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A Cuarta Parede #27 NÓS POR CÁ... AS CAUSAS DO DESENCANTO DO POVO (E DO CINEMA) PORTUGUÊS por Daniel Ribas e Paulo Cunha Este texto pretende discutir e reflectir o filme As Mil e Uma Noites (Miguel Gomes, 2015) numa espécie de diálogo com a história cultural portuguesa e também com a história e a situação actual do cinema português. Para uma breve arqueologia da ideia da crise em Portugal A ideia da crise é uma presença recorrente na história portuguesa: a própria fundação da nacionalidade nasceu de uma crise familiar protagonizada pelo infante D. Afonso Henriques que decidiu combater a sua própria mãe (1128), a expansão marítima portuguesa foi iniciada pelos vencedores da crise sucessória de 1383-85 e da batalha de Aljubarrota, enquanto o Sebastianismo, o maior mito da 'portugalidade', resulta de uma crise sucessória provocada pelo desaparecimento do jovem rei D. Sebastião na batalha de AlcácerQuibir e por sessenta anos de ocupação espanhola (1580-1640). Mais recentemente, Portugal viveu outra crise traumática, provocada pelo 1 A Cuarta Parede #27 Ultimatum Inglês (1890) que levaria à queda da Monarquia, que deixaria marcas profundas na memória coletiva. As artes, em particular a literatura, trataram de imortalizar estes momentos traumáticos, sobretudo os escritos de António Nobre (1867-1900), Camilo Pessanha (1867-1936) e Venceslau de Morais (1854-1929), que marcaram o panorama finissecular oitocentista e que cantava a decadência e o sentimento de perda como “experiência de uma ausência” e “como consciência do fim”, a “morte da Pátria”. O final do séc. XIX ficou marcado por uma tendência pessimista e decadentista. Todo o pensamento social e político da transição de oitocentos para novecentos estruturou-se em torno da relação dialética entre os conceitos de decadência e de regeneração, que conheceu um desenvolvimento mais teórico e filosófico com a designada Geração de 70, com figuras como Antero de Quental (1842-1891), Eça de Queiroz (1845-1900) ou Guerra Junqueiro (1850-1923). Para a generalidade dos autores decadentistas, existe uma dialética entre os conceitos de decadência e regeneração. Esta argumentação baseia-se numa lógica de patologia social: ao identificar as causas da doença nacional, pode-se curar a Pátria. A crença nesta argumentação convence a intelectualidade portuguesa da época da viabilidade da 'revivescência' e do 'ressurgimento' nacionais. Em vésperas da Primeira Guerra Mundial surgia, fortemente marcada pelo bergsonismo na sua crítica à ciência e à razão analítica, a Renascença Portuguesa, movimento que procurava a ressurreição nacional da República. Nas páginas d’A Águia, o órgão oficial do movimento, Teixeira de Pascoaes (1877-1952) anunciava que vinham para “criar um novo Portugal”, ou melhor, para “ressuscitar a Pátria Portuguesa”. Seria esta a base do Saudosismo e do sebastianismo messiânico de Fernando Pessoa (1888-1935). Não houve ninguém melhor do que Eduardo Lourenço para perspetivar, culturalmente, esta história, a partir de uma ideia de representação da identidade nacional e da cultura portuguesa. Lourenço olha para estes acontecimentos e para estes mitos construindo neles um discurso recorrente entre decadência e regeneração. Como ele próprio assinala –e muitos outros historiadores verificaram– também o salazarismo assentou a sua ideologia precisamente no contraponto da decadência, criando uma 2 A Cuarta Parede #27 sociedade nova, baseada em diversos valores e que utilizava o declínio anterior como legitimação para o seu discurso. Assim, o salazarismo foi um regime que solidificou uma ideologia específica sobre o povo português, sobretudo cultivando valores que assentam num 'viver habitualmente', numa hierarquia exata da sociedade, em que o indivíduo deveria cumprir todos os seus deveres pela pátria. Esta ideologia, no entender de Lourenço, criou um discurso de passividade. Para além disso, e olhando de forma transhistórica, Lourenço vê como os discursos sobre Portugal – entre o eufórico e o pessimismo – revelam um contínuo recalcado sobre a condição frágil do país. No regresso do recalcado, o pessimismo torna-se a imagem dominante sobre o país. Eduardo Lourenço Esta bipolaridade tem-se sentido durante as quatro décadas depois da Revolução de Abril, e acentuou-se no final dos anos 90, quando as vagas de financiamento europeu provocaram uma euforia nos discursos da identidade, cujo cume foi a Expo 98 (“nós também somos capazes disto”, dizia-se). No entanto, a primeira década do novo século voltava a assolar o país com uma crise de que nunca se saiu, mas que atingiu o zénite na segunda década deste século. Cineastas como Manoel de Oliveira (Francisca, 1980; Non ou a vã 3 A Cuarta Parede #27 gloria de mandar, 1990; O Quinto Império - Ontem Como Hoje, 2004; O Velho do Restelo, 2015), João César Monteiro (Recordações da Casa Amarela, 1989; Le Bassin de John Wayne, 1997), Alberto Seixas Santos (Brandos Costumes, 1975; Paraíso Perdido, 1992; Mal, 1999), Paulo Rocha (A Ilha dos Amores, 1982), Fernando Lopes (O Delfim, 2002) ou João Botelho (Conversa Acabada, 1981; Quem és tu?, 2001; Os Maias, 2015), entre outros, abordaram esse imaginário da crise e da decadência de forma tão recorrente que ele se tornou sistémico no próprio cinema português, lançando uma aura de decadentismo e pessimismo em sucessivas gerações de cineastas portugueses. Non ou a vã gloria de mandar (Manoel de Oliveira, 1990) Cinema português, ano zero? Apesar de vários autores considerarem que o cinema português vive, desde a sua fundação, em permanente estado de crise, há dois momentos particulares nos 120 anos de história do cinema português onde essa crise assumiu um protagonismo particular na formal simbólica do designado 'ano zero'. O primeiro 'ano zero' do cinema português remonta a 1955: nesse ano, pela primeira vez desde 1931, não se registou nenhuma estreia 4 A Cuarta Parede #27 de uma longa-metragem de produção portuguesa nas salas de cinema nacionais. Simbolicamente, este facto foi mediatizado como forma de acentuar uma decadência no cinema português que era sinalizado por vários setores culturais e artísticos desde meados da década de 1940, esgotados que se encontravam os processos da Política do Espírito de António Ferro. Na viragem para a década de 1950, com o afastamento de Ferro da política cultural do regime, vive-se um vazio que acentua a ideia de crise no cinema português, que basicamente era identificada pelos setores da resistência e oposição que rejeitavam o modelo vigente e pugnavam por uma renovação da orientação política para a cultura e as artes, preferencialmente sem intervencionismo estatal. O segundo 'ano zero' na história do cinema português acabaria por ser 2012, o ano em que, pela primeira vez desde 1984, o estado português suspendeu os seus concursos de apoio financeiro ao cinema, nomeadamente à produção. O precário modo de produção do cinema português, sem mecanismos industriais dignas desse nome e completamente à mercê do financiamento público, recebeu com natural alerta esta medida. O momento mais simbólico desta insatisfação aconteceu no dia 10 de Maio de 2012, quando cerca de duas mil pessoas ligadas ao meio profissional cinematográfico se sentaram nas escadarias da Assembleia da República para protestar contra a (falta de) política cultural desse governo. Demonstrativo da união do setor em torno dessa luta pela defesa da própria existência do cinema português, essa manifestação pública teve o mérito de juntar figuras e facções com divergências históricas e irreconciliáveis em relação ao modelo de financiamento em vigor. Igualmente significativas foram os pronunciamentos públicos de vários cineastas portugueses em defesa do cinema português: em Fevereiro, Miguel Gomes e João Salaviza, nos discursos de vitória em pleno festival de Berlim, onde Tabú (Miguel Gomes, 2012) e Rafa (João Salaviza, 2012) foram premiados, alertavam para o risco de colapso do cinema português que vivia em estado de agonia financeira; pouco depois, em maio, um mediático abaixo-assinado intitulado “Cinema Português: Ultimatum ao Governo” que reuniu 21 nomes como Miguel Gomes, João Botelho, João Salaviza, João Pedro Rodrigues, João Canijo e Pedro Costa, para além de diversos produtores como Pedro Borges, Maria João Mayer e Luís Urbano; em 5 A Cuarta Parede #27 junho, Miguel Gomes foi um dos três realizadores portugueses, com João Salaviza e Gonçalo Tocha, que foram ouvidos em audiência parlamentar no âmbito dos trabalhos da comissão de Educação, Ciência e Cultura que então discutia a nova legislação para o setor. Miguel Gomes, Gonçalo Tocha e João Salaviza em audiência parlamentar O caso As Mil e Uma Noites O processo de produção do filme decorreu entre setembro de 2013 e outubro de 2014, num inédito e arriscado esquema de produção que poderia ser acompanhado através de um espaço bilíngue online (http://www.as1001noites.com/): três jornalistas – Maria José Oliveira, Rita Ferreira e João de Almeida Dias – recolheriam notícias ou reportagens sobre a realidade portuguesa que depois seriam recriadas, mais ou menos ficcionados, por uma equipa de três argumentistas formada por Miguel Gomes, Mariana Ricardo e Telmo Churro, colaboradores habituais do cineasta; na última semana de cada mês, a equipa de rodagem deslocar-se-ia ao local das histórias selecionadas para filmar a realidade e o enredo ficcional trabalhado pelos argumentistas. Nesse período, a equipa de jornalistas recolheu 47 histórias representativas do estado na Nação. Não é por mero acaso que as 6 A Cuarta Parede #27 primeiras imagens do filme de Miguel Gomes são registadas precisamente nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, cujo processo de reprivatização foi um tema muito recorrente na agenda mediática e no debate político em Portugal durante o segundo semestre de 2013 e foco da atenção do triunvirato de jornalista a soldo do projeto em dezembro de 2013 (http://www.as1001noites.com/estaleiros-de-viana-o-fim/). Naturalmente, isto seria demasiado fácil para Miguel Gomes. É então que se inventa um dispositivo meta-fílmico ficcionado (a semelhança com o que acontece em Aquele Querido Mês de Agosto não é pura coincidência...): na primeira pessoa, o cineasta partilha as suas angústias antes de fugir – acompanhado pelo diretor de som Vasco Pimentel e pela coargumentista Mariana Ricardo – deixar a equipa de rodagem 'órfã' em pleno set, confessando-se incapaz de fazer um “bonito filme” que contasse “histórias maravilhosas e sedutoras” e simultaneamente acompanhar a “actual e miserável situação de Portugal”. Gomes quer fazer algo que o bom senso considera 'impossível': um “filme militante que logo esqueça a militância e se ponha a escapar da realidade”; ele considera isso “uma traição, um descomprometimento, um dandismo”. As Mil e Uma Noites. O Inquieto (Miguel Gomes, 2015) A solução passaria então por um outro mecanismo narrativo: inspirado pela estrutura do clássico da literatura As Mil e uma Noites, Miguel Gomes imagina uma narradora de nome Xerazade que irá contar histórias que “ganharam forma ficcional a partir de factos ocorridos em Portugal entre os meses de Agosto de 2013 e Julho de 2014”. Os factos a que o genérico alude são os ocorridos durante a 7 A Cuarta Parede #27 'ocupação' de Portugal pela 'troika' (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), em consequência da qual “quase todos os portugueses empobreceram”. O tom dominante do primeiro volume, intitulado O Inquieto, é de apreensão no presente e de incerteza no futuro. A agenda política e social domina este volume, nomeadamente o pouco alegórico segmento 'Os Homens de Pau Feito', que entre o caricatural e o satírico retrata quase fielmente o atual estado da governança da Nação; e o segmento 'O Banho dos Magníficos', com alusões mais ou menos concretas ao definhar do Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social, ao desemprego galopante, ao endividamento das famílias, ao estado de depressão coletivo e ao consequente esmorecimento das lutas sociais. O Inquedo é claramente o volume mais politizado d’As Mil e Uma Noites, um relato cruel da situação a que o país chegou nos últimos anos, que toma especialmente detalhe nos testemunhos de desempregados e das suas vidas. A melancolia de um país O volume 2 d’As Mil e Uma Noites opta, ao contrário do primeiro, por se distanciar de uma realidade imediata e construir ficcionalmente de uma forma mais declarada e sustentada. Este segundo volume foi nomeado O Desolado e não será por acaso que é aquele que soa o mais triste e melancólico sobre uma possível ideia de comunidade. Para Gomes, a realidade que encontrou e que ficcionou é tão contraditória e incrível que o seu olhar sobre ela só poderia ser desolado e desencantado. A ideia de crise é avassaladora, mas transforma-se, neste segundo capítulo, numa ideia de melancolia, começando a ver-se que o realizador vai para além da crise económica que assolou o país nos últimos anos. Essa ideia será ainda mais concretizada e explicitada no terceiro volume, mas é em O Desolado que ela é mais visual e desencantada. Para isso, a estrutura deste filme contrasta duas paisagens específicas: o interior montanhoso e o subúrbio das grandes cidades. Entre essas duas paisagens, surge o episódio que talvez melhor definirá toda a ideia de comunidade e crise dos três volumes d’As Mil e uma Noites: 'As Lágrimas da Juíza'. 8 A Cuarta Parede #27 No primeiro caso, segue-se a história de Simão 'Sem Tripas', e a sua fuga à polícia por entre os montes do interior de Portugal. É uma sequência particularmente solitária, em que Simão vai percorrendo alguns locais, numa espécie de tranquilidade estranha. Há uma certa violência que se depreende (vê-se mesmo um corpo morto), mas fica tudo demasiado suave, aliás como a própria captura de Simão, na sua casa, sem oferecer resistência. A paisagem quente da serra parece fazer esconder segredos muito bem guardados, de crimes geracionais. Simão é um culpado que é recebido euforicamente pelo povo, por ter enganado o poder policial. A personagem de Simão e o seu episódio são ambivalentes, porque contradizem uma história não vista (o assassínio), com a imagem franzina e até simpática da personagem. Nada é simples na análise do real. As Mil e Uma Noites. O Desolado (Miguel Gomes, 2015) No entanto, o filme depois dá um salto que já se ansiava desde o primeiro volume, ao concentrar-se no subúrbio de uma grande cidade e na história de um casal que vive numa dessas torres perdida no meio de outras torres anónimas. Ali, tudo é desolador: os movimentos corporais lentos de Humberto (João Pedro Bénard) e Luísa (Teresa Madruga), o seu dia-a-dia, a casa entulhada de objetos e recordações, e a noite, submersa nas recordações das velhas canções de amor, rodadas na televisão ou em velhos gira-discos. Essa noite é completada com o fumo do tabaco e com um pacto silencioso entre os dois, que parece, ao mesmo tempo, amor e desespero; consolação e depressão. O registo dos subúrbios, as conversas entre os seus habitantes, os seus jeitos, são formas de sobrevivência que já não parecem humanas, ainda que sobrem lampejos dessa 9 A Cuarta Parede #27 humanidade, como quando Humberto e Luísa fazem amizade com Vasco (Gonçalo Waddigton) e Vânia (Joana de Verona). É, pois, um registo de uma melancolia sobre o mundo (e especialmente o mundo português), que só muito raramente é contrariada pela ironia (todo o subepisódio das histórias do prédio, como as brasileiras nudistas ou o buraco por trás do cartaz do Benfica que faz as delícias dos adolescentes). É aliás, nos segundo e terceiro volume que Gomes mais se afasta da sua ironia, aquela que tornava Aquele Querido Mês de Agosto um filme solar e divertido. Como podemos ver pela paisagem visual dos subúrbios, a sua multiculturalidade (a porteira é negra; os indianos jogam cricket; há os chineses com o seu papagaio que quase morre) e a sua organização urbana mostram muito do Portugal democrático, do seu crescimento económico muito desordenado. Não se trata apenas de uma visão arquitetónica ou urbanística, mas de um amplo olhar sobre a melancolia das pessoas que habitam este filme e, sobretudo, como já dissemos, o seu regime de sobrevivência. É tanto mais desolador ver como, de facto, os elementos ficcionados por Miguel Gomes devem muito às histórias contadas pelos jornalistas (http://www.as1001noites.com/manuela-e-ludgero-forado-mundo-2/). As Mil e Uma Noites. O Desolado (Miguel Gomes, 2015) Este tom desolador atinge o seu zénite na sequência das 'Lágrimas da Juíza'. Aí, numa espécie de tribunal popular, uma juíza inicia o seu julgamento, que, pensa ela, será fácil: um inquilino vendeu o mobiliário do senhorio, sem este o saber, nem lucrar. Contudo, o que à partida parece ser um caso fácil de julgar, vai abrir um infinito 10 A Cuarta Parede #27 desenrolar de acusações, que se sucedem umas atrás das outras e que, uma-a-uma, vão afetando toda a comunidade que está presente naquele tribunal popular. O resultado catastrófico do caos judicial faz com que esta sequência pareça perder qualquer fé de Portugal enquanto comunidade. A alegoria por de mais evidente mostra a incapacidade que temos em viver juntos e o desastre social que isso implica. As lágrimas finais da juíza são lágrimas de impotência e de desespero. O dispositivo deste segmento remonta claramente a Gil Vicente (c.1465-c.1536), o pai do teatro português. Tal como a moral vicentina (ridendo castigat mores, em latim), Miguel Gomes propõese a denunciar no espaço público os piores defeitos, costumes e imoralidades do povo português. A tipificação social das personagens pretende representar a sociedade no seu todo, revelando uma promiscuidade e ambiguidade em que todos são culpados e responsáveis pelo estado generalizado de decadência social e moral. O tom tragicómico e satírico desse 'rosário de desgraças', acentuado por algumas das personagens como o 'rapaz estúpido' que 'queria pito' (Gonçalo Waddigton) ou os caretos transmontanos, serve ainda para acentuar esta espécie de catarse coletiva que poderia levar a uma eventual redenção. As Mil e Uma Noites. O Encantado (Miguel Gomes, 2015) No terceiro volume, O Encantado, ao contrário dos anteriores, centra-se quase exclusivamente na exploração (quase) documental dos passarinheiros, homens que têm como hobby ensinar pássaros a cantar, fazendo concursos entres eles. A incredulidade de tal tarefa (são homens de 'barba rija' que se dedicam de corpo e alma à causa 11 A Cuarta Parede #27 dos pássaros cantadores) é suplantada pelas histórias cruzadas de cada um destes homens e das paisagens onde se movimentam. É um Portugal entre o campo e a cidade, fora dos centros urbanos e das suas classes médias, sobretudo centrado nos bairros sociais. Mas é, mais do que isso, uma história recente de Portugal, porque à medida que se desfiam as histórias, pressente-se uma desordenação social e histórica destas pessoas. A revolução democrática mudou muito do país, mas o ritmo dessa transformação é muitas vezes lento. Para além disso, há um legado cultural que faz ressonância nestes homens que ensinam pássaros a cantar. É uma história de luta e de sobrevivência para quem as últimas décadas foram duras e muitas vezes trágicas. Um filme para ficcionar a realidade? A melancolia d’As Mil e Uma Noites está expressa na frase que Xerazade utiliza para começar a sua narração: “Oh venturoso Rei, fui sabedora de que num triste país entre os países…”. Este país triste é revelado através das contradições de cada uma das suas histórias, mas também da sua capacidade de redenção. Ao terminar com os homens que ensinam pássaros a cantar, Gomes sugere essa glória possível de caminhar em comunidade através de pequenos prazeres ou de pequenas formas de viver em comum. Ao contrário da melancolia e decadência expressa em muito do cinema português – de que Non, ou a vã glória de mandar, de Manoel de Oliveira, é expressão – o olhar de Gomes é centrado numa realidade quotidiana e em que o próprio processo de filmar – a procura pelas notícias de jornal e a construção de histórias – assume essa dívida pelo Portugal da segunda década do século XXI. As Mil e Uma Noites é um filme singular no contexto do cinema de Miguel Gomes porque assume, de uma forma explícita e declarada, uma crítica aberta à realidade política. Foi num contexto de crise económica e fortes convulsões sociais que surgiu este projeto de longa-metragem, e Miguel Gomes disse muitas vezes que não poderia ficar indiferente ao estado da Nação, não poderia fazer um filme que ignorasse a crise e todos os seus efeitos no quotidiano dos portugueses. Mas Gomes também quer ter uma palavra no contexto das políticas culturais e, em concreto, das 12 A Cuarta Parede #27 políticas para o cinema português. Na suposta rábula meta-fílmica inicial, em que o cineasta impotente foge da sua equipa, há imenso sarcasmo e ironia quando o próprio cineasta confessa que “os escassos recursos do cinema português não serão compatíveis com os (...) devaneios” deste filme (referindo-se, de forma mais abrangente, ao cinema de autor) e que revela “alguma irresponsabilidade” que poderá “comprometer a lei n.º 55/2012 de 6 de Setembro”, a recente lei do cinema e do audiovisual que pretende, mais uma vez, um compromisso entre o cinema artístico e a indústria do entretenimento. Politicamente, o filme é um manifesto criativo e ousado de uma posição intransigente que defende o cinema como uma forma de expressão artística, cultural e cívica. As Mil e Uma Noites. O Inquieto (Miguel Gomes, 2015) Por isso mesmo, e ao contrário do que o título do filme parece antecipar e de todo o seu conteúdo temático, o propósito de Miguel Gomes não são bem as histórias contadas, mas sobretudo o 'modo de narrar'. Ao longo das seis horas do filme, Gomes e a sua equipa de colaboradores vão experimentando e explorando as diversas formas de contar histórias, desde as formas mais clássicas às mais transgressoras, das mais convencionais às mais inventivas. É, decididamente, um filme sobre as mil e uma noites de Portugal. 13