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LIVRA-TE DAS POSSES QUE TE TORNAM UM COVARDE. DEPOIS, QUALQUER CAMINHO SERVE Dino Beghetto Dino Beghetto é aquele a quem as pessoas chamam assim. Também é faraó e, por isso, ninguém o déte. 119 Olar. (Eu pensei em começar este texto dizendo “Antes de qualquer coisa”, mas isso é impossível: aqui está, sejam bem-vindos ao ALGUMA-COISA. É isso que este texto é: alguma coisa. Este texto possui “!MOMENCTOTs”, que são passagens destacadas quando julgo ser necessário e que serão enumeradas, aliás, que não serão enumeradas. Enfim, desde aqui peço (como se fosse preciso) que o leitor tenha em mente que este texto é não-linear e feito de ruínas. Também, peço (como se tivesse o direito) que o leitor o leia da forma que lhe convir. Sendo assim, abstenho-me de ter qualquer senso de autoria, propriedade, mérito, repulsa, desagrado, agrado, culpa ou seja lá o que possa sentir que tem alguém que acredita que a pessoa é a coisa mais maior de grande. Qualquer juízo de valor sobre este texto é exclusivo ao texto: isso tudo é absolutamente independente da minha vontade.) Existe um problema quando eu começo a escrever/dizer algo. !MOMENCTOT: “O ser pré-reflexivo, quando diz, tangencia palavras ao sentimento!” (Vou, aqui, tratar os verbos “dizer” e “escrever” como sinônimos.) Dizer (qualquer coisa) é não-ser. É descrever. É como o dedo que aponta para a lua: não é a lua. Alberto Caeiro dizia que “ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação”. Ser uma coisa é não significar nada, é simplesmente ser. Caetano Veloso, uma vez, ao ser perguntado “Quem é Caetano Veloso?”, respondeu “Sou eu”. E o que mais há pra se dizer? TERIA QUE ter dito algo além? TERIA QUE ter dito algo? TERIA QUE ter dito? TERIA QUE ter? TERIA QUE? Poderia, ele, ter? Como Belchior disse, “a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter: é nunca fazer nada que o mestre mandar. Sempre desobedecer, nunca reverenciar!”. Lao Tsé já dizia que “o Tao que pode ser dito não é o Tao verdadeiro”. Penso que, por mais que ele pudesse estar apontando para algo “além” (o Tao) enquanto eu, aqui, estou somente falando do ato de dizer (qualquer coisa), estamos caminhando sobre o mesmo caminho, em pontos diferentes da estrada. Se bem que talvez não estejamos tão distantes assim. O Tao é o menos “além” possível, e nem é nada disso que estou dizendo. Novamente, o mestre (o qual provavelmente vou matar ao longo deste texto, desta vida, para a nossa alegria) Alberto Caeiro dizia que não queria incluir o tempo em seu esquema. Queria “só a realidade, as coisas sem presente”, por isso nem sequer se chamava de poeta. Eu o entendo. Livra-te das posses que te tornam um covarde. Depois, qualquer caminho serve 120 Thoreau disse: “É verdade que nunca houve e é provável que nunca venha a existir uma nação de filósofos, nem tampouco estou convicto de que tal existência seja desejável. Entretanto, eu jamais amansaria ou alimentaria um cavalo ou um touro por conta de qualquer serviço que viesse a me prestar, simplesmente por medo de me tornar cavaleiro ou vaqueiro.” O medo de se tornar algo que não é o SIMPLESSER. De se perder. De se prender. De se definir, ser estático. De não mudar. Faço como Duchamp: “I have forced myself to contradict myself in order to avoid conforming to my own taste”. Conformar-me com meu próprio gosto é fingir que não sou mudança. Uma vez, durante um curso que fiz com Livio Tragtenberg, ouvi dele algo bem interessante. Ele disse que era uma pessoa muito tradicional, pois seguia a maior e mais antiga tradição que ele conhecia: a mudança. Eu não sou músico, não sou matemático, não sou astrônomo, não sou físico. Nem “ser” eu sou – esse verbo me dá a ideia de continuidade sem mudança, algo estático: se algo “é”, ele parece “ser eternamente”. Eu “deviro”, sou mudança em cada instante. Então como posso EU dizer algo? Não sei. Mas digo. E digo como se dizer me fosse algo natural, fosse algo que me acontecesse, simplesmente. Como o ser pré-reflexivo, vou tangenciando palavras às coisas reais. Penso e escrevo como o ato das ondas do mar batendo na areia tem som, porém sem a perfeição natural do ato. E o motivo é que me falta a simplicidade deste: a simplicidade de ser todo e somente o meu exterior. (AH! Sempre que começo a pensar percebo que TUDO já foi dito! Aliás, eu queria dizer que NADA foi dito!) As coisas “são sem presente”, e por isso não existe palavra que as represente. PALAVRAS SÃO SÓ CÁPSULAS DE COISAS. Elas dependem do tempo que mede a realidade da qual estamos dizendo. A realidade é sem tempo. A realidade, a verdade, é mutável, e por isso não pode ser presa em um momento: a verdade, como tudo, “é sem presente”. Como possuir a realidade? Como possuir a verdade? Sei lá, nem quero! É no não-possuir que se encontra a chave de toda a maravilha. (Percebo, às vezes, que tudo que QUERO dizer já foi dito. Eu não tenho NADA pra dizer, e por isso digo: porque PRECISO, e não porque QUERO. Tudo isso é independente da minha VONTADE, tudo isso é uma NECESSIDADE. Citando Deleuze, “um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo do que tem absoluta necessidade”.) (E eu que achava que não citaria ninguém aqui… Como é difícil! E como é curioso e interessante isso ser difícil! Gosto disso, mesmo se eu não gostasse. “Toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas” e, como “a voz que ecoa não é mais daquele que grita”, vou utilizando palavras de origem externa a mim quando sinto ser necessário. Luiz Gonzaga Júnior me ajudou dessa vez.) !MOMENCTOT: “A voz que ecoa não é mais daquele que grita, e a citação fica a cargo de quem tem a voz. É assim porque a voz sai de dentro queimando e tem como isqueiro as ruínas da captura. O material que pode ser dito, cantado, exposto, não é o tao do ‘material verdadeiro’, no sentido de ‘original’. Se a verdade existe, ela se refaz audaciosamente e naturezamente, de tal modo que ninguém pode expô-la de forma estática, pois tal forma não existe. A verdade, se ela existe, é a mudança, é a diferença, é o desconforto. Esse DESCONFORTO é a fonte da criação, e TEM QUE ter uma grande festa dionisíaca por este triunfo da mente humana! A destruição é forma de criação! A restrição é forma de criação! A mutação é forma de criação! A voz que ecoa não é mais daquele que grita. E QUEM POSSUI a palavra, o som? Alguém? Ninguém? Quando falo do som, naturalmente chego na música e no criar artístico. E o artista/criador pode ser facilmente confundido com a própria arte/ criação. Quem possui quem? Jung disse que “não é Goethe quem faz Fausto, mas sim a componente anímica Fausto é quem faz Goethe”. Assim, o artista se livra da posse de forma natural. E se há algum sofrimento nesse processo, é vaidade do criador, que não percebe que a arte segue seu rumo separado dele. Freud explica: isso seria uma neurose. A arte não faz parte dele, não é dele. A criação não é ele. MAS, ele é feito da criação. O criador se cria eternamente! Ainda com Jung, “uma arte que fosse única e essencialmente pessoal mereceria ser tratada como uma neurose. Quando a escola freudiana pretende que todo artista possua uma personalidade restrita, infantil e autoerótica, tal julgamento poderá ser válido para o artista enquanto pessoa, mas não para o criador que há nele”. O criador passa a não ser, aqui, um humano, mas sim parte criada pela própria criação: ele é a sua obra, e Freud não pode analisar a psicologia de algo assim – uma criação artística. !MOMENCTOT: Se isso tudo importa ou não, eu não me importo. Isso tudo o quê? Não me importa. Não tenho que me importar. Não TENHO QUE nada. É tudo um movimento qualquer.” “Algo me veio assim, de repente. Me veio que alguns poetas (ou todos?) parecem sempre, à primeira vista, saber das coisas… Mas os poetas fazem poesias, e pronto! Dino Beghetto 121 Livra-te das posses que te tornam um covarde. Depois, qualquer caminho serve 122 Alguém vê as poesias andando, correndo por aí? Alguém vê uma poesia sendo feliz? Ou uma poesia sendo triste? Ou uma poesia em paz… Eu não conheço ninguém que tenha visto uma poesia sequer falar!!! É porque as poesias poetizam, pois são nada mais do que poesias. E é por isso que são belas: são sempre elas mesmas…” Não há mais o que falar (por isso mesmo), Mas sempre se falará mais.” Sem psicologia, sem filosofia, só os sentidos. Sem significado, sem interpretação, só a realidade. MAS SEMPRE DIREMOS MAIS. Além das coisas que são. E sempre diremos mais. !MOMENCTOT: De novo Jung, “a obra de arte, aparentemente passível de ser analisada como uma neurose, e à base dos recalques pessoais do poeta, de fato se insere na vizinhança problemática da neurose; mas nem por isso fica em má companhia, uma vez que Freud coloca a religião, a filosofia etc., na mesma situação.”. Mas, como foi dito, o âmago de uma criação artística não possui o peso de particularidades pessoais. !MOMENCTOT: “Lembra que toda imagem é reflexo de luz incidida sobre o corpo e, portanto, dinamismo no seu mais alto grau de rapidez: movimentos na velocidade da luz! A simetria só é estática quando estamos de olhos fechados: ao abrir os olhos, toda luz é lançada tão rapidamente que desfaz qualquer simetria, por maior que seja sua precisão de medida. E, depois, por fim (fim?), quando desperto, a simetria se mostra aos olhos em seu mais forte dinamismo! “Antes de orar, esvazie-se. Esvazie sua mente, esvazie você de você mesmo. Morra pra você, ter fé é isso! É esvaziar-se de si mesmo. Durante a oração, mantenha-se vazio de você. E depois da oração, saberá o que fazer. (E isso é mais profundo do que parece, e sempre será assim) No começo, movimento é movimento e calmaria é calmaria. Durante, movimento é calmaria e calmaria é movimento. Depois, movimento volta a ser movimento e calmaria volta a ser calmaria, e tudo é o que é. Gente é gente, gato é gato. Montanhas e rios, rios e montanhas. E eu gosto quando tudo é o que é, e gostaria menos se assim não fosse. Não quero que um som seja um balde, ou o presidente do país! Gosto do som sendo som, seja ele o que e como for, e é por isso que gosto! Gaiola que não prende! E como em todo ciclo, e por continuidade, nunca sei ao certo em que momento estou. Mas pensar nisso dá dor de cabeça, já resolvi. Sua vida na cadeia do pensamento, que de um momento pro outro começa a doer. Tenho pena de saber disso, incomoda como andar à chuva, e resolvi: vou assim mesmo, a girar, dionisiacamente, sem me preocupar se parece que chove mais, se o vento cresce. Que maravilha! Inocência da boa, que nos afasta docemente de rancores e violências! Contente e alegre, simplessendo inocentemente como desde que nasci. Aí nem pensar nisso se quer, mas se quer simplesser! E por fim nem sei porque escrevo, porque o escrito nem é o tal do verdadeiro. Mas é assim: só escrevo. O que pode o Sentimento (ou seja lá qual palavra queira dar pra isso), não o pode o Saber… Nem o mais claro proceder, nem o maior dos pensamentos… Pois tudo muda num momento! E não é disso que estamos falando? E eu até poderia dizer que nem agradeço pra parecer que não penso nisso, mas aí já seria caeirar demais! É como o musgo na pedra, a hera na parede, crescendo, brotando, independente da minha vontade, lindo por simplesser o que é. Sim, sim, sim…” E o que é arte, por fim? O que é o CRIAR artístico? A arte é a maior tentativa de se tentar fazer entender quando se trata de algo não entendível… Não tem o que en- tender: tem o que sentir! E por que a gente faz arte? Porque a gente é arteiro! Porque é bonita a tentativa: o inatingível não é pra se atingir mesmo, é pra dar a intenção… Sentir vai além de qualquer explicação por meio de palavras. Só se entende o sentimento sentindo. E talvez esse paradoxo de se fazer entender algo não entendível não seja um paradoxo. Não é. Que paradoxo, que sinto e entendo. Vivo, portanto, provo. Eduardo Galeano (ou Fernando Birri?) disse: “Ella está en el horizonte. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se aleja diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar”. Para criar o caminho, para isso serve a arte. É lindo como a ausência de propósito prático me encanta! Como me encanta a própria arte ser vazia dela mesma, pois só assim, sem particularidades pessoais, vazia dela mesma, a arte pode ser arte e o artista pode criar e se criar. Vou dizer aqui, em poucas palavras, o que é o processo criativo a meu ver. Vou criando, às vezes acertando com o que imaginava fazer, às vezes errando, mas sempre continuando, sem QUERER nada. O imaginar é falso, só serve para caminhar. E, como não possuo desejos, não erro nem acerto: só crio, sem racionalidade, sem EU, Dino, mas num eterno processo de me esvaziar de mim, de ser naturalmente um criador e não um ser criado, de ser como uma cobra que morde o próprio rabo, procurando não pensar enquanto crio, nem Dino Beghetto 123 Livra-te das posses que te tornam um covarde. Depois, qualquer caminho serve 124 criar enquanto penso, e só sentindo enquanto sinto. Isso, como pode parecer, não é um processo fácil. É preciso me libertar de toda subjetividade, num enorme esforço necessário de esquecer de tudo o que me é ensinado para me tornar o ser pré-reflexivo, e, então, criar e SÓ criar, pura e verdadeiramente. Quando digo “criação pura e verdadeira”, quero dizer a criação que não é atravessada pelo pensamento racional. Como Stockhausen, “ES”. É isso: “Think NOTHING Wait until it is absolutely still within you When you have attained this begin to play As soon as you start to think, stop and try to retain the state of NON-THINKING Then continue playing” A inocência primitiva está na não-consciência. NADA pode ser dito, e eu estou dizendo isso. E isso é arte como eu preciso. Vou me focar na música, que é onde consigo/preciso dizer algo. !MOMENCTOT: “A música é vazia de música! E ela é criada simplesmente porque precisa ser! Se você cria uma música pensando na música como algo intrínseco, então não absorveu a essência de uma criação, a meu ver. O artista é um inconformado com a finitude, com a finalização de algo. Não fica restrito a observar a beleza do objeto, mas vai além disso, extraindo suas novas possibilidades. E sempre pensa, olhando bem no fundo da sua escavação: MAS TEM QUE HAVER MAIS! Nada tem fim, nem a música! E não tem fim, nem é perpétua na sua forma aparente! Sendo assim, é interdependente de tudo o mais, ou seja, não tem realidade absoluta intrínseca! E é por isso que sempre existe algo a mais! É como se a música não fosse o fim por si própria ao ser criada. Se ela não é o fim, então não está finalizada. Claro, pois não é possível finalizar algo! Não existe fim! Tem que haver mais… Porque ela não pode permanecer naquilo que ela aparenta ser! Ela é mais do que aquilo, ela não é a música tocada. Ela é parte inseparável de tudo, como tudo é.” Lao Tsé escreveu que “o Tao nunca realiza ação alguma, e não obstante faz tudo. Se os príncipes e os reis pudessem a ele aderirem-se, todos os seres se evoluiriam por si mesmos. Se ao evoluir aparecesse o desejo de praticar obras, eu o manteria na simplicidade sem nome. Na simplicidade sem nome não existe o desejo. Sem desejos é possível a paz e o mundo se ordena por si mesmo.” (AH, agora é provocativo!) Sem desejos ninguém QUER nada, e só se faz o que se NECESSITA. Esta é a tao da criação, a meu ver. Qualquer desejo eu procuro manter na simplicidade sem nome. Sempre existe mais, não no sentido de “melhor”, mas as coisas mudam. E a música não é perpétua pela forma que aparenta quando compomos! A TAO da música… E o que é a tal da música, a arte dos sons? Vou falar de sons. Aliás, vou falar sobre como é a minha relação com sons e, como não poderia deixar de ser, com silêncios. E vou falar de mudanças e de diferenças. E vou falar de interpenetração de sons e silêncios. E vou falar sobre algumas coisas e sobre nada. Eu já disse que gosto das coisas como elas são, e gosto justamente por elas serem elas mesmas, exatamente como elas são. Em particular, disse que gosto do som sendo som, seja ele como for. Quando eu ouço sons eu ouço sons, e não sinto que eles têm significado além do que ouço. Sem interpretação, sem motivos, sem questões, só o ouvir. Eu amo a atividade do som sem interpretação. E nos damos tão bem que não precisamos conversar e trocar ideias (que ideia poderia ter um som, sendo ele somente um som?), só precisamos que ele faça o que ele faz (mude constantemente) e que eu faça o que eu faço (mudo-me constantemente). Aí sim, quando crio, mudo os sons de ordem, interajo e, MAIS, torno-me som. Só posso interagir quando me torno som sem consciência. E o som é SÓ o som. Não é interno, é somente externo a mim. Vou contar uma situação que aconteceu comigo uma vez, por volta de 2007. Eu costumava sentar diariamente na calçada em frente de casa, com os olhos fechados, e ficar lá por algumas horas somente ouvindo. Só ouvindo. Esses eram (e ainda são, embora atualmente sejam mais raros) os momentos em que eu bem sentia (sem necessidade de rótulos, palavras, nomes de notas, figuras rítmicas, sem necessidade de criar) um fenômeno do qual gosto muito, que realmente amo: a mudança, a maior e mais antiga das tradições! Pois bem, em um desses momentos eu me lembro de ter me emocionado ao ouvir um som destacado dentre todos os outros, ao ponto de lágrimas escorrerem dos meus olhos. Abri os olhos e vi que o som vinha do motor de um Fusca, que vinha para perto de mim, fazendo assim com que o som aumentasse de volume com relação aos outros. (Penso, agora, que nesses momentos eu possuo aquela simplicidade que me falta ao criar, a simplicidade de ser todo e somente o meu exterior. Como Caeiro, “sinto todo o meu corpo deitado na realidade; sei a verdade e sou feliz”. Sei a verdade, mas sei com a minha veia, e não como quem sabe que 2+2=4. Torno-me o som sem consciência disso, e percebo somente a mudança. Em vez de criar eu percebo, porque não preciso criar nessa hora, não sou provocado, não existe desconforto. Mas, quando sou provocado, Dino Beghetto 125 Livra-te das posses que te tornam um covarde. Depois, qualquer caminho serve 126 me emociono, me desconforto, me torno artista e crio. NO MOMENTO em que sinto emoção, estou criando, interferindo. Como Constantin Brancusi disse, “simplicidade é complexidade resolvida”. Resolver complexidades e se tornar simples é o estar desconfortável e depois acalmar esse desconforto, criando e se criando sem fim. É como Walter Franco canta: “Viver é afinar o instrumento, de dentro pra fora, de fora pra dentro. A toda hora, a todo momento, de dentro pra fora, de fora pra dentro!”.) !MOMENCTOT: “Em meio a Bergsonismos, Deleuzismos, Cagismos… Entre várias Pessoas, entre Nietzschismos e até entre próprios (nunca MEUS) Dinismos de anos atrás, Eu percebi: para haver arte, TEM QUE EXISTIR desconforto! Ah, como se eu não soubesse: para se criar algo, DEVE TER provocação! Se existe a vontade E a necessidade de ser artista, fique longe de Spectra quando estiver caminhando pelo corredor do criar. Ao contrário, CRIE o caminho a trilhar! Esse caminho TEM QUE EXISTIR! Sempre, DEVE TER mais!! A arte é criação. E percebo que criar é mudar, mudar é amadurecer, amadurecer é ter desconforto e se criar sem fim!!! E compor a criação é uma coisa, exe- cutar a criação é outra, apreciar a criação é uma terceira coisa: E O QUE UMA DEVE TER A VER COM A OUTRA?? ORA!!!!!!!!! Ver a falta de sentido intrínseco a qualquer coisa é o sentido máximo das coisas: TEM QUE EXISTIR uma grande festa dionisíaca por este triunfo da mente humana!!! DESCONFORTO: a fonte de qualquer artista!!! Não é a vontade, que surge do conforto e faz QUERER… É a necessidade, que surge do desconforto e faz PRECISAR!!! . . . O lugar privilegiado da arte é aquele em que Dionísio entrelaça dedos com Apolo!!! É no momento em que o prazer e o desprazer se misturam com imagens, com gestos, com fala que o lugar privilegiado surge das sombras… . . . Já precisei quebrar o abismo entre a arte e o mundo: a necessidade de ser NATural num mundo ARTificial… Já pensei não querendo pensar… Já pensei por necessidade, não-pensei por necessidade… Até já não-pensei por vontade… Será que a arte é vontade? Se for, não é criar: a natureza cria por necessidade, e não é arte! Criar: Pensei (com a minha veia) que talvez deva salientar como vejo o verbo “criar”: Vejo a destruição como forma de criação! Vejo a restrição como forma de criação! Vejo a mutação como forma de criação! Vejo a vida como forma de criação!!! E percebo (me percebo sempre que escrevo, sem pensar: EU NÃO AGUENTO, tenho que dizer: escrever é minha forma de estar sozinho, de me observar) que pareço não ver diferença entre a vida e a arte: será que isso me faz um não-artista?! Será que não vejo mesmo essa diferença?! Será que tem diferença?? SERÁ QUE ISSO IMPORTA?? TEM QUE EXISTIR IMPORTÂNCIA?? DEVE TER DIFERENÇA COGNITIVA?? E nessa hora eu percebo claramente: eu não me importo! E quando percebo, fico confortável, e paro de escrever.” (Às vezes me leio e me percebo antiartís- tico. Às vezes não. E, sempre, acabo não me importando… Deixo essa preocupação para os que são preocupados, para os que querem analisar, para os que pensam enquanto ouvem, ouvem enquanto veem, veem enquanto dizem, dizem enquanto pensam.) Depois que levantei da calçada em frente de casa, após abrir os olhos e ver de onde vinha o som emocionante, fui para o meu quarto como quem desperta incomodado de um sono acalentado e comecei a composição de uma nova música. Não, não foi bem assim que eu me levantei. Mas é assim que vou dizer que foi. Criei. PRECISAVA criar. Eu disse que falaria da minha relação com sons e silêncios. (No Zen, costuma-se dizer que se algo está te incomodando depois de 2 minutos, tente estar com esse algo por 4 minutos. Se ainda te incomoda, tente por 8 minutos. Se continua te incomodando, tente por 16, 32… E, eventualmente, descobre-se que não é incômodo o que incomodava, mas, ao contrário, é algo bastante interessante.) O silêncio incomoda, ou parece incomodar. John Cage disse o seguinte: “The first question I ask myself when something doesn’t seem to be beautiful is why do I think it’s not beautiful. And very shortly you discover that there is no reason”. O silêncio, como tudo, eu não busco: eu encontro, e sei que encontro quando Dino Beghetto 127 Livra-te das posses que te tornam um covarde. Depois, qualquer caminho serve 128 sinto que encontrei. Que seja clara a diferença entre o peso de uma busca e a leveza de um encontrar. Quando se encontra, sabe-se que encontrou. O silêncio, como tudo, é mutável: eu não quero prender o silêncio numa fotografia, num quadro, numa partitura. A leveza da diferença é, pra mim, bem explícita nos silêncios, em cada novo silêncio que nasce. Talvez por isso eu ame o silêncio. Se bem que quem ama nunca sabe o motivo. Eu amo o silêncio sem motivo, genuinamente. Se quando faço não faço, alcanço a perfeição! E o mundo volta a ser o mundo sem ter deixado de sê-lo! E como explicar pros olhos, então? Explicar sem explicar é escrever sem desejar. É constatar sem analisar, abrir os olhos por abrir, e deixar a luz entrar!” O silêncio é nada. E o silêncio não é a ausência de sons. O grande som é silencioso. É no não-ser que está a maravilha. E o silêncio é a ausência de posse, total. É não sequer se possuir. Como Lao Tsé escreveu, “o mais suave vence o mais duro. Só o Nada pode entrar no não-espaço. Por isso conheço as vantagens da Não-Ação. Há poucas coisas sob o céu tão instrutivas como as lições do Silêncio, ou tão benéficas como os frutos da Não-Ação”. E som, luz, é tudo nome. Olhos, ouvidos, é tudo nome. Música, gravura, é tudo nome. É tudo uma coisa qualquer. !MOMENCTOT: “Se, ao fazer, não faço, nem quero fazer, então, pra ver se assim, quando faço, o faço simplesmente, e não faço em vão. !MOMENCTOT: “Começo a escrever sem pensar, como um silêncio que se inicia sem se preocupar com o que havia antes dele. Eu não tenho nada pra escrever e por isso escrevo. Estou escrevendo, estou dizendo. Estas palavras são o que o silêncio precisa agora. Estas palavras são silenciosas. Não vejo diferença entre o silêncio e o som, e, sendo assim, não ouço diferença. Eu ouço diferença. O silêncio se torna som e o som se torna silêncio, e a bagunça tem início. Mas eu não sei onde um termina e o outro começa. E o som volta a ser som e o silêncio volta a ser silêncio. E as palavras passam a ser palavras e as pausas passam a ser pausas. E as coisas voltam a ser as coisas, sem terem deixado de sê-las.” O silêncio é tudo. O silêncio não é acústico. Por mais que tentemos, não podemos fazer silêncio. Não se FAZ silêncio. O silêncio é o TAO, e o silêncio que pode ser dito (rá!) não é o silêncio verdadeiro. O silêncio verdadeiro é mutável, e nem é o que eu estou dizendo. mático. Eu não estou interessado em teoria alguma, em qualquer “algo mais” que se possa idealizar. Silêncio e som se interpenetram. É no não-querer que reside toda a maravilha. NADA pode ser dito, e eu estou dizendo isso novamente. E isso é arte como eu preciso. A maioria dos textos está cheia de ideias. Este aqui não precisa de nenhuma ideia, de nenhum conceito. Ele é um texto sem significado, é só um texto. É um texto como eu preciso agora. Porém, se surgir ou se tiver surgido alguma ideia durante a sua escrita ou a sua leitura, que tenhamos o prazer de tê-la. Tudo muda: E COM TODA RAZÃO! (Tudo é proibido, ALIÁS, tudo é permitido!) Não me peça que eu faça um texto como se deve… Correto, suave, muito limpo e muito leve… Ou provocativo, denso, muito sujo e muito pesado… Este texto está sendo escrito neste exato momento, sem a pretensão de ser qualquer coisa além de um texto. Eu não sei para onde ele irá, pois eu não sei nada. Eu comecei escrevendo sobre como o ato de escrever é problemático, e só é problemático quando queremos exprimir algo além do que as próprias palavras nos permitem. E é justamente por isso que é problemático, aliás, escrever não é problemático, mas QUERER algo além da escrita, enquanto se escreve, é que é proble- É no querer que se encontra o problema. E não é porque é um problema que é algo ruim: o problema, sendo um problema e nada além de um problema, é perfeito e bonito. Ter problemas é como ter tosse: todo mundo tem de vez em quando, faz parte da vida, faz parte da arte. E como eu não sei a diferença entre arte e vida e nem me preocupo em saber se ela existe, digo que ter tosse faz parte. Com o problema culmina a mudança da qual participamos conscientemente. Com o não-problema vem a mudança da qual participamos inconscientemente. É tudo mudança, basta percebermos isso – ou não. Como Belchior, poeta louco brasileiro, disse, “o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo”. Também, “no presente a mente, o corpo é diferente. E o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Tudo já ficou atrás… O passado NUNCA MAIS. As coisas são sem tempo, nascem e morrem sem tempo, são mudança. Vida (arte) que é morte (mudança) a cada instante. O meu delírio é a experiência com coisas reais, não com o tempo que as mede. Dino Beghetto 129 Livra-te das posses que te tornam um covarde. Depois, qualquer caminho serve 130 O som do tráfico, a cor da flor, o som do botão do micro-ondas, o som de vozes de quem não sabe que eu existo, o cheiro dos livros, a textura do meu travesseiro, o gelado da brisa que entra pela janela, o gosto do chá que bebo. “Cravos, espinhas no rosto”, o escrever enquanto escrevo, o pensar enquanto penso, o tocar enquanto toco, ter problemas quando se tem, sentir maravilhas quando se sente, se encantar com um movimento qualquer. Samsara é nirvana, nirvana é samsara. É TUDO QUALQUER! UM MOVIMENTO É tudo movimento. E nada além do enorme tudo me interessa. Só me interessa isso, o tudo que vejo, ouço, sinto, cheiro. Mais, só me interessa o ver, o ouvir, o sentir, o cheirar. Não estou interessado em nenhuma teoria… É, Belchior, “AMAR E MUDAR AS COISAS ME INTERESSA MAIS!”. E a voz que ecoa não é mais daquele que grita. A voz resiste, a fala insiste: quem viver verá! Sempre se tem algo para dizer. Ter coragem é criar sem fim o caminho, é se criar sem fim. É ser o caminho não-sendo a si próprio. Tenha coragem, não existe perigo. Existe problema, existe maravilha. Existe palavra, existe mudança. Existe a arte e existe o viver. Existo eu e existe este texto. Livra-te das posses que te tornam um covarde. Depois, qualquer caminho serve. Aviso do poeta louco: Não tome cuidado comigo que eu não sou perigoso… Viver é que é o grande perigo! . . . (E SEMPRE SE TERÁ MAIS A DIZER!)