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O retorno do conflito.pdf

REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS ISSN 2177-2851 Nº 6 (2013/01) Editorial 6, 2013/01 [3-4] Editorial 6, 2013/01 [5-6] Interview Entrevista com Fernando Henrique Cardoso [7-21] Interview with Fernando Henrique Cardoso [22-36] Pedro Luiz Lima Dossiê Cultura e Política, organizado por Bruno Carvalho Introdução [37-40] Introduction [41-43] Bruno Carvalho Culture and Politics dossier, organized by Bruno Carvalho A interface entre raça e identidade nacional no Brasil e na África do Sul [44-60] The interface of Race and National Identity in Brazil and South Africa [61-76] Graziella Moraes Entrevista De Gramsci à Teoria das posses essenciais: política, cultura e hegemonia em “os 45 cavaleiros húngaros” [77-101] From Gramsci to the theory of essential possessions: politics, culture and hegemony in the ‘The Hungarian Knights’ [102-125] Raquel Kritsch Limites da Política e esvaziamento dos conlitos: o jornalismo como gestor de consensos [126-143] The limits of politics and the delation of conlicts: journalism as a manager of consensus [144-161] Flávia Biroli Artigos Articles As implicações de ressentimentos acumulados e memórias de violência política para a descentralização administrativa em Moçambique [162-180] The implications of accumulated grievances and memories of political violence to the administrative decentralization in Mozambique [181-199] Victor Igreja O triângulo Irã-Israel-Azerbaijão: implicações para a segurança regional [200-214] The Iran-Israel-Azerbaijan triangle: implications on regional security [215-228] Maya Ehrmann, Josef Kraus e Emil Souleimanov O retorno do conlito: a democracia republicana [229-244] The return of conlict: republican democracy [245-260] Maria Aparecida Abreu REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS ISSN 2177-2851 Nº 6 (2013/01) Artigos Articles A Economia política da década bolivariana: instituições, sociedade e desempenho dos governos em Bolívia, Equador e Venezuela (1999-2008) [261-277] The political economy of the bolivarian decade: institutions, society and government performance in Bolivia, Ecuador and Venezuela (1999-2008) [278-293] Dawisson Belém Lopes Dois liberalismos na UDN: Afonso Arinos e Lacerda entre o consenso e o conlito [294-311] Two types of liberalism in the National Democratic Union (UDN): Afonso Arinos and Lacerda between consensus and conlict [312-329] Jorge Chaloub Isebianas Isebianas Projeto, democracia e nacionalismo em Álvaro Vieira Pinto: Comentários sobre “Ideologia e desenvolvimento nacional” [330-336] Project, democracy and nationalism in Álvaro Vieira Pinto: Comments on “Ideologia e Desenvolvimento Nacional” [Ideology and National Development] [337-344] João Marcelo Ehlert Maia Edição facsimilar de Ideologia e Desenvolvimento Nacional [facsimile] Alvaro Vieira Pinto Pesquisa e projeto Research and research project Breve roteiro para redação de um projeto de pesquisa [345-353] Brief guidelines for drafting a research project [354-362] Jairo Nicolau REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O Retorno do Conlito: A Democracia Republicana1 Maria Aparecida Abreu Maria Aparecida Abreu é Professora Adjunta do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: mazabreu@uol.com.br Resumo O propósito do artigo é apresentar uma associação dos conceitos de conflito, tal como Maquiavel o havia proposto, de liberdade como não-dominação, na forma do neo-republicanismo contemporâneo, especialmente de Philip Pettit, e o conceito de desigualdade categórica de Charles Tilly. Com isso, a intenção é formular uma teoria que possa ser utilizada como referência para a atuação do Estado nas situações de desigualdade que são intoleráveis para a democracia — justamente aquelas que se dão a partir de um grupo de pessoas, com características especiais, sobre outras. Para tal formulação teórica será dado o nome de democracia republicana, na medida em que une formulações da teoria democrática de Tilly com as contribuições dos principais teóricos republicanos atuais. Palavras-chave democracia, república, conlito, dominação, desigualdade Abstract The purpose of this article is to present an association of the concepts of conlict, in the sense proposed by Machiavelli, in freedom as non-domination, according to the deinition of contemporary neo-republicanism, and especially Philip Pettit, and in categorical inequality as deined by Charles Tilly. The intention is to formulate a theory that can be used as a guide for the State in situations of inequality that are intolerable for democracy — particularly those in which practiced by groups of people with special traits in detriment of others. This theoretical formulation will be denominated republican democracy as it combines the formulations of democratic theory proposed by Tilly with the contributions of the leading contemporary theoreticians of republicanism. Key words democracy, republic, conlict, domination, inequality REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu 230 Introdução O conlito, na realidade política, está por toda parte: nas visões opostas de Estado, que podem signiicar a sua intervenção neste ou naquele campo de atividades privadas, na reivindicação de direitos que segmentos da sociedade consideram legítimos, na luta por igualdade entre diversos grupos e pela liberdade de cada um deles. No entanto, na teoria política contemporânea, talvez seu grande atributo seja a ausência. Desde Carl Schmitt — que, dá ao conlito um caráter central, mas disruptivo, na medida em que nas situações conlitivas alguma das partes deverá ser excluída —, parece não haver quem coloque o conlito no centro da política, muito menos como algo constitutivo dela, nem mesmo lhe atribua um caráter positivo. Luis Felipe Miguel (2012), apresenta Chantal Mouffe como uma voz aparentemente dissonante ao apontar a necessidade de retomada do conlito — não o disruptivo schmittiano, mas o agonístico — e aponta as limitações de sua teoria em reestabelecer o espaço do conlito na teoria política2. De fato, ao apontar que, ao admitir como legítimo apenas o conlito de posições adversárias e não inimigas — provavelmente para escapar do referencial schmittiano —, Mouffe acabou ela própria se aproximando muito mais dos matizes do pluralismo do que se mantendo em uma reivindicação da centralidade do conlito na política. No lugar do conlito, ocupou o centro das teorias políticas o consenso — nas teorias de iliação habermasiana, ou o pluralismo, seja numa teoria democrática inspirada na poliarquia de Dahl, seja na admissão de concepções plurais de bem que não estão em disputa nas teorias da justiça de linhagem rawlsiana. Também em uma certa linhagem republicana, o conlito não tem ocupado o centro do debate. Mesmo com todo o empreendimento teórico de resgate e revalorização da obra republicana de Maquiavel, exaltadora do conlito, as suas leituras contemporâneas mais conhecidas feitas por Pocock, Skinner e Pettit não deram a ele um papel central (Appleby, 1985: 1992). Ao contrário, no caso de Pocock foi apontada a valorização do interesse feita pelos Federalistas, em substituição ao tema da virtude e mesmo da virtù — em termos maquiavelianos -; e foi feita por Skinner e Pettit uma discussão sobre os conceitos de REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu liberdade, buscando uma alternativa à dicotomia apresentada por Berlin, no par liberdade positiva/negativa. Nessa discussão, um novo conceito surgiu, que é o de liberdade como não dominação. Com esse conceito, os republicanos contemporâneos consideraram ter-se diferenciado da linhagem liberal, na qual o conceito de liberdade tem um cunho bastante centrado no indivíduo e nos limites da ação do Estado (da república ou da comunidade política) em relação a esse indivíduo. A liberdade como não dominação abre espaço para que as comunidades políticas não sejam consideradas livres se houver em seu interior grupos inteiros dominados. Em outras palavras, o referencial da liberdade como não dominação airma uma concepção não apenas individual de liberdade — sobre a qual o Estado não deve interferir —, mas também coletiva e, no limite, como um atributo da própria comunidade política. Embora admita as diferenciações da liberdade como não-dominação em relação à liberdade liberal, John McCormick tem apontado que tal liberdade, de inspiração maquiaveliana, não manteve consigo seu caráter conlitivo. A crítica de McCormick está bastante centrada na reivindicação de uma apropriação ao mesmo tempo mais correta de Maquiavel — do ponto de vista da posição histórica que ele ocupou no seu contexto — e também mais adequada do ponto de vista das demandas das democracias contemporâneas. Em outras palavras, McCormick critica Skinner e Pettit por colocar Maquiavel em uma posição que seria mais próxima àquela assumida por seus adversários teóricos no contexto lorentino e também por não apresentar respostas tão ousadas quanto os dilemas da democracia contemporânea requerem. McCormick, diferentemente dos autores por ele criticados, coloca o conlito e a tensão entre povo e Senado romano expostos por Maquiavel como o grande ponto de inspiração para a formulação de mecanismos de responsividade das elites contemporâneas perante as classes populares. De acordo com ele, é a partir do “medo” da aristocracia em relação às classes populares que se pode erigir mecanismos institucionais em que as posições de cada um tenham de expressar-se abertamente no debate público. É com a atribuição de poderes de veto ao povo que as elites deverão agir e estabelecer políticas em conjunto com aquele ou, no mínimo, levando em consideração suas posições. Apesar de McCormick reconhecer a cisão social existente entre povo e elites — o que origina o conlito constitutivo das comunidades políticas (repúblicas) —, ele não adentra na caracterização sociológica desse conlito. Essa limitação decorrente da permanência de McCormick no âmbito das instituições e do jogo de forças — verdadeiros freios e contrapesos não entre quaisquer instituições, mas entre aquelas que representam os setores sociais em conlito — que caracterizam as democracias contemporâneas, fez com que ele, ainda que tenha resgatado Maquiavel de forma mais radical que os demais teóricos republicanos contemporâneos, talvez tivesse desperdiçado a oportunidade de aproveitar o insight de Pettit, que foi o de colocar a dominação no centro do debate, o que pode ser aproveitado — ainda que essa não seja exatamente a proposta do autor — como critério para a identiicação dos conlitos que devam ser prioritários e cuja expressão mereça ser considerada necessária para a constituição da liberdade dos cidadãos e da própria comunidade política. Diante desse cenário, e acreditando ser a vertente teórica republicana a mais fecunda para buscar o resgate do conlito na política, justamente por ter Maquiavel como um de seus pontos principais de referência, e por ter recolocado a dominação no debate — ainda que não ressaltando os conlitos que dela derivam —, o que se pode propor é que se admita como referencial normativo a liberdade como não dominação formulada por Pettit, mas 231 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu buscando dar densidade conlitiva a esse conceito, indo além da democracia contestatória proposta por ele, reconhecendo a crítica de McCormick e acrescentando elementos a ela. Neste sentido, propõe-se aqui que a relação conlitiva de referência seja aquela existente entre dominantes e dominados. Tal relação não abarca, obviamente, todas as situações conlitivas3, mas pode-se airmar que é a situação que nenhuma democracia pode tolerar, ou nenhuma república pode ser considerada livre. Em outras palavras, não podemos dizer que haja democracia, ou que haja uma república livre, ou, como será dito aqui, que haja uma democracia republicana, se há a presença de situações expressivas de dominação. Mas como caracterizar tal dominação? A partir da literatura feminista e das formulações acerca da constituição e do exercício da dominação masculina (Bourdieu, 1999; Pateman, 1992), é possível airmar que Charles Tilly, embora não utilize o termo dominação, ao elaborar seu conceito de desigualdade categórica e como ela se constitui e perdura, oferece subsídios teóricos bastante fecundos. E isso ganha sentido maior se considerarmos que a dominação é, do ponto de vista social e político, ainda mais preocupante quando ela gera desigualdades tais como aquelas descritas por Tilly. O propósito deste artigo é, então, sugerir que há, na teoria republicana contemporânea, um terreno bastante fecundo para o retorno do tratamento e adequado enfrentamento do conlito pela teoria e política e também pelas instituições, desde que se dê densidade sociológica ao conceito de liberdade como não dominação — que provavelmente é a maior contribuição do pensamento republicano contemporâneo — para que justamente a dominação seja o critério primordial identiicador dos conlitos que devem ser enfrentados por uma comunidade política que se pretende democrática e livre, que neste artigo recebe o nome de democracia republicana. Neste empreendimento em busca da densidade sociológica para a liberdade como não dominação, a obra de Charles Tilly parece um instrumental adequado e compatível com a teoria republicana da qual se parte. Com esse propósito, serão expostas: (i) a formulação da liberdade como não dominação de Philip Pettit e suas limitações, aderindo à boa parte das críticas formuladas por McCormick; (ii) as insuiciências de McCormick e sua apropriação maquiaveliana; (iii) a formulação de desigualdade categórica de Tilly como um referencial para caracterizar a dominação; (iv) a explicação de por que uma teoria assim formulada pode ser mais adequada para lidar com alguns problemas sociais atuais que os sistemas políticos têm de enfrentar. A liberdade como não dominação de Pettit A formulação do conceito de liberdade como não dominação de Philip Pettit se insere em um contexto de airmação de uma vertente do republicanismo, a neo-romana (Silva, 2007 e 2011, Skinner, 2008), que busca, ao mesmo tempo, afastar-se das concepções elitistas de uma certa tradição republicana e também do resgate da liberdade dos antigos gregos, ou liberdade positiva, tal como defendida por Hannah Arendt (1963) e apontada por Habermas (1995). Em relação ao tema da dominação, Pettit (2007) formula como enunciado geral que, nas diversas experiências republicanas, e também nos textos teóricos que as fundamentam, o que se depreende é que o que o povo desejava era não ser dominado. A partir daí, sua defesa foi a de que, no pensamento republicano, não predominaria a liberdade positiva, tal como classiicada por Habermas. Essa defesa de Pettit poderia sugerir que a liberdade como dominação seria uma variação da liberdade negativa já consagrada por Isaiah Berlin, mas, na verdade, ele acrescentou um novo elemento, pois a liberdade negativa berliniana é eminentemente liberdade 232 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu como não interferência, enquanto Pettit destaca, em suas análises, que há situações de não interferência em que há dominação, e há situações de interferência em que não há dominação. Com isso, inseriu um terceiro elemento na dicotomia sobre o tema da liberdade, tal como inaugurada por Constant, na forma do par liberdade dos antigos/ liberdade dos modernos e consagrada por Isaiah Berlin, com a forma de liberdade positiva/liberdade negativa. Assim, a formulação da liberdade como não dominação de Pettit não somente contribui para a complexiicação e a soisticação do conceito de liberdade, mas também para ampliar a discussão do papel do Estado e de suas instituições na promoção da liberdade dos indivíduos e também da própria comunidade política. Colocar a liberdade no centro da discussão sobre o papel do Estado em sua promoção (e não somente como limitação à sua ação) é um tema típico da tradição republicana. O Estado é um agente cuja ação, ainda que deva ser legitimada, é imprescindível para a constituição das instituições adequadas para o bem viver e para uma vida ausente de dominação e, portanto, livre. A relevância e a fecundidade da formulação de Pettit podem ser sentidas na inluência que a sua obra teve sobre o trabalho de teóricos como Skinner, e também sobre a própria intervenção estatal, no caso espanhol da administração de José Luis Rodríguez Zapatero (Pettit, 2011). A dominação, no contexto de sua teoria, se distingue em dois tipos — o dominium e o imperium, sendo o primeiro aquele tipo de dominação exercida entre os cidadãos, e o segundo, aquele exercido pelo Estado em face dos mesmos. Não me preocuparei com a dominação deste segundo tipo, pois é caracterizadora de regimes autoritários que inequivocamente são contrários a qualquer tipo de ideal de democracia, que é o ponto de partida assumido neste texto. Fiquemos com o dominium. Ao tratar desta forma de dominação, a principal preocupação de Pettit é a possibilidade de que minorias sejam dominadas por maiorias e que o Estado proveja os meios institucionais para que os cidadãos e grupos ameaçados por essas maiorias possam ter algum tipo de reação e de veto à eventual dominação. Nesse sentido, a formulação institucional de Pettit assume a forma contestatória, e tal caracterização contribui para que ele afaste sua formulação de liberdade como não dominação da forma de liberdade positiva, na medida em que não se trata de defender que estes grupos tenham vozes permanentes — embora ele não seja contrário à permanência dessas vozes —, mas apenas não as prescreva de forma necessária para que se tenha a liberdade como não-dominação caracterizada, ou tenham de participar ativamente dos mecanismos institucionais. Trata-se, sim, de viabilizar mecanismos por meio dos quais esses grupos possam não se deixar dominar pelos demais. Tal formulação de Pettit é suiciente para garantir sua originalidade. De fato, a liberdade como não dominação não se reduz à liberdade negativa, pois não basta garantir apenas que o Estado não interira na vida privada, na medida em que maiorias podem dominar minorias; nem se confunde com a liberdade positiva, que demanda dos cidadãos uma participação constante, e muitas vezes custosa, na vida política. No entanto, se examinarmos o impacto de tal teoria para além do debate sobre o conceito de liberdade, veriica-se que a preocupação acerca da existência de mecanismos institucionais que inviabilizem a dominação da minoria pela maioria já estava presente nos Artigos Federalistas e faz com que a formulação de Pettit se insira em uma tradição republicana, que se não é a da liberdade positiva do neo-republicanismo ateniense (Silva, 2011, Skinner, 2008), parece também não ser a daquela inaugurada por Maquiavel, na qual 233 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu a preocupação central não está na eventual dominação de uma minoria pela maioria, mas sim na capacidade de uma maioria, o populus, em contraposição aos ottimati, de expressar os seus ímpetos antagônicos em relação a estes e não ser por eles representados. E, de um ponto de vista contemporâneo, sua teoria parece não diferenciar minorias — que devem ser também ser representadas e ter sua dominação evitada — de maiorias que enfrentam situações de dominação bastante duradoura e persistente ao longo da história, como é o caso das mulheres, de forma praticamente universal, e o dos negros e maiorias étnicas que sofrem discriminação em diversos países que tiveram a escravidão ou outras formas semelhantes de dominação em sua formação nacional. Esse distanciamento de Pettit — e com ele Skinner e Pocock — foi apontado de forma bastante contundente por John McCormick em vários de seus artigos e recentemente de uma forma consolidada em seu livro Machiavellian Democracy (2011). Para McCormick, Pettit, Skinner e Pocock, ao invés de resgatar uma tradição republicana maquiaveliana, resgatam, sim, uma tradição que, na verdade, era a do humanismo cívico adversário de Maquiavel, o defendido por Guicciardini. Apenas para ilustrar, McCormick chega a argumentar que o título do famoso livro de Pocock Machiavellian Moment, na verdade deveria ser denominado Guicciardinian Moment4. O debate de McCormick se dá em um contexto em que, para além do conceito de liberdade ou de república, está em disputa também uma correta interpretação do signiicado e do papel da obra de Maquiavel. Essa disputa não é exatamente o objeto deste artigo. O que mais interessa aqui, na formulação de McCormick, é quais formulações maquiavelianas são mais profícuas em sua apropriação para o atendimento das demandas das democracias contemporâneas. Neste sentido, McCormick parece ter razão em dizer que a formulação do conceito de liberdade como dominação e a decorrente democracia contestatória propostas por Pettit convivem muito bem com as formas elitistas que as democracias representativas contemporâneas assumiram. Em outras palavras, de acordo com McCormick, pode-se muito bem ter democracias contestatórias, com ausência de minorias dominadas, nos termos de Pettit, convivendo com estruturas elitistas de representação. Nos contextos democráticos atuais, é possível airmar que qualquer segmento populacional tem acesso a algum mecanismo de contestação. No entanto, também se pode dizer que o esforço que esses segmentos têm de fazer para acessar esses mecanismos é muito maior do que aquele feito pelas elites que já preenchem a maioria das instâncias de representação. Para ele, então, algumas soluções mais radicais devem ser tentadas e, se a democracia representativa liberal está em xeque, talvez o esforço teórico a ser feito seja o de retornar a uma formulação democrática anterior às origens da democracia liberal contemporânea. Daí a necessidade de se retornar a Maquiavel, tal como lido por ele. Passemos à sua leitura. McCormick e a democracia conlitiva maquiaveliana McCormick tem como ponto de partida a desigualdade econômica que marca as sociedades democráticas contemporâneas. Tal desigualdade é o terreno propício para o resgate das concepções de Maquiavel acerca dos conlitos entre povo e Senado. Preocupado com a responsividade das elites e com a garantia de que as desigualdades existentes entre as classes possibilitem que os privilégios das elites sejam voltados contra a classe popular, McCormick propõe um novo modelo de democracia, a “democracia maquiaveliana” (Machiavellian Democracy), em que há um conjunto de instituições nas quais as elites se veem com seu poder limitado e seu dever de responsividade bastante ampliado. Em tal leitura, a proposição é a de que haja uma pluralidade maior de instâncias deliberativas, representativas e participativas que possibilitem que os pobres tenham 234 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu tanta voz que as elites não tenham espaço para agir exclusivamente em nome delas. Nesse aspecto, McCormick é bastante ousado e todas as suas formulações partem da premissa de que há um conlito inescapável entre pobres e ricos, cuja expressão deve ser viabilizada e até mesmo estimulada pelas instituições5. Com isso, de fato, McCormick retorna às raízes conlitivas da teoria maquiaveliana e, a partir das insuiciências apresentadas pelas instituições democráticas contemporâneas, procura postular uma democracia — a machiavellian democracy — que tenha como ponto de partida o conlito. Tal conlito é caracterizado pela dominação exercida pelas elites sobre os pobres e pela necessidade de que este seja o principal signiicado de uma democracia que realmente inviabilize a dominação. Essa democracia é a única, segundo ele, que pode se colocar como alternativa às propostas elitistas de uma tradição republicana que passa por Cicero, Guicciardini e os Federalistas. Sua defesa é a do governo largo, em contraposição ao stretto. A maior responsividade (accountability) das elites perante os setores populares é possibilitada, na democracia proposta por McCormick, por uma série de instituições, de inspiração maquiaveliana, que controlam o furor — praticamente naturalizado, tanto por Maquiavel quanto por McCormick — das elites em dominarem e subjugarem os pobres. Esse controle do furor das elites, de forma indireta, acaba por contribuir para a prosperidade (grandeza) da própria comunidade política, pois os pobres, não dominados, e os ricos, controlados em sua fúria por dominar, irão contribuir mais para os benefícios da república assim constituída. Mas que instituições são essas a beneiciarem a república como um todo? McCormick está ciente de que não são quaisquer canalizações da fúria popular que podem empoderar os cidadãos, mas sim aquelas que possibilitem a manifestação dos pobres como corpo coletivo, e não como um conjunto de indivíduos reagindo raivosamente ao domínio dos ricos. Neste sentido, Brudney (1984) já havia caracterizado, antes de McCormick, o tipo de conlito valorizado por Maquiavel. Segundo Brudney, os conlitos defendidos por Maquiavel são coletivos, ainda que ele não os tenha qualiicado nesses termos. Além desta dicotomia individual/coletivo, o conlito maquiaveliano estaria fundamentado em outras dicotomias: privado/público; particular/comum; facção/coletividade. Em outras palavras, são legítimas para integrar o embate conlitivo da república maquiaveliana aquelas posições que têm uma vocação pública não privada, que têm potencial para se tornarem comuns e jamais se constituírem como privilégios particulares ampliados e, ainda, não podem ser fruto de movimentações facciosas, que tenham como intuito, inclusive, desestabilizar a república. Assim, o conlito de interesses maquiaveliano deve ser manifestado publicamente, ou seja, os segmentos que detêm os interesses opostos têm de ser identiicados e, a partir do embate que se dá politicamente, a solução institucional, que por sua vez também é pública, poderá ser encaminhada. Assim, interesses manifestados secretamente ou ardilosamente não estão aptos a se submeterem aos mecanismos institucionais de solução e são, portanto, possíveis fontes de corrupção da república. Os interesses em conlitos que constituirão a fonte da liberdade por meio das instituições devem ser transparentes e públicos. O conlito de que fala Maquiavel, apontado por Brudney e, ainda que não mencionado por McCormick, estaria de acordo com suas proposições, é de interesses parciais, sim, mas que se pretendem comuns, e não almejam privilégios ou benefícios que resultem no prevalecimento de um segmento sobre os demais. E, acima de tudo, o conlito de interesses de que fala Maquiavel é aquele que se dá a partir de interesses coletivos e comuns, passíveis de serem expressos por meio de mecanismos institucionais públicos 235 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu e transparentes e que, nesta medida, se torna elemento constitutivo da liberdade da república6. Mas, buscando atualizar essa caracterização maquiaveliana para as democracias contemporâneas, seriam esses interesses em conlito manifestados na mesma arena deliberativa, na mesma instituição representativa? A resposta de McCormick parece ser negativa. A existência de instituições exclusivamente populares aumenta a necessidade de haver processos de deliberação em seu interior, na medida em que essas instituições estariam menos sujeitas aos mecanismos de privilégios e assimetrias de recursos de persuasão, e, por conta dessas características, a possibilidade de vitória de opções mais razoáveis também aumenta. Neste aspecto deliberativo, o McCormick maquiaveliano insiste que as instituições deliberativas populares sejam separadas daquelas das elites, justamente para impedir o exercício do poder de manipulação destas (McCormick, 2011). Tais câmaras separadas podem se constituir, inclusive, com inspiração nos antigos tribunos da plebe romana, em microinstâncias legislativas em que podem ser decididas questões especíicas, e em que é possível que estejam presentes mecanismos de seleção como o sorteio. Nessas instituições, podem também estar afastadas as ideias de representação, em favor da participação propriamente dita, em que os interessados naquela questão possam estar presentes. Com isso, McCormick afasta-se completamente de qualquer visão de que deva haver, numa mesma arena política, o espaço plural para a troca de opiniões e um possível convencimento pelo melhor argumento. Ao que parece, sua posição não se deve a uma contrariedade em relação ao pluralismo, mas por acreditar que a cisão entre os pobres e as elites se estabelece de forma tão profunda que não há motivos para que se tenha a expectativa de que ambos os segmentos — principalmente as elites — estarão disponíveis a serem convencidos pelos seus oponentes. De acordo com o autor, além de câmaras de deliberação separadas, é necessário prever mecanismos de punição de magistrados provenientes da elite pelos populares, mecanismos de veto de decisões das elites que não atendam os interesses públicos (McCormick, 2011) e os mecanismos das denúncias contra qualquer tipo de corrupção. Como se vê, trata-se de uma pluralidade de instituições, que prevê um equilíbrio de poder para além da separação clássica de poderes consagrada nas democracias contemporâneas, que se consubstanciaram em governos mistos inluenciados pela proposição vitoriosa, do ponto de vista histórico, da separação de poderes de Montesquieu e suas variações posteriores. O equilíbrio de poder da democracia maquiaveliana de McCormick se dá na capacidade dos pobres de frear o ímpeto dominador das elites e inviabilizar a sua dominação. Nesse pluralismo de instituições, o foco principal de McCormick se dá em relação às instituições representativas e à sua crítica. Neste sentido, para a aceitação de sua proposta, temos de relativizar a pressuposição presente nas instituições que preponderam nas democracias da soberania una, — que, apesar de conviver com a separação de poderes, pressupõe uma certa forma de unidade do corpo representativo (unicameral ou bicameral) —, para pensarmos em mecanismos plurais de representação, em que o conceito de “povo” não é uno, mas é cindido entre ricos e pobres. Embora a formulação de McCormick tenha o mérito de recolocar o conlito maquiaveliano no centro do debate e de colocar em questão a capacidade que as instituições democráticas contemporâneas têm para lidar com ele, suas formulações não enfrentam os mecanismos da dominação que muitas vezes impedem que, nas arenas públicas, os dominados defendam suas posições de dominados e exerçam de fato a posição de veto sobre os dominadores. Aliás, o próprio McCormick admite que, nas assembleias 236 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu deliberativas de instâncias diversas, as opiniões de homens americanos brancos acabam prevalecendo sobre a de mulheres e/ou negros e/ou migrantes. Ou seja, há dominação no interior das classes populares. A simples diferenciação entre instituições de representação das elites e dos setores populares pode não ser suiciente para que se elimine a dominação, ao menos aquela reletida nas instâncias representativas. Em outras palavras: dar espaço para que o povo e a elite se expressem publicamente em instituições é suiciente para que a dominação de uns sobre os outros seja afastada ou, ao menos, diminuída de forma signiicativa? Para responder a essa pergunta, sem, no entanto, cair em uma posição de descrédito da importância das instituições e do seu poder de interferir no comportamento dos atores políticos, tem-se de adentrar um pouco mais no conceito de dominação e nas formas com que ela é aceita e assegurada, inclusive pelas instituições. Neste sentido, tem-se que procurar dar um pouco de densidade sociológica à ideia de dominação inicialmente colocada por Pettit. Dando densidade sociológica à liberdade como não dominação: a desigualdade categórica de Charles Tilly Assumidas as críticas de McCormick a Pettit, retornemos ao conceito de liberdade como não dominação. Pode-se dizer que, não havendo grupos dominados, há uma expectativa razoável de que uma determinada comunidade política seja livre e também de que seus indivíduos tenham a liberdade em seu horizonte. Aliás, eis aqui mais um atributo positivo desse conceito, pois a liberdade como não dominação caracteriza não somente grupos privados ou indivíduos, mas a própria comunidade política como um todo. Entretanto, basta garantir a não dominação das minorias ou promover medidas que diminuam a posição de grupos dominados? Essa pergunta faz sentido no contexto da obra de Pettit principalmente em relação a manifestações suas em contextos de intervenção, em que apontou medidas muito pontuais como evidências da promoção de uma democracia republicana. Além disso, talvez buscando fugir da identiicação da liberdade como não dominação com a liberdade positiva, Pettit centrou o signiicado da expressão contestatória com a ideia de reivindicação, que se assemelha em muito à reivindicação por direitos, ou à desconstituição de uma situação desfavorável (Pettit, 2011 e Silva, 2011). Nesse signiicado, como já apontado anteriormente, a democracia contestatória está associada à possibilidade de os indivíduos ou conjunto de indivíduos que se consideram dominados consigam reverter sua situação de dominação, mas não como ponto de legitimação da atuação do Estado para a intervenção em situações de dominação constatadas de forma reiterada. No entanto, a dominação bem-sucedida tem como um de seus efeitos justamente fazer com que o dominado se comporte de forma a conirmar e repetir os mecanismos que a promovem asseguram. Isso é bastante sugerido na literatura sobre a desigualdade de gênero e a dominação masculina7 (Bourdieu, 19998, Pateman, 1992, Elshtain, 1993). E essa sugestão não se encontra em desacordo com a formulação mais geral feita por Weber acerca da caracterização da dominação tal qual um “como se”9, em que o dominado se comporta como se ele houvesse adotado as regras e os mandos do dominador por si mesmo. Isso retira da dominação a necessidade de que ela seja expressa e explícita. Embora não tenha utilizado o conceito de dominação, nem mesmo esse termo, em suas formulações sobre a desigualdade, Charles Tilly oferece alguns elementos para a relexão sobre o conceito. Tilly (1998), ao procurar descrever os mecanismos de formação das desigualdades duradouras (durable inequality), acabou possibilitando a identiicação 237 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu dos mecanismos de formação do efeito mais pernicioso da dominação — a desigualdade categórica (categorial inequality). Não que a dominação por si só não seja um problema, mas a desigualdade duradoura — categórica — é o principal efeito e ao mesmo tempo o mais intolerável sintoma de que haja dominação. Desigualdades duradouras entre homens e mulheres, negros e brancos, migrantes e não migrantes, pobres e ricos no campo dos rendimentos, da representação política, do acesso a espaços públicos mais qualiicados, entre outros indicadores, são os indícios de que haja algum tipo de desigualdade categórica entre esses grupos e de que haja relações de dominação entre esses pares. A desigualdade categórica (categorial inequality) é deinida por Tilly a partir daquelas situações historicamente reproduzidas e que envolvem distribuição desigual de benefícios por pares de grupos separados por uma fronteira que estrutura a desigualdade. Apesar de seus efeitos indesejáveis, ela se instala porque alguns de seus efeitos são considerados positivos para a estrutura social: ela pode simpliicar a vida social e facilitar a produção de bens coletivos, na medida em que torna os comportamentos dos agentes sociais mais previsíveis (Tilly, 1998: 84). Por exemplo, na vida corporativa de uma empresa, a rotina se torna muito mais fácil de alcançar se os trabalhadores adequarem-se às expectativas relativas à sua função, etnia e sexo, e a formação das expectativas se dá desde a entrada de cada trabalhador na empresa até todas as etapas de evolução na carreira. Para produzir esse efeito positivo e estruturar-se, a desigualdade categórica se caracteriza por quatro elementos: (i) a exploração (exploitation); (ii) a apropriação de recursos (opportunity hoarding); (iii) a emulação (emulation); (iv) a adaptação (adaptation). A exploração e a apropriação de recursos são os mecanismos mais primitivos da dominação e dizem respeito a aspectos sociais e econômicos que são muitas vezes de inequívoca observação e facilmente denunciáveis. São mecanismos que possibilitam que a desigualdade se instaure. Mas a emulação e a adaptação são mecanismos mais difusos que viabilizam justamente a manutenção e a durabilidade da desigualdade. A emulação consiste no processo de imitação que aqueles que se encontram em uma posição de explorados, de desvantagem, se submetem, para que sejam incluídos no mundo do outro explorador e o agradem. São mecanismos desenvolvidos para que o explorado, o expropriado, o dominado seja “aceito” por aquele conjunto de sujeitos que está do outro lado da fronteira da desigualdade. A adaptação também está relacionada com a aceitação do outro, mas também com a própria autoaceitação em relação à posição assumida na desigualdade. O que Tilly pretende dizer, com todos esses elementos de descrição do processo de constituição da desigualdade duradoura é que, sem a “contribuição” dos dominados, diicilmente ela perduraria. Tal contribuição acontece porque, do ponto de vista deles, sua situação social seria ainda pior se não emulasse o comportamento do dominador nem se adaptasse a tal situação10. Neste sentido, há um componente estratégico na atitude do dominado que pode fazer com que muitos relativizem a dominação ou coloquem sobre os dominados a responsabilidade exclusiva sobre a sua própria situação. Ora, se as desigualdades mais duradouras e, portanto, aquelas que são mais “preocupantes” do ponto de vista da estrutura social, acontecem com a própria “contribuição” e “anuência” dos que ocupam a situação mais desfavorável, como pensar que instituir mecanismos de canalização e expressão das insatisfações, interesses e até mesmo do “veto” dos dominados podem ser eicazes para a efetiva redução da dominação e de seus efeitos? Portanto, reivindicar e contestar, nesses casos, parecem ser ações que apresentam um custo muito alto — não somente aquele próprio da constituição trabalhosa da ação coletiva, que desde Olson admitimos, mas um custo do ponto de vista do seu próprio resultado —, o que indica que, nesse caso, uma democracia sustentada apenas em instituições contestatórias seria insuiciente para o desmonte de estruturas eicientes de dominação. 238 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu Neste aspecto, a formulação de McCormick, embora bastante útil no apontamento dos limites da apropriação da teoria de Pettit e de sua apropriação moderada de Maquiavel, parece também insuiciente. Talvez ela seja adequada para os conlitos mais estritos entre ricos e pobres (o que não é pouco), mas desigualdades e dominações existentes entre outros tipos de grupos podem não ser alcançadas por suas formulações. Isso é reforçado porque McCormick centra seu ímpeto teórico na crítica e na busca de construir uma estrutura de democracia representativa diferente daquela que temos atualmente. Mas, como se pode imaginar, a demanda por representação e a capacidade de formação de corpos representativos com força de barganha e poder de veto já depende de algum tipo de visibilidade, reconhecimento e disposição para o enfrentamento do conlito existente na sociedade que muitas vezes não estão presentes. Todos estes aspectos nos levam a considerar que tipo de solução institucional é necessária para o desmonte das desigualdades categóricas. Neste sentido, Tilly continua fecundo ao formular, em seu livro posterior, Democracy (2007), ao falar em processos de democratização, mais do que em democracias constituídas instituídas com forma estanque: é mais provável que a democratização ocorra quando o processo político reduz a tradução de desigualdades categóricas cotidianas a políticas públicas. Nesse livro, Tilly avança para um conceito relacional de desigualdade, deinindo-a como “a relação entre pessoas ou grupos de pessoas em que a interação gera mais vantagens para umas do que para outras” (Tilly, 2007: 111). Para reverter a lógica da produção de desigualdades, o autor introduz a noção de capacidade estatal, em que ele sugere como critério para avaliação do quão democrático é um Estado a medida da capacidade que esse mesmo Estado tem de promover as ações necessárias para a garantia de uma série de direitos e também de inviabilizar as desigualdades categóricas. O Estado, muitas vezes, pode contribuir para a manutenção dessas desigualdades, na medida em que, por exemplo, dá guarida às leis de transmissão de propriedade por herança que reairmam as desigualdades entre brancos e negros. Mas ele pode reverter esse processo ao inserir novas regras de acesso a benefícios, como vagas em escolas públicas, por exemplo. Aqui, o foco não se dá sobre as instâncias representativas, mas sim na capacidade do Estado (incluindo todos os seus poderes e ramiicações) de lidar com as desigualdades categóricas, enfrentando-as. E como se daria esse enfrentamento? Com os sistemas internacionais de dados oiciais e o crescente aprofundamento do conhecimento da distribuição, entre a população de um Estado, dos diversos bens — sejam eles econômicos, sociais ou políticos — é possível, a partir de dadas situações, estabelecer limites em relação aos quais a intervenção estatal se torne necessária e reivindicável por sujeitos, inclusive os não diretamente envolvidos na referida desigualdade. Esse referencial seria uma espécie de limite conlitivo que, para uma dada sociedade, que pode ser qualiicada de republicana, o Estado seria obrigado a tomar um conjunto de medidas legitimadas socialmente que tivessem como objetivo corrigir essas desigualdades e tornar o conlito expresso. Conlito e desigualdade: a democracia republicana A valorização do conlito como categoria política relevante — não necessariamente aquela que demarca o terreno do político, como pretendia Schmitt — é conveniente no sentido de indicar que, no campo da deliberação pública e da discussão dos diversos temas e questões que cada vez mais as instituições público/estatais têm de enfrentar, há divergências e há diversidades de interesses, situações e posições que são mais relevantes, ou que, no mínimo, 239 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu requerem um tratamento diferente do que apenas o “ouvir a diversidade de interesses e opiniões da sociedade”, requerida pela concepção pluralista de democracia. McCormick é muito bem sucedido ao demarcar que as instituições democráticas representativas contemporâneas são insuicientes para lidar com uma das cisões que estruturam a sociedade que é a desigualdade entre ricos e pobres. Mas nem todas as desigualdades estruturantes coincidem com esta mobilizada por McCormick. Mesmo no interior de grupos homogêneos de classe econômica, há diferenças de sexo, de etnia e de cidadania (migrante/ não migrante) que podem demarcar estruturas conlitivas e de dominação. Por outro lado, pode ser que nem todas as situações conlitivas envolvam situações de desigualdade estrutural, tal como descritas por Tilly. Mas podemos dizer que os grupos demarcados pela fronteira da desigualdade categórica descrita por ele se encontram em conlito, embora muitas vezes não o expressem11 e que tal conlito não possam ser resolvido apenas com a abertura de instituições para que os diferentes grupos possam se expressar. Pode ser dito ainda que o conlito de grupos que reclamam por se expressar é aquele que de uma certa forma já conseguiu “furar” as barreiras dos processos de dominação. Aliás, falar em grupos nos termos de sujeitos reivindicatórios provavelmente seja impróprio. O “grupos” que emergem das desigualdades categóricas não são grupos ligados por um interesse comum consciente e identiicado ou um desejo de associação para a proteção desses interesses. Neste sentido, nem mesmo são certamente potenciais candidatos a uma ação coletiva voltada para essa proteção. Não há mecanismo identitário que necessariamente os delimite. O que os caracteriza é uma situação desfavorável identiicada por dados e resultados externos de interrelações sociais — por exemplo, diferenças persistentes de remuneração no mercado de trabalho, existência de violência especíica voltada para esses grupos desfavorecidos, entre outros. Mecanismos de combate a preconceitos e de reestruturação das próprias instituições em que esses grupos podem participar são necessários para que a reversão da desigualdade estrutural seja possível. Talvez nem toda desigualdade categórica seja facilmente identiicável. Mas muitas delas o são apenas pelo acompanhamento dos dados estatísticos produzidos pelos próprios Estados. Essas situações de desigualdade podem constituir uma espécie de “sinal vermelho” para que cada Estado, por meio de sua capacidade estatal possa intervir nas suas próprias instituições e nas demais. No caso da desigualdade de gênero, a reivindicação de que a categoria gênero seja vista como uma dimensão “estrutural” da sociedade não é nova, e é demandada tanto do ponto de vista teórico (Risman, 2004), como do político propriamente dito, na série de ações extraídas, por exemplo dos documentos oiciais da I Conferência Nacional dos Direitos da Mulher, realizada em 2004, no Brasil (SPM, 2004: 103). Essas desigualdades podem ser, portanto, uma espécie de indicador de que conlito e dominação se encontraram e de que algo de extremamente urgente e estrutural deve ser feito pelo Estado. Com um Estado que mobilize sua capacidade para enfrentar as desigualdades categóricas entre grupos e, assim, intervir na estrutura de dominação entre esses mesmos grupos que fazem parte desses pares, acredita-se estar no esboço de uma democracia em que não somente os direitos e alguma mínima condição social são garantidos, mas onde os seus cidadãos podem esperar que sejam livres, sem que isso signiique apenas a condição de sujeito potencial de reivindicação de direitos. Tal Estado é aquele capaz de identiicar, a partir de sua capacidade institucional, os mecanismos de estruturação de desigualdades e intervir neles. É uma democracia que estabelece com o corpo político uma relação para além do Estado/cidadão, ou do Estado que lida com interesses expressos em conlito. 240 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu Pode-se dizer, sim, que entre os grupos separados pela fronteira da desigualdade estrutural, ou categórica, nos termos de Tilly, haja interesses opostos e duramente conlitivos, mas requerer que eles se expressem para que sejam válidos talvez seja não atentar para todos os mecanismos que levaram à sua constituição. Uma democracia que assuma a desigualdade categórica como um problema seu e não dos grupos, nem somente dos indivíduos, é uma democracia que terá de ser capaz de lidar ao menos com essas situações conlitivas e redistribuir recursos escassos. É também uma democracia que abre espaço para uma proteção adicional àquela jurídica individual já consagrada pelas democracias liberais, a partir do exercício da capacidade estatal de identiicar situações de dominação e combatê-las. Essa pode ser uma democracia republicana. (Recebido para publicação em agosto de 2012) (Reapresentado em março de 2013) (Aprovado em maio de 2013) Cite este artigo ABREU, Maria Aparecida. O retorno do conlito: a democracia republicana. Revista Estudos Políticos: a publicação eletrônica semestral do Laboratório de Estudos Hum(e)anos (UFF) e do Núcleo de Estudos em Teoria Política (UFRJ). Rio de Janeiro, nº 6, pp. 229-244, Julho 2013. Disponível em: http://revistaestudospoliticos.com/. Notas 1. Este texto foi apresentado em uma versão preliminar no II Colóquio Internacional Teoria, Discurso e Ação Política/IV Simpósio de Teoria Política do IFCS. Agradeço aos comentários dos participantes desse evento, especialmente de Ricardo Silva e Luis Felipe Miguel. Agradeço, ainda, aos pareceristas anônimos da Revista Estudos Políticos, que certamente colaboraram para o aprimoramento do texto. 2. De acordo com ele, “Mouffe não escapa de uma conciliação com o ideal do consenso — por meio de sua diferenciação entre o inimigo e o adversário, entre o “antagonismo” que deve ser contido e o “agonismo” que deve ser estimulado — é uma demonstração cabal da força desta démarche no pensamento político atual”. 3. Poderia citar aqui, como exemplo, uma situação em que estão em disputa concepções de modelos de previdência a serem adotados por um Estado: uma delas defende que cada um deve ter o direito à aposentadoria conforme a sua contribuição ao longo da vida, outra defende que o Estado deve propiciar um valor equivalente ao necessário para que a pessoa viva, independentemente da contribuição. Neste caso, estão em conlito concepções de Estado que não necessariamente decorrem da dominação de um grupo pelo outro. 4. Tal argumento, aliás, já havia sido objeto especíico de artigo anterior seu (McCormick, 2003). 241 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu 5. Para uma discussão especíica sobre a apropriação de Maquiavel para o enfrentamento de um conlito de classes, ver Brudney (1984), como será exposto mais adiante. 6. Retomo aqui de forma muito resumida argumentos que foram expostos em texto apresentado no I Colóquio Teoria, Discurso e Ação Política, e posteriormente publicado em artigo de livro (Abreu, 2012). 7. No caso das relações de gênero, o próprio contrato sexual que dá origem à organização familiar doméstica contribuiria para a estrutura da dominação consentida (Elshtain, 1993). 8. Nesse aspecto, embora não seja objeto deste texto a dominação simbólica, é bastante contundente a seguinte passagem de Bourdieu: “Os atos de conhecimento e de reconhecimento práticos da fronteira mágica entre os dominantes e os dominados, que a magia do poder simbólico desencadeia, e pelos quais os dominados contribuem, muitas vezes à sua revelia, ou até contra sua vontade, para sua própria dominação, aceitando tacitamente os limites impostos, assumem muitas vezes a forma de emoções corporais — vergonha, humilhação, timidez, ansiedade, culpa — ou de paixões e de sentimentos — amor, admiração, respeito -; emoções que se mostram ainda mais dolorosas, por vezes, por se traírem em manifestações visíveis, como o enrubescer, o gaguejar, o desajeitamento, o tremor, a cólera ou a raiva onipotente, e outras tantas maneiras de se submeter, mesmo de má vontade ou até contra a vontade, ao juízo dominante, ou outras tantas maneiras de vivenciar, não raro com conlito interno e clivagem do ego, a cumplicidade subterrânea que um corpo que subtrai às diretivas da consciência e da vontade estabelece com as censuras inerentes às estruturas sociais. (Bourdieu, 1999: 51) 9. “Si se quiere tomar por base el concepto de dominación aquí indicado, es inevitable formular la anterior deinición com la reserva de um “como si”. Por una parte, no son suicientes para nuestros ines los meros resultados externos, el cumplimiento efectivo del mandato, pues no es indiferente para nosotros el sentido de su aceptación en cuanto norma “válida”. Por otra parte, el enlace causal que liga el mandato a su cumplimiento puede adoptar formas muy diferentes. Desde el punto de vista puramente psicológico, um mandato puede ejercer su acción mediante “compenetración” — endopatía —, mediante “inspiración”, por “persuasión” racional o por combinación de algunas de estas tres formas capitales. Desde el punto de vista de su motivación concreta, un mandato puede ser cumplido por convencimiento de su rectitud, por sentimiento del deber, por temor, por “mera costumbre” o por conveniencia, sin que tal diferencia tenga necesariamente un signiicado sociológico. Mas, por outro lado, el caráter sociológico de la dominación ofrece diferentes aspectos de acuerdos com las divregencias existentes en los fundamentos generales de su validez” (Weber, 1996: 699). 10. Essa descrição feita por Tilly é bastante compatível com aquela feita por Bourdieu da dominação simbólica, como citado anteriormente, e também da caracterização sociológica feita por Weber, também citada acima. 242 REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS N.6 | 2013/01 ISSN 2177-2851 O RETORNO DO CONFLITO: A DEMOCRACIA REPUBLICANA Maria Aparecida Abreu 11. Há um artigo interessante (Cramer, 2003) que justamente procura discutir, a partir de critérios próprios da análise econômica, a relação entre desigualdade e conlito. Ali, ica claro que muitas situações de desigualdade podem não gerar conlitos expressos sócio-politicamente. No entanto, sabemos que há algo de “errado” nessas relações, se o que se almeja é alguma distribuição igual de bens. Bibliograia ABREU, Maria Aparecida. 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