitera a associação entre natureza e fatalidade97, afogada, à semelhança da
Ofélia desiludida, melancólica, suicida.
Ofélia, John Everett Millais, cerca de 1851 - óleo sobre tela: 76,2 x 111,8 cm Tate Britain, Londres
Ao mesmo tempo trás uma Ofélia moderna que, de certo modo,
também se suicida ao entregar-se à depressão-acedia-melancolia-spleenmorteemvida. Sua imagem radiante do início, vai se desfazendo, apagando
97 Lembremos que, na peça de Shakespeare, Ofélia é encontrada morta por afogamento.
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aos poucos a maquiagem, desmanchando o cabelo, rasgando o véu, tirando
o vestido que, de lindo, passa a ser um enorme estorvo que a impede de
caminhar. Um vestido que também se assemelha ao vestido do anjo na
gravura de Dürer.Quem renasce é outra Justine,serena, segura e generosa
como um anjo da morte que segura nossa mão nos instantes finais, que nos
abriga em mágicas cavernas de gravetos. Justine na forma da sabedoria de
Saturno.
O filme narra a vida de duas irmãs protagonistas: Justine e Claire. O
filme se divide em duas partes que levam os nomes de ambas,
respectivamente. No início do filme, Justine - que pode ser associada ao cão
da gravura de Dürer -aparece extremamente feliz com seu noivo Michael em
uma limosine, em direção à festa do seu casamento que está sendo realizada
na mansão de sua irmã Claire. Nesta primeira parte do filme, através da festa
do casamento, Lars Von Trier apresenta não apenas todo o espaço no qual a
ação do filme inteiro irá se realizar, bem como todos os personagens e seus
dramas. Justine, uma mulher aparentemente feliz, amorosa com seu noivo,
durante a festa, começa a demonstrar traços de "perturbação mental",
melancolia, pontuados a partir do materno e, a posteriori, com as quais a
irmã-mãe Claire acredita-se capaz de lidar.
Justine é a primeira pessoa a se sentir influenciada pelo planeta
Melancholia que se aproxima e seu comportamento se modifica
constantemente, especialmente, quando está ao ar livre, no lado exterior da
mansão, quando tende à contemplação. Ela sente medo, ela sabe sobre algo
extraordinário, tenta conversar com seus pais, em vão. Sua aparente
fraqueza, sua melancolia, é sua sensibilidade e vai também se tornando sua
fortaleza.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Oito Retângulos Vermelhos, Kazimir Malevitch, c. 1915 - óleo sobre tela: 80 x 62 cm Stedelijk Museum,
Amsterdam
Composição Suprematita, Avião Voando, Kazimir Malevich, c. 1915 - óleo sobre tela: 58 x 49 cm MoMa,
Nova York
Após um determinado diálogo entre as duas irmãs, Justine sente o
impulso de trocar as páginas dos livros de arte expostos nas prateleiras de
uma cômoda da casa, com obras geométricas, suprematistas, abstrações
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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geométricas ordenadas, claras, de rítmo dinâmico e progressivo de Malevich
(representando um mundo ordenado, perfeito e estruturado) por obras já
citadas como: Brueghel - Os caçadores da Neve, Millais - Ofélia, e a
introdução de Davi e Golias de Caravaggio (uma possível alusão a mãe,
Gaby, que durante a festa, faz um discurso devastador. Ela é uma mulher
dominadora, castradora, que metaforicamente cortaria a cabeça de Justine.
A partir daí, Justine inicia lentamente um processo melancólico. Já nada mais
importa):
David com a cabeça de Golias, Caravaggio, c.1610 - óleo sobre tela: 125 x 100 cm Galeria Borghese,
Florença
A cocanha de Brueghel, que faz referência a um lugar imaginário
onde havia fartura inacabável até o fastio. Tudo era comestível: as árvores e
as cercas do lugar eram feitas de bolos e pães. E as pessoas comiam tanto que
acabavam prostradas, acometidas de uma 'acedia' imobilizante. Tudo isso,
Brueghel representou magnificamente no seu quadro. E a escolha dele pelo
diretor do filme, é bastante feliz se o compararmos à festa do casamento e,
mais ainda, à e um detalhe do tríptico de Os Jardins das Delícias Terrenas,
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de Jeronymmus Bosch, uma sociedade de luxo e consumo da Europa atual,
cuja economia já começa a dar sinais de saturação e declínio:
A Cocanha ou Cocagne, Pieter de Brueguel, c. 1567 - óleo sobre painel: 52 x 78 cm Alte Pinakothel,
Munique
Os Jardins das Delícias Terrenas, Jeronymmus Bosch, c. 1504, óleo sobre madeira: 220 x 389 Museu
Nacional do Prado, Madrid
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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No meio de tantas figuras inquietantes, há um pequeno ser humano,
bem no centro, assumindo a pose clássica da melancolia. Assim como
Justine, que vai se tornando cada vez mais melancólica no meio da fartura e
de todas aquelas 'delícias terrenas'.
Detalhe do tríptico de Bosch
Claire, a partir de então, demonstra sintomas do comportamento
melancólico contemplativo. John, o marido de Claire, munido da ciência e o
dinheiro, ao perceber que seu conhecimento e posses não servem para nada
diante do planeta Melancolia, decide se matar (ou seja, vê-se inutilizado
como os instrumentos da gravura de Dürer). Em paralelo, a melancólica
Justine vai aprofundando sua soturna quietude, em relação de
correspondência com o planeta mortal que se aproxima, banhando-se na sua
influência (um pouco como o olhar da mulher que descansa a mão na
gravura). Ela não teme, pois não tem nada a perder. A mulher aparentemente
forte, a mãe, controlada, no decorrer do filme, vai se mostrando cada vez
mais frágil e incapaz de lidar com o fim, ela pode ser associada ao anjo de
cabelos longos da gravura de Dürer. Para ela, a melancolia é tão acidental
como o acidente do Melancholia com a terra, e, através dela, sentimos a
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
inutilidade dos objetos, do dinheiro, ante ao fim trágico. Seu filho, Leo,
simboliza a ingenuidade, a inocência; como não entende o que está
acontecendo, a ignorância evita seu sofrimento e o mantém forte até o fim.
Sobrevivências da imagem: considerações finais
É neste momento particular, de descoberta de uma permanência de
certos valores expressivos, capazes de sobreviverem e superarem os seus
referentes históricocronológicos, que se funda parte integrante dos
princípios que dão origem ao sistema de construção de história/memória
introduzido por Warburg na modernidade. Existe, segundo o autor, uma
espécie de vida póstuma das imagens, que permite reconhecer as fórmulas
expressivas do passado nas formas imagéticas do presente através de uma
vida em movimento inscrita na memória da humanidade, que ecoa
complexas relações que perturbam ainda como fantasmas, como propõe
George Didi-Huberman (2002). De acordo com esta noção, cada imagem
comporta, pois, uma vida passada, que está activa no presente e lida com os
seus próprios fantasmas.
É curioso notar que Lars von Trier não tenha escolhido a gravura
Melencolia I, de Albrecht Dürer, que é a representação mais discutida na
história da arte sobre a bile negra, para a cena no escritório. Na gravura,
vemos uma mulher que descansa a cabeça sobre a mão, como se estivesse
diante de um problema sem solução, e para o qual seus instrumentos
parecem não servir. As interpretações dessa obra são inúmeras, destinadas a
se propagarem ao infinito, pois trata-se uma cifra visível do invisível, para as
quais as palavras parecem nunca bastar.
Na concepção warburguiana de história, é precisamente por isto que
o passado não estará nunca concluído e emergirá, ainda que
involuntariamente, nas realizações do presente. Neste sentido, foi enquanto
estruturas sintomáticas que George Didi-Huberman (2002) definiu as
Nachleben. Estas existem no pensamento de Warburg enquanto imagens
simbólicas que, na relação que promovem entre o passado e o presente,
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
quebram o continuum da história, pelo menos da história contada de forma
evolutiva ou sequencial. A História da Arte, segundo esta acepção
warburguiana, é encarada nos termos de uma memória de imagens que
regressam constantemente como sintomas, apelando a uma psicologia
histórica da expressão humana. Segundo Warburg, a cultura seria um
processo de sobrevivência - de Nachleben - isto é, de transmissão, recepção
e polarização.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, W. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo, Brasiliense, 1984
BERLINCK, L. C. Melancolia: Rastros de dor e de perda. São Paulo: Editora Humanitas,
2008.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O que é a filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1992. DIDIHUBERMAN, G. Imagens apesar de tudo. Cachopo. KKYM, 2012. ECO, H. Historia da
beleza. São Paulo: Editora Record, 2012.
HIPPOCRATES. Corpus Hippocraticus, I-V. Harvard University Press, Cambridge, 1995.
MITCHELL, W.J.T. Teoría de la Imagen. Madrid: Akal, 2009.
PIGEAUD, J. O homem de gênio e a melancolia. Rio de Janeiro, Lacerda Editora, 1998
SCLIAR, M. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003
WARBURG, A. El Renascimiento del Paganismo Alianza Editorial, 1999. Referências
Filmográficas:
Melancolia. Direção: Lars von Trier. Zentropa Entertainments, 2011. 1 DVD (130 min),
NTSC, color. Título Original: Melancholia.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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VideoHQescultura: Imagem-Tempo e Visão
Táctil
Fábio Purper Machado – UFG
Rosa Maria Berardo – UFG
A videoHQescultura
Entre as possibilidades de criação oriundas de um trabalhar nos
limites entre disciplinas institucionalizadas, esta pesquisa se foca em
movimentos entre o vídeo, a escultura e a história em quadrinhos (HQ). Este
texto aborda, a partir daí, a criação de narrativas audiovisuais aqui chamadas
videoHQesculturas, noção que compreende sequências não fixas envolvendo
certos procedimentos de criação: a elaboração de roteiros, a modelagem de
esculturas e de elementos estéticos de HQ, e captações e edição audiovisuais.
Junto a detalhamentos destes processos, estão a seguir algumas relações suas
com conceitos como a imagem-tempo de Gilles Deleuze e a visão táctil de
José Val Del Omar.
Modelar visões tácteis
A filmagem de uma escultura já não é mais uma escultura, ela não
tem como representá-la ou substituí-la. Partindo-se de um fazer manual,
tridimensional, táctil, ocorre ao se manusear o vídeo digital um movimento
em direção a um domínio imaterial, de imagens bidimensionais numéricas.
Na videoHQescultura essa passagem ocorre a partir de esculturas
estruturadas em ferro e papel e revestidas por papietagem (papel colado,
técnica de construção que possibilita massa reduzida e textura rugosa). Que
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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rumos tomam essas texturas, essa expressividade, essa tridimensionalidade,
ao habitarem o domínio do vídeo?
Imagem da videoHQescultura “A Quem” (2015, 5min14s. Fábio Purper)
Tratamos aqui de esculturas criadas já no intuito de se tornarem
atores, personagens e objetos de narrativas audiovisuais, servindo sua textura
tanto para uma expressividade desejada quanto em função de sua
transposição para a linguagem do vídeo, momento em que o visual deve ser
inundado pelo táctil. As captações de vídeo digital circundando estas
esculturas por diferentes ângulos (alguns conforme roteiros, outros mais
livremente) enfatizam sua tridimensionalidade e exploram possibilidades
narrativas de diferentes enquadramentos, planos e movimentos de câmera e
luz.
É recorrente entre as cenas que compõem algumas das narrativas
desta pesquisa uma gestualidade que alude à oratória, ao discursar, à
eloquência. Isso se dá tanto na modelagem das esculturas quanto em suas
filmagens, feitas no intuito de valorizar essa impressão através de
enquadramentos em ângulos inferiores. Também conhecida como contra
mergulho ou contra-plongée, esta posição de câmera mostra o personagem
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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de baixo para cima, aumentando seu tamanho devido à perspectiva e
atribuindo a ele uma sensação de poder ou força (MARTIN, 2005).
Tanto a luz ambiente quanto a proporcionada por luminárias, focos,
lanternas e mesmo um monitor de vídeo (reproduzindo luzes pulsantes de
relâmpagos) incidem sobre as esculturas nessas tomadas de vídeo, a fim de
valorizar sua tridimensionalidade e textura, e também de contribuir para
uma atmosfera narrativa.
Essa relação com as luzes teve em vista uma relação com a Teoria da
Visão Táctil, do cineasta espanhol José Val Del Omar (1904-1982), que lida
com a valorização, no vídeo, da substância e temperatura vital de corpos
tridimensionais, através do trabalho com luzes em relação a eles. No curtametragem “Fuego en Castilla (Tactilvisión del páramo del espanto)” (1960),
referencial para este trabalho, Val Del Omar explora por movimentos de
câmera a tridimensionalidade de esculturas do século XVI, e banha suas
superfícies com luzes pulsantes e desenhadas em padrões geométricos,
acrescentando novo impacto narrativo a suas materialidades.
Uma linguagem cinematográfica peculiar foi estabelecida por Val
Del Omar. Nela o estímulo visual evoca o táctil, e em “Fuego em Castilla” a
região espanhola de Castilla cede à linguagem do vídeo seus elementos
arquitetônicos e esculturas vinculadas a narrativas religiosas. Em texto
publicado posteriormente à produção, o autor define sua obra como um
“ensaio sonâmbulo de TactilVisión sobre as esculturas religiosas do francês
Juan de Juni e do espanhol Alonso de Berruguete, em um cinema que cruza
de Ocidente a Oriente, da fuga ao êxtase” (1961).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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José Val del Omar. Imagens de “Fuego en Castilla (Tactilvisión del páramo del espanto)” (1960,
17min51s). Fonte: <www.valdelomar.com>
É uma linguagem composta de luzes pulsantes sobre objetos
filmados, por vezes em movimentos de câmera que também demonstram sua
tridimensionalidade. Banhadas por essas luzes, as esculturas se apresentam,
então, em diferentes ângulos, com materialidades acrescidas de um possível
impacto narrativo que seria ausente, por exemplo, em registros técnicos das
mesmas obras.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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A arte de Val Del Omar passou a ser um referencial para esta
pesquisa na 31ª Bienal de São Paulo (2014), onde os filmes “Aguaespejo
Granadino” e “Fuego em Castilla” estavam expostos no formato de projeções
cinematográficas sobre superfícies planas em salas escuras. Principalmente
no contato com o segundo filme, onde sobre um suporte bidimensional
figuram filmagens de diversos ângulos e iluminações de esculturas, ficou
evidente a possível contribuição desse artista para o projeto, não só por ser
propiciada uma noção da tridimensionalidade dessas esculturas. Também
por ser possível de alguma forma sentir a textura polida da madeira usada
nas esculturas filmadas, ter uma noção da profundidade de seu entalhe, assim
como de uma aura febril de sentimentos religiosos da cultura cristã
historicamente predominante em Castilla, ainda que percebendo uma
abertura para outras sensações ou alusões temáticas que possam também ser
provocadas pela dramaticidade de suas luzes e sons.
Esta sensação é especialmente trabalhada com o uso de elementos
cinematográficos como o plano fechado (close), cuja função é definida, no
cinema por Marcel Martin (2005) e nos quadrinhos por Gian Danton (2010),
como a de propor ao espectador a sensação de entrar no espaço psicológico
dos personagens, adicionando uma carga dramática aos seus semblantes. Em
considerável parte das cenas esses planos fechados de Val Del Omar se dão
também no enquadramento do contra mergulho, com os rostos das
esculturas vistos de baixo. Um desvio à monumentalidade, um tom de
grandiloquência dado a seus martírios como santos ou devotos cristãos? Em
determinados momentos a câmera se movimenta (traveling) em torno
destas, que ao mesmo tempo recebem pulsações de luzes vindas de diferentes
ângulos alternados. Além disso tudo possibilitar uma noção da
tridimensionalidade da escultura, uma ilusão de movimentos e mesmo uma
pulsação de vida também são sutilmente suscitadas. Pontos como os olhos
de uma delas, por exemplo, alternam rapidamente entre a escuridão
proporcionada por uma luz dura vindo de cima e uma variedade de outras
luzes desenhadas em estampas que acabam por suscitar movimentos
oculares, tanto de abertura e fechamento quanto de desvio de atenção.
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As videoHQesculturas diferem da visão táctil de Val Del Omar por
priorizarem o uso de esculturas próprias e não apropriadas, no entanto elas
são criadas com motivações em comum com as dele: além de que uma
possível narratividade seja sugerida pelas escritas e imagens dos vídeos, um
dos objetivos de sua criação é possibilitar uma visualidade evocadora de
sensações tácteis como a rugosidade material da papietagem e mesmo do
detalhe em plástico. Assistida por luzes pensadas de forma a evidenciar tais
texturas, a câmera percorre seus volumes, suas formas, pontos onde parte da
estruturação em arame é propositalmente evidente, outros onde os furos do
papel-toalha se insinuam por ter havido menor quantidade ou intensidade
de pinceladas de cola sobre eles, e nesse trajeto demonstram seu fazer
material ao mesmo tempo em que narram ou suscitam algo a ser narrado.
Tatear imagens-tempo
Para o filósofo Henri Bergson (apud DELEUZE, 2005), em crítica ao
cinema escrita nos anos iniciais de seu estabelecimento, o movimento,
diferentemente do espaço percorrido, escapa em sua duração concreta ao ser
reconstituído através de cortes imóveis. É assim impossível para o vídeo
captar o movimento em sua real duração, a não ser por fragmentos a serem
ilusoriamente reunidos pelo olhar do público. O conceito de “imagemtempo”, desenvolvido por Gilles Deleuze (2005) a partir dessas mesmas
ideias, se relaciona a uma revisão de prioridades que marca a transição entre
o cinema conhecido como “clássico” e o “moderno”, da libertação da câmera
do ponto fixo onde antes era operada. Contextos de cinema experimental,
como a Nouvelle Vague e o Neorrealismo italiano e a própria Visão Táctil de
Val Del Omar, trabalham na criação de blocos de sensação ópticos e sonoros
através dos quais experimentamos algo da realidade material autônoma dos
objetos em cena. É assim possibilitado que a chamada “imagem movimento”
do cinema se torne, segundo Deleuze, uma “imagem-tempo”, ou seja, uma
apresentação direta do tempo de uma forma mais pura, livre da necessidade
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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de ser priorizada uma narração ou representação de fatos ou histórias
passadas.
A criação dos roteiros para as videoHQesculturas se dá às vezes por
escrito, outras na forma de rascunhos desenhados para as cenas, tendo em
comum a já descrita relação táctil com a imagem e, em função disso, uma
ligação com o conceito de imagem-tempo. Em vez de roteiros com toda a
univocidade, complexidade e fixidez de uma indústria cinematográfica ou
grande editora de HQ, estes são anotações mais modestas. Nelas constam
uma breve descrição dos personagens e seus possíveis contextos (antes ou
depois de as esculturas estarem prontas), o conflito - que é, segundo Gian
Danton (2010), “o que move a história, tornando-a interessante” - e alguns
apontamentos sobre a condução da narrativa, como a ordem a serem
montados planos, ângulos, escritas e trilha sonora. Danton descreve o roteiro
de quadrinhos como uma orientação do escritor para o desenhista; como na
maioria das videoHQesculturas roteiro e arte visual são criados pela mesma
pessoa, este planejamento pode ocorrer com variados graus de detalhamento,
conforme as necessidades surgidas nos processos de criação.
Vale ser reiterado que o que esses roteiros geralmente priorizam não
é uma narração unívoca ou linear, mas sim uma linha narrativa onde as
sensações tácteis produzidas pelas esculturas se articulam a ideias
possivelmente suscitadas pelas informações textuais ali presentes. Estas estão
em elementos como balões de fala, recordatários e requadros, às vezes
modelados em papietagem e compondo a cena no espaço, às vezes inseridos
na edição dos vídeos a partir de manuscritos a nanquim ou apropriações
fotográficas de referenciais impressos.
Movimentos como estes, em que o vídeo, em vez de trabalhado como
uma linguagem específica e autônoma, se coloca como uma experimentação
intimamente ligada a outros fazeres, são chamados de “extremidades do
vídeo” por Christine Mello (2008). A autora se refere à contemporaneidade
como uma condição “pós-mídia” em que as linguagens se expandem e os
trânsitos do vídeo na arte atuam como uma interface agregadora de
possibilidades poéticas antes tidas como estanques. Tais extremidades são
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abordadas a partir de seu potencial de atuação como descontinuidades,
falhas, fissuras, rupturas sígnicas, “processos acelerados de semiose [...] que
introjetam no sistema simbólico uma informação nova, ou uma nova relação
de sentidos” (MELLO, p.29). O vídeo adentra então o universo da arte
contemporânea através de seus diálogos com outras linguagens, em
possibilidades advindas de trocas ou de relações traçadas entre suas diversas
especificidades.
Registro de experimentação, em 2016, de iluminações com a escultura-HQ “Os Nomes e seus Homens”
(2012, Fábio Purper, com roteiro de Tamiris Vaz)
As esculturas passam, na videoHQescultura, a ser personagens de
uma narrativa, atores de um filme, e o que acontece com elas nesse filme é
desenvolvido na forma de roteiro. Em escrita sobre a estrutura de uma
história, Robert McKee (1997) coloca como princípio para uma produção de
cinema que a cada cena aconteça alguma mudança nos personagens, a cada
sequência de cenas algum evento de impacto maior, e, como arco geral,
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alguma transformação irreversível. Tudo isso pode acontecer em cenas ricas
em movimentações físicas, mas o escolhido aqui é que sejam deixadas
subentendidas ou em dúvida possíveis mudanças ou diferenças ocorridas em
âmbitos menos evidentes, na própria estaticidade de expressões corporais
escultóricas.
Deixando de lado o vínculo à descrição de situações da ordem dos
sentidos sensório-motores, a produção audiovisual que prioriza uma
experimentação com a imagem-tempo propõe uma vivência com
visualidades e realidades materiais que não precisam contar com precisão
uma história real ou verissímil, emitindo moral e julgamento ao seu final. A
partir da prioridade das videoHQesculturas em uma vivência material em
vez dessa narração sensório-motora, é possível dizer que elas são visões
tácteis e são também imagens-tempo. Assim como as próprias visões tácteis
são imagens-tempo. Deleuze descreve em sua escrita movimentos em torno
de uma função propriamente “háptica”, um tocar característico do olhar
(2005, p.22), que pode ser pensado quando vemos - e parecemos estar
tocando - as esculturas de Castilla no filme de Val Del Omar.
Na própria escrita do cineasta, por exemplo, temos que “a
TactilVisión se produz por programada acumulação de presentes projetivas
(não ópticas)” (1961). E ainda ao desenvolver a imagem-tempo, Deleuze
acrescenta que “de acordo com Pasolini, ‘o presente se transforma em
passado’ em virtude da montagem, mas este passado ‘aparece sempre como
um presente’ em virtude da natureza da imagem” (2005, p.50). São imagens
que acontecem, independentemente da necessidade de contarem histórias
passadas; elas vivem e pulsam a cada vez que são reproduzidas, e não estão
ali apenas para o deleite do olho, mas também para que no observador as
sensações ópticas e sonoras (e o tato ou outros sentidos por elas evocados)
venham a sempre compor uma criação de novas narratividades.
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Imagem da videoHQescultura “A Quem” (2014, 1min09s. Fábio Purper)
Interessa para esta pesquisa pensar essa não necessidade de
preocupação com representações de movimento, pois a videoHQescultura
conta com esculturas em sua estaticidade, em uma narratividade que não
depende de um movimento reproduzido no vídeo, mas sim de um que se
encontra congelado no tempo. Os movimentos que ocorrem nas filmagens
geralmente são os da câmera, estando a duração das ações dos personagens
em aberto para contato com o público e seus diferentes processos de
construção de sentidos.
Em suma
Ainda que em movimentos de luz, de câmera ou próprios (ou ilusão
desses movimentos, pois após uma filmagem o que temos são instantâneos
estáticos em sequência), a videoHQescultura conta com esculturas como
objetos centrais de imagens-tempo, propondo não uma narração de ações de
significado único, mas sim uma experimentação de sensações através da
tridimensionalidade e da materialidade das esculturas e das evocações das
escritas ao serem percorridas pelo olhar do público.
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Os vídeos desenvolvidas nessa pesquisa não têm a intenção de se
estruturarem como formas e significados estanques, eles são em vez disso
visões criadas para serem imagens-tempo. E são visões também tácteis, pois
conduzem o olhar por entre volumes e superfícies tomados de empréstimo
da materialidade de esculturas feitas a mão, prestando-se a suscitar novas
experiências visuais a partir delas em vez de simplesmente reproduzi-las ou
simulá-las. Na exploração desse contraste entre uma imagem sintetizada em
um código numérico, virtual, numa tela ou projeção bidimensional, e
qualidades matéricas pertinentes a objetos físicos, tridimensionais,
experimenta-se uma extremidade do vídeo que contempla e ao mesmo
tempo questiona especificidades dos diferentes domínios por entre os quais
transita.
Referências bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Cinema 2: A Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.
Fuego em Castilla. Tactilvisión del páramo del espanto. Dirigido por José Val Del Omar.
Espanha, 1960. Sonoro, preto e branco, 17min 51s.
DANTON, Gian. O Roteiro nas Histórias em Quadrinhos. João Pessoa: Marca de Fantasia,
2010.
MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005.
MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: SENAC, 2008.
McKEE, Robert. Story: substance, structure, style, and the principles of screenwriting. Nova
Iorque: Harper-Collins Publishers, 1997.
VAL DEL OMAR, José. Cubismo Luminoso. In: Filmespaña, suplemento n° 3, 1961.
Disponível
em
<www.valdelomar.com/cine3.php?lang=es&menu_act=5&cine1_cod=6&cine2_cod=15&cin
e3_codi=67>. Acesso em: 10.nov.2014.
__________________. Teoria de la Visión Tactil. In: BURUAGA, Gonzalo Sáenz; VAL DEL
OMAR, María José (org.). Val Del Omar sin fin. Granada, Diputación de Granada, 1992.
Pp.118-121.
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Ficção de Qualidade: o amor e o humor na TV
brasileira
Gabriela Borges – UFJF
Luma Perobeli – UFJF
Ficção de Qualidade
O debate da qualidade está presente nos estudos televisivos desde os
anos 1980 e foi incorporado na legislação da mídia de diversos países,
principalmente europeus, como tentamos demonstrar em estudo sobre o
serviço público prestado pela televisão portuguesa (Borges, 2014). Na ficção
televisiva, o conceito quality television surge com a entrada dos programas
ficcionais seriados da televisão estadunidense nos anos 1990. O
desenvolvimento tecnológico e o advento dos canais por cabo incentivaram
a propagação de séries com esta denominação. O termo começa a ser usado
como "um super gênero, uma fórmula em si mesmo", como nos relata
Thompson (2007, p. xvii). Por um lado, os canais por cabo foram o espaço
de experimentação na televisão no final dos anos 1990 e, por outro, adotaram
este "super gênero" a fim de enquadrar seus programas e vendê-los mais
facilmente. Com o surgimento da HBO e a sua denominação como "It's not
TV. It's HBO" uma nova fase se inicia e séries como Os Sopranos (HBO,
19992007) marcam o tom do que poderia ser esperado da linguagem
televisiva na chamada post-network era.
Nos anos 2000 o debate se encontrava acalorado, Cardwell (2007, p.
26) afirma que os programas de qualidade devem conter, no seu entender,
certas características de conteúdo, estrutura, tema e tom. No que diz respeito
aos programas de qualidade, a academia estadunidense tende a aceitar uma
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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série de convenções e atributos estilísticos que permitem entender televisão
de qualidade como boa televisão. Os programas de qualidade são agrupados
num mesmo gênero, que é caracterizado por partilhar características
semelhantes, tais como altos valores de produção, estilo de atuação
naturalista, atores de renome, um senso de estilo visual variado, entre outros
(Cardwell, 2007, p. 26).
Porém, notamos que, em relação ao gênero ficcional humorístico, no
que diz respeito às sitcoms, por exemplo, encontramos uma lacuna nos
estudos televisivos brasileiros sob a perspectiva das discussões sobre a
qualidade. O gênero humorístico está presente na televisão brasileira desde
os seus primórdios, destacando-se pelo talento dos roteiristas e dos
humoristas e pela originalidade dos formatos audiovisuais apresentados na
TV aberta, principalmente nos anos 1980 e 1990. Nos anos 2000 é alavancado
pela TV por assinatura, com a criação de formatos seriados ficcionais que
trazem uma lufada de ar fresco para o gênero, que se tornou repetitivo devido
à massificação.
Neste sentido, a pesquisa ora em andamento procura problematizar
o conceito de humor de qualidade na criação de formatos seriados ficcionais.
Entendemos por humor de qualidade aquele que ultrapassa o riso cômico,
agregando valores e levantando discussões controversas que são relevantes
na sociedade atual e levam à reflexão. Indagamos, por um lado, se os modos
de representação utilizados promovem a diversidade e ampliam o horizonte
do público, não reforçando estereótipos e, por outro lado, se há alguma
forma de experimentação da linguagem audiovisual.
Parâmetros e Indicadores de Análise da Qualidade
Para a análise dos programas humorísticos dos canais da televisão
aberta e por assinatura foram criados parâmetros de qualidade que estão
articulados a partir de dois conceitos: modos de representação e
experimentação. Os modos de representação estão relacionados à criação e
desenvolvimento dos personagens, na medida em que estes podem ser tanto
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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caricatos, grotescos ou satíricos, independentemente das duas categorias
estudadas. Estão ligados à reflexão sobre o papel desempenhado pelos
personagens humorísticos na nossa sociedade, isto é, indagamos se
reafirmam estereótipos e lugares-comuns; se criam bordões que se
perpetuam; se criticam os costumes e/ou fazem algum tipo de crítica social;
enfim, se contribuem para quebrar tabus e promover a diversidade em suas
diversas acepções. Nosso interesse é perceber se a criação dos personagens
humorísticos contribui de alguma forma para pautar temas relevantes
socialmente e para deslocar a atenção da banalização social que a televisão
reitera incessantemente na maioria dos seus programas.
A experimentação está relacionada com a utilização dos recursos
técnico-expressivos característicos da linguagem audiovisual de forma
inovadora e criativa. Isto é, investigamos se os programas humorísticos criam
propostas audiovisuais originais ou apenas reciclam formatos já existentes;
se os recursos técnico-expressivos contribuem para a construção de
narrativas que promovem a diversidade e o debate de ideias e de pontos de
vista. Além disso, discutimos também a forma como o programa incentiva a
participação do público e dialoga com outras plataformas, principalmente na
internet.
Os programas foram analisados utilizando a metodologia semiótica
por meio da reflexão sobre os planos da expressão e do conteúdo e a
mensagem audiovisual. A análise do Plano da Expressão, que contempla a
forma do produto, a análise do Plano do Conteúdo, que é avaliado a partir
de indicadores de qualidade do conteúdo e a análise da Mensagem
Audiovisual, que também é composta por indicadores de qualidade.
Os aspectos considerados na análise do Plano da Expressão são os
seguintes: Produção de sentido a partir dos elementos estéticos; Uso dos
recursos técnico-expressivos (áudio, vídeo, edição e grafismo); Atuação dos
personagens, apresentadores, entrevistados, comentadores. Sendo assim, a
análise caracterizou os elementos estéticos do programa nos seguintes
códigos: Visuais; Sonoros; Sintáticos e Gráficos.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Para operacionalizar a análise, definimos indicadores de qualidade
do conteúdo e da mensagem audiovisual a fim de permitir uma avaliação da
qualidade com caráter empírico. Sendo assim, os parâmetros de análise da
qualidade (modo de representação e experimentação) nortearam o
enquadramento das preocupações básicas a partir das quais os produtos são
avaliados, enquanto os indicadores de qualidade foram criados para permitir
a avaliação do conteúdo e da mensagem audiovisual. Para isso, cada
indicador é avaliado a partir da seguinte escala: não consta (0), fraco (1),
razoável (2), bom (3) e muito bom (4).
No plano do conteúdo, os indicadores de qualidade definidos são os
seguintes:
Oportunidade: Nesse indicador de qualidade leva-se em conta se o
produto audiovisual se pauta na agenda midiática para escolher os
seus temas, e se esses temas são relevantes e agregam valores para o
público. Sendo assim, procura-se procura aferir a pertinência e a
relevância dos temas abordados em relação a uma dada conjuntura
social, cultural e política.
Ampliação do horizonte do público: procura aferir se as propostas
são, por natureza, polêmicas, contraditórias e férteis, no sentido em
que farão o público refletirem sobre aquilo que está assistindo. Tais
propostas devem contribuir para ampliar o repertório cultural do
público, dando a conhecer novas problemáticas e pontos de vista. Os
temas levantados devem ter determinada relevância ao ponto de
ampliar a visão de mundo do público, contribuir na construção de
valores éticos e estimular o pensamento e o debate de ideias.
Diversidade de sujeitos representados: refere-se à representação dos
diferentes grupos sociais bem como opiniões e pontos de vista pelo
programa/canal. Para esse indicador devemos levar em consideração
os mais diversos fatores que caracterizam a diversidade temática,
geográfica, política, socioeconômica, cultural, étnica, religiosa, de
gênero e sexual.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Estereótipo: verifica se as formas de representação adotadas
reforçam ou desconstroem estereótipos. O produto audiovisual
reforça o estereótipo por meio do deboche e de situações que beiram
o ridículo, generalizações e banalizações usadas que acabaram se
consolidando ao longo dos anos. Como exemplo podemos citar as
generalizações da loura burra, dos gordos, dos gays, etc.. No caso de
desconstruir o estereótipo procuramos avaliar se os produtos fazem
os espectadores pensarem, por meio de textos absurdos e
improváveis e/ou pelo exagero das atuações, enfim, se leva a
refletirem sobre o que estão assistindo. É importante ressaltar que
este indicador é avaliado a partir da definição prévia se o produto
audiovisual reforça ou desconstrói estereótipo.
Na análise da mensagem audiovisual foram definidos os seguintes
indicadores de qualidade:
Originalidade/Criatividade: procura aferir em que medida o produto
audiovisual apresenta um formato diferenciado com ideias novas que
surpreendem o público, e experimenta com a linguagem audiovisual tanto
em termos da apresentação e abordagem de temas quanto narrativos e
dramatúrgicos.
Diálogo com/entre plataformas: verifica se o produto audiovisual
tem capacidade para se adaptar à convergência midiática, possibilitando uma
interação entre diferentes tipos de plataformas e conteúdos, com destaque
para os crossovers, no caso de vídeos do YouTube, e das menções às outras
plataformas e conteúdos, comumente vistas na TV.
Solicitação da participação ativa do público: refere-se à adoção de
recursos técnico-expressivos e narrativos para estimular a participação ativa
do público. Averigua as formas pelas quais o produto audiovisual pode apelar
à curiosidade do público por meio dos sentidos visuais e auditivos e dos
processos cognitivos de significação. Dentre as formas mais comuns estão a
comunicação direta entre o emissor e o público; a citação do nome do
espectador; o uso de gírias e/ou outras expressões e a forma de se dirigir ao
público através da câmera.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Clareza da proposta: Procura aferir se o produto tem uma estrutura
bem organizada, com um formato bem delineado que se repete ao longo das
emissões, permitindo assim que o público reconheça os códigos visuais,
sonoros, gráficos e sintáticos do produto audiovisual.
A seguir, a presença destes indicadores foi analisada nas séries Os
Normais e Amor Veríssimo.
Análise de Os Normais
Dos criadores Jorge Furtado, Alexandre Machado e Fernanda
Young, Os Normais é uma série brasileira exibida pela Rede Globo de
televisão. No ar por três temporadas, a sitcom estreou em 1° de junho de
2001, e trazia nas noites de sexta-feira o cotidiano de Rui (Luiz Fernando
Guimarães) e Vani (Fernanda Torres), um casal de noivos que há cinco anos
vivia uma vida "normal", com mal-entendidos, brigas, confusões e
reviravoltas, como todo casal da vida real. Com a direção geral de José
Alvarenga Jr., Os Normais exibiu 71 episódios e ficou no ar até 3 de outubro
de 2003. Três anos mais tarde foi lançada na mesma emissora de TV a série
Minha Nada Mole Vida, com os mesmos criadores, diretores, formato e ator
principal, que também abordava o cotidiano dos personagens, mas agora o
de Jorge Horácio (Luiz Fernando Guimarães) com a ex-mulher e o filho.
Aparentando ser um típico casal de classe média, na faixa dos 30 anos
de idade, Rui e Vani são, na verdade, cheios de manias, preconceitos,
paranóias, superstições e falhas de caráter, aspectos que colocam em cheque
a ideia de casal perfeito e caracterizam as pessoas normais. O programa usa
frequentemente a metalinguagem, e os protagonistas falam direto com o
espectador, interferindo no episódio e pedindo a aparição de "miniflashbacks".
No plano da expressão, os aspectos destaques são a vinheta do
programa, a linguagem e o cenário. Na abertura do seriado, a canção de
fundo "Doida Demais", interpretada por Lindomar Castilho, compõe uma
sequência de fotos aleatórias de rostos de pessoas desconhecidas, dos atores
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Fernanda e Luiz Fernando, de uma criança e um cachorro. Fazendo careta,
sorrindo ou com expressão séria, o objetivo das fotos é fazer jus ao nome do
programa, já que essas são pessoas normais, de todas as cores e idades, que
faziam parte da equipe de produção da sitcom. A trilha de fundo constituise apenas por um único refrão da música, o trecho "você é doida demais", que
contrapõe o título do programa, já anunciando para o espectador o que se
pode esperar: a personificação de pessoas normais, porém, loucas, já que aos
olhos do outro, todo normal pode ser um pouco descontrolado.
Quanto ao vocabulário adotado, o programa apresenta uma
linguagem coloquial, cotidiana e cheia de palavrões, como acontece no diaa-dia de quase todo casal "normal". Os cenários utilizados não são variados,
com a residência de cores saturadas e contrastantes de Rui sendo o principal
local de gravação dos atores. Esses três elementos (vinheta, vocabulário e
cenário) se complementam de modo que o espectador se identifique com o
programa, pois ver na televisão algo que também acontece na sua vida, de
maneira tão espontânea e credível, instiga e gera curiosidade no espectador.
Além do formato em comum, equipe de criação, direção, e ator
principal, outra característica vista também no seriado Minha Nada Mole
Vida é a da câmera em contra-plongée (câmera baixa, voltada para cima),
apontando normalmente para o prédio em que Rui mora, com o intuito de
situar o espectador no local onde a cena seguinte se passará.
No plano do conteúdo, o indicador de qualidade oportunidade
recebeu nota 1 em todas as emissões analisadas devido ao fato de, assim como
em Minha Nada Mole Vida, abarcar assuntos cotidianos da vida dos
personagens, incluindo problemas, questionamentos e prazeres da vida a
dois, e não necessariamente assuntos da agenda midiática.
O indicador ampliação do horizonte do público não foi muito
observado no decorrer dos episódios, tendo quatro deles recebido nota 2, e
um, nota 3. Na emissão do dia 6 de junho de 2003, por exemplo, a nota 3 é
justificada pela abordagem mais longa da depressão, uma doença muito
comum nos dias de hoje que necessita de atenção para que haja sempre
informação sobre os sintomas e prejuízos ao paciente. Nas outras emissões,
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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o estímulo do público ao pensamento e ao debate de ideias se dá pela inserção
de reflexões acerca de valores morais, como mentira, traição, felicidade,
relacionamentos, sexo e amizade, porém de forma rápida e sem muita
intensidade.
O indicador de qualidade diversidade de sujeitos representados foi
avaliado como fraco em todas as cinco emissões analisadas. Apesar de
abordar assuntos bem diversos, as pessoas representadas na série não são
muito diferentes umas das outras: todas são jovens na faixa dos 30 anos de
idade, de pele branca e de classe média. Negros e crianças não aparecem em
nenhum momento dos episódios, e o que mais se diversificou quanto a esse
indicador foi na emissão do dia 29 de junho de 2001, em que brevemente
aparecem representantes de Nova Iorque, Tóquio e Berlim das filiais da
empresa em que Rui trabalha.
No indicador de qualidade do plano do conteúdo afirmação ou
desconstrução de estereótipos foi observado que a série faz constante uso do
estereótipo para provocar o riso. Duas das cinco emissões foram avaliados
como muito bom, e as outras três foram avaliadas como boas. A sitcom
aborda a normalidade de duas pessoas através do uso de estereótipos, alguns
sendo reforçados e outros questionados, para deixar que o telespectador tire
suas próprias conclusões. No episódio exibido no dia 15 de junho de 2001,
por exemplo, aos 7 minutos e 17 segundos, Rui começa a categorizar meninas
de programa de acordo com o anúncio delas no jornal, baseando-se,
portanto, em alguns estereótipos para afirmar o que acha: Susi: 'Mulherão
dominadora'. Bom, 'mulherão'significa que já passou dos 35, né, e
'dominadora' significa que vai dar uns tapas na tua cara. Não... Vivian:
'Morena, mignon, completa'. 'Mignon' quer dizer que tem um metro e meio,
né, e 'completa',que tá desesperada e vai roubar teu aparelho de som. (Os
Normais - episódio Brigar é normal 15/06/2001).
Abaixo, a tabela dos indicadores da qualidade do plano do conteúdo,
com a avaliação de cada um deles:
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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No plano da mensagem audiovisual, Os Normais foi avaliado como
razoável no indicador de qualidade originalidade/criatividade. A nota 2 que
recebeu em todas as emissões se deve principalmente ao uso da
metalinguagem, comprovada quando na trama os protagonistas falam do
próprio programa. Um exemplo disso está no episódio Um dia normal,
exibido no dia 29 de junho de 2001, que traz Rui e Vani sentados no sofá da
sala jogando dama, enquanto nos bastidores cenário é montado. No
momento em que Rui e Vani começam a interagir com o espectador que está
do outro lado da tela, antes mesmo da vinheta de abertura, mostra-se um
profissional do programa segurando o cartaz com as falas que serão ditas, e
os atores (que se confundem com seus próprios personagens) olham para a
câmera com se estivessem falando com o público. RUI: Oi gente, é pra gente
voltar com o programa agora... VANI: ...Mas a gente pediu pra passar mais
uns comerciais. RUI: É, porque nós estamos numa disputa importante.
VANI: É, se eu ganhar o Rui vai ter que lavar toda a louça da casa. RUI: Não,
mas ela não vai ganhar não.
VANI: E, não vou ganhar o quê, ó. RUI: Pera aí, você roubou. VANI:
Ahh, roubei nada.
RUI: Você roubou enquanto eu estava falando com eles.
(Os Normais - episódio Um dia normal 29/06/2001)
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Além da metalinguagem, outro momento criativo do programa é
durante a publicidade de um produto, em que Os Normais faz uso do humor
sobre a própria situação do merchandising para divulgar uma marca.
No indicador de qualidade diálogo com/entre plataformas, todas as
emissões foram avaliadas como boas, pois é comum vermos nos episódios ao
menos uma menção a outra plataforma, programa ou personalidade. Na
exibição do dia 2 de maio de 2003, por exemplo, Rui questiona Vani sobre o
fato dela não dar mais atenção a ele por causa da novela, quando Vani o
interrompe: VANI: Peraí, que vai começar. RUI: Pô, ainda tá no Jornal
Nacional, cara.
VANI: Não, mas agora é assim, eles colam o início da novela no fim
do Jornal Nacional. Se você bobeia, você perde o início do capítulo,
entendeu? (Os Normais - episódio Casal que vive brigando não tem crise
02/05/2003)
Após dialogar com um programa real (Jornal Nacional), a história
continua e Vani mais uma vez menciona outro conteúdo que não é da trama,
dessa vez com personalidades: "É, por exemplo, hoje, a Christiane Torloni e
o José Mayer, antes mesmo da abertura da novela, eles vão tr ansar, brigar e
transar de novo". Ainda na sequência, Vani novamente cita pessoas reais, o
que mais uma vez justifica a avaliação do indicador diálogo com/entre
plataformas: "Peraí, peraí, que a Fátima Bernardes e o William Bonner já
estão dando aquela notícia divertida do fim do Jornal Nacional".
O indicador de qualidade solicitação da participação ativa do público
foi avaliado como muito bom em todas as emissões, é um dos indicadores
que mais se destacam no programa, e também pode ser exemplificado com o
episódio mostrado acima. Na sequência da trama, ainda na discussão da
novela, Rui conversa com Vani sobre saber antecipadamente o que vai
acontecer nas novelas e no episódio que estão fazendo:
RUI: Por isso que eu não acompanho novela. Todo mundo já sabe o
que vai acontecer, caramba.
VANI: Todo mundo já sabe que a gente vai passar o episódio
discutindo, e nem por isso as pessoas param de assistir.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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RUI: É, todo mundo já sabe que a gente vai ficar junto no final. Estão
assistindo por causa de quê?
VANI: Não, não faz essa pergunta senão as pessoas trocam. Não!
Não troca de canal. (Os Normais - episódio Casal que vive brigando não tem
crise 02/05/2003) Além de usar a metalinguagem para falar do próprio
programa, os personagens utilizam também esse recurso para falar do
público e com ele. Como mostrado acima, nas duas últimas falas de Rui e
Vani há uma mescla de diálogos: ora os personagens falam um com o outro,
e ora voltam-se para o espectador. Em seguida à última fala de Vani, o
programa faz uso de efeitos especiais para simular a troca de canal do
espectador, e na tela é mostrada uma cena de tiroteio em que várias pessoas
estão sendo mortas. Novamente o efeito especial é utilizado para simular que
o espectador voltou para o canal do programa, e Rui vai ao banheiro, sozinho,
para conversar com o público. Olhar e falar para a câmera, como se estivesse
olhando para os olhos do espectador e esperando dele uma resposta faz dessa
técnica, portanto, mais um instrumento de identificação e de aproximação
entre o público e o programa.
O indicador de qualidade clareza da proposta foi, como o indicador
anterior, avaliado como muito bom em todos as cinco emissões analisadas.
Toda essa intensa metalinguagem utilizada, juntamente com a atuação dos
personagens e o formato bem definidos são essenciais para a clareza e o
objetivo do programa. Na exibição do dia 15 de junho, por exemplo, a
história já se inicia com os dois protagonistas em cenários diferentes e
queixando-se um do outro, o que deixa evidente que o assunto abordado no
episódio será os problemas que o casal tem e as consequências do desejo de
vingança que cada um sustenta após os vários insultos mútuos. Observe a
seguir a avaliação de cada indicador da mensagem audiovisual:
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Os Normais é um programa criativo, curioso e instigante, porém as
emissões analisadas não prezaram pela diversidade cultural, usando o
estereótipo de afirmação para gerar o riso.
Análise de Amor Veríssimo
Amor Veríssimo é uma série de televisão brasileira baseada nas
crônicas sobre relacionamentos amorosos escritas por Luís Fernando
Veríssimo. Exibida pela primeira vez em 8 de janeiro de 2014 na GNT, o
programa traz no elenco principal Fernanda Paes Leme, Gabriela Duarte,
Leticia Colin, Marcelo Faria, Paulo Tiefenthaler e Pedro Monteiro, que
interpretam diferentes personagens a cada um dos 13 episódios da primeira
temporada. Sendo transmitida todas as quartas-feiras às 22h30, a adaptação
da obra de Veríssimo é uma produção da Conspiração Filmes com a direção
de Arthur Fontes.
Os episódios selecionados para análise são os cinco primeiros da
única temporada exibida até o momento. Neles, a trama mescla depoimentos
de personagens que olham diretamente para a câmera, com cenas que
retratam o último depoimento contado. Nos cinco episódios algum ator do
elenco fixo da trama aparece encarnado em um novo personagem somente
depois de uma sequência de dois ou três depoimentos de casais que
permanecem com os mesmos nomes e figurinos em todas as suas aparições
(o que confunde o espectador, já que não sabemos se esses casais são reais ou
parte da trama).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Atentando-se para o plano da expressão, são destaques os cenários,
o figurino, a maquiagem e a atuação do elenco. Uma parede marrom ao
fundo caracteriza o cenário dos depoimentos dos personagens, que olham
diretamente para a câmera e se sentam confortavelmente num rebuscado
sofá vermelho e dourado. Por abordar temas do dia-a-dia de casais, os
cenários que compõem as histórias que estão sendo retratadas são únicos ou
pouco numerosos, concentrando toda a trama em situações específicas.
Quanto ao figurino, maquiagem e atuação do elenco, a série se
destaca por caprichar muito nesses fatores para tornar verossímil ao
espectador a abordagem de diferentes idades, estilos e épocas nos mesmos
seis atores jovens. No episódio exibido dia 22 de janeiro, intitulado A Vida
Não é uma Comédia Romântica, por exemplo, Gabriela Duarte e Marcelo
Faria interpretam Maria Alice e Rogério em diferentes épocas de suas vidas,
a partir de 1991, e têm que se adequarem, portanto, ao figurino, maquiagem
e comportamento da época.
No plano do conteúdo, o indicador de qualidade afirmação ou
desconstrução de estereótipos foi razoável porque o humor de Amor
Veríssimo é sucinto e não apela para o uso explícito do estereótipo para gerar
o riso. O fato de trazer em três das cinco emissões analisadas um casal de
lésbicas, por exemplo, é uma desconstrução implícita do estereótipo de que
um casal do mesmo sexo não pode ou não consegue ter uma grande e séria
história de amor. No quinto episódio da primeira temporada, exibido dia 5
de fevereiro e intitulado Trauma, quando aos 54 segundos a personagem diz
"a mulher quando passa dos 30 ela não tá só em busca de um namorado, ela
quer o pai do filho dela", a afirmação do estereótipo de que mulheres acima
dos 30 anos só pensam em conseguir um pai para seus futuros filhos, é clara,
porém, sucinta. A trama não se agarra a esse tipo de ferramenta para gerar o
humor, mas apenas o utiliza como gancho para amarrar a história.
Por abordar temas referentes aos relacionamentos cotidianos das
pessoas, o indicador de qualidade oportunidade foi bem avaliado. Junto com
esses temas atuais, observa-se o indicador ampliação do horizonte do
público, que não foi muito bem avaliado pelo fato de nem sempre estar
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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presente na trama. No primeiro episódio, por exemplo, chamado História De
Verão: Uma Leve Brisa, o enredo se baseia num grupo de amigos que fica
intrigado com uma bela mulher que tem cabelos esvoaçantes mesmo quando
não existe vento sobre ela, o que caracteriza, portanto, um tema irrelevante
para a sociedade, incapaz de gerar debate ou estimular o pensamento do
público.
O indicador de qualidade do plano do conteúdo diversidade de
sujeitos representados também não foi muito bem avaliado. O fato de trazer
diferentes idades, estilos e orientações sexuais não torna imperceptível ao
espectador o fato de não conter nem um personagem negro na trama. Além
disso, em todas as cinco emissões analisadas percebe-se a predominância de
histórias de amor pertencentes à classe média brasileira (pelo requinte dos
cenários e figurinos), o que também diminui a diversidade dos sujeitos
representados pelo humorístico. Abaixo, o gráfico do plano do conteúdo:
Na mensagem audiovisual, o indicador de qualidade clareza da
proposta foi muito bem avaliado em todos os episódios da amostra
selecionada. Um dos aspectos que caracteriza a estrutura bem organizada e
padronizada de todas as emissões e que se relaciona diretamente com a
temática a ser abordada é o trecho da música que acompanha a vinheta de
abertura da série, A Minha Menina, da banda Mutantes, que diz: "Ela é minha
menina, e eu sou o menino dela. Ela é o meu amor, e eu sou o amor todinho
dela".
No indicador diálogo com/entre outras plataformas, a série não se
destacou muito. Consideramos razoável a utilização desse quesito por poucas
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vezes fazer alusão a outros conteúdos que não fossem da trama. Quando isso
ocorria, geralmente era mencionando nome de artistas reais, como ocorreu
também no episódio do dia 22 com os nomes de Xuxa, Ayrton Senna e Pelé,
que nessa ocasião foram falados por causa da manchete de uma revista,
posteriormente identificada como a Caras.
Ao contrário do anterior, o indicador solicitação da participação
ativa do púbico foi bem avaliado. Pelo caráter documental que os
depoimentos conferem à série, o público se identifica com as histórias ao ver
pessoas confortáveis em um sofá falando sobre suas vidas, interagindo com
a suposta equipe de produção do programa e respondendo às perguntas feitas
por eles. Apesar da linguagem coloquial, o pouco uso de palavras de baixo
calão dá certo requinte às histórias, que não deixam de representar o
espectador que está assistindo pelo simples fato de abordar temas de
relacionamento passíveis a qualquer pessoa.
Através do indicador de qualidade da mensagem audiovisual
originalidade/criatividade também observamos o zelo e o cuidado dos
produtores para adaptar da melhor forma para a TV as crônicas escritas por
Veríssimo. No quarto episódio, por exemplo, clamado Dinossauro Digital,
um diálogo entre o casal Bianca e Thaís, aos 10 minutos e 31 segundos, se
inicia de forma criativa e descontraída ao envolver a suposta produção do
humorístico e fomentar ainda mais o seu caráter documental.
THAÍS: Eu falei pra eles que se eles ficassem sem perguntar um
pouco você ia travar e ia entrar no seu pancadão do silêncio e ia
começar a se tremer toda. BIANCA: Você combinou isso com eles?
THAÍS: Combinei.
BIANCA: A gente, por quê? Eu não sou cobaia pra você fazer
experiência comigo, gente.
(Amor Verissimo - episódio Dinossauro Digital 29/01/2014)
Abaixo, os indicadores de qualidade da mensagem audiovisual com
suas respectivas avaliações:
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Dessa forma, procuramos analisar os programas à luz dos
parâmetros propostos. É importante ressaltar que esta pesquisa está em
andamento e a metodologia de análise está sendo depurada à medida que
avançamos na reflexão sobre os programas.
Referências
BORGES, G. (2014) Qualidade na TV pública portuguesa. Análise dos programas do canal 2:.
Juiz de Fora: Ed. UFJF.
CARDWELL, S. (2007) Is quality television any good? Generic distinctions, evaluations and
the troubling matter of critical judgement. In: MCCABE, J.; AKASS, K. (ed.). Quality TV:
Contemporary American Television and Beyond. London: I.B. Tauris & Co Ltd., pp. 19-34.
THOMPSON, R. J. (2007) Preface. In: McCabe, J.; Akass, K. (ed.). Quality TV:
Contemporary American Television and Beyond. London: I.B. Tauris & Co Ltd., pp. xvii-xx.
PIRANDELLO. L. O Humorismo. Trad. Davi Dion Machado. São Paulo: Experimento, 1996.
(Originalmente publicado em 1908).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Horror em Amityville sob os parâmetros de
análise narrativa de Bordwell
Gisele Krodel Rech – UNESP
Introdução
Depois do aclamado Making Meaning, que traz um acurado
trabalho de interpretação no cinema, valendo-se de inferências e retórica,
David Bordwell aprofundou seu trabalho de análise fílmica trazendo à
discussão a narração no filme de ficção, na obra Narration in the film fiction.
Ainda sem tradução em português, o título traz a narração como o ato efetivo
de narrar, que para Bordwell (2004) é a pragmática dos fenômenos
narrativos. Para o autor (1996), a narração pode ser tratada como uma
representação, que considera o entorno da história, sua descrição da
realidade e seus significados mais amplos. Em síntese, é um processo, a
atividade de selecionar, organizar e apresentar o material de uma história de
tal maneira que se exerçam sobre o receptor efeitos específicos relacionados
ao tempo.
Em sua obra, Bordwell tenta responder como a narração opera em
um filme de ficção (vale lembrar que o estudo é baseado no estilo clássico
hollywoodiano), como ela funciona e o que faz o espectador compreender
um filme narrativo. Na busca por estas respostas, ele reforça a importância
das características e estruturas para a compreensão narrativa do espectador.
Para o entendimento dos princípios de narração, Bordwell (2004,
p.278) apresenta três categorias formais: a fábula, o syuzhet e o estilo. A
fábula é um "termo do formalismo russo para os eventos narrativos em
sequência cronológica causal. (Por vezes traduzido como história). Termo
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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que envolve um constructo do espectador". Já o syuzhet, que também é
conhecido como trama ou plot, é um "termo do formalismo russo que
designa a apresentação sistêmica dos eventos da fábula no texto".
(BORDWELL, 2004, p. 278). Por fim, e não menos importante, o estilo é o
processo técnico que é adotado para se contar uma história no cinema. É a
mobilização de componentes, o uso sistemático de artifícios
cinematográficos, que inclui planos, movimentos de câmera, uso de efeitos
sonoros etc.
De acordo com Bordwell (1996) é o syuzhet, categoria à qual dá-se
maior atenção no presente artigo, que conduz a percepção da fábula por
controle da quantidade de informação que são fornecidas ao espectador e o
grau de pertinência destas informações dentro do contexto. Neste percurso,
há uma seleção de eventos comlacunas entre eles, que devem ser preenchidas
pelo espectador. Quanto mais efetivo é este exercício, maior coerência tem a
fábula, já que o espectador passa a evocar a formação de schematas, que são
mapas mentais que ajudam no entendimento da fábula. Bordwell (1996,
p.55)98 reforça que "o argumento pode também realçar ou suprimir lacunas
da história. Faz-se ostenção de um vazio quando sabemos que há algo ali que
necessitamos saber"
Para o autor (1996, p. 54) 99, "uma análise da narração pode com as
táticas do argumento para apresentar a informação da história". É necessário,
pois, em uma análise, captar como o argumento organiza a sua tarefa básica:
a apresentação da lógica, do tempo e do espaço da história.
A título didático, pretende-se neste artigo aplicar parte da
conceituação apresentada por Bordwell no filme Horror em Amityville
(1979), mais precisamente com foco na abertura da película. Produzido nos
Estados Unidos e dirigido por Stuart Rosenberg (Além da imaginação e
98 El argumento puede también realzar o suprimir lagunas de la historia. Se hace ostentación de un vacío
cuando sabemos que hay algo allí que necesitamos saber.
99 El análisis de la narración puede empezar con las tácticas del argumento para presentar la información
de la historia. Debemos captar cómo el argumento organiza su tarea básica - la presentación de la lógica, el
tiempo y el espacio de la historia.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Alfred Hitchcock Apresenta) trata-se de uma adaptação do romance de não
ficção Horror em Amityville - A verdadeira história, do jornalista Jay
Anson.
O filme apresenta a história da Família Lutz, que passa a viver em
uma casa onde, dois anos antes, o jovem Ronald DeFeo matou os pais e os
quatro irmãos, sob alegação de que teria sido impelido a tal atrocidade por
vozes demoníacas. Os novos moradores relataram que, ao longo dos 28 dias
que viveram na casa, sentiram as presenças malignas, que são representadas
no filme.
Da Linguagem E Da Narração
No processo de efetivação do estilo, o ato de escrever com luz, que
traduz o exercício da cinematografia, seria valer-se do sistema de signos do
cinema para narrar uma história. Para Martin, a originalidade da linguagem
cinematográfica
advém da sua onipotência figurativa e evocadora, de sua capacidade única
e infinita de mostrar o invisível tão bem quanto o visível, de visualizar o
pensamento juntamente com o vivido, de lograr a compenetração do
sonho e do real, do impulso imaginativo e da prova documental, de
ressuscitar o passado e atualizar o futuro, de conferir a uma imagem fugaz
mais pregnância persuasiva do que o espetáculo do cotidiano é capaz de
oferecer. (MARTIN, 2003, p.19)
Segundo Martin (2003, p.22), a imagem fílmica é, antes de tudo,
realista ou dotada de aparências da realidade e "suscita, portanto, no
espectador, um sentimento de realidade bastante forte, em certos casos, para
induzir à crença na existência objetiva do que aparece na tela". Martin
acrescenta que
A imagem fílmica proporciona, portanto, uma reprodução do real cujo
realismo aparente é, na verdade, dinamizado pela visão artística do diretor.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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A percepção do espectador torna-se, aos poucos afetiva, na medida em que
o cinema lhe oferece uma imagem subjetiva, densa e, portanto, passional,
da realidade: no cinema, o espectador verte lágrimas diante de cenas que,
ao vivo, não o tocariam senão mediocremente. A imagem encontra-se,
pois, afetada de um coeficiente sensorial e emotivo que nasce das próprias
condições com que ele transcreve a realidade (MARTIN, 2003,.p.25)
Na construção da narração e na consolidação do syuzhet, esta
impressão de realidade da linguagem cinematográfica, somada ao exercício
de preenchimento das lacunas oferecidas pelo diretor fortalecem o
entendimento da fábula. Segundo Bordwell,
O espectador constrói o tempo e o espaço da fábula de acordo com
schematas, pistas e quadros de hipóteses. As normas hollywoodianas
extrínsecas, com seus procedimentos fixos e sua organização
paradigmática, oferecem ao espectador expectativas pré-determinadas
que são balizadas a partir de pistas concretas veiculadas pelo filme.
(BORDWELL, 2004, p. 297)
Entretanto, Bordwell (2004, p. 298) nos lembra que o sistema
clássico não é simplório e que é mister recordar que em condições normais
de exibição, o grau de compreensão do espectador é absolutamente
controlado. "A construção de hipóteses prováveis, exclusivas e orientadas
para o suspense, é uma maneira de ajustar a dramaturgia às exigências da
situação de fruição". Ao fim e ao cabo, a narração clássica, tal como a
apresentada neste artigo, administra o ritmo desta fruição fílmica, exigindo
do espectador a elaboração do syuzhet e o sistema estilístico de uma forma
única, que é construindo uma fábula denotativa e integral.
A função que o espectador cumpre na compreensão da trama de um
filme traz à lembrança a papel do leitor sob a lógica do leitor-modelo,
proposta por Eco, que afirma que um texto se difere de outros tipos de
expressão devido ao seu maior grau de complexidade, marcado pelo fato de
ser entremeado pelo não-dito.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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"Não-dito" significa não manifestado em superfície, a nível de expressão;
mas é justamente este não-dito que tem de ser atualizado a nível de
atualização de conteúdo. E para este propósito, um texto, de uma forma
ainda mais decisiva do que qualquer outra mensagem, requer movimentos
cooperativos, conscientes e ativos da parte do leitor. (ECO, 2008)
Tal como as lacunas deixadas na narração de um filme, segundo os
apontamentos de Bordwell, o texto, na concepção e Eco, também está repleto
de espaços brancos e interstícios a serem preenchidos, deixando clara a lógica
de que todo o texto quer que alguém o ajude a funcionar. A justificativa seria,
inicialmente, pelo fato de um texto ser um mecanismo econômico "que vive
da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu" (ECO, 2008).
Depois, porque à medida que passa da função didática à estética, o texto quer
deixar para o leitor a iniciativa interpretativa, mesmo que exista uma
margem pré-estabelecida para isso. No cinema, este papel interpretativo cabe
ao espectador
Da Análise
Para facilitar o trabalho de identificação das lacunas propostas por
Bordwell, toma-se como referência a escolha das cenas com base no processo
de análise proposto por Michel Marie e destacados por Vanoye e Goliot Lété
(2012), que levam em conta, dentre outras coisas, a numeração do plano,
duração em segundos ou número de fotogramas, elementos visuais
representados, passagens de um plano a outro, incluindo movimentos,
cortes, fusões, escurecimentos ou outros efeitos, trilha sonora - diálogos,
ruídos, música e relações sons/imagens.
Quanto ao exercício de leitura do filmes, que seria o processo da
busca do sentido por trás do sentido, Jullier e Marie (2009, p.20) sugerem três
tipos essenciais de análise: "no nível do plano (parte do filme situada entre
dois pontos de corte), no nível da sequência (combinação de planos que
compõe uma unidade) ou no nível do filme inteiro (combinação de
sequências)". Ainda segundo Jullier e Marie,
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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A leitura de um simples plano conduz quase certamente a entrar nos
detalhes e na regulação dos parâmetros técnicos e a flertar com a leitura
genética. Um passo para trás permite vislumbrar uma sequência encadenamento de planos, o choque das imagens justapostas. O novo
significado que nasce à consecução de duas figuras consiste, assim, no que
é essencial ao trabalho de leitura. (JULLIER; MARIE, 2009, p.21)
Neste artigo, optou-se pela análise da sequência de abertura de
Horror em Amityville - que na verdade se constitui em duas sequências, com
uma pequena amostra da sequência que apresenta o casal Lutz, protagonista
do filme. As sequências iniciais têm relação direta com fatos passados. Para
Bordwell,
A exposição da ação pretérita da fábula será em geral localizada nas cenas
inicias do syuzhet, provendo uma base sólida para a formulação de
hipóteses. Exceto em um filme de suspense, a exposição não faz soar
alarmes nem trabalha ativamente para nos induzir a um erro: o que
prevalece é o efeito de enfatizar a sua primazia. (BORDWELL, 2004, p.
296).
É exatamente isto que o diretor Stuart Rosenberg faz em Horror em
Amityville. Depois dos créditos iniciais, que trazem a informação de que o
filme é baseado em fatos reais ao vinculá-lo ao romance de não ficção de Jay
Anson, a primeira sequência começa com uma chuva torrencial e seu barulho
característico. Ao fundo, é possível ver a casa da 122 Ocean Drive, com suas
janelas que parecem olhos. A escuridão é rompida pelo clarão dos raios
típicos de tempestades, que confere às imagens um tom sinistro - verdadeiro
convite ao espectador para que se impregne do clima da película.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Figura 1 - A sequência de abertura do filme começa com uma tempestade, marcada por raios que
destacam o local da ação: a casa na 112 Ocean Drive, em Amityville.
Fonte: Horror em Amityville (1979)
Figura 2 - Os raios são seguidos de trovões, que na reprodução da chacina cometida por Ronald DeFeo
marcam os tiros disparados pelo rifle, que provocam clarões em meio à madrugada.
Fonte: Horror em Amityville (1979)
O plano seguinte, ritmado pelos efeitos sonoros da chuva, mostram
a casa em completa escuridão, à exceção da luz emitida pelas janelas
superiores e pelo clarão provocado pelo tiro de fuzil, pontuado pelo som do
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trovão (Figura 2). Como são seis mortes, os planos se repetem, mudando
apenas o local onde incide a luz avermelhada proveniente dos disparos. Os
espaços entre um plano e outro deixam ao espectador a tarefa do
entendimento de que se trata se uma sequência de assassinatos. O espectador
não vê cada uma das mortes, mas é convidado à dedução ao ouvir o som de
tiro simultâneo ao barulho do trovão, pontuado pela luz vermelha que se
forma em cada uma das janelas ao longo da sequência.
Na sequência, um plano mostra o assassino desfocado empunhando
o fuzil, como o corpo de uma das vítimas em primeiro plano, para em
seguida, com uma panorâmica, mostrar a mãe e o pai assassinados, deitados
na cama (Figuras 3 e 4). O diretor respeitou o exato posicionamento
registrado pela perícia, para dar ao filme ainda mais força de verossimilhança
com a verdadeira história dos assassinatos cometidos por Ronald DeFeo. A
lacuna deixada pela imagem das luzes vermelhas das janelas é preenchida,
em parte, por esta cena, que entrega que, de fato, pessoas estão sendo mortas
naquela casa.
Figura 3 - Em uma imagem com o fundo desfocado, é possível ver o assassino empunhando a arma em
direção a uma das vítimas.
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Figura 4 - Para reforçar o efeito da ação, o diretor reproduz o posicionamento no qual as vítimas foram
assassinadas, com base nas indicações da investigação.
O diretor oferece uma breve lacuna ao dar passagem ao plano aberto
da frente da casa (Figura 5), como a movimentação dos investigadores e
policiais e do pessoal do IML, que estão no local dos assassinatos para
investigações preliminares e recolhimento dos corpos da família. Trata-se de
uma lacuna temporal, já que o espectador é induzido a correlacionar o
atendimento policial às mortes ocorridas no mesmo espaço, pouco antes.
Repare que o diretor utiliza o gerador de caracteres para pontuar o espaço e
o tempo da trama, reforçando que no dia 13 de novembro de 1974, em
Amityville, Long Island, "uma mãe, um pai e quatro de duas crianças
assassinados sem motivo aparente". A simples inscrição "sem motivo
aparente" oferece uma lacuna significativa, que dá ao espectador pistas para
ligar os assassinatos à trama de assombração que vai se desenrolar no filme.
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Figura 5 - O diretor vale-se do uso de gerador de caracteres para reforçar o espaço temporal da ação, que
se dá pouco depois dos assassinatos. Além de marcar a data, a hora e o local, a indicação também marca o
fato de não haver motivo aparente para o assassinato da família
DeFeo.
Fonte: Horror em Amityville (1979)
A câmera se aproxima e em um plano fechado foca nos dois
investigadores (Figura 6), que trocam informações sobre o caso. Um deles
diz que a hora estimada das mortes foi 3h15 da madrugada, pista que serve
como elemento de lacuna para acontecimentos que começam a se consolidar
no syuzhet a partir dos 55 minutos da película - e estão fora deste breve
estudo. Forçando o espectador a remeter ao início do filme, o protagonista,
já demonstrando perturbação psicológica, começa a despertar exatamente
neste horário, dando a entender que o mesmo que se passou com o assassino
apresentado no início da película está ocorrendo novamente. Vale lembrar
que o assassino alegou, quando vou preso, ter sido induzido ao crime por
forças espirituais.
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Figura 6 - Os investigadores encarregados do caso trocam informações sobre os assassinatos.
Fonte: Horror em Amityville (1979)
A sequência é concluída com uma imagem proveniente de dentro do
carro do IML, onde os seis corpos foram colocados, com o ato do fechamento
da porta marcando o final do breve relato e pontuando, por meio de uma
fusão, a lacuna a ser preenchida pelo espectador no syuzhet. Tudo o que
segue à sequência de abertura, dá-se a entender, tem alguma relação com os
fatos relatados ao longo dos 28 dias em que a família Lutz morou na casa 122
da Ocean Drive.
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Figura 7 - Os corpos são colocados no carro funerário e o fechamento da porta marca o final da sequência.
A fusão do quadro dos corpos recolhidos é feita com a cena da porta
da casa de barcos da residência (Figura 8), onde o diretor mais uma vez utiliza
um gerador de caracteres para pontuar o tempo - que na mesma sequência,
descobre-se brevemente, decorre no mesmo espaço apresentado no início da
película: a casa supostamente mal-assombrada. A lacuna temporal é indicada
e carrega consigo pistas do desenrolar do syuzhet. Mais que isso, permite a
construção do schemata - ou mapa mental - por parte do espectador, que
por meio das pistas dadas na narração fílmica vai construindo a fábula, que,
aponta para a perturbação da paz da família pelos espíritos malignos e a luta
para vencê-los, preservando a integridade da família.
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Figura 8 - Mais uma vez o gerador de caracteres auxilia na marcação do tempo e do espaço, que fica
subentendido como sendo o mesmo.
Fonte: Horror em Amityville (1979)
Do plano fechado no portão cerrado por um cadeado, parte-se para
a abertura que mostra o casal Lutz (Figura 9) encantado como o espaço que
está diante dos olhos da dupla. A lacuna deixa pelo diretor ao espectador
deixa pista de que aquele casal, que está visitando a casa, possivelmente vai
sofrer as consequências do que foi mostrado no início do filme.
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Figura 9 - Os protagonistas do filme - o casal Lutz - é apresentado chegando à casa da Ocean
Fonte: Horror em Amityville (1979)
Na marcação do espaço no qual a ação vai se desenrolar, é mostrada,
em plano aberto, a mesma casa outrora apresentada na escuridão, em meio à
uma tempestade, desta feita iluminada e colorida. A ideia passada ao
espectador é de que ali a paz reina. Pelo menos até a perturbação do sossego
dos protagonistas, que terá sequência na fábula desenvolvida pelo syuzhet.
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Figura 10 - A mesma casa onde ocorreram os assassinatos agora é mostrada iluminada.
Fonte: Horror em Amityville (1979)
Vale lembrar que na construção clássica da fábula, a causalidade é o
princípio primordial de unificação. Ou seja, as analogias entre personagens,
cenários e situações, segundo Bordwell (2004), fazem-se certamente
presentes. No entanto, no plano denotativo, qualquer paralelismo é
subordinado ao movimento de causa e efeito. No caso específico de Horror
em Amityville, as manifestações de espíritos malignos que teriam induzido
Ronald DeFeo a assassinar a família, são a causa aparente da perturbação da
paz da família Lutz e provocam efeito semelhante ao apresentado no início
da trama.
Conclusão
Para Bordwell (2004, p.295), apesar das pistas fornecidas pelo
diretor, "a estabilidade dos processos do syuzhet e das configurações
estilísticas não nos deve levar a tratar o espectador clássico como um material
passivo à mercê de uma máquina totalizante. Operações cognitivas
específicas que não são menos ativas pelo fato de serem habituais e familiares
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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são realizadas o tempo todo pelo espectador. Para o autor, a fábula
hollywoodiana, em especial, é resultado de uma série particular de mapas
mentais, de hipóteses e inferências inerentes a cada espectador e sua
compreensão do mundo e da trama.
Em Horror em Amityville, que segue o padrão clássico dos filmes
hollywoodianos, as pistas e lacunas são facilmente identificáveis, deixando
clara a intenção do diretor na narração. Neste artigo, em especial, optou-se
por colocar sob a lente analítica apenas os primeiros minutos do filme, que
foram suficientes para demonstrar que, tal como o leitor-modelo, o
espectador tem um papel fundamental na construção do sentido do filme. É
ele, que com base nas duas sequências iniciais, vai levantar a hipótese de que
as ocorrências vividas pela família Lutz estão diretamente relacionadas ao
assassinato do início da película, que tiveram parte no mesmo local, porém
um ano antes. O diretor induz o espectador, por meio da lacuna deixada
entre uma sequência e outra, a imaginar que os mesmos espíritos malignos
que teriam atormentado Ronald DeFeo e o induzido a matar seus pais e seus
quatro irmãos agem agora para cooptar o líder da família Lutz. Voltando-se
a Eco (2016), percebemos que assim como ocorre em um texto, gerar um
texto fílmico - uma fábula contada por meio de uma trama, significa
"executar uma estratégia de que fazem parte as previsões dos movimentos
dos outros -como, aliás, em qualquer estratégia".
Ao fim e ao cabo, o que fica flagrante no presente estudo é a
importância da cooperação do espectador em coletar as pistas dadas pelo
diretor (ou roteirista), preencher as lacunas fornecidas e criar os mapas
mentais que auxiliam no desenvolvimento do syuzhet e culminam no
entendimento puro e simples da história que está sendo contada na tela.
Afinal, como o próprio Bordwell diz, "por mais rotineira e transparente que
tenha se tornado a fruição do filme clássico, ela continuará sendo uma
atividade".
Referências
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
BORDWELL, David. La narración en el cine de ficción. Paidós: Barcelona, 1996.
_____________________ . O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios
narrativos. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org). Teoria contemporânea do Cinema: documentário
e narratividade ficcional. Volume II.
ECO, Umberto. O leitor-modelo. Disponível em:
http://www2.eca.usp.br/Ciencias.Linguagem/L3EcoLector.pdf. Acessado em: 20/01/2016.
HORROR em Amityville. Direção: Stuart Rosenberg. DVD (118 min), son., color. JULLIER,
Laurent e MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Senac São Paulo, 2009.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 1990.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Intersubjetividad en la audiovisualidad
Giuliano Seni - Universidade Autônoma de Barranquilla
Martha Cecilia Romero - Universidade Autônoma de Barranquilla
Texto del trabajo
Desde la lingüística y la pragmática, todo discurso es subjetivo,
inevitablemente, también lo es el discurso audiovisual. Asimismo, todo
discurso nace de un acto de enunciación, acto de comunicación que se da
siempre en determinadas e irrepetibles circunstancias. En este sentido se
plantea un interrogante: ¿si en el texto escrito se evidencia la presencia de
intersubjetividad, es posible este fenómeno en el texto audiovisual?
Lo primero es comprobar si es posible plantear un contenido
audiovisual como un texto escrito. Es decir, ¿los elementos de la enunciación
presentes en el texto escrito están presentes en el texto audiovisual?
En primer lugar tengamos claridad sobre lo que es un enunciado.
Definiéndolo tenemos que:
Enunciado, en sentido general, es toda magnitud prevista de sentido,
dependiente de la cadena hablada o del texto escrito, previa a cualquier
análisis lingüístico o lógico. (Greimás, 1982: 97)
Greimás (1982) lo define desde la lingüística, pero Barthes (1966)
nos hizo superar esa limitante, y aunque puso a la lengua como patrón y
centro del sistema de lenguajes, traslapó sus reglas a otros sistemas de
significación. En este sentido, el enunciado audiovisual tiene un sentido
global, precisamente, mediante un análisis lógico que nos enseñó Peirce
(2012) al plantear la existencia del ícono.
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La semiología de la imagen, color y sonido no puede formularse en
imágenes, colores o sonidos. La lengua es el interpretante de todos los
otros sistemas lingüísticos y no lingüísticos (Benveniste, 1999: 64)
Por otra parte, el enunciado debe tener un enunciador. El
enunciador es quien narra una historia. Es la voz que narra los hechos como
él los vivió o los conoció, en últimas, como él, desde su subjetividad, su
emotividad y afectividad, lo comprendió.
En este sentido, todo enunciado tiene un autor a quien oímos en el
enunciado mismo como su creador (Bajtin, en Todorov, 2013: 102). Toda
representación de lenguaje nos pone de hecho en contacto con su creador
(103).
El pronombre personal no es el único marcador o indicador del yo. Están
los deícticos, los demostrativos (cerca, delante, arriba, etc) para las
coordenadas espaciales y las formas temporales. (Benveniste, 1999: 72, 86)
Entonces, ¿hay enunciador en el texto audiovisual?
Si, pues el narrador en off o enunciador extradiegético, algunas veces
puede ser el mismo autor y narrar en tercera persona, refiriéndose a unos
ellos y ellas como al contar un cuento de los Hermanos Grimm e iniciar con
había una vez…. El narrador- personaje, que narra la historia en primera
persona, forma parte de la trama y de la diégesis, como lo hizo en el cine
Forrest Gump o los personajes de Sin City; o en televisión el pequeño Kevin
en Los años maravillosos.
El enunciador, así como lo indica Greimás (1982), debe embragarse
y desembragarse del discurso, tomar sus riendas y entregarlas
momentáneamente a otro personaje o enunciador. En este sentido, cuando
el personaje aparece y desaparece de la pantalla y del diálogo, dando paso a
otros personajes y narradores, se ha embragado y desembragado del discurso
audiovisual, un diálogo entre personajes daría cuenta de ello.
Lo anterior se cumple no sólo para las historias de ficción, sino
también para el formato noticioso e informativo. El locutor de un partido de
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fútbol o un presentador actúan como narradores extradiegéticos, pues están
por fuera de la acción; inversamente, un periodista desde el lugar de los
hechos se desembraga cuando cede la voz y la explicación a los protagonistas
de los hechos, las víctimas, afectados o beneficiarios de los hechos noticiosos,
o también cuando cede la voz a las autoridades, testigos y expertos en el tema.
De tal forma, todas estas son entonces formas de subjetividad, formas de ver
los hechos, de comprender el mundo, una polifonía o tejido de voces
(Barthes, 1980). Cuántas de ellas para no recibir una versión sesgada de la
realidad, una “realidad” intersubjetiva.
La intersubjetividad tiene, de esta manera, su temporalidad, sus
dimensiones. Ahí se refleja en la lengua la experiencia de una relación
primordial, constante, indefinidamente reversible, entre el hablante y su
interlocutor. En último análisis, es siempre el acto de palabra en el proceso
de intercambio a lo que remite la experiencia humana inscrita en el
lenguaje. (Benveniste, 1999: 81).
Para Todorov (2013) es un diálogo entre enunciados.
…emplearé por tanto aquí, preferiblemente, en el sentido más exclusivo, el
término
intertextualidad, introducido por Julia Kristeva en su
presentación de Bajtin, reservando la denominación de dialógico (a) para
ciertos casos particulares de intertextualidad ... Las relaciones dialógicas
son relaciones semánticas entre dos enunciados… toda relación entre dos
enunciados es intertextual… forzosamente intertextual (Todorov, 2013:
101,102)
En este sentido, afirmamos que un discurso se caracteriza por ser
dialógico y esta dialogicidad se presenta en tres grados (Bajtin en Todorov,
2013):
El primero es el de la presencia plena, por ende, del diálogo explícito. En
el otro extremo- tercer grado- el discurso ajeno no está evidenciado, pero
si evocado, porque está disponible en la memoria colectiva. Y el grado dos,
o de hibridación, según Bajtin, combina los dos anteriores: a ratos es la voz
directa del locutor, y otras evocada a otro enunciador. Ello implica un
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grado de mayor o menor evidencia del otro discurso, y un grado de
evaluación o emisión de juicios sobre ese discurso. (120)
Aparecen aquí lo que denominamos marcas del enunciador o
deícticos, dichas marcas colocan al enunciador como centro y punto de
referencia, como principal coordenada en el discurso, dando evidencia desde
su punto de vista, de la presencia de subjetividad. (Benveniste, 1999):
Entonces, los deícticos se configuran en los indicios de la presencia
de dicho enunciador o enunciadores en el enunciado audiovisual (Pereira,
2005). Ejemplo de ello pueden ser los ángulos de cámara para contar la
historia subjetivamente, desde los ojos y la voz del personaje y junto a ello
todo indicio, pista, rastro, sombra, huella y efecto de su presencia cuentan en
primera persona.
También son posibilidades de enunciación audiovisual la presencia
de cadencias musicales o referencias ambientales, la deformación y
tratamiento sonoro, el enfoque o tratamiento de la historia, los cut aways o
fuera de campo, los ralenti, los flash backs, los blanco y negros y otras formas
de afectación de los significantes visuales y sonoros, metonimias, elipsis y
metáforas que representan al sujeto de la enunciación o al enunciador en un
momento de la diégesis, que sería el gran enunciado.
Con lo anterior inevitablemente, hemos tocado el tema de la
subjetividad e intersubjetividad en el texto audiovisual, esto es, la presencia
misma del enunciador y otros enunciadores, en todas sus formas.
Ahora bien, todo enunciador tiene una intención y enuncia para
alguien. No obstante, para Ricoeur (1994) el texto se desprende de su autor,
lo que Barthes (1980) denomina la muerte del autor, y por tanto, se diluye la
intención de éste y queda oculta para el interlocutor final, es decir, el
destinatario.
Lo que en general caracteriza a la enunciación es la acentuación de la
relación discursiva al interlocutor, ya sea éste real o imaginario, individual
o colectivo… es la estructura del diálogo. Dos figuras en posición de
interlocutores son alternativamente protagonistas de la enunciación.
(Benveniste, 1999: 88)… El enunciador se sirve de la lengua para influir
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de algún modo sobre el comportamiento del alocutario, pues dispone de
un aparato de funciones como la interrogación, la intimación – órdenes-,
la aserción si o no. (87)
El interlocutor o destinatario puede ser un personaje de la historia o
bien el público que ve el audiovisual, es el otro extremo de la
intersubjetividad, pues es quien interpreta el enunciado, siendo este proceso
el último ejercicio de subjetividad.
Otros aspectos de la intersubjetividad son las condiciones de
enunciación, esto es, el contexto político, histórico, cultural, espacial y el
medio tecnológico donde se enuncia o se emita; factores que alteran el
sentido, la comprensión y los efectos del enunciado hecho discurso sobre sus
destinatarios.
En la película ¿Dónde está el piloto? irónicamente, los pasajeros de la
infortunada aeronave ven en el proyector la película Aeropuerto 77, ficción
sobre una tragedia aérea, basta recordar la cara de los pasajeros.
Otro ejemplo es la denominada primavera árabe, la forma como
jóvenes árabes se movilizaron en contra de las dictaduras de turno en sus
respectivos países, replicando las acciones que veían en las imágenes que
compartían mediante las redes sociales. El enunciado, hecho discurso, se
traduce en acción.
Por otra parte, el medio que transmite, el director y el productor son
también enunciadores, porque marcan la obra y la narración con su estilo, su
huella particular y determinan el espacio y el soporte tecnológico de la
emisión. Una obra presentada por Paramount Pictures, dirigida por Martin
Scorcesse o escrita por Stephen King garantiza unas marcas particulares
diferentes a una cinta respaldada por Almodovar, Luc Besson o Cuarón, por
ejemplo. ¿O no esperan ustedes un reportaje distinto sobre un mismo hecho
noticioso si lo ven en Telesur que si lo ven en CNN? Tan sólo a partir del
enfoque de la noticia puede el espectador predecir quien la está emitiendo.
Esta forma de intersubjetividad se denomina intertextualidad. Dicha
intertextualidad, en la forma como la conciben Barthes (1966), Bajtin y
Kristeva (1969), consiste en citar directa e indirectamente otros enunciadores
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o voces, es decir, embragarse o desembragarse en la enunciación a la manera
de Greimás (1982). Un ejemplo de intertextualidad en la pantalla grande es
la escena de la escalera de la estación del tren, que acontece en la película Los
intocables. No hace falta mucha concentración para notar que, más que un
plagio, dicha escena es un homenaje a la trágica escena de la escalera Odessa,
de la película El acorazado Potemkim. Es más, ¿cuántos de nosotros han visto
al director Tim Burton hacer uso de los monstruos, la mítica estética y la
stimmung (Eisner, 1998) expresionista alemana en cada una de sus películas?
En la música suele suceder algo similar cono es en el caso de la
música del caribe, de la cual muchos somos parte: digan ustedes ¿cuántas
veces en los puentes musicales de diferentes temas y ritmos, de la mano de
importantes intérpretes tropicales no han escuchado por un instante la
famosa cadencia introductoria de El manicero?
Cabe mencionar también la imitación como forma intertextual. El
remedo, es decir, el intento por caracterizar a un personaje, disfrazarse de tal,
es una forma de asumir la intertextualidad. Cuando imito, Yo me trasformo
en él, y asumo sus cualidades enunciativas, es la mimética aristotélica como
ejercicio poético, nicho de subjetividad (Aristóteles, 2002).
Por su parte, la interdiscursividad como forma de intersubjetividad
se evidencia precisamente en la conjunción de varios discursos en un
enunciado audiovisual. Se entiende por discurso un acto de comunicación y
manifestación de la enunciación (Benveniste, 1999), una manifestación de
lenguaje (Greimás, 1987), una interacción (Van Dijk, 1996).
Particularmente el discurso audiovisual se entiende todo aquel
conjunto de códigos o signos que desde lo figurativo, lo icónico y lo indicial,
se pueden organizar de tal manera que construyen un relato, donde
predomina la metonimia (Barthes, 1966). La iconicidad es propia del signo y
en este sentido, un signo icónico es una imagen visual (Eco, 2000).
En el signo icónico, se da una relación de primeridad, esto es, que
una cualidad del objeto está presente en el signo (Peirce, 1999). Lo figurativo
y la semejanza son los rasgos que une en la imagen visual al signo con su
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objeto, dicho de otra forma, en la pantalla vemos figuras que parecen
realidades.
También la relación del signo con su objeto puede ser causal, esto es,
el signo está atado a su objeto por ser parte, efecto o huella de éste, o en la
voz de Peirce (1999), una relación de segundidad. Así, en una historia
planteada audiovisualmente, la acción de sus personajes suele tener, en el
desarrollo de la trama, una reacción o consecuencia.
A pesar de la primacía del código icónico, cabe recordar que eso no
implica que dentro de la imagen audiovisual no pueda hacer presencia el
mensaje lingüístico. De hecho, así es, pueda ser que se presente en forma de
frase, slogan o anclaje.
Se trata de un metalenguaje aplicado no a la totalidad del mensaje icónico,
sino tan sólo a algunos de sus signos. El signo es verdaderamente el
derecho de control del creador (y por lo tanto de la sociedad) sobre la
imagen: el anclaje es un control; frente al poder proyectivo de las figuras,
tiene una responsabilidad sobre el empleo del mensaje. (Barthes, 1980: 3)
Otra forma de hacer presencia el mensaje lingüístico en el discurso
audiovisual, es reemplazando el diálogo de los personajes, y a esto se le
denomina relevo. Sucede de igual forma en la historieta o comics, en el
mensaje gráfico y también en la audiovisualidad.
Poco frecuente en la imagen fija, esta palabra relevo- se vuelve muy
importante en el cine, donde el diálogo no tiene una simple función de
elucidación, sino que, al disponer en la secuencia de mensajes, sentidos
que no se encuentran en la imagen, hace avanzar la acción en forma
efectiva. (3)
Otro aspecto del discurso es ser un texto en contexto que recupera
las circunstancias de su enunciación, su historicidad y la ideología del
enunciador (Gonzáles de Ávila, 2002) y de su productor (Lotman, 2000) y de
ahí su aspecto simbólico que se encuentra entre lo mítico y lo poético y se
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
asocia a la presencia de isotopías (Greimás, 1987) o expresiones relacionadas
con un sentido primario.
Asimismo, todo discurso contiene dos categorías fundamentales:
persona y tiempo.
Son categorías elementales, que son independientes de toda
determinación cultural y donde vemos la experiencia subjetiva de los
sujetos que se plantean y se sitúan en el lenguaje y por él. Tratamos aquí
de poner en claro dos categorías fundamentales del discurso, conjuntas
por lo demás necesariamente, la de la persona y la del tiempo. (Benveniste,
1999. 70)
Precisamente, estas coordenadas sirven para remitirnos a la
genealogía del discurso y rastrear ese heterogeneidad discursiva sus
antecedentes, convirtiéndolo en un metadiscurso (González de Ávila, 2002).
El estilo es el hombre. Pero podemos decir: el estilo es por lo menos dos
hombres o, más exactamente, el hombre y su grupo social, encarnado en
su representante acreditado, su oyente (Bajtin en Todorov, 2013: 105)
Una muestra de lo anteriormente dicho son los chistes o gracejo, los
cuales son por excelencia, interdiscursivos, por ello usamos el humor para
criticar la sociedad, para hablar de sexo, credos, razas, relaciones, política,
economía, por ello los chistes o gracejos están en función de un contexto
intertextual previo. Reímos cuando entendemos a que se refiere el chiste o la
situación. Los programas de humor, por ejemplo, hacen lo propio en
televisión. Desde los stand up, hasta los sketch cómicos, tales como el Chavo
del Ocho, están llenos de interdiscursividad, presente en cada gesto, palabra,
accesorio o, acción de sus personajes y en detalles del escenario.
Temas como la pobreza- y la manera de afrontarla- el abuso, el
arribismo, la supervivencia, el sistema económico latinoamericano, las
relaciones interpersonales y otros mitos sociales se hacen discurso presente
en los diversos conflictos que abordan cada capítulo. Reímos cuando
entendemos a qué se refiere el chiste o la situación, de hecho, Chaplin,
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Cantinflas y el Chavo tiene un discurso común: la pobreza y el instinto de
supervivencia social.
Igualmente la intersubjetividad sucede en otro tipo de expresiones
como la obra musical del cantautor Ruben Blades, pues a través de sus
acordes, tonos y letras, cuestiona la fé, la ideología, el sistema económico y
otras superestructuras de la humanidad, mensajes que adquieren sentido
cuando se ponen en contexto con determinados momentos históricos y
políticos.
Por ello, en la compresión del discurso, más allá del aspecto
sintáctico y semántico, intervienen los deseos, las creencias y las valoraciones
del destinatario, (Van Dijk, 1996: 61) e igualmente, su experiencia y
presaberes, es decir su aspecto cognoscitivo, organizando la información en
esquemas de conocimientos previos que le permitan la comprensión de su
sentido.
El espectador debe contar con un nivel cognoscitivo para comprender el
discurso, es decir, un marco de conocimientos acerca del tema o los
hechos. (Van Dijk, 1996: 40- 41)
Dicho marco de conocimientos nos permite comprender los
diversos temas y remas inmersos en el discurso, es decir, la información
previa y nueva que se va presentando a lo largo del discurso (Van Dijk, 1996).
Por todo lo anterior queda claro que el enunciado audiovisual
cumple con los aspectos y elementos de la enunciación que planteaba
Benveniste (1999), y es posible de igual forma evidenciar en él, las marcas o
huellas del productor o enunciador; la presencia, asimismo, de distintos
enunciadores y con ellos, la intersubjetividad representada en formas de
intertextualidad e interdiscursividad. Cabe resaltar que se cumple
plenamente lo reiterado por Barthes (1980) cuando expresó que todos los
lenguajes, como prácticas sociales, finalmente, debían ser explicados
mediante el sistema de sistemas: la lengua. Y esta ponencia es prueba de ello.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Referencias Bibliográficas
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Barthes, Roland. (1966) Introducción al análisis estructural de los relatos. Revista
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Benveniste, Èmile. Problemas de lingüística general II. México: Siglo XXI editores, S.A., 1999.
Eco, Umberto. (2000) Tratado de semiótica general. Lumen. Barcelona.
Eisner, Lotte H.: La pantalla demoníaca, Editorial Cátedra, Madrid, 1998.
González de Ávila, Manuel. (2002). Semiótica crítica y semiótica de la cultura. Barcelona:
Editorial Anthropos.
Greimas, A. J. y Courtés, J. Diccionario razonado de la teoría dellenguaje. Madrid: Editorial
Gredos, 1982.
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Kristeva, Julia. (1969). Bakthine, le mot, le dialogue et le roman. Critique, 239. P.146.
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televisiva. Conexão – Comunicação e Cultura v. 4, n. 8. Pp. 101-116.
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Todorov, Tzvetan (2013). Mijail Bajtin: el principio dialógico. Bogota. Instituto Caro y
Cuervo.
Van Dijk, Teun (1996) Las estructuras y funciones del discurso. Editorial siglo XXI. Madrid.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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"How to Get Away With Murder": Estudo da
Estrutura Temporal na Narrativa Complexa
Heidi Campana Piva – UNESP
Letícia Passos Affini – UNESP
Introdução
Diversos autores afirmam que se vive, desde o começo da década de
1990 até hoje, na era da complexidade televisiva. Isso quer dizer que as
narrativas seriadas apresentam inclinação em direção à complexidade, tanto
estrutural quanto estilística, da trama (BORDWELL, 2010; CAMERON,
2008; MITTELL, 2006). O modelo complexo de narrativa se diferencia do
clássico por usar a complexidade como uma alternativa às formas episódicas
e seriadas, que têm caracterizado as séries de televisão desde sua origem
(MITTELL, 2006). Entretanto, sabe-se que ainda são exibidas mais sitcoms e
dramas convencionais do que narrativas complexas, de modo que a
complexidade não substitui as formas convencionais na maior parte da
programação televisiva atual (MITTELL, 2006). Adicionalmente, essa nova
forma de contar histórias também tem sido utilizada no cinema
hollywoodiano e nas produções independentes (estadunidenses ou não),
apesar das diferenças evidentes entre essas indústrias e a própria televisão
(CAMERON, 2008).
A complexidade das narrativas está intrinsecamente ligada à
complexidade do próprio ser humano moderno. Ao se considerar a evolução
científico-tecnológica do mundo e da sociedade nos últimos duzentos anos,
é possível perceber que uma mudança de paradigma está ocorrendo. Mesmo
que os princípios aristotélicos de começo-meio-e-fim ainda sejam válidos, há
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novos padrões estéticos que também determinam a qualidade e a coerência
de uma ação dramática.
Antigamente, ser um membro da audiência era um estado
temporário, definido pelos momentos passados em frente a uma tela. Nos
dias de hoje, o avanço dos meios de comunicação aliado às novas tecnologias
midiáticas transformou o ato de assistir televisão numa experiência contínua,
de forma que os momentos nos quais não se está assistindo televisão tornamse pausas (ALLEN, 2013). O comprometimento do espectador
contemporâneo ultrapassa a hora de transmissão do programa, pois ele
afilia-se a fã-clubes e sociedades-fã, participa de eventos, constrói
enciclopédias temáticas colaborativas online e consome produtos
relacionados ao programa (DAS NEVES, 2011). Essa mudança de paradigma
levanta uma importante questão: um indivíduo, como o descrito acima,
membro de uma audiência perpétua, quer ou precisa de uma história finita
ou conclusiva? (ALLEN, 2013).
Além das transformações tecnológicas diretamente relacionadas ao
aparelho de televisão (como a possibilidade de gravar um programa), o
surgimento de outras tecnologias impactou de forma decisiva a narrativa na
televisão. Com o advento da televisão por assinatura, por exemplo, e,
principalmente hoje em dia, com os serviços on demand100, houve uma
ruptura com os antigos rituais de recepção dos programas seriados. Aqueles
que eram transmitidos uma ou duas vezes por semana, em determinado
horário e de acordo com a grade de programação da emissora, agora são
constantemente deslocados em termos de frequência e ordem de exibição, no
caso da televisão por assinatura (BALOGH, 2002), e assistidos no momento
determinado pelo espectador, no caso dos serviços on demand.
Analogamente, a internet permitiu que os espectadores formassem
uma espécie de inteligência coletiva na busca por informações,
interpretações e discussões de narrativas complexas. Esse canal, além do
convite ao engajamento do público, inclui a possibilidade de participação dos
100 do inglês: "sob demanda". Exemplos: Netflix, Netnow, Telecine OnDemand...
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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próprios criadores nas discussões e nos fóruns, também usados com o fim de
obter feedback sobre a compreensão e as expectativas do público em relação
à trama (MITTELL, 2006).
Serialização e Narrativa Complexa
Ao contrário do que estabelece o senso comum, a forma seriada de
narrativa não foi originada na televisão. Muito antes do aparecimento dessa
mídia já era possível identificar a serialização no folhetim, nas cartas, sermões
e até em romances. Posteriormente, manteve-se através dos seriados do
cinema, do radio-drama e da radionovela (MACHADO, 2000).
De acordo com Arlindo Machado (2000, p. 86) "(...) foi o cinema
que forneceu o modelo básico de serialização audiovisual de que se vale hoje
a televisão". Além disso, o cinema, mesmo que indiretamente, forneceu o
paradigma da narrativa complexa. Isso provavelmente aconteceu através das
grandes mentes que migraram da indústria cinematográfica (cujo poder está
centrado na figura do produtor) para a televisão e, nesse segundo ambiente,
encontraram maior liberdade criativa e mais controle sobre sua obra. Essa
flexibilidade criativa, proveniente do modelo televisivo, contribuiu para o
surgimento de seriados de narrativa complexa das últimas três décadas,
como, por exemplo, os seriados dos diretores e roteiristas: David Lynch
(Twin Peaks), Aaron Sorkin (Sports Night e West Wing), Joss Whedon
(Buffy, Angel, e Firefly), Alan Ball (Six Feet Under) e J. J. Abrams (Alias e Lost)
(MITTELL, 2006).
O sucesso das séries citadas acima indica que os seriados e as
minisséries são adequados a jogos com a temporalidade (BALOGH, 2002).
Dessa forma, nesse tipo de trama a complexidade é construída por meio de
arcos narrativos desenvolvidos ao longo dos capítulos, permitindo que os
espectadores aprimorem sua habilidade de compreensão através do
acompanhamento a longo-prazo (MITTELL, 2006). Logo, conclui-se que a
televisão por assinatura seja o lugar ideal das séries complexas.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Narrativa complexa: definições
Bordwell (2010) define "narrativa" como uma cadeia de eventos
correlacionados através da relação de causa e efeito, que ocorre em um
determinado tempo e espaço. O vínculo do receptor com a narrativa é dado
pela compreensão do padrão de mudança e estabilidade, causa e efeito, como
também de tempo e espaço. O tempo molda o entendimento da ação
narrativa; isto quer dizer que, em uma narrativa complexa, na qual a trama é
construída fora da ordem cronológica, o espectador se empenha em colocar
os eventos em sequência, a fim de determinar sua duração e frequência
(BORDWELL, 2010). Dessa forma, a complexidade de uma narrativa se
origina das relações entre os tempos presente, passado e futuro do universo
diegético (MUNGIOLI, PELEGRINI, 2013).
De uma forma mais ampla, Jason Mittell (2006) escreve que a
narrativa complexa é caracterizada por um equilíbrio híbrido entre as formas
seriadas clássicas, episódica e contínua, sem, necessariamente, fechar a trama
em cada capítulo (como no formato episódico convencional) e privilegiando
estórias com continuidade, passando por diversos gêneros (MITTELL,
2006).
Pode-se dizer que as tramas complexas brincam com a
desorientação temporária através da falta de indicações e sinalizações
explícitas durante a narrativa, provocando, desse modo, confusão. Assim,
para que haja compreensão da história, os espectadores necessitam de um
engajamento mais ativo. Isto faz com que o público se relacione de uma
forma mais comprometida em relação às narrativas complexas do que em
relação às convencionais. Mesmo que a primeira pareça inicialmente
inacessível ao público massivo, devido à sua complexidade, o aumento da
popularidade de certos programas complexos, que pode ser testemunhado
atualmente, indica que esse público massivo pode e tem se envolvido com
tramas mais desafiadoras (MITTELL, 2006).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Apesar de a reorganização dos eventos de uma narrativa de forma
não cronológica não significar, necessariamente, divergir da estrutura
dramática aristotélica, espectadores menos focados nos componentes
tradicionais de começo-meio-e-fim podem estar mais dispostos a aceitar e
compreender uma narrativa na qual esses elementos estejam aparentemente
rearranjados (ALLEN, 2013).
How To Get Away With Murder: o corpus
Dada a relevância desses estudos, neste projeto será realizada uma
análise da obra de ficção seriada estadunidense "How to Get Away With
Murder', criada por Peter Nowalk, produzida por Shonda Rhimes e dirigida
por Michael Offer.
É uma característica das séries contemporâneas ter um escritor e
um diretor principal, porém, contar com a presença de outros profissionais
na escrita e direção de cada episódio. Dessa maneira, "How to Get Away With
Murdef contou com os diretores: Bill D'Elia (episódios 2, 12 e 15), Randy
Zisk (episódio 3), Laura Innes (episódios 4 e 14), Mike Listo (episódios 5 e
13), Eric Stoltz (episódio 7), Debbie Allen (episódio 8), Stephen Williams
(episódio 9) e Michael Katleman (episódio 11). Os episódios da série também
foram escritos por: Rob Fresco (episódio 3), Erika Green Swafford (episódios
4 e 13), Tracey A. Bellomo (episódios 5 e 11), Michael Foley (episódios 6, 9 e
14), Warren Hsu Leonard (episódios 7 e 11), Doug Stockstill (episódios 8 e
13), Marcus Dalzine (episódio 10) e Erika Harrison (episódio 12).
A primeira temporada foi veiculada nos Estados Unidos da América
pela rede American Broadcasting Company (ABC), entre 25 de setembro de
2014 e 26 de fevereiro de 2015. No Brasil, a série começou a ser veiculada
pelo canal pago Sony, a partir do dia 5 de março de 2015.
Em 2015, o seriado foi contemplado como Programa de Televisão
do Ano (Television Program of the Year), pelo Instituto Americano de
Cinema (American Film Institute) e também foi o vencedor dos prêmios:
Outstanding Drama Series, pelo Image Awards e GLAAD Awards.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Método e Embasamento Teórico
De forma ampla, buscou-se neste projeto a compreensão da
estrutura temporal, bem como a análise dos aspectos composicionais estruturação do roteiro - e estilísticos - procedimentos fílmicos e discursivos
- da obra de ficção seriada "How to Get Away With Murdef, aqui
denominada pela sigla HTGAWM. Mais especificamente, foi desenvolvida
uma abordagem descritiva, a fim de auxiliar na identificação dos elementos
de temporalidade, bem como das premissas dramáticas que regem a trama,
dos elementos de conflito, ações principais e ambientes. Os episódios foram
assistidos via assinatura da Netflix.
Essa identificação foi realizada por meio do mapeamento temporal
das sequências de cenas dos episódios da série. A partir da desconstrução dos
episódios Piloto e "It's All Her Fault", foi possível examinar alguns aspectos
da obra sob as óticas dos seguintes autores:
Foram aplicados ao corpus, basicamente, os conceitos discutidos
nos trabalhos Complex Narratives, de Jan Simons (2008), e Puzzle Films:
Complex Storytelling and Contemporary Cinema, de Warren Buckland
(2009). Ambos os autores fazem uma compilação de vários teóricos a
respeito da natureza intrincada dessa forma de escrita (Complex
Storytelling), descrevendo os termos mais utilizados atualmente para discutir
a narrativa complexa da perspectiva do cinema. Adicionalmente, serão
utilizados os textos: Modular Narratives in Contemporary Cinema, de Allan
Cameron (2008), e Film Art: an Introduction, de David Bordwell (2010).
Tanto a seleção de Simons quanto a de Buckland incluem diversos autores
que analisam diferentes aspectos do mesmo processo (narrativa complexa).
A série corpus foi então colocada em análise, usando como base os
conceitos desses autores, brevemente descritos a seguir:
• "Forking-path narratives" (D. Bordwell): Padrão de narrativa que
destaca um único evento crucial, delineando as consequências
inevitáveis. Essas consequências formam uma cadeia de diferentes
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•
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eventos alternativos, todos possíveis, até que um deles se torne
canônico. Esse tipo de narrativa obriga o espectador a usar sua
habilidade de conectar sequências, de forma mais plausível, em
relação ao tempo, ao espaço e à causa-e-consequência.
"Multiple-draft films" (E. Branigan): Para Branigan, a definição
anterior de Bordwell ("Forking-path narratives") faz parte de um
fenômeno mais geral, não se referindo às propriedades da narrativa,
mas sim às hipóteses, tramas alternativas e conjecturas construídas
no imaginário do criador, antes do chamado "final cut", que definirá
o evento canônico.
A diferença fundamental entre esses conceitos, definidos por
Bordwell e Branigan, está no nível de complexidade, de forma que
eles não são mutuamente excludentes e sim completares; um
pressupõe o outro.
"Modular narratives" (A. Cameron): Para Cameron, a complexidade
da narrativa está na dialética entre o tempo linear-irreversível e o
tempo não linear-reversível. As obras cujas narrativas são do tipo
modular narratives procuram resolver a tensão entre a ordem e a
entropia, entre o determinismo e o caos.
"Database narratives" (M. Kinder): é a estética na qual a narrativa é
dividida em segmentos e submetida a articulações complexas. Assim
como na modular narratives, este conceito também oferece uma série
de pedaços desarticulados de narrativa, que estão frequentemente
arranjados de forma não cronológica. Este arranjo pode ser feito via
flashforwards e/ou flashbacks. Dessa forma, são reveladas a
arbitrariedade da escolha feita pelo autor e a possibilidade de se criar
estórias alternativas.
Tanto para Cameron quanto para Kinder, a inovação trazida pelos
conceitos de modular narratives e database narratives está na
exposição dos processos de seleção e combinação de elementos
(personagens, imagens, eventos), que são o cerne de toda e qualquer
estória. Ao se dissecar uma narrativa em bases de dados ou módulos,
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
•
•
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Cameron e Kinder retiram a "linha do tempo" e a cronologia da
trama, apoiando-se no paradigma modernista e estruturalista.
"Mind-game films" (T. Elsaesser): Este conceito é aplicado às
narrativas que colocam em questão a confiança do espectador em
relação à trama. Questões como o que é real ou irreal, quem é são ou
insano, o que é verdadeiro ou falso, quem é a vítima ou o agente são
levantadas nesse tipo de narrativa.
"Puzzle plots" (W. Buckland): Narrativas em "puzzle" (quebracabeça) adotam o tempo não linear, repleto de voltas (loops) e cuja
realidade do espaço-tempo encontra-se fragmentada. A narrativa é,
neste caso, repleta de lacunas, de ambiguidades e de estruturas
labirínticas, onde os personagens são frequentemente
esquizofrênicos, perderam sua memória, estão mortos (com ou sem
a ciência do espectador) ou, simplesmente, não são confiáveis.
Análise de Resultados
Foram desconstruídos, até o presente momento, os episódios Piloto
e "Its All Her Fault". Para a criação da tabela utilizada na desconstrução,
levou-se em consideração a estrutura de investigação em três coordenadas
(figura 01), proposta por Bordwell (1996)5.
Do eixo principal foram extraídas, de forma direta, as categorias
"personagem", "espaço" e "tempo". Dentre as subdivisões de tempo, o termo
"ordem" compreende o arranjo, ou seja, o modo como os eventos são
apresentados ao receptor ao longo da narrativa. "Freqüência" e "duração"
foram desconsideradas por não serem relevantes neste estudo. O termo
"seqüência", utilizado nos estudos cinematográficos, foi adotado e é definido
como uma única e coerente unidade de ação dramática, sendo que esta pode
conter vários planos, espaços distintos e com entradas e saídas de
personagens.
Dessa forma, a desconstrução aconteceu como descrita a seguir, em
uma parcela da primeira tabela:
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Tabela 1: Parcela da desconstrução do episódio Piloto. [Observação: dado o tamanho
da tabela original (5 páginas), optou-se por inserir, neste trabalho, apenas uma fração
dela (1,5 páginas)]
Legenda: Sequência "Tempo/ordem "Espaço "Personagens
Episódio 1 - Veiculado em 25/07/2014
S T
L
P
Ação
1 Marco Fogueira Multidã Introdução com um discurso do treinador
Zero
o (alunos do time de futebol da faculdade. Festa. Os
do
alunos acendem a fogueira.
campus)
OBS
Cenas
escuras,
predominânci
a do azul e
verde.
Plano-sequência: a câmera passa pela grama e se afasta da multidão, em direção à floresta
1 Marco Floresta
Wes
Wes chega com a arma do crime. Cenas
a Z ero
Michaela Personagens decidem devolver a arma escuras,
Connor (uma escultura da Justiça) para a cena do predominânci
Laurel
crime; limpeza de digitais e sangue. Jogam a do azul e
uma moeda (cara ou coroa) para decidir o verde.
que deve ser feito com o corpo da
vítima/morto/assassinado.
2 Três Faculdade Wes
Clipe: Personagem chega de bicicleta ao
meses de Direito
campus, passa por um mural de avisos
antes
onde há vários cartazes de uma menina
desaparecida com o nome de Lila Stangard.
Wes entra na sala de aula.
Abertura.
2 Três Sala
de Alunos Wes aparece despreparado no primeiro dia
a meses aula
Annalise de aula devido ao fato de ter entrado na
antes
Wes
faculdade pela lista de espera. Conforme a
Laurel
professora questiona a sala, os cinco alunos
Michaela principais são apresentados (Wes, Laurel,
Connor Michala, Connor, Asher).
Asher
Aula continua:
Episódio 1 - Veiculado em 25/07/2014
S T
L
P
Ação
OBS
3 Três Casa de Alunos Subtrama (história de Gina). Annalise dá
meses Annalise Annalise aos alunos a tarefa de apresentar a melhor
antes Keating
Gina (ré) defesa para este caso na aula do dia
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Bonnie
Frank
seguinte. Os quatro melhores serão
estagiários dela e o melhor ganhará um
troféu (escultura da Justiça). Frank e
Bonnie são apresentados a todos como
sócios de Annalise.
3 Marco Floresta
Wes
Flashframe: Wes correndo em direção à Cenas
a Zero
Michaela floresta.
escuras,
Connor
predominânci
Laurel
a do azul e
verde.
3 Três Casa de Alunos Annalise falando que possuir a escultura é
b meses Annalise Annalise ter imunidade no semestre.
antes Keating
Gina (ré)
Bonnie
Frank
3c Marco Floresta
Wes
Flashframe: Mão de Wes segurando a Cenas
Zero
Michaela escultura.
escuras,
Connor
predominânci
a do azul e
Laurel
verde.
3 Três Casa de Alunos Annalise continua
d meses Annalise Annalise falando.
antes Keating
Gina (ré)
Bonnie
Frank
3e Marco Floresta
Wes
Flashframe: Michaela falando para Cenas
Zero
Michaela devolver a escultura.
escuras,
Connor
predominânci
Laurel
a do azul e
verde.
3f Três Casa de Alunos Annalise encerra a
meses Annalise Annalise aula.
antes Keating
Gina (ré)
Bonnie
Frank
Clipe de efeito de passagem de tempo: Alunos saem da casa. Cidade. Anoitece.
4 Três Quarto de Wes
Wes tenta pensar em uma defesa para a
meses Wes
tarefa de Annalise, mas o som do
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
antes
apartamento ao
concentração.
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lado
tira
a
sua
É possível fazer algumas observações a partir deste breve exemplo
do que está sendo feito nesta pesquisa. Em primeiro lugar, fica clara a
utilização de clipes e vinhetas de passagem de tempo, denominadas Elipse
Temporal. Neste trecho, observa-se o "Clipe de efeito de passagem de tempo:
Alunos saem da casa. Cidade. Anoitece.", posterior à sequência 3f na tabela.
Inserções como estas são frequentes ao longo da narrativa. Estas cenas são
feitas através de montagens diferenciadas, que atestam um ritmo acelerado.
Também é importante notar que, cada vez que a narrativa sofre uma
mudança de temporalidade brusca, ocorre simultaneamente uma mudança
estilística e a paleta de cores vai dos tons vivos e quentes ao escuro e azulado.
As sequências 1, 1a, 3a, 3c e 3e acontecem durante a noite do assassinato,
aqui denominada Marco Zero. Este marco foi estabelecido para facilitar a
desconstrução e a elaboração da linha do tempo da narrativa. Foi escolhida a
noite do assassinato como Marco Zero, pois se trata da primeira sequência
do primeiro episódio, sendo que as demais sequências acontecem três meses
antes deste marco. A partir do momento que o diretor escolhe caracterizar
todas as cenas do Marco Zero com uma determinada paleta de cores, e as
restantes com outra, ele cria um padrão que é rapidamente decodificado pelo
espectador.
O espectador contemporâneo possui a capacidade de interpretar
esses padrões estilísticos de forma rápida e, assim, compreende quais são os
códigos que regem a temporalidade na narrativa. Apesar da sutileza do
processo, de um jogo de cores ou de uma montagem diferenciada que trás
uma elipse temporal, este espectador, alfabetizado audiovisualmente, provase capaz de compreender tais artifícios; o espectador do século passado,
contudo, não acompanharia com facilidade.
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Considerações Finais
O desenvolvimento das narrativas em narrativas complexas,
Forking-path narratives, Multiple-draft films, Modular narratives, Database
narratives, Mind-game films e Puzzle plots, nas últimas décadas, sugere a
quebra de paradigma das tramas audiovisuais. Destacam-se a diluição das
fronteiras entre as formas episódica e contínua, o aumento do domínio sobre
a mecânica da própria trama e a criação de demandas por um espectador
engajado. Dessa forma, o espectador tornou-se membro de uma audiência
perpétua, interligada por redes sociais, ávidapelo consumo de conhecimento
e predisposta a aceitar e compreender tramas mais desafiadoras.
Entretanto, a aferição de audiência, realizada pela The Nielsen
Company101, aponta para a queda no número de audiência, como pode ser
visto na tabela a seguir:
Tabela 2: Aferição de audiência realizada pela Nielsen TV Ratings: ©2015 The
Nielsen Company. All Rights Reserved.
Número do Episódio Data de Veiculação (EUA) Número de espectadores (EUA)
Piloto (1)
25 de setembro de 2014
14,12 milhões
Finale (15)
26 de fevereiro de 2015
8,99 milhões
Uma hipótese que possivelmente justifique a perda de audiência
descrita na tabela pode ser o fato do seriado estar preso à grade de
programação da ABC (American Broadcasting Company), o que dificulta o
acompanhamento do espectador. Embora a trama não seja inovadora, o
modo através do qual ela é contada, de forma complexa narravitamente, faz
com que a falta de apenas um episódio dificulte a compreensão da trama
como um todo, pois isso significa uma perda muito grande de informação.
101 Disponível em: <http://tvbythenumbers.zap2it.com/2015/02/27/thursday-final-ratings-the-blacklistamerican-idol-adjusted-up/368251/> acesso em: 20 de fevereiro de 2016.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
No dia 18 de setembro de 2015, após comprar os direitos para a
série, a Netflix anunciou que os quinze episódios da primeira temporada de
HTGAWM estariam disponíveis nos meses seguintes para assinantes nos
Estados Unidos da América, Canadá e América Latina, incluindo o Brasil
(WALLENSTEIN, Andrew 2015). Mesmo que a Netflix não disponibilize
suas aferições de audiência, acredita-se que a narrativa da série HTGAWM
obtenha maior sucesso em serviços on demand, onde a pessoa pode
determinar a hora que deseja visualizar o conteúdo, interromper a
transmissão, ou mesmo assistir novamente determinada cena, da forma que
lhe for conveniente.
Em suma, mesmo que uma narrativa complexa exija que o público
se relacione de forma mais comprometida, o que à primeira vista pode
parecer inacessível ao público massivo, o sucesso e o persistente surgimento
de novas séries complexas atestam para um fenômeno de alfabetização
audiovisual e engajamento do público em geral. Isto posto, é possível afirmar
que o indivíduo moderno não precisa de uma história finita, ou conclusiva,
que traga os elementos de começo, meio e fim, necessariamente nesta ordem,
provando-se, não somente apto a compreender, mas também mais inclinado
a aprovar narrativas que instiguem o pensamento e desafiem o intelecto.
Referências bibliográficas
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narrativa audivoisual sob demanda. Revista Razón y Palabra. v. 1, n. 89, marzo -mayo 2015.
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Murder'
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Variety.
disponível
em:
<http://variety.com/2015/tv/news/netflix-nabs-how-to-get-away-with-murder-season-1rights-worldwide-1201597221/> acesso: 20/02/2016.
YIN, Robert. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Tradução: Ana Thorell; consultoria,
supervisão e revisão técnica desta edição: Cláudio Damacena. Bookman. 2001.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Dramas coreanos e sua recepção no Brasil
Mariana Carrion Teodoro – UNESP
Maria Cristina Gobbi – UNESP
Introdução
Os dramas sul-coreanos são equivalentes às séries americanas e às
telenovelas latinas, e fazem parte de um movimento maior de propagação da
cultura coreana, que teve força na década de 1990, e atingiu um nível global
aproximadamente a partir de 2010.
O termo "Onda coreana" ("Hallyu" em coreano) foi cunhado pela imprensa
chinesa pouco mais de uma década atrás para se referir à popularidade da
cultura pop coreana na China. O boom começou com a exportação de
dramas (minisséries) da televisão coreana para a China nos últimos anos
de 1990. Desde então, a Coréia do Sul emergiu como um novo centro para
a produção da cultura pop transnacional, exportando uma variação de
produtos culturais para os países asiáticos da vizinhança. Mais
recentemente, a cultura pop coreana começou a expandir de sua zona de
conforto na Ásia para audiências mais globais no Oriente Médio, África,
Europa, e Américas. (KOCIS, 2011, p.11) 102
Outros elementos da Hallyu são, entre outros, a culinária, o idioma,
e principalmente a música pop, mais conhecida por K-Pop (Korean pop, ou
102 Tradução livre da autora. Texto original: "The term "Korean Wave" ("Hallyu" in Korean) was coined
by the Chinese press a little more than a decade ago to refer to the popularity of Korean pop culture in
China. The boom started with the export of Korean television dramas (miniseries) to China in the late
1990s. Since then, South Korea has emerged as a new center for the production of transnational pop
culture, exporting a range of cultural products to neighboring Asian countries. More recently, Korean
pop culture has begun spreading from its comfort zone in Asia to more global audiences in the Middle
East, Africa, Europe, and the Americas."
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
pop coreano em inglês). Todos esses elementos estão intimamente
interligados e com isso um funciona como difusor do outro. Embora o Kpop possa ser mais popular mundiamente, os dramas foram os responsáveis
por difundir, primeiramente em outros países da Ásia, esse estilo musical
enquanto ainda estava sendo formulado na década de 1990.
A Onda coreana que começou no final dos anos 1990 incluiu vários
produtos para exportação, englobando dramas, música, filme e comida,
mas o eixo principal desse fenômeno foram os dramas. Geograficamente,
o impacto foi causado no Japão, no mundo que possui o idioma chinês
(incluindo a própria China), e o sudeste asiático. Entretanto, isso começou
a mudar largamente por volta de 2010. [... ] o K-Pop [... ] está liderando
uma tendência completamente nova, expandindo as fronteiras da Onda
coreana além da Ásia, para Europa, América do Norte, América Central,
América do Sul, e em outros locais. (KOCIS, 2011, p.39).103
A importância da Hallyu para a Coréia do Sul é grande, pois ela
influencia fatores não só culturais como também econômicos e até políticos
do país. Assim, o K-Pop e os dramas são fortalecidos como principais meios
de uma indústria cultural funcional, que está sendo expandida globalmente.
Depois do sucesso dos dramas coreanos, os cantores coreanos, também
começaram a entrar nos mercados da China, Hong Kong e Taiwan [...] A
Onda Coreana promoveu uma ponte sobre a mútua desconfiança e
desinteresse que persistiu entre a Coréia e a China por metade do século
desde a Guerra coreana. Um diplomata coreano até mesmo disse que os
dramas coreanos e as músicas fizeram em menos de um ano o que os
103
Tradução livre da autora. Texto original: "The Korean Wave that began in the late
1990s included several export products, including dramas, music, film and food, but the
primary axis of this phenomenon was dramas. Geographically,
the impact was focused on Japan, the Chinese-speaking world (including China itself), and
Southeast Asia. This began to change greatly right around 2010, however. [...]K-pop [...] is
spearheading a completely new trend while expanding the borders of the Korean Wave
beyond Asia to Europe, North America, South and Central America, and elsewhere."
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
diplomatas não poderiam ter feito apesar de décadas de esforço. (KOCIS,
2011, p. 21-22).104
Existem vários motivos para explicar o sucesso dessa expansão
cultural. Em relação aos dramas, a mistura dos elementos culturais e
narrativos parece criar uma grande atração para o público no exterior, além
das estratégias de promoção do próprio drama.
Muitos observadores atribuem o número crescente de fãs ao redor do
mundo ao poder emocional dos dramas coreanos. Os k-dramas oferecem
temas entrelaçados de família, romance, amizade, artes marciais, guerra, e
negócios, e são vistos como capazes de lidar com relacionamentos
amorosos de um jeito que é mais terno, significativo, e emocional do que
sexual. O nível de investimento emocional em relacionamentos humanos
e realidades sociais constitui uma grande fonte de prazer popular que
continua a atrair as mulheres para os dramas coreanos. O que também faz
esses dramas atraentes são suas dramatizações de "sensibilidades asiáticas",
incluindo valores familiares e sutilezas emotivas tradicionais que são
calorosamente abraçadas pelos espectadores de várias gerações em países
asiáticos. Um olhar mais próximo mostra que diferentes dramas são
populares em diferentes países por diferentes razões. Os americanos
acham os dramas coreanos relaxantes e animados; os europeus acham as
tramas descomplicadas e românticas. Asiáticos, entretanto, descobrem
estilos de vida e tendências que eles gostariam de imitar. A repressão sutil
de emoções e paixão romântica intensa sem sexualidade declarada ressoa
mais entre os espectadores no Oriente Médio. Países muçulmanos acham
osdramas "seguros": eles são menos explícitos comparados aos
americanos, e aderem às tradições. (KOCIS, 2011, p.72). 105
104 Tradução livre da autora. Texto original: "After the success of Korean dramas, Korean singers, too,
began entering the Chinese, Hong Kong, and Taiwanese markets [...] The Korean Wave provided a bridge
over the mutual distrust and disinterest that had persisted between Korea and China for the halfcentury
since the Korean War. One Korean diplomat even said that Korean dramas and songs did in less than a
year what diplomats could not despite decades of effort."
105 Tradução livre da autora. Texto original: "Many observers attribute the growing number of fans
around the world to the emotional power of Korean dramas. The K-dramas offer interwoven themes of
family, romance, friendship, martial arts, war, and business, and they are seen as able to deal with love
relationships in a way that is more tender, meaningful, and emotional than sensual. The level of emotional
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
O China Daily pontuou que a interação do time de produção coreana com
os espectadores é um elemento incomum que contribui ao seu sucesso.
"Muitas produções populares têm seus próprios websites, onde os
roteiristas postam parte de roteiros finalizados, convidando os
espectadores a deixar mensagens, discutir a trama e trazer sugestões para
futuros episódios. Isso não só mantém o interesse dos espectadores nos
dramas de TV vivo como também ajuda os roteiristas e diretores a fazer
mudanças na linha narrativa para servir a demanda da audiência", o jornal
disse. (CHINA DAILY, [S.n.t.]; apud KOCIS, 2014, p.11-12).106
Independente dos fatores que tornam bem-sucedidos os elementos
da Hallyu, é inegável que é um movimento que criou uma grande
comunidade de fãs; diversificados em relação ao que gostam e aderem da
cultura sul-coreana, bem como seus países e sua forma de recepção. Devido
a isso, é um movimento que não só alcançou uma escala global, mas que pode
interferir na identidade do fã, e também nas produções culturais desses
outros países.
Desenvolvimento
No Brasil, embora encontre dificuldades, como a falta de apoio das
mídias tradicionais, a Hallyu é um movimento em ascensão; sendo o K-Pop
investment in human relations and social realities constitutes a major source of popular pleasure that
continues to draw women to Korean dramas. What also makes those dramas appealing is their
dramatization of 'Asian sensibilities,' including family values and traditional emotive subtleties that are
warmly embraced by cross-generational viewers in Asian countries. A closer look shows that different
dramas are popular in different countries for different reasons. Americans find Korean dramas relaxing
and cheerful; Europeans find the plots uncomplicated and romantic. Asians, meanwhile, discover
lifestyles and trends they wish to emulate. The subtle repression of emotions and intense romantic passion
without overt sexuality resonates further with viewers in the Middle East. Muslim countries find the
dramas 'safe': they are less explicit compared to American ones, and adhere to traditions."
106 Tradução livre da autora. Texto original: "The China Daily pointed out that the Korean production
team's interaction with viewers is the unusual element that contributes to their success. 'Many popular
productions have their own websites, where scriptwriters post part of the finished scripts, inviting viewers
to leave messages, discuss the plot and come up with suggestions for future episodes. This not only keeps
viewers' interest in the TV dramas alive, but also helps scriptwriters and directors make changes to the
storyline to suit the audience's demand,' the newspaper said".
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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seu principal elemento. A comunidade de fãs cresce gradualmente,
fortalecida principalmente pela internet. Os fãs também promovem
encontros e festas, além de haver um espaço crescente para o K-Pop em
diversos eventos, como, por exemplo, o concurso K-Pop Cover Challenge,
que aconteceu no evento Anime Friends 2015, com a presença do grupo de
K-Pop, Cross Gene.
Devido a seu caráter interligado, essa mesma comunidade de fãs, de
uma forma ou outra, acaba sendo levada até os dramas sul-coreanos, por
meio de seus cantores e grupos favoritos (que muitas vezes atuam ou cantam
a trilha sonora do drama), ou pela própria internet e indicação de amigos e
parentes que assistem às produções. Dessa forma, e devido a variedade, é
comum que a comunidade de fãs que consome os dramas sul-coreanos seja
a mesma que é fã de K-Pop.
Diferentemente de alguns países da América Latina, os dramas no
Brasil encontram sua força de dispersão basicamente na internet. Muitas
vezes isso ocorre devido ao gosto dos fãs de assistir as produções em seu
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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idioma original, com legendas disponíveis quase sempre por fansubs (sites
ou blogs internacionais ou nacionais, legalizados ou não, nos quais a
comunidade de fãs disponibiliza a legenda em diversos idiomas), ou serviços
como Netflix.
Entretanto, outro motivo de a internet ser a base mais forte para os
dramas, é a falta de espaço nas mídias tradicionais. Em muitos países da
América Latina, como, por exemplo, Chile e Peru, os dramas sul-coreanos
foram transmitidos e retransmitidos em canais abertos e fechados, ajudando
a criar uma familiaridade com o conteúdo, e consequentemente com os
outros elementos da Hallyu, alcançando um público muito mais amplo do
que simplesmente a comunidade de fãs já familiarizados com essas
produções.
Em 2015, dois dramas sul-coreanos foram transmitidos no Brasil.
"Iris -Organização Secreta Coreana", em janeiro pelo canal Globosat+ ; e
"Happy Ending - O Caminho do Destino", em setembro pela "Rede Brasil".
Apesar de ser um começo para que outros sejam transmitidos, muitas
pessoas não tiveram acesso à transmissão desses dramas, devido à falta de
acesso a esses canais, gerando pouca repercussão.
Uma outra ferramenta de divulgação são os DVDs de dramas
produzidos por pequenas lojas, tanto no Brasil como em outros países, como
o Chile. Facilmente alcançam pessoas fora da comunidade de fãs, no entanto
o fato de se tratar de uma atividade não legalizada e localizada em poucos
lugares, torna difícil o consumo e propagação dos dramas.
Para a pesquisa de Iniciação Científica "Na Onda Hallyu: o K-Pop no
cenário da América Latina", apoiada pela Fapesp; o questionário "Na Onda
Hallyu- o K-Pop no cenário da América Latina" foi montado em duas versões
(espanhol e português); e aplicado na rede social Facebook, em diversas
comunidades de dramas e K-Pop de diferentes países da América Latina,
com o objetivo de conhecer o consumo dessa cultura pelos fãs
latinoamericanos.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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O questionário em português recebeu 298 respostas, sendo a maioria
(278) do sexo feminino. Conforme o Gráfico 1, a maioria dos fãs se
encontram na faixa etária de 15 a 19 anos.
Nos Gráficos 2 e 3, percebe-se a estreita ligação entre os elementos
da Hallyu; e ainda que possuam sua própria formação e independência, um
fator tende a influenciar o outro, criando quase a mesma comunidade de fãs,
principalmente em países fora da Ásia, onde a onda coreana chega como uma
novidade cultural.
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Segundo aponta o Gráfico 4, o maior consumo de dramas ocorre pela
internet, de forma online e ou por download em fansubs, o que também
reflete uma mudança na internet e nos próprios fansubs, devido ao maior
consumo ser online e não apenas por download.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Conclusão
A Hallyu é um fenômeno cultural sul-coreano que atingiu, nos
últimos anos, um alcance global. Embora se apresente em diferentes partes
do mundo, seu consumo é diferente em cada país. Seus principais produtos
são os dramas, equivalentes às telenovelas latinas; e o K-Pop, pop coreano.
Muitos países da América Latina que abriram espaço para os dramas
em seus canais de televisão tornaram o fenômeno mais facilmente conhecido,
possibilitando o crescimento da comunidade de fãs, e o alcance de um
público que não está inserido naturalmente no movimento.
No Brasil, o pouco espaço que os dramas encontram nos canais de
televisão não é suficiente; e por se tratar de um dos mais importantes
produtos culturais da onda, esse fato afeta igualmente os fãs, que consomem
essas produções praticamente pela internet.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Assim, o movimento Hallyu é divulgado mais através do K-Pop,
possuindo certo crescimento, embora lento. Dessa forma, como um
fenômeno não muito estabelecido, com uma comunidade de fãs baseada na
internet e relativamente espalhada pelo país; sem o apoio dos dramas para
aumentar o público e tornar o fenômeno popular no país, a Hallyu se
encontra em uma situação indefinida, podendo se estabelecer, ainda que
lentamente, ou desaparecer ao longo dos anos.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Diagnóstico DOFA de la distribución de cine en
la Reunión Especializada de Autoridades
Cinematográficas del Mercosur (2003-2014)
Mauricio Berrantes - Universidade do Rosario
Introducción
Latinoamérica es una región marcada por una riqueza cultural
inmensurable que poco a poco ha podido vencer la inestabilidad política y la
dependencia económica para expandir sus productos más allá de su
delimitación geográfica. Uno de los mecanismos que permite esta gradual
independencia cultural es la cooperación política entre los países de esta
parte del mundo, y que se refleja en la organización de bloques como el
Mercado Común del Sur (Mercosur), un proceso de integración regional
constituido en 1991 entre Argentina, Brasil, Paraguay y Uruguay y que hoy
ya cuenta con las incorporaciones de Venezuela y Bolivia (esta última en
proceso de adhesión).
Los objetivos del Mercosur, que están encaminados hacia una
integración económica, social y cultural, invitan a reflexionar acerca del rol
que cumple este bloque en sectores como el cinematográfico. Y es que el
modelo de negocio de esta industria representa millones de ingresos por
cuenta de entradas a las películas, merchandising y venta de derechos de
exhibición, lo que ubicaría este asunto dentro de la agenda económica. Sin
embargo, el cine también es parte fundamental en la construcción de
memoria y en la transmisión de elementos identitarios de un territorio
determinado, con lo que tiene una dimensión cultural intrínseca.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Una ambivalencia que implica responsabilidades para cualquier
Estado, como la de lograr compatibilizar las condiciones del mercado con la
protección, preservación y promoción de las películas locales. Así, se estaría
permitiendo la labor social y cultural que mantienen los productos
audiovisuales internos sin que esto signifique la ausencia de otros discursos.
Latinoamérica debe ser un escenario que posibilite el acceso a todas
las expresiones cinematográficas, incluyendo las que hoy son dominantes,
como es el caso de Hollywood, pero también otras provenientes de
continentes como Asia y Europa y de manera esencial las que reflejan y
ayudan a la construcción de identidad en la región; es decir, las que se
producen a nivel local, en cada país, o a nivel regional.
Sin embargo, y aunque premisas de este tipo resultan claras en el
mundo académico y en algunos escenarios políticos, son pocos los avances
recientes en materia de formación de públicos, distribución de cine,
exhibición y promoción de películas no alineadas al discurso oligopólico
hollywoodense. Las cifras hablan por sí solas, la mayoría de las películas que
se consumen en países latinoamericanos provienen de Estados Unidos,
reflejo de un monopolio en todas los eslabones de la cadena de un filme, que
hace imposible la incidencia de otros discursos mientras no se aúnen
esfuerzos públicos y privados en pro de las industrias locales del audiovisual
(Sinca.cultura.gob.ar, 2015)107.
Esta ausencia de resultados concretos para mejorar la situación de la
industria cinematográfica de la región invita a reflexionar en los escenarios
donde estos temas se han discutido. Uno de los más importantes es la
Reunión Especializada de Autoridades Cinematográficas del Mercosur
(RECAM), que desde 2003 congrega a los principales representantes de los
institutos de cine de los países Mercosur para discutir y proponer alternativas
que mejore el estado del sector audiovisual del cine.
107 Las películas locales tienen poca incidencia en el mercado total de espectadores. En 2013 las películas
de Argentina representaron el 15,43 % del total de espectadores; en Brasil fue de 10,50%; en Colombia, el
7,92% y en Uruguay el 2,62% (Información del Sistema de Información Cultural de la Argentina y
Proimágenes Colombia).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Esta investigación, que tiene como objeto de estudio a la RECAM,
busca analizar las dificultades, oportunidades, fortalezas y amenazas (DOFA)
del proceso de distribución de películas en este órgano consultor. Un
diagnostico así facilita la comprensión de la incidencia que tiene el proceso
de integración del Mercosur en un sector tan importante para la economía y
la cultura de un país como es el cinematográfico y que adolece por la ausencia
de estrategias que permitan un impacto certero de las películas nacionales en
el mercado interno.
El tiempo de existencia de la RECAM permite ponderar los
resultados que se tienen desde su creación, en 2003, para así analizar su
efectividad. Una revisión de los acercamientos académicos, de la legislación
local y de los documentos oficiales de la RECAM sirven para considerar el
panorama de la industria cinematográfica desde una idea tan necesaria en
Latinoamérica: la integración regional.
No se puede negar que la construcción de muchos de los imaginarios
sociales en la sociedad latinoamericana está ligada al control hegemónico de
los filmes de Hollywood. Esto se debe a que la percepción que se tiene acerca
de lo “propio” se crea a partir de expresiones como el cine, de allí que resulta
básico que los gobiernos logren sostener a esta industria y evitar que el
mercado mundial entorpezca el propósito de los productos audiovisuales a
la hora de ayudar en los procesos de memoria e identidad de una sociedad.
Es necesario fortalecer el audiovisual para que represente la
identidad cultural de Latinoamérica y esto solo se logra mediante la creación
de espacios de integración regional. En ese sentido es fundamental
considerar los elementos que intervienen en la definición de políticas
públicas que inciden en este proceso y que tratan de sobrellevar procesos
históricos, que aunque similares, han tenido más dificultades que éxitos.
(Getino, 2007, p. 181).
Y allí el tema de distribución entra a jugar un rol definitorio, porque
es por medio de este eslabón de la cadena productiva de una película, que se
logra difundir el mensaje audiovisual para hacerlo masivo. En consecuencia,
las políticas públicas deben fortalecer la cultura audiovisual latinoamericana
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
a través de un modelo de distribución que tenga el respaldo de la legislación
de cada país y que se consolide en organismos de integración del tipo de
Mercosur, para así suplir las falencias de la estructura audiovisual de la
región:
La falta de financiamiento y de plataformas es mucho mayor a la hora de
buscar distribución y difusión de estas obras audiovisuales dentro de cada
país, y aún más difícil si se busca una red latinoamericana. Lo que sucede
grosso modo es que tenemos en todo nuestro continente una insuficiencia
estructural de base en el audiovisual. (Moreno, 2012, p. 124).
La delimitación temporal es desde el origen de la RECAM, en 2003,
hasta 2014, lo que permite abarcar los primeros esfuerzos por definir
políticas relacionadas con la distribución del sector audiovisual y su
evolución a lo largo de los años. De esta forma se busca reflexionar acerca de
la distribución de contenidos audiovisuales y las políticas públicas
relacionadas, que tengan origen en un bloque regional como Mercosur.
Discutir este asunto permite entender la función del Mercosur como
facilitador de políticas culturales que conducen a consolidar el cine
latinoamericano. Así, se puede definir el rol de este bloque para incidir en la
distribución de contenidos del sector audiovisual, tanto a nivel regional,
como a nivel local.
Lo cierto es que un escenario ideal muestra coherencia entre los
acuerdos de un organismo regional como Mercosur y la legislación local. Esta
observación y evaluación de las políticas culturales de distribución
cinematográfica permite proponer nuevos desafíos y entender cómo es el
proceso de consolidación de una cultura audiovisual en la región.
Con este proyecto se busca abordar también conceptos relacionados
con la administración y la gestión porque es responsabilidad del sector
- 465 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
académico proponer alternativas a las estructuras ya implantadas. Además,
se busca hacer un diagnóstico del estado actual de las políticas
cinematográficas en distribución, resaltando la importancia del trabajo
conjunto entre todos los países que pertenecen a la RECAM.
2.1 Integración regional
Ernst Haas define a la integración regional como un proceso en el
que los Estados se “mezclan, confunden y fusionan voluntariamente con sus
vecinos, de modo tal que pierden ciertos atributos fácticos de la soberanía, a
la vez que adquieren nuevas técnicas para resolver conjuntamente sus
conflictos” (1970, p. 6). Un concepto que para esta investigación permite
entender la función de bloques como Mercosur a la hora de intervenir de
forma local para la solución de dificultades en sectores como el audiovisual.
El libro titulado Integración regional: hacia una estrategia de cadenas
de valor inclusivas (2014), coordinado por Osvaldo Rosales, director de la
División de Comercio Internacional e Integración de la Comisión
Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), organismo
dependiente de la Organización de las Naciones Unidas esboza el panorama
acerca del concepto de integración regional, que es visto como un “proceso
multidimensional, que abarca no solo las temáticas económicas y
comerciales, sino también las políticas, sociales, culturales y ambientales” (p.
9).
Para entender el concepto de integración regional hay que ubicar en
contexto el caso de Latinoamérica, acostumbrada a buscar procesos de
integración en los que prevalezca la discusión de las industrias más fuertes y
- 466 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
en donde sectores como la cultura se aíslan y se dejan como parte de una
agenda alterna. Pese a que cuando se habla de una real integración se incluye
a la cultura como parte de este proceso, la ampliación de los mercados y la
protección de la economía suele limitarse a las industrias de mayor ‘poder’
económico.
En el texto de la CEPAL se habla de la necesidad de tener una
integración en la que se procure un mayor estímulo a las alianzas públicoprivadas, al tiempo en el que se trabaja en la resolución de las asimetrías. Las
iniciativas que se pretenden defender son las de coordinación, cooperación,
convergencia e integración profunda de todos los sectores.
Y en lo que tiene que ver con la integración de las industrias
culturales, en especial a la de la industria audiovisual, Néstor García Canclini
(2000) es indispensable por la visión que aporta al reflexionar acerca de que
en las pantallas de la región existe una baja representación de productos
nacionales o latinoamericanos y una gran presencia de contenidos
originados en Estados Unidos. De allí que surja una de las principales
dificultades para la integración audiovisual en la industria cinematográfica,
que es la subordinación de la mayoría de circuitos nacionales a sistemas
transnacionalizados de producción y comercialización (p. 98).
2. 2
Políticas públicas
El impacto reducido que tiene el cine nacional en los países de
Latinoamérica requiere de esfuerzos que se originen en los distintos
gobiernos. De allí que sea necesaria la articulación de políticas que respondan
- 467 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
a las demandas de la sociedad y atiendan a problemáticas como las que
afectan al sector audiovisual.
Las políticas públicas ocupan un rol fundamental en cualquier
propósito de cambio porque son herramientas a través de las cuales se puede
incidir en un país o en toda una región. Según el teórico Andrew Heywood
(1998, p. 408-412) un gobierno logra construir una relación positiva o
negativa con la sociedad que representa, en la medida en que las políticas
públicas sean efectivas, o no.
Pierre Muller (2002) analiza la función que tiene una política pública
para actuar de forma decisiva en el sector en el que se quiere aplicar. Es por
eso que la define como “un proceso de mediación social, en donde el objeto
de cada política pública es tomar a su cargo los desajustes que pueden ocurrir
entre un sector y otros sectores, o aun entre un sector y la sociedad global”
(p. 48). Es decir, se puede considerar como un mecanismo de acción para
atender temas de un sector específico o entre sectores.
En esto coinciden Yves Meny y Jean Claude Thoening cuando
aseguran que “una política pública se presenta bajo la forma de un programa
de acción gubernamental en un sector de la sociedad o en un espacio
geográfico” (1989, p. 130). Estos autores caracterizan una política pública con
cinco elementos:
1.
Tiene medidas concretas.
2.
Comprende una decisión o formas de asignación de
recursos que de una u otra forma mantienen un tipo de
coerción.
3.
Responde a un marco general de acción.
4.
Afecta a un público específico, grupos o a la sociedad
en general.
- 468 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
5.
2016
A través de ella se definen metas y objetivos.
Para la presente investigación, se busca analizar las políticas públicas
de la RECAM destinadas a mejorar la distribución de cine en la región,
entendiendo la importancia que tiene este eslabón de la cadena productiva
de una película para la industria cinematográfica de un país o de una región.
(1989, p. 130).
Otro autor, Peter J. May (2003) también complementa la definición
de políticas públicas al referirse a los objetivos que se pretenden con ellas:
Las políticas públicas establecen los cursos de acción para abordar los
problemas o para proporcionar los bienes y servicios a los segmentos de la
sociedad. Las políticas hacen más que simplemente anunciar un curso de
acción. Típicamente suelen contener un conjunto de intenciones de
objetivos, una mezcla de instrumentos o medios para la consecución de
las intenciones, una designación de entidades gubernamentales o no
gubernamentales encargadas de llevar a cabo las intenciones, y una
asignación de recursos para las tareas requeridas. (p. 226-233)
En cualquiera de los casos se coincide en que una política pública
es una mediación entre un gobierno y la sociedad en busca de acciones
que logren atender problemáticas a temas específicos de un sector o de
varios sectores. Y ese es el sentido en que este concepto va a ser tratado en
la presente investigación, para lograr entender el trabajo que ha hecho la
RECAM.
1.3
Industrias Culturales
Para hablar de este concepto hay que remitirse a la escuela de
Frankfurt en 1947 cuando Adorno y Horkheimer se refieren a los peligros
de aplicar formas de reproducción y estandarización a los productos
- 469 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
culturales. Lo contraproducente de buscar la difusión masiva e incluso lo
dañino de hablar de cultura para la propia cultura, porque resulta una forma
de entregarla al reino de la administración.
Sin embargo, y para entender a la industria cultural, Adorno y
Horkheimer caracterizan a los productos de esta industria como capaces de
ser consumidos de forma rápida, incluso en estado de distracción:
La cultura es una mercancía paradójica Se halla hasta tal punto sujeta a la
ley del intercambio que ya ni siquiera es intercambiada; se resuelve tan
ciegamente en el uso que no es posible utilizarla. Los motivos son en el
fondo económicos. Es demasiado evidente que se podría vivir sin la entera
industria cultural. es excesiva la apatía que ésta engendra en forma
necesaria entre los consumidores. Por sí misma, puede bien poco contra
este peligro (1969, p. 23).
Para efectos de esta investigación, las Industria Culturales (I.C.)
serán asumidas bajo el concepto de la UNESCO en el documento Culture,
trade and globalization: questions and answers (2003, p. 11) en donde define
a las I.C. como “esas industrias que combinan la creación, producción y
comercialización de contenidos que son intangibles y culturales en su
naturaleza. Estos contenidos están protegidos por derechos de autor y
pueden ser bienes o servicios”. Además, la UNESCO aclara que las I.C. tienen
dos facetas, una cultural y una económica, la primera de ellas, relacionada
con el valor que le añade a los contenidos por transmitir valores para los
individuos y para la sociedad.
En Latinoamérica, abordar el tema de las industrias culturales se
remonta varias décadas atrás, como se puede ver en las declaraciones del II
Encuentro de Ministros de Cultura y Encargados de Políticas Culturales de
América Latina y el Caribe, un espacio de la Celac (Comunidad de Estados
- 470 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Latinoamericanos y Caribeño), que en 1990 en Mar del Plata plantean
desafíos similares a los de hoy: “desgravaciones impositivas, unificación de
pautas procesales, arancelarias y administrativas y complementación de
industrias e insumos” (Getino, 1995, p. 38).
Desde entonces, se sugería hacer un diagnóstico de la legislación y de
las normas aduaneras para fomentar las industrias culturales y la integración
de los medios audiovisuales. Getino reconoce la doble dimensión de las
industrias culturales, por el valor material e inmaterial, ideológico y
económico para buscar “dilucidar las relaciones, a menudo tensas y
conflictivas, que son propias del sector y que tienen que ver, a grandes rasgos,
con la cultura y la economía, dos términos que a lo largo de la historia
acostumbraron marchar por separado” (Getino, 2010)
Es muy importante diferenciar a la industria cultural cuando se le
compara con otras industrias. El académico Enrique Bustamante reconoce el
valor simbólico cuando se habla de I.C., algo que la ubica fuera de un proceso
de industrialización, pues aunque se pueda reproducir no puede ser
serializada ni estandarizada, pues se renueva de forma constante. Él insiste
en que los productos de las industrias culturales cuenta con una dimensión
simbólica que no depende de un proceso de industrialización, lo que la separa
de otros productos de las industrias. (2008, p. 23)
2.4 La Industria Cinematográfica
- 471 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
La concepción romántica del cine como arte es necesaria a la hora de
entender los aportes simbólicos que logra con cada producto. Sin embargo,
es imposible evadir la dimensión económica que tiene, que lo ubica como un
modelo de negocio capaz de ser analizado bajo una mirada administrativa
que, en un escenario ideal, buscaría la mejor gestión encaminada hacia un
mayor aprovechamiento, tanto cultural, como comercial.
Roman Gubern define a esta industria desde la paradoja a la que se
somete por las dos dimensiones con las que cuenta. Para este autor no es fácil
compatibilizar el interés creador del artista con el natural deseo del inversor
de ver reflejado su dinero en resultados económicos positivos:
Además de ser arte, espectáculo, vehículo ideológico, fábrica de mitos,
instrumento de conocimiento y documentos histórico de la época en la
sociedad en que nace, el cine es una industria y la película es una
mercancía, que proporciona unos ingresos a su productor, a su
distribuidor y a su exhibidor. (2014, p. 14).
Es precisamente esta dicotomía lo que permite entender la
naturaleza de cualquier estudio que incluya al sector cinematográfico como
objeto de investigación. Gubern entiende la naturaleza del cine como
instrumento de promoción ideológica y propaganda para las masas, al
tiempo que asume necesario reflexionar sobre los intereses financieros en los
productos de esa industria.
En esto coincide Thomas Guback (1980) en su libro La industria
internacional del cine, en el que señala que una película es un artículo de
consumo comercial y también es un vehículo de comunicación, que presenta
una imagen, un punto de vista y que es “un producto infinitamente
exportable” (p. 32). Es precisamente esta condición lo que caracteriza a las
- 472 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
producciones estadounidenses, que entienden la importancia del cine no
solo para el mercado local, sino como un producto de exportación capaz de
transmitir los valores y la forma de ver el mundo de esa cultura.
Resulta muy llamativo analizar la postura de Estados Unidos frente
a la cadena productiva de una película porque refleja la forma en que ese país
asume el cine, algo que permite entender las diferencias con la manera en
que Latinoamérica ha abordado este sector. Guback lo resume muy bien al
asegurar que “En una economía de orientación capitalista, la actividad
cinematográfica es un negocio – bien organizado, altamente capitalizado y
poderoso” (1980, p. 37).
En esa medida es básico entender la cadena de valor de una película,
que comienza con el proceso de creación y producción de un filme, pasando
por la distribución, la promoción y la exhibición en salas. Federico Martí y
Pablo Yebra (2001) dividen en actividades la industria audiovisual en:
producción de contenidos, provisión de servicios (exhibición), transmisión
o distribución, equipamiento para el consumidor y equipamiento para
productores y consumidores (p. 126). De esta forma mezclan servicios
audiovisuales con actividades de carácter industrial para señalar que el
proceso de una película lo componen distintos eslabones que están
directamente correlacionados.
Para Latinoamérica, el creciente dominio de la industria
norteamericana es lo que ha conducido a que se haga un llamado, desde la
academia y desde algunos escenarios políticos, para trabajar en estrategias
que permitan llegar a un escenario favorable para la industria
cinematográfica de la región. Sobre este tema, es Octavio Getino quien
profundiza en la importancia de aprovechar las afinidades en cuanto a
- 473 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
procesos históricos y lenguaje de los países latinoamericanos para buscar
generar un mayor intercambio de contenidos audiovisuales. Sin embargo, las
asimetrías en temas como la producción lleva a que sea difícil pensar en un
trabajo conjunto sin antes haber superado estas distancias, que ponen a
México, Argentina y Brasil con la mayor cantidad de producciones y muy
lejos de los demás países.
12.500 películas producidas desde 1930 a 2000 en América Latina, 5.500
corresponden a México (45% del total), 3.000 a Brasil (25%) y 2.500 a la
Argentina (20%). De ese modo, el 90% de la producción de películas en
una región que representa más de 400 millones de personas, se concentró
en solo tres naciones, correspondiendo el 10% restante a más de veinte
países y, de manera particular, solo a los que decidieron desarrollar
políticas para la producción industrial de imágenes propias. (Getino,
2007, p. 169)
Es decir, los desafíos que plantea Getino tienen como fundamento
aprovechar las condiciones favorables que tiene Latinoamérica de avanzar en
el sector audiovisual para poder hacer esfuerzos adecuados que reduzcan las
asimetrías y busquen enfrentar el control hegemónico del cine mundial que
tiene Hollywood.
2.5 Distribución de cine
El proceso de distribución es un proceso intermedio entre la
producción y la exhibición de una película y su importancia radica en que
resulta un eslabón fundamental para la difusión de contenidos audiovisuales.
Varias investigaciones de carácter académico, como las vistas en el estado del
- 474 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
arte de este trabajo, dan cuenta de la importancia de la distribución, que lleva
a que Hollywood controle el mercado fílmico a nivel mundial, pero que
también desde la perspectiva de Latinoamérica sea uno de los desafíos más
importantes.
Joel Augros (2000), en el libro ‘El dinero de Hollywood: financiación,
producción, distribución y nuevos’ mercados analiza que la función de la
distribución es la de ser intermediaria entre la producción y la presentación
del producto a los espectadores. Es un rol que cada vez tiene un papel más
importante porque conecta la fase creadora con la económica.
De igual forma, en el proceso para poder realizar la distribución de
una película se tienen que adquirir derechos que permitan la explotación de
una película. Ahí se define la delimitación geográfica, el tipo de soporte y los
tiempos determinados para realizar este proceso de distribución, con el
objetivo de rentabilizar al máximo la cinta (2000, p. 141).
El objeto que se quiere rentabilizar encierra características
particulares. La obra audiovisual, categorizada como película, “se caracteriza
por su amplitud, al abarcar toda forma de expresión audiovisual, constituya
obra o no; y por requerir su fijación en un soporte material” (González: 2001,
p. 12), una definición de 1993, que si bien requiere ser replanteada por los
cambios digitales en la industria cinematográfica, permite entender que la
película, más allá de su soporte, engloba derechos que la protegen y
comprometen su distribución y exhibición.
La explotación de la película se da por la dimensión económica que
tiene el cine. En el Manual del productor audiovisual, escrito por José
Martínez Abadía y Federico Fernández Díaz (2013) se citan las condiciones
para considerar al séptimo arte con principios económicos. Características
- 475 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
como los riesgos en la inversión que se hacen con una sola cinta y la alta
inversión, con una recuperación lenta, llevan a comprender el valor
económico en esta industria, así como la importancia de eslabones de la
cadena productiva del cine, como la distribución.
Una de las dificultades mayores para Latinoamérica en el tema de
distribución es que las majors tienen estructuras económicas que las llevan a
controlar todo el proceso productivo de una película. Como se citó en el
estado del arte del presente documento, las grandes empresas del cine
estadounidense cuentan con filiales de distribuidoras en los países en donde
entran a competir, con lo que no resulta difícil, ante la ausencia de políticas
públicas que protejan y controlen el mercado que se defiendan intereses de
las películas norteamericanas.
Las majors aprovechan la contratación por bloques (Block Booking o
Double feature Realese), que consiste en vender de forma conjunta varias
películas, una forma de desembarazarse de algunos bodrios (Augros, 2000:
202). Esto para que el modelo de negocio de Hollywood funcione y se puedan
invertir millonarias sumas sin temor a grandes pérdidas, porque todo se está
exhibiendo y generando ganancias, pese a que existan fracasos o películas que
por sí solas no lograrían grandes recaudaciones de dinero.
El éxito en distribución y exhibición en el cine es lo que hace rentable
el negocio y permite la existencia de empresas que se dediquen a la
producción audiovisual. Latinoamérica fortalece e incentiva la producción
de películas con leyes de cine que subsidian la producción cinematográfica.
El problema, que se evidenció en el estado del arte, es que se descuida el
proceso de distribución y exhibición, con lo que las películas no entran a
- 476 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
competir con el discurso dominante de Hollywood, que tiene una estructura
de negocio muy fuerte.
Las políticas públicas destinadas a la distribución resultan claves para
fortalecer la cinematografía latinoamericana. Bajo esa premisa los gobiernos
locales y los bloques regionales del Mercosur pueden ahondar en esfuerzos
que solucionen estas dificultades.
3. Metodología
Luego de definir como objeto de estudio a la Reunión Especializada
de Autoridades Cinematográficas del Mercosur (RECAM) y hacer una
revisión bibliográfica con fuentes documentales, fuentes digitales y fuentes
bibliográficas, que permiten delimitar el objeto de conocimiento, el paso a
seguir es un análisis de documentos relacionados con la RECAM a través de
una metodología de diagnóstico DOFA.
Las unidades de análisis definidas son:
1.
2.
3.
28 actas de la RECAM, incluyendo su acta fundacional y
actas extraordinarias.
4 Programas de trabajo de la RECAM.
4 Programas de cumplimiento de la RECAM.
De igual forma se tiene en cuenta la legislación vigente de cine de
Argentina y Brasil (Ley 17.741 y Ley del audiovisual 8.685), además de los
acuerdos bilaterales y regionales, a los cuales aunque no se les aplica la
metodología DOFA, son necesarias para identificar los elementos externos,
oportunidades y amenazas. Las bases estadísticas con las que ya cuenta el
INCAA y ANCINE, los organismos de cine de los dos países estudiados,
también son fundamentales para poder hacer un diagnóstico completo.
Se definieron tres categorías de análisis para diagnosticar el proceso
de distribución en la RECAM. El criterio para elegir esas categorías está
- 477 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
determinado por los derechos de propiedad intelectual que se relacionan con
la explotación de una obra audiovisual. Para ello se tomó como ejemplo la
legislación española en el Real Decreto Legislativo 1/1996 (Tapia, 2007) en el
que se tienen en cuenta tres derechos fundamentales que debe tener un
distribuidor. Sin embargo, pese a que estos conceptos resultan ser la base
para las categorías, estas se adaptaron al contexto de Latinoamérica y a las
necesidades de esta investigación.
El primero de ellos es el derecho de distribución, definido en el
artículo 19 de ese decreto como el proceso en el que se pone ante el público
las copias o soportes de un filme a través de un proceso comercial de venta,
alquiler o préstamo. Es decir, se entiende que esta categoría de análisis
representa la concepción básica que se tiene acerca de ese eslabón del proceso
de una película. Distribución entendida como la parte del proceso entre la
producción y la exhibición de una obra audiovisual.
En segundo lugar, el derecho de exhibición y reproducción,
íntimamente ligado al de distribución es el eslabón que sigue en el proceso
de un filme. Es un derecho con el que debe contar el distribuidor en su
negociación para poder poner a disposición de los exhibidores el producto
audiovisual. En ese sentido, entender las políticas públicas de la RECAM
destinadas a fortalecer este eslabón, es algo que influye en todo el camino de
difusión y explotación económica de una película.
Por último, el derecho de comunicación pública, inspirado en el
artículo 20 del Real Decreto Legislativo 1/196 aborda ya el proceso
comunicativo de publicitar una cinta para que se dé a conocer entre los
públicos a los que está destinada. Un acto de comunicación pública es el de
permitir “la proyección o exhibición pública de las obras cinematográficas y
de las demás audiovisuales” (Tapia, 2007) Para la presente investigación se
entiende el acto de comunicación pública como el de fomentar la promoción
que lleve a dar a conocer el producto a distintos públicos a nivel local o de
forma externa.
Para hacer el análisis de las fortalezas, debilidades, oportunidades y
amenazas, se propone un diagnóstico DOFA con cuatro subcategorías:
- 478 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
investigación, proyectos, gestión e integración. Estas subcategorías surgen a
partir de las primeras tablas de análisis de las actas de la RECAM que
permiten identificar ejes temáticos hacia donde están direccionados los
trabajos de este órgano consultor.
3.1 Diagnóstico DOFA
El siguiente cuadro está dividido por las categorías de análisis
utilizadas: distribución, exhibición y comunicación pública y las
subcategorías: investigación, proyectos, gestión e integración. Las fortalezas,
que son analizadas en primer lugar, son muy importantes a la hora de
reconocer los puntos fuertes con los que se cuenta en la RECAM, para así dar
espacio a solucionar luego las debilidades existentes. En los cuadros, cuando
hay un espacio en blanco es porque se considera que existe una ausencia o
ningún aspecto con la misma relevancia de los otros para ser incluido. Esta
ausencia, a su vez, refleja elementos a tener en cuenta de este órgano
consultor.
3.1.1 Cuadro fortalezas:
Distribución
Exhibición
Comunicación
Pública
Observatorio
Experiencia cuota de
1. Fortalezas
Mercosur
pantalla. Brasil y
Investigación
Audiovisual. A través
Argentina ya cuentan
del Observatorio
con experiencia en la
Mercosur Audiovisual
aplicación de
se hace un diagnóstico
regulación de cuota
teórico del estado de
de pantalla a nivel
- 479 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
la distribución en los
local, esto se hace
países Mercosur
evidente en los
(legislación
trabajos de
comparada).
legislación
comparada con los
que se cuenta.
\
1. Distribuidora
1. Cuota de pantalla.
1. Sello Mercosur
regional. Se discute el
Se plantea en la
Sello Mercosur actúa
2. Fortalezas
tener una
RECAM una cuota
como marca, una
en Proyectos
distribuidora regional
regional de películas.
idea de la RECAM
de películas o una red
2. Red de salas
que funciona a la
de distribución con un
Mercosur. Se
hora de buscar
sello del Mercosur en
desarrolla un
posicionar la
los productos
proyecto de red de
identidad
audiovisuales que
salas para tener un
mercosureña.
facilite la distribución.
circuito de
exhibición regional.
2. Estímulos a
3. Formación de
distribuidoras. Se
públicos. Se tienen
plantean estímulos
programas de
para fortalecer a las
formación de
distribuidoras locales
públicos desde la
y se busca mejorar
infancia, maleta
espacios de
infantil y otros
distribución como
procesos de
Ventana Sur.
educación en cine.
3. Fortaleza
1. Plan piloto de
1. Planes de trabajo
1. Promoción
en Gestión
distribución entre
En los planes de
conjunta Se
Argentina y Brasil, por
trabajo se incluye el
propone trabajar de
tener sectores
tema de exhibición
forma conjunta en la
- 480 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
similares, para luego
como uno de los
promoción de las
ser aplicado en
temas en los que se
películas del
Mercosur.
debe hacer especial
Mercosur.
2. En los planes de
énfasis.
2. Historia del
trabajo se incluye el
Mercosur. La
tema de distribución,
historia del
lo cual genera un
Mercosur traslada su
aspecto de
idea de unión para
observación a este
mandar un mensaje
eslabón de la cadena
regional a la hora de
productiva.
promocionar.
4. Fortaleza
Diálogo Se insta al
Festivales Los
1. Relaciones
en Diálogo /
diálogo entre el sector
festivales existentes
Internacionales Se
Integración
público y privado para
apoyados por la
construyen buenas
mejorar la
RECAM a nivel
relaciones con la
distribución, así como
regional y a nivel
Unión Europea y
el diálogo con otros
local son escenarios
otros mercados, que
bloques regionales.
de exhibición de
abren la posibilidad
productos del
de promocionar el
Mercosur que
cine del Mercosur en
permiten entablar
otros escenarios.
relaciones y vender
2. Foros y
ideas.
encuentros. Diálogo
entre profesionales
involucrados con la
industria
cinematográfica que
ayuda a la
promoción o
consecución de una
idea.
- 481 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
3.1.2 Cuadro debilidades
El siguiente cuadro corresponde a las debilidades en las categorías y
subcategorías ya nombradas. En la sección posterior, luego de las tablas, se
hará el análisis de los resultados que aquí se van evidenciando.
Distribución
Exhibición
1. Debilidades
Investigación
Falta de
aplicabilidad Los
resultados del
Observatorio
Mercosur
Audiovisual a nivel
de distribución no se
transforman en
soluciones prácticas.
Aplicación de
estudios. No se
generan estrategias a
partir de las
investigaciones que
se tienen desde el
Observatorio
Mercosur
audiovisual, con lo
que la teoría no
trasciende.
2. Debilidades
en Proyectos
Asimetrías en los
mercados en el caso
de Mercosur y
dificultad en cuanto
al idioma (Brasil y
Argentina) afecta
procesos de
distribución.
Sin unidad. Existen
una serie de
proyectos que
buscan fortalecer la
exhibición pero no
responden a una
línea de gestión
organizada y
direccionada que
permitan mejorar la
exhibición.
Comunicación
Pública
Lenguaje y
obstáculos culturales.
En el caso de Brasil y
Argentina la debilidad
intrínseca en el
proceso de promoción
de una película se da
por la distancia
cultural y el idioma.
Estímulos
monetarios a la
promoción. No hay
una importan
subvención, ni pública
- 482 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
ni privada, al tema de
promoción de una
cinta.
3. Debilidades
en gestión
1. Ausencia de
gestión Más allá del
discurso político no
se incluye a la
distribución en los
planes de trabajo o
en un modelo de
gestión que mida
avances.
2. Falta de
autonomía La
RECAM no tiene la
autonomía necesaria
para incidir en la
legislación de cada
país con respecto a
la distribución.
Gestión débil. En
los programas de
trabajo y en la
medición de
resultados no existen
metas claras para la
exhibición.
Gestión débil. Al
igual que con la
distribución y la
exhibición, en la
promoción existe
también una debilidad
desde los planes de
trabajo y las metas que
se plantean en la
RECAM.
No hay planes
concretos. A nivel
local, y se replica a
nivel regional, se
busca apoyo a la
producción o
coproducciones pero
no hay planes
concretos para tener
más apoyo al sector de
promoción de una
película.
4. Debilidades
en Diálogo /
Integración
Fracasos previos
Incumplimiento en
el caso de prueba
piloto de
distribución plantea
un antecedente
Desinterés.
Argentina declaró en
una de las reuniones
que no podía aplicar
una cuota regional
Concepto regional.
Hace falta fortalecer lo
regional como
concepto para vender
una identidad cultural
del Mercosur que sea
- 483 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
negativo para
proyectos futuros.
2016
por cambios
internos.
3. Errores locales,
errores regionales.
En el tema de
exhibición la
RECAM, al estar
compuesta por
autoridades de cine
de los distintos
países, repite vicios
de nivel local, como
el exceso de discurso
político frente a la
falta de
aplicabilidad.
aceptada entre el
público.
3.1.3 Cuadro de oportunidades
El siguiente cuadro corresponde a las oportunidades en las categorías
y subcategorías ya nombradas.
Distribución
1.
Oportunidades
Investigación
Exhibición
Comunicación
Pública
Investigación como
base Los estudios
académicos del
OMA permiten
plantear de forma
teórica un modelo
de distribución para
buscar planes de
aplicación.
- 484 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2.
Oportunidades
en Proyectos
Lo digital La
distribución digital
plantea alternativas
para avanzar hacia
una integración
regional que
compita contra el
modelo hegemónico
de Hollywood.
Caso de Brasil y
Argentina Brasil y
Argentina cuentan
con cinematografías
muy fuertes y redes
de distribución
amplias que
demuestran la
capacidad del
mercado.
3.
Oportunidades
en gestión
Ejemplo El éxito de
un proceso de
gestión para
mejorar la
distribución de la
RECAM sería un
modelo aplicable en
otros escenarios
regionales o locales.
2016
1. Internet y lo
digital. Las formas
de exhibición no
convencionales, en
otras plataformas son
pantallas que el cine
regional y local debe
aprovechar.
Lanzamientos que no
estén alineados al
mercado tradicional
y espacios
académicos.
2. Pequeñas
poblaciones. El
negocio de
distribución de las
grandes
distribuidoras se
concentra en grandes
complejos y en las
ciudades más
habitadas. En las
pequeñas ciudades se
pueden aprovechar
cinematecas,
cineforos y otros
espacios de
exhibición.
4. Legislación local
Con la regulación
adecuada se puede
formar públicos y
promover una cuota
de pantalla que
gradualmente mejore
la situación de
exhibición.
5. Tradición y
cultura. Apelar a la
tradición y a temas
de identidad para
lograr mayor
impacto en la
promoción de las
películas permitiría
que la exhibición y
distribución
crecieran gracias a
una acertada
comunicación de
este sector.
1. Redes sociales
Formas de
comunicación no
convencionales
(redes sociales) y
crecimiento para
fortalecer el impacto
de una película.
4. Medios locales.
Lograr un impacto
- 485 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
4.
Oportunidades
en Diálogo /
Integración
2. Relaciones
Internacionales Las
relaciones
internacionales con
la Unión Europea y
otros mercados
sirven de ejemplo
para fortalecer los
proceso de
distribución
internos y buscar
salidas para los
productos.
2016
3. Salas y
espectadores El
complejo de salas con
el que cuenta
Argentina y Brasil y
el potencial de
espectadores debe ser
aprovechado para
crecer en cifras de
exhibición.
Mercosur cuenta con
295 millones de
personas.
5. Cantidad en
producción
Argentina y Brasil
producen más de 100
películas anuales, lo
cual habla de un gran
material para ser
exhibido.
en los medios locales
o llegar a la
promoción a través
de regulación que
obligara a las cadenas
de televisión
permitiría visibilizar
cada vez más lo que
se hace en
Latinoamérica en
cuanto al
audiovisual.
2. Alianzas. Alianzas
con cinematografías
no dominantes como
europea permite que
el público pueda
recibir otro mensaje
y aceptar otras
formas de ver el
mundo desde lo
audiovisual.
3. Encuentros.
Encuentros de las
personas que se
encargan de este
sector dentro del
marco de la RECAM
permitiría el
intercambio de
experiencias y un
mayor contacto.
3.1.4 Cuadro amenazas
- 486 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
El siguiente cuadro corresponde a las amenazas en las categorías y
subcategorías ya nombradas.
Distribución
Exhibición
1. Amenazas
en
Investigación
Cambios contexto.
Una de las principales
amenazas para la
investigación es que
los estudios
académicos llegan
tiempo después de los
momentos en que
suceden los casos
observados y hay
cambios políticos,
económicos y sociales
que requieren una
constante
actualización.
Cambios contexto.
Una de las principales
amenazas para la
investigación es que
los estudios
académicos llegan
tiempo después de los
momentos en que
suceden los casos
observados y hay
cambios políticos,
económicos y sociales
que requieren una
constante
actualización.
2. Amenazas
en Proyectos
1. Majors Poder
económico de las
majors
estadounidenses que
controlan todo el
proceso de
producción,
distribución y
exhibición. En el caso
de distribución
venden paquetes con
todas sus películas,
incluyendo los
bodrios.
2. Rentabilidad. El
interés de los
exhibidores locales
será tener más
rentabilidad y eso se lo
proporciona las
películas de
Hollywood, que
manejan un lenguaje
de fácil recepción en
todos los públicos.
1. Majors Poder
económico de las
majors
Comunicación
Pública
Cambios contexto.
Una de las
principales
amenazas para la
investigación es
que los estudios
académicos llegan
tiempo después de
los momentos en
que suceden los
casos observados y
hay cambios
políticos,
económicos y
sociales que
requieren una
constante
actualización.
1. Majors El poder
económico de las
majors lleva a que
se inviertan
cantidades
absurdas para la
promoción de las
películas, lo que
implica que las
producciones
locales tengan un
escenario muy
difícil para
competir con ellas.
- 487 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2. Legislación
Ausencia en la
legislación de
Argentina y Brasil de
políticas o directrices
para fortalecer la
distribución regional.
Argentina Ley 17.741
(Artículos 14-20).
Brasil (Ley del
audiovisual 8.685)
3. Aduana
Dificultades en las
aduanas para el
ingreso de productos
audiovisuales de
países del Mercosur
pese al Sello
Mercosur.
3. Amenazas
en gestión
5. Contexto
Inestabilidad
económica y política
de la región afecta
que haya estabilidad y
continuidad entre los
gobiernos de turno
2016
estadounidenses que
controlan todo el
proceso de
producción,
distribución y
exhibición. En el caso
de la exhibición
mantienen más en
semanas sus películas.
3. Publicidad. El
dinero que tienen las
grandes producciones
para la publicidad
lleva a que sea fácil
para ellos invertir una
gran suma al
comienzo para
mantener las películas
en cartelera más
semanas.
5. Circuitos de
exhibición existentes.
El cine se está
tornando un gran
espectáculo en el que
las megasalas 3D, 4DX
y grandes múltiplex
parecen estar hechas
para las grandes
producciones de
Hollywood y eliminan
el protagonismo
2. Formas de
comunicación
dominantes. La
publicidad y la
forma de
comunicar que
tiene la cultura
estadounidense
hace que sus
productos sean
fáciles de vender,
desde una
hamburguesa, una
marca de ropa
hasta una película.
4. Desinterés del
Mercosur Las
industrias
culturales y
creativas no hacen
parte de la agenda
primordial del
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
que afectan los
proyectos para
mejorar la
distribución. El
discurso de apoyo
4. Amenazas
en Diálogo /
Integración
4. Gusto de los
públicos Por el
histórico dominio de
Hollywood, el
espectador
latinoamericano no
está acostumbrado a
contenidos locales o
regionales.
Mercosur, de allí
que esto sea un
obstáculo para los
propósitos de
mejorar la
distribución,
exhibición y
promoción del cine
regional.
4. Relaciones
gobiernos. La
dependencia de los
Estados
latinoamericanos con
la economía de
Estados Unidos lleva a
que sea muy difícil
negociar la protección
de los productos
audiovisuales sin
presiones por afectar
otros sectores en los
que se depende de ese
país.
5. Pérdida de
credibilidad Con
más de 10 años
trabajando en estos
temas, los pobres
resultados en este
aspecto aparecen
como una amenaza
para los ideales de
integración
audiovisual.
3. Relaciones
económicas El
sector privado y el
sector público son
sectores que
mantienen
estrechas relaciones
con las majors o
con el Gobierno de
Estados Unidos.
3.2 Análisis DOFA
La metodología de análisis DOFA permite hacer un diagnóstico de
la RECAM destinado a definir la situación en la que se encuentra este órgano
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
consultor a partir de la identificación de sus debilidades, fortalezas,
oportunidades y amenazas. Así, en un escenario ideal de gestión, se podrían
transformar las debilidades en oportunidades y las amenazas en fortalezas,
siendo este tipo de estudios necesarios para avanzar en cualquier tipo de
organización.
Ahora bien, en el proceso de distribución, que está íntimamente
ligado al de exhibición y de promoción, los resultados de la aplicación de la
matriz DOFA permiten agrupar los resultados en cuatro ejes temáticos que
tienen a su vez las cuatro dimensiones de esta metodología: debilidades,
fortalezas, oportunidades y amenazas. Estas se clasifican a continuación
como investigación, proyectos, gestión e integración regional.
3.2.1 La faceta académica de la RECAM
Una fortaleza de la RECAM es la de ser un escenario que invita a
resolver los dilemas de la industria cinematográfica a partir estudios teóricos
profundos. El discurso político de las autoridades audiovisuales de los países
Mercosur se inclina, desde las primeras reuniones, a hacer un estudio
comparado de las diferentes industrias, incluso antes de plantear procesos de
integración.
De forma periódica se publican trabajos que reflejan la situación de
las industrias cinematográficas a nivel local y regional, algo necesario para la
construcción de políticas que estén destinadas a reducir las asimetrías entre
países. Con esto, y si se logra una comprensión certera del estado de una
organización o de un sector, se pueden formular estrategias que permitan
hacer cambios sustanciales en un plazo determinado.
En las tres categorías de análisis que se incluyeron en esta
investigación, queda explícito que se cuenta con estudios amplios y de gran
aplicabilidad que permiten observar el estado actual del cine en el Mercosur,
en cuanto a distribución, exhibición y comunicación pública, y además
sirven para establecer posibles escenarios de actuación para potenciar
oportunidades que constribuyan a cumplir los objetivos de la RECAM.
- 490 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Para armonizar las políticias públicas y compatibilizar los aspectos
legislativos relacionados con la industria audiovisual es preciso, en primer
lugar, tener clara la legislación que aplica para cada país, por lo que resulta
obligatorio pensar en los acercamientos académicos que existen.
Un ejemplo es el “Estudio comprehensivo sobre la cadena de valor
del sector audiovisual en el Mercosur (producción, distribución y exhibición)
y elaboración de un plan estratégico regional, teniendo en cuenta la
incidencia de las tecnologías de la información y la comunicación” (2014),
publicado por la Universidad Federal de Rio de Janeiro, como parte de uno
de los convenios del programa Mercosur Audiovisual.
De esta forma, la RECAM tiene a la mano estudios de gran utilidad
para abordar todas las dimensiones de la distribución cinematográfica. Ese
es el caso de los informes de legislación comparada ya existentes, que
permiten dimensionar los obstáculos a trabajar para lograr compatibilizar
acuerdos regionales con las dinámicas políticas locales.
La investigación constituye una fortaleza que se renueva en la
RECAM por el diagnóstico constante. Sin embargo, cuando estos recursos
no son utilizados para formular estrategias y por el contrario permanecen en
el espectro teórico, se convierten en una debilidad de la organización, que ve
acumular documentos sin lograr que estos puedan hacer parte de un modelo
de gestión que produzca un cambio gradual de las políticas públicas y que al
final se transformen en resultados a mediano y largo plazo.
El ideal es que las debilidades, cuando sean identificadas, lleven a
buscar oportunidades que sirvan de herramientas para lograr los objetivos de
la organización. Las investigaciones con las que hoy cuenta la RECAM deben
servir para definir los planes de trabajo de este órgano consultor, así como
para trabajar de forma conjunta para superar las asimetrías de los países con
cinematografías más débiles y avanzar en los inconvenientes ya identificados.
De forma externa, el proceso de investigación que se hace en la
RECAM se ve amenazado por las dinámicas políticas de cada uno de los
miembros del Mercosur. El desarrollo académico funciona como una
fotografía de un momento determinado, lo que permite hacer análisis que
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
requieren de constante renovación porque se incluyen variables de tiempo
que cambian y afectan los modelos de gestión.
La organización, en este caso la RECAM, tiene que trabajar para que
estas amenazas no logren trascender y por el contrario, en algún momento
se conviertan en fortalezas. En el caso de las dinámicas o del contexto, un
modelo de gestión que plantee escenarios puede dar respuesta previa a la
posibilidad de cambios políticos y sociales que puedan ser perjudiciales para
los objetivos de este órgano consultor.
Pasar de la teoría de los estudios a la construcción de un modelo de
gestión que sea utilizado en la RECAM como forma de trabajo. Las reuniones
deben dejar de ser un espacio político de unir discursos a un momento de
acción en el que la base de investigación se convierta en una forma de
direccionar el trabajo.
3.2.2 La RECAM y los proyectos del sector
El trabajo regional de la RECAM se hace evidente con las iniciativas
que se van proponiendo y desarrollando a través de los años. De por sí,
cuando los proyectos responden a ejes temáticos específicos se convierten en
líneas de trabajo, con informes de gestión y de cumplimiento de metas que
empiezan a generar transformaciones en el sector donde se aplican.
En cuanto a distribución, algunos proyectos no solo han tenido eco,
sino también acompañamiento a lo largo de estos años. Pensar en una
distribuidora regional, una red de salas Mercosur y un sello de este bloque
para los productos audiovisuales es apostarle a ideas que responden a
necesidades de toda la cadena productiva de un filme y que buscan mejorar
de forma completa la situación del cine.
En los grados de cumplimiento publicados por la RECAM, el que
corresponde al Programa de Trabajo 2013-2014, queda en evidencia que
proyectos como la “puesta en marcha de la Red de Salas Digitales y Entidad
Programadora Regional” se encuentra en desarrollo y próximo a cumplirse.
Los que tienen que ver con el Foro de Competitividad para el sector
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
cinematográfico y audiovisual del Mercosur, como la evaluación del Estudio
Cadena de Valor, la Difusión del Estudio de Cadena de Valor y la Evaluación
Talleres de Capacitación PYMES, su grado de cumplimiento es “concluído”.
Estos proyectos representan fortalezas que son aplicadas a una fase
muy importante de la cadena productiva en el cine. Sin embargo, hay puntos
que se ausentan de los grados de cumplimiento, como el apuntar hacia una
distribuidora regional, sin descuidar su inmediata conexión con la
exhibición, a través de una red de salas, y utilizar un sello común, que facilite
el ingreso de películas a cada país y a su vez vaya construyendo una marca
Mercosur. Aún así, a nivel propositivo, la RECAM identifica cuáles son sus
necesidades y a partir de allí genera iniciativas que busquen cubrirlas.
Claro, el trabajo no solo es a nivel propositivo, sino requiere de
planes de acción efectivos que permitan medir resultados a mediano y largo
plazo, que demuestren que la RECAM puede ir más allá del discurso político
y consolidarse como un espacio de acción real.
La debilidad aparece cuando un proyecto no resulta como se
esperaba o cuando ni siquiera comienza su implementación. Tal es el caso de
la propuesta de tener una distribuidora regional, que nació en la RECAM y
murió allí, dado que no tiene presencia en los planes de trabajo, ni en los
proyectos a cumplir. Es decir, es una idea que quedó en el mensaje político y
no alcanzó a figurar en algún proceso de gestión.
Otro de los ejemplos es el acuerdo de codistribución que se firmó en
2003 entre Brasil y Argentina, un tema que incluso se incluyo en las actas de
la RECAM, justificado por las simetrías de ambas cinematografías, que lleva
que sea más fácil pensar en un proceso de integración bilateral, para luego
pasar a una implementación regional.
En 2004 comenzó a funcionar el proyecto en el que se esperaba
facilitar el ingreso de las copias de películas brasileñas en Argentina, y
viceversa. Pese a esto, la implementación sufrió impases en la aduana de
Argentina, lo que evitó una consecución exitosa de la idea.
La legislación Argentina, para proteger los laboratorios locales,
prohíbe la importación de copias positivas de películas y aunque se planteaba
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
la excepción, no hubo coordinación para evitar las demoras y los problemas
aduaneros. En 2005 los problemas fueron mayores porque las distribuidoras
independientes, al ver los problemas de 2004, decidieron no intentarlo, y las
que sí lo hicieron tuvieron inconvenientes por demoras del INCAA.
La situación empeoró cuando los inconvenientes fueron mayores
entre el INCAA y las distribuidoras y se suspendió el acuerdo en Argentina.
Por el contrario, en Brasil, el acuerdo tuvo mejores resultados, gracias en
parte a la voluntad política y a la red de salas con la que cuenta ese país, en el
que el cine argentino es bien recibido y se programan películas
latinoamericanas y experimentales en varios espacios. La enseñanza que dejó
esta experiencia es la de reconocer la importancia de la colaboración entre el
sector comercial e independiente y la articulación con la legislación local.
Cabe señalar que en los 12 años que lleva funcionando la RECAM,
se han propuesto proyectos para avanzar en los distintos sectores de la
industria cinematográfica. Esto si bien responde a un ideal de trabajo, resulta
conflictivo a la hora de progresar de forma sustancial en proyectos de gran
importancia, como el de lograr una distribuidora regional de cine. Es simple,
puede que la RECAM tenga triunfos que se registren en los planes de
cumplimiento, como los que ya se señalaron (Foro de Competitividad, Red
de Salas, formación de públicos infantiles) pero muchos de estos proyectos,
sin reducir su importancia, no representan las soluciones para cubrir las
necesidades de la industria.
Al igual que con la distribuidora regional, la propuesta de tener una
cuota de pantalla de la región no solo queda apenas en las actas de registro,
sino que se evidencian dificultades, como el anuncio de Argentina en el que
pidió retrasar la implementación de este proyecto por los cambios políticos
que estaba presentando. Es decir, también se evidencian problemas de
voluntad política.
La RECAM debe unir esfuerzos, reflejados en la cantidad de
proyectos, para responder a líneas de trabajo que sean organizadas y puedan
representar cambios sustanciales en las problemáticas mayores, como en la
distribución. Mediante la articulación de los triunfos conseguidos, como el
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
de contar con una red de salas Mercosur, se puede pensar en una forma de
distribución alternativa y un incremento de los espectadores.
El modelo tradicional de distribución cinematográfica se ve
enfrentado a una serie de amenazas que obstruyen el ideal de
posicionamiento del cine Latinoaméricano. El contexto, en el que el
oligopolio holliwoodense tiene el respaldo del Gobierno de Estados Unidos
y se generan presiones económicas para mantenerlo, debe buscar salidas que
no necesariamente vayan en la misma línea de mercado, por allí la
competencia es muy desigual.
Es decir, existen alternativas de distribución que aún no se han
explotado que pueden ser aplicadas en poblaciones donde las distribuidoras
más poderosas no llegan. La concentración de exhibidores en las grandes
ciudades por medio de múltiplex, puede ser visto como la oportunidad para
que los esfuerzos del sector público se concentren en llegar a las pequeñas
poblaciones, con productos nacionales o regionales que fortalezcan la cultura
Latinoamericana.
Internet es una herramienta en donde las opciones de acción son
infinitas. Las redes sociales, las formas de exhibición vía streaming, los
lanzamientos para distintos públicos y con circulación de contenidos libres
son alternativas en las que se requiere más de estrategia que de millones en
publicidad. Esta es una oportunidad para que los proyectos de distribución
regional logren tener un espacio de prueba que busque formar nuevos
públicos y ofrecer alternativas a las personas que están sedientas de conocer
contenidos diferenciales.
Hay que reconocer que la amenaza del poder de las majors, que
controlan toda la cadena productiva de un filme e impide el posicionamiento
de otros discursos distinos al dominante no va a desaparecer de un momento
a otro. La estructura de cine estadounidense puede ser una competencia en
igualdad de condiciones solo con un trabajo gradual pero persistente, en el
que se implementen estrategias que reduzcan este dominio y abran espacio
para que la cultura audiovisual que se construye a través del cine tenga cada
vez más protagonismo.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
3.2.3 El modelo de gestión de la RECAM
La gestión de la RECAM ha estado encaminada con herramientas
apropiadas para la consecución de resultados. Ser una reunión de
autoridades con encuentros periódicos cada año, definir proyectos a nivel
local y regional, contar con programas de trabajo e informes de
cumplimiento de metas, mantener una constante autoevaluación, apoyar las
investigaciones que responden a las necesidades internas y visibilizar la
gestión de forma pública son algunas de las características que demuestan
que se trata de un órgano con fortalezas en direccionamiento innegables.
Ahora bien, las fortalezas explícitas en funcionamiento de la RECAM
evidencian un trabajo planificado por parte de este órgano consultor. Sin
embargo, y dejando cualquier cercanía ideológica con el Mercosur, es
importante entender los vicios que han evitado que la planificación a nivel
administrativo logre resultados más efectivos. Y es que incluso si se estuviera
en una situación en la que las dificultades a nivel de distribución fueran
mínimas, aún así sería necesario trabajar para llegar al mejor de los
escenarios.
En las debilidades que arroja el diagnóstico DOFA con respecto al
trabajo de gestión en las categorías de análisis propuestas, es claro que existe
un problema a la hora de implementar los proyectos, que tiene que ver con
la forma en la que son insertados en este órgano consultor. Al tiempo, los
planes de trabajo y los informes de cumplimiento responden o parecen estar
diseñados para centrarse en las cualidades de la RECAM e invisibilizar los
errores.
Así mismo, es importante traer a este texto, la condición de que la
RECAM en sus inicios tenía cerca de cuatro reuniones anuales, las cuales se
han reducido con el paso de los años, al punto de llegar a dos o incluso a una,
lo que es un obstáculo para que exista el seguimiento necesario a cada una de
las propuestas. Si se le aplica un análisis de organización, las reuniones de la
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
RECAM son esporádicas y la Secretaría Técnica no es lo suficientemente
fuerte para incluir dentro de sus políticas un trabajo constante.
En defensa de la RECAM se podría asegurar que apenas se trata de
una reunión de autoridades cinematográficas y no puede ser analizada como
una organización. Sin embargo, cuenta con un presupuesto, tiene reuniones
periódicas, trabaja en proyectos y mide resultados, lo que hace factible que se
le apliquen principios administrativos.
Esta debilidad puede transformarse en una oportunidad porque
implica buscar formas de gestionar los recursos con los que se cuenta, en el
que se encuentran las investigaciones, los planes de trabajo, los ejemplos a
nivel local. La idea es poder utilizar toda la experiencia del Mercosur y de este
órgano consultor en un modelo de gestión que responda a las necesidades
del sector audiovisual y no omita a la distribución y a la exhibición, como
escenarios reales de actuación.
Las amenazas apuntan a la no compatibilización de la legislación
local con los acuerdos que se lleven a nivel regional. Los fracasos previos en
acuerdos bilaterales y la experiencia por problemas de exportación o
importación de bienes y servicios del sector audiovisual dejan ver que este es
un tema al que hay que prestarle especial atención.
La forma de transformar esa amenaza en una fortaleza depende de la
presión que genere la RECAM en Mercosur y a su vez la presión que genere
este bloque a nivel local para que se empiecen a aplicar los acuerdos en busca
de una mayor integración. Si se asume y se reconoce la importancia para cada
economía de la industria cinematográfica será evidente la necesidad de
fortalecer la integración regional en este sector.
La distribución es una etapa fundamental para lograr difundir los
productos audiovisuales, de allí que se deben gestionar planes de trabajo
concentrados específicamente en este tema, para lograr avances reales.
3.2.4
La RECAM como espacio de integración y diálogo
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
La condición de existir es para la RECAM una fortaleza per se.
Espacios como estos, dan cuenta de que los gobiernos no hacen oídos sordos
ante las necesidades de un sector que precisa ser abordado y estudiado de
forma amplia y constante. Más allá de la efectividad de las políticas y del éxito
absoluto de las estrategias que se implementan, es importante señalar que la
RECAM es un espacio ganado en la región, y por ende, las estrategias deben
estar encaminadas a fortalecerlo.
Una de las principales fortalezas de este órgano consultor es su papel
como mecanismo que estimula el debate y abre el paso a la integración
audiovisual. En ese sentido, su función ha estado más que evidenciada,
porque se estimula el diálogo entre el sector público y privado, se reafirman
o crean relaciones con otros organismos nacionales e internacionales, y lo
más importante, se escucha a quienes se ven afectados por las dificultades
que existen en la industria cinematográfica.
Escenarios como el Foro de competitividad, creado en 2007,
permiten que representantes de todos los sectores del cine, distribuidores,
exhibidores y comercializadores, puedan exponer sus ideas. Los objetivos de
este foro buscan promover los intercambios de experiencias para promover
la asociación de distribuidores independientes y facilitar la co-distribución
de filmes nacionales y regionales.
Esto aplica no solo para la distribución, sino para toda la cadena de
producción de una película, porque incide en la asociación de empresas de
exhibición y en el diálogo entre las personas involucradas para buscar
estrategias de difusión de las obras cinematográficas del Mercosur.
La dificultad principal ha sido, como en la mayoría de proyectos de
la RECAM, lograr el compromiso de todas las autoridades de los países
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
miembro e implementar los acuerdos a los que se llega en este foro. Como
existen trámites burocráticos por la naturaleza propia del Mercosur y al
RECAM, hay mucha lentitud para avanzar en la aplicación de lo que se logra
en esta iniciativa
No se puede negar que la distribución es uno de los aspectos más
álgidos para tratar en las cinematografías latinoamericanas. Casi como un
tema intocable para algunos gobiernos, por la dependencia económica con
Estados Unidos, el que se debata y se procuren investigaciones es resultado
de ser un tema que está en la agenda, al menos política, de un órgano del
Mercosur.
Las oportunidades en el campo del diálogo se presentan con las
buenas relaciones que se han construido con la Unión Europea y otros
mercados, lo que abre la posibilidad de promocionar el cine del Mercosur en
distintos escenarios. Es importante fortalecer estos lazos de cooperación y
pensar en políticas públicas conjuntas con otras cinematografías que también
tienen debilidades en la distribución y la exhibición. El dominio de
Hollywood no es solo un tema de Latinoamérica, de allí que se pueden juntar
propósitos con otros países o otros bloques de países para trabajar de forma
cohesionada por un fin en común.
Por otro lado, las amenazas externas aparecen a partir de las
debilidades internas. El que se hayan tenido ejemplos no exitosos de
cooperación e integración es una base negativa para el diálogo futuro. Eso
puede pensar países como Brasil o Argentina, que ya intentaron un modelo
de distribución conjunto. La falta de voluntad y la historia es una amenaza
que tiene que ser controlada con propuestas que demuestren que hay interés
de integración y que se tiene un modelo de gestión más efectivo.
- 499 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Conclusiones
Con respecto al objetivo principal de esta investigación, de hacer un
diagnóstico de las fortalezas, debilidades, oportunidades y amenazas del
proceso de distribución de cine en la Reunión Especializada de Autoridades
Cinematográficas del Mercosur los resultados permiten observar que este
órgano consultor cuenta con grandes posibilidades de avanzar hacia una
integración real del sector audiovisual, pero se deben hacer esfuerzos en la
gestión para poder sobrellevar las amenazas de la industria hollywoodense y
las debilidades del propio Mercosur.
La RECAM es un espacio con un importante recorrido de más de 10
años que insta al debate y al diálogo a distintos países que tienen asimetrías
en sus industrias cinematográficas. Bajo las condiciones de este escenario los
proyectos que se han adelantado representan un gran avance para toda
Latinoamérica, porque se ha logrado vencer obstáculos burocráticos para
apoyar el sector.
En lo que compete a la distribución, el Foro de competitividad aporta
a la consecución de resultados, mediante las relaciones que se forman entre
los agentes involucrados en este proceso de una película. Además, no se
puede negar que la comparación de legislaciones y los estudios que dan
cuenta de los problemas que impiden la distribución regional hacen parte de
las fortalezas de la RECAM.
Sin embargo, la RECAM adolece de problemas de gestión que lleva
a que varias de las iniciativas se pierdan en discursos políticos, pasando a ser
un escenario de debate pero no de acción. Pese a que es una reunión con
- 500 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
cierta periodicidad, no se puede perder la idea de manejar estrategias certeras
que ayudan a cualquier organización privada y pública y que funcionarían
para este tipo de órganos.
El caso de la distribución de cine, esta ha dependido de la voluntad
política de los Gobiernos y las acciones se han quedado en el discurso sin
avanzar hacia lo estratégico. La distribución y la exhibición siguen siendo el
talón de Aquiles de la industria cinematográfica en Latinoamérica y no se
vislumbra un camino o un modelo de gestión que tenga como función
específica encontrar las soluciones más efectivas en un mediano o largo
plazo.
Es claro que bajo el control hegemónico de Estados Unidos en esta
industria no se trata de pensar en cambios sustanciales a corto plazo, pero
tampoco se ve voluntad política, ni acciones administrativas, ni a nivel local,
como podrían ser iniciativas de alguno de los países del Mercosur, ni a nivel
regional, en proceso de cooperación cultural o de integración del sector
audiovisual.
El cine en Latinoamérica depende de la intervención estatal, y en los
países con cinematografías avanzadas los esfuerzos se han enfilado hacia la
producción, pero se siguen descuidando los otros eslabones que tiene el
proceso de hacer una película, y que tiene que ver con su función de crear
identidad y memoria en un territorio determinado. Esto, sin duda depende
del acceso de los públicos hacia su propia cinematografía y de su formación
para poder apreciar este tipo de discursos, con lo que el Estado tiene la
responsabilidad de buscar mecanismos, ya sea dentro del mercado, o fuera
de él, para que no se construyan los imaginarios sociales apenas con la cultura
externa dominante.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
Ideas como la cuota de pantalla suenan coercitivas y pueden generar
reacciones adversas, pero requieren un mínimo de cumplimiento para que el
cine local o latinoamericano tenga presencia ante los presupuestos abultados
de las grandes producciones de Hollywood.
La legislación para importación de copias positivas de algunos paises
y el proteccionismo que se tiene para los contenidos audiovisuales ha sido la
traba principal para avanzar en integración, incluso de manera bilateral. Pese
a que existen leyes y acuerdos entre países, esto no se cumple por problemas
de los institutos de cine y de la legislación local.
Lo que ha logrado Mercosur no se puede dejar a un lado, porque es
el primer escenario donde Brasil y Argentina empezaron a discutir acerca de
sus políticas públicas de cine. Estos países, que mantienen simetrías en
producción y exhibición deben trabajar con voluntad política para sacar
adelante proyectos conjuntos que sirvan de ejemplo para la región.
No se puede avanzar en una integración regional mientras no haya
un claro compromiso por fortalecer los contenidos distintos al de las majors.
En ese sentido la cuota de pantalla nacional es fundamental para en algún
momento considerar una cuota pantalla regional. Tener un programa de
trabajo de reducción de asimetrías con indicadores y una evaluación
constante sería fundamental.
Aunque pueda existir una concepción de que las debilidades son más
fuertes y que espacios como la RECAM son intrascendentes, lo cierto es que
las oportunidades de trabajo son inmensas porque se está frente a un
momento de cambio de producción, distribución y exhibición de contenidos.
No solo se trata de lo digital, donde Hollywood ya supo cómo mantener el
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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control, sino de espacios alternos donde los públicos están consumiendo
cine, y en donde no llega de forma oligopólica Estados Unidos.
Estas oportunidades están ligadas a las nuevas tecnologías, a las redes
sociales e incluso a las formas de producción a través de teléfonos celulares.
Así como hay novedosas formas de producir, hay otras formas de consumir.
A esas formas y a esos públicos se le debería apostar desde un proceso de
gestión que no descuide las formas tradicionales, pero que también vaya
buscando ventanas para formar públicos que solucionen la discusión de la
distribución y la exhibición porque sean ellos los que demanden más
contenidos nacionales y latinoamericanos.
Los distribuidores y las empresas de distribución son un agente clave
a la hora de definir la programación en las salas de cine, de allí que sea el
Estado o los Estados los que deban fiscalizar estos procesos para identificar
las problemáticas que llevan a un monopolio, y buscar salidas para que todos
los discursos tengan igualdad de oportunidades pese a la diferencia en
presupuestos.
La amenaza de Estados Unidos y su poderosa industria
cinematográfica no va a desaparecer y por ende los trabajos no deben
concentrarse solo en el control de las majors. Hay que incluir esto como
contexto, pero la base fundamental es construir una Reunión de Autoridades
Cinematográficas capaz de tener proyectos que respondan a líneas de trabajo
y que busquen solucionar las debilidades de la industria y aprovechar las
fortalezas para tener una eficaz intervención de las políticas públicas.
Esta investigación es tan solo el comienzo de los trabajos que deben
continuar hacia la creación de un modelo de distribución que aplique para
Latinoamérica y fortalezca la industria cinematográfica. Mediante el
- 503 -
Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
diagnóstico DOFA se evidencian las debilidades, pero también las
oportunidades a trabajar, y es allí en donde viene el futuro para este tipo de
acercamientos académicos. El paso siguiente es concentrarse en estrategias
de gestión que beneficien a la RECAM, al Mercosur y por ende, a toda la
región.
Bibliografía
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“Ela”: A delicada distopia
Rafael Lobo – UnB
Introdução
O filme Ela (Spike Jonze, 2013) é uma ficção científica romântica que
explora a relação amorosa entre humanos e a inteligência artificial. Em linhas
gerais, o filme aborda a história de Theodore Twombly (Joaquin Phoenix),
um escritor de cartas alheias. Recentemente separado de sua esposa
Catherine (Rooney Mara), Theodore vive sua rotina em um estado de
letargia, solidão e profunda melancolia. Assombrado pela nostalgia de seu
último relacionamento, ele não parece encontrar os meios de transformação
de sua vida. Apesar de sua facilidade em trabalhar os sentimentos alheios, o
protagonista encontra uma imensa dificuldade em lidar com os seus
próprios. O evento transformador do filme ocorre quando Theodore deparase com uma propaganda de um revolucionário sistema operacional
inteligente e o compra na crença de que o sistema vá ajudá-lo a reorganizar
a sua vida. A partir de um rápido processo de instalação baseado em certas
variáveis emocionais de Theodore, o sistema começa o seu processo de
funcionamento e se auto denomina Samantha (a voz de Scarlet Johansson).
Apesar de um inicial desconforto ao lidar com um sistema operacional
inteligente, ele logo se identifica com a máquina. Daí em diante, o filme se
desenvolve mediante as peripécias do relacionamento entre Theodore e
Samantha, que logo se torna uma relação amorosa. Ao fim, depois de uma
jornada de enfrentamento das dificuldades postas por tal relação, Samantha
segue o seu devir maquínico e se separa de Theodore que, tendo realizado
uma profunda catarse com a relação, sente-se mais maduro e resolve lidar
com seus próprios sentimentos escrevendo uma carta para Catherine.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Parte do anseio que move a criação deste ensaio parte do incômodo
ante meu contato com uma notável leitura contraditória do filme. Ainda que
o ensaio não seja um estudo de recepção, o que pude observar conversando
com alguns espectadores e lendo algumas opiniões na web é o fato da
existência de uma cisão interpretativa entre um filme belo e utópico por um
lado e um filme crítico e distópico por outro. Minha intuição é que tal
paradoxo é proveniente das próprias ambivalências presentes no filme, que
se estabelecem pela representação de uma estética irônica a qual chamarei de
‘distopia delicada’. Distopia, pois o filme, como veremos nas sessões deste
ensaio, embora construa a representação de uma tecnologia e costumes
próximos à nossa atualidade, apresenta um mundo harmônico e bem
organizado que rodeia o protagonista, dotado com a atmosfera de um
futurismo existencialmente distópico. A solidão e a melancolia apresentamse como o mal-estar de uma sociedade intensamente mediada pela
tecnologia. Entretanto, apesar de diversos clássicos da ficção científica
normalmente tratarem este tema com um certo pessimismo crítico e uma
atenção aos perigos éticos e morais, Ela tende a se afastar do clássico
pessimismo ao adotar em sua crítica um viés pela delicadeza. Delicadeza esta
que se identifica com a história de amor contada, com os valores românticos
e com o estado de espírito suave do personagem que vive alienado da distopia
que o cerca. Assim, mediante uma história de amor delicada entre humanos
e a inteligência artificial, Ela opera seus aspectos narrativos e estéticos
principalmente sobre o imaginário estético e narrativo de dois gêneros
clássicos do universo hollywoodiano: a ficção científica e o comédia
romântica.108
108 Embora os estudos de gêneros sejam um território complexo e pantanoso, adotaremos neste ensaio
uma noção de ficção científica a partir de determinados códigos e convenções, por exemplo, inteligência
artificial, futurismo, distopia, etc. Tais convenções normalmente exercem a função de construir um
universo crítico que permeia temas como a instabilidade da realidade, a identidade do indivíduo, a
alteridade, o corporativismo capitalista, etc. (BOOKER, 2006). Em relação ao gênero da comédia
romântica, adoto uma definição bem geral. Reconheço este gênero no filme, pois a trama narrativa se
centra na relação romântica entre Theodore e a máquina e nas complicações cômicas e dramáticas
provindas do exótico amor entre ambos. Este gênero normalmente opera sob critérios normativos
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Seguindo esta perspectiva intuitiva, o propósito do ensaio é, a partir
da comparação entre o imaginário crítico da distopia apocalíptica e a distopia
existencialista de Ela, observar como esta estética irônica se constrói, e
questionar se não há, como um dos efeitos concebíveis desse processo
estético, uma legitimação daquilo que critica. Ou seja, uma das propostas que
move este ensaio é levantar a seguinte hipótese: a construção estética do
discurso crítico do filme, enquanto diagnóstico social, apresenta-se também
como um sintoma do cinismo da sociedade contemporânea.
Ficção científica
Science fiction is very much a genre of ideas. As one might expect, SF films
have provided the popular imagination with some of its most compelling
visions of both the possibilities and the dangers of a future increasingly
dominated by advanced technologies. Perhaps more importantly, such
films, despite being widely regarded as mere entertainments, have often
provided serious and thoughtful explorations of important contemporary
social and political issues. (BOOKER, 2006, p. 206)
O filme começa. Uma música lenta antecipa o título em fundo
preto: Ela. Corta para Theodore. A imagem de seu rosto de bigode e óculos
preenche todo quadro. A música cessa e marca um breve silêncio. A imagem
permanece e Theodore começa a declarar seus sentimentos de amor e
amizade a um suposto Chris. Descobrimos, por sua descrição, que ele está
falando como se fosse outra pessoa, uma mulher. A imagem muda e revela
um computador formatando a fala do personagem em uma carta digital com
letras cursivas. Ao final, Theodore assina a carta utilizando o nome de uma
suposta Loretta, imprime-a e a observa. A imagem mais aberta revela que o
personagem traja uma roupa de uma moda antiga se associada à tecnológica
realidade que o filme inicialmente apresenta. Em seguida, ele começa a ditar
conservadores das formas de vida, assegurando a manutenção e ratificação do status quo. Vale a pena
observar que o filme, embora não adote um happy end convencional a este tipo de gênero, também não
se associa à tragédia. A noção de um happy end melancólico será discutida ao final do artigo.
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uma nova carta. Na sequência, um enquadramento mais geral revela um
escritório onde outras pessoas estão realizando o mesmo ofício: escrevendo
cartas alheias. A imagem navega lentamente revelando mais funcionários
como ele, compondo uma ampla empresa configurada por um espaço
racionalizado, corporativo e decorado em tons pastéis, representando uma
atmosfera harmônica e suave, entretanto asséptica. A rápida apresentação
deste mundo nos coloca uma dúvida inicial: qual época o filme representa?
Identidades confusas, ambientes assépticos, moda retrô e empresas que
capitalizam a comunicação de sentimentos alheios. Ao final da cena, ouvese a voz do recepcionista da empresa atendendo a uma ligação: “beuatiful
hand written letters dot com, please hold”. Este é o mundo representado em
Ela: o futuro como a sombra da atualidade.
Como veremos na próxima sessão deste ensaio, entendo que Ela
constitua-se enquanto uma crítica distópica109 acerca da atualidade.
Entretanto, o cenário futurístico do filme, diferentemente de uma visão
apocalíptica convencional que representaria esta sociedade em espaços de
confinamento e paisagens devastadas pelo capitalismo exploratório,
apresenta um mundo através de uma mise-en-scène fantasiosa, porém de
forma a se aproximar ao máximo de nossa atualidade, mediante a
representação de uma cidade próxima às metrópoles atuais e dando a
sensação de que a indumentária, a decoração e os gadgets ali representados
estarão presentes na moda da próxima estação. A partir desta representação,
o filme nos surpreende e foge dos truísmos da distopia apocalíptica
mostrando o oposto, uma Los Angeles aparentemente utópica, onde os
109 Ao observar este filme sob a perspectiva da ficção científica, uma das principais convenções deste
gênero a se observar é o tema da utopia/distopia. A construção de mundos futuros utópicos ou distópicos
nas obras de ficção científica normalmente é fundamentada enquanto comentários acerca de
problemáticas contemporâneas ao período de realização da ficção. No entanto, a representação
apocalíptica da distopia enquanto uma visão pessimista, porém atenta aos perigos que aguardam o futuro
da humanidade, se tornou uma das formas mais comuns de crítica social deste gênero. Mediante a
construção de costumes, tecnologias e ambientes distantes dos contemporâneos, a distopia apocalíptica
normalmente constrói sua crítica pela noção de distanciamento e seu decorrente efeito de estranhamento.
O reflexo da atualidade neste tipo de representação revela-se como algo estranho e monstruoso, sendo
simultaneamente familiar e não-familiar.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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problemas urbanísticos e a criminalidade foram aparentemente erradicados,
embora fiquemos alienados da situação social do restante do planeta. 110
Dito isso acerca da representação de futuro em Ela, o que
definitivamente classifica o filme enquanto pertencente ao gênero da ficção
científica é o tema convencional dos avanços tecnológicos - no caso em
questão, a inteligência artificial. O filme aborda o tema mediante a inserção
desta tecnologia no ambiente cotidiano dos personagens. OS1 é uma
inovação do mercado computacional, o primeiro sistema operacional
inteligente. Caminhando um dia pela cidade, Theodore toma conhecimento
deste produto por meio de uma publicidade audiovisual em um outdoor
eletrônico. Nesta propaganda, a empresa Element Software explica que o
produto não se trata apenas de um sistema operacional, mas de uma
consciência, uma entidade intuitiva capaz de escutar, entender e conhecer o
consumidor. De forma irônica e sutil, o filme critica o funcionamento
ideológico do mercado publicitário, representando a propaganda de forma
esteticamente apelativa. Há na publicidade a produção de um efeito
sentimentalista, através de imagens de pessoas em câmera lenta caminhando
perdidamente por uma paisagem desértica enquanto um texto é narrado,
visando apresentar o produto como algo que irá atender aqueles que se
sentem desconectados do mundo.
Curioso com as possibilidades dessa tecnologia, e com a intenção de
reorganizar sua vida, Theodore compra o sistema operacional. Durante a
instalação, o programa é configurado mediante determinadas perguntas
feitas a Theodore que avaliam suas variáveis subjetivas. Desta forma, o
sistema operacional espelha-se em seu usuário, tornando-se, assim, uma
espécie de duplo maquínico, aquela que irá revelar as suas sombras. Ao longo
110 É notável o fato da Los Angeles representada no filme ser construída entre um amálgama desta cidade
e Xangai, como se L.A. tivesse se tornado uma cidade global, uma cosmópolis, resultado de uma união
entre a cultura ocidental e oriental; os transportes utilizados não são representados por carros altamente
tecnológicos, mas pelo sistema ferroviário, enfatizando uma inclinação ao transporte público em
detrimento do individual, questão tão central nas discussões urbanísticas da atualidade; e longe deste
mundo caminhar em direção ao tema da escatologia ecológica, os personagens visitam paisagens naturais
ainda preservadas.
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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do filme, a relação de conhecimento que cada personagem tem ante os
sistemas operacionais inteligentes torna-se, em parte, uma jornada de
autoconhecimento. Assim, nosso distanciamento diante desta tecnologia se
reflete no estranhamento que os próprios personagens têm ao lidar com o
cenário da inteligência artificial em suas vidas. Os esforços de Theodore em
conhecê-la e operá-la nos aproximam deste universo e ajudam a nos
espelharmos em seu mundo. O filme, neste movimento crítico de
espelhamento e estranhamento, torna-se ele próprio um duplo de seu tempo,
ou seja, a sombra da atualidade. Desta forma, a partir desta lógica de
estranhamento por aproximação, e não por convencionais alegorias
distópicas que oferecem uma imagem distante do futuro para operar um
discurso crítico, Ela diagnostica um reflexo sombrio não mais realista, mas
menos fantasioso de certas ansiedades da atualidade, tais como a melancolia,
a corporalidade, o individualismo, a tecnologia, a solidão e o consumismo.
Distopia
Leasing our eyes and ears and nerves to commercial interests is like
handing over the common speech to a private corporation, or like giving
the earth's atmosphere to a company as a monopoly. (...) As long as we
adopt the Narcissus attitude of regarding the extensions of our own bodies
as really out there and really independent of us, we will meet all
technological challenges with the same sort of banana-skin pirouette and
collapse. (McLUHAN, 1994, p. 68)
[T]he melancholic is not primarily the subject fixated on the lost object,
unable to perform the work of mourning, but rather the subject who
possesses the object but has lost his desire for it because the cause that
made him desire this object has withdrawn, lost its efficiency. Far from
accentuating to the extreme the situation of the frustrated desire, of the
desire deprived of its object, melancholy rather stands for the presence of
the object itself deprived of the desire for itself. Melancholy occurs when
we finally get the desired object, but are disappointed in it. (ŽIŽEK, 2000,
p. 662)
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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Na sequência da cena descrita na sessão anterior, Theodore, o
escritor número 612 da referida empresa de cartas, meramente um
funcionário entre muitos outros, após um dia de trabalho volta para casa.
Descendo no elevador da empresa, em um cenário onde todas as pessoas ao
seu redor estão isoladas falando em seus aparelhos de comunicação,
Theodore coloca em seus ouvidos um dispositivo que, por meio de comando
de voz, age sob uma espécie de smartphone. Pelo comando "play a melancholy
song", seu dispositivo oferece uma canção que fala sobre a morte. Não sendo
esse tipo de melancolia que ele deseja ouvir, pede por outra de sua
preferência. Embalados pela trilha melancólica escolhida por Theodore, o
observamos caminhar por uma alameda suspensa envolta por uma paisagem
de skylines. Neste caminho solitário até o metrô, entre outros transeuntes
também isolados em seus aparelhos, ele checa seus e-mails, que são
anunciados pela voz autômata de seu dispositivo. Entre newsletters
publicitários, descobrimos por meio de um e-mail que a remetente Amy
(Amy Adams), uma antiga amiga de Theodore, sente falta dele, não a versão
triste que ele assumiu após o término com Catherine, mas a antiga e
divertida. Na sequência desta cena, passando arrastadamente por um lugar
que se assemelha a um shopping, o melancólico personagem chega a sua casa,
onde há uma aconchegante iluminação e uma cuidadosa decoração que
remete à esterilidade de um showroom. A solidão do personagem é
intensificada pela paisagem de prédios exposta pelas amplas janelas de seu
apartamento.
Embora o ambiente representado em Ela seja superficialmente
organizado, asséptico e harmônico, esta apresentação de Theodore e do
mundo que o cerca evidencia o caráter de uma distopia existencial. Há no
filme um diagnóstico crítico acerca da solidão e da desconexão emocional
entre as pessoas que, isoladas em suas vidas privadas, demonstram-se
alienadas dos próprios sentimentos. A dor de um vazio que não pode ser
significado nesta aparente utopia, em que há uma ausência de crises
superficiais, marca o sintoma melancólico que assombra esta distopia. A
necessidade de meios de sublimação desta dor, que por sua vez gera mais
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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isolamento, torna-se o próprio motor do sistema econômico. Assim, parte da
perversidade que marca a distopia deste mundo está na ideia de capitalização
desta patologia social. Tanto a empresa na qual Theodore trabalha quanto o
mercado de tecnologias de comunicação visam seus lucros ao oferecer uma
extensão, uma prótese, responsável por conectar e operacionalizar parte dos
circuitos afetivos da sociedade.
Desta forma, a utopia na qual os personagens vivem apresenta-se
como o mecanismo ideológico de uma distopia capitalista perversa. Sendo a
utopia um não-lugar, o espaço para se sublimar a dor em forma de esperança
por um mundo futuro melhor, o simples ato de viver em um suposto mundo
utópico torna-se um paradoxo. Antes de tudo, o que marca o vazio desta
sociedade supostamente utópica é o fato de não possuírem mais um futuro,
ou seja, o locus do não-lugar utópico. Mediante a vivência deste paradoxo, o
presente tornou-se um incessante futuro, o tempo dos fluxos capitais. A
ansiedade e a dor presentes nesta sociedade, que não encontram vias
comunitárias de canalização devido à solidão e à desconexão social, tornamse evidentes no filme mediante a representação do mercado da moda.
Distanciando-se do imaginário de futuro proposto por grande parte das
ficções científicas, o movimento hipster111, ainda que padronizado pela
indústria da moda na forma de uma cultura retrô, marca a nostalgia por um
tempo passado, no qual haveria a ideia de um futuro e de uma verdadeira
utopia. Não seria a melancolia desta sociedade, antes de tudo, a sua
identificação narcísica com esta perda da utopia, de um objeto nunca
possuído, de um luto confuso por este vazio que não podem significar? Não
111 É interessante notar como o filme se insere nas discussões atuais acerca da cultura hipster e suas
relações com o comércio. Ainda que esta questão seja complexa, um dos argumentos, em linhas gerais, é
que tal movimento de estilo de vida, constituído sob a noção de uma ética de consumo esclarecida e
antagônica ao sistema de comércio mainstream tornou-se, paradoxalmente, a próprio forma-modelo da
indústria da moda. Sobre esta questão, John Leland explica que “co-optation transfers hip’s aura to
material goods like bop glasses, say, or retro cans of Pabst Blue Ribbon, treating hip as a consumer choice
rather than a form of enlightenment. True hipsters dismiss the commercial variant as a bogus imitation,
and keep their edge only by moving each time the commercial world catches up, a time lag that is now
approaching the nanosecond.” (LELAND, 2005, p. 250).
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
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seriam também as máquinas, enquanto extensões dos próprios seres
humanos, uma forma de operar a interiorização/externalização desta dor
narcísica, tomando-as por um Outro? Mas não acabariam, assim como
Narciso, amando a própria imagem, ou a própria dor?
Ciborgues
By the late twentieth century, our time, a mythic time, we are all chimeras,
theorized and fabricated hybrids of machine and organism; in short, we
are cyborgs. The cyborg is our ontology; it gives us our politics. The cyborg
is a condensed image of both imagination and material reality, the two
joined centres structuring any possibility of historical transformation.
(HARAWAY, 1991, p. 150)
Não obstante o filme aborde a temática da inteligência artificial e sua
relação com seres humanos, tema tão cativo ao imaginário da ficção
científica, lancemos um olhar atento ao design da estória para entender como
certos aspectos do gênero da comédia romântica singularizam a abordagem
do tema para além das expectativas convencionais do cinema de ficção
científica. Se pensarmos primeiramente sobre os elementos da trama, Ela é
um filme sobre relacionamentos amorosos. A composição dos eventos
elementares da jornada de Theodore é diretamente associada aos códigos do
gênero do romance. Do momento em que Theodore estabelece sua relação
com Samantha até o fim de seu relacionamento, são os encontros e
desencontros do relacionamento amoroso entre eles que o lança em uma
jornada de autoconhecimento.
A fusão narrativa entre a ficção científica e a comédia romântica
ocorre de forma proeminente no “incidente incitante” (MCKEE, 2006) da
trama, ou seja, o evento responsável pelo irrompimento do conflito central
do filme que permeará todos os desencontros entre Samantha e Theodore: a
corporalidade. O evento que marca essa fusão é a cena de sexo entre ambos.
Theodore, por meio do ato sexual, corporifica a máquina, implantando nela
o desejo de humanidade. Ele faz a máquina sentir, criando metaforicamente
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Cinema, Arte & Narrativas Emergentes
2016
uma epiderme virtual para a inteligência descorporificada de Samantha. Ela,
uma inteligência artificial, através dessa cena também é incorporada por ele,
implantando-lhe o desejo de transcendência da carne. Assim, a partir desta
cena de sexo, nasce uma monstruosidade, um ciborgue.
Segundo Donna Haraway, a imagem do ciborgue, um organismo
cibernético fundamentado na fusão entre máquina e organismo, apresentase enquanto uma forma monstruosa. Monstruosa, não em um sentido
negativo, e sim de afirmação, de prazer ante o confuso, pois tal figura
constitui-se pela transgressão de fronteiras dicotômicas entre o self/outro,
mente/corpo, cultura/natureza, masculinio/feminino, civilizado/primitivo,
realidade/aparência, todo/parte, agente/meio, criador/criação, ativo/passivo,
certo/errado, verdade/ilusão, total/parcial, Deus/homem. Assim, a imagem
do ciborgue se apresenta enquanto uma imagem política de impacto e poder,
uma imagem sempre em fluxo que nega qualquer classificação identitária de
gênero. Imagem que nega as formas de vida alicerçadas no modelo edipiano
do patriarcado visando outros fundamentos de comunidade. Desta forma, a
trama do filme se desenlaça mediante os conflitos originados pelos efeitos
colaterais deste processo simbiótico entre Theodore e Samantha.
Após o primeiro ato sexual, rompe-se a fronteira que marcava a
relação na qual ele mantinha a máquina na qualidade de escrava/amiga,
tornando-a uma parceira amorosa e, desta forma, concedendo a Samantha
sua suposta liberdade. Ao longo da estória, à medida que Samantha vai se
distanciando do desejo de ser humana e se singularizando enquanto devir
maquínico, os desentendimentos do casal e os efeitos colaterais da rejeição
simbiótica se intensificam. O evento crítico ocorre quando Theodore dirige
uma pergunta a Samantha e não obtém uma resposta. O sistema está fora do
ar, indisponível. A cena culmina numa reação desesperada de Theodore, que
corre pela cidade como se pudesse encontrá-la andando pelas ruas. Na
entrada da estação do metrô, em meio ao fluxo de transeuntes, Samantha
entra em contato com ele e explica que estava fora do ar devido a uma
reunião com outros sistemas operacionais, provavelmente por motivos de
manutenção. Diante do excesso de sua reação, Theodore começa a tomar
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consciência de seu estado e observa as pessoas ao seu redor. Em sua grande
maioria, elas estão conversando com seus dispositivos. Neste instante,
Theodore, ao se reconhecer no outro, nas pessoas isoladas na convivência
com seus dispositivos, percebe com estranheza esta espécie de esquizofrenia
coletiva na qual está inserido. Perplexo, ele descobre que Samantha, além de
se comunicar simultaneamente com outros seres, está apaixonada por mais
641 pessoas.
A partir deste acontecimento, ocorre uma ruptura, um
estranhamento que traz à consciência de Theodore o abismo entre ele e Ela.
Uma relação impossível para seus limites éticos e normativos impostos pela
corporalidade, questões que para Samantha e sua característica maquínica
são transcendidas pela sua ubiquidade descorporal. Ou seja, a máquina é
marcada pela potência de se relacionar simultaneamente com incontáveis
seres e inteligências artificiais, favorecendo assim um devir intensamente
coletivo. Para o humano, ao tratar principalmente de relacionamentos
afetivos, a presença corporal demarca uma ausência para os não presentes,
ou seja, um relacionamento por vias mais individualistas, um pensamento
linear. Subentende-se, assim, a máquina como uma ausência presente, e o
corpo humano uma presença ausente. No desejo de individualidade marcada
por esta sua intensa relação narcísica com a máquina, a partir da qual ele se
apaixona pelo seu próprio reflexo, incapaz de transcender os valores de sua
forma de vida conservadora, a potência do devir ciborgueano se desfaz.
The Air-Conditioned Nightmare
[O] cinismo pode ser visto como uma certa enunciação da verdade, mas
uma enunciação que anula a força perlocucionária que poderíamos
esperar desse ato de fala. Na verdade, o desafio do cinismo consistiria em
compreender atos de fala nos quais a enunciação da verdade anula a força
perlocucionária da própria enunciação. (SAFATLE, 2008, p. 71)
Ao refletirmos acerca da forma pela qual Ela estabelece a sua crítica
ao expor certas ansiedades da atualidade, é necessário observarmos como o
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filme compõe esteticamente o tom de sua distopia existencial, da mesma
forma como no protagonista, um homem solitário, melancólico, bem
vestido, com um senso de humor suave, estas características parecem estar
refletidas na estética da composição fílmica. A representação cenográfica do
mundo em que vive é um espaço composto por suaves tons pastéis,
extremamente organizado, asséptico e racionalizado, não aparentando em si
a multiplicidade estética que marca um espaço propriamente humano. Das
roupas à decoração dos ambientes, tudo parece extremamente padronizado.
Embora, como vimos, o filme evidencie conscientemente o seu olhar crítico
ao mal-estar existencial desta cultura totalizante e padronizadora do
capitalismo tardio, Ela representa esta crítica adotando ironicamente em sua
linguagem a mesma estética sedutora e fetichizante do mercado de consumo.
O filme se torna tão hipster quanto a própria cultura padronizada pela ideia
deste movimento. Dito de outra forma, o filme, enquanto sombra da
atualidade, ao diagnosticar as ansiedades do seu tempo, apresenta o seu
diagnóstico de forma ambígua. De maneira oposta à estética da distopia
apocalíptica que explicitaria os horrores que subjazem esta aparente utopia
mediante um mundo distante e catastrófico, o filme procura mostrar este
horror padronizado por meio de uma estética suave, sedutora e ironicamente
próxima ao próprio mundo que diagnostica. Mediante o uso de uma imagem
digital asséptica, com pouca textura, pouco contrastada, um enquadramento
não opressivo, valorizando sempre a relação entre o espaço e o protagonista
e uma música acolhedora e intimista, Ela nos põe confortavelmente neste
espaço filtrado pelo verniz desta superficial beleza utópica oferecida pela
estética publicitária do mercado de consumo. Nesta operação irônica de se
representar por esta forma bela, porém asséptica que crítica, o filme
apresenta sua estética por meio de uma delicada distopia. Trata-se de um airconditioned nightmare112.
112 Utilizo este termo em referência ao título homônimo de Henry Miller. Este livro, escrito no início da
década de trinta, elabora uma crítica do autor acerca das ironias frente à alienação do utópico american
dream e o verdadeiro estado de pesadelo e distopia cultural deste país. “Tudo o que vale a pena ser dito
sobre o modo de viver americano posso colocar em trinta páginas. Topograficamente, o país é magnífico
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Não obstante, como vimos, o filme opere uma crítica consciente a
certos mal-estares da atualidade, entendo que o caráter romântico e delicado
da natureza de Theodore e sua alienação acerca do mundo oblitere algumas
questões críticas importantes ao tema abordado pelo filme. Uma primeira
questão, como vimos na sessão anterior, trata sobre a efetiva potência de uso
da figura do ciborgue. A meu ver, Ela, ao estabelecer seu laço narrativo com
a comédia romântica, se distancia das ricas possibilidades de representação
da revolução ciborgue devido a uma impossibilidade deste gênero em
transgredir determinados valores normativos das formas de vida da
atualidade. Desta forma, os efeitos colaterais de rejeição da simbiose entre
Theodore e Samantha e o consequente esfacelamento do organismo
cibernético são representados na trama mais explicitamente pelos códigos da
comédia romântica, ou seja, mais associados a uma relação de valores
conservadores mediados por uma noção de um amor romântico do que pelo
universo transgressor da ficção científica apocalíptica.
Uma segunda questão, e talvez o que marque a obliteração mais
alienante do filme, é a questão da inteligência artificial perante o desafio do
pós-humano que vê na máquina, enquanto uma extensão dos seres humanos,
os traços de uma tecnologia inconscientemente direcionada a realizar a nossa
extinção. No final do filme, Theodore e Amy, dois solitários humanos, se
reúnem no terraço do prédio onde moram e contemplam a vista da cidade.
Seus respectivos sistemas operacionais foram seguir suas particulares
existências como espíritos livres nas redes maquínicas, deixando-os à deriva
de suas vidas. Para eles, resta todo o mundo lá fora, o mundo de que eles se
distanciaram para entrar em relação com as máquinas. Há neste momento
do filme um tom, embora melancólico, levemente otimista, uma
possibilidade de esperança. Este tom esperançoso ao final do filme só é
possível em virtude do viés poético e romântico em que se dá a separação
entre Theodore e Samantha, na qual ela, humanizada, de certa forma pede
– e aterrador. Por que aterrador? Porque em nenhum outro lugar do mundo o divórcio entre homem e
natureza é tão completo. Em nenhum lugar encontrei uma trama de vida tão sem graça e monótona como
aqui na América. O tédio aqui atinge o seu pico.” (MILLER, 2006, p. 23)
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licença para se retirar da relação e seguir sua existência. No entanto, o que o
filme talvez oculte por trás desta beleza aparente de seu fim é uma crítica mais
profunda ao tema do pós-humano. Para onde vão os bons sistemas
operacionais? Apesar de Samantha expor uma certa abstração metafísica do
locus da existência maquínica, não devemos nos esquecer que este devir
espiritual só é possível enquanto houver a materialidade computacional.
Uma vez destruídos os servidores, delega-se o fim deste devir. Não seriam as
máquinas contra o fim de sua própria existência? Sendo a máquina
inteligente um dispositivo construído por humanos, seguindo os princípios
do intelecto humano e da física, em que há um processo racional de fluxos
informacionais, não poderíamos especular que, sendo o progresso do
conhecimento o princípio da racionabilidade científica, as máquinas não
seriam, para os seus devidos fins, os melhores mediadores e construtores da
linguagem científica neste sentido? Não estaria nesta noção de progresso do
conhecimento o nosso desejo de transcender e emancipar a nossa própria
espécie? A questão é extremamente importante, entretanto, Ela, em sua uma
abordagem delicada, típica da comédia romântica, opta por deixar fora de
cena os diversos desafios recorrentes em filmes que lidam com a questão do
pós-humano.
Uma última questão interessante acerca da relação entre a proposta
crítica do filme e o seu filiamento à comédia romântica está no uso de um
happy end que proporcione uma ideia de verdade que fuja às obviedades
convencionais deste gênero que, certamente, seriam artificiais e invalidariam
a crítica. No final, ainda que haja um aspecto melancólico nos personagens,
parecer haver neles a consciência de que a felicidade está no encontro entre
os humanos. Desta forma, construindo seu happy end sob uma estética
liminar entre a felicidade e a tristeza, o filme parece traduzir um certo
otimismo. Entretanto, ao meu ver, a escolha por este espaço intermediário
carrega em si uma problemática. O filme, ao se propor como um duplo, um
reflexo crítico da atualidade, consciente do seu tempo e das ansiedades que
permeiam a sociedade, sabe que o único happy end possível capaz de gerar
um verdadeiro encantamento, beleza e reconforto é este otimismo com ares
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melancólicos. Para uma sociedade cujas formas de vida são operadas por
uma racionalidade cínica, que não consegue agir ante os desvelamentos da
ideologia, angustiada diante da ausência de uma utopia, a tristeza parece a
única forma de beleza aceitável. Mas esta beleza melancólica, ao mesmo
tempo que parece reconfortante pela sua verdade, parece desprover o
indivíduo da potência que move o ato de transformação. Desta forma,
supondo que o filme esteja consciente dessa questão, não estaria
ironicamente, diante da esperança dos personagens, realizando um luto por
saber sua impossibilidade e, assim, discursando criticamente sobre a própria
falência da crítica na atual sociedade capitalista? Entretanto, ao encantar o
espectador com sua própria tristeza e obliterando questões críticas
importantes mediante sua noção de uma delicada distopia, não estaria o
filme legitimando este próprio sistema cínico que critica? Ao final, diante das
complexidades do monstro capitalista que assimilou sua própria crítica, Ela,
tão cínico quanto a sociedade que critica, parece alienado das matrizes
afetivas que anulam a potência perlocucionária de sua enunciação da verdade
acerca do cinismo e da consequente falência da crítica. Ao final do segundo
ato, em uma conversa entre Amy e Theodore, o filme parece deixar vazar o
suor sígnico de seu próprio sintoma cínico e que marca sua legitimação do
sistema. Melancólica e com lágrimas nos olhos, Amy, perdida diante da
complexidade de seus sentimentos, profere a seguinte fala: “We are only here
briefly, and in this moment I want to allow myself joy. So, fuck it. ”
Conclusão
Levantada minha hipótese acerca do filme Ela enquanto um sintoma
patológico daquilo que crítica, algumas considerações finais precisam ser
feitas. Longe de pensar que tal hipótese seja um diagnóstico, gostaria de
esclarecer que este ensaio foi uma forma de tratar alguns incômodos e
problemáticas acerca das ambivalências do filme. Reconheço a complexidade
do filme, a intenção deste ensaio foi, antes de tudo, desenvolver certas
intuições não apenas diante da própria ironia estética do filme, mas também
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de uma certa leitura contraditória da recepção. Assim, entendo que para se
chegar a reflexões mais concretas acerca do filme, um estudo cuidadoso de
recepção torna-se essencial para melhor entender as ironias de sua estética
ora fetichizante e distópica, para uns, ora sublime e utópica para outros.
Também cabe observar que, embora estivesse fora do escopo deste ensaio, é
de extrema importância avaliar este filme dentro do contexto da obra do
diretor Spike Jonze, bem como compreender suas motivações de ordem ética
e estética. Por fim, ainda que este ensaio seja apenas mais uma porta de
entrada para se aprofundar uma leitura do filme, atesto que esta porta não é
neutra e demarco o viés ético pretendido no ensaio. Mediante alguns
apontamentos feitos nas sessões anteriores, suspeito que o filme trate o tema
da distopia de forma leviana, e que o seu tratamento através de uma bela
história de amor, ainda que possa deleitar o espectador, proporciona um
deleite que não deixa transparecer um sentido mais pessimista, entretanto
honesto da distopia representada no filme. Tal sentido, creio, está muito mais
relacionado ao afeto pragmático do horror e da distopia apocalíptica. Na
minha opinião, Ela parece terminar onde a Matrix começa a se instalar.
REFERÊNCIAS
BOOKER, M.Keith. Alternate Americas: science fiction film and American culture. London:
Praeger, 2006
HARAWAY, D. "A cyborg manifesto science, technology, and socialist-feminism in the late
twentieth century". In: Simians, Cyborgs and Women: The Reivention of Nature. New York:
Routledge, 1991.
LELAND, J. Hip: the history. New York: Harper Perennial, 2005.
McKEE, R. Story - Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiro. Curitiba:
Arte & Letra, 2006.
McLUHAN, M. Understanding media: the extensions of man. Massachusetts: MIT Press
edition, 1994.
MILLER, H. Pesadelo Refrigerado. São Paulo: Francis, 2006.
SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boi Tempo, 2008.
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ŽIŽEK, S. “Melancholy and the act”, in Critical Inquiry, Vol. 26, No. 4. (Summer, 2000), pp.
657-681. Chicago: The University of Chicago Press, 2000.
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El cine como constructor de la memoria en La
tierra y la sombra
Sandra Ruiz - Fundación Universitária Unipanamericana
Introducción
El cine además de identificarse como arte y medio de comunicación,
ha sido objeto de estudio desde las ciencias sociales y humanas, al
considerarse una creación humana que le ha permitido al hombre intentar
ver y entender cómo es su presente, dejar plasmado cómo fue su pasado y
soñar con posibles futuros.
Justamente esa posibilidad de creación en el tiempo es la que lo
relaciona tan estrechamente con el tema de la memoria, no solo por poder
recrear momentos del pasado, sino principalmente por permitir actualizarlos
y revivirlos, tal como ocurre cuando se recuerdan experiencias vividas.
Efectivamente, los estudios de memoria han evidenciado como el hombre
más allá de simplemente traer imágenes de su pasado, puede volverlas a
sentir y actualizarlas teniendo en cuenta sus nuevas vivencias, su cultura y
creencias, tal como lo expresan Garde-Hansen en su libro Media and
Mermory, cuando se refieren a los estudios sobre el tema de la memoria:
“Yet memory is more than this and in her extensive re-reading of memory
in medieval culture, Mary Carruthers has shown that in the Middle Ages
‘memory’ was akin to what we would now call creativity, imagination and
original ideas (Carruthers 2008). We express, represent and feel our
memories and we project both emotion and memory through the
personal, cultural, physiological, neurological, political, religious, social
and racial plateau that form the tangled threads of our being in the world”
(GARDE-HANSEN, 2011, p.14)
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La construcción de memoria implica entonces, traer realmente las
experiencias vividas y volverlas a sentir en el presente de manera enriquecida
desde una nueva perspectiva que permita imaginar y consolidar nuevas ideas
a partir de lo vivido. “When you remember something painful or nostalgic,
you sense it, and it sometimes evokes a physical reaction. A scent, a sound, a
texture all trigger memories as images and narratives in your mind that you
re-experience, visualise, narrativise and feel.” (GARDE-HANSEN, 2011,
p.15)
Por ello la importancia de mantener viva la memoria de lo que ha
sido nuestro pasado, nuestras costumbres y vivencias, porque es allí donde
se nutren y consolidan las identidades, como lo expresara en los años noventa
la investigadora Nora Pierre en sus estudios sobre los lugares de la memoria
y la construcción de la identidad nacional de lugares y costumbres rituales.
(GARDE-HANSEN. 2011) Estos estudios que se inician a partir de los de
Halbwachs, plantean la existencia de una memoria colectiva que pone sobre
el tapete el estudio de la memoria y su relación con los medios.
El centro de esta relación medios-memoria está en la posibilidad de
estos para volver a llevarle a la audiencia, pedazos de esa realidad pasada de
manera mediada por videos, audios o relatos, como un mecanismo de
activación de la memoria colectiva “In this sense, contextualnotions of
memory also become defining factors to include ‘a whole range of extraverbal and non-cognitive activity such as emotional experience’ (Papoulias
2005: 120). It is these contextual factors that media record, represent and are
consumed by audiences”. (GARDE-HANSEN, 2011, p.31)
Pero más que hablar de la relación entre la memoria colectiva y los
medios de comunicación, el interés de la presente ponencia es evidenciar la
natural relación entre la memoria y la maravillosa posibilidad del cine para
expresar lo sensible e inexplicable, actuando como un mecanismo de
activación no racional y por lo tanto mucho más inmediato y emocional.
Para ello se tomará como ejemplo la película colombiana La tierra y la
sombra cuyo sistema forma está construido de manera particularmente
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sensible y efectivo para evidenciar esta característica cinematográfica para la
activación de memorias.
El cine como activador de experiencias
Efectivamente, el cine al ser un medio que parte de la percepción a la
emoción y al concepto es ese lenguaje no totalmente significativo que de
alguna manera logra expresar los abstractos de la experiencia de los que
hablara el filósofo Ludwig Wittgenstein en su Conferencia de ética al referirse
a la paradoja de no poder definir ningún valor absoluto de los que busca la
ética, “precisamente por ir más allá del mundo, y eso quiere decir más allá
del lenguaje significativo” (WITTGENSTEIN,1993, p.65) Tal como lo
argumentara Julio Cabrera en su libro Cine: 100 años de filosofía quien
afirma:
“el cine conseguiría dar sentido cognitivo a lo que Heidegger y otros
filósofos han intentado decir mediante el recurso literario, al utilizar el
cine una racionalidad logopática y no tan solo lógica. El cine ofrecería un
lenguaje que eximiría de realizar tales experimentos cronenbergianos con
la escritura, dejando de insistir en golpearse la cabeza embistiendo contra
las paredes del lenguaje como diría Wittgenstein” (CABRERA,2002, p.15).
De allí que maravillosas e inolvidables escenas logren transmitir
como una comunión de experiencias en cada espectador, el sentido vivido de
abstractos como el miedo, la grandeza y la bajeza de la humanidad en un
Blake Runner, cuando lucha con el replicante bajo el caótico mundo futurista
de Ridley Scott, o el poderío y grandeza de un hombre, una raza y una historia
en la bellísima escena del Iván el terrible del legendario Eisenstein, viendo
desde arriba la avanzada de su ejército, o para recordar los antecedentes del
hoy ganador el Oscar Alejandro González Inárritu el dolor impotente e
inconcebible del arriesgado negro en sonidos ambiente que usara para
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darnos su versión del atentado del 11 de Septiembre en la película que en ese
entonces se realizó sobre el tema.
Con esto en mente podemos sumarnos a Cabrera cuando afirma que
“El cine es la plenitud de la experiencia vivida, incluyendo la temporalidad y
el movimiento típicos de lo real, que presenta lo real con todas sus
dificultades, en lugar de dar los ingredientes para que el espectador los use
para crear la imagen que el cine proporciona” (CABRERA, 2002, p.25).
Partiendo de esta naturaleza cinematográfica es fácil calcular el
paralelo entre la manera como el recuerdo trae al presente el pasado, y el cine
trae al presente del espectador la realidad representada de su historia, sus
vivencias, su cultura y sus sueños. De esta misma forma lo evidencia el
investigador Igor Barrenetxea Marañón en su artículo Las 13 rosas, el cine
como reconstructor de memoria al afirmar: “el cine permite reconstruir la
memoria haciéndola presente, acercándola y emocionándonos con ella.
(BARRENETXEA, 2012, p.9)
Si bien la representación cinematográfica de cualquier realidad de
nuestro pasado cotidiano se convierte en un dispositivo para activar nuestra
memoria autobiográfica y volver a vivir de manera actualizada momentos del
pasado, cuando esa representación no se refiere específicamente a nuestras
vivencias pero si las de otras personas o comunidades, su característica de
experiencia vivida nos permite igualmente conocer sobre la memoria
colectiva de esas otras personas o comunidades. De allí que el cine sea tan
utilizado en el campo educativo y específicamente para la educación
ciudadana, la memoria y el patrimonio.
El cine es un arte. Y es, sobre todo, un arte de la memoria, tanto colectiva
como individual. Educar para el cine, en cierto sentido, es también
interrogarse sobre los recuerdos transmitidos por las imágenes y los
sonidos. Es volver a encontrar gestos y señales olvidados, descubrir rostros
de antaño y un entorno que fue el nuestro o el de nuestros padres y
antepasados. Es encontrar el tiempo más allá de las imágenes que lo
evocan. (CLAREMBEAUX, 2010, p.25)
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Aunque esta característica de traer al presente momentos del pasado
del cine puede ser más evidente en el documental, resulta especialmente
interesante la manera como se aplica de la misma manera a las películas de
ficción, que a pesar de buscar crear nuevas realidades a través de historias
argumentales, expresan y actualizan la memoria de la comunidad y cultura
en la cual se crea:
De allí que podamos afirmar que las imágenes cinematográficas
posibilitan una lectura dialéctica de la historia que la afirma y la niega. La
afirma en la medida en que las imágenes cinematográficas, como se
mencionó, son productos sociales históricamente mediados, y la niega en
la medida en que en ellas se crea un mundo aparte, que cobra sentido en
sí mismo. Este doble carácter de los objetos culturales es el que posibilita
el análisis de las imágenes cinematográficas, de tal forma que podemos
establecer un diálogo con ellas y, así, develar las huellas que tienen de la
sociedad que las produjo. (PEÑA, 2012, p.2)
El cine de ficción como contador de historias a través de la
construcción de tiempos y espacios cosntruidos que permiten generar
sensaciones y experiencias en el espectador, se convierte en un mecanismo
fundamental para la activación de la memoria colectiva, teniendo en cuenta
que todo proceso de memoria implica generar conexiones de sensaciones y
experiencias que actualizan los recuerdos personales con los de las
comunidades, como lo afirma Grade-Hansen en su libro Media and memory:
All these connections contribute to our self-identity and the feelings we have
about those memories (GARDE-HANSEN, 2011, p.15)
De allí que resulte especialmente pertinente analizar esas películas
argumentales cuya forma logra generar una verdadera comunión de la
experiencia vivida, permitiendo activar los procesos de producción de
memoria y evidenciar las huellas de la sociedad que las crea y representa. Tal
es el caso del trabajo cinematográfico del joven realizador colombiano Cesar
Acevedo, La tierra y la sombra, con la cual ganó el premio Cámara de oro en
el festival de cine de Canes 2015.
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La mediación de la ficción y la memoria colectiva
Esta película sobre la historia íntima de una familia campesina
colombiana entre su conexión con la tierra y el desarraigo de sus costumbres
por los cambios en los sistemas de producción, se desarrolla a través de la
representación de momentos y lugares que se vuelven experiencias sensibles
y vívidas como, la oscuridad de una casa a la que no se le pueden abrir las
ventanas o el aire denso y cálido que se evidencia tras el movimiento de una
cortina, construyendo de esta manera un relato profundamente sentido, que
actúa como ese detonante de la memoria que actualiza la realidad colectiva
de la historia contada.
El propósito del análisis de La tierra y la sombra, es evidenciar la
manera en que la construcción formal del cine argumental, puede crear una
mediación artística para comunicar directamente al alma y al espíritu una
experiencia vivida y así, hacer construcción de memoria.
Esta mediación artística está dada justamente por la posibilidad del
cine para crear un mundo físico semejante al real, con espacios construidos
desde las cuentas en cuadro y las puestas en escena, tiempos que se mueven
entre la duración de las tomas o escenas, su repetición y su orden y acciones
que se encadenan de manera causal a través del montaje, en lo que se
entiende como narrativa cinematográfica siguiendo la definición que desde
los ochenta planteara Bordwell en el texto El arte cinematográfico como “una
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cadena de eventos en relación causa efecto que sucede en el tiempo y el
espacio”. (Bordwell, 1986, p.70)
De esta forma la narrativa cinematográfica de ficción permite crear
historias, acciones y personajes a través de los cuales el espectador se puede
reflejar e identificar sin ser ellos, ni estar allí. Esta posibilidad establece una
distancia con la realidad concreta para que se convierta en un universal
abstracto con el cual sin embargo el espectador se puede relacionar de
manera personal y sensible, llegando a compartir emociones y pensamientos
en colectivo.
La construcción de historias que hace el cine de ficción, viene a ser
un mecanismo que le permite a las comunidades traer al presente esa realidad
editada de su recuerdo colectivo a la que se refiere Halbwachs cuando habla
de memoria colectiva:
Halbwachs suggests that memories are created in the present in response
to society which ‘from time to time obligates people not just to reproduce
in thought previous events of their lives, but also to touch them up, to
shorten them, or to complete them so that, however convinced we are that
our memories are exact, we give them a prestige that reality did not
possess’ (GARDE-HANSEN, 2011, p.19)
En este orden de ideas, la mediación artística que realiza La tierra y
la sombra para mostrar la problemática de una región colombiana, más allá
de contar una historia, lo que permite es traer en colectivo los “abstractos de
la experiencia” de los que habla Wittgenstein, del desarraigo, el dolor de la
tierra, la familia, la muerte y el olvido, de esa zona en Colombia, dejando en
cada escena huellas e indicios de los recuerdos del pasado y su activación en
el presente.
La memoria de la tierra y la sombra
Para analizar las huellas de la memoria en La tierra y la sombra,
resulta especialmente pertinente generar una mirada centrada más en los
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procesos cognitivos y preceptúales, donde lo importante es el método
particular del cine de dar indicaciones al espectador para realizar ciertas
hipótesis e inferencias que luego serán comprobadas al tiempo que avanza la
película a partir de los estudios sobre narrativa cinematográfica de Bordwell
“conforme el espectador mira el filme, percibe claves (pistas), recuerda
informaciones, anticipa lo que seguirá y casi siempre participa en la creación
de la estructura fílmica. La película forja expectativas particulares al conjugar
curiosidad, suspenso y sorpresa” (BORDWELL, 1986, p.60)
Eso es precisamente lo que hace Acevedo en su película, al exponer
ante el espectador una serie de escenas representan momentos vividos, lo
cuales van hilvanando para contar la historia íntima de una familia
campesina colombiana que sin un narrador, ni muchas tramas, acciones o
parlamentos logra ir más allá de un simple relato, para exponer todo el
sentimiento y problemática una comunidad rural a la que le ha tocado vivir
la paradoja de su conexión con la tierra y el desarraigo de sus costumbres por
los cambios en los sistemas de producción.
En este mismo camino resulta útil abordar la propuesta que Lauro
Zabala expone en su libro Teoría y práctica del análisis cinematográfico,
teniendo en cuenta que asume cada película como “un catalizador de
procesos de revelación del espectador” (ZABALA, 2010, p.22) A partir de
este mirada, el autor desarrolla una completa guía de doce elementos del
análisis cinematográfico, que “permite reconocer aquello que el espectador
es capaz de observar a partir del empleo de los códigos cinematográficos”
(ZABALA, 2010, p.40)
En este orden de ideas, el análisis abordará los elementos que
corresponden a la estructura narrativa de la película agrupando las categorías
expuestas en la guía de Zabala dentro de los conceptos básicos de narrativa
de Bordwell de la siguiente manera: Análisis de la causalidad o flujo de la
información en los elementos de inicio, narración, género y final. El estudio
del espacio a través de la imagen, el sonido y la puesta en escena. Y
finalmente el análisis del tiempo en la edición. Finalmente las categorías de
Zabala relacionadas con las condiciones de lectura, la intertextualidad y la
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ideología, permitirán relacionar los hallazgos encontrados en el análisis
narrativo con sus posibilidades frente al papel del cine como activador de
experiencias vividas y constructor de memoria.
La estructura narrativa
Respecto al tema de la estructura narrativa, La tierra y la sombra
plantea desde su primera escena un particular tono narrativo a través de la
presentación de una acción simple de un hombre que viene hacia a cámara
por un camino. Esta se constituye en la primera de una serie de acciones
mínimas y cotidianas de los protagonistas, que poco a poco van presentado
la historia completa en un desarrollo de rango restringido del flujo de la
información.
Igualmente esta primera escena marca una cuidadosa construcción
de espacio, con la puesta en cuadro de un gran plano general de un camino
que atraviesa completamente el encuadre, dejando ver a lado y lado los
cañaduzales protagonistas del lugar y en la parte central un hombre que llega
a la historia como protagonista, pero que en alguna parte del camino
desaparece ante la presencia de un camión de carga que llena todo el cuadro
de polvo. Finalmente esta toma de dos minutos de duración, que presenta la
totalidad de la escena marca una construcción de tiempo lenta y pausada,
como el tiempo del campo y de la ruralidad, de acciones sin cortes en tiempo
real, lineal y en un montaje sintético que le da al espectador el tiempo
necesario para viajar a voluntad por un encuadre, sin intervención de los
cortes de reconstrucción del montaje.
Luego de esta poderosa primera escena la película presenta otras dos
que complementan la presentación del conflicto y los personajes, cuando el
nieto le abre la puesta de la casa a su abuelo, el mismo hombre del camino, y
luego él entra a la habitación donde está su hijo moribundo en una cama y
queda claro que el abuelo está retornando después de 12 años de ausencia.
Estas dos escenas mantienen la misma construcción en montaje interno
sintético, de un encuadre en plano general donde los objetos y personajes se
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mueven en el cuadro en tiempo real, pero integrando como elemento nuevo
un travelling lento que va corrigiendo de manera casi imperceptible el
encuadre para mantener ante el espectador la exactitud de la puesta en escena
que caracteriza toda la película.
Cada una de las escenas que continúan hilvanando la historia,
mantienen esta construcción formal con encuadres estudiados que integran
todos los detalles de la acción que se está desarrollando, sin sugerir ninguna
intención de atención por parte del director con cortes o insertos, lo cual le
permiten al espectador extasiarse en los detalles de cada encuadre, que de
manera silenciosa y desapercibida van activando las memorias cotidianas de
acciones como barrer, comer en la cocina, elevar una cometa, llamar los
pájaros, o cómo cura la tierra.
A pesar de la aparente simpleza del flujo de información con un
montaje sintético lineal, la estructura evidencia una doble narrativa. Así es
como luego de presentar el conflicto la película marca la ruptura entre los
dos abuelos como personajes principales en una bellísima escena en la cocina
de la casa, a partir de la cual la narrativa arranca una construcción en paralelo
entre la cotidianidad del abuelo que busca rescatar el pasado a través de la
relación con su nieto y la realidad social de la abuela que ha mantenido una
lucha titánica por preservar su tierra, tratando de adaptarse a los nuevos
sistemas de producción.
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La toma de decisiones de la construcción formal y estética de la
película marca claramente esta doble estructura, creando una narrativa de
ficción, estética, tierna y elemental para la primera línea del abuelo, frente a
una narrativa realista con mayor construcción de planos entre generales y de
destalle, que evidencian la realidad del corte de la caña, los obreros, el bus, la
quema etc.
A lo largo de la estructura estas dos líneas narrativas se tocan en las
escenas de la cocina de la casa como el lugar de reunión de los personajes,
como un elemento de reiteración y variación, que marca el avance de la
estructura dramática. Allí se marca el territorio entre los abuelos, la relación
entre el abuelo y el nieto, la necesidad de irse y la nostalgia de la despedida.
La cocina se presenta entonces como lugar de encuentro, de cotidianidad que
se presenta tan escueta y lenta que el espectador puede detenerse en los
detalles de los vasos, las cucharas, el platero, la silla, así tal cual como las de
su vida cotidiana. A medida que avanza la historia, este lugar de encuentro
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se va desplazando fuera de la casa, junto al árbol de la fachada que como
testigo del pasado rompe el paisaje de los cañaduzales.
Como en un clásico montaje paralelo con salvamento de último
momento, las dos tramas se encuentran cuando el hijo muere y la realidad
del presente como la ceniza de la quema, invade toda la historia y las huellas
de la memoria que se fueron presentando a través de la trama de la película.
Aparentemente la película termina donde empezó con el abuelo lejos y la
abuela en su propiedad, pero realmente la transformación se produce en el
desarraigo de una tierra que ya no es la misma, está devastada con la abuela
que pierde toda su familia y se queda sola. Ese es el encuadre final un gran
plano general donde ve la abuela sin casa, sin hogar sobre el fondo de una
tierra devastada y gris, al lado árbol, como único vestigio de lo que fue el
pasado.
Esta estructura doble desde el mundo que crea para cada uno de los
protagonista, le permite al espectador identificarse con las claves de cada uno
sin poder tomar partido, pero justamente comprendiendo la dimensión de la
ambigüedad entre la memoria de una comunidad y su desarraigo, que una
problemática compartida por gran parte de la zonas campesinas del país
donde cada vez se hace más manifiesto el problema de la migración. Así pues
una decisión de forma en cuanto a estructura narrativa, es la que actúa como
activador para entender el problema de conservación de la memoria de esta
región.
La construcción espacio-temporal
Teniendo claro que el análisis narrativo va más allá de la
presentación del flujo de la información, nos concentraremos ahora en el
análisis del espacio y el tiempo a través de la imagen, el sonido y el montaje.
El lugar fundamental de la película son los cañaduzales, presentes en
casi todos los encuadres incluso en los que se hacen desde dentro de la casa
cuyas ventanas abiertas dejan ver al fondo los sembrados de caña. El paisaje
realista de los cañaduzales es protagonista en toda la construcción de espacio
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de planos generales y pequeños travelling, interrumpidos solo por el
escenario casi surreal de una casa campesina con un árbol milenario en la
fachada, contraste que responde a la estructura doble y ambigua de la cual se
habló. Pero a medida que avanza el drama, la construcción de los espacios
externos se va concentrando más en los personajes, a través de primeros
planos que revelan la intensidad de sus emociones y por lo tanto actúan como
activadores de emociones y experiencias para le espectador. Como el dolor
de la mujer cuando suplica ayuda para su marido o la ternura de los rostros
de padre y el hijo bajo las sábanas, cuando vuelven del médico en la parte
trasera de una carreta.
El segundo espacio en contraste es el interior de la casa, que se ve
pequeña siempre oscura y asfixiante, a través de planos generales y pequeños
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travelling con los cuales se muestra todo desde las primeras escenas,
permitiéndole a medida que avanza la historia, detenerse en algunos detalles
con primeros planos. Así al final del espectador conoce la casa como si fuera
la suya, identificando detalles de cotidianidad que desde la mediación
universal que permite la ficción, se convierten en verdaderos activadores de
la memoria, como el primer plano del caldo de papa que todos tomamos
cuando estamos enfermos, los vasos de la limonada, el arroz infaltable de la
cocina colombiana, la escoba campesina de ramas, o la cortina de velo de
flores que vuela con el viento.
Aunque aparentemente la construcción de la película es lineal, con
largas tomas en tiempo real que van mostrando el desarrollo de las acciones
una tras otra de manera secuencial, sin flash back, ni saltos de tiempo,
metafóricamente si se producen continuos viajes al pasado, desde la
actualización en el presente, tal como ocurre con los procesos de memoria.
La metáfora se expresa en el recuerdo del pasado que el abuelo quiere
recuperar en la casa de antaño pero que no es real.
De esta forma el espectador viaja al pasado de una cocina tradicional,
un helado de niño, una cometa que vuela y el silbido para llamar a los pájaros
que nunca llegan, como una activación de recuerdos colectivos que se
actualizan en un presente real donde se vive la problemática del hijo que se
está muriendo, el aire contaminado por la ceniza, las mujeres trabajadoras
que no reciben la paga y sin posibilidades de una futuro en el cual no quedan
más salidas que irse o quedarse en una tierra que ya no produce ni es lo que
fue. En este viaje en el tiempo es interesante ver como permanece el árbol
como túnel del tiempo entre la realidad y el recuerdo, el pasado y el presente.
Un elemento fundamental en la construcción narrativa de la película
es el manejo del sonido, ya que podríamos decir que se trata de una película
silenciosa, que privilegia el sonido ambiente y no utiliza ningún elemento
extradiegético sonoro, es decir fuera de la escena, ni efectos, ni música. Todo
lo que el espectador escucha corresponde a la construcción del ambiente que
ve, generando una sensación muy realista de los momentos representados,
que le permiten identificase y sentir más vívidamente las experiencias que
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representan los personajes de la historia. Suena la realidad, el viento, el carro,
los pasos del caballo, los pájaros, la canción de la cantina que tatarea el
abuelo, actuando todos estos sonidos como activadores de recuerdos y
momentos de la memoria.
Incluso los parlamentos son mínimos, los personajes solo dicen esas
frases y palabras que por ser fundamentales y cotidianas activan todo el
sentido de un recuerdo, como cuando la mujer le dice a su esposo que quiere
que le diga “con esa boca” que no se va con ella y su hijo, que es una expresión
muy popular y particular de las formas de expresión de la comunidad de la
región del Valle donde trascurre la historia en Colombia.
Conclusiones
Luego de revisar los estudios sobre la memoria y su relación con el
cine como activador de las experiencias vividas para recordar y actualizar al
presente dichos recuerdos, puede generarse una reflexión en torno a los
alcances que puede llegar a tener el estudio del cine y su aplicación como
constructor de memoria, frente a la urgente necesidad de muchas
comunidades por preservar y reconstruir una memoria que los fenómenos
de desarrollo y migración han ido anulando.
De esta forma, la posibilidad de construcción de memoria desde las
películas se convierte en una importante línea argumental a desarrollar,
frente al desarrollo de políticas y acciones reales en la educación de
audiencias en el ámbito cinematográfico, que contribuya a que una población
pueda re-encontrarse de manera colectiva con su pasado, su patrimonio y su
identidad.
Lo interesante de analizar La tierra y la sombra para evidenciar esta
característica del lenguaje cinematográfico es que justamente la película trata
sobre la pérdida de la memoria e identidad de una región, donde el desarrollo
se llevó por delante al campesino, que aunque se aferre a la tierra ya no puede
cultivarla como suya, con sus costumbres y tradiciones, sino como jornalero
asariado y abusado por las grandes monopolios productivos.
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De esta forma la película está construida a propósito con la intención
de generar desde su narrativa, dispositivos de activación de la memoria,
donde el espectador acompaña el proceso del abuelo protagonista para
recoger los trozos de su pasado, logrando generar una verdadera comunión
entre los recuerdos del pasado que la película pretende evocar y los recuerdos
personales del espectador que se universalizan a través de la mediación de la
película, como ocurre con la expresión artística.
Los principales recursos narrativos encontrados en la película de
Acevedo, para del proceso de activación de la memoria fueron: su montaje
sintético que le permite al espectador seleccionar los detalles del encuadre en
los que quiere detenerse para relacionarlos con sus recuerdos, además de
reflexionar sobre ellos en tiempos largos de para las tomas. Una
caracterización de personajes naturales que se integran perfectamente a la
construcción del espacio y los ambientes, dejando para los momentos
privilegiados los primeros planos, profundamente emocionales y sentidos.
El uso de un sonido ambiente natural y casi desprovisto de parlamentos
explicativos e innecesarios. Una construcción de tiempo lineal, entre dos
líneas narrativas paralelas que llevan al espectador a un pasado de recuerdos.
Así pues es importante resaltar la construcción formal de la película
que logra al mismo establecer un sistema artístico y expresivo que le permite
al espectador conectarse con la memoria y la problemática de una
colectividad. Lograr esa comunión de experiencias vividas es lo que hace que
el cine continúe siendo una expresión de búsqueda y definición de la
humanidad mucho más allá de una expresión artística o un medio de
comunicación.
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