UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
RENATA RODRIGUES CARONE
Como o movimento feminista atua no Legislativo federal?: estudo sobre a atuação do
Consórcio de ONGs feministas no caso da Lei Maria da Penha
CAMPINAS
2017
Renata Rodrigues Carone
COMO O MOVIMENTO FEMINISTA
ATUA NO LEGISLATIVO FEDERAL?:
ESTUDO SOBRE A ATUAÇÃO DO CONSÓRCIO
DE ONGS FEMINISTAS NO CASO DA
LEI MARIA DA PENHA
Dissertação apresentada ao Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos requisitos
exigidos para a obtenção do título de Mestra em
Ciência Política.
Supervisor/Orientador: Prof. Dr. Wagner de Melo Romão
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO
FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA
ALUNA RENATA RODRIGUES CARONE E
ORIENTADA PELO PROF. DR. WAGNER DE MELO
ROMÃO.
CAMPINAS
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos
Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 30 de março de 2017,
considerou a candidata Renata Rodrigues Carone aprovada.
Prof. Dr. Wagner de Melo Romão
Profa. Dra. Luciana Ferreira Tatagiba
Prof. Dr. Wagner Pralon Mancuso
A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de
vida acadêmica da aluna.
Dedico aos meus pais, Eliane e Jorge.
Mãe, ter você ao meu lado foi meu incentivo permanente nessa trajetória.
Pai, o amor que conheci com você fez minha vida ter sentido.
AGRADECIMENTOS
A pesquisa que desenvolvi nesse mestrado foi um trabalho que contou com a
generosa contribuição de muitas pessoas. Na Unicamp, a participação no Núcleo de Pesquisa
em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (Nepac) foi essencial. A troca e o
aprendizado com os colegas foram enriquecedores, além dos momentos de discussões de
textos e seminários de pesquisa. Ter essa oportunidade foi um privilégio, por isso, sou muita
grata a Luciana Tatagiba, Wagner Romão e Ana Claudia Teixeira.
A oportunidade de fazer um curso de Método de Estudo de Caso, oferecido pelo
IPSA/USP, também foi uma boa oportunidade de refletir sobre a minha pesquisa,
principalmente, na parte metodológica. Os dois cursos que fiz na Câmara dos Deputados
foram importantes para lidar com os dados legislativos. O primeiro deles, em 2006, me
estimulou a observar mais o Legislativo federal. Em 2014, o segundo curso apenas reforçou
esse interesse. Acrescento, também, uma conversa imprescindível com a Professora Andréa
Freitas, que me ajudou muito na compreensão do processo legislativo do caso que exploro
nesse trabalho.
Para além disso, as disciplinas cursadas no mestrado tanto na Unicamp, como na
USP foram muito importantes, depois de seis anos afastada da universidade. Nesse período,
me dediquei ao trabalho em organizações da sociedade civil. Essa experiência me trouxe uma
bagagem de aprendizado sobre a atuação dessas organizações, na incidência sobre as políticas
públicas, que vejo refletida nessa pesquisa.
Minha qualificação foi outro momento chave. Em algumas poucas horas, a
orientação que tive redirecionou todo meu trabalho para o que essa dissertação se tornou.
Junto ao meu orientador, as Professoras Luciana Tatagiba e Andréa Freitas foram essenciais
nesse momento.
Um agradecimento ímpar deve ser feito à generosidade das pessoas que se
disponibilizaram para me conceder entrevistas, sem elas, esse trabalho não aconteceria. À
Capes, agradeço pela bolsa de pesquisa que deu suporte a esse trabalho.
Agradeço ao apoio dos amigos queridos da Puc-Sp (Bruna, Veridiana, Diego,
Tatiana e Fabio), meus amores da soma (Sérgio, Alci, Julia, Yasmin e Bruno) e aos colegas
do mestrado e doutorado que, em momentos diferentes, foram meus parceiros e cúmplices. A
Claudia, Carol e Marcela agradeço por algo que nem sei nominar.
Agradeço especialmente ao meu orientador, Professor Wagner Romão, pela
parceria ao longo dessa trajetória. Obrigada pela compreensão, paciência e generosidade.
Nossos diálogos me trouxeram pistas que estão refletidas ao longo de todo esse trabalho.
Por fim, aos meus pais, desde sempre e para sempre. Sem o apoio deles, chegar
até aqui seria impossível.
RESUMO
A interação entre instituições políticas e atores sociais neste trabalho é representada pelo
estudo de um Consórcio de ONGs feministas que, através do uso de repertórios voltados para
influência no Congresso Nacional, atuou no caso da Lei Maria da Penha. A atuação desse
Consórcio ocorreu desde a proposição da lei até sua aprovação. Trata-se, portanto, de
organizações de movimento social atuando no Legislativo federal para aprovar uma política
pública. Os repertórios de ação mobilizados pelo Consórcio são descritos a partir do próprio
fluxo do processo legislativo, em cada fase da tramitação do projeto de lei, na Câmara dos
Deputados e no Senado Federal. Dos resultados encontrados, constatamos que o Consórcio
atua dentro das Comissões Parlamentares em, pelo menos, dois momentos chave: 1)
formulação do parecer das relatoras e 2) definição do posicionamento da Comissão. No
âmbito mais geral, os resultados da pesquisa indicam que a atuação do movimento ocorre na
fase de formação da agenda e na definição do conteúdo da lei.
Palavras-chave: Movimentos sociais; Feminismo; Poder Legislativo; Lei Maria da
Penha.
ABSTRACT
The interaction between political institutions and social actors in this work is represented by
the study of a feminist NGO Consortium that, through the use of a repertoire related to
exerting influence in the National Congress, has acted in the case of the Maria da Penha Law.
The Consortium’s action has been present from the introduction of the bill through its
enactment. Therefore, the study focuses on the aforementioned social movement
organizations while they acted in the Federal Legislative in order to approve a specific public
policy. The repertoire mobilized by the Consortium is described from the logic of the
legislative process, in each phase of the bill’s proceedings, both in the Chamber of Deputies
and the Federal Senate. From the results achieved, it is possible to state that the Consortium
acts within the Parliamentary Committees in, at least, two key moments: 1) formulation of the
rapporteurs’ decision and 2) definition of the Committee’s position. In a broader context, the
results of the research indicate that the movement’s action occurs in the processes of agenda
setting and legislative content.
Keywords: Social Movements, Feminism; Legislative Power.
LISTA DE SIGLAS
ABI – Associação Brasileira de Imprensa
ADVOCACI - Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos
AGENDE - Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento
CD – Câmara dos Deputados
CCJ – Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
CCJC - Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
CEPIA - Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação
CFEMEA - Centro Feminista de Estudos e Assessoria
CFT - Comissão de Finanças e Tributação
CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CLADEM - Comitê da América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres
CLP – Comissão de Legislação Participativa
CNDM - Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
CSPCCO - Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado
CSSF – Comissão de Seguridade Social e Família
FBPF - Federação Brasileira pelo Progresso Feminino
FONAJE - Fórum Nacional dos Juizados Especiais
GTI – Grupo de Trabalho Interministerial
JECRIMs – Juizados Especiais Criminais
LMP – Lei Maria da Penha
ONGs – Organizações não governamentais
PC do B – Partido Comunista do Brasil
PL – Projeto de Lei
PLC – Projeto de Lei da Câmara
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PT – Partido dos Trabalhadores
RICD – Regimento Interno da Câmara dos Deputados
SF – Senado Federal
SPM – Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
SUMÁRIO
Introdução: tema e objeto da pesquisa..................................................................................13
Metodologia e elementos conceituais básicos...........................................................................18
Estrutura da Dissertação............................................................................................................24
Capítulo 1: A atuação dos movimentos sociais no Legislativo federal.............................. 26
1.1 Agenda de pesquisa recente sobre a interação de movimentos sociais e instituições
políticas no Brasil................................................................................................................27
1.1.1 Pesquisas sobre atuação dos movimentos sociais no Legislativo federal..................29
1.2 Movimento feminista e o Legislativo Federal....................................................................39
1.2.1 O feminismo da primeira onda........................................... ......................................39
1.2.2 Segunda Onda............................................................................................................45
1.2.3 Redemocratização......................................................................................................50
1.2.4. Anos 1990 e 2000......................................................................................................55
1.2.5 Apresentação do caso e a produção acadêmica sobre a Lei Maria da
Penha...................................................................................................................................58
Capítulo 2: A atuação do Consórcio de ONGs feministas no caso da Lei Maria da
Penha........................................................................................................................................67
2.1 Introduzindo a temática.......................................................................................................69
2.2 O debate por trás da Lei Maria da Penha e a formação do Consórcio de ONGs................74
2.3 Pré-tramitação (2002-2004)................................................................................................84
2.3.1 As primeiras ações do Consórcio de ONGs...............................................................84
2.3.2 O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI).............................................................90
2.4 Fase da Tramitação (2005-2006)........................................................................................95
2.4.1. A atuação do Consórcio na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da
Câmara dos Deputados......................................................................................................95
2.4.2. A atuação do Consórcio na Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara
dos Deputados...................................................................................................................102
2.4.3. A atuação do Consórcio na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
(CCJC) da Câmara dos Deputados....................................................................................104
2.4.4. A atuação do Consórcio no Senado Federal...........................................................113
2.5 A atuação do Consórcio para além da arena legislativa (2003-2006)...............................116
2.6 Análise dos repertórios mobilizados pelo Consórcio nas fases pré-tramitação (2002-2004)
e tramitação (2005-2006)........................................................................................................119
Capítulo 3: Explorando as interações entre movimentos sociais e instituições políticas no
caso da Lei Maria da Penha.................................................................................................130
3.1 Movimentos sociais e a produção de políticas públicas no Legislativo Federal...............130
3.2 O que se passa no Legislativo Federal? A dimensão institucional...................................133
3.2.1 O papel das Comissões no processo legislativo federal...........................................137
3.3 A atuação do Consórcio na formação da agenda..............................................................140
3.3.1. Mobilizando alguns conceitos sobre o processo de formação da agenda (agendasetting)...............................................................................................................................144
3.4 A atuação do Consórcio sobre o conteúdo legislativo da Lei Maria da Penha.................146
Considerações Finais.............................................................................................................155
Referências Bibliográficas....................................................................................................159
Anexos....................................................................................................................................169
1. Relação das entrevistas.......................................................................................................170
2. Roteiro de Entrevistas.........................................................................................................171
3. Relatório de Trabalho do Convênio realizado entre Centro Feminista de Estudos e
Assessoria (Cfemea) e Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM)...................174
4. Anteprojeto elaborado pelo Consórcio (março/2004).........................................................186
5. Ata da Reunião da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal.......................207
13
Introdução: tema e objeto da pesquisa
Em 22 de março de 2006 ocorreu a sessão na qual o projeto de lei 4.559/2004 foi
votado, no plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília. Nessa oportunidade, uma das
relatoras do projeto, na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF-CD), a deputada
Jandira Feghali (PCdoB-RJ), pediu a palavra para enaltecer o apoio daquela Casa Legislativa
em torno da proposição. Ao longo da tramitação do projeto, na CSSF, foram realizadas
catorze audiências públicas pelo Brasil e um seminário nacional. A deputada mencionou que
houve um grande consenso em torno do projeto de lei, tanto na Câmara dos Deputados quanto
fora dela. Também citou o apoio de um Consórcio feminista, da sociedade civil e da
Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM). Para a parlamentar, o projeto refletia
uma “grande vitória dessa Casa para coibir, prevenir e punir a violência doméstica e familiar
contra a mulher”1.
Pouco depois, a deputada Maria do Rosário (PT-RS) pediu a palavra e destacou o
trabalho realizado pela Ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Política para as
Mulheres (SPM); pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM); pela rede de
organizações feministas; e pelas relatoras do projeto, nas diversas comissões, pelas quais, ele
tramitou. A deputada atribuiu ao Partido dos Trabalhadores (PT) a criação de “um sistema de
garantias em que a violência não será mais algo a ser tratado entre quatro paredes”2.
Ao longo da mesma sessão, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) registrou que o
governo brasileiro assumiu compromissos em conferências internacionais, da Organização
das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), no sentido de
criar mecanismos legais para coibir a violência doméstica, contra a mulher. Para a deputada,
ao votar o projeto de lei que tratava desse assunto, a Câmara se associava concretamente “à
luta das mulheres contra essa tragédia, a violência doméstica, a que está submetida a mulher
brasileira”3. Ao final, a votação no plenário da Câmara foi encaminhada pelos líderes que,
majoritariamente, votaram a favor do PL 4.559/2004. O projeto foi aprovado por unanimidade
e seguiu para o Senado Federal, sendo promulgado, pelo Executivo, em agosto de 2006.
O projeto de lei 4.559/2004 se transformou na Lei 11.340/2006, que dispõe sobre
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, denominada Lei
1
Disponível em: <goo.gl/0XXJWA> (D.O. da Câmara dos Deputados de 23/03/2006, p. 14.352). Acesso em 2
jun. 2016.
2 Disponível em: <goo.gl/0XXJWA> (D.O. da Câmara dos Deputados de 23/03/2006, p. 14.352). Acesso em 2
jun. 2016.
3 Disponível em: <goo.gl/0XXJWA> (D.O. da Câmara dos Deputados de 23/03/2006, p. 14.353). Acesso em 2
jun. 2016.
14
Maria da Penha. A escolha do nome dessa lei serviu como uma espécie de reparação
simbólica4 a Maria da Penha Maia Fernandes, que vivenciou um caso de violência doméstica
conhecido nacionalmente (Calazans e Cortes, 2011).
O percurso legislativo desse projeto de lei, conforme registrado em sua ficha de
tramitação5, inicia-se com a apresentação da proposição, de iniciativa do Executivo, ao
plenário da Câmara dos Deputados em dezembro de 2004. Junto ao projeto de lei, a exposição
de motivos6, apresentada pela Ministra Nilcéa Freire (SPM), afirmava que em março de 2004
a pasta recebeu uma proposta de anteprojeto de lei, encaminhada pelo Consórcio de ONGs
feministas. Essa proposta subsidiou as discussões ocorridas no Grupo de Trabalho
Interministerial (GTI), instância que elaborou o projeto, contando com a participação de
diversos atores, dentre eles, o próprio consórcio (Calazans e Cortes, 2011).
No entanto, antes de março de 2004, há um histórico de participação do Consórcio
de ONGs feministas nessa pauta. Seu envolvimento se materializa, inicialmente, na
participação do grupo no Seminário Violência Doméstica, ocorrido na Câmara dos
Deputados, um ano antes da apresentação oficial do PL 4.559/2004, ao Legislativo. Esse
seminário foi organizado pela deputada Iriny Lopes (PT-SP), em comemoração ao Dia
Internacional de Combate à Violência, em novembro de 2003. A expectativa do evento era
trazer ideias e proposições que ajudassem os parlamentares na aprovação das leis sobre
violência doméstica contra as mulheres.
Nesse seminário, Leila Barsted e Silvia Pimentel, representantes da ONGs
feministas (Cepia e Cladem), apresentaram uma minuta de anteprojeto de lei sobre violência
doméstica. Esse andamento não consta na ficha de tramitação do PL 4.559/2004, mas pode ser
encontrado no arquivo sonoro da Câmara dos Deputados7. O seminário, ocorrido na Câmara,
é citado pelas integrantes do Consórcio de ONGs feministas como um momento de
4
Maria da Penha foi vítima de sucessivos atos de violência física e psicológica, por parte do seu marido, que
tentou assassiná-la em duas ocasiões, em 1983. Desde então, não haviam sido tomadas medidas efetivas pela
justiça brasileira para julgar e punir o agressor, apesar das acusações apresentadas. Em 1998, esse caso foi
levado pela própria vítima a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos
Estados Americanos (OEA), apoiada por ONGs atuantes na temática. Em 2001, a Comissão responsabilizou o
Estado brasileiro, por tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres, inaugurando
jurisprudência internacional nessa matéria. Dentre as recomendações feitas, pela Comissão, ao governo brasileiro
citamos: reparação simbólica e material à vítima, o julgamento efetivo do seu agressor e o aprofundamento do
processo de reformas que evitem a tolerância estatal à violência doméstica contra as mulheres, no Brasil.
5 Os dados da tramitação da Lei Maria da Penha, no Legislativo, estão disponíveis no site da Câmara dos
Deputados, como o PL 4.559/04, e no Senado Federal, como o PLC 37/2006. As fichas de tramitação dos
projetos estão disponíveis em: <goo.gl/kDi7dA> (Câmara dos Deputados) e <goo.gl/ghZWNv> (Senado
Federal). Acesso em 13 jun.2016.
6 Disponível em: <goo.gl/phqJdb>. Acesso em 5 out. 2016.
7 O arquivo sonoro desse Seminário está disponível em: <goo.gl/jEvq3x> (manhã) <goo.gl/dH6FFc> (tarde).
Acesso em 10 jun. 2016.
15
apresentação da proposição legislativa, elaborada pelo grupo, ao Legislativo federal (Calazans
e Cortes, 2011). É importante dizer que a participação do Consórcio, nesse evento, depende
de um convite por parte dos atores políticos, o que denota o trânsito dessas organizações no
parlamento.
O Consórcio aqui citado envolve uma espécie de coalizão de seis organizações
não governamentais, juntamente com acadêmicas e juristas, que se articulou para produzir
uma solução legislativa para o problema da violência doméstica contra as mulheres, em 2001.
Ao longo do ano seguinte, esse grupo passou a ser denominado de Consórcio de ONGs
(Barsted, 2007) ou Consórcio de ONGs Feministas8 (Calazans e Cortes, 2011).
O PL 4.559/2004 tramitou ao longo do primeiro mandato do presidente Luís
Inácio Lula da Silva (2003-2006). Nesse período, a porcentagem de cadeiras da coalizão do
governo era majoritária, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal 9. Nesse
sentido, é importante relembrar que o Congresso é regido pelo princípio majoritário, ou seja,
pela formação de maiorias que fornecem o número de votos necessários, para a aprovação de
determinada proposta legislativa (Junqueira, 2016). Além disso, os projetos de iniciativa do
Executivo são preponderantes na produção legislativa, sendo raramente derrotados, o que se
comprova pelas altas taxas de sucesso e dominância do Executivo na produção das leis
(Figueiredo e Limongi, 1999). A partir desse cenário, podemos questionar: onde os
movimentos sociais se inserem nessa lógica? Que papel é possível, para um outsider,
desempenhar nesse contexto institucional?
Como nos explica Freitas (2016), quando o Executivo envia um projeto de lei ao
Congresso apenas se inicia o processo legislativo. A autora argumenta que no interior das
Comissões Parlamentares, pelas quais o projeto tramita, novas informações serão produzidas
sobre a matéria e os parlamentares apresentarão os pontos divergentes em relação à proposta
original do Executivo. Adicionalmente, a sociedade civil se manifestará sobre a temática, e
então se inicia um intenso processo de barganha. Em resumo, quando um projeto dá entrada
no Congresso, “a matéria se torna pública e oposição, coalizão e a sociedade civil entram no
debate” (Freitas, 2016, p.46). Nesse sentido, se é inegável que o Executivo ocupa um papel
centralizador no processo decisório brasileiro, isso não deve ser visto como um obstáculo “à
8
As organizações não governamentais que compõe o consórcio e suas integrantes são: Cepia (Leila Linhares
Barsted), Themis (Carmen Hein de Campos), Cladem (Silvia Pimentel), Cfemea (Iáris Ramalho Cortes),
Advocaci (Beatriz Galli) e Agende (Elizabeth Garcez). Participaram também Rosana Alcântara, do Cedim;
Rosane Reis Lavigne, defensora pública do Estado do Rio de Janeiro; e Ela Wiecko de Castilho, sub-procuradora
da República. Três anos depois de sua formação, quando o Consórcio apresenta o Anteprojeto de Lei a Secretaria
Especial de Política para as Mulheres (SPM), novos nomes são acrescentados a essa lista, mas as organizações
permanecem as mesmas.
9 Essa informação pode ser confirmada através dos dados apresentados por Freitas (2016, p.148-9).
16
capacidade do Legislativo de alterar as propostas que partem do Poder Executivo” (Idem,
p.10). Os achados de pesquisa da autora indicam que os projetos de iniciativa do Executivo
são alterados pelo Legislativo10 e que o processo de alterações é coordenado, pela coalizão, no
interior do Legislativo. Essas alterações ocorrem, principalmente, nas Comissões
Parlamentares e o relator, normalmente um membro do partido da coalizão, representa esse
papel de coordenador de preferências.
Estrategicamente alinhada a esses argumentos, nossa pesquisa aponta que a
atuação do Consórcio de ONGs feministas, ao longo da tramitação do PL 4.559/2004,
ocorreu, majoritariamente, no interior das Comissões Parlamentares, pelas quais o projeto
tramitou, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado Federal, e em proximidade com
as relatoras da proposição. O grupo atuou ao longo dos processos decisórios que ocorreram
nas Comissões, mobilizando diversas estratégias e repertórios com o intuito de defender
alguns pontos essenciais no conteúdo da lei que estava em discussão. Ou seja, a atuação do
Consórcio na arena legislativa se deu pelos pontos de acesso estratégicos, com maiores
chances de sucesso, do ponto de vista institucional.
A partir dessa exposição inicial do caso, que será objeto desse trabalho, é
importante contextualizar que essa dissertação nasceu do interesse em entender como
organizações de movimentos sociais atuam no Legislativo Federal. Sobre a temática, a
literatura de movimentos sociais aponta que estudos sobre a relação entre atores sociais e o
Legislativo são raros no Brasil (Abers, Serafim e Tatagiba, 2014). Da mesma forma, no
âmbito dos estudos legislativos, sabe-se muito pouco sobre a atuação dos movimentos sociais
no parlamento (Santos, 2014).
Em nosso levantamento bibliográfico inicial não encontramos uma agenda de
pesquisa consolidada, que explorasse as interações entre movimentos sociais e instituições
políticas ao longo do processo decisório de produção da política pública, no Legislativo
federal. Ainda que existam trabalhos que reconheçam a atuação de movimentos sociais no
Legislativo, contribuindo para a aprovação de uma lei específica, ou que relacionem
determinada política pública à reivindicação dos movimentos, não fica claro o nexo causal
10
A autora aponta que das leis propostas e promulgadas pelo Executivo, a contribuição média do Legislativo, ao
texto final, é de 36%, ao passo que o Executivo contribui com cerca de 64% do texto legal. O universo de análise
da pesquisa foram os projetos, de iniciativa do Executivo, que sofreram algum tipo de veto, parcial ou total.
Esse critério foi escolhido por entender que são essas as matérias mais conflituosas, ou as únicas, onde o conflito
entre Executivo e Legislativo é explicito e mensurável. O período inclui as matérias, com origem no Executivo,
que foram apresentadas e aprovadas entre 01/01/1995 (início do governo Fernando Henrique Cardoso) e
31/12/2010 (final do governo Lula).
17
que explica a ação do movimento e o resultado alcançado na política, ou quais mecanismos e
processos, mobilizados pelos movimentos, relacionam-se com os resultados nas políticas.
Nesse contexto, dado o estágio incipiente das pesquisas nesse campo de estudos,
optamos por focar em um caso que pudesse trazer insights para esse campo de investigação.
Essa recomendação veio do orientador desse trabalho e da banca de qualificação, que dos
achados parciais apresentados, naquele momento, indicaram o foco no estudo de caso da Lei
Maria da Penha. O caso envolve um Consórcio de ONGs feministas que, através do uso de
repertórios voltados para influência no Congresso Nacional, atuou ao longo da tramitação do
projeto que deu origem à Lei Maria da Penha. O Consórcio esteve envolvido no processo
desde a proposição da lei até sua aprovação.
Diante desse cenário, a pergunta de pesquisa que esse trabalho pretendeu
responder foi: como se deu a atuação de um Consórcio de ONGs, no Legislativo federal,
desde a proposição até a aprovação da Lei Maria da Penha? Trata-se de uma pergunta de
caráter descritivo, denotando o viés exploratório desse trabalho, que pretende investigar os
efeitos da atuação desse grupo sobre a produção da política pública num caso específico.
Ainda que a produção acadêmica sobre a Lei Maria da Penha se concentre,
majoritariamente, em debates relacionados à Justiça Criminal (Maciel, 2011) ou sobre
aspectos jurídicos da lei, algumas pesquisas reconhecem a atuação do Consórcio no processo
de produção dessa política no Legislativo (Albarrán, 2010; Barsted, 2007, 2011; Lavigne,
2011; Maciel, 2011; Nunes, 2012; Pinheiro, 2010; Romeiro, 2007, 2009; Santos, 2010;
Sarmento, 2013). Grande parte dessas pesquisas considera a própria aprovação da lei, como
um resultado da mobilização e articulação entre o movimento feminista, a Secretaria Especial
de Política para as Mulheres e a bancada feminina do Congresso. É importante ressaltar que,
alguns desses trabalhos, foram escritos pelas próprias integrantes do Consórcio (Barsted,
2007, 2011; Calazans e Cortes, 2011; Lavigne, 2011).
Segundo Meyer (2003), os pesquisadores de movimentos sociais tratam,
invariavelmente, a política pública como um resultado da mobilização social e as mudanças
na política são rastreadas em busca da influência do movimento. No entanto, o processo
político contido em toda essa trama explicativa é muitas vezes tratado como uma “caixa
preta”. Nesse sentido, para entender como um movimento social atuou na tramitação de um
projeto, no Legislativo federal, torna-se necessário observar o processo legislativo e o papel
que esse movimento desempenhou ao longo da tramitação. Em um panorama maior,
precisamos entender também um pouco do próprio funcionamento do Legislativo e do seu
processo decisório.
18
Para responder a nossa pergunta de pesquisa, seguimos os atores que se engajaram
no caso. Isso inclui as integrantes do Consórcio de ONGs que interagiram com o Legislativo
Federal e com o Executivo, representados pelos seus respectivos membros (ministros,
parlamentares, assessores, consultores legislativos, etc.). Grande parte da interação entre
atores sociais e políticos ocorreu em um contexto institucional, ou seja, as ações do Consórcio
estavam condicionadas por regras próprias do funcionamento do processo legislativo. Ainda
assim, é importante ressaltar que a atuação do Consórcio, nesse caso, envolveu uma estratégia
combinada de repertórios dentro e fora da arena legislativa.
O ponto de acesso do Consórcio ao Legislativo federal se configura através dos
repertórios utilizados pelo grupo, na fase de pré-tramitação e ao longo da tramitação do
projeto, até sua aprovação. Esses repertórios foram mobilizados para garantir que os pontos
essenciais, defendidos pelo grupo, fossem incluídos no texto final da lei.
Um primeiro ponto que nossa pergunta de pesquisa suscita é a questão, já
reconhecida pela literatura, da necessidade de as pesquisas sobre movimentos sociais
revisarem seus pressupostos de modo a incorporar, mais sistematicamente, o Estado e as suas
instituições em seus quadros analíticos (Gurza Lavalle e Szwako, 2015). Como decorrência
desse ponto, o segundo é a dificuldade relacionada à análise da atuação dos atores sociais no
Legislativo, em termos dos instrumentais teórico e empírico. Por isso, para analisar os
repertórios mobilizados pelo grupo na arena legislativa fizemos uso de um instrumental
variado, que detalharemos no próximo tópico, quando abordamos os elementos
metodológicos que nortearam essa pesquisa.
Metodologia e elementos conceituais básicos
Como apontado anteriormente, em virtude do estágio incipiente da agenda de
pesquisa sobre movimentos sociais e Legislativo, refletido na escassa produção bibliográfica
sobre o tema, desenvolvemos um trabalho de caráter exploratório. Esse trabalho é centrado,
portanto, numa única pergunta de pesquisa e seu propósito metodológico é a geração de
hipóteses para essa pergunta. A partir da pergunta de como se deu a atuação de um Consórcio
de ONGs no Legislativo federal, desde a proposição até a aprovação da Lei Maria da Penha,
foram apresentadas respostas que se tornaram hipóteses de pesquisa.
Na definição de Gerring (2007), todas as hipóteses envolvem ao menos uma
variável independente (X) e uma variável dependente (Y). O autor explica que se um
pesquisador pretende explicar um resultado enigmático, mas não tem ideia sobre suas causas,
19
a pesquisa deve ser descrita como Y-centered. Ao contrário, se a pesquisa está focada em
investigar os efeitos de uma causa particular, sem saber que efeitos são esses, a pesquisa deve
ser descrita como X-centered. Pesquisas centradas em X ou Y são denominadas “exploratórias
e o seu objetivo é a geração de novas hipóteses” (Gerring, 2007, p. 71, tradução nossa).
Nesse caso, se definimos que a atuação do Consórcio é a variável (X) e a Lei
Maria da Penha é a variável (Y), somos inclinados a argumentar que nossa pesquisa está
centrada na variável X, pois estamos focados em investigar os efeitos da atuação desse grupo
sobre o caso da Lei Maria da Penha e, assim, gerar hipóteses para essa investigação. Dessa
maneira, para investigar a atuação do Consórcio na arena legislativa fizemos uso das
seguintes fontes de pesquisa:
a) material bibliográfico, que reconstruiu os embates ocorridos em torno da discussão
de uma legislação específica, sobre violência doméstica contra a mulher;
b) cinco entrevistas realizadas com integrantes do Consórcio e duas com
representantes do Legislativo Federal;
c) dados disponibilizados no site da Câmara dos Deputados (ficha de tramitação do
projeto; arquivo sonoro de reuniões, seminários e audiências públicas; diário da
Câmara dos Deputados);
d) dados disponibilizados no site do Senado Federal (ficha de tramitação, ata de
reunião das comissões, pronunciamento em plenário, diário do Senado Federal);
e) relatório final do Convênio, realizado entre a Secretaria Especial de Política para
as Mulheres (SPM) e o Cfemea (uma das ONGs envolvidas no Consórcio), obtido
através da Lei de Acesso à Informação (Anexo 3).
f) anteprojeto de lei, elaborado pelo Consórcio, obtido através das integrantes do
grupo (Anexo 4);
O trabalho de principal referência, para essa pesquisa sobre a atuação do
Consórcio na arena legislativa foi publicado por Calazans e Cortes (2011). É importante
destacar que as autoras desse texto foram integrantes do Consórcio, portanto, temos aqui
contribuições de pessoas envolvidas no processo. Os demais trabalhos que também exploram
a atuação do grupo no Legislativo foram publicados por Romeiro (2007, 2009) e Nunes
(2012).
Para selecionar o universo de pessoas entrevistadas, seguimos as indicações
apontadas por Calazans e Cortes (2011), sobre quais eram as organizações e as respectivas
integrantes envolvidas no Consórcio de ONGs feministas. Foram feitas entrevistas com quatro
20
das nove pessoas mencionadas no texto das autoras. A quinta entrevistada, embora não seja
citada por Calazans e Cortes (2011), é mencionada como uma das responsáveis pela redação
do Anteprojeto de Lei elaborado pelo Consórcio (Anexo 4). Além disso, ela foi citada como
integrante do grupo por atores envolvidos no processo (Entrevistas 4 e 7). No caso dos
representantes do Legislativo, foram feitas entrevistas com a deputada que mais se destacou
na fala das integrantes envolvidas no Consórcio (Entrevista 1,2,3,4), bem como o assessor
parlamentar, também citado (Entrevista 2).
O contato inicial com todos os entrevistados foi estabelecido através de correio
eletrônico (e-mail), e assim, as entrevistas foram agendadas. Com exceção da entrevista
realizada com a parlamentar, que foi concedida por e-mail, todas as outras foram presenciais.
As entrevistas ocorreram entre os meses de fevereiro a maio de 2016, foram gravadas e
transcritas, com duração média de uma hora. A relação das entrevistas e o roteiro de perguntas
utilizados estão disponíveis nos Anexos 1 e 2. Os entrevistados foram identificados por
números e, com exceção da entrevista concedida pela parlamentar, todas as outras foram
realizadas sob confidencialidade. Ocorreram tentativas de contato com duas representantes do
Executivo, mas não houve retorno.
Com relação ao banco de dados, tanto da Câmara dos Deputados quanto do
Senado, o ponto de partida foi a ficha de tramitação11 dos projetos, que deram origem a Lei
Maria da Penha. Ali estão os andamentos do projeto, ao longo das Comissões, e grande parte
dos arquivos como: o projeto apresentado pelo Executivo e a exposição de motivos; os
pareceres dos relatores, em cada comissão; emendas; votos em separado, substitutivos, etc.
Vale destacar, que a ficha de tramitação da Câmara possui informações, mais detalhadas e
completas, do que a do Senado. As reuniões e seminários ocorridos nas comissões da Câmara,
ao longo da tramitação do projeto, estão disponíveis no formato de arquivo sonoro, por isso
transcrevemos aqueles trechos que mais nos interessavam. A votação e as discussões sobre o
projeto de lei, no plenário da Câmara, são disponibilizadas por arquivo sonoro, bem como são
transcritas e disponibilizadas no Diário Oficial dessa casa. No caso da reunião da comissão do
Senado, a ata e as notas taquigráficas podem ser encontradas mediante pesquisa no site e, ao
contrário da Câmara que disponibiliza apenas o arquivo sonoro, tivemos acesso ao texto
transcrito. Disponibilizamos os links de todas as informações, oriundas dessas fontes, quando
as citamos ao longo do texto.
11 A Lei Maria da Penha é originada de um projeto de lei apresentado pelo Executivo (PL 4.559/04). Quando
esse projeto é aprovado na Câmara, e segue para o Senado, ele se transforma no PLC 37/06.
21
Sobre as organizações do Consórcio e suas representantes, buscamos situá-las
dentro do histórico do movimento feminista (ver item 1.2). Essa demanda surgiu pelo fato das
próprias entrevistas revelarem o envolvimento das integrantes do Consórcio no movimento
feminista, desde os anos 1970 e 1980 (Entrevistas 1, 3, 5). Além disso, os nomes de algumas
dessas integrantes também são citados em trabalhos que tratam do histórico do movimento
feminista brasileiro, justificando a sua inserção nessa trajetória. Adicionalmente, algumas das
ONGs envolvidas no grupo, foram criadas a partir da própria experiência de trabalho de suas
fundadoras no CNDM12 (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher). Por isso, precisamos
levar em conta todo esse acúmulo de repertórios e aprendizados para analisar a atuação das
organizações no caso da Lei Maria da Penha.
É importante destacar a importância de dois documentos utilizados como fonte de
dados, conforme listamos acima. Um deles é o Anteprojeto de Lei sobre violência doméstica e
familiar contra a mulher, esse documento foi elaborado pelo Consórcio, e entregue à
Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM), mesmo antes do Executivo apresentar
o projeto de lei ao Congresso. Tal documento foi obtido através de integrantes do grupo. O
segundo documento é o relatório final do convênio, realizado entre a Secretaria Especial de
Política para as Mulheres (SPM) e o Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria),
organização envolvida no Consórcio. O objetivo principal desse convênio era produzir um
anteprojeto de lei sobre violência doméstica contra a mulher e, soubemos de sua realização,
através de uma das integrantes do grupo (Entrevista 4). A partir daí, fizemos uma pesquisa
para descobrir dados do Convênio encontrando as seguintes informações: nome do
convenente; número e o ano; objeto; vigência; valor do repasse e contrapartida. De posse
desses dados, deu-se entrada no pedido de informação, por meio do e-SIC (Sistema Eletrônico
do Serviço de Informação ao Cidadão), para a obtenção do produto final do Convênio, cujo
relatório final está disponível no Anexo 3.
Para tratar do Consórcio de ONGs, mobilizamos o conceito de organizações de
movimento sociais (Diani, 2003). O autor compreende os movimentos sociais como “redes de
interações informais entre uma pluralidade de indivíduos, grupos ou associações com base em
identidades coletivas compartilhadas e engajados em conflitos políticos ou culturais” (Diani,
2003, p. 301, tradução nossa). A partir dessa definição, o autor aponta que as organizações de
movimentos sociais são aqueles grupos que se identificam, e são identificados por outros,
como partes do mesmo movimento, compartilhando nessas bases. Portanto, essas
12
O Conselho foi criado, em 1985, como uma agência governamental cuja finalidade básica era a formulação de
políticas voltadas para combater a discriminação contra a mulher em âmbito nacional.
22
organizações não se definem em termos de atributos, mas em termos de relações.
Adicionalmente, mobilizamos também a definição de Alvarez (2014), que analisa o
movimento feminista sob o prisma dos campos discursivos de ação, defendendo dentro dessa
denominação, a coexistência de visões de mundo heterogêneas, articulando-se em torno de
um campo comum.
É importante ressaltar que buscar uma definição para tratar do grupo nos gerou
um conflito, pois ainda que constatamos se tratar de organizações, em sua maioria, inseridas
na trajetória do movimento feminista, cujas integrantes entrevistadas identificavam elementos
comuns em suas experiências passadas, além de uma causa que as motivava a atuar
politicamente, em busca de mudanças, os trabalhos do Consórcio seguiram até o primeiro ano
da promulgação da lei. Como explicam as autoras:
Os trabalhos do Consórcio foram iniciados em julho de 2002 e se estenderam até o
primeiro ano da promulgação da lei. Daí em diante, os grupos que participaram da
lei continuaram a realizar ações, de forma isolada ou em parceria, com outras ONGs
ou instituições governamentais ou não (Calazans e Cortes, 2011, p.43).
Além disso, uma entrevistada, em particular, trouxe uma visão diferente da
maioria por compreender que aquelas organizações eram o núcleo duro e que o movimento
era ouvido, na medida do possível, na construção da proposta legislativa. Segundo a
entrevistada, não havia a pretensão de representar o movimento, “eu pelo menos nunca me
coloquei nessa perspectiva”, “esse é um projeto de lei que seis ONGs com um grupo ampliado
estão propondo” e o projeto era discutido “com quem estava a fim de discutir”, pois era “um
projeto público e todo mundo sabia quem é que estava ali” (Entrevista 2). Ainda que
compreendendo as limitações conceituais, optamos por utilizar essas definições, pois
julgamos serem as mais adequadas para o caso.
Outro conceito que mobilizamos neste trabalho é o de repertório, tal qual foi
aplicado por Abers, Serafim e Tatagiba13 (2014), a partir de uma adaptação do conceito de
repertoire of contention, criado por Charles Tilly. As autoras apontam que Tilly empregou o
conceito repertório de confronto para analisar as escolhas feitas pelos movimentos, não no
que se refere ao conteúdo da ação coletiva, mas à sua forma. Segundo elas, ele argumenta que
quando ativistas decidem como organizar uma ação coletiva, eles a escolhem a partir de um
portfólio finito de técnicas e práticas, já experimentadas, e que possuem legitimidade social e
política. Abers, Serafim e Tatagiba adaptam esse conceito, concebido originalmente, para o
estudo dos movimentos sociais sob a chave das dinâmicas contenciosas, para um conceito que
13 As autoras utilizam o conceito repertório de interação Estado-sociedade e aqui, muitas vezes, usamos o termo
repertório de ação, com o mesmo sentido.
23
abarque relações que envolvam também dinâmicas colaborativas entre atores no Estado e na
sociedade. Nesse caso, é importante dizer que o Consórcio combinou estratégias na arena
legislativa com manifestações e vigílias, estrategicamente elaboradas, para incrementar as
pressões sobre o processo legislativo (Maciel, 2011), configurando-se no que Tilly (2010)
denomina de campanha, como explicitaremos no capítulo 2.
Para analisarmos a atuação do Consórcio ao longo do processo legislativo que deu
origem à Lei Maria da Penha, mobilizamos alguns conceitos que se configuram na matriz
explicativa apresentada abaixo. Essa matriz mobiliza quatro níveis de explicação, observando
a atuação do Consórcio de ONGs feministas nos seguintes aspectos: a) em torno das
estratégias mobilizadas (repertórios), b) nas fases em que o grupo atua na produção da
política, c) nos momentos específicos em que ocorrem essa atuação, no interior das
Comissões Parlamentares do Congresso e d) nos principais resultados deliberados nas
Comissões Parlamentares, e na lei promulgada, em relação as principais demandas defendidas
pelo Consórcio sobre a lei. A partir dessa matriz, temos uma combinação causal de variáveis
relativas à dimensão do movimento social, bem como do Estado, seguindo as proposições de
Dowbor et al (2016).
Quadro 1: Matriz explicativa
Estratégia de
atuação do
Consórcio
Conceito de
repertório de
interação (Abers,
Serafim e Tatagiba,
2014).
Fases de atuação do
Momentos de
Consórcio na produção atuação do
da política
Consórcio
nas Comissões
Parlamentares
Formação da agenda,
Definição de
produção do conteúdo
relatoria, formulação
legislativo, votação e
de parecer pelas
implementação (Amenta relatoras,
et al, 2010).
posicionamento da
comissão. (Zampieri,
2013).
Principais resultados
deliberados nos
processos decisórios
Conteúdo dos textos
aprovados em cada
Comissão, e na lei
promulgada, em relação
as principais demandas
defendidas pelo
Consórcio.
Fonte: Elaboração própria
Para interpretar os resultados dessa análise, foram mobilizadas literaturas de
grupos de interesse (Mancuso, 2007), estudos legislativos (Freitas, 2016; Junqueira 2016),
políticas públicas (Kingdon, 1995) e a produção voltada para as consequências da ação dos
movimentos sociais sobre as políticas públicas (Amenta et al, 2010; Dowbor et al, 2016). No
tópico seguinte, trataremos da estrutura da dissertação em relação a sua organização interna.
24
Estrutura da Dissertação
Esta dissertação está dividida em três capítulos, além desta Introdução e das
Considerações Finais.
No primeiro capítulo, procuramos expor elaborações teóricas e pesquisas
empíricas que retratam como a literatura tem analisado a atuação dos movimentos sociais no
Legislativo federal em dois níveis diferentes: na Ciência Política e no movimento feminista.
Desse modo, esse capítulo se divide em duas partes. No primeiro nível, relacionamos a
literatura existente acerca da atuação dos movimentos sociais no Legislativo federal,
elencando os repertórios mobilizados pelos atores sociais nos casos apresentados. No segundo
nível, relacionamos a literatura existente sobre a atuação do movimento feminista no
Legislativo federal. Para isso, reconstruímos um histórico desde a primeira onda feminista
(Matos, 2014) até os anos 2000, com objetivo de rastrear a forma de atuação desse movimento
no Legislativo, em cada contexto. A recuperação desse percurso histórico pretende
compreender quais repertórios de interação Estado-sociedade se formaram, historicamente,
entre o movimento feminista e o Legislativo federal. Embora esse levantamento histórico não
pretenda dar conta de toda produção existente sobre a temática, ao observar a forma como o
movimento feminista atuou no Legislativo, ao longo do tempo, poderemos colocar em
perspectiva os achados empíricos que apresentaremos no capítulo seguinte.
No segundo capítulo, realizamos a reconstrução empírica da atuação do Consórcio
de ONGs no caso da Lei Maria da Penha. Essa reconstrução pretende elucidar como se deu a
atuação do Consórcio desde a proposição até a aprovação da lei. Para tanto, tomamos por base
o próprio fluxo do processo legislativo e descrevemos, em cada fase da tramitação, os
repertórios mobilizados pelo Consórcio. Ao longo da tramitação, o projeto passou por três
comissões na Câmara dos Deputados (Seguridade Social e Família; Finanças e Tributação;
Constituição e Justiça e de Cidadania) e uma no Senado Federal (Constituição e Justiça). A
partir desse material, elaboramos um balanço dos repertórios mobilizados pelo grupo no
momento pré-tramitação (2002-2004) e ao longo da tramitação do projeto de lei (2005-2006).
No último capítulo, exploramos os resultados mais gerais da pesquisa, e a partir
disso, fazemos uma discussão sobre os dois processos em que reconhecemos a atuação do
Consórcio, no caso da Lei Maria da Penha14: formação da agenda e produção do conteúdo
14
É importante destacar que existem autoras que reconhecem a participação do Consórcio de ONGs feministas
no processo de implementação da Lei Maria da Penha (Calazans e Cortes, 2011; Maciel, 2011). No entanto, ao
25
legislativo. Consideramos que, para entender os efeitos políticos do Consórcio de ONGs
feministas sobre a Lei Maria da Penha, é necessário observar as dimensões relativas ao
movimento social, bem como ao Estado, pois elas operam simultaneamente, condicionando os
resultados dos movimentos sobre a produção de políticas públicas. As estratégias mobilizadas
pelo Consórcio (repertórios), descritas detalhadamente no segundo capítulo, são variáveis
relativas a dimensão do movimento social, portanto, no último capítulo focamos nas variáveis
institucionais, relativas ao funcionamento do Legislativo.
Nas considerações finais, refletimos brevemente sobre o principal esforço
realizado por esse trabalho, bem como sobre as dinâmicas internas que guiaram a pesquisa.
Por fim, apresentamos algumas reflexões apontadas pelo trabalho que poderão ser objeto de
pesquisas futuras.
delimitar nosso interesse pela produção da política com foco no processo decisório, que ocorre no Legislativo
federal, não tratamos da fase de implementação.
26
Capítulo 1: A atuação dos movimentos sociais no Legislativo Federal
Neste capítulo trataremos de como a literatura tem analisado a atuação dos
movimentos sociais no Legislativo federal em dois níveis diferentes: na Ciência Política e no
movimento feminista. Por se tratar de uma pesquisa exploratória, estamos reconhecendo que
nosso problema de pesquisa é pouco estudado e, por isso, é preciso contextualizá-lo num
panorama maior.
A pergunta de pesquisa desse trabalho tem um caráter descritivo, pois
pretendemos responder como se deu a atuação de um consórcio de ONGs no Legislativo
federal, desde a proposição até a aprovação da Lei Maria da Penha. A partir desse
questionamento, deduzimos que houve uma interação entre atores sociais e instituições
políticas, que representam o Legislativo federal (Câmara dos Deputados e Senado), num caso
específico. Trata-se, portanto, de organizações de movimento social (Diani, 2003) atuando no
Legislativo federal para aprovar uma política pública. É importante destacar que o consórcio
que atuou no caso da Lei Maria da Penha foi composto por seis ONGs15, e que partimos do
pressuposto de que essa rede de organizações estava inserida no movimento feminista.
Por ora, antes de responder à pergunta de pesquisa, que será aprofundada no
capítulo 2, daremos alguns passos atrás. Buscaremos na literatura como os autores têm
discutido a atuação dos movimentos sociais no Legislativo federal. Como mencionado
anteriormente, esse capítulo se divide em duas partes.
Na primeira, relacionamos a literatura existente acerca da atuação dos
movimentos sociais no Legislativo federal na Ciência Política. Nesse sentido, apresentamos
os casos empíricos encontrados e elencamos os repertórios mobilizados pelos atores sociais
nesses casos.
Na segunda parte, relacionamos a literatura existente sobre a atuação do
movimento feminista no Legislativo federal. Para isso, reconstruímos um histórico desde a
primeira onda feminista (Matos, 2014) até os anos 2000, com objetivo de rastrear ao longo
desse período, de que forma esse movimento atuou no Legislativo, em cada contexto. A
recuperação desse percurso histórico pretende responder à questão: que repertórios de
interação Estado-sociedade se formaram historicamente entre o movimento feminista e o
15
As organizações não governamentais que compõe o consórcio e suas integrantes são: Cepia (Leila Linhares
Barsted), Themis (Carmen Hein de Campos), Cladem (Silvia Pimentel), Cfemea (Iáris Ramalho Cortes),
Advocaci (Beatriz Galli) e Agende (Elizabeth Garcez). Participaram também Rosana Alcântara, do Cedim;
Rosane Reis Lavigne, defensora pública do Estado do Rio de Janeiro; e Ela Wiecko de Castilho, subprocuradora
da República.
27
Legislativo federal? Embora esse levantamento histórico não pretenda dar conta de toda
produção existente sobre a temática, ao observar a forma como o movimento feminista atuou
no Legislativo, ao longo do tempo, poderemos colocar em perspectiva os achados empíricos
que apresentaremos no capítulo seguinte.
1.1 Agenda de pesquisa recente sobre a interação de movimentos sociais e instituições
políticas no Brasil
As literaturas de movimentos sociais, sociedade civil e participação preservaram,
até muito recentemente, a premissa de um Estado hermético, concebido como pólo negativo e,
portanto, oposto ao potencial democratizador inerente à sociedade civil (Gurza Lavalle, 2014;
Gurza Lavalle e Szwako, 2015). Essa tradição de pensamento está muito atrelada à fase que
Cardoso (1994) caracteriza como a “emergência heroica dos movimentos”. Num contexto
político repressivo, em que os canais de representação haviam sido bloqueados, os
movimentos sociais com seu espontaneísmo e autonomia eram vistos como uma quebra
dentro do sistema político. Existia uma visão de que haveria uma mudança na cultura política,
com grande contribuição dos movimentos sociais, em contraposição às relações clientelísticas
e o modo de atuação do sistema político tradicional. Nesse esquema teórico-normativo, o
Estado, em geral, era visto como um inimigo.
Como consequência dessa perspectiva analítica, a interação entre instituições
políticas e atores sociais que aconteceu, pelo menos desde o século XIX, ficou invisibilizada.
Como apontam Gurza Lavalle e Szwako (2015), de um ponto de vista mais exigente, é
possível encontrar formas de associativismo, orientadas para incidir nas instituições políticas,
desde o movimento abolicionista. Esse argumento é exemplificado, pelos autores, através dos
achados da pesquisa realizada por Angela Alonso. A pesquisadora reconhece no movimento
abolicionista formas de associativismo orientadas para incidir nas instituições políticas, tais
como: brokers cruzando espaços de classe e alinhando ativismo parlamentar e societário;
ciclo de protestos entre 1883 e 1884; e até mesmo um projeto de lei do Ventre Livre (Alonso,
2011 apud Gurza Lavalle e Szwako, 2015).
De acordo com Tatagiba (2010), na década de 1980, uma corrente minoritária de
autores chamava atenção para as consequências negativas desses pressupostos, bem como
reconheciam o processo de diálogo dos movimentos com o Estado, a partir de uma
perspectiva relacional (Cardoso, 1987; 1994). No entanto, abordagens como essas não
resultaram numa agenda sólida e contínua de pesquisa (Dowbor, 2012). Reconhecendo essa
28
lacuna, a literatura voltada para os movimentos sociais, sociedade civil e espaços
participativos tem se dedicado a revisar seus pressupostos teóricos, de modo a incorporar,
mais sistematicamente, o Estado e as suas instituições em seus quadros analíticos (Gurza
Lavalle e Szwako, 2015). Nos estudos mais recentes, é interessante notar “como a própria
relação entre sociedade civil e sociedade política se constitui como questão empírica e teórica
a ser enfrentada” (Tatagiba, 2010, p.68).
A partir desses estudos, a atuação dos atores sociais via instituições é notadamente
reconhecida, mas uma questão que permanece é o fato desse tipo de interação não ser
privilegiado pelas teorias dos movimentos sociais (Dowbor, 2012). O problema é que as
complexas relações que os atores sociais estabelecem com as instituições políticas no Brasil
diluem, muitas vezes, suas fronteiras com o Estado (Abers e Bülow, 2011; Silva e Oliveira,
2011; Abers, Serafim e Tatagiba, 2014; Abers e Tatagiba, 2014) inviabilizando o uso de
referenciais teóricos que não olhem para a atuação institucional ou que delimitem, de forma
muito rígida, as fronteiras entre os atores sociais e estatais. Nesse sentido, conceitos como
“ativismo institucional”, “compartilhamento de projetos” e “múltipla filiação”16 têm sido
utilizados como variáveis explicativas sobre a interação entre atores sociais e políticos (Abers,
Serafim e Tatagiba, 2014; Abers e Tatagiba, 2014; Gutierres, 2015; Tatagiba e Teixeira,
2016). Esses estudos demonstram o trânsito dos militantes para dentro da burocracia estatal,
no contexto dos governos de esquerda, com relações de proximidade histórica e programática
com os movimentos. Além da interação dos ativistas dos movimentos sociais com o Estado,
essas pesquisas revelam a participação dos ativistas na própria gestão estatal. Avançando
nesse debate em direção às políticas públicas, estudos recentes têm observado a atuação dos
movimentos sociais nos momentos de construção, implementação e execução das políticas,
com destaque para a saúde, assistência social e habitação (Dowbor, 2012; Gutierres, 2015;
Teixeira, Tatagiba e Blikstad, 2015; Teixeira e Tatagiba, 2016).
No caso específico de pesquisas sobre a interação entre movimentos sociais e o
Legislativo, os estudos são raros no Brasil (Abers, Serafim e Tatagiba, 2014). Entretanto, é
importante afirmar que isso não significa que a literatura sobre movimentos sociais
desconheça a atuação desses atores na arena legislativa. Como afirmam as autoras, “em vários
setores de políticas e em diferentes momentos históricos, movimentos sociais atuaram junto a
partidos políticos para que leis ou artigos importantes fossem aprovados” (Abers, Serafim e
Tatagiba, 2014, p.333).
16
Como indicam Tatagiba e Teixeira (2016), os conceitos de compartilhamento de projetos e múltipla filiação
são inspirados em Evelina Dagnino e Ann Mische.
29
Inserido nesses debates, nossa pesquisa observou a produção de uma política
pública, com foco no processo decisório, que ocorreu no Legislativo federal. Ao longo desse
percurso, verificamos o papel que o Consórcio de ONGs feministas desempenhou, ao longo
do processo legislativo, e os efeitos da sua atuação sobre a produção da política pública, no
caso da Lei Maria da Penha.
Para abordar essa interação entre atores sociais e políticos no Legislativo, não
encontramos uma agenda de pesquisa consolidada, que permita um debate amplo sobre a
questão, como já mencionamos. Encontramos, todavia, casos dispersos que reconhecem a
atuação dos movimentos sociais no Legislativo federal: durante a Assembleia Constituinte,
por meio das emendas populares (Brandão, 2011; Lin, 2010); através da iniciativa popular de
lei (Paz, 1996; Lin, 2010) e da Comissão de Legislação Participativa (Lin, 2010; Coelho,
2013); por meio da política da proximidade ou lobby (Dowbor, 2012; Abers, Serafim e
Tatagiba, 2014); como grupo de pressão (Carvalho e Taglialegna, 2006); e integrados as
comunidades de políticas (Pereira, Vasselai e Silva, 2012; Pereira, 2013). Na área dos estudos
legislativos, a pesquisa de Santos (2014) aponta, ainda, que as estratégias de atuação dos
movimentos sociais no parlamento carecem de estudos mais aprofundados17.
Apresentaremos a seguir os principais argumentos desses casos, bem como os
repertórios mobilizados pelos movimentos. Dessa maneira, teremos uma visão de conjunto
sobre esses estudos.
1.1.1 Pesquisas sobre atuação dos movimentos sociais no Legislativo federal
Brandão (2011) analisou a interação entre a dinâmica da participação popular e a
dinâmica político legislativa, a partir da análise da mobilização social ocorrida, ao longo da
elaboração da Constituição de 1988. A Constituinte de 1987-1988 é considerada como um
período de abertura de janela de oportunidade política. Para o autor, os movimentos sociais
souberam não só aproveitar a estrutura de oportunidade política no processo de elaboração de
uma nova Constituição, como também potencializá-la, de forma significativa, ao incluírem no
17
Não se trata de levantamento bibliográfico exaustivo sobre a temática, mas sim de textos que trazem
descrições mais detalhadas sobre a atuação dos movimentos sociais no Legislativo federal. É comum encontrar
pesquisas sobre movimentos sociais reconhecendo que algumas propostas, contidas em determinadas políticas
públicas, são frutos de suas reivindicações. No entanto, apesar dessa inferência, não é usual o olhar para a arena
legislativa, e a busca pela descrição ou explicação da atuação dos atores sociais, nessa esfera política, de forma
pormenorizada.
30
Regimento Interno18 da Constituinte, um conjunto de instrumentos de democracia direta como
as emendas populares19 e as audiências públicas.
O contexto histórico desses acontecimentos foi caracterizado pelas crises do
Estado desenvolvimentista e político institucional, cujas consequências tiveram impacto na
Assembleia Nacional Constituinte. Dentre essas consequências, citamos: a ausência de um
anteprojeto oficial; a desorganização dos atores políticos mais conservadores, no momento
inicial da Constituinte; e a fragilidade do Executivo na condução do processo. Devido à
ausência de um anteprojeto, que norteasse a atuação dos constituintes, os trabalhos ocorreram
de forma descentralizada. Desenvolveram-se, inicialmente, em 24 subcomissões, que depois
se transformaram em oito comissões temáticas, e por fim se concentraram na comissão de
sistematização, antes de seguir para as votações em plenário. Essa dinâmica acabou
permitindo uma maior participação dos deputados não vinculados às elites partidárias, e dos
próprios movimentos sociais. Em parte, isso explica a interação mais direta entre os
movimentos sociais e os constituintes. Eles traziam aos parlamentares o conteúdo das
reivindicações que, posteriormente, seriam apresentadas nas emendas encaminhadas à
Assembleia Nacional Constituinte. Assim, foram estabelecidos os vínculos que seriam a base
para futuras negociações.
Desse modo, o principal mecanismo de legitimação dos movimentos sociais foi
através do dispositivo de emendas populares. O mecanismo das emendas populares “serviu
para unificar e ampliar a ação coletiva na pressão direta aos constituintes” (Brandão, 2011,
p.78). Nesse processo, verifica-se a atuação de movimentos ligados à questão ambiental,
indígena, feminista, habitacional, etc.
A interação entre atores políticos e sociais, naquele momento, resultou na
aceitação de grupos e movimentos sociais como portadores de interesses. Sua legitimação se
deu pelos milhares de assinaturas coletadas, através das emendas populares, e em alguns
casos, pelo conhecimento técnico-científico, quando seus representantes eram convidados a
participar das audiências públicas, nas subcomissões e comissões temáticas. Dentre o
repertório utilizado pelos movimentos no período, destacamos: lobby nos corredores e
plenário do congresso, atos de coleta de assinaturas, atos de entrega de emendas populares,
Na definição apresentada pelo autor, o Regimento Interno “foi o conjunto de normas e princípios que
ordenaram as funções legislativas e administrativas da Assembleia Nacional Constituinte” (Brandão, 2011, p.
25).
19
São as emendas apresentadas por, no mínimo, 3 entidades e respaldadas por, no mínimo, 30 mil assinaturas
que poderiam modificar o texto da Constituição, que estava sendo elaborado na Assembleia Constituinte. Cada
cidadão poderia assinar três emendas. No período da constituinte foram coletados mais de 12 milhões de
assinaturas, por 288 entidades diferentes, e 122 emendas foram apresentadas no anteprojeto da constituição
(Brandão, 2011; Lin, 2010).
18
31
reuniões com constituintes, apresentação das emendas populares na comissão de
sistematização, manifestações/comícios, etc.20
Paz (1996) realizou a sistematização da experiência desenvolvida pelos
movimentos sociais urbanos, na reivindicação de políticas de habitação junto ao Estado, no
período de 1990 a 1994. Destaca-se, aqui, a proposição de um projeto de lei de iniciativa
popular, formulado e apresentado ao Congresso, pelos movimentos urbanos.
A proposta de criação do Fundo Nacional de Moradia Popular foi o primeiro
projeto de iniciativa popular de lei (PL 2.710/1992) apresentado ao Congresso Nacional, em
novembro de 1991. O projeto foi proposto por organizações de movimentos sociais, ligados a
questão da moradia urbana. Destaca-se também o apoio institucional da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (Lin, 2010).
Os movimentos conseguiram coletar aproximadamente 800 mil assinaturas, o que
correspondia a 1% do eleitorado nacional na época. No entanto, não houve meios técnicos de
averiguar as assinaturas coletadas, e o deputado Nilmário Miranda (PT-MG) foi o responsável
por colocar o projeto na pauta do Congresso. Além disso, dois problemas surgiram na
tramitação do projeto (Paz, 1996; Lin, 2010). O primeiro se refere a uma questão jurídica,
relacionada às prerrogativas exclusivas do Executivo, das quais o projeto tratava, o que
inviabilizava que ele fosse apresentado pelo Legislativo. O segundo problema foi de cunho
ideológico, pois o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) dava sinais de que não teria a
intenção de vincular verbas do orçamento federal ao fundo de moradia.
Ainda assim, a capacidade da campanha em coletar as assinaturas necessárias
revelou “a força e a capacidade de mobilização dos movimentos de moradia” (Paz, 1996, p.
130). A autora argumenta que, no geral, os movimentos têm dificuldade em atuar por dentro
das arenas legislativas, seja por meio da pressão ou mesmo fazendo lobby. Isso pode ser
explicado pela falta de domínio do funcionamento do Congresso, pela falta de tradição no uso
desses repertórios ou pela falta de recursos financeiros. Mas, ao apresentar o primeiro projeto
de iniciativa popular ao Congresso, o conjunto dos movimentos de moradia mostrou à
sociedade sua capacidade propositiva. Em consequência, o tema da habitação popular emergiu
como uma questão nacional na agenda.
Lin (2010) analisou a atuação da classe política em relação a criação e
implementação dos instrumentos de iniciativa legislativa popular no Brasil. O autor considera
que, embora os mecanismos de iniciativa popular tenham sido criados, o seu uso efetivo e
20
Essas informações constam do levantamento feito por Brandão (2011, p.83) e estão apresentadas em formato
de tabela.
32
implementação são dificultados pelos atores políticos. Dentre os objetos de análise estudados
estão as emendas populares no processo constituinte, os projetos de lei de iniciativa popular e
a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados (CLP-CD).
No período da elaboração da Constituição de 1988, ocorreu a formação dos
Plenários pró-participação popular na Constituinte em todo o país. Esses plenários reuniam
associações, entidades e movimentos sociais interessados em participar ativamente do
processo de elaboração da Constituição. O principal instrumento de participação no processo
eram as emendas populares, que poderiam alterar ou incluir trechos no texto da Constituição,
que estava sendo elaborado na Assembleia Constituinte. As emendas deveriam ser
apresentadas por, no mínimo, três entidades e respaldadas por 30 mil assinaturas.
As três emendas analisadas por Lin (2010) tinham propostas relacionadas à
participação popular no Legislativo. O conteúdo delas tratava da implantação e
regulamentação de plebiscitos, referendos e iniciativa legislativa popular. Em que pese o
esforço realizado para a coleta de assinaturas e a pressão realizada junto aos parlamentares, as
emendas não vingaram. Ao longo do processo, seu conteúdo “foi sendo apagado pelos
parlamentares constituintes” (Lin, 2010, p.48) restando somente a proposta relativa à
iniciativa popular de lei, que foi incluída na Constituição de 1988.
A iniciativa popular de lei exige a coleta de assinaturas de 1% do eleitorado
nacional, distribuídos em cinco estados diferentes, com não menos de três décimos por cento
dos eleitores de cada um deles (Lin, 2010). Os princípios de utilização desse mecanismo estão
previstos no artigo 61 da Constituição de 1988. No entanto, mesmo com a sua aprovação na
Constituição, não foram criadas condições para implementação efetiva desse mecanismo: não
há meios técnicos de averiguar as assinaturas dos apoiadores de um projeto de lei por
iniciativa popular. Sendo assim, todas as cinco propostas apresentadas, até hoje, ingressaram
na pauta do Congresso Nacional através de iniciativa parlamentar ou do Executivo.
Ainda que o sucesso na coleta das assinaturas necessárias exerça uma pressão
moral sobre os parlamentares, isso não garante, automaticamente, o sucesso do projeto de
iniciativa popular. Ele tramita com as mesmas exigências de qualquer outro projeto. Os
projetos de iniciativa popular que se transformaram em leis “precisaram ser apropriados pelos
partidos da coalizão governista para terem tramitação encerrada e serem aprovadas” (Lin,
2010, p. 111). Um exemplo é o já mencionado PL 2710/1992, que trata da criação do Fundo
Nacional de Habitação de Interesse Social. Trata-se de projeto de iniciativa popular, que só
avançou com o apoio e o envolvimento do Executivo, fato que ocorreu no governo Lula
quando, em junho de 2005, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) foi
33
aprovado. Sobre os repertórios utilizados pelos atores sociais na tramitação desses projetos, o
autor menciona “registros de reuniões formais ou informais entre políticos e representantes da
sociedade civil para discutir formas de aprovar os projetos de forma consensual” (Idem, p.
46).
A Comissão de Legislação Participativa (CLP), criada em 2001, assumiu o
formato institucional de uma comissão permanente21 na estrutura do processo legislativo, com
a principal função de receber sugestões legislativas de organizações civis (Coelho, 2013). Seu
funcionamento é similar as demais comissões permanentes. Depois de recebida a sugestão
legislativa, a presidência da comissão indica um relator (a) para elaborar um parecer sobre a
sugestão apresentada. O parecer é discutido e votado pelo plenário da comissão. Caso o
relator apresente parecer favorável, a sugestão passa a tramitar como proposição legislativa da
CLP, com indicação da entidade que a propôs.
Como qualquer entidade ou associação legalmente registrada pode apresentar
sugestões de lei à CLP, seu mecanismo de funcionamento, aparentemente, reduziria a
burocracia criada pela iniciativa popular de lei com a coleta de assinaturas. No entanto, se por
um lado a CLP tem real capacidade de incluir as sugestões legislativas no processo
legislativo, estes projetos não estão livres das dificuldades de ordem política (decisão do
colégio de líderes sobre as propostas que devem ser priorizadas) e regimentais (deliberação
em Plenário), que remetem a uma problemática maior sobre a relação entre Executivo e
Legislativo (Coelho, 2013).
Analisando os resultados da CLP entre 2001 e 2009, Lin (2010) conclui que
somente uma sugestão legislativa foi transformada em norma jurídica nesse período. Trata-se
de uma sugestão de lei de autoria da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Para o
pesquisador, em comparação com outras comissões permanentes da Câmara dos Deputados, a
CLP é desprestigiada, “o que prejudica o andamento dos seus trabalhos, com menos reuniões
e menos proposições apresentadas” (Lin, 2010, p. 141). Sobre os repertórios utilizados pelos
atores sociais, para além da possibilidade do envio da sugestão legislativa, o pesquisador
verifica que a CLP não trouxe muitas melhoras. Não há “registros de reuniões e foros no
legislativo com o intuito de discutir e aperfeiçoar as sugestões legislativas” (Ibidem, p. 47).
21
Conforme disposto no art. 22, I do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), as comissões
permanentes são as de caráter técnico-legislativo ou especializado integrantes da estrutura institucional da Casa,
coparticipes e agentes do processo legiferante, que têm por finalidade apreciar os assuntos ou proposições
submetidos ao seu exame e sobre eles deliberar, assim como exercer o acompanhamento dos planos e programas
governamentais e a fiscalização orçamentária da União, no âmbito dos respectivos campos temáticos e áreas de
atuação.
34
As entidades não conseguem exercer pressão para influenciar, minimamente, o processo
legislativo ao longo da tramitação de seus projetos e, portanto, os parlamentares não atuam de
forma ativa com relação a essas proposições.
Dowbor (2012) analisou a trajetória do movimento sanitário brasileiro, nos
últimos trinta anos. Trata-se do movimento que, desde os anos 1970, luta pelo acesso
universal à saúde no Brasil. Seu estudo evidencia que, no contexto democrático, uma das
modalidades de repertório mobilizada por esses atores foi o lobby parlamentar. Um exemplo
dessa atuação ocorreu, ao longo da Assembleia Constituinte, através do encaminhamento de
emendas populares, mas também da pressão exercida junto aos deputados por meio de bases
estaduais de mobilização no Congresso. Ao final, o novo sistema de saúde, incorporado na
Constituição, alinhou-se aos “principais termos do prognóstico do movimento que estavam
expressos nos seus manifestos, cartas públicas e documentos de alta circulação: como direito
do cidadão, como dever do Estado” (Dowbor, 2012, p. 165).
Abers, Serafim e Tatagiba (2014) realizaram uma pesquisa sobre a interação dos
movimentos sociais com o Estado, no governo Lula, em três setores de políticas diferentes
(política urbana, desenvolvimento agrário e segurança pública). Para explicar como se deu
essa interação em cada política pública, as pesquisadoras analisaram os repertórios de
interação Estado-sociedade civil. Dentre os casos analisados, um dos repertórios utilizados
pelos movimentos foi a política de proximidade. Essa estratégia, também chamada de lobby,
ocorre nos poderes Executivo e Legislativo. Trata-se de uma forma de interação que funciona
através de contatos pessoais e que se amplia quando militantes assumem posições no Estado,
possibilitando aos movimentos um acesso facilitado aos tomadores de decisão. Entretanto, as
razões pelas quais os ativistas têm acesso direto às autoridades públicas “podem variar
substancialmente, envolvendo laços pessoais ou até o status da organização a qual pertencem”
(Abers, Serafim, Tatagiba, 2014, p.333).
Nos casos estudados, foram reconhecidos elementos da política da proximidade
ou lobby na atuação dos movimentos urbanos, desde a Assembleia Constituinte. Nos anos
1990, esses movimentos se engajaram na aprovação de leis como o Fundo Nacional de
Habitação Popular e o Estatuto da Cidade. Desse modo, as práticas de lobby se tornaram parte
importante do repertório de interação desse movimento com o Estado, juntamente com outras
formas de atuação, como as rotinas de protesto, ocupação de cargos na burocracia e a
participação institucionalizada.
Apesar da política de proximidade ou lobby ser parte do repertório mobilizado
pelos movimentos, estudos sobre a relação entre movimentos sociais e o Legislativo são raros
35
no Brasil (Abers, Serafim e Tatagiba, 2014). Notadamente, em vários setores de políticas
públicas e em diferentes momentos históricos, movimentos sociais atuaram junto a partidos
políticos para que leis ou artigos importantes fossem aprovados. Para as autoras, a ausência de
estudos sobre esses processos talvez se explique pelo fato de que essas práticas e repertórios
seriam percebidas pelos pesquisadores como um tipo menos nobre de política.
Carvalho e Taglialegna (2006) analisaram a atuação dos grupos de pressão, ao
longo da tramitação do Projeto de Lei de Biossegurança (PL 2.401/2003), encaminhado ao
Congresso pelo Executivo. Os principais grupos envolvidos na discussão do projeto eram: os
ruralistas, as empresas de biotecnologia e as organizações ambientalistas. Dentre outras
questões abordadas, os grupos se dividiam entre os que eram a favor ou contra a liberação do
plantio e a comercialização de alimentos transgênicos. Esses embates se davam também
dentro do próprio Executivo, cujas posições conflitantes dividiam os Ministérios do Meio
Ambiente e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Faria, 2003 apud
Carvalho e Taglialegna, 2006). Dessa forma, tanto os grupos de pressão favoráveis aos
transgênicos, quanto os contrários, passaram a contar com o apoio governamental junto ao
Congresso. Os grupos favoráveis, representados pelos ruralistas e pelas empresas de
biotecnologia, eram apoiados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Os
grupos contrários, representados pelas organizações ambientalistas, trabalhavam ao lado dos
representantes do Ministério do Meio Ambiente.
Quando o projeto chega ao Congresso, ele recebe o apoio das organizações
ambientalistas e a desaprovação de grupos do setor de biotecnologia. Ele passa, então, a
tramitar numa Comissão Especial22. A partir daí, uma série de repertórios são utilizados pelos
grupos para influenciar o processo decisório. No caso dos grupos ambientalistas, isso incluiu,
principalmente, duas estratégias. A primeira trata da pressão, para aprovação do requerimento
de urgência23 sobre o regime de tramitação do projeto. Isso porque, ainda que o relator do
projeto fosse favorável aos ambientalistas, a comissão em que estava sendo analisada a
proposição era composta, em sua maioria, por ruralistas. Desse modo, com a aprovação da
urgência, o parecer do relator iria diretamente ao Plenário, sem a necessidade da votação na
Comissão, onde as chances de derrota para a bancada ruralista eram maiores. Outro recurso
utilizado foi a sugestão de emendas. As organizações enviavam as propostas de emendas aos
22
A instalação de Comissões Especiais na Câmara dos Deputados é prevista pelo art. 34 do Regimento Interno
da Casa.
23 O Regimento Interno da Câmara dos Deputados determina que, concedida a urgência, o projeto pode ser
incluído automaticamente na ordem do dia, podendo ser deliberado e votado imediatamente (RICD, Art. 155).
Esse artifício permite a retirada do projeto das comissões, sem que elas tenham deliberado sobre a matéria.
36
parlamentares da bancada ambientalista e aos deputados do Partido dos Trabalhadores (PT),
ligados à Ministra do Meio Ambiente. Esses parlamentares assumiam a autoria das emendas e
as apresentavam para tramitação. Ao final, ainda que o grupo ambientalista tenha mobilizado
diversos repertórios para influenciar a tramitação do projeto, eles não foram tão eficientes
quanto seus opositores. As entidades ruralistas e as empresas de biotecnologia se uniram e
suas estratégias se revelaram mais bem-sucedidas. Essa eficiência pode ser atribuída a alguns
fatores, como, por exemplo, o poderio econômico e político das suas organizações.
Em termos do resultado da atuação dos grupos, no texto final, a nova Lei de
Biossegurança mostra que os grupos de pressão, favoráveis aos transgênicos, tiveram a maior
parte de suas reivindicações atendidas. O estudo comprovaria a teoria de Olson (1999 apud
Carvalho e Taglialegna, 2006), segundo a qual os grupos que defendem interesses próprios de
segmentos específicos têm maior chance de êxito do que os que defendem setores amplos da
sociedade.
Pereira, Vasselai e Silva (2012) analisaram o percurso legislativo do novo Código
Florestal, como um estudo de caso interessante, para melhor compreender a relação
Executivo-Legislativo no Brasil. Trata-se de um projeto de autoria do Executivo, em que se
verifica o papel ativo do Legislativo ao longo da sua tramitação. No âmbito da Câmara dos
Deputados, o projeto tramitou em uma Comissão Especial24 e nela estavam representados os
interesses das arenas ambientalistas e ruralistas. Ao longo da tramitação do projeto, ocorreram
diversas audiências públicas e a participação dos representantes do movimento ambientalista
foi solicitada pelos parlamentares defensores dessa causa. A função desempenhada pelos
movimentos, enquanto parte das comunidades de políticas (policy communities)25, é de levar
suas ideias a esses espaços na tentativa de sensibilizar seus interlocutores. Com base nas
reuniões e audiências públicas, os parlamentares, assessores e representantes de cada setor
trabalharam na difusão e defesa de suas propostas. De acordo com o relator da matéria, a
realização das audiências públicas “foi um dos principais meios para aquisição de
conhecimento dos problemas e dos interesses envolvidos no assunto” (Pereira, 2013, p.73).
Ao final, os autores (Pereira, Vasselai e Silva, 2012) verificaram que a supremacia da bancada
ruralista, na formação da Comissão Especial, foi um fator determinante para os trabalhos do
órgão. A coalizão ruralista se apropriou dos mecanismos de propagação de suas propostas,
através das audiências públicas e reuniões externas, subsidiando o parecer do relator do
24
Os autores explicam que o projeto tramitou em Comissão Especial por se tratar de proposição que versa sobre
matéria de competência de mais de três Comissões Permanentes, conforme disposto no art. 34, II do Regimento
Interno da Casa.
25
Trata-se de conceito formulado por John Kingdon (2003 apud Pereira, Vasselai e Silva, 2012).
37
projeto, de acordo com suas demandas e pontos de vista. Por outro lado, a coalizão
ambientalista, ainda que representada no processo, não obteve mobilização suficiente para
defender suas propostas da mesma forma.
Na área de estudos legislativos, Santos (2014) apontou que, com poucas exceções,
sabe-se quase nada sobre que grupos de interesse atuam no Congresso Nacional, quais
estratégias utilizam, qual seu nível de influência no processo decisório, entre outras questões
não menos relevantes. Para tentar responder à primeira dessas questões, o autor apresenta
uma descrição dos grupos de interesse que atuam na Câmara dos Deputados, numa série
histórica de 1983 a 2012. Sua evidência empírica são os dados recolhidos do cadastro 26 de
grupos de interesse e assessores parlamentares, mantido pela Primeira Secretaria daquela casa
legislativa. Sobre os achados com relação aos movimentos sociais, o autor aponta que
a série mostra uma presença mínima dos movimentos sociais cadastrados na Câmara
dos Deputados, sugerindo que não vem evoluindo a participação sistemática desses
grupos, pelo menos no que diz respeito à sua atuação no Congresso Nacional.
(Santos, 2014, p. 26)
Para interpretar esses dados, o autor lança mão de três hipóteses. A primeira
aponta que, para esses grupos, não seria vantajoso o cadastro como grupo de interesse na
Câmara dos Deputados, por se tratar de uma atuação esporádica. A segunda indica que,
levando em conta os escassos recursos financeiros detidos pelos movimentos sociais, em
oposição aos altos custos que a atuação de lobby demanda, não haveria condições objetivas
para que essas organizações atuassem dessa forma. A última hipótese seria a de que os
movimentos apostam na mobilização coletiva como estratégia dominante, optando por
mobilizações e atos políticos, diferentes das ações propriamente de lobby. Em resumo, o autor
conclui que “as estratégias de atuação desses grupos no parlamento carecem de melhores
explicações e devem ser foco de estudos mais aprofundados” (Idem, ibidem).
Em síntese, os casos empíricos aqui apresentados, nos apontam algumas
estratégias e repertórios utilizados pelos movimentos sociais em sua atuação no Legislativo
federal. Pelo menos, desde a Constituinte, movimentos sociais têm atuado no Legislativo
federal com o objetivo de levar suas demandas ao Congresso. Nesse momento, a atuação dos
atores sociais ocorria, principalmente, através das emendas populares. Outros repertórios
26
Santos (2014) pondera que o uso dos dados do cadastro da Primeira Secretaria inspira cuidados. Como o
cadastro não é obrigatório, não há razão para acreditar que ele retrate o número exato de grupos de interesses que
atuam na Câmara dos Deputados. Contudo, embora não seja obrigatório, assessores parlamentares e lobistas
afirmam que há vantagens em se cadastrar. Um survey realizado com os grupos de interesse (parte da pesquisa
do autor) mostra que 89,7% dos respondentes afirmam haver vantagens significativas em se cadastrar. Assim,
ainda que ofereça uma visão parcial, o uso dos dados se justifica. Já a frequência bianual estabelecida para o
recadastramento permite uma visão da evolução do cadastro, numa longa série histórica.
38
mobilizados pelos movimentos, no período, incluem: lobby nos corredores e plenário do
congresso, atos de coleta de assinaturas, reuniões com constituintes, apresentação das
emendas populares na comissão de sistematização, manifestações/comícios, etc.
Com a criação dos mecanismos de participação popular no Legislativo, previstos
tanto na Constituição Federal, quanto no Regimento Interno das Casas Legislativas, os
movimentos são reconhecidos como atores que também atuam através desses dispositivos,
buscando efetivar suas reivindicações junto ao Estado.
Com relação à iniciativa popular de lei, prevista na Constituição Federal, o
primeiro projeto apresentado ao Congresso, através desse mecanismo, foi uma proposta
oriunda dos movimentos sociais ligados à questão da moradia urbana. Os movimentos
conseguiram coletar as assinaturas necessárias, revelando sua capacidade de mobilização, e
por consequência, colocaram na agenda o tema da habitação popular como uma questão
nacional. No entanto, essas iniciativas precisaram contar com o apoio de atores políticos e a
força do Executivo para se transformarem em políticas públicas.
No âmbito da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados,
novamente, os movimentos marcaram presença através do envio de sugestões legislativas. Na
prática, contudo, essa iniciativa também se mostrou morosa e dependente da vontade política
para ser bem-sucedida.
Para além das formas de participação previstas na Constituição Federal e nos
Regimentos Internos das Casas Legislativas, os movimentos têm atuado também pelas vias
convencionais. Ao optar por esse caminho, eles fazem uso dos mesmos repertórios
disponíveis a qualquer ator interessado em participar do jogo legislativo, seja ele
representante de movimentos sociais ou do setor privado, por exemplo.
Por essa via, encontramos atores sociais mobilizando os seguintes repertórios: uso
de contatos pessoais para acessar as autoridades públicas; sugestão de emendas aos
parlamentares; pressão para mudança no regime de tramitação do projeto (através do
requerimento de urgência); apresentação de subsídios, que sustentam seus posicionamentos,
para os relatores e membros das Comissões (através da participação em audiências públicas).
Para Carvalho e Taglialegna (2006), existem no processo legislativo os canais de
acesso formais e informais de participação no Legislativo. Os canais formais seriam, por
exemplo, a participação em audiências públicas, promovidas pelas Comissões do Congresso.
Já os canais informais estão relacionados ao contato direto com os parlamentares, a sugestão
de emendas e o trabalho de lobby, exercido junto aos relatores. As relações pessoais com
parlamentares permitem uma participação mais direta no processo legislativo. Levando em
39
conta os trabalhos apresentados, consideramos que os movimentos parecem se utilizar dos
dois tipos de canais para atuar na arena legislativa.
Em suma, a exposição desses trabalhos não pretendeu ser um levantamento
exaustivo sobre a bibliografia que trata da atuação dos movimentos sociais no Legislativo
federal. Considerando que estudos sobre a relação entre movimentos sociais e o Legislativo
são raros no Brasil (Abers, Serafim e Tatagiba, 2014), a literatura que pretende se aprofundar
nessa linha de pesquisa terá que incorporar o conhecimento já produzido, nos estudos de caso.
Essas pesquisas indicam que os movimentos sociais estão ativos e atuantes na arena
legislativa.
No tópico seguinte, observaremos os repertórios mobilizados pelo movimento
feminista para interagir com o Legislativo, desde a primeira onda feminista (Matos, 2014) até
os anos 2000. Consideramos que recontar essa trajetória contribuirá para um melhor
entendimento dos próprios repertórios, mobilizados pelo consórcio, no caso da Lei Maria da
Penha.
1.2 Movimento feminista e o Legislativo Federal
Nessa segunda parte do capítulo, relacionaremos a literatura existente sobre a
atuação do movimento feminista no Legislativo federal, desde a primeira onda feminista
(Matos, 2014) até os anos 2000. O objetivo será rastrear de que forma esse movimento atuou
no Legislativo em cada contexto. A recuperação desse percurso histórico pretende responder à
questão: Que repertórios de interação Estado-sociedade se formaram historicamente entre o
movimento feminista e o Legislativo federal? Embora esse levantamento histórico não
pretenda dar conta de toda produção existente sobre a temática, ao observar a forma como o
movimento feminista atuou no Legislativo, poderemos colocar em perspectiva os achados
empíricos que apresentaremos no capítulo seguinte.
1.2.1
O feminismo da primeira onda
O período que se estende da virada do século XIX para o século XX até 1932 é
chamado de “primórdios do movimento” (Pinto, 2003) ou de “primeira onda feminista”
(Matos, 2014). No âmbito da relação do movimento com o Estado, esse período caracteriza-se
pela luta por incorporação de direitos, com destaque para o sufragismo (Matos, 2014).
40
Uma pesquisadora de referência sobre esse período é Heleieth Saffioti, que produz
o trabalho inaugural e fundador sobre a mulher quando apresenta sua tese de livre docência,
em 1967, intitulada A mulher na sociedade de classes27 (Alves e Pitanguy, 1981; Pinto, 2003).
Na segunda parte de sua tese, Saffioti (2013) expõe, além de sua pesquisa empírica e da
discussão subjacente a ela, um histórico do movimento feminista brasileiro que nos interessa
destacar aqui, principalmente quando ela afirma que “o movimento feminista brasileiro
induziu à elaboração de uma legislação não reclamada por extensas áreas da população
feminina” (Saffioti, 2013, p. 357). Nesse caso, a legislação mencionada é aquela que permitiu
o voto feminino e cujo percurso relataremos a seguir.
Dentre as feministas brasileiras que lutaram pelo sufrágio feminino, Bertha Lutz28
(1894-1976) se destaca pela fundação, em 1919, da Liga pela Emancipação Intelectual da
Mulher, substituída, em 1922, pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino29. Bertha
teve contato com o movimento feminista inglês e americano. Fez seus estudos universitários
na França e, mais tarde, se formou em Direito, no Brasil. Em 1922 foi delegada oficial do
Brasil, na Conferência Pan-americana de Baltimore, mantendo contato com a feminista norteamericana Carrie Chapman Catt30.
Ao retornar ao país, fundou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino
(FBPF), que descrevia suas finalidades em seu estatuto:
1. Promover a educação da mulher e elevar o nível da instrução feminina;
2. Proteger as mães e a infância;
3. Obter garantias legislativas e práticas para o trabalho feminino;
4. Auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-la na escolha de uma boa
profissão;
27
Ao investigar os estreitos laços que unem a opressão feminina e o modo de produção capitalista, a autora
defende a tese de que o desenvolvimento do capitalismo não significou um avanço fundamental nas condições de
vida das mulheres. Seu trabalho foi um marco por uma série de razões, dentre elas, por ter trazido o tema da
opressão da mulher para dentro do debate marxista, que até então o relegava.
28 Importante ressaltar que, quando no final de 1918, Lutz manifestou pela primeira vez, em público, suas ideias
feministas, a questão do sufrágio já havia sido defendida, inclusive de forma organizada. Embora ela seja, talvez,
a mais conhecida voz, que lutou pela causa, antes dela houveram Josephina Álvares de Azevedo, Dra. Isabel de
Mattos Dillon, as irmãs Rabello, Dra. Myrthes e a Professora Leolinda Daltro. Alves (1980), em seu estudo
sobre o movimento sufragista brasileiro, dedica um tópico a elas, “As Pioneiras”, com destaque para Professora
Leolinda. Leolinda funda, em 1910, o Partido Republicano Feminino, com o objetivo de ressuscitar, no
Congresso, o debate sobre o voto, que desde a Constituinte de 1891, havia sido esquecido. Quando um projeto de
lei instituindo o sufrágio feminino é apresentado ao Congresso, Leolinda e um grupo grande de mulheres,
comparecem para assistir à votação inaugurando “a técnica de pressão política que seria utilizada pelo
movimento sufragista brasileiro” (Alves, 1980, p.96). O projeto apresentado, naquele momento, não chegou a ser
aprovado pelo Congresso.
29
No ano de sua fundação, a entidade tinha 170 mulheres filiadas. Desse total, 70% declaravam exercer alguma
profissão, número que deveria ser maior uma vez que não era exigência mencionar essa informação. (Hahner,
2003).
30
Segundo Hahner (2003), Catt foi presidente da National American Woman Suffrage Association (NAWSA).
Depois de sua exoneração desta organização, e graças ao papel que assumiu, na crescente força sufragista
internacional, tornou-se presidente da International Woman Suffrage Alliance (IWSA). Catt teve papel
fundamental na escrita do Estatuto da Federação, como relata Alves (1980).
41
5. Estimular o espírito de sociabilidade e de cooperação entre as mulheres e
interessa-las pelas questões sociais e de alcance público;
6. Assegurar à mulher os direitos políticos que a nossa Constituição lhe confere e
prepara-la para o exercício inteligente desses direitos;
7. Estreitar os laços de amizade com os demais países americanos, a fim de garantir
a manutenção perpétua da Paz e da Justiça no hemisfério Ocidental (Saffioti, 2013,
p.359)
Saffioti (2013) relata que a questão feminina do trabalho era uma das mais
constantes preocupações do movimento feminista brasileiro, mas, de acordo com o espírito da
época, o item 6 previsto no estatuto da Federação tinha importância primordial. Isso porque os
direitos políticos eram considerados básicos para que a mulher conquistasse qualquer garantia
baseada na lei, principalmente considerando que prevalecia, no início dos anos 1920, a
opinião de que o sufrágio feminino era inconstitucional no Brasil.
Sobre os repertórios utilizados pela FBPF, Hahner (2003) destaca o uso da
imprensa e da rede de contatos pessoais dentro dos círculos do governo. A autora cita as
frequentes entrevistas, dadas pelas líderes sufragistas; telegramas com elogios aos políticos,
que assumissem posições públicas favoráveis ao voto feminino; um programa de rádio criado
pela organização; fóruns públicos de discussão; manifestos; petições, etc. Na fala de Carmem
Portinho, uma integrante da Federação, as sufragistas cultas agiam junto aos parlamentares e à
imprensa “buscando assim catequizar os deputados e senadores” (Hahner, 2003, p.306). Alves
(1980) atribui grande importância à rede de contatos sociais com políticos, uma vez que a
maioria das militantes da Federação era de classe média ou alta e tinham acesso aos políticos.
Havia também a pressão sobre o Congresso. Elas compareciam às discussões, conversavam e
argumentavam com os parlamentares. Alves e Pitanguy (1981) mencionam também o recurso
ao lobbying, explicado como a pressão realizada sobre os membros do Congresso, além da
divulgação das atividades da Federação pela imprensa, com o intuito de mobilizar a opinião
pública. Para exemplificar como se dava na prática esses repertórios, vamos recuperar alguns
episódios e expô-los abaixo.
Logo após a sua fundação, a Federação organizou a primeira Conferência
Brasileira de Mulheres, que teve grande repercussão na imprensa. Foram convidados políticos
notáveis e a feminista norte-americana Carrie Chapman Catt. O senador Lauro Müller,
convidado a encerrar a conferência, concluiu com este conselho:
Minhas sras., os homens são como carneiros. Um vai na frente, os outros vão atrás.
As sras. têm que furar a cerca. Procurar um governador de Estado que fure a cerca,
que dê o voto às mulheres no Estado dele, e atrás disso vão todos os Estados da
Federação (Alves, 1980, p. 114-5).
42
A conferência teve a função de trazer o debate do voto feminino a público, através
de discussões e notícias na imprensa. Os jornais divulgaram resumos dos discursos, notas
sobre a programação e o tema foi tratado com seriedade. Bertha Lutz e outras militantes
organizaram conferências, mantendo o assunto em discussão, sempre preocupadas em
informar e convencer a opinião pública e os membros do Congresso, de quem dependiam. O
objetivo era trazer os projetos sobre a temática novamente ao plenário para discussão.
Tendo movimentado a opinião pública, a Federação conquistou a simpatia de
alguns parlamentares. Dentre eles, o deputado Juvenal Lamartine, que já era aliado da causa
sufragista desde a época de atuação da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher.
Em 1927, o já então senador Lamartine e, posteriormente, eleito presidente do
estado do Rio Grande do Norte, trouxe um elemento importante para a luta pelo sufrágio
feminino. Ele criou um precedente legislativo31 ao incluir nas leis do seu Estado um
dispositivo que permitiu as mulheres que votassem e fossem votadas. Dessa forma, nas
eleições realizadas em 1928 para senador do Estado, na vaga que Lamartine antigamente
representava, foi eleito um candidato que obteve votos femininos. Através desse caso,
mulheres de vários outros estados passaram a requerer e obter alistamento eleitoral. Contudo,
mesmo assim, o entendimento da Comissão de Poderes do Senado considerou os votos das
mulheres como nulos. Nesse contexto e frente à resposta negativa da Comissão do Senado, a
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) produziu o Manifesto Feminista à
nação, no qual eram declarados os direitos da mulher.
Em paralelo a esses desdobramentos, Alves (1980) relata uma tentativa fracassada
de discutir um projeto de lei, que já havia no Congresso, sobre o tema do sufrágio. O
repertório da FBPF consistiu na apresentação de argumentos ao parlamentar responsável pelo
parecer do projeto na Comissão de Justiça do Senado. O parecer trazia um longo e detalhado
histórico das conquistas políticas da mulher e o senador Aristides Rocha era informado pelas
sufragistas “quanto aos progressos havidos no exterior, a fim de fundamentar suas
exposições” (Ibidem, p. 118). O senador redigiu parecer favorável “em discurso assessorado
pela FBPF, que também estava presente à discussão” (Ibidem, p. 147). As ativistas do
movimento encaminharam ao Senado uma petição assinada por duas mil mulheres, mas a
tentativa não foi bem-sucedida.
31
Segundo depoimento pessoal de Bertha Lutz a Alves (1980), Lamartine havia dito a Lutz que, se ele chegasse
a presidência do seu estado, ele furaria a cerca - em menção ao conselho dado pelo senador Lauro Müller, na
primeira Conferência Brasileira de Mulheres, organizada pela Federação.
43
No entanto, em razão do precedente legislativo aberto por Lamartine, quando
sobreveio a Revolução de 1930, já havia eleitoras em 10 estados. Isso porque, mesmo com a
invalidação dos votos femininos pelo Senado, referentes à eleição no estado do Rio Grande do
Norte, outras mulheres conseguiram votar e “alguns juízes lhes permitiam inscrever seus
nomes nas listas eleitorais, enquanto outros ainda as recusavam” (Hahner, 2003, p. 327).
Por fim, a campanha em prol das reformas eleitorais que buscavam eliminar as
distinções de sexo só seria acolhida pela Revolução de 1930 (Saffioti, 2013). Alves (1980)
relata que o secretário de Getúlio Vargas era primo de Carmen Portinho, integrante da FBPF.
Por isso, quando Vargas nomeou um jurista não favorável ao sufrágio feminino, para conduzir
a comissão da reforma eleitoral, as sufragistas acionaram sua rede de contatos para tentar
reverter a situação:
Então nós fomos reclamar. O secretário de Getúlio era primo da Carmen Portinho.
Então nós tínhamos um meio de agir junto a Getúlio. Mandamos dizer a ele que não
queríamos o voto qualificado, queríamos o voto geral. Ele foi apresentado à Carmen
pelo Gregório Porto, primo dela. Ele disse: Dra. Carmen, eu sou a favor das
mulheres porque elas fizeram metade da Revolução! Ela disse: É por isso que o Sr.
só quer metade do voto? Como, metade do voto? Ela disse: Pois é, quer dar voto
qualificado, para certas classes, as outras não. Nós não queremos assim. Ou tudo ou
nada! Ele disse: Está bem, eu falo com a Comissão para dar tudo. (Alves, 1980, p.
125)
Alves (1980) considera que esse diálogo resume bem os métodos da campanha
pelo sufrágio. Uma vez que a maioria das militantes era de classe média ou alta, elas tinham
acesso direto aos políticos através de seus contatos sociais. Em 1932 foi promulgado o Código
Eleitoral, aprovando o voto secreto e o voto feminino. Saffioti (2013) ressalta que, ainda
assim, a questão não estaria resolvida enquanto a Constituição não incorporasse o princípio do
sufrágio universal. Esse fato se concretizou na Constituição de 1934, em seu artigo 108, cujo
anteprojeto foi elaborado com a colaboração de duas mulheres: Dra. Carlota Queiroz e Bertha
Lutz32, que foi nomeada para representar o movimento feminista. Lutz passou a integrar a
Câmara Legislativa Federal em 1936 e lá ficou até 1937, com o fechamento forçado do
Congresso e a implantação do Estado Novo. Em 1937, a FBPF já estava bem esvaziada e
mesmo depois da redemocratização, em 1945, a organização “não teve mais expressão no
cenário brasileiro” (Pinto, 2003, p. 28).
32
Aqui temos uma divergência com relação a participação de Carlota Queiroz, pois para Alves (1980) as duas
mulheres participantes da comissão organizadora do anteprojeto constitucional foram Bertha Lutz e Nathércia
Silveira.
44
Na visão de Pinto (2003), essa primeira fase do feminismo brasileiro teria duas
tendências: o feminismo bem-comportado e o feminismo mal-comportado33. O feminismo
bem-comportado teve como foco o movimento sufragista, liderado por Bertha Lutz,
sinalizando o caráter conservador desse movimento que “agia no limite da pressão intraclasse,
não buscando agregar nenhum tipo de tema que pudesse pôr em xeque as bases da
organização das relações patriarcais” (Ibidem, p. 26). Segundo a autora, o feminismo bemcomportado não afrontava os poderes, mas buscava apoio neles.
As três estudiosas (Alves, 1980; Hahner, 2003; Saffioti, 2013) parecem
compartilhar dessa visão de Pinto (2003) sobre o movimento feminista inaugurado por Lutz,
com a criação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino. Alves (1980) identifica no
movimento à opção bem-comportada, que se limita às reivindicações formais do liberalismo
burguês, deixando de lado as críticas contra a cultura patriarcal e as relações de poder dentro
da família. Ademais, para ela, o voto feminino foi concedido quando foi conveniente à classe
dominante.
Segundo Hahner (2003), as líderes do movimento buscavam unir-se ao sistema,
como participantes iguais, para melhorá-lo e não para subvertê-lo. Saffioti (2013) argumenta
que as feministas brasileiras vinculadas àquele movimento não pareciam ter se detido na
análise da realidade socioeconômica nacional e no exame aprofundado da ordem social
capitalista. A obtenção do direito ao voto feminino no Brasil, dez anos antes que na França,
não levou a mulher a participar significativamente da esfera política, o que seria um fenômeno
esperado numa sociedade de classes.
No entanto, as autoras ponderam também que, ainda que o movimento sufragista
não tenha sido um movimento de massas, teve o mérito de se caracterizar por sua “excelente
organização” (Hahner, 2003, p.333). Nenhum grupo se aproximou da FBPF, em termos de
tamanho ou amplitude da rede de contatos pessoais.
Saffioti (2013) diz não ter dúvidas sobre a força social construtiva exercida pelo
movimento feminista brasileiro, sobretudo o liderado por Lutz. O movimento inoculou em
boa parcela das mulheres a aspiração de libertar-se e de emancipar-se através do trabalho.
Esse processo foi amadurecendo à medida que, efetivamente, os elementos femininos iam
penetrando em áreas até então reservadas, exclusivamente, aos homens. Esse movimento
chama a atenção também por ter se unido para enfrentar uma luta política durante mais de
uma década. Ele foi pacientemente influenciando a opinião pública e enfrentando um
33
Não exploraremos essa tendência nesse trabalho, pois não identificamos aqui nenhuma atuação em relação ao
poder legislativo.
45
obstáculo sutil e intangível - a imagem tradicional da mulher, mistificada por adjetivos que
escondiam sua condenação à passividade. Não por acaso, Alves (1980) observa que a
historiografia brasileira, quando se refere ao decreto eleitoral que permitiu o voto feminino,
ou à Constituição de 1934, geralmente silencia sobre o movimento fazendo crer que as
mulheres não teriam demonstrado qualquer interesse por este direito.
Com o golpe de 1937, decorre um longo período de refluxo do movimento
feminista que se estende até as primeiras manifestações dos anos 1970 (Pinto, 2003). No
entanto, isso não significa que durante esse intervalo não tenham havido manifestações de
mulheres. Contudo, esses movimentos não podem ser considerados feministas em sua
formação ou em seus propósitos, na medida em que as mulheres neles envolvidas não lutavam
pela mudança dos papéis a elas atribuídos pela sociedade. A mobilização das mulheres em
defesa dos seus direitos civis é retomada a partir da década de 1970, como discorreremos a
seguir.
1.2.2 Segunda Onda
O intervalo que se inicia em 1932 e se estende até as primeiras manifestações dos
anos 1970 é considerado como um período de refluxo do movimento feminista (Pinto, 2003).
Entre os anos 1970 até a metade da década de 1980 temos o período identificado como a
segunda onda do feminismo latino-americano (Alvarez 2000; 2014). Nesse momento, muitas
feministas defenderam a necessidade de se engajar plenamente “na luta geral por justiça e
contra os modelos de capitalismo selvagem implantados pelos militares, as elites políticas
civis, seus aliados imperialistas e da classe dominante durante as décadas de 60 e 70”
(Alvarez, 2000, p.386-7).
No Brasil, o golpe militar de 1964 inaugurou os longos anos de um regime
marcado pela cassação de direitos políticos, censura, prisões arbitrárias, desaparecimentos,
tortura e exílio (Pinto, 2003). Trata-se de um período (1964-1985) caracterizado por sua
durabilidade e mutabilidade (Cruz e Martins, 1983). O regime não permaneceu idêntico, ora
regredia na direção do Estado de exceção, ora progredia na direção oposta, mas sempre
conservando e ampliando o poder conquistado. Não iremos detalhar os marcos históricos
desse período, mas é necessário retomá-lo, sob o ponto de vista da construção teórica proposta
por Alvarez (1990), pois isso nos auxiliará a compreender a atuação futura do movimento
feminista, na arena legislativa.
46
Em termos macroestruturais, as consequências do “milagre econômico”34 (19691973) tiveram impacto significativo na vida das mulheres das classes populares e médias.
Para as primeiras, a desvalorização do salário mínimo e a consequente diminuição do poder
de compra, impulsionou-as na busca por soluções individuais e coletivas para atender as
necessidades imediatas de suas famílias. Como esposas, mães e educadoras da família e da
comunidade, as mulheres são as principais responsáveis pelas estratégias de sobrevivência
doméstica das classes populares, por isso elas foram diretamente atingidas pelos aumentos no
custo de vida e cortes nos gastos relacionados a políticas educacionais. Dessa forma, elas se
tornaram parte da força de trabalho para complementar a renda da família, defasada por conta
das perdas salariais, e começaram também a participar de movimentos de base em números
sem precedentes.
Nesse contexto, surgiram os Clubes de Mães35, associações de vizinhança
(Associações de Amigos de Bairros) e, posteriormente, as Comunidades Eclesiais de Base. À
medida que a Igreja Católica se voltou para os pobres, e posicionou-se contra o regime
militar, ela incentivou organizações nas comunidades junto àqueles que tinham sido
progressivamente marginalizados pelo regime pós-1964. As mulheres foram incentivadas a
participar dessas organizações,
porém a divisão sexual do trabalho político não foi necessariamente desafiada pela
Igreja do povo, de modo que associações femininas, geralmente chamadas de clubes
de mães, foram frequentemente criadas pelo novo clero militante,
predominantemente masculino. Embora os clubes de mães e as associações de
mulheres dos bairros não conscientizassem, necessariamente, as mulheres com
relação a sua classe, raça e gênero na sociedade brasileira, forneceram o contexto
organizativo para formação de uma articulação entre as mulheres das classes
populares (Alvarez, 1988, p.325).
Um dos resultados desse fenômeno foi a politização da maternidade
(“politicization of motherhood”) e esse fator não é levado em conta nas análises sobre a
intensa participação feminina nos movimentos populares (Alvarez, 1988; 1990). Os clubes de
mães proporcionaram um espaço para a sociabilidade entre as mulheres, retirando-as de seu
relativo isolamento dentro da esfera doméstica. Segundo Barsted (1994a), os clubes lutavam
por melhores condições de vida e suas reivindicações envolviam temas como transporte,
34
O período do chamado milagre econômico, que se estendeu de 1969 a 1973, promoveu crescimento
econômico e o produto interno bruto cresceu na média anual 11,2%, tendo seu pico em 1973, com uma variação
de 13%. Cresceu também o investimento de capital estrangeiro no país, com destaque para a indústria
automobilística. No entanto, o salário dos trabalhadores de baixa qualificação se desvalorizou e
consequentemente seu poder de compra diminuiu. Se em 1959, 65 horas de trabalho eram suficientes para
garantir a compra de uma cesta básica, em 1974 eram necessárias 137 horas de trabalho para adquirir a mesma
cesta. Em 1974, 30% dos brasileiros viviam em pobreza absoluta (Alvarez, 1990).
35
Singer (1982) aponta que uma grande parte das iniciativas que se originam nas Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) da periferia surgiu dos Clubes de Mães, mas eles são anteriores e independentes das CEBs.
47
educação, saneamento, saúde e habitação. Os clubes resgatavam “uma tradição presente nos
grupos de mulheres de décadas anteriores, como por exemplo o Movimento de Mulheres
Contra a Carestia” (Barsted, 1994a, p.41). Saffioti (1988) relata que os clubes mobilizaram
milhares de pessoas na luta por escolas e que a construção de algumas delas foi,
notavelmente, uma vitória destes grupos cujas participantes tinham consciência que sua
atuação produziu resultados positivos. Alvarez (1988) considera que esses grupos
proporcionaram a base organizativa e o referencial mobilizatório para vários movimentos
políticos que se expandiram em campanhas políticas a nível local e nacional. Dentre eles, o
Movimento Feminino pela Anistia, Movimento Custo de Vida e Movimento de Luta por
Creches nos anos 1970 e 1980.
É importante reconhecer que a Igreja Católica foi um dos poucos espaços que
permitiu uma articulação da resistência não armada no período militar (Soares, 1994). A
instituição incentivou, intencionalmente, a participação no ativismo comunitário e as
Comunidades Eclesiais de Base foram “absorvedoras de mulheres” (Saffioti, 1988, p. 162). A
partir do seu engajamento, as mulheres se redefiniram como legítimas atrizes públicas e
passaram a questionar os desequilíbrios de poder existentes em seus próprios casamentos,
suas famílias, suas comunidades e, até mesmo, suas paróquias. Contudo, mesmo sob a
influência da doutrina da Teologia da Libertação, prevalecia na Igreja a identificação
exclusiva da mulher com a maternidade e a família, pautada numa visão biológica e
essencialista da mulher. A hierarquia da Igreja e parte do clero progressista se mantinha hostil
a questões relacionadas ao divórcio, sexualidade, anticoncepcionais, etc.
As mulheres da classe média, por outro lado, foram beneficiárias do crescimento
econômico e do desenvolvimento do sistema capitalista, durante o final dos anos 1960 e o
início dos anos 1970. Elas tiveram acesso a oportunidades educacionais e profissionais como
nunca antes havia ocorrido. A expansão do emprego no setor estatal e o acesso à educação
profissional e universitária, nos primeiros anos do regime militar, resultaram na melhora das
condições e do status da mulher de classe média no Brasil. A sua inserção em espaços
previamente dominados por homens levou algumas delas a questionar sua própria condição
desigual. Assim, a desigualdade de gênero foi reconhecida por elas como um problema
político. Inseridas em novos contextos, as mulheres tiveram as possibilidades de
envolvimento no movimento estudantil aumentadas, assim como nas organizações
clandestinas e associações profissionais que desafiavam o governo autoritário nos anos 1960 e
1970.
48
A participação nesses grupos de oposição também colaborou para o surgimento de
articulações entre as mulheres de classe média. Mais tarde, essas articulações se mobilizariam
em torno de questões políticas específicas de gênero. Nesses grupos, as mulheres vivenciaram
o sexismo, em teoria e prática, o que contribuiu para o desenvolvimento de uma consciência
feminina entre muitas militantes feministas.
Em síntese, no plano macroestrutural, as mudanças econômicas e políticas
implementadas no período militar influenciaram indiretamente a politização do gênero,
definida como um processo gradual em que as questões anteriormente consideradas privadas
ou pessoais “são levantadas como questões políticas, para serem colocadas pelos partidos
políticos e pelo Estado” (Alvarez, 1988, p. 316). Entretanto, o impacto das mudanças
socioeconômicas produzidas pelo período militar na vida das mulheres, e as contradições que
elas vivenciaram nesse período, não se traduziriam, necessariamente, em reivindicações
políticas de gênero ou levariam a uma conscientização natural sobre a temática de gênero. Por
isso, as políticas sociais e econômicas implementadas pelo regime militar são variáveis
intervenientes em relação à mobilização das mulheres (Alvarez, 1990). Vale ressaltar que
essas variáveis foram sentidas de forma diferente entre as mulheres das classes populares e
médias, ou seja, elas vivenciaram a desigualdade de gênero de formas distintas em cada
contexto. Embora os contextos sejam diferentes, as mudanças macroestruturais que
caracterizaram o desenvolvimento brasileiro nesse período tiveram um impacto profundo
sobre os papéis das mulheres, em todas as classes sociais, e a politização foi uma experiência
comum vivida por todas elas.
Já as variáveis conjunturais, seriam aquelas que contribuíram, diretamente, para a
criação de uma estrutura mobilizadora sobre a qual os movimentos feminino e feminista36
foram formados, no final da década de 1970 e início de 1980 (Alvarez, 1990). Dentre as cinco
variáveis apontadas pela autora, destacamos a abertura política ou distensão pós-1974,
ocorrida durante o governo Geisel e a atuação das agências de desenvolvimento
internacionais, através do financiamento de projetos e da pressão internacional, em prol da
igualdade de gênero em diversos países, incluindo o Brasil.
O período 1974-1979 foi marcado por vários acontecimentos que não iremos
aprofundar aqui. Dentre eles, citamos a primeira crise internacional do petróleo e as grandes
greves de 1978 e 1979, que reuniram milhões de trabalhadores mobilizados pelo Sindicato
36
A diferenciação utilizada pela autora é baseada em Singer (1982) que considera as lutas contra a carestia ou
por escolas, creches, etc. assim como medidas específicas de proteção à mulher trabalhadora como
reivindicações femininas. Mas elas não são feministas na medida em que não colocam em questão a maneira
como a mulher é inserida no contexto social.
49
dos Metalúrgicos da região do ABC paulista. Nesse contexto, o governo Geisel inicia o
processo de abertura política proporcionando a estrutura de oportunidade política para que a
consciência nascente das mulheres pudesse dar lugar a um movimento social de ampla escala
(Alvarez 1988; 1990).
Em 1975, Geisel viu-se na obrigação de atender ao chamado das Nações Unidas
(ONU) para uma ação governamental visando a erradicação da desigualdade de gênero. A
ONU declarou 1975 como Ano Internacional das Mulheres e o Brasil, que vivia sob regime
militar e sob “uma férrea censura às manifestações públicas” (Barsted, 1994b, p.243) se
beneficiou dessa oportunidade para organizar atos públicos em defesa dos direitos das
mulheres, sem temer a repressão. Geisel permitiu que as mulheres organizassem encontros,
conferências e passeatas em comemoração ao Ano Internacional da Mulher. Essas
comemorações, ocorridas no Rio de Janeiro e em São Paulo, estimularam a criação de
entidades feministas autônomas e fizeram avançar o ativismo feminista em todo o Brasil
urbano, nos anos seguintes.
Dentre essas conferências, destaca-se a organização do evento intitulado
“Pesquisas sobre o papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira”. O evento foi
patrocinado pelo Centro de Informação da ONU, e esse apoio foi fundamental para o início do
debate público sobre a questão da mulher (Barsted, 1994b). O evento aconteceu no auditório
da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, entre 30 de junho a 6 de julho
de 1975. Dentre as organizadoras do evento estavam: Branca Moreira Alves, Leila Barsted37,
Sandra Boschi, Mariska Ribeiro e Jacqueline Pitanguy. A conferência debateu temas como
trabalho feminino, a imagem da mulher nos meios de comunicação, sua situação jurídica, etc.
(Pitanguy, 1985)
A narrativa fundadora sobre o ressurgimento do feminismo no Brasil, na década
de 1970, é caracterizado por histórias entrecruzadas e conflitivas. Porém, é importante dizer
que no trabalho de recuperação dessas narrativas38, realizado por Pedro (2006), muitas
entrevistadas relataram o evento ocorrido na Associação Brasileira de Imprensa como o
“verdadeiro fundador do feminismo brasileiro da Segunda Onda” (Pedro, 2006, p. 251).
37
Leila Barsted e Jacqueline Pitanguy fundaram em 1990 a organização não governamental Cepia (Cidadania,
Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), que foi uma das organizações que integrou o Consórcio de ONGs que
atuou no caso da Lei Maria da Penha.
38
Pedro (2006) esclarece que sua busca nesse trabalho não é pela verdadeira data brasileira do renascimento do
feminismo, mas sim pelas disputas que se constituíram em torno dessa história. As outras narrativas em disputa
são apresentadas ao longo do texto da autora. O que nos chama atenção aqui é que, justamente o evento que mais
se destaca como marco do ressurgimento do feminismo, na fala das entrevistadas, é aquele em que está
envolvida uma das mulheres que, mais tarde, estará engajada no consórcio que atuou no caso da Lei Maria da
Penha.
50
No começo dos anos 1980, Alvarez (1994) entrevistou algumas feministas. Elas
recordam o período 1975-1978 como um momento de um feminismo indefinido e, ao mesmo
tempo, confinado às categorias de análise marxista. A questão principal, naquela época, era
como articular as necessidades específicas das mulheres alinhadas às necessidades de uma
transformação social geral. Essa questão se resolveu, em boa parte, com a concentração das
feministas na luta geral. A herança da esquerda e o viés marxista ortodoxo influenciou a luta
feminista pelo viés de classe.
No entanto, na medida em que as feministas das classes médias começaram a
trabalhar de forma mais próxima das organizações populares, perceberam que as mulheres dos
movimentos de base não compartilhavam suas experiências apenas como moradoras das
periferias, mas também como esposas, mães e amantes. Quando tinham oportunidade, elas
compartilhavam os problemas que vivenciavam em seus casamentos, na sua vida sexual, seu
desejo de ter acesso a mais informações sobre o mundo para além de sua esfera doméstica, e
suas relações com a família e a comunidade. As feministas de classe média, inicialmente,
pensavam que esses temas eram um tabu entre as mulheres de classes populares.
Em síntese, no final dos anos 1970, o clima político foi se abrindo para as
demandas sociais. As feministas continuavam se opondo ao regime militar e à exploração
capitalista, mas passaram também a se concentrar nas lutas específicas, ou seja, nas questões
relacionadas aos direitos reprodutivos, à violência contra as mulheres e à sexualidade.
Nos anos 1980, as ideias feministas difundiram-se no cenário social do país e
houve significativa penetração do movimento em associações profissionais, partidos e
sindicatos. Essa década é marcada pelo fim do bipartidarismo e pelas eleições parlamentares.
Por isso, participar da política institucional foi a grande questão do movimento feminista, nos
anos 1980. É sobre isso que trataremos no próximo tópico.
1.2.3 Redemocratização
Com o processo de redemocratização avançando surgia uma nova divisão entre as
feministas: de um lado, as que lutavam pela institucionalização do movimento e por uma
aproximação da esfera estatal e, de outro, as autonomistas, que viam nessa aproximação um
sinal de cooptação (Pinto, 2003). O discurso da autonomia foi entendido de uma maneira
distinta por cada grupo, no interior do movimento, seja em relação aos partidos políticos, ao
Estado ou às organizações revolucionárias de esquerda. Entretanto, de forma geral, esse
discurso tende a apagar o fato de que “desde os primórdios dos anos 70, o movimento
51
constitui um campo discursivo de ação heterogêneo” (Alvarez, 2014, p. 21). Ou seja, desde
pelo menos a segunda onda do movimento feminista brasileiro coexistem, dentro dessa
denominação, visões de mundo heterogêneas articulando-se em torno de um campo comum.
Nesse sentido, considerando as diversas correntes e ideias que nortearam as
estratégias de ação nesse campo, destaca-se que uma parte do movimento feminista já tinha
uma atuação voltada para o Legislativo desde meados da década de 1970 (Barsted, 2007).
Sucessivos projetos foram apresentados ao Congresso para alterar leis que reforçavam a
desigualdade de gênero (Barsted, 1994a, 1994b; Barsted e Garcez, 1999).
No período entre 1975-1979, Pitanguy (1985) destaca a ação de grupos feministas
que encaminham ao Legislativo um projeto de modificação do Código Civil no tocante à
eliminação da figura do chefe de família atribuída ao homem, conforme estabelecido na
legislação vigente na época.
Entre 1979-1982, as feministas encaminharam ao Congresso um projeto de lei
sobre a descriminalização do aborto, bem como uma série de modificações propostas com
relação ao Código Civil. Em 1980, duas advogadas feministas, Florisa Verucci e Silvia
Pimentel39, elaboraram o anteprojeto de reforma do Código Civil brasileiro, cuja versão final
foi encaminhada ao Congresso Nacional. Este documento recebeu sugestões originadas de
uma ampla discussão realizada, em todo o país, durante cerca de um ano (Saffioti, 1988).
Na década de 1980 temos também a conquista de espaços no plano institucional,
por meio de Conselhos da Condição da Mulher e das Delegacias da Mulher. Tancredo Neves,
em Minas Gerais, ao ser eleito governador, cria o primeiro Conselho dos Direitos da Mulher.
Em seguida, Franco Montoro cria o Conselho da Condição Feminina de São Paulo, em 1983.
Em 1984, um grupo de feministas envolvidas, anteriormente, com a proposta de
criação do conselho paulista, organizam o seminário Mulher e Política com a participação de
deputadas federais, estaduais e vereadoras (Schumaher e Vargas, 1993). Uma das conclusões
do seminário é a necessidade de propor ao governo federal a criação de um órgão nacional de
defesa da mulher. A ideia é aprimorada no VII Encontro Nacional Feminista, ocorrido em
Belo Horizonte, com a proposta de criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
(CNDM).
A criação do CNDM ocorre em agosto de 1985, através de um projeto de lei. O
projeto trazia em seu enunciado que a finalidade básica do órgão era a formulação de
políticas, em âmbito nacional, com objetivo de eliminar a discriminação contra a mulher.
39 Silvia Pimentel integrou o consórcio de ONGs que atuou no caso da Lei Maria da Penha representando o
Cladem (Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher).
52
Segundo Schumaher e Vargas (1993), esse objetivo foi desdobrado nas seguintes ações:
formulação de diretrizes, elaboração de projetos de lei, assessoria ao poder executivo, emissão
de pareceres, acompanhamento da elaboração e execução de programas de governo e apoio ao
desenvolvimento de pesquisas sobre a condição da mulher.
A despeito da desconfiança das feministas em relação ao Estado, o CNDM traz
em seus objetivos, na sua estrutura e na composição de seus quadros, a marca das proposições
do movimento de mulheres (Schumaher e Vargas, 1993). Seus cargos foram ocupados, em
sua maioria, por mulheres que tiveram uma longa associação com grupos feministas e outras
organizações do movimento (Alvarez, 1994). O conselho era uma agência governamental,
com autonomia administrativa e financeira, que estava alocada no Ministério da Justiça, mas
respondia ao presidente da República. Para definir o perfil do CNDM, as pesquisadoras o
dividem em dois aspectos:
Um voltado para o Estado, comportado segundo os ditames de uma esperada
conduta governamental, provocada por razões óbvias de sobrevivência política, e
outro, oposto, nitidamente vinculado ao compromisso de servir como canal de
representação dos interesses do movimento de mulheres (Schumaher e Vargas,
1993, p. 358).
Em novembro de 1985, o CNDM lançou a campanha Mulher e Constituinte. Esta
campanha, cujo slogan era “Constituinte para valer tem de ter direitos da mulher”, nasceu
logo após a implantação do conselho e prosseguiu até outubro de 1988. A campanha foi
lançada em todas as capitais com o objetivo de que a sociedade enviasse ao CNDM suas
sugestões sobre o que deveria ser incluído na nova Constituição, em relação aos direitos da
mulher. Foram recebidas milhares de sugestões e, a partir desse material, foi feita uma
plataforma para a Assembleia Nacional Constituinte.
Nesse período, o CNDM realizou também um trabalho cotidiano de presença no
Congresso Nacional e de articulação com os movimentos de mulheres; conselhos estaduais e
municipais; mulheres filiadas a sindicatos, associações profissionais e universidades. Para
Pitanguy (2011), esse trabalho possibilitou a elaboração da Carta das mulheres brasileiras aos
constituintes. A presidente do CNDM relata como foi esse processo:
Essa carta adquiriu o seu formato final após sua apresentação e discussão em um
grande evento realizado no Congresso Nacional em 1986. Ela foi aprovada em
Plenário e entregue simultaneamente em março de 1987, por mim e por todas as
conselheiras, ao deputado Ulysses Guimarães, então presidente do Congresso
Nacional, em Brasília, e em todas as assembleias estaduais de todo o país, na mesma
hora, como um ato simbólico, marcando que se tratava de uma carta efetivamente
nacional. Ao mesmo tempo, iniciávamos nosso trabalho de advocacy dentro do
Congresso Nacional. Durante este processo, o conselho enviou mais de cem
propostas, entre emendas substitutivas e constitutivas, à Assembleia Constituinte.
Visitávamos diariamente o Congresso, conversávamos com os líderes dos partidos,
com deputados e senadores e com seus assessores. Organizações de mulheres as
53
mais diversas nos acompanhavam nestas peregrinações ao Congresso. A maior parte
das nossas reivindicações foi incluída na nova Constituição. (Pitanguy, 2011, p. 24)
O repertório utilizado pelo Conselho incluía, principalmente, o diálogo com as
lideranças parlamentares e seus assessores, além das articulações realizadas com a bancada
feminina do Congresso (Pitanguy, 2011). Graças à articulação do Conselho com diversos
atores sociais foi produzida a Carta das mulheres brasileiras aos constituintes. A partir dessa
carta, foram apresentadas propostas relativas aos diversos capítulos que estavam sendo
discutidos no Congresso e que deveriam ser incluídos na Constituição. As propostas eram
subsidiadas com argumentos sólidos e dados estatísticos, sempre que possível. Além de contar
com o apoio da maioria da bancada feminina do parlamento, o conselho utilizava a mídia,
para sensibilizar a opinião pública, através de campanhas veiculadas na televisão, jornais, etc.
Essa ação ficou conhecida como “Lobby do Batom”.
Nos primeiros anos do governo Sarney, o CNDM tornou-se a instância mais
importante para o desenvolvimento de uma política feminista baseada nos grupos de pressão
(Alvarez, 1994). Essa política se deu através da ação de lobby, juntamente com mobilizações
massivas organizadas pelo movimento de mulheres. Por meio dessa atuação conjunta foi
possível que muitas questões da agenda das mulheres fossem incluídas na nova Constituição.
Dentre elas, destacamos: a igualdade formal entre os sexos; a ampliação da licença
maternidade de 90 para 120 dias; a expansão dos direitos trabalhistas; a garantia do direito à
educação infantil para crianças de 0 a 6 anos e a inclusão do parágrafo 8º, no artigo 226, em
que o Estado se compromete a assegurar a assistência à família e a criar mecanismos para
coibir a violência no âmbito das relações familiares.
Posteriormente, no final dos anos 1980, a euforia reformista deu lugar a uma
ampla desilusão para as feministas que trabalhavam em instituições como os conselhos e as
delegacias. A possibilidade de promover os direitos das mulheres se inviabilizou dentro do
aparato estatal quando a abertura política para a temática de gênero se fechou, parcialmente,
durante a fase de consolidação democrática. O CNDM, a partir de 1988, sofreu uma série de
pressões que se intensificaram, especialmente, depois de fevereiro de 1989, com a chegada ao
Ministério da Justiça de um ministro conservador.
Schumaher e Vargas (1993) relatam que o ministro provocou a renúncia coletiva
das integrantes do órgão e um novo colegiado, sem nenhuma identidade com o movimento de
mulheres, foi nomeado. Em seguida, os grupos feministas se unificaram para expressar seu
unânime repúdio à postura do governo, declarando, a partir daí, o não reconhecimento dessa
agência como instância de interlocução. Outro ponto negativo ocorreu no governo Fernando
54
Collor quando, através de uma medida provisória, o conselho perdeu sua autonomia
administrativa e financeira. Em suma, ainda que o conselho tenha nascido num contexto de
grande mobilização social, mostrou-se muito vulnerável à conjuntura política e às mudanças
nas alianças partidárias.
Já no início dos anos 1990, algumas feministas, muitas delas antigas funcionárias
de instituições políticas voltadas para mulheres, criaram organizações não governamentais
(ONGs), grupos de pressão e centros de estudos políticos (Alvarez, 1994). Depois da guinada
conservadora na conjuntura política nacional, algumas mulheres que saíram do CNDM
fundaram o Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), em Brasília, para
acompanhar a regulamentação de leis ordinárias e complementares no Congresso Nacional.
Em 1990, a antiga presidente do CNDM, Jacqueline Pitanguy, também funda a
Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), no Rio de Janeiro. Naquele
momento, a organização iniciou a realização de um estudo nacional sobre a resposta do
sistema judiciário para crimes contra as mulheres.
De acordo com Alvarez (1994), a política feminista baseada nos grupos de pressão
passa a ser promovida também pelas ONGs feministas profissionalizadas, que buscaram
influenciar políticas públicas. Nesse contexto, várias feministas entrevistadas pela autora,
entre os anos 1991-1992, preocuparam-se com a hegemonia das ONGs no movimento
feminista, da mesma forma que outrora se preocuparam com a institucionalização ou
cooptação do movimento, pela sua proximidade com os partidos ou o Estado. Muitas delas
passaram a reavaliar sua relação com o Estado e algumas das questões mais debatidas naquele
momento eram: Como continuar dependendo de um Estado cada vez menos confiável? Que
aspectos da política feminista ainda podem ser promovidos pelo Estado? Em que instância
política (Executivo, Legislativo, etc.) devem se concentrar os esforços feministas? Quais
seriam as estratégias necessárias para garantir a implementação dos direitos das mulheres,
conquistados, em teoria, ao longo das últimas duas décadas? Como podem as mulheres de
todos os grupos étnicos, classes sociais e orientação sexual desfrutarem de uma cidadania
mais plena, em termos políticos, culturais e sexuais?
Ao final, Alvarez (1994) destaca três caminhos promissores, dentro do movimento
feminista, que poderiam alterar ou em última instância contrabalancear a situação lamentável
em que se encontravam as questões de gênero no nível estatal, conforme o diagnóstico
daquele momento. Os caminhos apontados eram: a influência sobre a política por fora do
Estado e a formação de centros de formulação de políticas; ONGs que se ocupam das políticas
55
e lobbies feministas independentes; a revitalização de esforços dirigidos a assegurar direitos e
a promover a consciência de gênero nos níveis sociais e culturais.
No tópico seguinte, veremos os desdobramentos desses caminhos apontados pela
autora nos anos 1990 e 2000.
1.2.4. Anos 1990 e 2000
Para entender a presença de questões referentes aos direitos da mulher, na arena
política, temos de trazer um novo elemento ao cenário: as organizações não governamentais
(Pinto, 2003).
Nos últimos anos, houve uma expansão muito grande desse tipo de organização
no Brasil e muitas delas tiveram sua origem em movimentos sociais. No caso do movimento
feminista, existe um grande número de mulheres que militaram nas décadas de 1970 e 1980 e,
posteriormente, fundaram ONGs. Elas se tornaram profissionais nas mais diversas carreiras e
passaram a exercer suas profissões nessas organizações, a partir de um trabalho voltado para
as questões feministas.
Esse boom de organizações feministas ocorreu, nos anos 90, em toda América
Latina. Houve um aumento do número de entidades formalmente estruturadas e financiadas
pelo governo, agências multilaterais e fundações. Alvarez (2009) denominou de “onguização”
(NGO-ization) o processo de expansão que acabou por transferir as obrigações sociais do
Estado para as ONGs, no contexto do neoliberalismo.
Enquanto especialistas nas temáticas de gênero, essas organizações passaram a
assessorar os governos em questões técnicas relacionadas a políticas públicas voltadas para as
mulheres. No entanto, seu papel era mais focado na execução dos programas do que na sua
formulação. Ao se limitarem à função de meras executoras de projetos, o próprio
monitoramento das políticas públicas e a defesa de reformas mais estruturais foram deixados
de lado. Por conta disso, alguns críticos consideravam essas organizações como braços
institucionalizados dos movimentos, que haviam sido cooptadas pelos poderes que antes
criticavam. Organizações despolitizadas e funcionais para a redução de gastos sociais por
parte do Estado.
Essa visão, contudo, não traduz as ambiguidades e especificidades sobre o
universo dessas entidades. Trata-se de uma avaliação que não faz jus a identidade híbrida de
várias ONGs feministas (Alvarez, 2009) que são, ao mesmo tempo, organizações
formalmente estruturadas, porém, integradas ao movimento feminista.
56
Essas organizações desempenharam um papel relevante na articulação dos campos
feministas latino-americanos, nos anos 1990 e 2000. Isso se deu através da produção e
circulação de inúmeros boletins e publicações, realização de conferências e seminários e a
formação de redes no interior do movimento. As ONGs funcionaram como os principais
pontos nodais, através dos quais o campo feminista espacialmente disperso e
organizacionalmente fragmentado permaneceu discursivamente articulado.
De acordo com uma pesquisa (Novellino, 2006) que identifica as ONGs
feministas atuantes no Brasil40, no período de 1980 a 2000, essas instituições são, em sua
maioria, dirigidas por profissionais de classes média e alta, com alto nível de escolaridade.
Em seu levantamento, a autora encontrou 35 ONGs feministas. Com relação aos temas de
atuação dessas organizações, os projetos são majoritariamente focados em políticas públicas
para mulheres. Em termos de financiamento, apenas 20% não recebiam apoio financeiro de
agências internacionais de cooperação, ou seja, 80% das organizações pesquisadas recebiam
financiamento dessas agências.
O desenvolvimento de projetos com o apoio de agências internacionais já era um
recurso utilizado pelas feministas. Em 1975, a Fundação Ford já apoiava um projeto de
estudos e pesquisa sobre mulheres, da Fundação Carlos Chagas. Com a criação das ONGs,
várias outras agências internacionais começaram a financiar projetos de intervenção social.
Por fim, Novellino (2006) avalia que apesar do financiamento das agências
internacionais garantirem a realização dos projetos das ONGs feministas, esse apoio poderia
determinar a forma e o foco de atuação dessas organizações, prejudicando sua autonomia.
Sobre os repertórios mobilizados, Pinto (2003) reconhece o Cfemea (Centro
Feminista de Estudos e Assessoria) como a organização com atuação mais destacada no
campo da política. A entidade se constituiu como uma grande articuladora das questões das
mulheres, junto ao Congresso Nacional. Ela defende projetos, propõe emendas as comissões,
assessora a bancada feminina e divulga, por meio do seu jornal, o andamento das questões de
interesse das mulheres no Legislativo. No entanto, ao analisar as publicações produzidas pela
organização, a autora considera que o público alvo desse material não são as mulheres em
geral, nem mesmo aquelas participantes dos movimentos populares, mas sim as lideranças ou
a elite do movimento.
Outra ONG que atua em Brasília no campo político é a Agende (Ações em
Gênero, Cidadania e Desenvolvimento). Trata-se de uma organização originada de uma
40
A fonte da pesquisa é o banco de dados da Associação Brasileira de ONGs (ABONG).
57
dissidência do Cfemea, que concentra o trabalho em ações de advocacy stricto sensu (Pinto,
2003). A organização se coloca como advogada de políticas, atribuindo a si própria uma
legitimidade no campo político. Essa legitimidade viria da capacidade da organização de
angariar recursos nacionais e internacionais; do passado militante de seus integrantes; e da
própria esfera estatal.
Em síntese, existe uma variedade de organizações que atuam no Brasil cujos
objetivos e formas de intervenção variam muito. Algumas são mobilizadoras; outras prestam
assessoria especializada; outras ainda são prestadoras de serviço, atuando junto à sociedade e
ao Estado; algumas delas possuem assento em conselhos, outras são interlocutoras de
ministros e parlamentares (Pinto, 2003).
Nesse período, outro marco na história do movimento foram as agências estatais
dedicadas à promoção da igualdade de gênero, criadas nos governos Fernando Henrique
Cardoso e Lula. A criação da Secretaria de Estado de Direitos da Mulher (SEDIM), em 2002,
se deu em resposta às pressões de organizações de mulheres, no final do mandato do governo
Fernando Henrique Cardoso. A secretaria foi recebida como uma vitória por representantes do
movimento uma vez que a agência teria “a habilidade de criar redes com outros ministérios no
que se refere ao desenho de políticas públicas e seria dotada de poder para implementar
medidas concretas” (Bohn, 2010, p. 87). Entretanto, por estar vinculada ao Ministério da
Justiça, sua capacidade de ação foi limitada e a legislação que a criou não previa, claramente,
suas atribuições e estrutura administrativa.
No governo Lula, a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
(SPM) ocorreu em 2003, por meio de uma medida provisória, posteriormente convertida em
lei. Dentre as características dessa secretaria, destacamos o fato de que ela estava vinculada ao
gabinete presidencial e sua liderança tinha status de ministro (a), o que representava um
avanço em relação às agências anteriormente criadas a nível federal (Bohn, 2010). Ela
também se constitui como uma conquista para o movimento feminista e várias militantes
ocuparam postos de trabalho em seu interior (Pinheiro, 2015). Seu objetivo era desenvolver
ações conjuntas, com os demais Ministérios e Secretarias, incluindo as especificidades das
mulheres nas políticas públicas executadas pelo governo federal.
Em relação ao orçamento e alocação de recursos feita pelo órgão, desde a sua
criação, pelo menos 2/3 do montante total disponível41 foi destinado ao financiamento de
projetos, oriundos tanto de organizações de mulheres como instituições estatais (prefeituras,
41
A pesquisadora apresenta dados de 2003 a 2008.
58
secretarias estaduais, etc.). Sobre o financiamento estatal destinado ao trabalho das ONGs
feministas, Pinheiro (2015) observa que esse aumento ocorreu já no final dos anos 1990 e
início dos anos 2000. O aumento cresceu em relação inversa ao financiamento de agências
internacionais, que foi diminuindo ao longo dos anos por conta das crises econômicas
mundiais e pela gradual mudança do status do Brasil, que deixou de ser visto como um país
subdesenvolvido. Ao fim, portanto, a SPM “tornou-se uma das principais fontes de
sustentabilidade de vários grupos feministas brasileiros” (Pinheiro, 2015, p. 82).
Os temas abordados pelos convênios realizados entre a SPM e as organizações
feministas, no período 2003-2014, foram principalmente a violência, saúde e autonomia
econômica das mulheres (Pinheiro, 2015). A Secretaria realizou diversas ações voltadas para
a violência contra a mulher, sendo essa uma das temáticas que mais avançou, em termos de
sua absorção na pauta estatal (Santos, 2008 apud Pinheiro, 2015). São exemplos desse avanço
a aprovação da Lei Maria da Penha, em 2006, e o Pacto Nacional de Enfrentamento à
Violência contra as Mulheres, em 2007.
Nas conquistas e avanços alcançados pelo movimento feminista, em termos da
ampliação dos direitos da mulher, tiveram papel fundamental as interações entre movimento e
Estado. A própria criação da SPM foi um exemplo dessa interação, bem como “as
articulações que deram condições para aprovação da Lei Maria da Penha” (Ibidem, p. 211).
No próximo tópico, vamos introduzir o caso que este trabalho pretende se
aprofundar e abordar a produção acadêmica em torno da produção dessa política.
1.2.5 Apresentação do caso e a produção acadêmica sobre a Lei Maria da Penha
O projeto de lei que deu origem à Lei Maria da Penha foi proposto ao Congresso
pelo Executivo42. A apresentação do projeto (PL 4.559/04) ao plenário da Câmara dos
Deputados ocorreu em 2004, e dois anos depois, houve a promulgação da lei que dispõe sobre
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. No entanto, na
exposição de motivos apresentada pela Ministra Nilcéa Freire (SPM), junto ao projeto de lei,
observa-se que a origem dessa proposição está vinculada a um acontecimento anterior:
Em março do corrente ano, foi encaminhada pelo Consórcio de Organizações NãoGovernamentais Feministas, proposta de anteprojeto de Lei, para subsidiar as
discussões do Grupo de Trabalho Interministerial, instituído com a finalidade de
elaborar proposta de medida legislativa para coibir a violência doméstica e familiar
42
Os dados da tramitação da Lei Maria da Penha no Legislativo estão disponíveis no site da Câmara dos
Deputados, como o PL 4.559/04, e no Senado Federal, como o PLC 37/2006. As fichas de tramitação dos
projetos estão disponíveis em: <goo.gl/kDi7dA> (Câmara dos Deputados) e <goo.gl/ghZWNv> (Senado
Federal). Acesso em 13 jun.2016.
59
contra a mulher. A proposta foi amplamente discutida com representantes da
sociedade civil e órgãos diretamente envolvidos na temática, tendo sido objeto de
diversas oitivas, debates, seminários e oficinas43.
Ao longo da tramitação do PL 4.559/04, a ministra Nilcéa Freire afirmou que a
agenda proposta por esse projeto se iniciou com a articulação de um Consórcio de ONGs
feministas, que apresentou sua minuta de anteprojeto de lei tanto à bancada feminina do
Congresso, como ao Executivo (Freire, 2005). O Consórcio de ONGs feministas envolveu
seis organizações que, junto a acadêmicas e juristas, se articulou em 2001 para debater os
aspectos críticos da legislação vigente sobre violência doméstica contra as mulheres, e o
quanto essa norma vinha contribuindo para a impunidade desses crimes. Como um dos
objetivos do Consórcio era buscar uma resposta legislativa para essa questão, ao longo de dois
anos essa ideia foi discutida pelo grupo. Ao finalizar a elaboração da minuta, o Consórcio se
concentrou em defender suas ideias junto aos poderes Executivo e Legislativo, inserindo o
tema na agenda, e agindo para que o projeto de lei, em discussão no Congresso, se alinhasse
ao conteúdo legislativo produzido pelo grupo.
Os registros indicam que em novembro de 2003, a minuta elaborada pelo
Consórcio de ONGs feministas foi apresentada a bancada feminina da Câmara, num
seminário sobre violência doméstica44. A partir de dezembro de 2003 até novembro de 2004,
SPM e Cfemea (uma das organizações integrantes do Consórcio) realizaram um convênio
(anexo 3), cujo objetivo principal era a produção de um anteprojeto de lei sobre violência
doméstica contra a mulher. Posteriormente, todo o material produzido através do convênio foi
oficialmente entregue a SPM, em março de 2004. Esse material foi utilizado como subsídio
nas discussões do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI).
O Grupo de Trabalho Interministerial foi criado, por iniciativa da ministra Nilcéa
Freire (SPM), para elaborar o projeto de lei que cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher45. Foram envolvidos nesse grupo representantes de
diversos ministérios, além de grupos da sociedade civil como o Consórcio de ONGs
feministas; Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB); Rede Nacional Feminista de Saúde,
Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos; e o Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje).
O Consórcio se envolveu nas discussões que acabaram por definir o conteúdo do projeto
apresentado pelo Executivo, oferecendo insumos técnicos para o projeto de lei 4.559/2004.
43
Disponível em: <goo.gl/phqJdb>. Acesso em 5 out. 2016.
O arquivo sonoro do seminário em que o Consórcio apresenta a minuta, a bancada feminina da Câmara, está
disponível em: <goo.gl/jEvq3x> (manhã) <goo.gl/dH6FFc> (tarde). Acesso em 10 jun. 2016.
45 Ver decreto presidencial nº 5.030 de 31/03/2004. Disponível em: <goo.gl/GCGGYS>. Acesso em 15 jun.
2016.
44
60
É interessante notar que a entrada desse projeto, no Legislativo federal, foi de
iniciativa do Executivo, notadamente reconhecido pelas altas taxas de sucesso e dominância
na produção das leis (Figueiredo e Limongi, 1999). Embora tenham sido cogitadas outras
alternativas, como a iniciativa popular de lei, a Comissão de Legislação Participativa e a
iniciativa parlamentar, a opção pelo Executivo foi explicada por Calazans e Cortes (2011)
pelo fato do PL 4.559/04 incluir a criação de despesas, como, por exemplo, a criação de Varas
Especializadas para julgar os casos de violência doméstica. Além disso, uma das integrantes
do Consórcio alegou que ter o apoio do Executivo ao projeto era necessário e estratégico para
o seu resultado (Entrevista 4).
Nesse ponto, é importante retomar algumas premissas básicas sobre o
funcionamento do Legislativo federal. Após a promulgação da Constituição de 1988, o
Executivo se tornou o principal legislador do país (Figueiredo e Limongi, 2012), o que
implica dizer que a maioria das leis aprovadas no Congresso é de sua autoria. Entretanto, vale
ressaltar que o Executivo é um ator coletivo e não individual (Freitas, 2016), ou seja, não é
possível reduzir a figura do Executivo ao presidente ou supor que ele seja um ator unitário.
Mais do que isso, quando o Executivo propõe um projeto de lei, apenas se inicia o processo
legislativo e não se pode prescindir de olhar para o jogo que passará a ocorrer no interior
desse poder, o que inclui a participação de vários atores, incluindo a sociedade civil. Nas
palavras da autora:
No interior das Casas, o projeto passará por comissões onde será avaliado sob a
coordenação de um relator – nomeado pela presidência da comissão, com anuência
dos líderes partidários. Durante esse processo, novas informações sobre a matéria
são produzidas e os parlamentares apresentarão os pontos de discordância em
relação à proposta original do Executivo. Eventualmente, a sociedade civil se
manifestará sobre a temática. Segue-se então, um intenso processo de barganha. O
Legislativo é um espaço privilegiado de deliberação dos projetos, onde não só
ministros e técnicos do governo manifestam suas preferências. Isto é, ao dar entrada
no Congresso, a matéria se torna pública e oposição, coalizão e a sociedade civil
entram no debate. O Legislativo é, então, a arena onde se constrói o consenso
necessário – entre a maioria – para a aprovação da matéria, sendo esse consenso
construído por meio da atuação dos legisladores e do emendamento dos projetos
(Freitas, 2016, p.46-7).
Ao longo da tramitação do projeto, o Consórcio esteve presente e atuante em
todas as Comissões em que ele foi analisado, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no
Senado Federal. Uma série de repertórios e estratégias foram mobilizados pelo grupo para
garantir que os pontos essenciais do texto não fossem alterados até sua aprovação final.
Apresentamos, abaixo, uma tabela da sequência dos fatos até a apresentação do projeto de lei
ao Congresso.
61
Quadro 2: Cronologia da apresentação do PL 4.559/2004 ao Legislativo federal
Período
Encaminhamento
2001/2003
Consórcio se articula em 2001, e ao longo de dois anos de reuniões e estudos,
elabora minuta de anteprojeto sobre violência doméstica contra a mulher. A
coordenação do grupo ficou sob responsabilidade do Cfemea, por estar sediado
em Brasília, e pela experiência da organização em advocacy46 no Legislativo e
Executivo.
Novembro/2003
Consórcio apresenta minuta de anteprojeto de violência doméstica contra as
mulheres, num seminário sobre violência doméstica realizado na Câmara dos
Deputados.
Dezembro/2003 a SPM e Cfemea realizam um convênio cujo objetivo principal era a produção de
Novembro/2004
um anteprojeto de lei sobre violência doméstica contra a mulher. Em março de
2004, as organizações apresentam sua proposta legislativa a ministra da SPM.
Março/2004
Criação do Grupo de Trabalho Interministerial, sob coordenação da SPM, cuja
finalidade era elaborar proposta legislativa para coibir a violência doméstica
contra a mulher. O anteprojeto produzido pelo Consórcio é o documento base
da discussão em que as organizações também participam pautando o debate.
Dezembro/2004
Executivo apresenta ao Congresso o projeto de lei 4.559/2004, que cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos do §8º do artigo 226 da Constituição Federal.
Fonte: Elaboração própria
No tópico seguinte, abordaremos o debate do caso na literatura, com destaque
para as pesquisas que reconhecem o papel do Consórcio na produção da Lei Maria da Penha.
A produção acadêmica sobre a Lei Maria da Penha
A produção acadêmica sobre a Lei Maria da Penha tem se concentrado,
majoritariamente, em debates relacionados à Justiça Criminal (Maciel, 2011) ou sobre
aspectos jurídicos da lei.
O principal trabalho que analisa a atuação do Consórcio, desde a proposição da lei
até sua aprovação, foi publicado, em 2011, por Myllena Calazans e Iáris Cortes. Além desse,
outras pesquisas reconhecem a atuação do Consórcio no processo de produção dessa política
46
O entendimento acerca do que é advocacy e a forma com que essa ação estratégica é realizada está explicitada
na publicação intitulada “Incidência Política do Cfemea – dinâmicas e reflexões”, disponível no site
(goo.gl/7ZgTG7). Em resumo, para a organização, advocacy pressupõe ação coletiva, pública e política com a
finalidade de promover conquistas mais justas e democráticas que beneficiem a sociedade em geral. A partir
disso a organização desenvolve, desde suas origens, sistemas de acompanhamento e monitoramento das normas
produzidas pelo Congresso Nacional que têm impacto nos direitos e na vida das mulheres, além da elaboração de
propostas e encaminhamento de demandas.
62
no Legislativo (Albarrán, 2010; Barsted, 2007, 2011; Lavigne, 2011; Maciel, 2011; Nunes,
2012; Pinheiro, 2010; Romeiro, 2007, 2009; Santos, 2010; Sarmento, 2013). Grande parte
dessas pesquisas considera a própria aprovação da lei, como um resultado da mobilização e
articulação entre o movimento feminista, a Secretaria Especial de Política para as Mulheres
(SPM) e a bancada feminina do Congresso. É importante ressaltar que, alguns desses
trabalhos, foram escritos pelas próprias integrantes do Consórcio (Barsted, 2007, 2011;
Calazans e Cortes, 2011; Lavigne, 2011).
Para Pinheiro (2010), o caso é uma das principais conquistas da bancada feminina
do parlamento. O sucesso, em sua aprovação, deve-se à articulação entre a bancada, a SPM e
o movimento feminista.
Romeiro (2007, 2009) atribuiu o sucesso do caso a uma conjunção de fatores que
envolvem: a mobilização feminista por direitos e a aproximação do movimento em direção ao
Estado, com destaque para a SPM. Outros elementos citados foram: os problemas
encontrados, no sistema judiciário, para o tratamento da violência doméstica contra a mulher,
e as conferências internacionais sobre direitos das mulheres. Em suma, a autora reconheceu
que a promulgação da lei esteve diretamente relacionada com a mobilização pelos direitos das
mulheres, realizada pelo Consórcio, e pela ressonância desta reivindicação junto ao Estado, na
figura da SPM.
Santos (2010) considerou que o processo de formulação e aprovação da lei refletiu
uma articulação entre o governo e os movimentos de mulheres e feministas.
Maciel (2011), por sua vez, entendeu o caso como uma campanha, cujo processo
de mobilização funcionou, graças à habilidade de ativistas em utilizar uma série de estratégias
de ação. Dentre elas: lobby no Legislativo e Executivo; parcerias com órgãos estatais;
formação de coalizões com outros grupos e movimentos sociais; uso da mídia e manifestações
públicas. No âmbito do Executivo, a autora destaca o apoio da Secretaria Especial de Política
para as Mulheres e, no Legislativo, o apoio da deputada Jandira Feghali, uma das relatoras do
projeto.
Calazans e Cortes (2011) reconheceram o processo de elaboração, tramitação e
aprovação da proposta legislativa como muito democrático e participativo. As autoras
notaram que, para algumas participantes envolvidas nesse processo, o caso lembrou a
mobilização de mulheres durante a elaboração da Constituição de 1988.
Barsted (2007, 2011) concebeu a aprovação da lei como um caso bem-sucedido de
articulação política entre a sociedade civil/movimento de mulheres e as instituições do
Executivo e Legislativo. Denominou o processo como uma ação de advocacy feminista, que
63
promoveu a mobilização política, junto ao Estado e a sociedade, para a aprovação de uma
legislação voltada para a proteção das mulheres. A ação teve por base um cenário de avanço
da legislação internacional de proteção aos direitos das mulheres, um contexto político
favorável e a atuação da SPM, em sintonia com o movimento de mulheres e em interlocução
com o Congresso. A autora defende que além de ter redigido o anteprojeto, o Consórcio
atuou, decisivamente, no processo legislativo que culminou com a sanção da Lei Maria da
Penha. Nunes (2012) vai além e reconhece no texto da lei promulgada, a maioria das
demandas feitas pelo grupo, ao longo da produção da política.
É importante ressaltar que, ainda que esses trabalhos considerem a atuação do
Consórcio como uma variável que explica a aprovação da Lei Maria da Penha, nem todos eles
se voltam para a atuação desse grupo, no interior do Legislativo federal. Por isso, o presente
trabalho se aproxima das produções que abordam, mais detalhadamente, as discussões
ocorridas ao longo da tramitação da lei (Calazans e Cortes, 2011; Nunes, 2012; Romeiro
2007, 2009).
Em relação a esses trabalhos, a diferença é que, nesta pesquisa, o olhar para o
processo legislativo está aliado a uma perspectiva que inclui:
•
•
recuperação histórica dos repertórios, tradicionalmente, mobilizados pelo
movimento feminista atuando no Legislativo federal (item 1.2).
sistematização dos repertórios mobilizados pelo Consórcio, em cada fase do
processo legislativo, em busca de explicações sobre: i) os momentos em que
ocorrem a atuação do grupo e ii) como a atuação do Consórcio afeta a produção da
política no Legislativo federal (capítulos 2 e 3).
No capítulo 2 trataremos da produção da Lei Maria da Penha, com foco no
processo decisório, que ocorreu no Legislativo federal. Observamos a trajetória do Consórcio,
ao longo desse processo, e sua interação com os atores políticos de forma a compreender
como os atores sociais afetam a produção da política pública no Legislativo federal. Nesse
percurso será possível observar o quanto dessa trajetória já vinha sendo contada desde os
primórdios do movimento feminista.
***
Procuramos mostrar nesse capítulo que, embora na Ciência Política, não exista
literatura consolidada sobre a atuação dos movimentos sociais no Legislativo federal,
encontramos alguns casos empíricos que trazem elementos e achados que devem ser
destacados.
64
Esses trabalhos reconhecem a atuação dos movimentos sociais no Legislativo
federal na Assembleia Constituinte (Lin, 2010; Brandão, 2011); através da iniciativa popular
de lei (Paz, 1996; Lin, 2010) e da Comissão de Legislação Participativa (Lin, 2010); por meio
da política da proximidade ou lobby (Dowbor, 2012; Abers, Serafim e Tatagiba, 2014); como
grupo de pressão (Carvalho e Taglialegna, 2006); e como comunidades de políticas ou policy
communities (Pereira, Vasselai e Silva, 2012; Pereira, 2013).
Para além das possibilidades de inserção dos movimentos via iniciativa popular de
lei ou Comissão de Legislação Participativa, os atores sociais têm atuado pelas vias
convencionais. Ao optar por esse caminho, eles fazem uso dos mesmos repertórios
disponíveis a qualquer ator interessado em participar do jogo legislativo, seja ele
representante de movimentos sociais, ou do setor privado, por exemplo. Por essa via,
encontramos atores sociais mobilizando os seguintes repertórios: uso de contatos pessoais
para acessar as autoridades públicas; sugestão de emendas aos parlamentares; pressão para
mudança no regime de tramitação do projeto (através do requerimento de urgência);
apresentação de subsídios, que sustentam seus posicionamentos, para os relatores e membros
das Comissões (através da participação em audiências públicas).
Na segunda parte do capítulo, ao observarmos os padrões históricos de interação
do movimento feminista no Legislativo federal, encontramos, desde o movimento sufragista,
o uso de repertórios voltados para a atuação no Congresso.
A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), liderada por Bertha
Lutz, mobilizava sua rede de contatos pessoais dentro dos círculos do governo, assessorava
parecer de parlamentares com subsídios técnicos e fazia pressão sobre membros do Congresso
(Alves, 1980; Hahner, 2003).
O movimento sufragista pertenceu à primeira onda feminista, que se estendeu da
virada do século XIX para o século XX, até 1932. O intervalo que se iniciou, em 1932 até as
primeiras manifestações nos anos 1970, foi considerado um período de refluxo do movimento
feminista (Pinto, 2003). A mobilização das mulheres em defesa dos seus direitos civis foi
retomada a partir da década de 1970.
Em 1975, uma série de comemorações em homenagem ao Ano Internacional da
Mulher ocorreram no Rio de Janeiro e São Paulo. Dentre essas comemorações, destacou-se a
organização do evento intitulado “Pesquisas sobre o papel e o comportamento da mulher na
realidade brasileira”. Tal evento foi considerado, simbolicamente, como o marco fundador do
feminismo brasileiro da segunda onda (Pedro, 2006). A conferência debateu temas como
trabalho feminino, a imagem da mulher nos meios de comunicação, sua situação jurídica, etc.
65
(Pitanguy, 1985). Nos chama atenção que dentre as organizadoras do evento estão Leila
Barsted e Jacqueline Pitanguy, mais tarde responsáveis por fundar a Cepia, organização
integrante do Consórcio que atuou no caso da Lei Maria da Penha.
Os anos 1980 são marcados pelo fim do bipartidarismo e pelas eleições
parlamentares. Participar da política institucional foi o grande dilema do movimento feminista
nessa década e, por isso, surgiu uma divisão entre aquelas que lutavam pela
institucionalização do movimento, e uma aproximação da esfera estatal, e aquelas que viam
nessa aproximação um sinal de cooptação (Pinto, 2003). Essa divisão tende a apagar, no
entanto, o fato de que desde os anos 1970, o movimento feminista constitui-se como um
campo discursivo de ação heterogêneo (Alvarez, 2014). Ou seja, desde, pelo menos, a
segunda onda feminista visões de mundo heterogêneas coexistem articuladas em torno de um
campo comum.
Considerando as diversas correntes e ideias, que nortearam as estratégias de ação
nesse campo, uma parte do movimento feminista já tinha uma atuação voltada para o
Legislativo, desde meados da década de 1970, apresentando sucessivas propostas para alterar
leis que reforçavam a desigualdade de gênero (Pitanguy, 1985; Barsted, 1994a, 1994b;
Barsted e Garcez, 1999).
Essas propostas de mudanças legislativas seguiram com o avanço da
redemocratização e a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em
agosto de 1985. A finalidade básica do Conselho era a formulação de políticas nacionais com
o objetivo de eliminar a discriminação contra a mulher. Nos primeiros anos do governo José
Sarney, esse órgão tornou-se a instância mais importante para o desenvolvimento de uma
política feminista, baseada nos grupos de pressão (Alvarez, 1994), servindo como canal de
representação dos interesses do movimento de mulheres (Schumaher e Vargas, 1993). Seus
cargos foram ocupados, em sua maioria, por mulheres que tiveram uma longa associação com
grupos feministas e outras organizações do movimento de mulheres (Alvarez, 1994).
Por meio do lobbying intenso do Conselho e sua articulação com o movimento de
mulheres, muitas reivindicações relacionadas aos direitos da mulher foram incluídas na nova
Constituição. O repertório utilizado pelo CNDM incluía, principalmente, o diálogo com as
lideranças parlamentares e seus assessores, além das articulações realizadas com a bancada
feminina do Congresso (Pitanguy, 2011).
Depois da guinada conservadora na conjuntura política nacional, algumas
mulheres que saíram do CNDM fundaram o Cfemea (Centro Feminista de Estudos e
Assessoria), em Brasília, para acompanhar a regulamentação de leis ordinárias e
66
complementares no Congresso Nacional. Em 1990, a antiga presidente do CNDM, Jacqueline
Pitanguy, também funda a Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), no Rio
de Janeiro.
Pinto (2003) reconhece o Cfemea como a ONG cuja atuação mais se destacou no
campo da política. A organização se constituiu como uma grande articuladora das questões
das mulheres junto ao Congresso Nacional defendendo projetos, propondo emendas às
comissões, assessorando a bancada feminina e divulgando, por meio do seu jornal, o
andamento das questões de interesse das mulheres no Legislativo.
Outra ONG destacada pela autora é a Agende (Ações em Gênero, Cidadania e
Desenvolvimento). Trata-se de uma organização originada de uma dissidência do Cfemea que
concentra seu trabalho em ações de advocacy strictu sensu. Ambas as organizações
participaram do consórcio que atuou no caso da Lei Maria da Penha.
Nos anos 2000, com o advento das agências estatais criadas nos governos FHC e
Lula destacamos as ações realizadas pela Secretaria Especial de Política para as Mulheres
(SPM). A Secretaria, criada em 2003, realizou diversas ações voltadas para a violência contra
a mulher e essa temática foi das que mais avançou em termos de sua absorção na pauta estatal
(Santos, 2008 apud Pinheiro, 2015). São exemplos desse avanço a aprovação da Lei Maria da
Penha, em 2006 e o Pacto Nacional de Enfrentamento a Violência, em 2007.
Para Alvarez (1994) o desenvolvimento de uma política feminista baseada nos
grupos de pressão surgiu final dos anos 1970, por meio da atuação de feministas nos partidos
políticos e no Estado, sendo promovido também pelo CNDM e através das ONGs feministas.
Desse modo, o caso da Lei Maria da Penha pode ser visto como fruto desse percurso
histórico, uma vez que, algumas das ONGs envolvidas no consórcio foram criadas a partir da
própria experiência de suas fundadoras no CNDM, como o Cfemea e a Cepia.
Na realidade, muito antes dos anos 1970, os repertórios de interação entre o
movimento feminista e o Legislativo foram sendo construídos. Essa construção vem desde a
luta pelo sufrágio, protagonizada por Bertha Lutz e a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino (FBPF). Nesse sentido, ao analisarmos a atuação do consórcio no caso da Lei Maria
da Penha precisamos levar em conta todo esse acúmulo de repertórios que ocorre ao longo da
história.
No próximo capítulo, apresentaremos um histórico desde a formação do consórcio
de ONGs envolvido na elaboração do anteprojeto de lei de violência contra a mulher, até a
aprovação da Lei Maria da Penha.
67
Capítulo 2: A atuação do Consórcio de ONGs feministas no caso da Lei Maria da
Penha
Nesse capítulo apresentamos a reconstrução empírica da atuação do Consórcio de
ONGs feministas, no caso da Lei Maria da Penha. No entanto, antes de iniciar a reconstrução
do caso, iniciaremos o capítulo abordando dois pontos: i) a inserção da violência doméstica na
agenda pública; ii) a inserção da temática na literatura dos estudos feministas no Brasil. Em
seguida, buscaremos contextualizar o debate por trás da Lei Maria da Penha que inclui a
compreensão da legislação que vigorava, até então, para tratar dos crimes de violência
doméstica contra a mulher e os posicionamentos divergentes sobre essa lei.
Até a aprovação da Lei Maria da Penha, os casos de violência doméstica contra a
mulher eram julgados pela Lei 9.099/95, a Lei dos Juizados Especiais Criminais. Os embates
em torno dessa lei refletiam a dificuldade de se obter um consenso a respeito da forma mais
adequada de se enfrentar esses delitos (Romeiro, 2009). Os posicionamentos divergentes
estavam relacionados à própria discussão em torno da necessidade de uma nova lei que
substituísse a vigente na época. Grosso modo, esses posicionamentos eram contrapostos entre
os representantes do Fórum Nacional dos Juizados Especiais (Fonaje), que defendiam a
manutenção da legislação vigente, e o Consórcio de ONGs feministas, que defendia uma nova
legislação47.
A formação e a articulação do Consórcio de ONGs feministas foram motivadas,
principalmente, pelo debate dos aspectos críticos da Lei 9.099/95 e pelo quanto essa norma
vinha contribuindo para a impunidade dos crimes de violência doméstica praticados contra as
mulheres no Brasil (Barsted, 2007). Junto a essas organizações estavam também acadêmicas e
juristas. Um dos objetivos do grupo era buscar uma resposta legislativa para a violência
doméstica contra a mulher. Ao elaborar um anteprojeto de lei, o grupo se concentrou em
defender suas ideias junto aos poderes Executivo e Legislativo para inserir o tema na agenda e
garantir que o projeto de lei aprovado se alinhasse ao conteúdo legislativo que elas haviam
produzido. Após explicarmos como se deu o surgimento do Consórcio, iniciamos a exposição
dos repertórios mobilizados pelo grupo divididos em duas fases:
•
o momento pré-tramitação (2002-2004);
Em alguns momentos os termos “representantes do Fonaje” e “Consórcio de ONGs feministas” serão
substituídos pelos termos operadores jurídicos e movimento feminista. Essas escolhas não implicam numa
homogeneização desses grupos, tampouco numa desconsideração das diferenças ideológicas que existem no
interior dessas categorias. Reconhecemos que o movimento feminista constitui um campo discursivo de ação
heterogêneo (Alvarez, 2014), bem como a multiplicidade de atores e forças presentes no Poder Judiciário.
Contudo, assim como Romeiro (2007), utilizaremos essas categorias como um recurso metodológico, ainda que
sob o risco da imprecisão teórica.
47
68
•
a tramitação do projeto de lei na Câmara dos Deputados e no Senado Federal
(2005-2006)
A primeira fase está relacionada, especialmente, a um momento de articulação do
grupo em torno da elaboração do anteprojeto de lei de violência doméstica. Ao longo da
produção dessa proposta legislativa, o Consórcio se aproximou de membros do Executivo e
Legislativo para colocar o tema na agenda política e compartilhar seu conteúdo. Assim, a
proposta se tornou o principal subsídio do projeto de lei, apresentado pela Secretaria Especial
de Política para as Mulheres (SPM) ao Congresso.
A segunda fase está relacionada, propriamente, a tramitação do projeto de lei nas
Casas Legislativas, por isso, descrevemos os repertórios mobilizados pelo Consórcio tanto na
Câmara dos Deputados, quanto no Senado Federal. Ao longo do processo legislativo, a
proposição tramitou em três Comissões, na Câmara dos Deputados 48, e uma, no Senado
Federal49. No Legislativo, o Consórcio atuou nos processos decisórios que ocorreram dentro
das Comissões Parlamentares, mobilizando diversas estratégias e repertórios com o intuito de
defender alguns pontos essenciais no conteúdo da lei que estava em discussão.
Em seguida, apresentaremos um tópico que trata da atuação do Consórcio para
além da arena legislativa, através de manifestações públicas e outros tipos de mobilizações,
que aconteceram ao longo de todo o período (2003-2006) com o objetivo de incrementar as
pressões sobre o processo legislativo (Maciel, 2011).
Por último, faremos um balanço dos repertórios mobilizados pelo grupo no
momento pré-tramitação e ao longo da tramitação do projeto de lei. Junto a esse balanço,
apresentaremos um comparativo entre os textos aprovados em cada fase da tramitação da
proposição. Para esse quadro comparativo selecionamos apenas dois artigos, que eram pontos
essenciais defendidos pelo Consórcio sobre a temática e foram propostos já no seu
anteprojeto. O objetivo desse quadro será rastrear as mudanças ocorridas nos textos ao longo
do processo legislativo50.
48
Comissão de Seguridade Social e Família; Comissão de Finanças e Tributação; Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania.
49 Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
50 Análises minuciosas sobre as mudanças realizadas nos artigos, de um determinado projeto, ao longo da
tramitação nas Casas Legislativas, costumam se utilizar do método que decompõe a matéria apresentada em
dispositivos, procurando identificar a menor unidade legal possível que contenha elementos legais (metodologia
de análise de dispositivos). O projeto inicial assim destrinchado é comparado ao projeto que saiu do Legislativo,
decomposto pelo mesmo método, rumo à sanção presidencial. Assim, é possível identificar uma a uma as
alterações realizadas pelo Legislativo (Freitas, 2016). No caso aqui apresentado, faremos uma simples
comparação do conteúdo de dois artigos selecionados. A intenção é olhar para os artigos propostos, inicialmente,
pelo Anteprojeto apresentado pelo Consórcio ao Executivo e a partir disso analisar as mudanças feitas nesses
artigos ao longo da tramitação. Em seguida, comparamos esse conteúdo selecionado com o texto promulgado.
69
Assim, poderemos ensaiar uma correlação entre os repertórios mobilizados pelo
grupo e o suposto efeito no texto da lei, ao longo da tramitação. O intuito será tratar essa
tentativa de correlação como um indicativo de que organizações de movimentos sociais
precisam ser mais bem observadas dentro do jogo legislativo.
Por fim, dos resultados encontrados, constataremos que o Consórcio atua dentro
das Comissões Parlamentares em pelo menos dois momentos chave do processo legislativo:
1) formulação do parecer das relatoras e 2) definição do posicionamento da Comissão. No
âmbito mais geral, os resultados da pesquisa indicam que a atuação do movimento ocorre na
fase de formação da agenda e na definição do conteúdo da lei.
2.1 Introduzindo a temática
Como apontamos no capítulo anterior, a segunda onda do feminismo brasileiro era
alinhada às chamadas questões gerais, relacionadas às desigualdades sociais e à luta feminista
pelo viés de classe. Esse enfoque estava relacionado a própria realidade histórica e social do
Brasil, por isso o feminismo que se forjou aqui era diferente da construção feminista ocorrida
nos países da América do Norte e da Europa (Moraes e Sorj, 2009b). Trazendo o exemplo do
feminismo surgido na França e na Itália, Velasco e Cruz (1982) aponta que nesses países a
luta pela livre disposição do corpo das mulheres - relativa aos direitos reprodutivos e à
liberação do aborto, bem como as denúncias das violências contra as mulheres, praticadas em
todas as instâncias da sociedade, a começar pela família - eram eixos prioritários de atuação
do movimento.
No entanto, Alvarez (1994) observa que, no final dos anos 1970, as feministas
continuavam se opondo ao regime militar e à exploração capitalista, mas passaram também a
se concentrar nas lutas específicas, ou seja, nas questões relacionadas aos direitos
reprodutivos, à violência contra as mulheres e à sexualidade.
No tema da violência, Santos (2010) observa que no contexto de abertura política,
os grupos feministas abordavam diferentes formas de violência, tais como a violência política
e sexual contra prisioneiras políticas; a violência doméstica; a violência policial contra
prostitutas; a violência racial contra mulheres, entre outras. No entanto, no início dos anos
1980, a violência doméstica se tornou “o centro dos discursos e mobilizações feministas”
(Santos, 2010, p.156)
Nessa época, chamavam atenção os casos de assassinatos de mulheres e a
absolvição dos assassinos pelos tribunais, com base na tese da legítima defesa da honra. A
70
grande repercussão na imprensa do assassinato de mulheres de classe média por seus maridos
deflagrou a entrada desse tema na agenda pública (Sorj e Monteiro, 1985 apud Moraes e Sorj,
2009b). É importante ressaltar, contudo, que desde as décadas de 1920 e 1930, o uso da
justificativa “matei por amor” era mobilizada pelos assassinos de mulheres, cujos homicídios
eram denominados “crimes de paixão” (Blay, 2008). Na década de 1940, tais crimes
continuavam a ser praticados e a justiça absolvia os criminosos sob o argumento da legítima
defesa da honra.
Em 1976, um caso emblemático foi o de Doca Street, que assassinou sua
companheira Ângela Diniz e, mesmo sendo réu confesso, foi absolvido pelo Tribunal do Júri
alegando a tese da legítima defesa da honra. Os argumentos utilizados no julgamento pela
defesa do acusado retratavam Ângela como uma mulher que bebia muito, de personalidade
neurótica, com perturbações comportamentais traduzidas, especialmente, pela sua
agressividade excessiva (Lins e Silva, 1991 apud Blay, 2008). Além disso, argumentavam
também que era mulher de vida fácil e desregrada, que denegria os bons costumes (Grossi,
1993). Como explica Blay (2008), a estratégia dos advogados de defesa de Doca Street era
criar uma polarização entre o seu comportamento e o de Ângela, de forma que, se julgasse
uma imagem social e sua representação, ao invés do crime. O crime recebeu uma intensa
cobertura da mídia, mas é interessante notar que as discussões na imprensa giravam em torno
da defesa da vida das mulheres e da visão do agressor como desviante, passional e doente, ao
invés de uma reflexão sobre as relações desiguais de gênero (Moraes e Sorj, 2009b).
No final dos anos 1970, o movimento começou a denunciar amplamente casos
como esses, que revelavam o machismo que orientava o modo como as leis eram aplicadas e
interpretadas (Debert, Gregori e Piscitelli, 2006). Embora se advogue por uma pretensa
neutralidade jurídica, na realidade, como apontam Barsted e Garcez (1999), o Poder Judiciário
não é imune aos padrões culturais que permeiam toda a sociedade que os integra. A tese da
legítima defesa da honra, durante muito tempo, absolveu homens que matavam suas
companheiras, alegando que estavam “lavando a sua honra” (Debert, Lima e Ferreira, 2008).
Para os autores, as manifestações do movimento feminista colaboraram para que esse
argumento perdesse a eficácia ao longo dos anos. Ainda que pesquisas apontem que tal tese
ainda seja mencionada nos argumentos da defesa, ela não garante mais a absolvição do réu,
como ocorria até muito recentemente.
Os anos 1980 são marcados pelo surgimento de inúmeras organizações de apoio à
mulher em situação de violência doméstica, a primeira delas foi o SOS Mulher. Outros
acontecimentos importantes nessa década foram a criação dos já mencionados Conselhos
71
Estaduais da Condição Feminina, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e as Delegacias
de Defesa da Mulher.
Em 1988 foi incluído um parágrafo no artigo 226 da Constituição Federal, no qual
o Estado se compromete a assegurar a assistência à família, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações. A atuação do Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher, junto ao movimento feminista, foi fundamental para garantir a inclusão desse
dispositivo no texto constitucional.
A década de 1990 é marcada pela produção jurídica internacional na área dos
direitos humanos para as mulheres com destaque para a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará),
incorporada pela legislação brasileira, em 1995. Nesse mesmo ano, a Lei dos Juizados
Especiais Criminais (Lei 9.099/95) passa a vigorar no Brasil. Essa legislação acaba por incidir
sobre os delitos relacionados à violência doméstica contra a mulher, ocasionando diversas
críticas que exploraremos melhor no tópico seguinte.
Nos anos 2000, destacamos a criação das já mencionadas agências estatais,
voltadas à promoção da igualdade de gênero, criadas nos governos Fernando Henrique
Cardoso e Lula. Em 2001, a decisão da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos
(CIDH) condenou o Brasil pela omissão, tolerância e impunidade nos casos de violência
doméstica contra a mulher, impulsionando uma mobilização nacional sobre o tema (Maciel,
2011). Essa decisão foi fruto da denúncia realizada por organizações de direitos humanos
juntamente com a vítima, em face da impunidade do crime praticado, em 1983, contra Maria
da Penha Fernandes. No mesmo ano, um grupo de ONGs feministas se articulou para debater
sobre os aspectos críticos da Lei 9.099/95, e o quanto essa norma, vinha contribuindo para a
impunidade dos crimes de violência doméstica, praticados contra as mulheres, no Brasil
(Barsted, 2007).
Dois anos depois, o Comitê da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW) recomendou, ao governo brasileiro, a
elaboração de uma legislação sobre violência doméstica (Santos, 2010). Em 2004, o
Executivo apresentou ao Congresso o projeto de lei 4.559/2004 que, dois anos depois, foi
promulgado e transformado na Lei Maria da Penha, que dispõe sobre mecanismos para coibir
a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Apresentamos abaixo uma linha do tempo que destaca os principais
acontecimentos em torno do tema da violência doméstica. Alguns deles já abordamos no
capítulo anterior, e outros serão melhor desenvolvidos no tópico seguinte.
72
Quadro 3: Linha do Tempo
1976
1979
1980
1983
1985
1988
1995
1998
2001
2002
2003
2004
2006
Assassinato de Ângela Diniz pelo seu companheiro Doca Street.
Julgamento de Doca Street.
Criação do primeiro SOS-Mulher, em São Paulo.
Criação do primeiro Conselho Estadual da Condição Feminina em SP.
Criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Criação da primeira Delegacia de Defesa da Mulher, em São Paulo.
Conquista na Constituição Federal: inclusão do parágrafo 8º, no artigo 226, em que o
Estado se compromete a assegurar a assistência à família, criando mecanismos para
coibir a violência no âmbito de suas relações.
Convenção de Belém do Pará é incorporada pela legislação brasileira.
Criação da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95).
Caso Maria da Penha é levado a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), pela própria vítima, apoiada
por ONGs atuantes na temática.
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) analisa o caso Maria da Penha,
e responsabiliza o governo brasileiro por tolerância estatal em relação à violência
doméstica contra as mulheres.
Articulação do grupo de ONGs feministas para debater aspectos críticos da Lei
9.099/95.
Criação da Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (governo FHC), ligada ao
Ministério da Justiça.
Criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (governo Lula), vinculada
à Presidência da República, com status ministerial.
Comitê Cedaw recomenda ao governo brasileiro a elaboração de legislação sobre
violência doméstica.
Apresentação do PL 4.559/2004 de autoria do Executivo.
Promulgação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006)
Fonte: Adaptada de Avelar e Blay (2017, p.329-337).
É importante ressaltar que embora não seja um fenômeno novo, historicamente, a
violência de gênero tem sido naturalizada e tratada como um episódio trivial da vida privada,
que ali devia se manter circunscrito. Aos olhos do Estado e da sociedade, a violência que
acontecia no âmbito doméstico não dizia respeito a terceiros e não pertencia ao âmbito
público de discussão. Para que essa violência fosse vista como um problema social e político,
o movimento feminista desempenhou um papel-chave (Moraes e Sorj, 2009a), principalmente
na dimensão cultural e simbólica. Isso se deu, primeiramente, com o questionamento da noção
cultural da família como uma instituição restrita ao âmbito privado, o que permitia proteger
sua estrutura, baseada na autoridade masculina sobre a mulher, e obscurecendo o fato de que
73
muito dessa estrutura desigual tinha respaldo na lei51. Outro ponto importante foi a
reconstrução do problema da violência de gênero como uma violação de direitos humanos,
“convertendo conflitos privados em problema público a ser solucionado pela intervenção do
aparato estatal-legal” (Maciel, 2011, p. 105).
No âmbito acadêmico, a literatura que se interessou pelo estudo da violência
contra as mulheres tem origem nos anos 1980, constituindo uma das principais áreas
temáticas dos estudos feministas no Brasil (Santos e Izumino, 2005). O primeiro estudo sobre
violência contra as mulheres, de Maria Amélia Azevedo, foi publicado em 1985 (Saffioti,
2001). Sob o título Mulheres espancadas – a violência denunciada, a autora fez um
levantamento dos boletins de ocorrência lavrados nos distritos policiais de São Paulo, entre
1982 e 1983, referentes à violência física contra a mulher. Essa investigação, contudo, fixouse mais nos dados quantitativos do que na análise qualitativa do fenômeno.
Numa tentativa de sistematizar as perspectivas que tratam da temática, Santos e
Izumino (2005) identificam três correntes teóricas que se constituem como referências para
esses estudos. A primeira corrente chamada de “dominação masculina” é identificada com o
trabalho de Marilena Chauí, Participando do debate sobre mulher e violência. A partir dessa
perspectiva, a violência contra as mulheres é expressão de dominação do homem sobre a
mulher, resultando na anulação de sua autonomia. A ação violenta trata o ser dominado como
objeto e não como um sujeito.
A segunda corrente é inspirada pela perspectiva marxista introduzida por Heleieth
Saffioti. Para a autora, as mulheres vivenciam uma relação desigual de poder com os homens
e a violência contra as mulheres resulta da socialização machista. A ideologia machista
“socializa o homem para dominar a mulher e esta para se submeter ao poder do macho”
(Santos e Izumino, 2005, p. 151).
A terceira corrente relativiza a perspectiva dominação-vitimização. O trabalho de
principal destaque aqui é o de Maria Filomena Gregori, publicado nos anos 1990, focado no
SOS-Mulher de São Paulo. Trata-se da primeira entidade no Brasil, criada por iniciativa de
vários grupos feministas com o objetivo de prestar atendimento a mulheres vítimas de
violência. A autora analisa a atuação da organização e os depoimentos das mulheres que
sofreram violência, expondo as contradições entre as práticas e os discursos feministas sobre
violência conjugal, em relação aos relatos reais apresentados.
51 Para Barsted e Garcez (1999, p. 12), até 1988, o Código Civil orientava todos os seus artigos relativos à
família marcando a superioridade do homem em relação à mulher, seja na parte geral, no capítulo específico
sobre família ou na parte relativa ao direito das sucessões.
74
É importante mencionar também uma confusão existente na literatura sobre o
próprio uso do termo que melhor descreve o tipo de violência que estamos tratando aqui.
Nesse sentido, verifica-se o uso de diferentes expressões empregadas de maneira equivalente
(Almeida, 2007). São elas: violência contra a mulher, violência doméstica, violência
intrafamiliar e violência de gênero.
O termo violência contra a mulher seria uma noção criada pelo movimento
feminista, a partir da década de 1960 (Debert e Gregori, 2008), sugerindo um ato unilateral e
acentuando o lugar da vítima. Violência doméstica, termo que se evidenciou nos anos 1990,
enfatiza mais a esfera privada em que ocorre a violência, do que o sujeito que a sofre, ou seja,
incluem-se manifestações de violência entre outros membros ou posições no núcleo
doméstico (Debert e Gregori, 2008). Violência intrafamiliar não se restringe ao espaço onde a
violência ocorre. Ela “recai exclusivamente sobre membros da família nuclear ou extensa”
(Saffioti, 2001, p.130).
Por fim, a violência de gênero acontece num contexto de relações produzidas
socialmente e seu caráter é relacional. Como apontam Santos e Izumino (2005), a principal
referência para os estudos sobre gênero, no Brasil, é o trabalho da historiadora e feminista
americana Joan Scott.
Neste trabalho não aprofundaremos essa discussão e utilizaremos, principalmente,
os termos violência contra a mulher e violência doméstica. No próximo tópico, discorreremos
sobre o debate por trás da Lei Maria da Penha, e como um Consórcio de ONGs se formou
para apresentar o anteprojeto que deu início a discussão dessa lei no Congresso.
2.2 O debate por trás da Lei Maria da Penha e a formação do Consórcio de ONGs
A primeira política pública de combate à violência doméstica foi inaugurada com
a criação da Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, também conhecida por DDM. Tratase de uma política criada pelo governador de São Paulo, Franco Montoro, através do Decreto
23.769/1985. Debert e Gregori (2008) apontam que essa legislação não fazia menção à
violência contra a mulher. Não havia tipificações penais para crimes relacionados à violência
contra mulher (familiar, doméstica ou de gênero) e, portanto, as mulheres atendidas nas
delegacias dependiam da interpretação que a agente policial tinha da queixa enunciada pela
vítima.
Na década seguinte, houve a expansão dessas unidades policiais. Sua criação só
pode ser compreendida pelo contexto da reabertura democrática dos anos 1980 e pela pressão
75
exercida, pelo movimento feminista, que criticava o descaso com que a violência contra a
mulher era tratada pelo sistema de justiça, particularmente, no tribunal do júri e na polícia
(Debert, Gregori e Piscitelli, 2006). Santos (2010) pondera, no entanto, que alguns anos
depois da criação das delegacias, as ONGs feministas se desiludiram com essas instituições,
por conta das dificuldades de diálogo com as delegadas e pela falta de institucionalização de
um programa de capacitação das policiais a partir de uma perspectiva de gênero.
Na segunda metade dos anos 1990, tiveram início as primeiras mobilizações
feministas para criação de uma lei específica sobre violência contra mulher (Maciel, 2011).
Nesse momento, os Juizados Criminais, criados em 1995, se tornaram o local em que
chegavam as denúncias de agressões contra a mulher nos âmbitos doméstico e familiar.
Embora os Juizados não tenham sido idealizados para tratar da violência doméstica contra
mulheres, seu surgimento produziu efeitos no funcionamento das Delegacias da Mulher
(Santos, 2010).
A Lei 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais (Jecrims), foi
criada para julgar delitos de menor potencial ofensivo, definidos como aqueles cuja pena
máxima não ultrapasse dois anos de reclusão. Outras motivações podem ser consideradas para
sua criação: a necessidade de desafogar as varas criminais e assim superar os problemas da
justiça tradicional, como o alto custo dos processos e as demoras nos julgamentos; e a
possibilidade de modernização da justiça brasileira com a introdução das penas e medidas
alternativas, no encaminhamento jurídico dos crimes de menor potencial ofensivo (Campos,
2004; Romeiro, 2009).
Essa lei estabelece mecanismos de conciliação e propõe a aplicação de penas não
privativas de liberdade aos delitos definidos como de menor potencial ofensivo. Dentro desse
critério, como a maior parte dos crimes cometidos contra a mulher tem pena de até dois anos,
casos envolvendo, por exemplo, lesão corporal leve, ameaça, injúria e calúnia passaram a ser
encaminhados para os Juizados. Discordando do critério utilizado pela Lei 9.099/95, Campos
(2004) argumenta que o potencial ofensivo de um delito não deveria ser definido,
simplesmente, com base na pena prevista no tipo penal. O bem jurídico lesionado deveria ser
levado em conta, principalmente porque certos delitos, ainda que tenham a mesma pena,
possuem consequências igualmente distintas na vida concreta das pessoas.
A criação dessa lei se deu num contexto internacional de informalização do Poder
Judiciário, (Campos, 2001) que começou na Europa e nos Estados Unidos, propondo a
simplificação de mecanismos judiciais e transferindo para a sociedade a resolução de conflitos
de menor significância, destinando o encarceramento aos crimes graves. Nesse sentido, a lei
76
teria um efeito despenalizante, ou seja, diminuiria a pena de determinados delitos sem
descriminalizá-los.
A partir do funcionamento dos Juizados Criminais foi suprimido o inquérito
policial sendo substituído pelo Termo Circunstanciado (TC), mais simplificado, onde o
registro da ocorrência é feito de forma sucinta. O termo é acompanhado pelo laudo (auto de
exame de corpo de delito), nos crimes com vestígio. Dessa forma, foi retirado das Delegacias
da Mulher o papel de investigação e mediação dos conflitos, relacionados às queixas que eram
ali processadas.
Os princípios da informalidade e da economia processual dispensam a feitura do
inquérito policial; o boletim de ocorrência foi substituído pela elaboração de um
termo circunstanciado que traz um relato dos fatos e a caracterização das partes e
pode ser encaminhado, com presteza, ao tribunal (Debert e Gregori, 2008, p.171).
Com o advento da Lei 9.099/95, os crimes de ameaça e lesão corporal leve
perderam o caráter de crimes de ação pública, quando qualquer pessoa pode denunciar, sendo
transformados em crimes de ação pública condicionada à representação da vítima. Ou seja, a
ação penal só tem início a partir da denúncia da própria vítima contra o acusado. O
procedimento judicial pode ser finalizado quando ocorre a conciliação entre vítima e agressor
e, além disso, o autor dos crimes de pena, não superior a dois anos, permanece na condição de
réu primário e é proibida sua identificação criminal. No entanto, como pondera Barsted
(2007), levando em consideração a natureza do conflito e a relação de poder presente nos
casos de violência doméstica
essa lei acabava por estimular a desistência das mulheres em processar seus maridos
ou companheiros agressores, e com isso, estimulava, também, a ideia de impunidade
presente nos costumes e na prática que leva os homens a agredirem as mulheres.
Após dez anos de aprovação dessa lei, constatou-se que cerca de 70% dos casos que
chegavam aos Juizados Especiais Criminais envolviam situações de violência
doméstica contra as mulheres. Do conjunto desses casos, a grande maioria terminava
em conciliação, sem que o Ministério Público ou o Juiz deles tomassem
conhecimento e sem que as mulheres encontrassem uma resposta qualificada do
poder público a violência sofrida (Barsted, 2007, p. 130)
Segundo a defensora pública Juliana Belloque (apud Romeiro, 2009) um dos
grandes problemas da prática conciliatória que acontecia nos Juizados é que ela se tornou
regra, ao invés de ser apenas um de seus instrumentos jurídicos. Em sua visão, quando há uma
relação de poder envolvida, como na maioria dos casos de violência doméstica contra a
mulher, a prática da conciliação não é eficaz.
Nos Jecrims, as mulheres eram estimuladas a optar pela conciliação em nome da
harmonia familiar. Dos casos que chegavam aos Juizados Especiais, sobre mulheres vítimas
de violência doméstica, 90% terminavam em arquivamento nas audiências de conciliação,
77
sem que as mulheres encontrassem uma resposta efetiva do poder público sobre a questão
(Calazans e Cortes, 2011). Nos poucos casos em que ocorria a punição do agressor, sua
condenação geralmente consistia na entrega de cestas básicas a entidades filantrópicas52.
No âmbito da legislação internacional, a produção jurídica na área dos direitos
humanos para as mulheres teve impacto importante sobre a temática. Na década de 1990, a
Organização das Nações Unidas (ONU) realizou uma série de Conferências nas quais foram
firmadas um conjunto de compromissos e obrigações em relação à violência contra as
mulheres (Barsted 2007; 2011).
Em 1993, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena,
causou impacto na comunidade internacional ao reconhecer que a violência contra as meninas
e mulheres representa uma violação dos direitos humanos, conclamando os Estados-membros
a adotarem a perspectiva de gênero em suas políticas. Nesse mesmo ano, em resposta às
denúncias dos movimentos de mulheres, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou,
através de uma resolução, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres,
constituindo-se como um marco na doutrina jurídica internacional53.
No ano seguinte, essa declaração deu subsídio à elaboração da Convenção para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres, também conhecida como
Convenção de Belém do Pará. Trata-se do único instrumento internacional voltado para tratar
a violência de gênero, definida como “qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause
morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público
como no âmbito privado” (Barsted, 2011, p.21). A Convenção foi elaborada pela Organização
dos Estados Americanos (OEA) e ratificada, no Brasil, pelo governo Fernando Henrique
Cardoso (Santos, 2010) passando a integrar seu ordenamento jurídico nacional a partir de
novembro de 1995.
A legislação brasileira, nos termos da Constituição Federal de 1988, já tinha
reconhecido a igualdade de direitos de homens e mulheres na vida pública e privada, além de
ter incorporado inúmeros novos direitos individuais e sociais das mulheres (Barsted, 2007).
52
Para outra visão da Lei 9.099/95, ver Montenegro (2015). A autora concorda que a lei apresenta graves
problemas para tratar dos casos de violência doméstica, mas reconhece nela alternativas para além do discurso
punitivo, proporcionando o diálogo entre as partes. Antes dessa lei, as denúncias de agressões físicas ou morais
não saíam das delegacias e não chegavam a gerar nenhum procedimento formal, pois eram resolvidas
amigavelmente entre o comissário de polícia e as partes.
53
Outro instrumento importante é a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra
a Mulher (Cedaw), aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1979, e ratificada pelo Brasil, em
1984. Essa convenção define a violência contra a mulher como um ato de discriminação, pois prejudica o pleno
exercício dos seus direitos fundamentais.
78
No que se refere à violência, adiantando-se à Convenção de Belém do Pará, a Constituição
incluiu um importante parágrafo no artigo 226:
Esse parágrafo, escrito por orientação do movimento de mulheres, reconhece que:
Art. 226, parágrafo 8: O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada
um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de
suas relações (Barsted, 2007, p. 124)
Apesar das mudanças legislativas realizadas ao longo dos anos na legislação
brasileira, até 2004, não havia um projeto de lei em tramitação no Poder Legislativo, que
tratasse da violência doméstica e familiar contra as mulheres de maneira ampla e integral
(Santos, 2010). No entanto, com a incorporação de normas internacionais de direitos humanos
ao sistema jurídico brasileiro, o caminho se abriu para mobilizações jurídicas transnacionais,
por meio de ONGs ligadas aos movimentos de direitos humanos e feminista. Uma destas
mobilizações, cujos desdobramentos ocorreram em 2001, foi um caso simbólico sobre
violência doméstica que deflagrou uma campanha pública para criação de legislação
específica sobre essa matéria (Maciel, 2011).
O caso Maria da Penha foi levado pela própria vítima, apoiada pelas organizações
Cejil (Centro de Justiça Internacional) e Cladem (Comitê da América Latina e Caribe para a
Defesa dos Direitos das Mulheres), à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
da Organização dos Estados Americanos (OEA). A denúncia alegava a tolerância estatal por
parte do governo brasileiro frente à violência sofrida por Maria da Penha pelo seu agressor.
Ela havia sido vítima de sucessivos atos de violência física e psicológica por parte do seu
marido que tentou assassiná-la em duas ocasiões, em 1983. Desde então não haviam sido
tomadas medidas efetivas pela justiça brasileira para julgar e punir o agressor, apesar das
acusações apresentadas.
Por fim, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) responsabilizou
o Estado brasileiro, por tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres,
inaugurando jurisprudência internacional nessa matéria. A Comissão recomendou ao governo
brasileiro algumas medidas, dentre elas: a reparação simbólica e material à vítima, o
julgamento efetivo do seu agressor e o aprofundamento do processo de reformas que evitem a
tolerância estatal à violência doméstica contra as mulheres no Brasil54. Santos (2010) aponta
que o governo Fernando Henrique Cardoso ignorou as comunicações enviadas pela CIDH, a
respeito do caso, ocorrendo o mesmo durante o primeiro ano do mandato do governo Lula.
Em 2003, o Comitê da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
54
Disponível em: <goo.gl/xLzVQX>. Acesso em 5 mai. 2016.
79
Contra a Mulher (CEDAW) recomendou ao governo brasileiro a elaboração de uma
legislação sobre violência doméstica (Santos, 2010) 55.
Sobre a formação do Consórcio e a ideia de se construir uma solução legislativa
para o problema da violência doméstica contra a mulher, Iáris Cortes, integrante do Cfemea,
afirmou que “a ideia de uma lei de combate à violência doméstica estava no imaginário
feminista desde sempre” (Sarmento, 2013, p.44). A entrevistada afirmou também que o
parecer da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados
Americanos, sobre o caso Maria da Penha foi um instrumento importante “para acelerar o
processo de elaboração de uma lei específica que, há quatro décadas era esperada pelo
movimento” (Idem, ibidem).
Dada essa conjuntura, um grupo feminista se articulou, em 2001, para debater os
aspectos críticos da Lei 9.099/95 e o quanto essa norma contribuía para a impunidade dos
crimes de violência doméstica, praticados contra as mulheres, no Brasil (Barsted, 2007). Ao
longo de 2002, esse grupo passou a ser denominado de Consórcio de ONGs (Barsted, 2007)
ou Consórcio de ONGs Feministas (Calazans e Cortes, 2011). O consórcio era composto por
seis organizações cujas integrantes tinham formação jurídica, e eram ligadas historicamente
ao movimento feminista, mas também ao Estado, através da atuação, de algumas delas, no
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e do trabalho na Constituinte. Junto
delas também estavam acadêmicas e juristas.
As organizações envolvidas no Consórcio foram fundadas entre os anos 1989 e
2001: Cfemea (1989), Cepia (1990), Themis (1993), Cladem (1995), Agende (1998) e
Advocaci (2001). Tratam-se de instituições que acumularam, ao longo dos anos 1990,
expertise jurídica nas áreas dos direitos humanos e da mulher, além de possuírem acesso às
arenas formais globais e nacionais (Maciel, 2011). Suas atividades de trabalho incluem:
consultoria técnica em projetos e ações específicas, ao lobby no Legislativo e Executivo
federais, à propositura de projetos de lei e de políticas públicas de igualdade de gênero e a
capacitação de agentes estatais das redes de atendimento às mulheres vítimas de violência
sexual. A seguir, uma breve descrição das organizações56 destaca, com mais detalhes, sua
forma de atuação:
55
Tal recomendação também é citada no Anteprojeto de lei elaborado pelo Consórcio (ver Anexo 4).
As informações foram coletadas dos sites das organizações, com exceção da Advocaci e Agende. Advocaci
possui um blog desatualizado com poucas informações. Agende não possui site. Outras informações
complementares foram extraídas do Quadro Informativo das ONG’s e Redes feministas, de Direitos
Reprodutivos e Saúde Reprodutiva, produzido pelo Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e
Desenvolvimento do Departamento de Antropologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Disponível em: <goo.gl/wV2Hxf>. Acesso em 5 mai. 2016.
56
80
1- Advocaci (Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos): Fundada em 2001 com
sede no Rio de Janeiro. Define-se como organização não governamental, cujo objetivo é
fomentar o uso estratégico do direito (como instrumento de intervenção) nas políticas públicas
para a promoção e defesa dos direitos humanos.
2- Agende (Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento): Fundada em 1998
com sede em Brasília. A organização tem por missão fortalecer a perspectiva feminista na
agenda política. Além de monitorar políticas públicas, acordos e convenções internacionais,
cria espaços de reflexão e troca de experiências para capacitar organizações e sensibilizar
agentes governamentais e formadores de opinião sobre o tema de gênero.
3- Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação): Fundada em 1990
com sede no Rio de Janeiro. Apresenta-se como uma organização não governamental, sem
fins lucrativos, que executa projetos a partir da perspectiva de gênero e no marco dos direitos
humanos. Atua com foco nas áreas da saúde; direitos reprodutivos e sexuais; violência; acesso
à justiça; pobreza e trabalho. Desenvolve estudos e pesquisas, organiza seminários e
conferências, dialogando com diversos atores para ampliar o debate em torno de questões de
sua agenda de trabalho. Na área de advocacy, atua na proposição, acompanhamento e
avaliação de políticas públicas.
4- Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea): Define-se como uma
organização não governamental feminista, sem fins lucrativos, cujos marcos políticos e
teóricos são: o feminismo, os direitos humanos, a democracia e a igualdade racial. Com sede
em Brasília, foi fundado em 1989 por um grupo de mulheres feministas que assumiram a luta
pela regulamentação dos novos direitos conquistados na Constituição Federal de 1988. Sua
forma de atuação ocorre através da sensibilização e conscientização; articulação e
mobilização;
advocacy
(promoção
e
defesa
de
ideias);
comunicação
política;
acompanhamento e controle social.
5- Comitê da América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres
(Cladem): Trata-se de uma rede feminista que articula pessoas, movimentos e organizações
não governamentais da América Latina e do Caribe contribuindo para o exercício pleno dos
direitos das mulheres. Foi criado em 1987, mas no Brasil se constitui em 1995. O Comitê
promove a defesa dos direitos das mulheres mediante o litígio internacional; o monitoramento
dos Estados; o fortalecimento da capacidade de seus membros para a análise e argumentação
jurídico-política, e o desenho de estratégias de ações para a ação política local e regional. Foi
uma das organizações que levou o caso Maria da Penha à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA).
81
6- Themis: Apresenta-se como uma organização não governamental feminista que
atua na defesa dos direitos das mulheres. Com sede em Porto Alegre, foi fundada em 1993 por
um grupo de advogadas e cientistas sociais feministas, com o objetivo de enfrentar a
discriminação contra mulheres no sistema de justiça. Seu trabalho se estrutura em três
estratégias principais: fortalecer o conhecimento das mulheres sobre seus direitos e o sistema
de justiça; dialogar com operadores/as do direito sobre os mecanismos institucionais que
preservam e reproduzem a discriminação contra mulheres; e advogar em casos estratégicos
para proteger e alavancar direitos das mulheres em esfera nacional ou internacional.
As organizações envolvidas no Consórcio foram criadas, em sua maioria, num
momento posterior à promulgação da Constituição de 1988, como relata uma das
entrevistadas:
[...] a Iáris e grande parte do pessoal do Cfemea trabalhava no Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher (CNDM). Quando o Conselho acabou, a Jacqueline
renunciou e todas as conselheiras renunciaram, quando o Sarney tirou todo o poder
do Conselho em 89. Elas criaram o Cfemea, né? Nós criamos a Cepia aqui, em 1990.
E outros grupos foram se formando. A Agende se formou depois, a Marlene era do
Cfemea, depois a Marlene saiu do Cfemea e criou a Agende né? O grupo Themis foi
criado depois, né? Tanto que a Carmen, a Rubia, a Denise Dora, esse pessoal todo lá
no Sul é uma geração mais nova do que a nossa. Mas foram se agregando, ou seja, a
gente tinha uma coisa muito clara na nossa cabeça de fazer com que essa
Constituição aprovada em 88 pudesse ser concretizada, então a década de 90 foi uma
década que as ONGs, e muitas delas com a participação de mulheres da área do
direito, as ONGs foram muito ativas, de fazer com que os direitos previstos na
Constituição fossem concretizados em políticas públicas e também normatizados
através de leis ordinárias. (Entrevista 1, realizada em 15/02/2016)
Além disso, é importante destacar que, de acordo com o relato de duas
entrevistadas, o envolvimento das integrantes do Consórcio no movimento feminista remonta
aos anos 1970 e 1980:
[...] todas nós vinhamos do movimento feminista desde a época de 1973, 74, aqui do
Rio, de alguma maneira [...] no Rio, em 73, teve os primeiros grupos feministas que
se formaram, eram grupos ainda de reflexão feminista. Já em 75, alguns desses
grupos de reflexão feminista, nós nos juntamos e conseguimos com apoio do
escritório da Unesco aqui no Brasil, em 75, plena ditadura, governo Médici e com
apoio da Associação Brasileira de Imprensa, nós organizamos um seminário que foi
quase uma semana na sede da ABI. Era um Seminário do Papel e o Comportamento
da Mulher na sociedade brasileira. [...] Nós começamos a nos organizar em grupos
mais estruturados nesse processo constituinte. Em 82 houve as eleições estaduais em
vários estados, governadores foram eleitos, em São Paulo foi eleito Franco Montoro,
que criou o Conselho Estadual da Condição Feminina. E numa grande, enfim,
articulação, acho que foi até uma articulação pessoal também de muitas feministas
paulistas que estavam ali no governo Montoro, inclusive da Ruth Escobar também,
nesse contato com o Tancredo Neves, tirou do Tancredo a promessa que ele criaria
um Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. E a morte do Tancredo não impediu
que esse conselho fosse criado pelo Sarney. Então o conselho foi criado, a primeira
presidenta foi a Ruth Escobar, que se candidatou a Deputada Federal, e foi eleita.
Então ela não podia acumular um cargo Legislativo com um cargo Executivo. E ela
preferiu ficar no cargo Legislativo. Então para esse cargo Executivo nós fizemos um
lobby muito grande em torno do nome da Jacqueline, que era conselheira do
82
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. E a Jacqueline, então, feminista no
Conselho, em 85, nesse processo Constituinte, o conselho passa a mobilizar uma
militância, isso foi uma coisa bonita, que era uma época que a gente não tinha fax,
não tinha internet nem pensar, não tinha esses meios de comunicação. A coisa era
mesmo telefone, cartas e mobilização de rua..O Conselho começou a fazer uma série
de mobilizações em Brasília, onde saiu a Carta das Mulheres na Constituinte.
(Entrevista 1, realizada em 15/02/2016)
Nós éramos um grupo que se conhecia. Eu fui no Fórum Social Mundial, na
Conferência de Beijing, na Conferência de Direitos Humanos de Viena. A partir do
momento que eu vim pra Brasília, em 1992, eu me inseri nos principais movimentos
sociais. Com as mulheres, foi antes, em 1986, antes da Constituinte, eu já conhecia a
Leila Linhares, Branca Moreira Alves, Silvia Pimentel. Eu já as conhecia, e então
quando eu vim pra Brasília essa relação aumentou por conta da Conferência de
Beijing. (Entrevista 5, realizada em 18/03/2016)
Considerando a trajetória comum das integrantes do Consórcio, no movimento
feminista, são vários os fatores apontados pelas entrevistadas (Entrevistas 2, 3, 4) que
explicam o que motivou a formação do grupo, que redigiu o anteprojeto de lei, hoje conhecido
como Lei Maria da Penha.
É um processo antigo de acúmulo feminista que foi ganhando vários impulsos ao
longo do caminho. Um deles foi o projeto de lei contra a violência familiar elaborado por
Silvia Pimentel57 e Maria Inês Pierro, na década de 1990, apresentado pela Deputada Maria
Luiza Fontenele (PSB-CE) que acabou arquivado58. Um segundo impulso foi originado dos
efeitos negativos trazidos pela aplicação da Lei 9.099/95, aos casos de violência contra as
mulheres, e o conflito dessa norma com os princípios defendidos pela Convenção de Belém
do Pará, incorporada pela legislação brasileira em 1995. O terceiro impulso foi o caso Maria
da Penha e a decisão proferida, em 2001, pela Comissão Internacional de Direitos Humanos
(CIDH), que teve uma repercussão nacional muito forte. Um quarto impulso foi o veto
presidencial, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, ao projeto de lei59 apresentado
pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ). Trata-se da proposição mais ampla sobre
violência doméstica que havia sido apresentada desde a Constituinte. Esse veto motivou um
estudo do Cfemea sobre os projetos de lei em tramitação, sobre a temática, que foi uma das
bases para a discussão do anteprojeto de lei elaborado pelo Consórcio. O quinto impulso foi a
criação da Secretaria Especial de Política para as Mulheres, no início do primeiro governo
Lula em 2003. E o último impulso foi o próprio trabalho comum das organizações, e a
percepção de que aquele era um momento favorável para escrever e apresentar o projeto.
Soma-se a isso um cenário de base que inclui a trajetória das representantes do Consórcio no
57
Silvia Pimentel integrou o consórcio de ONGs que atuou no caso da Lei Maria da Penha representando o
Cladem (Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher).
58
Disponível em: <goo.gl/OfR0E3>. Acesso em 5 out. 2016.
59
Disponível em: <goo.gl/VaYaIY>. Acesso em 5 out. 2016.
83
movimento feminista, desde os anos 1970, e o envolvimento de algumas delas com o CNDM,
considerado como a instância mais importante da política feminista baseada nos grupos de
pressão (Alvarez, 1994).
Dentre todos os fatores mencionados acima, uma das entrevistadas descreve como
os efeitos negativos da aplicação da Lei 9.099/95, nos casos de violência doméstica, motivou
a formação do Consórcio. Enquanto advogada, ela relata que as alternativas de enfrentamento
à violência, propiciadas pela Lei dos Juizados Especiais Criminais, não eram satisfatórias para
as mulheres que ela atendia na Themis (Entrevista 2). Além disso, a entrevistada alega que a
Convenção de Belém do Pará, embora ratificada pelo Brasil, não era reconhecida pelo Poder
Judiciário. Nesse sentido, as feministas atuantes nas ONGs do Consórcio tinham, em comum,
um incômodo e certa resistência à lei vigente, mas não tinham alternativas, pois não havia, até
aquele momento, uma legislação que tratasse da violência doméstica de maneira ampla e
integral (Santos, 2010). Nas palavras da entrevistada:
Eu particularmente, eu advogava e atendia as mulheres. Então advogava com a Lei
9.099, as mulheres não gostavam da solução da Lei 9.099, não gostavam da forma,
não gostavam de nada que acontecia em uma audiência, e não gostavam da solução,
da decisão, e a gente não tinha muito o que fazer a não ser recorrer, mas não tinha
como recorrer a não ser através da Convenção, a Convenção não era reconhecida e
então ficava uma situação muito difícil. E isso começou a se tornar um incômodo
muito grande para nós dentro da Themis. E aí eu acho que eu liguei para a Leila, e a
Leila também lá no Rio de Janeiro, e esse consórcio... essas feministas todas, nós do
campo do direito, a gente sempre conversou muito sobre os projetos de lei, então
todas nós tínhamos a mesma impressão sobre a Lei 9.099. [...] então tudo isso foi
criando, dentro do direito e dentro das feministas do direito, digamos uma
resistência a essa legislação, a Lei 9.099, que não atendia aos interesses das
mulheres, pelo menos não as que a gente atendia na Themis. Então eu acho, não me
lembro bem direito, mas eu acho que eu liguei para a Leila no fim de uma audiência
que foi terrível naquele dia, peguei o telefone "Leila, a gente tem que fazer alguma
coisa, vamos fazer alguma coisa com relação a isso..." e eu acho que o Cfemea
(Centro Feminista de Estudos e Assessoria) já estava pensando alguma coisa
também. E aí a Leila "vamos fazer uma reunião aqui no Rio" e aí a gente marcou. "E
quem é que a gente vai convidar?" "Ah, vamos convidar o pessoal do Cladem, o
pessoal da Advocaci...", "Vamos convidar as ONGs do direito", foi a primeira
tentativa. A gente tem uma foto, tem um boletim da primeira reunião do consórcio.
Aí a gente fez uma primeira reunião lá no Rio (Entrevista 2, realizada em
3/03/2016).
Levando em conta o acúmulo feminista das representantes do Consórcio e os
impulsos que foram se somando, quando esse grupo se forma a questão do conflito legislativo
mencionado pela entrevista acima era muito presente para as organizações envolvidas. Como
vimos, existiam duas normas que, aplicadas ao tema da violência contra a mulher, ofereciam
interpretações divergentes: a Convenção do Belém do Pará, ratificada pelo governo brasileiro,
e a Lei 9.099/95 que criou os Juizados Criminais. Isso se dava porque a Convenção e uma
série de instrumentos internacionais consideram a violência contra a mulher uma violação de
84
direitos humanos, ou seja, um crime de grande gravidade. No entanto, a Lei 9.099/95 que
incorporou tipos penais comumente praticados contra as mulheres, como lesão corporal leve e
ameaça, considerava tais delitos como crimes de menor potencial ofensivo.
Esse conflito é o núcleo do debate ocorrido entre o movimento feminista e os
operadores jurídicos, que será melhor desenvolvido no tópico que trata do Grupo de Trabalho
Interministerial (GTI). Trata-se de um imbróglio claramente reconhecido e debatido pelas
representantes das ONGs do Consórcio:
Então, instaurou-se esse conflito legislativo. Uma Convenção que tem força de lei
interna, e ao mesmo tempo uma lei interna que joga uma quantidade enorme de
crime contra as mulheres, na área de ameaça e lesões corporais, que são crimes cuja
a punição não ultrapassava dois anos, para essa vala comum de crimes de menor
potencial ofensivo. Daí que é interessante a gente perceber que essa mobilização
para a mudança da lei teve um protagonismo muito grande de mulheres da área do
direito. Nós começamos a questionar por aí, há um conflito legislativo. Uma lei fala
de direitos humanos e a outra lei classifica isso como menor potencial ofensivo. Foi
em cima dessa ideia, do conflito legislativo, que foi o nosso grande argumento, e em
cima dos dados estatísticos que mostravam que essas violências eram praticadas, que
iam para os juizados, que nada acontecia e que dava para os agressores um
sentimento grande de impunidade, e para as vítimas um sentimento de que não havia
justiça e o jeito era ficar apanhando, né? (Entrevista 1, realizada em 15/02/2016)
Então a gente tinha um marco jurídico nacional, a Constituição; uma legislação
infraconstitucional incompatível com a Convenção de Belém do Pará e na nossa
opinião incompatível com a Constituição inclusive; tínhamos uma Convenção e o
caso Maria da Penha. Então nós tínhamos um marco normativo muito forte que na
nossa visão afastava a aplicação da lei 9.099, só que a gente não tinha nenhum outro
instrumento jurídico para colocar no lugar (Entrevista 2, realizada em 3/03/2016).
As entrevistas deixam claro o posicionamento que as integrantes do Consórcio
tinham sobre a Lei 9.099/95. Essa problemática foi um dos disparadores para a própria
articulação das organizações e as ações que elas realizaram. Nos próximos tópicos, veremos
como o grupo se mobilizou desde as primeiras reuniões, até seu envolvimento nas discussões
ocorridas no Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), cujo produto final foi um projeto de
lei sobre violência doméstica contra a mulher. Denominamos essa fase de pré-tramitação.
2.3 Pré-tramitação (2002-2004)
2.3.1 As primeiras ações do Consórcio de ONGs
Ainda que o Consórcio tenha se articulado desde 2001 (Barsted, 2007), os
primeiros registros das reuniões são de agosto de 2002 (Barsted e Lavigne, 2002). Uma delas
ocorreu na Cepia, sediada no Rio de Janeiro. A pauta do encontro era: avaliar os efeitos da Lei
9.099/95 sobre os crimes de violência doméstica contra as mulheres; analisar os diversos
85
projetos de lei em tramitação no Congresso, bem como a legislação de diversos países latinoamericanos sobre a temática; e buscar uma resposta legislativa adequada a essa questão.
Nessa reunião estiveram presentes Leila Barsted (Cepia), Carmen Campos (Themis), Silvia
Pimentel (Cladem), Iáris Cortes (Cfemea), Ester Kosoviski (Uerj), Elizabeth Garcez
(Agende), Beatriz Galli (Advocaci), Rosana Alcântara (Cedim - Conselho Estadual de
Direitos da Mulher do Rio de Janeiro), além da Defensora Pública do Estado do Rio de
Janeiro, Rosane Lavigne e da Procuradora da República, Ela Wiecko.
Nessa oportunidade, o Cfemea apresentou o estudo “Situação dos Projetos de Lei
sobre Violência Familiar em Tramitação no Congresso Nacional” para ser debatido com o
grupo participante do evento. O balanço final do levantamento, sobre os projetos em
tramitação, apontava que eles “estavam muito aquém das reivindicações feministas e, em
sendo aprovados, iriam alterar pontualmente algumas leis já existentes, mas não iriam minorar
o problema da violência doméstica contra as mulheres” (Cortes e Calazans, 2011, p.41). Em
suma, algumas das conclusões do grupo foram: rejeitar a Lei 9.099/95 no tratamento da
violência doméstica cometida contra as mulheres; elaborar um anteprojeto de lei sobre a
temática que incorporasse a preocupação com as vítimas, incluindo medidas de proteção; e
debater esse anteprojeto com o movimento de mulheres, parlamentares, membros da
magistratura, dentre outros atores sociais. (Barsted e Lavigne, 2002).
Outra reunião aconteceu em outubro de 2002, em Brasília, com as mesmas
participantes do encontro ocorrido no Rio de Janeiro, junto com juízes de juizados criminais
de diversos estados brasileiros. A coordenação do Consórcio ficou sob responsabilidade do
Cfemea, por estar sediado em Brasília, e pela experiência da organização em advocacy no
Legislativo e Executivo. Esse processo durou pelo menos dois anos e as entrevistadas relatam
como ele ocorreu:
Aí fizemos essa primeira reunião e decidimos criar a partir daí um consórcio de
ONGs e ampliar esse consórcio. Nós tínhamos que ganhar pessoas, que isso não
podia ser só... era um projeto capitaneado pelas feministas, mas precisávamos ter
gente da área jurídica que não fosse só feminista. [...] então a gente decidiu que ia
ampliar também o consórcio, a gente ia ser digamos o núcleo duro do consórcio, nós
coordenaríamos todo o trabalho, e íamos ampliar: ia discutir, chamar mais gente. E
fizemos isso durante quase dois anos, aí a gente discutia com as mulheres também.
Por exemplo: ia para um evento "olha, a gente está pensando assim, assim, um
projeto de lei", ouvia as mulheres também, a opinião do movimento de mulheres. E
foi isso que a gente fez durante dois anos (Entrevista 2, realizada em 3/03/2016)
[...] a gente levantou a lei da Espanha que estava praticamente aprovada. A gente viu
leis de outros países da América Latina que eram muito limitadas. Enfim, a gente
estudou para fazer isso, não foi simplesmente vamos escrever aí qualquer coisa da
nossa cabeça, não foi isso. Quer dizer, teve um trabalho de lobby, de advocacy, mas
teve um trabalho de estudo, de discussão, de reflexão, de direito comparado. Essa
preocupação também de a gente imaginar, da participação de redes internacionais,
86
principalmente redes latino americanas. Há um trabalho intenso para a gente chegar
em 2003, sentar e vamos escrever essa lei. (Entrevista 1, realizada em 15/02/2016)
Em novembro de 2003, o resultado do trabalho do Consórcio foi apresentado no
Seminário Violência Doméstica60, realizado na Câmara dos Deputados, em comemoração ao
Dia Internacional de Combate à Violência. O Seminário foi promovido pela Comissão de
Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO), através do requerimento da
deputada Iriny Lopes (PT-ES). Iriny Lopes explicou que se constituiu, dentro da Comissão de
Segurança Pública, alguns subgrupos de trabalho e um deles tratava da violência doméstica,
do qual ela era relatora. Segundo ela, a expectativa do evento era trazer ideias e proposições
que ajudassem os parlamentares na aprovação das leis sobre a violência doméstica contra as
mulheres.
É interessante notar a participação das ONGs do Consórcio nesse seminário - com
a pauta de apresentar sua proposta legislativa sobre o tema da violência doméstica principalmente porque a participação de membros da sociedade civil nesses eventos, como
expositores, depende de um convite por parte dos parlamentares. Ao questionarmos as
entrevistadas sobre como se deu essa oportunidade, uma delas respondeu “a gente já estava
dentro” (Entrevista 3). Outra entrevistada complementou que as organizações feministas,
como o Cfemea, são sempre chamadas pela bancada feminina para participar das pautas do
Congresso relacionadas às mulheres (Entrevista 4).
Ao longo do seminário, a ministra da Secretaria Especial de Política para as
Mulheres (SPM) na época, Emília Fernandes, criticou em sua fala a abrangência da Lei
9.099/95 e mencionou sobre a necessidade do Brasil ter uma legislação no âmbito da
violência doméstica. Jandira Feghali (PcdoB-RJ), representando a coordenação da Bancada
Feminina do Congresso, citou a proposição apresentada por ela (PL 2.372/2000) que dispõe
sobre o afastamento cautelar do agressor da habitação familiar. Trata-se de um projeto que foi
vetado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Feghali fez uma reflexão sobre o
ineditismo do Seminário acontecer dentro de uma Comissão Permanente. Segundo ela, as
Comissões nunca antes trataram da perspectiva de gênero no Congresso. Era um fenômeno
recente e que expressava o acúmulo de um trabalho que o movimento feminista realiza há
décadas. A própria criação da SPM, com status de ministério no governo Lula, tem relação
direta com as lutas de gênero.
60
O arquivo sonoro desse Seminário está disponível em: <goo.gl/jEvq3x> (manhã) <goo.gl/dH6FFc> (tarde).
Acesso em 10 jun. 2016.
87
Leila Linhares, representante do Consórcio de ONGs, fez uma fala propondo uma
reflexão sobre a questão cultural envolvendo a aceitação da violência contra a mulher,
principalmente, quando cometida por alguém do seu círculo afetivo. Além disso, explicitou a
crítica à Lei 9.099/95 reiterando que não se tratava de uma busca por um direito vingativo,
mas um direito que protegesse a vítima, respeitasse a dignidade da pessoa humana, repudiasse
a prática criminosa e cumprisse o que a Convenção de Belém do Pará determinava.
Silvia Pimentel, também representante do Consórcio, fez uma exposição ao longo
do evento intitulada “Ações de prevenção e combate à violência doméstica: construindo uma
legislação especial”. Ela mencionou o compromisso histórico do grupo de trabalho, composto
por ONGs feministas, na elaboração e aprovação de uma legislação nacional específica sobre
a violência contra a mulher, no âmbito privado das relações interpessoais, domésticas,
familiares e afins. Durante sua fala, a minuta de anteprojeto foi apresentada aos
parlamentares. Em resumo, o texto apresentado pelo Consórcio, nesse Seminário, continha as
seguintes propostas:
a) conceituação da violência doméstica contra a mulher com base na Convenção de
Belém do Pará, incluindo a violência patrimonial e moral;
b) criação de uma Política Nacional de combate à violência contra a mulher;
c) medidas de proteção e prevenção às vítimas;
d) medidas cautelares referentes aos agressores;
e) criação de serviços públicos de atendimento multidisciplinar;
f) assistência jurídica gratuita para as mulheres;
g) criação de um Juízo Único com competência cível e criminal através de Varas
Especializadas, para julgar os casos de violência doméstica contra as mulheres e
outros relacionados;
h) não aplicação da Lei 9.099/1995 – Juizados Especiais Criminais – nos casos de
violência doméstica contra as mulheres. (Calazans e Cortes, 2011, p.44)
No próprio Seminário, as parlamentares discutiram sobre formas de apresentação
da minuta ao Legislativo. A deputada Iriny Lopes (PT-SP) reconheceu a importância da
proposta apresentada, fruto de um amplo debate, que envolveu tantas entidades e que, naquele
momento, foi exposta publicamente. A deputada Luiza Erundina (PSB-SP) cogitou a
possibilidade da minuta ser apresentada, como sugestão legislativa, na Comissão de
Legislação Participativa pelas próprias ONGs integrantes do Consórcio. Outro caminho seria
a bancada feminina da Câmara, como sugestão das deputadas Iriny Lopes (PT-ES) e Iara
Bernardi (PT-SP). Isso porque, naquele momento, o projeto que estava em estágio mais
avançado de tramitação sobre o tema era o da deputada Iara Bernardi (PT-SP). Por isso,
discutiu-se a ideia de trabalhar uma articulação com a bancada feminina, os líderes dos
88
partidos e a Mesa Diretora da Câmara para apensar61 a minuta do Consórcio ao projeto da
parlamentar. Entretanto, ao final, Calazans e Cortes (2011) relatam que se chegou ao
consenso de que a proposta deveria ser feita pelo Executivo. O principal motivo apontado
pelas autoras é o fato de que o projeto incluía a criação de despesas cuja competência caberia
ao Executivo - como, por exemplo, a criação de Varas Especializadas para julgar os casos de
violência doméstica. Desse modo, a SPM se engajou na questão:
A Ministra da SPM mostrou-se receptiva e, de pronto, acolheu a proposta,
prontificando-se a dar andamento ao projeto no menor espaço de tempo possível.
Assim o fez, em pouco tempo, realmente, formou-se um Grupo de Trabalho
Interministerial para elaborar uma proposta de medida legislativa e outros
instrumentos para coibir a violência doméstica contra a mulher, utilizando como
documento-base o estudo do Consórcio, considerado por muitos como uma
legislação inovadora para o direito brasileiro. (Ibidem, p. 45)
Segundo a percepção de uma das entrevistadas sobre a SPM, tratava-se de um
ministério recente, com estrutura pequena, mas composto de muitas burocratas vinculadas ao
movimento feminista (Entrevista 4). É citado o nome da assessora parlamentar da SPM à
época, Regina Dantas, que vinha do movimento feminista, como um ponto focal importante.
Por isso, havia a ideia de se construir a legislação em parceria.
Para que o trabalho realizado pelo Consórcio continuasse, era necessário um
pequeno financiamento que acabou vindo da própria SPM. Assim, o Cfemea realizou um
convênio com a SPM e o projeto apresentado pela organização foi intitulado "Violência
doméstica no Brasil: um estudo do movimento de mulheres para a criação de um anteprojeto
de lei sobre o tema”. O projeto teve duração de 10 de dezembro de 2003 a 10 de novembro de
2004. O grupo tinha uma boa interlocução com a SPM, pelo que se denota do relato de uma
das entrevistadas:
[...] já tinha sido criada a Secretaria de Política para as Mulheres, porque era o
primeiro ano do governo Lula, e disseram "não, vocês podem apresentar uma
proposta que a gente financia as atividades do consórcio", e aí foi feito um projeto,
um projeto até pequeno para o período, era fazer um seminário, reuniões. [...]
Primeiro projeto especifico para isso. Projeto pequeno, não era projeto grande não
[...]. Tinha que promover umas duas ou três reuniões de encontro desse grupo para
vir pra Brasília, para conversar com as parlamentares, e muita da coisa era discussão
pela internet (Entrevista 4, realizada em 17/03/2016)
De acordo com o relatório final apresentado pelo Cfemea (Anexo 3), as atividades
realizadas através do Convênio foram:
A apensação é um “instrumento regimental que permite a tramitação conjunta de proposições da mesma
espécie que disponha sobre matéria idêntica ou correlata” (RICD, Arts. 142 e 143). Disponível em: <
goo.gl/3BN2Iu>. Acesso em 15 jun. 2016.
61
89
-
Análise dos projetos de lei sobre violência doméstica que tramitavam no
Congresso Nacional;
-
Pesquisa da legislação latino-americana sobre o tema;
-
Realização de reuniões entre as organizações do Consórcio;
-
Divulgação das atividades realizadas pelo grupo e da própria discussão sobre o
projeto, no site e nas publicações produzida pela organização;
-
Elaboração de anteprojeto de lei sobre violência doméstica;
-
Advocacy junto aos parlamentares, bancada feminina e instâncias do governo
federal.
As atividades de advocacy no Legislativo são exemplificadas através de reuniões
com integrantes da Bancada Feminina do Congresso, em busca da união de esforços para
elaboração e aprovação de uma lei integral. Já as atividades de advocacy, junto ao Executivo,
se concentraram na atuação do consórcio no Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), que
reuniu representantes das principais instâncias governamentais interessadas e com poderes de
decisão, para a elaboração do projeto de lei para coibir a violência doméstica contra a mulher.
O relatório de trabalho apresentado declarou que o Consórcio havia trabalhado na elaboração
da proposta legislativa até março de 2004, quando a entregou oficialmente à SPM. Todo o
material produzido através do convênio foi posteriormente encaminhado ao GTI para
subsidiar seus trabalhos. Para as integrantes do grupo, era claro que o apoio do Executivo ao
projeto era estratégico e necessário, ainda que a proposta não fosse apresentada por ele. Elas
relataram também a preocupação de formar um consenso dentro da bancada feminina do
Congresso:
Para a proposta para ter mais força, ela tem que vir, mesmo que não seja o Executivo
que apresente, ela tem que vir com apoio do Executivo, e tem que ter o apoio, fazer
um consenso dentro da bancada, de que essa proposta ela atende a todo mundo. [...]
Era preciso consensuar isso, ao mesmo tempo que você estava trabalhando assim, tá
fazendo todo esse trabalho, que era um trabalho mesmo de advocacy, era o tema,
colocar o tema na pauta, na agenda, como prioridade. E dizer que aquela proposta
era uma solução, digamos, boa para todas as partes. (Entrevista 4, realizada em
17/03/2016)
Além disso, as entrevistadas relatam (Entrevistas 3 e 4) que o governo
considerava a aprovação do projeto como algo estratégico. Isso porque, em 2001, o caso
Maria da Penha gerou uma reação por parte da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) que apresentou uma série de recomendações ao governo brasileiro,
responsabilizando o Estado por tolerância a violência doméstica contra as mulheres, como já
relatamos.
90
Ao fim, diante da acolhida do anteprojeto do Consórcio pelo Executivo, a SPM
institui um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI). Em seguida, trataremos dos embates
ocorridos no GTI. As discussões nesse grupo evidenciaram as diferenças de posicionamento
entre o Consórcio de ONGs e os juízes integrantes do Fórum Nacional de Juizados Especiais
(Fonaje) causando impacto no produto final do GTI.
2.3.2 O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI)
Por meio do decreto presidencial nº 5.030, de 31/03/200462, o Grupo de Trabalho
Interministerial foi instituído para elaborar proposta de medida legislativa com o intuito de
coibir a violência doméstica, com a coordenação da SPM. Foram envolvidos na discussão do
grupo: representantes da Casa Civil, Advocacia Geral da União, Ministério da Saúde,
Ministério da Justiça, Secretaria Especial dos Direitos Humanos e Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Representantes de organizações da sociedade civil
poderiam ser convidados para participar de reuniões ou discussões organizadas pelo grupo.
Desde o início de 2004, Nilcéa Freire havia assumido o cargo de ministra da SPM,
no lugar de Emília Fernandes. Ao ser convidada para uma audiência pública, durante a
tramitação do Projeto de Lei 4.559/04, ela explica resumidamente como foi o processo de
discussão ocorrido no GTI.
Quando do início de 2004, a SPM foi procurada por um grupo de ONGs, que
formavam um consórcio, e ainda formam a época, para discutir questões vinculadas
a violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher. Esse consórcio já há dois anos
preparava estudos, no sentido da apresentação de um anteprojeto de lei, que pudesse
definir procedimentos que pudessem garantir às mulheres brasileiras que houvessem
procedimentos, no nível da justiça, que pudesse, por um lado, prevenir e coibir esse
tipo de violência e, por outro lado, fazer a sanção e a punição aos seus agressores.
Esse projeto que vinha sendo construído há dois anos, foi então apresentado a SPM.
Nós recebemos esse projeto com muita alegria, o material fruto do trabalho do
Consórcio, que nos solicitou que déssemos um encaminhamento no sentido de que
pudéssemos apresentar um anteprojeto de lei em conjunto, a partir daquela
formulação inicial. Nós abraçamos essa ideia entusiasticamente e criamos dentro dos
ritos governamentais, os ritos do Executivo, criamos um Grupo de Trabalho
Interministerial, conforme é o formato do Executivo, para tendo o produto do
trabalho do Consórcio em mãos, trabalharmos com ele como um subsídio à
elaboração de um anteprojeto de lei, posteriormente um projeto de lei, que pudesse
ser encaminhado a essa Casa63.
O anteprojeto de lei sobre violência doméstica e familiar contra a mulher entregue
pelas ONGs do Consórcio à SPM (Anexo 4) foi elaborado pelas seguintes organizações e suas
62
Disponível em: <goo.gl/GCGGYS>. Acesso em 15 jun. 2016.
Fala da Ministra da SPM, Nilcéa Freire, na Audiência Pública realizada para debater o PL nº 4559, de 2004,
que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Ocorrida em 26 de abril de
2005. Disponível em: <goo.gl/HO8Ki1>. Acesso em 10 jun. 2016.
63
91
respectivas representantes: Advocaci (Beatriz Galli e Rosana Alcântara), Agende (Elizabeth
Garcez), Cepia (Leila Barsted), Cfemea (Iáris Cortes, Giane Boselli e Myllena Matos),
Cladem (Silvia Pimentel, Juliana Belloque e Valéria Pandjiarjian) e Themis (Carmen Campos
e Rubia Cruz). Colaboraram também Ela Wiecko (Procuradora da República e Professora de
Direito Penal da Universidade de Brasília), Ester Kosoviski (Professora de Direito Penal da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Leilah Borges (Membra do Instituto dos
Advogados Brasileiros), Rosane Lavigne (Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro),
Simone Diniz (médica e membra do Coletivo Feminista e Casa Eliane de Grammont), Wania
Pasinato (socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP), Salo
Carvalho (advogado) e Adilson Barbosa (Assessor Parlamentar da Câmara dos Deputados e
advogado).
Algumas representantes do Consórcio (Entrevistas 3 e 4) relatam que
apresentaram o anteprojeto à então ministra Nilcéa Freire, logo no início de sua gestão. Ela
reagiu de forma positiva, propondo a criação do GTI, para ouvir todos os atores interessados
na pauta, incluindo os representantes dos Juizados Especiais Criminais. Além do Consórcio,
participaram das discussões do GTI outros grupos da sociedade civil, como a Articulação de
Mulheres Brasileiras (AMB); a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos e o Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje). Segundo Calazans
e Cortes (2011), a participação de ONGs e feministas foi bastante intensa nas discussões do
GTI sempre defendendo os pontos básicos do anteprojeto que não poderiam ser retirados da
versão original. Um deles era a não aplicação da Lei 9.099/1995 (Juizados Especiais
Criminais) nos casos de violência doméstica contra as mulheres.
Como cerca de 70% dos casos que chegavam aos Juizados envolviam situações de
violência doméstica contra as mulheres (Barsted, 2007), no caso da não aplicabilidade da Lei
9.099/95, os juizados perderiam a competência para tratar dessa matéria e isso teria impacto
direto no trabalho dos juízes representantes do Fonaje, que participavam do GTI. Ao longo
dos trabalhos, foi se tornando claro para o Consórcio a posição dos juízes de que a violência
contra as mulheres deveria continuar sob a égide da Lei 9.099/95, contando com apoio de
alguns integrantes da SPM e participantes do GTI (Calazans e Cortes, 2011). Os juízes do
Fonaje “tinham a expectativa de manter inalterado o status quo” (Lavigne, 2011, p.78) o que
significava a manutenção da competência dos Juizados Criminais para processar e julgar os
crimes relacionados à violência doméstica contra a mulher.
A posição dos operadores jurídicos sobre o tema era de que uma alteração na Lei
9.099/95 bastaria para atender aos anseios do Consórcio. Não seria necessária a criação de
92
uma nova lei para tratar, exclusivamente, de crimes de violência doméstica contra a mulher.
Para eles, os Juizados Especiais Criminais significavam:
uma garantia de acesso à justiça por uma parcela até então excluída da esfera
jurídica, uma vez que essas instituições apresentavam características como baixo
custo processual, medidas alternativas de punição e celeridade” (Romeiro, 2009,
p.69).
Sob esse ponto de vista, os Juizados traziam a possibilidade de efetivar, pela
primeira vez no Brasil, mecanismos jurídicos mais afinados com a perspectiva dos direitos
humanos, por meio da celeridade nos casos julgados e através da aplicação de penas
alternativas ao encarceramento (Romeiro, 2007). Havia também uma certa dificuldade, por
parte de alguns juízes, na compreensão da violência doméstica contra a mulher como um tipo
específico de violência. Isso porque o reconhecimento de um tipo específico de crime, entre
pares que mantém relações de afetividade, aliado à visão da mulher como sujeito passivo de
relações violentas, abria questionamentos sobre a universalidade da lei, já que exclui a
possibilidade de entender que os homens também poderiam ocupar esse papel. Um dos
argumentos utilizados pelos representantes do Fonaje era que a especificidade de uma lei para
as mulheres feria “o princípio da igualdade proposto pela Constituição Federal de 1988”
(Romeiro, 2007, p.89).
Por outro lado, dentre as principais críticas das feministas sobre a aplicabilidade
da Lei 9.099/95 estavam: o despreparo dos conciliadores para lidar com as questões de
gênero; a visão tradicional da Justiça sobre a função social da família; a estipulação de
simples multas no combate à violência, como as cestas básicas; e a definição de violência de
menor potencial ofensivo, em desacordo com as prerrogativas defendidas pelos instrumentos
jurídicos internacionais, dos quais o Brasil é signatário (Calazans e Cortes, 2011; Campos,
2004; Romeiro, 2009). Lavigne (2011) ressalta que o movimento feminista reconhecia os
pontos positivos trazidos pela Lei 9.099/95. Como, por exemplo, a base de dados sobre o tema
que se viabilizou graças aos registros advindos das ações de violência contra a mulher, que
corriam nos Juizados Especiais Criminais. No entanto, para apreciar práticas de violência
doméstica contra a mulher, esses Juizados apresentavam absoluta inadequação funcional.
Em linhas gerais, o anteprojeto apresentado pelo Consórcio à SPM (Anexo 4)
elencava definições sobre os tipos de violência doméstica e familiar praticados contra a
mulher e oferecia uma perspectiva de tratamento integral, com medidas de proteção e
prevenção às vítimas. O artigo 29 tratava da criação das Varas Especializadas de Violência
93
Doméstica Contra a Mulher, com competência cível e penal para julgar os respectivos casos, e
o artigo 33 expressava claramente a não aplicação da Lei 9.099/95 nesses casos.
Ao final dos debates no GTI, embora o Executivo tivesse incorporado grande
parte da proposta do Consórcio ao projeto de lei - principalmente no que se refere aos
princípios e conceitos de proteção à mulher vítima de violência, baseados na Convenção de
Belém do Pará - a SPM cedeu ao lobby dos juízes. A secretaria acolheu as objeções dos
operadores jurídicos, incorporando a incidência da Lei 9.099 aos casos de violência doméstica
contra a mulher (Lavigne, 2011). Isso fica expresso nos artigos 12, 13 e 29 do Projeto de Lei
4.559/0464, enviado ao Congresso, pelo Executivo, que autorizam expressamente a aplicação
da Lei 9.099/95, em total desacordo com a proposta do Consórcio. No caso da criação de
Varas Especializadas para julgar os casos de violência doméstica contra as mulheres, a
proposta do Executivo prevê, no artigo 38, que elas poderão ser criadas, mas enquanto isso
não ocorresse, esses casos continuariam a ser julgados nos Juizados Especiais Criminais. Esse
ponto também foi questionado pelo movimento de mulheres (Calazans e Cortes, 2011).
Na audiência pública65 realizada na Câmara dos Deputados, em 26 de abril de
2005, a ministra da SPM, Nilcéa Freire relatou que o principal conflito, ao longo do GTI, foi
sobre a Lei 9.099/95. O Executivo se colocou na posição de mediador de perspectivas
diferenciadas sobre determinados aspectos do projeto, por parte de movimentos sociais e
ONGs, em relação aos operadores do direito - no caso, os representantes dos Juizados
Especiais Criminais. Não havia a pretensão de se esgotar, no GTI, todas as polêmicas em
torno da proposta. Por isso, foram feitas algumas escolhas que, na visão da ministra, poderiam
ser alteradas a partir dos debates feitos no Legislativo, ao longo da tramitação do projeto.
A principal dessas escolhas diz respeito, exatamente, à aplicação da Lei 9.099/95
aos casos de violência doméstica contra a mulher. A ministra afirma que, depois de muitas
consultas técnicas e também do ponto de vista político, realizou-se uma opção. Foi mantida a
aplicação da Lei 9.099/95, com a criação de procedimentos específicos para tratar da
violência doméstica contra a mulher dentro dos Juizados. Ocorre que essa escolha não
satisfazia as demandas do Consórcio, que não aceitava essa adaptação da Lei 9.099/95. Elas
defendiam a não aplicação dessa lei e esse era um ponto inegociável. A análise de duas
entrevistadas sobre esse momento era de que houve uma derrota no GTI, mas que era possível
reverter o resultado no Legislativo:
64
65
Disponível em: <goo.gl/phqJdb>. Acesso em 5 out. 2016.
O arquivo sonoro dessa Audiência está disponível em: <goo.gl/9h8etL>. Acesso em 15 jun. 2016.
94
E o que a Secretaria fez foi pegar esse projeto e criar um grupo maior, um GTI, e aí
tem uma história que a gente sempre conta, porque as protagonistas do primeiro
momento, que éramos nós, ficamos em segundo plano, e vieram para esse Grupo
Interministerial muitos juízes dos Juizados Especiais. E aí, quando a SPM
apresentou o projeto ao Executivo, a SPM mantinha toda uma parte inicial da Lei
Maria da Penha, mas mantinha tudo na lei 9.099 [...] só conhecendo o Judiciário
mesmo que a gente pode falar, né? Eles se apresentavam como sabedores da lei,
conhecedores da lei, isso aqui não pode, isso aqui é inconstitucional, não sei o
que...entendeu? Então, aquilo ali talvez tenha, num primeiro momento, tido um peso
muito grande no projeto, no projeto de lei, apresentado pela SPM. E nós víamos
também, e aí tem uma coisa, tem alguns momentos em que você tem que recuar e
atuar na outra frente. Nesse momento, quando a gente viu que não era por ali, nós
vamos para onde? Nós vamos para onde a gente tem um campo que a gente sabe
atuar, que é o campo do Legislativo. (Entrevista 1, realizada em 15/02/2016)
E aí, quando esse projeto vai para a discussão nesse GTI, o lobby dos juizados, do
Fonaje, é muito mais forte que o nosso lá dentro. Eles têm uma ascendência muito
forte sobre a Nilcéa, conseguem convencer o Grupo de Trabalho que deve-se fazer
apenas a mudança na lei 9.099. E é dessa forma que esse projeto sai para o
Congresso Nacional. E aí, bom, perdemos no governo, vamos recuperar o espaço no
Legislativo. (Entrevista 2, realizada em 3/03/2016)
Outras entrevistadas relataram que, de certa forma, era esperado que o texto
apresentado pelo consórcio fosse modificado, a partir do momento que ele fosse discutido
num grupo mais amplo e com a presença dos operadores jurídicos (Entrevistas 3 e 4). O
Consórcio tinha voz no GTI, mas enfrentava resistências e críticas ao documento apresentado.
Por isso, o texto final refletiu esses embates dando vantagem aos representantes do Fonaje. É
importante destacar que antes do projeto de lei chegar ao Congresso, tanto o Consórcio quanto
o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher receberam a versão final do texto e a sinalização
da SPM ao Consórcio foi que “as discussões e a negociação dos pontos divergentes poderiam
ser feitas no âmbito do Legislativo” (Barsted, 2007, p. 133).
Por fim, o produto final do GTI foi apresentado no Plenário da Câmara dos
Deputados, no dia 3 de dezembro de 2004, tornando-se o Projeto de Lei 4.559/200466. Sua
ementa estava assim redigida: cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, e dá outras
providências. Conforme despacho publicado no Diário Oficial da Câmara dos Deputados, no
dia 16 de dezembro de 2004, foi determinado que o projeto fosse analisado por três
Comissões: Seguridade Social e Família; Finanças e Tributação; Constituição e Justiça e de
Cidadania67.
66
A ficha de tramitação do projeto, na Câmara dos Deputados, está disponível em: <goo.gl/Hy5Aut>. Acesso
em 2 jun. 2016.
67
Disponível em: <goo.gl/3DmYVc> (D.O. da Câmara dos Deputados de 16/12/2004, p. 55.175). Acesso em 2
jun. 2016
95
No próximo tópico trataremos da fase da tramitação do projeto, que se inicia, na
Comissão de Seguridade Social e Família, na Câmara dos Deputados, e vai até a promulgação
da lei, em agosto de 2006.
2.4 Fase da Tramitação (2005-2006)
2.4.1. A atuação do Consórcio na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da
Câmara dos Deputados
O projeto foi inicialmente encaminhado à Comissão de Seguridade Social e
Família (CSSF) que, dentre suas atribuições, analisa matérias relativas à mulher, à família,
etc. (art. 32, XVII RICD). A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) foi designada como
relatora da matéria em 15 de fevereiro de 2005. Em março do mesmo ano, o Consórcio
organizou um debate em conjunto com a Articulação de Mulheres Brasileiras e outras
instituições feministas, convidando a deputada Jandira Feghali. Nessa oportunidade foi
exposta a proposta original, apresentada pelo Consórcio a SPM, e as alterações ocorridas no
PL 4.559/04. Na medida do possível, a deputada se comprometeu em realizar negociações
junto ao Legislativo e à SPM, com o intuito de contemplar a proposta do Consórcio. Foram
também debatidas as estratégias que o movimento de mulheres e o Consórcio desenvolveriam
para apoiar o trabalho da relatora, quais sejam:
a) constituição de um grupo de apoio para subsidiar os trabalhos da deputada
relatora;
b) realização de audiências públicas regionais em cidades a serem indicadas pelo
movimento de mulheres, contando com a presença e depoimentos de mulheres
vítimas de violências;
c) realização de audiências públicas na Comissão de Seguridade, com a participação
de mulheres que compareceram nas audiências regionais;
d) buscar recursos para realizar um seminário sobre 10 anos da Convenção de Belém
do Pará versus 10 anos da Lei 9.099/1995, reunindo feministas e juristas;
e) incluir no calendário de atividades das organizações e redes debates sobre o
projeto. (Calazans e Cortes, 2011, p. 48-9)
No decorrer do andamento do projeto na Comissão, algumas das ações agendadas
foram sendo realizadas. Em 26 de abril de 2005 foi realizada uma audiência pública, na
Câmara, cuja proposta feita pela relatora sugeria como convidadas a ministra da SPM, Nilcéa
Freire, juntamente com três representantes do Consórcio de ONGs: Leila Barsted (Cepia),
96
Silvia Pimentel (Cladem) e Ela Wiecko, Procuradora Federal. O objetivo da audiência era
debater o projeto em tramitação na CSSF68.
Nos registros do Arquivo Sonoro69 da audiência, não estão presentes as
representantes do Consórcio. Nilcéa Freire fez uma fala contextualizando a proposta
apresentada pelo Executivo, afirmando que se tratava de um projeto que tinha como subsídio
primário o produto do trabalho do Consórcio de ONGs, mas que ao longo do processo de
discussões no GTI sofreu modificações. Ela retomou os pontos discordantes entre o
movimento feminista e os operadores jurídicos com relação à aplicabilidade da Lei 9.099/95,
nos casos de violência doméstica contra a mulher, e ressaltou que, após consultas técnicas, foi
feita uma escolha que era também uma opção política. O projeto apresentado pelo Executivo
manteve os casos de violência doméstica contra a mulher na Lei 9.099/95, mas criou alguns
procedimentos específicos para tratar desses casos, dentro dos Juizados. O projeto foi
apresentado ao Legislativo, portanto, em discordância ao principal ponto defendido pelo
Consórcio e, em contrapartida, atendendo aos anseios dos representantes dos Juizados
Especiais Criminais, presentes no GTI. No final de sua fala, a ministra adotou um tom
conciliador ao dizer que não buscava a defesa de uma posição, mas sim levar em conta todas
as dimensões que estavam envolvidas na questão. Afirmou também que o compromisso da
SPM era de, através dessa legislação, finalmente coibir a violência doméstica contra a mulher.
A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), relatora do projeto, elogiou a postura da
ministra Nilcéa Freire pelo esforço de articulação e por não buscar a solução sozinha, no
Executivo, permitindo que as discussões sobre os pontos polêmicos do projeto seguissem no
Legislativo. Nesse sentido, a deputada mencionou sua intenção de realizar audiências públicas
nos Estados, por meio das Assembleias Legislativas, com o objetivo de ouvir a sociedade na
busca de soluções mais consensuais.
As audiências públicas propostas pela relatora aconteceram em diversos Estados.
O Consórcio se envolveu diretamente e se articulou com o movimento de mulheres, a
Bancada Feminina do Congresso, os Legislativos e Executivos locais para a realização das
audiências (Calazans e Cortes, 2011). De acordo com Brasil (2006), além da relatora, outros
parlamentares participaram das audiências, como as deputadas federais Maria do Rosário (PTRS), Iriny Lopes (PT-SP), Fatima Bezerra, Sandra Rosado, Mariângela Duarte, Maria do
Carmo Lara e o deputado federal Antonio Biscaia (PT-SP). Mulheres vítimas de violências
68
69
Disponível em: <goo.gl/sdjO8L>. Acesso em 15 jun. 2016.
O arquivo sonoro da audiência está disponível em: <goo.gl/9h8etL>. Acesso em 15 jun. 2016.
97
foram ouvidas, representantes do Poder Judiciário e da SPM também participaram dos
debates. As entrevistadas expressaram como foi esse momento:
Após cada audiência e a cada depoimento das mulheres vítimas de violência minha
cabeça fervilhava de ideias para aprimorar o texto. Essas ideias eram discutidas com
o Consórcio, as reuniões pós audiências públicas eram muito ricas. (Entrevista 6,
realizada com Jandira Feghali, por e-mail, em 3/05/2016)
[...] o Cfemea tinha às vezes muito esse papel de fazer, em articulação junto com a
Articulação de Mulheres Brasileira (AMB), com os outros movimentos, que era para
poder assim, olha vai ter audiência tal é bom estar lá presente, para estar discutindo
o projeto. (Entrevista 4, realizada em 17/03/2016)
As audiências públicas foram essenciais para ouvir as especificidades regionais
referentes ao tema e para que a lei conquistasse maior participação dos demais segmentos
interessados na discussão (Calazans e Cortes, 2011). Além das audiências, a relatora
constituiu um grupo de apoio e assessoria, cujo trabalho consistia em fazer uma revisão do
projeto apresentado pelo Executivo. Participaram do grupo dois processualistas, Alexandre
Câmara e Daniel Sarmento, junto ao Consórcio e às feministas engajadas na proposta
(Calazans e Cortes, 2011).
As entrevistadas relataram como se deu a parceria entre o
Consórcio e a deputada relatora do projeto, ao longo desse processo:
A partir de minha indicação como relatora da matéria na Comissão de Seguridade
Social e Família, procurei o Consórcio e pudemos desenvolver, com a colaboração
das entidades como a Cepia, de processualistas, entre os quais o Dr. Alexandre
Freitas Câmara (Prof. de Processo Civil da EMERJ – Escola da Magistratura do
Estado do Rio de Janeiro), o Dr. Humberto Dalla (Professor da UERJ e integrante do
Ministério Público do RJ), o advogado da liderança do PCdoB Lúcio Dias e o
advogado Paulo Machado, e de combativas mulheres como Rosane Reis, Jacqueline
Pitanguy, Leila Linhares, Beth Garcez e Carmen Campos, uma proposta alternativa
que viesse ao encontro dos anseios das mulheres vítimas de violência doméstica e
familiar, e que incorporassem, verdadeiramente, as ricas e diferenciadas
contribuições coletadas nas audiências públicas. O Consórcio participou de todas as
audiências públicas e, a cada ideia que eu apresentava, a solução legislativa era
prontamente discutida e formulada em conjunto. (Entrevista 6, realizada com Jandira
Feghali, por e-mail, em 3/05/2016)70
[...] na medida em que a Jandira Feghali foi a relatora, e a Jandira tinha um escritório
aqui no Rio, na reta final ficamos muito eu, a Beth Garcez e a Carmen Campos. A
Carmen estava morando por uma época aqui no Rio. É claro que há outros que se
agregaram, toda a assessoria jurídica da Jandira, que agora eu não saberia dizer os
nomes, mas eu tenho tudo isso, se envolveu. (Entrevista 1, realizada em 15/02/2016)
O grupo de apoio e assessoria, formado pela deputada Jandira Feghali, revisava as
sugestões recebidas nas audiências, avaliando a possibilidade de incluí-las no texto do projeto.
Um ponto consensual, em todas as audiências nos estados, foi a não aplicação da Lei
9.099/95, nos casos de violência doméstica contra a mulher.
70
Esse trecho da entrevista também foi formulado, nesses termos, no próprio voto da relatora, deputada Jandira
Feghali (página 14 do documento disponibilizado na ficha de tramitação). Disponível em: < goo.gl/6Ztsao>.
Acesso em 15 jun. 2016.
98
No final de junho de 2005, a versão preliminar do substitutivo71 foi debatida nas
audiências públicas ocorridas nos estados. É importante esclarecer que o deputado, designado
como relator de uma proposição, pode apresentar um substitutivo, ou seja, um novo projeto
que substitui o texto anteriormente apresentado (Freitas, 2016).
Em 16 de agosto de 2005 foi realizado um Seminário72 conjunto em parceria com
as comissões de Constituição e Justiça, Direitos Humanos e Minorias, Segurança Pública e
Combate ao Crime Organizado, Legislação Participativa e Finanças e Tributação. O evento
intitulado Violência Contra a Mulher: Um Ponto Final foi requerido pela relatora do
projeto73, com o objetivo de ouvir os participantes e utilizar essas reflexões para finalizar o
seu relatório sobre o projeto de lei 4.559 (Feghali, 2005). Naquele momento, as audiências
públicas haviam sido finalizadas, e o relatório da deputada deveria ser apresentado para
votação na Comissão nos próximos dias.
O Seminário teve apoio de duas organizações do Consórcio (Cfemea e Agende),
além do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) e a
Embaixada da Espanha. Estiveram presentes diversos parlamentares, dentre eles a deputada
Jandira Feghali, relatora na CSSF, deputado Antonio Biscaia, presidente da Comissão de
Constituição e Justiça (CCJC), deputada Iriny Lopes, futura relatora do projeto na CCJC,
deputada Yeda Crusius, futura relatora do projeto na Comissão de Finanças e Tributação
(CFT). Participou também a ministra da SPM, Nilcéa Freire, além de Leila Barsted,
representante da Cepia, Silvia Pimentel, representante do Cladem, e Iáris Cortes,
representante do Cfemea, todas organizações integrantes do Consórcio.
Destacamos nesse Seminário a fala da ministra da SPM, Nilcéa Freire, que traz o
relato de uma reunião ocorrida entre a secretaria, a relatora do projeto, as representantes do
Consórcio, Alexandre Câmara, Humberto Dalla e a assessoria jurídica da Câmara dos
Deputados. Nessa reunião chegou-se a um consenso, em torno do substitutivo, que a SPM
passou a apoiar (Freire, 2005). A ministra acatou as mudanças realizadas no PL 4.559/04
apoiando a versão preliminar do substitutivo, apresentado pela relatora.
Dentre as principais mudanças realizadas no substitutivo, em relação ao projeto
apresentado pelo Executivo, citamos: a não aplicação da Lei 9.099/95, nos crimes de
violência doméstica e familiar contra a mulher; a determinação para que as Varas Criminais
71
Substitutivo é uma espécie de emenda que altera, substancial ou formalmente, a proposição em seu conjunto
(RICD, Art. 118, § 4º). Disponível em: <goo.gl/RGTLCK>. Acesso em 30 nov. 2016.
72 O arquivo sonoro do Seminário está disponível em: <goo.gl/pnQVWC> (manhã) <goo.gl/SlFcX5> (tarde).
Acesso em 15 jun. 2016.
73 O requerimento da relatora solicitando o seminário está disponível em: <goo.gl/elcXLl>. Acesso em 15 jun.
2016.
99
julgassem esses crimes, acumulando competências cível e criminal, enquanto não fossem
estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar; e a determinação para que esses
Juizados fossem criados no prazo máximo de dezoito meses, contados a partir da vigência da
lei. Um dos intuitos do Substitutivo da CSSF foi a supressão de qualquer menção à Lei
9.099/95, logo os Juizados Especiais Criminais não poderiam continuar, ainda que
transitoriamente, julgando esses casos.
Já na versão apresentada pelo Executivo, os crimes de violência doméstica e
familiar contra a mulher continuavam sob a égide da Lei 9.099/95, ainda que com algumas
adaptações. Esses crimes continuariam a ser julgados, separadamente, pelos Juizados
Especiais Criminais e os Juizados Especiais Cíveis, enquanto não fossem estruturados os
Juizados de Violência Doméstica e Familiar; não havendo estipulação de prazo para a
estruturação desses juizados.
Sobre a Lei 9.099/95, Freire (2005) reconhece um problema que a estigmatizou
desde o início, quando tratou a questão da violência contra a mulher como um delito de menor
potencial ofensivo. As palavras têm significados e significantes, e este significante jamais
pode ser removido da relação das mulheres com os juizados especiais. No entanto, é
importante registrar o trabalho de juízes, dos Juizados Especiais Criminais, que atuam de
forma muito séria no combate à violência doméstica contra a mulher. Para a ministra, era
muito claro que esse processo não se iniciou no Grupo de Trabalho Interministerial, pois foi
uma agenda trazida pelo Consórcio de ONGs, que trabalha com a temática da violência contra
a mulher, e que elaborou a minuta de anteprojeto de lei. Esse conjunto de organizações fez
contato com a bancada feminina do Congresso e, posteriormente, apresentou a minuta de
anteprojeto também à SPM, que instalou um GTI. No GTI, iniciou-se um diálogo com
diversos atores interessados na temática. O produto do GTI foi apresentado como projeto de
lei de iniciativa do Executivo, mas a ministra tinha conhecimento das divergências que o
Consórcio tinha em relação ao texto. Por fim, ela reconheceu que o substitutivo preliminar,
apresentado pela relatora da CSSF, atenderia melhor às expectativas das mulheres brasileiras.
Para Leila Barsted, representante do Consórcio, esse coletivo nada mais fez do
que expressar a demanda do movimento de mulheres junto ao Legislativo e Executivo. Não
apenas demandando por direitos, de forma abstrata, mas sensibilizando a SPM e a relatora do
projeto no Legislativo, com propostas concretas de como deveria ser uma lei de violência
doméstica contra a mulher. A intenção do Consórcio com o anteprojeto era propor uma
legislação que prevenisse e punisse a violência, mas que também criasse condições para
empoderar a mulher, tirando-a da condição de vítima.
100
A deputada relatora, Jandira Feghali, relatou que, inicialmente, o projeto foi
trazido ao Congresso pelo Consórcio. No entanto, por se tratar de projeto que implicava em
gastos públicos, previstos pela criação de varas especializadas, foi avaliado que o projeto
deveria ser de iniciativa do Executivo. Ao longo da realização das audiências públicas, a
percepção era de que a Lei 9.099/95 proporcionava um sentimento de desproteção às
mulheres. Na questão da proteção civil, o Juizado Especial Criminal não tinha competência
para tratá-la, pois questões de direito de família não estão sob sua alçada. No âmbito criminal,
se limitam ao crime de menor potencial ofensivo, cujo resultado era o arquivamento ou a
transação penal. Ela concluiu, portanto, que a Lei 9.099/95 possuía um vício de origem em
relação à violência doméstica contra a mulher. É interessante notar a fala da relatora ao
explicar como se deu a elaboração do seu relatório:
Porque o primeiro passo de um relatório é você decidir politicamente o que você
quer e depois dar o conteúdo técnico, processualístico, etc. e tal. Então é um
aprendizado todo esse processo. E de mim dependeu muito da decisão política, mas
também dependeu muito da colaboração de muitas pessoas, o convencimento e a
própria formatação do texto que teve que ser a várias mãos. Eu aproveito até pra
dizer, que eu citaria aqui algumas pessoas, que ficaram meio que, diuturnamente,
participando das idas e vindas. Nós mudamos vários artigos uma dezena de vezes,
vinte vezes, adequa aqui, tira dali, bota uma vírgula. Olha, essa vírgula mudou o
sentido, tira, vamos. Então a própria Leila Linhares, que tá aqui a mesa, o Humberto
Dalla, o Alexandre Câmara, que é um processualista cível do Rio de Janeiro, a Silvia
Pimentel, que tá ali, a Rosane Reis, a Carmen, a Beth Garcez. Aqui do Cfemea, a
Iáris e a Myllena também, e várias outras companheiras que contribuíram. E eu
também quero registrar aqui, da minha assessoria, o agradecimento enorme da
Beatriz, da Bia. E da assessoria jurídica da nossa bancada, o Paulo Guimarães e o
Lucio Flavio, que também nos ajudaram a compreender alguns aspectos importantes
da composição do projeto, pra além da contribuição da própria Secretaria, nesse
processo final de discussão, de conteúdo e de acordo74.
Com essa fala fica expressa a contribuição do grupo de apoio e assessoria,
formado pela deputada, em relação ao conteúdo final do texto. As representantes do
Consórcio, citadas nominalmente no depoimento acima, atuaram diretamente na formulação
do parecer da relatora75. A principal mudança no substitutivo, em relação ao projeto
apresentado pelo Executivo, foi a não aplicação da Lei 9.099/95 nos crimes de violência
doméstica e familiar contra a mulher. Em entrevista, a relatora confirma a importância da
atuação do Consórcio nessa questão:
Sem a contribuição do Consórcio, conquistas importantes não teriam se efetivado
como, por exemplo, a retirada deste tipo de violência dos juizados especiais. Foi
uma questão que decidi como relatora desde o início e tive o apoio para vencer as
74
Fala da Deputada Jandira Feghali, no Seminário Violência Contra a Mulher: Um Ponto Final, realizado para
debater o PL nº 4559, de 2004, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher
Ocorrido em 16 de agosto de 2005. Disponível em: <goo.gl/SlFcX5>. Acesso em 10 jun. 2016.
75 O parecer da relatora está disponível em: <goo.gl/YiG7tl>. Acesso em 10 jun. 2016.
101
resistências impostas. (Entrevista 6, realizada com Jandira Feghali, por e-mail, em
3/05/2016)
Sobre a não aplicabilidade da Lei 9.099/95, prevista no texto substitutivo da
CSSF, a relatora estava ciente da pressão que haveria, por parte dos representantes dos
Juizados Especiais Criminais, para que os crimes de violência doméstica contra a mulher
permanecessem no âmbito da lei. No seminário, ela expõe uma estratégia para vencer a
resistência dos membros do judiciário. Uma delas foi o requerimento do pedido de urgência,
com o objetivo do parecer das próximas Comissões ser feito no plenário. Outra foi a
articulação do movimento feminista, com os parlamentares dos seus respectivos Estados, para
que eles apoiassem o substitutivo da CSSF, bem como o contato direto com os líderes dos
partidos e os presidentes das comissões, na Câmara dos Deputados. A ideia foi dar celeridade
a tramitação do projeto e fazer uma espécie de contra-lobby (Feghali, 2005).
Nunes (2012) destaca que a determinação de afastar a Lei nº 9.099/95, dos casos
de violência doméstica, era de tal ordem que foram incluídos, expressamente, no texto do
substitutivo da relatora, dois artigos que não constavam na versão apresentada pelo Executivo:
Art. 48 – Nos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099/95.
Art. 49 – A Lei 9.099/95 passa a vigorar acrescida do seguinte artigo 61-A: Não se
considera de menor potencial ofensivo os crimes praticados com violência
doméstica e familiar contra a mulher, não se aplicando a tais ilícitos esta Lei (Nunes,
2012, p.73).
É importante notar, contudo, que o próprio texto do artigo 48 (Substitutivo da
CSSF) se assemelha ao texto do artigo 33, do Anteprojeto elaborado pelo Consórcio, entregue
a SPM em março de 2004. Além disso, o argumento por trás do artigo 49 remete à própria
discussão sobre o conflito legislativo entre a Convenção de Belém do Pará e a Lei 9.099/95,
que pressupõe que a violência contra as mulheres constitui uma violação dos direitos humanos
e, portanto, não pode ser considerada um delito de menor potencial ofensivo. Para
exemplificar, apresentamos na tabela abaixo o comparativo entre o texto do artigo do
Substitutivo e do Anteprojeto.
Quadro 4: Comparativo entre o Anteprojeto do Consórcio (art.33) e o Substitutivo da
CSSF (art.48)
Anteprojeto elaborado pelo Consórcio de Substitutivo da CSSF
ONGs
Art. 33: Aos crimes contra a mulher praticados Art. 48: Nos crimes praticados com violência
em situação de violência doméstica ou familiar, doméstica e familiar contra a mulher,
102
na forma prevista no art. 3º desta Lei, não se independente da pena prevista, não se aplica a
aplica a Lei nº 9.099/1995.
Lei 9.099/95
Fonte: Elaboração própria
Desse modo, consideramos que a atuação do Consórcio, nessa Comissão, é uma
variável explicativa relevante para entender porque alguns artigos foram incluídos no
Substitutivo da CSSF. Ademais, é notável que as integrantes do grupo atuaram junto à
relatora na elaboração do seu parecer, fato confirmado pela própria deputada Jandira Feghali
(PCdoB-RJ). Vale lembrar que as representantes desse coletivo eram advogadas que, no geral,
militavam no movimento feminista desde os anos 70.
Em vista disso, possuíam larga
experiência na temática e podiam oferecer subsídio e embasamento técnicos que davam
suporte ao texto da relatora. Ainda assim, houve um processo de convencimento junto à
deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que precisou compreender qual era a visão do
Consórcio, em relação à proposta apresentada pelo Executivo para, então, posicionar-se ao
lado das organizações (Entrevista 4).
Ao final, no dia 24 de agosto de 2005, a CSSF aprovou por unanimidade 76 o
Projeto de Lei nº 4.559/04 com substitutivo da deputada Jandira Feghali. No próximo tópico,
veremos como se deu a tramitação do texto na Comissão de Finanças e Tributação.
2.4.2. A atuação do Consórcio na Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara
dos Deputados
Em 30 de agosto de 2005, o projeto de lei 4.559 e o substitutivo da CSSF foram
recebidos pela Comissão de Finanças e Tributação (CFT). Essa comissão analisa aspectos
financeiros e orçamentários públicos de proposições que impliquem em aumento ou
diminuição da receita ou da despesa pública (art.32, X, RICD). A deputada Yeda Crusius
(PSDB-RS) foi designada como relatora da proposição, no dia 1 de setembro de 2005.
Em 10 de novembro, a relatora apresentou seu parecer pela adequação financeira e
orçamentária do projeto, juntamente com duas emendas de adequação. A deputada explicou
em seu parecer que cabe à CFT, exclusivamente, o exame dos projetos de lei quanto aos seus
aspectos financeiros e orçamentários públicos, no que tange a sua compatibilização ou
adequação com o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e o orçamento anual. No
caso específico do projeto examinado, a Constituição Federal, em seu art. 226, § 8º, impõe ao
76
Disponível em <goo.gl/2XX8Sf>. Acesso em 10 jun. 2016.
103
Estado assegurar a "assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando
mecanismos para coibir a violência, no âmbito de suas relações". Para a relatora ficava
expressa, assim, a necessidade da criação de políticas públicas que tivessem como objetivo a
erradicação da violência doméstica.
Nesse contexto, ao examinar a Lei do Plano Plurianual, referente ao período 20042007, a relatora informou que estava prevista a execução de um programa de combate à
violência contra as mulheres, cujo órgão responsável era a SPM. No âmbito da execução
orçamentária e financeira desse programa, até o momento analisado, ela verificou que foram
pagos apenas 19% do total da dotação, já transcorridos mais de 85% do exercício financeiro.
Em suas palavras:
Ao se examinar a execução orçamentária e financeira do Programa 0156 Combate à
Violência Contra as Mulheres, comparando-se o programado na Lei Orçamentária
para 2005 (Lei nº 11.100, de 25 de janeiro de 2005) com o efetivamente pago até 15
de outubro de 2005, verificamos quão retórica pode ser a manifestação de
preocupação com a violência a que é submetida diuturnamente a mulher brasileira:
dos R$ 10,1 milhões consignados ao programa na lei orçamentária, somente ínfimos
R$ 1,9 milhão foram pagos, representando 19% do total da dotação, já transcorridos
mais de 85% do exercício financeiro77.
É interessante notar a crítica que a relatora faz ao Executivo, quando afirma
“verificamos quão retórica pode ser a manifestação de preocupação com a violência a que é
submetida diuturnamente a mulher brasileira”, remetendo a suposta ineficiência do Executivo
nos repasses financeiros, em relação a temática da violência, já previstos no exercício
financeiro daquele período. A visão de uma das entrevistadas, sobre a tramitação do projeto
na CFT, reforça a ideia de que a deputada apontou críticas em seu parecer:
[...] demorou um pouco a discussão na Comissão de Finanças e Tributação, que a
deputada meio que segurou o parecer, né, pra não dar. Aí a gente ia lá cobrar dela, a
SPM ia lá cobrar, e ela dizia que ia apresentar. E ela estava segurando. Ela chegou a
fazer o parecer, fazia até uma crítica ao governo, né? Porque aí já entra a discussão
partidária, mas também não chegou a fazer um parecer contrário, né? E a gente
trabalhou o que ela poderia apresentar, porque se fizer contrário não é possível. Aí
fez o parecer e colocou lá a crítica dela. Esse daí, assim, era para ser uma tramitação
até mais rápida. Demorou. Mas em relação ao que é o processo legislativo, poderia,
sei lá, passar o ano a proposta na Comissão e ninguém tem interesse para pegar,
nenhum parlamentar, ou então o parlamentar pegar e não apresentar o parecer.
(Entrevista 4, realizada em 17/03/2016)
A integrante do Consórcio deixa expressa a negociação, feita nos bastidores, sobre
o tom do conteúdo do relatório apresentado pela deputada. A entrevistada indica uma atuação
do Consórcio sobre a formulação do parecer da relatora, tendo em vista a aceleração e
aprovação do projeto em tramitação. Calazans e Cortes (2011) ressaltam que, durante as
77
Disponível em <goo.gl/8yYYYG>. Acesso em 10 jun. 2016.
104
reuniões da CFT, o movimento de mulheres esteve presente, demonstrando interesse na
aprovação do projeto.
Em seu parecer, a deputada propôs duas emendas de adequação tanto ao projeto
4.559 (artigos 17 e 44), apresentado pelo Executivo, como ao substitutivo aprovado pela
CSSF (artigos 38 e 46). Suas emendas estavam relacionadas à referência das leis de diretrizes
orçamentárias nos textos dos projetos. Em 23 de novembro de 2005, o parecer da relatora foi
aprovado por unanimidade78 na CFT. Nessa data, a deputada relatora Yeda Crusius (PSDBRS) elogiou o trabalho realizado pela ministra Nilcéa Freire; a relatoria da deputada Jandira
Feghali (PCdoB- RJ); o processo das audiências públicas, realizadas nos Estados, para
discutir o projeto; e as instituições e pessoas que permitiram o consenso em torno do projeto.
Crusius (2005) afirmou que, em nome do projeto de lei que busca reduzir a violência
doméstica contra a mulher, o conflito governo-situação-oposição desaparece.
No próximo tópico, trataremos da tramitação do projeto na Comissão de
Constituição e Justiça e Cidadania.
2.4.3. A atuação do Consórcio na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
(CCJC) da Câmara dos Deputados
Em 24 de novembro de 2005, o projeto de lei 4.559/04, o substitutivo da CSSF e
as alterações realizadas pela CFT foram recebidos pela CCJC. Essa comissão avalia os
aspectos constitucional, legal, jurídico, regimental e de técnica legislativa dos projetos (art.
32, IV RICD). A deputada Iriny Lopes (PT-SP) foi designada como relatora da proposição, no
dia 29 de novembro de 2005. No mesmo dia, por requerimento dos líderes, foi apreciado e
votado no Plenário um pedido de urgência79 em relação ao regime de tramitação do projeto. O
requerimento foi aprovado, demonstrando o interesse dos parlamentares em aprovar, no
menor tempo possível, a legislação de combate à violência doméstica e familiar contra as
mulheres (Calazans e Cortes, 2011).
Esse pedido, contudo, acabou por gerar certo desconforto na CCJC claramente
demonstrado nas palavras do presidente da Comissão, deputado Antonio Biscaia (PT-RJ). Em
pelo menos duas oportunidades, ele expressou sua insatisfação com essa situação. A primeira
78
Disponível em <goo.gl/QqxjNZ>. Acesso em 10 jun.2016
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados determina que concedido o regime de tramitação de urgência
ao projeto ele pode ser incluído, automaticamente, na ordem do dia, podendo ser deliberado e votado
imediatamente (RICD, Art. 155). Isso significa dizer que o projeto pode ser retirado da comissão, a que foi
enviado, e sua discussão ocorre diretamente no plenário.
79
105
delas ocorre na reunião deliberativa80, realizada pela CCJC, em 1 de dezembro de 2005. A
deputada relatora Iriny Lopes (PT-SP) fez a leitura do seu parecer81, propondo algumas
mudanças em relação ao substitutivo, apresentado pela CSSF, e acolhendo as alterações
propostas pela CFT. Nessa oportunidade, o deputado Biscaia explicou aos demais membros
da CCJC que houve um entendimento com a relatora para que ela lesse o parecer naquela
sessão, e que a discussão e a votação seriam feitas na próxima semana. Tratava-se de um
projeto que ficou oito meses na CSSF e, recentemente, teve aprovado o regime de urgência
“objetivando subtrair o exame da matéria a esta comissão”82. Segundo o deputado Antonio
Biscaia (PT-RJ), o projeto contém flagrantes inconstitucionalidades, como as que determinam
ao Estado a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica, por exemplo. Como o
regime de urgência impõe uma aceleração na tramitação, o presidente da CCJC pediu, aos
membros da Comissão, que eles analisassem o texto e o parecer da relatora apresentados na
sessão para que na próxima reunião o projeto fosse discutido e votado.
Em outra oportunidade, na reunião da CCJC83, realizada no dia 6 de dezembro de
2005, o presidente da Comissão reiterou que houve uma tentativa de que a comissão não se
manifestasse, com a aprovação do regime de urgência. Ele afirmou, no entanto, que houve um
acordo e que o presidente da casa, deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), só colocaria a matéria
em plenário após a manifestação da Comissão84.
Para o deputado Biscaia (PT-RJ), o projeto encaminhado pelo Poder Executivo
estava adequado e poderia ser aprovado sem qualquer modificação. Vale ressaltar que esse
projeto mantinha a aplicação da Lei 9.099/95 no julgamento dos crimes de violência
doméstica contra a mulher, apresentando, contudo, algumas adaptações dessa lei. Essas
adaptações seriam tentativas de aproveitamento de alguns dos princípios que regem a Lei dos
Juizados Especiais Criminais (Nunes, 2012). Nesse sentido, apoiar o projeto apresentado pelo
Executivo implicava em defender a Lei 9.099/95 e, portanto, contrapor-se à posição do
Consórcio.
80
O arquivo sonoro da reunião está disponível em: <goo.gl/rB8llv>. Acesso em 13 jun. 2016.
O parecer da relatora está disponível em: <goo.gl/p6KG4G>. Acesso em 13 jun. 2016.
82
Fala do Deputado Antonio Biscaia, na Reunião Deliberativa da Comissão de Constituição e Justiça. Ocorrida
em 1 de dezembro de 2005. Disponível em: <goo.gl/rB8llv>. Acesso em 13 jun. 2016.
83 O arquivo sonoro da reunião está disponível em: <goo.gl/Hw3QnJ>. Acesso em 13 jun. 2016.
84 Esse acordo parece endossar os achados da pesquisa realizada por Freitas (2016). A pesquisa aponta a
existência de uma porcentagem considerável de projetos (45%) que tramitam sob o regime de urgência e, ainda
assim, são deliberados no interior das comissões. Para a pesquisadora, a urgência é menos um instrumento para
lidar com comissões oposicionistas ou para anular a ação individual dos parlamentares, e mais uma estratégia
usada para pôr o projeto em pauta numa “ordem do dia que está abarrotada de projetos” (Freitas, 2016, p.78).
Sem a urgência, os projetos são obrigados a esperar em uma fila, atrás das medidas provisórias, dos projetos com
urgência constitucional e dos demais projetos com urgência.
81
106
O presidente da CCJC relatou que examinou a proposição e o voto da relatora,
deputada Iriny Lopes (PT-SP), buscando superar algumas questões, mas outras não poderiam
deixar de ser enfrentadas. Diante disso, o parlamentar apresentou um voto em separado85. Isso
porque, ao tramitar pela CSSF, depois de debates e audiências, o projeto do Executivo foi
substancialmente alterado. Na sua visão, em alguns artigos, o substitutivo da CSSF infringia
as competências privativas dos entes políticos e instituições, previstas na Constituição
Federal, como, por exemplo, no caso da criação de Juizados de Violência Doméstica e
Familiar Contra a Mulher. O artigo 14, do substitutivo da CSSF, determina que os Estados e o
Distrito Federal criarão esses Juizados e que algumas medidas de organização judiciária serão
tomadas pelo Poder Judiciário, o que configura ingerência em sua competência privativa,
segundo o deputado. Ademais, não caberia ao Distrito Federal a criação de Juizados, pois tal
competência pertence à União, por força do artigo 22, inciso XVII, da Constituição Federal.
Com base nesses argumentos, o presidente da CCJC propôs algumas mudanças na
redação do texto. Para exemplificar, apresentamos na tabela abaixo a sugestão de texto feita
no voto em separado, para o artigo 14, em relação ao texto apresentado pelo Substitutivo da
CSSF86:
Quadro 5: Comparativo entre o Substitutivo da CSSF e o voto em separado do
Deputado Antonio Biscaia (PT-RJ), sobre o artigo 14
Substitutivo da CSSF
Art. 14: Os Estados e o Distrito Federal
criarão Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher para conhecer e
decidir as ações cíveis e penais previstas nesta
Lei, cabendo ao Poder Judiciário estabelecer
sua proporcionalidade por demanda e número de
habitantes, dotá-los de infraestrutura, dispor
sobre o atendimento, inclusive em plantões.
Proposta do voto em separado do dep.
Antonio Biscaia da CCJC
Art. 14: Os Juizados de Violência Doméstica
Contra Mulher, com competência Cível e
Criminal, órgão da Justiça Ordinária, poderão
ser criados pela União, no Distrito Federal e
nos Territórios, e pelos Estados, para, processo,
julgamento e execução, nas causas de sua
competência.
Fonte: Elaboração própria
Nota-se que o texto do Substitutivo da CSSF foi impositivo ao determinar que os
Estados e o Distrito Federal criarão Juizados, termo que no texto do voto em separado é
Voto em separado é o “voto alternativo do parlamentar, ao do relator de determinada matéria. Ele ocorre
quando o autor do voto em separado diverge do parecer dado pelo relator”. Disponível em: <goo.gl/Y8tWIs>. O
conteúdo do voto em separado apresentado pelo deputado está disponível em: <goo.gl/XU46Nv>. Acesso em 13
jun. 2016.
86 No primeiro parecer apresentado pela relatora da CCJC, deputada Iriny Lopes (PT-SP), o texto do artigo 14
foi mantido dessa forma. Posteriormente, a relatora acolheu a sugestão do voto em separado e alterou o texto de
acordo com a sugestão do deputado Biscaia (PT-RJ).
85
107
alterado para poderão ser criados. No voto em separado, o deputado Biscaia (PT-RJ) observou
também que a alteração mais significativa, realizada na CSSF, foi a efetuada no artigo 13.
Nesse artigo, os Juizados Especiais Criminais são excluídos como foro de julgamento dos
crimes de violência contra a mulher. Essa observação foi feita ao comparar o substitutivo da
CSSF, com o projeto apresentado pelo Executivo. Na versão apresentada pelo Executivo eram
propostos diversos dispositivos para garantir uma resposta judicial mais eficaz aos crimes de
violência doméstica, sem, entretanto, excluí-los da alçada dos Juizados Especiais Criminais
(Lei 9.099/95), até que fossem criadas as Varas e Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher. Para exemplificar, na tabela abaixo comparamos o texto do artigo 13, do PL
4.559/04, e a mudança realizada pelo Substitutivo da CSSF:
Quadro 6: Comparativo entre o PL 4.559/04 e o Substitutivo da CSSF, sobre o artigo 13
PL 4.559/04 (apresentado pelo Executivo)
Art. 13: Ao processo, julgamento e execução
das causas cíveis e criminais em que esteja
caracterizada a violência doméstica e familiar
contra a mulher, aplicar-se-ão os Códigos de
Processo Penal e Civil e a Lei nº 9.099, de 26
de setembro de 1995, no que não conflitarem
com o procedimento estabelecido nesta Lei.
Substitutivo da CSSF
Art. 13: Ao processo, julgamento e execução
das causas cíveis e criminais em que esteja
caracterizada a violência doméstica e familiar
contra a mulher, aplicar-se-ão os Códigos de
Processo Penal e Processo Civil, o disposto na
legislação especial concernente à criança e ao
adolescente e ao idoso, no que não conflitarem
com o estabelecido nesta Lei.
Fonte: Elaboração própria
Ao longo da tramitação do projeto na CSSF, os debates realizados levaram a uma
mudança no texto. O substitutivo excluiu todo o capítulo referente ao procedimento nos
Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95) e, em substituição, determinou que no processo,
julgamento e execução das causas em que esteja caracterizada a violência doméstica e
familiar contra a mulher sejam aplicados os “Códigos de Processo Penal e Processo Civil, o
disposto na legislação especial concernente à criança e ao adolescente e ao idoso, no que não
conflitarem com o estabelecido nesta Lei” (art. 13 - Substitutivo ao Projeto de Lei nº 4.559/04
- Comissão de Seguridade Social e Família). Nota-se que, no Substitutivo da CSSF, a Lei
9.099/95 não é mencionada, ao contrário do texto apresentado pelo Executivo.
Em seu parecer, a deputada Iriny Lopes (PT-SP) havia mantido a alteração
proposta pela CSSF. No entanto, é interessante notar que o deputado Antonio Biscaia (PTRJ) fez esse comentário sobre o artigo 13 sem apresentar nenhuma sugestão de alteração. Em
um seminário realizado na CSSF, que contou com sua participação, ele afirmou ser “um
108
defensor da Lei 9.099/9587”, mas, apesar disso, considerou a versão do Substitutivo da CSSF
um texto legal muito adequado, cujos aspectos ainda discutíveis eram pequenos e poderiam
ser dirimidos a partir dos debates.
Outro comentário feito pelo deputado Antonio Biscaia (PT-RJ) no seu voto em
separado foi sobre o artigo 39 do Substitutivo da CSSF, cujo teor também foi modificado em
relação ao texto do Executivo. O texto do Substitutivo da CSSF determina que as Varas
Criminais acumularão a competência civil e criminal para julgar os crimes de violência
doméstica contra a mulher, até que sejam estruturados os Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a mulher.
Nesse caso, o deputado Antonio Biscaia (PT-RJ) considerou que essa
determinação colidia com o disposto no artigo 96 da Constituição Federal. O artigo 96 imputa
aos tribunais, a competência privativa para dispor sobre a competência e o funcionamento dos
respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos. Ou seja, caberia ao próprio Poder
Judiciário delimitar sobre a competência e funcionamento dos seus Juizados. Desse modo, o
Substitutivo da CSSF não poderia determinar que as Varas Criminais ampliassem seu escopo
de atuação para julgar casos, no âmbito civil e criminal que, anteriormente, estavam sob a
alçada das Varas e Juizados Cíveis e Criminais separadamente. Para exemplificar, na tabela
abaixo, comparamos o texto do artigo 38, proposto pelo PL 4.559/04, e a mudança realizada
pelo Substitutivo da CSSF, que corresponde ao artigo 39.
Quadro 7: Comparativo entre o PL 4.559/04 e o Substitutivo da CSSF, sobre os artigos
38/39
PL 4.559/04 (apresentado pelo Executivo)
Art. 38: A União, no Distrito Federal e
Territórios e os Estados poderão criar Varas e
Juizados Especiais de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, com competência
cível e criminal, cabendo ao Poder Judiciário
dispor sobre sua estrutura. Parágrafo único:
Enquanto não estruturadas as Varas e os
Juizados mencionados no caput, os crimes
relativos à violência doméstica e familiar contra
as mulheres continuarão a ser julgados nas
Varas Cíveis e Criminais e nos Juizados
Especiais Cíveis e Criminais, com observância
87
Substitutivo da CSSF
Art. 39: Enquanto não estruturados os
Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, as Varas Criminais
acumularão as competências civil e criminal
para conhecer e julgar as condutas cometidas
com violência doméstica e familiar contra a
mulher, com observância, em especial, do
previsto no Título IV desta Lei, subsidiada pela
legislação processual pertinente, garantido o
direito de preferência para o processo e
julgamento.
Fala do Deputado Antonio Biscaia, no Seminário Violência contra a mulher: um ponto final, realizado para
debater o PL nº 4559, de 2004, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher
Ocorrido em 16 de agosto de 2005. Disponível em: <goo.gl/pnQVWC >. Acesso em 10 jun. 2016.
109
do previsto nesta Lei e na legislação processual
pertinente.
Fonte: Elaboração própria
Para o deputado Antonio Biscaia, ainda que fosse evidente a inadequação dos
Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95) para o julgamento dos crimes de violência contra
a mulher, remetê-los às Varas Criminais, como proposto pelo Substitutivo da CSSF enquanto
uma disposição transitória, e mantido pela relatora da CCJC, não seria a solução ideal. Ocorre
que, a solução apresentada pelo Executivo, no artigo 38 (Quadro 7), incorria em dois
problemas sob o ponto de vista do Consórcio. Primeiro, mantinha o julgamento dos crimes de
violência contra a mulher nos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95) enquanto não
fossem criadas as Varas e Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher. Segundo que ao manter os julgamentos das questões civis e criminais em instâncias
separadas, a apreciação conjunta das medidas protetivas de natureza cível e criminal não seria
possível. Nunes (2012) explicita esse problema sobre o artigo 38:
Na forma proposta pelo Executivo, os pedidos de natureza cível, que integram o
contexto da violência, por exemplo, pedido de divórcio, separação de corpos,
alimentos, visitas aos filhos, continuariam a ser apreciados em locais distintos. Desta
forma, o novo procedimento a ser adotado pelos JECrims, à semelhança do
procedimento da Lei nº 9.099/95, alcançaria apenas as medidas de natureza penal
(Nunes, 2012, p.69-70).
Essa era uma questão muito importante para o Consórcio, expressa no seu
anteprojeto, quando se fala do “Juízo Único”. Na prática, isto significava congregar
competências diversas em um mesmo Juizado, com o intuito de atender de forma mais célere
as diversas demandas (cíveis, penais e administrativas) das mulheres em situação de
violência. Na versão do anteprojeto apresentada pelo Consórcio (Anexo 4), o artigo 2988 já
tratava dessa questão. O Juízo Único foi denominado de “Juizado de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher”. Enquanto esses não fossem criados, a solução encontrada pelo
Substitutivo da CSSF era transferir para as Varas Criminais essa competência cumulativa para
atender às demandas relacionadas aos crimes de violência doméstica contra a mulher.
O anteprojeto, apresentado pelo Consórcio, previa em seu artigo 29: “O processo, julgamento e execução das
causas civis e criminais em que esteja caracterizada a violência doméstica ou familiar contra a mulher descrita no
art. 3º desta lei será de competência exclusiva do Juízo Único. Parágrafo Único. Os Estados e o Distrito Federal
poderão criar Varas Especializadas de Violência Doméstica Contra a Mulher, com competência civil e
penal”.
88
110
Sobre esse ponto, não fica clara a solução apontada pelo deputado Biscaia (PTRJ). Ele defendia a criação dos Juizados de Violência Doméstica, mas não concordava com a
solução temporária de que os crimes fossem julgados pelas Varas Criminais, enquanto esses
Juizados não estivessem estruturados. Em seu voto não foi apontada nenhuma sugestão
diferente de redação, de forma que essa argumentação parece mais uma crítica a ser registrada
em seu posicionamento. Diversos deputados acompanharam o voto em separado do deputado
Biscaia (PT-RJ). Dentre eles, citamos os deputados Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), Inaldo
Leitão (PL-PB), Michel Temer (PMDB-SP), Zulaiê Cobra (PSDB-SP) e Luiz Antonio Fleury
(PTB-SP). Além disso, é relevante notar que vários integrantes da comissão se queixaram do
pouco tempo disponibilizado para analisar a matéria. Nunes (2012) descreve algumas reações
dos parlamentares, com base no arquivo sonoro das reuniões:
Embora registrassem a relevância da matéria, divergiam quanto a forma pela qual
era delineado esse enfrentamento. Para alguns, havia excesso de “detalhamento”,
“repetição” de dispositivos já previstos na legislação. As expressões “passar um
pente fino” e “fazer uma faxina” foram usadas para expressar a vontade de
reformulação do projeto que o pedido de urgência, anteriormente solicitado, não
permitia fazer (Ibidem, p.74).
A retirada dos crimes de violência contra a mulher dos Juizados Criminais (Lei
9.099/95), expressa nos artigos do Anteprojeto elaborado pelo Consórcio, como também no
Substitutivo da CSSF, implicou em mudanças que afetavam, substancialmente, o Poder
Judiciário e aqueles que defendiam a Lei 9.099/95. Existia uma resistência com relação a
essas mudanças e a Comissão de Constituição e Justiça deixou clara essa tensão,
principalmente nas falas dos deputados Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) e Antonio Biscaia
(PT-RJ).
O deputado Greenhalgh (PT-SP) criticou um dos artigos do substitutivo da CSSF,
mantido pela relatora da CCJ, deputada Iriny Lopes, mas que já constava na versão original
proposta pelo Executivo89. O artigo proibia a aplicação, nos casos de violência doméstica e
familiar contra a mulher, de penas de cesta básica, multa ou similar. Para ele, essa proibição
era uma contradição, pois ia contra ao que há de mais moderno no direito penal, que são as
penas alternativas. Trata-se então, na sua visão, de “um projeto progressista que não admite,
no campo penal, as teses progressistas”90. Embora o deputado Greenhalgh (PT-SP)
reconhecesse o projeto como uma lei importante, cujo texto em análise era um dos melhores
Trata-se do artigo 36, do PL 4.559/04, apresentado pelo Executivo: “É vedada a aplicação, nos casos de
violência doméstica e familiar contra a mulher, das penas restritivas de direito de prestação pecuniária, cesta
básica e multa”.
90
Fala do Deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, na Reunião Deliberativa da Comissão de Constituição e Justiça.
Ocorrida em 13 de dezembro de 2005. Disponível em: <goo.gl/hTOztT>. Acesso em 13 jun. 2016.
89
111
que já havia passado pelo Congresso, algumas de suas opiniões iam no sentido contrário. Ao
longo das reuniões da Comissão, ele afirmou que o projeto era mal escrito, além de uma
ingerência no funcionamento dos tribunais e no Poder Judiciário.
É interessante notar, como também aponta Romeiro (2007; 2009) que as
resistências expressas pelos deputados Biscaia (PT-RJ) e Greenhalgh (PT-SP) vão de encontro
às críticas manifestadas pelos operadores jurídicos, com destaque para o Fonaje (Fórum
Nacional dos Juizados Especiais), cujos representantes participaram do Grupo de Trabalho
Interministerial. Segundo Romeiro (2009), o Fonaje emitiu um relatório sobre o artigo 33 da
Lei Maria da Penha, que corresponde ao artigo 39 do Substitutivo da CSSF, exposto no
quadro 7. Nesse relatório, eles argumentam que é “absolutamente inconstitucional qualquer
interferência sobre a organização judiciária dos Estados e do Distrito Federal” (Romeiro,
2009, p.67). Outro ponto de crítica recai sobre a não aplicação da Lei 9.099/95 e a
penalização via encarceramento nos delitos de violência doméstica e familiar contra a mulher,
deixando de lado a perspectiva da conciliação, oferecida pela Lei 9.099/95. Sobre essas
resistências, as entrevistas relatam que houve, de fato, um processo de convencimento
direcionado principalmente ao presidente da CCJC, deputado Biscaia (PT-RJ):
O Biscaia, por exemplo, a gente teve que acionar as mulheres lá do Rio para
conversar com ele, acho que Carmen, a Leila ou foi a Rosane que conversaram com
o Biscaia. Porque ele estava implicando nas propostas, de não aceitar. E com isso
teve que, no caso, digamos, abrir mão, por exemplo, da questão de um ponto que ele
achava que era inconstitucional, a competência da vara para julgar até a sentença de
pronúncia. [...] Conversava com ele, e aí teve que ir para a negociação nesses
pontos, né? [...] O Biscaia e o Greenhalgh, tinham o entendimento de que poderia ser
inconstitucional a determinação para a criação dos Juizados, que estariam criando
regra de processo, que estava interferindo na competência do Judiciário, que seria
competência privativa do Judiciário, a iniciativa. Aí nesse ponto a gente utilizava
muito do argumento que os Juizados Especiais Criminais foram criados por um
processo apresentado por um deputado que era, que foi, o Temer o autor do projeto,
ou foi o relator. (Entrevista 4, realizada em 17/03/2016)
É importante adicionar que, na CCJC, um aliado importante do Consórcio foi um
assessor parlamentar da bancada do PT (Partido dos Trabalhadores). Ele tinha contato
próximo com algumas integrantes do grupo e conhecia bem o texto do projeto, pois havia
participado de sua redação. Segundo ele, a CCJC é a comissão mais importante da Câmara
dos Deputados e “é sempre conservadora” (Entrevista 7). Ele descreve um pouco como se deu
essa parceria com o grupo e como foi o processo de tramitação na comissão:
[...] elas tiveram esse papel de conversar de gabinete em gabinete, de conversar com
deputado que ia entrar na Comissão, elas iam falar com deputado. Biscaia foi muito
pressionado, né? Quem tinha acesso ao Biscaia? A Rosane. Vamos ligar pra Rosane.
E ligava para Rosane. [...] Teve atuação das ONGs, teve reuniões da Iriny, com
112
outro deputado, teve reunião da Iriny com deputado homem que tinha resistência,
que achava que não tinha que ter lei. [...] Para os deputados do PT a gente conseguiu
tudo. Mesmo o Biscaia foi uma resistência que não durou muito tempo, foi muito
pressionado. Elas falavam com os deputados, mas não entravam na hora que estava
tendo as sessões, elas não entravam, quem entrava era eu na sessão. [...]. Porque eu
conhecia a legislação, tinha sido eu que tinha redigido algumas coisas, né? E aí, no
plenário também foi a mesma coisa, eu também dei uma colaboração muito grande
na redação. [...] Teve que ter muita negociação até chegar no estado da arte da lei
pronta para votar no plenário (Entrevista 7, realizada em 20/05/2016).
Nota-se que o grupo fez uso dos contatos pessoais com o intuito de negociar com
o presidente da Comissão os pontos discordantes. Uma das integrantes do grupo, Rosane
Lavigne, tinha contato com o deputado Antonio Biscaia (PT-RJ) e as entrevistas indicam que
esse fator facilitou a negociação interna das resistências na Comissão91. Sobre as resistências
do presidente da CCJC92, ainda que ele mencionasse a mudança realizada pelo artigo 13
(Substitutivo da CSSF), que trata da exclusão dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95)
como foro de julgamento dos crimes de violência contra a mulher, não foi proposta nenhuma
alternativa ao texto, como já dissemos. Entretanto, tudo indica que sua posição original não
era favorável a essa mudança feita na CSSF. Isso fica claro, principalmente, quando ele
afirma que o projeto encaminhado pelo Poder Executivo estava adequado e poderia ser
aprovado sem qualquer modificação. Nesse sentido, consideramos que a atuação do
Consórcio, nessa fase, deu-se no momento de definição do posicionamento da Comissão,
neutralizando posições contrárias sobre pontos inegociáveis para o grupo. Algumas dessas
posições contrárias eram representadas pelo próprio presidente da CCJC, deputado Antonio
Biscaia (PT-RJ).
Na reunião deliberativa93 realizada pela CCJC, em 13 de dezembro de 2005, a
relatora da matéria, deputada Iriny Lopes (PT-SP), afirma que seu novo parecer acolheu as
alterações propostas pelo voto em separado do deputado Biscaia, juntamente com outras
sugestões propostas por outros deputados. Exceção feita à sugestão do deputado Luiz Eduardo
Greenhalgh (PT-SP), sobre a exclusão do artigo que proibia a aplicação das penas alternativas
aos crimes de violência contra as mulheres. A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), presente
na reunião, fez um apelo para que o projeto fosse aprovado e estivesse em plenário para
91
De acordo com os dados da Câmara dos Deputados, o deputado Antonio Biscaia (PT-RJ) é procurador de
justiça. Disponível em: <goo.gl/3ZSR6H>. Rosane Lavigne, integrante do Consórcio, é defensora pública do
estado do Rio de Janeiro.
92 Destacamos aqui algumas argumentações do voto em separado do deputado Antonio Biscaia (PT-RJ), que
julgamos mais importantes. As demais propostas de alteração que ele faz estão disponíveis em seu voto.
93 O arquivo sonoro dessa reunião está disponível em: <goo.gl/hTOztT>. Acesso em 13 jun. 2016.
113
votação o mais rápido possível. Ao fim da sessão, o parecer da relatora foi aprovado por
unanimidade94.
No Plenário, o projeto recebeu duas emendas95 do deputado Fernando Coruja
(PPS-SC), que não alteraram substancialmente o conteúdo do texto. As emendas foram
aprovadas pelas relatoras das três Comissões pelas quais o projeto passou. Em 22 de março de
2006 foi aprovado em plenário, por unanimidade96, o substitutivo da Comissão de
Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) ao Projeto de Lei nº 4.559/04. O projeto seguiu
para o Senado sendo renomeado como Projeto de Lei da Câmara (PLC) 37/2006.
É importante dizer que, até esse momento, o texto mantinha pontos importantes
defendidos pelo Consórcio: a Lei 9.099/95 não poderia ser aplicada, nos casos de violência
doméstica contra a mulher e o Juízo Único com competência cível e criminal, representado
pelos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, poderia ser criado pela
União e os Estados. Ambas as reivindicações constavam do anteprojeto de lei apresentado
pelo Consórcio97 ao Congresso e, posteriormente, à Secretaria Especial de Política para as
Mulheres, mesmo antes da sua tramitação.
2.4.4. A atuação do Consórcio no Senado Federal (PLC 37/2006)
No Senado, o PLC 37/200698 foi remetido à Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania (CCJ). No dia 10 de abril de 2006, foi designada como relatora a senadora Lúcia
Vânia (PSDB-GO). Cabe a esta Comissão e sua relatoria revisar a “constitucionalidade, a
juridicidade, a regimentalidade e o mérito do projeto de lei em exame” (art. 101, I e II,
Regimento Interno do Senado Federal).
Em 24 de maio, do mesmo ano, ocorreu a reunião ordinária99 da CCJ onde foi
apresentado o parecer da relatora100, favorável ao projeto, com alterações apenas na redação
do texto. Nessa sessão, ocorrida na CCJ, a senadora apresentou o projeto aos demais membros
da Comissão como “fruto de um longo processo que teve início em 2002, com a formação de
94
Disponível em: <goo.gl/fTs8Ne>. Acesso em 13 jun. 2016.
As duas emendas feitas pelo deputado, em Plenário, estão disponíveis em: <goo.gl/AD2Mlv>. Acesso em 10
jun. 2016.
96 Disponível em: <goo.gl/LUHMM5>. Acesso em 13 jun.2016 (D.O. da Câmara dos Deputados, p. 14.360)
97 Trata-se dos artigos 29 e 33. Ver Anexo 4.
98
A ficha de tramitação do projeto, no Senado Federal, está disponível em: <goo.gl/ghZWNv>. Acesso em 13
jun.2016.
99 A ata e as notas taquigráficas da reunião estão no Anexo 5. O documento não consta na ficha de tramitação do
projeto e foi encontrado através de pesquisa no site do Senado. Inserimos o documento completo no anexo deste
trabalho, pois ele é disponibilizado enquanto arquivo e mediante pesquisa no site, de forma que não é possível
localizá-lo através de um link.
100 O parecer está disponível em: <goo.gl/zO1peS>. Acesso em 13 jun. 2016.
95
114
um consórcio de ONGs para a elaboração de uma lei de violência doméstica”101. Ela criticou a
Lei 9.099/95, ao mencionar que grande parte das ações envolvendo violência doméstica eram
arquivadas nos Juizados Especiais Criminais, o que revelava a impunidade e a perpetuação do
problema no âmbito familiar. A relatora observou também que, muitos dos dispositivos
originais do texto que veio da Câmara, apresentavam “imperfeições constitucionais, jurídicas
e redacionais” que foram sanadas e redigidas com mais clareza “em observância aos ditames
da técnica legislativa”. Por fim, ela agradece aos senadores Demóstenes Torres e Serys
Slhessarenko, pela participação ativa na discussão do projeto, e aos assessores dos senadores
Pedro Simon e César Borges, além da própria SPM e os movimentos de mulheres.
O senador Demóstenes Torres (DEM-GO) elogiou o trabalho da relatora em
“limpar o texto”, uma vez que o projeto que veio da Câmara era um “verdadeiro monstrengo”,
segundo ele. O senador também reconheceu discordar de alguns pontos, principalmente sobre
a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Segundo ele, já
existem muitos juizados especializados e os juízes e juízas com os quais conversou afirmaram
que, no Brasil, transformamos tudo em algo seleto. No entanto, não pediu vista102 “em
homenagem à Senadora Lúcia Vânia, à Senadora Serys Slhessarenko e às mulheres do Brasil,
porque elas querem essa aprovação”103.
A senadora Serys Slhessarenko (PT- MT) fez uma intervenção lembrando que,
enquanto o projeto ainda estava na Câmara, ele já era discutido no Senado. Reconheceu que o
projeto foi construído pela participação de organizações e do movimento de mulheres, da
SPM, etc. Também afirmou que as correções de redação eram necessárias, embora a essência
do projeto já estivesse pronta. Por fim, solicitou o requerimento de urgência para a matéria. A
senadora Ideli Salvatti (PT-SC) elogiou o trabalho da relatora por ter feito as modificações
adequadas no texto, sem que o seu conteúdo substantivo fosse modificado. Dessa forma, o
projeto pôde ser votado sem precisar retornar à Câmara dos Deputados.
Ao final das discussões, o relatório da senadora Lúcia Vânia constituiu-se como
parecer da CCJ favorável ao projeto, com as alterações redacionais apresentadas, nos termos
101
Fala da Senadora Lúcia Vânia, na 14ª Reunião Ordinária da Comissão de Constituição e Justiça. Realizada
em 24 de maio de 2006. Disponível em: Anexo 5.
102
Pedido de vista é a solicitação feita pelo senador para examinar melhor determinado projeto, adiando,
portanto, sua votação. Quem concede vista é o presidente da comissão onde a matéria está sendo examinada,
pelo prazo improrrogável de até cinco dias. Caso a matéria tramite em regime de urgência, a vista concedida é de
24 horas, mas pode ser somente de meia hora se o projeto examinado envolve perigo para a segurança nacional.
Disponível em: <goo.gl/Y8tWIs>. Acesso em 30 nov. 2016.
103
Fala do senador Demóstenes Torres, na Reunião Ordinária da Comissão de Constituição e Justiça. Ocorrida
em 24 de maio de 2006. Disponível em: Anexo 5.
115
do texto consolidado. A Comissão aprovou também o requerimento de urgência para a
matéria, solicitado pela senadora Serys Slhessarenko (PT-MT).
Segundo Calazans e Cortes (2011), a relatora da CCJ no Senado formou um grupo
de apoio, assim como fez a relatora da CSSF na Câmara, para discutir o projeto e fazer as
mudanças necessárias. Nesse grupo estavam as organizações do Consórcio, SPM, membros
do gabinete da deputada Jandira Feghali e da Consultoria do Senado, assessores da senadora
Lúcia Vânia e a senadora Serys Slhessarenko (PT-MT). Uma das entrevistadas apontou que,
no Senado, houve certa resistência do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) e, por isso, a
necessidade de negociar com ele o texto:
Ele [senador Demóstenes Torres] tinha críticas ao projeto porque ele implicava
muito com os projetos, para segurar, das mulheres. Ele era predisposto a isso. Ele já
tinha feito isso com um projeto que a Serys era até relatora, de mudança do código
penal. Aí ele também colocou um assessor dele para ficar acompanhando [...].
Porque ele era uma pessoa da Comissão de Constituição e Justiça e, se não fosse
acordado os pontos com ele, ele pedia vistas e ele ia emperrar a tramitação do
processo. Então tinha que ser muito consensuado com ele também [...] todo o
trabalho da direção desse grupo, que foi formado para discutir o projeto, era que
algumas mudanças eram necessárias, mas que iam ser tudo como se fosse mudança
de redação para o projeto não retornar para a Câmara. Aí ela [senadora Lúcia Vânia]
disse "a gente vai fazer as mudanças que forem necessárias e esse projeto não vai
retornar na Câmara porque é um compromisso meu que seja aprovado. É um
compromisso que eu tenho com a Secretaria de Política para as Mulheres, que eu
estou tendo com vocês”. (Entrevista 4, realizada em 17/03/2016)
Uma estratégia utilizada pelo Consórcio, para pressionar o senador goiano, foi o
contato com redes locais através do Fórum Goiano de Mulheres. A orientação do grupo era
que as representantes do Fórum procurassem o gabinete do senador no Estado, pedindo uma
reunião. Nessa oportunidade, seria defendida a importância do projeto, reforçando ao
parlamentar que elas acompanhavam seu mandato e, portanto, observariam seu
posicionamento sobre a matéria no Senado (Entrevista 4). Da mesma forma, o Consórcio
atuou junto com a assessoria da senadora Lúcia Vânia e a consultoria legislativa do Senado,
no sentido de garantir que as alterações realizadas no texto não alterassem o teor e o sentido
do projeto que viera da Câmara. Uma das entrevistadas relata que a consultora legislativa do
Senado, que já tinha acompanhado as discussões sobre o projeto no Grupo de Trabalho
Interministerial (GTI), tinha um perfil “regimentalista”, além de propor muitas mudanças
gramaticais no texto:
[...] a consultora legislativa era uma pessoa muito, digamos, muito rígida e cricri,
especialista em português e regimentalista. Então ela ficava: “esse tempo verbal não
está correto, vamos corrigir o tempo verbal”. Ok, emenda de redação. Aí poderia ter
alguma questão de algum termo. “Mas não, esse termo não está bom”. Mas se mudar
o termo, mudaria o conceito, aí já ultrapassava para ser emenda de redação. E até a
questão de esse artigo está repetido, não tem necessidade, o que que faz? Foi feito
116
um trabalho de que as mudanças, ali, elas teriam que passar como mudanças de
redação. (Entrevista 4, realizada em 17/03/2016)
Já os assessores da relatora tinham pouco conhecimento sobre a própria temática
da lei. Desse modo, as representantes do Consórcio tinham que contextualizá-los sobre o
projeto, conforme relata a entrevistada abaixo:
Da assessoria [da senadora Lúcia Vânia], é isso, a gente tinha que explicar porque os
assessores eles não conheciam a temática. A consultora legislativa, ela chegou a
acompanhar o Grupo de Trabalho Interministerial, né? Ela fez uma nota técnica em
relação à proposta do Consórcio, que tinha sido feita. Acompanhou a parte das
audiências, pela bancada feminina, e que dava o apoio técnico lá para a bancada
feminina do Congresso. E os assessores da senadora Lúcia Vânia, eles não tinham
conhecimento sobre a temática. Então a gente tinha, assim, que explicar para eles
[...]. (Entrevista 4, realizada em 17/03/2016)
Considerando o exposto, reconhecemos aqui também uma atuação do Consórcio
sobre a formulação do parecer da relatora. Isso se justifica pela atuação de algumas
representantes do grupo no sentido de garantir que o texto se mantivesse fiel à versão
originária da Câmara. Caso contrário, o projeto correria o risco de ter o texto alterado e,
consequentemente, ter sua tramitação atrasada.
Em 4 de julho de 2006, o projeto foi ao plenário, sendo aprovado. Dois dias
depois, a relatora fez um pronunciamento registrando sua gratificação pela aprovação do
texto. Chama a atenção o registro feito, em sua fala, ao senador Demóstenes Torres (DEMGO) que, “apesar de partilhar de opinião divergente em um ou outro ponto, compreendeu a
magnitude dessa mudança que vamos implementar na sociedade brasileira” 104, reforçando a
hipótese de negociação realizada com o parlamentar em torno do texto. Por fim, o PLC
37/2006 foi submetido à sanção presidencial, transformado na Lei nº 11.340, de 7 de agosto
de 2006.
No próximo tópico, abordaremos as ações realizadas pelo Consórcio para além da
arena legislativa, que ocorreram concomitantemente a sua tramitação.
2.5 A atuação do Consórcio para além da arena legislativa (2003-2006)
É importante dizer que para além da atuação do Consórcio dentro da arena
legislativa, houve outros tipos de manifestações e mobilizações ao longo do período da
tramitação do projeto, numa atuação que incluiu também todo o movimento de mulheres
(Calazans e Cortes, 2011). O repertório fora da arena legislativa integrava uma estratégia
combinada com o que acontecia no Legislativo e as manifestações públicas, realizadas entre
104
Disponível em: <goo.gl/jOXlH6>. Acesso em 13 jun. 2016.
117
2003 e 2006, tinham como objetivo incrementar as pressões sobre o processo legislativo
(Maciel, 2011).
Nesse período, o Cfemea, em parceria com o Fundo de População das Nações
Unidas (UNFPA) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), lançou uma campanha
pelo enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres105. Integravam a iniciativa um
sítio eletrônico, folders e campanha de rádio, específica sobre o tema, com o objetivo de
oferecer subsídios para a discussão da lei na sociedade. O folder abordava as mudanças que os
movimentos de mulheres pretendiam efetuar no PL 4.559/04 apresentado pelo Executivo
(Calazans e Cortes, 2011). A campanha de rádio “As vitoriosas” apresentava depoimentos de
mulheres que vivenciaram situações de violência e conseguiram superá-las. O sítio eletrônico
reunia diversos tipos de informações sobre a temática como legislações, artigos, notícias,
bibliografia, etc.
A Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) realizou, em vários estados, a
vigília feminista pelo fim da violência contra as mulheres. Várias manifestações foram
articuladas e previamente programadas para acontecerem, simultaneamente, no dia 7 de
março de 2006. Essa ação teve como objetivo colocar novamente o problema na pauta da
mídia brasileira e também para “pressionar o Legislativo, o Judiciário e o Executivo pela
aprovação da lei de combate à violência doméstica” (Calazans e Cortes, 2011, p.56). A
intenção era que o projeto fosse sancionado no dia internacional da mulher (8 de março). Uma
das entrevistadas reforçou a intencionalidade com que foram realizadas essas ações:
Teve as ações de mídia, teve as ações de seminário, de muitas reuniões de
acionamento das organizações, de articulação, acho que a articulação foi muito forte
com as organizações, da necessidade das organizações do movimento de mulheres
terem conhecimento do que era o projeto. Do que estava propondo o projeto, de
conhecer o projeto e de poder, quando for acionar os parlamentares no Estado, né?
Para poder votar a favor do projeto, defender o projeto, e criar e ampliar, dar voz às
mulheres, e ampliar a não aceitação da violência contra as mulheres. (Entrevista 4,
realizada em 17/03/2016).
O projeto foi sancionado em 7 de agosto de 2006, sendo denominado Lei Maria da
Penha. A escolha desse nome serviu como uma espécie de reparação simbólica106 à Maria da
Penha Maia Fernandes, que vivenciou um caso de violência doméstica conhecido
105
Disponível em: <goo.gl/Olr2fv>. Acesso em 30 nov. 2016.
Conforme já relatamos, em 2001, a Comissão Internacional de Direitos Humanos analisou o caso Maria da
Penha e responsabilizou o Estado brasileiro por tolerância em relação a violência doméstica contra as mulheres.
Dentre as recomendações feitas, pela Comissão, ao governo brasileiro citamos: reparação simbólica e material à
vítima, o julgamento efetivo do seu agressor e o aprofundamento do processo de reformas que evitem a
tolerância estatal a violência doméstica contra as mulheres no Brasil.
106
118
nacionalmente (Calazans e Cortes, 2011), conforme já relatamos. Apresentamos, abaixo, uma
tabela que sintetiza as principais mudanças introduzidas pela Lei Maria da Penha em relação
ao que existia antes da sua aprovação.
Quadro 8: Comparativo entre o antes e depois da Lei Maria da Penha
Antes da Lei Maria da Penha
Lei Maria da Penha (LEI 11.340/2006)
Não existiam leis específicas sobre violência Tipifica e define a violência doméstica e familiar
doméstica contra a mulher.
contra a mulher.
Não estabelecia as formas desta violência.
Estabelece as formas de violência doméstica
contra a mulher como sendo física, psicológica,
sexual, patrimonial.
Não tratava das relações de pessoas do mesmo
sexo.
Determina que a violência doméstica contra a
mulher independa de orientação sexual.
Aplicava a lei dos juizados especiais criminais (Lei Retira dos juizados especiais criminais (Lei nº
9.099/95) para os casos de violência doméstica. 9.099/95) a competência para julgar os crimes de
Estes juizados julgavam os crimes com pena de até violência doméstica contra a mulher.
dois anos (menor potencial ofensivo).
Os juizados especiais criminais tratavam somente
do crime, mas para a mulher vítima de violência
doméstica resolver as questões de família
(separação, pensão, guarda de filhos) tinha que
ingressar com outro processo na vara de família.
Prevê a criação de juizados especiais de violência
doméstica familiar contra a mulher, com
competência cível e criminal, para abranger todas
as questões.
A autoridade policial efetuava um resumo dos fatos Prevê um capítulo específico para o atendimento,
através do TCO (termo circunstanciado de pela autoridade policial, para os casos de
ocorrência).
violência doméstica contra a mulher.
Permitia a aplicação de penas pecuniárias como as Proíbe a aplicação dessas penas.
de cestas básicas e multa.
A mulher podia desistir da denúncia na delegacia.
A mulher somente poderá renunciar a denúncia
perante o juiz.
A pena para o crime de violência doméstica era de Altera o artigo 61 do Código Penal para
seis meses a um ano.
considerar esse tipo de violência como agravante
de pena.
Não era prevista a prisão preventiva para os crimes
de violência doméstica.
Altera o código de processo penal para
possibilitar, ao juiz, a decretação da prisão
preventiva, quando houver risco à integridade
física ou psicológica da mulher.
A mulher vítima de violência doméstica, em geral, A mulher deverá estar acompanhada de
ia desacompanhada de advogado ou defensor advogado ou defensor em todos os atos
público às audiências.
processuais.
A violência doméstica contra a mulher portadora Se a violência doméstica for cometida contra a
119
de deficiência não aumentava a pena.
mulher portadora de deficiência, a pena será
aumentada em 1/3.
Não previa o comparecimento do agressor a
programas de recuperação e reeducação. O
agressor podia continuar frequentando os mesmos
lugares que a vítima frequentava, bem como não
era proibido de manter qualquer forma de contato
com a agredida.
Altera a lei de execuções penais para permitir
que o juiz determine o comparecimento
obrigatório do agressor a programas de
recuperação e reeducação. O juiz pode fixar o
limite mínimo de distância entre o agressor e a
vítima, seus familiares e testemunhas. Pode
também proibir qualquer tipo de contato com a
ofendida, seus familiares e testemunhas.
Fonte: Quadro Comparativo elaborado por Brasil (2010), p.33-4.
No próximo tópico, faremos um balanço dos repertórios mobilizados pelo
Consórcio, desde a fase pré-tramitação até a aprovação do projeto em agosto de 2006.
2.6 Análise dos repertórios mobilizados pelo Consórcio nas fases pré-tramitação (20022004) e tramitação (2005-2006)
Ao longo desse capítulo, fizemos uma reconstrução empírica do caso apresentado,
buscando responder à pergunta de pesquisa: como se deu a atuação de um Consórcio de
ONGs no Legislativo federal, desde a proposição até a aprovação da Lei Maria da Penha?
Essa pergunta específica projetou achados de pesquisa que iluminaram uma questão maior:
como o movimento feminista atuou no Legislativo federal, num caso específico, para aprovar
uma política pública?
Para responder a essas perguntas, seguimos os atores que se engajaram no caso.
Isso inclui as integrantes do Consórcio de ONGs, que interagiram não só com o Legislativo
Federal, mas também com o Executivo, representados pelos seus respectivos membros
(ministros, parlamentares, assessores, consultores legislativos, etc.). Grande parte da interação
entre atores sociais e políticos ocorreu em um contexto institucional, ou seja, as ações do
Consórcio foram condicionadas por regras próprias do funcionamento do processo legislativo.
O ponto de acesso do Consórcio ao Legislativo federal se configurou através dos
repertórios utilizados pelo grupo, na fase de pré-tramitação e ao longo da tramitação do
projeto, até sua aprovação. Esses repertórios foram mobilizados para garantir que os pontos
essenciais, defendidos pelo grupo, fossem incluídos no texto final da lei. Desse modo,
verificamos desde o início que o Consórcio atuou na própria formação da agenda sobre o tema
da violência doméstica contra a mulher. A minuta do anteprojeto de lei, elaborada pelo grupo,
foi apresentada ao Legislativo mesmo antes da tramitação oficial da proposição. Essa
apresentação ocorreu num Seminário realizado na Câmara dos Deputados em 11 de novembro
120
de 2003. A própria ministra da SPM, Nilcéa Freire, reconheceu que essa era uma agenda
trazida pelo Consórcio de ONGs (Freire, 2005).
A partir de dezembro de 2003, uma das organizações integrantes do Consórcio
passou a receber um financiamento da SPM, por meio de um convênio, cujo objetivo
principal era produzir um anteprojeto de lei sobre violência doméstica contra a mulher. Uma
das entrevistadas relata que muitas burocratas dentro da SPM eram vinculadas ao movimento
feminista e, por isso, havia a ideia de se construir a lei em parceria (Entrevista 4).
Posteriormente, todo o material produzido através do convênio foi, oficialmente, entregue à
SPM em março de 2004. Esse material foi utilizado como subsídio nas discussões do Grupo
de Trabalho Interministerial.
O Grupo de Trabalho Interministerial, criado por iniciativa da ministra Nilcéa
Freire (SPM), utilizou, então, o anteprojeto elaborado pelo Consórcio como subsídio para
elaborar o projeto de lei. O Consórcio participou das discussões que definiram o conteúdo do
projeto que será apresentado pelo Executivo. Entretanto, em alguns pontos importantes da
discussão, o lobby do judiciário saiu vitorioso, por isso, a estratégia do Consórcio foi reverter
esses pontos na discussão no Legislativo.
A partir do momento em que o projeto foi apresentado pelo Executivo ao
Congresso, muito da atuação do Consórcio, ao longo da tramitação da matéria, ocorreu dentro
das comissões pelas quais o projeto passou, tanto na Câmara, quanto no Senado. Essa atuação
se deu, principalmente, através do contato com o relator da matéria. Esse contato ficou mais
evidente nas seguintes comissões: CSSF, CFT (Câmara dos Deputados) e CCJ (Senado).
Nesses casos, a atuação do grupo se concentrou mais no momento da formulação do parecer
das relatoras.
Na CCJC, da Câmara dos Deputados, a atuação do grupo foi mais no sentido de
neutralizar posições contrárias de parlamentares em relação a pontos inegociáveis do texto.
Algumas dessas posições eram representadas pelo próprio presidente do colegiado. Sendo
assim, uma das integrantes do Consórcio, que tinha acesso a ele, buscou reverter essas
posições. Além disso, elas tiveram o apoio de um assessor parlamentar do PT, que estava
envolvido com o projeto desde a sua redação. Ou seja, aqui, a atuação do grupo se concentrou
mais no momento da definição do posicionamento da Comissão.
121
Essas análises seguiram o modelo107 apresentado por Zampieri (2013). Segundo
ele, as ações de influência e defesa de interesses nas comissões poderiam ser estabelecidas em
três momentos de decisão: definição de relatoria108; formulação do parecer pelo relator; e
definição do posicionamento da comissão.
Aplicando esse modelo, no caso da atuação do Consórcio, procuramos fazer uma
análise que se divide em duas tabelas. Na primeira, elencamos os repertórios mobilizados pelo
Consórcio, que se iniciam um pouco antes da tramitação do projeto e vão até sua
promulgação. Na segunda, apresentamos um quadro comparativo que mostra como o projeto
foi sendo alterado desde o anteprojeto, elaborado pelo Consórcio, até sua versão promulgada
pelo Executivo, que hoje conhecemos como Lei Maria da Penha. O objetivo desse quadro
comparativo está longe de ser uma análise minuciosa e detalhada sobre todas as modificações
feitas no projeto, ao longo da sua tramitação. Todavia, centramos em dois artigos essenciais
para o Consórcio, e então, verificamos se eles se mantiveram ou não no projeto ao longo da
sua tramitação, e posterior promulgação.
107
O modelo utilizado por Zampieri (2013) é baseado na metodologia que a Confederação Nacional do
Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), entidade sindical, utiliza para identificar o momento oportuno
para a implementação de ações de influência nas comissões permanentes.
108
Calazans e Cortes (2011) afirmam que as relatorias, em cada comissão, foram indicadas em articulação do
movimento de mulheres, SPM e Bancada Feminina, sendo consenso que fossem deputadas envolvidas com a
temática. No entanto, não encontramos indícios fortes dessa afirmação nas entrevistas realizadas ao longo desse
trabalho. Desse modo, não endossamos a afirmação de que o Consórcio atuou estrategicamente no sentido de
definir a relatoria. De qualquer forma, o contato próximo do grupo com a maioria das relatoras era notável.
122
Quadro 9: Repertórios mobilizados pelo Consórcio nas fases pré-tramitação e tramitação do projeto
Fase
Pré
tramitação
Instância
Repertório
CSPCCO/CD Contato direto com parlamentares; Apresentação da minuta de anteprojeto a bancada feminina da Câmara dos Deputados.
SPM
Convênio realizado (entre Cfemea e SPM) para produção de estudos sobre projeto de lei de violência contra a mulher
GTI/SPM
GTI/SPM
CSSF/CD
CSSF/CD
Contato direto com a ministra e burocratas da SPM; Apresentação do anteprojeto e dos materiais produzidos, pelo convênio,
a SPM.
Participação nas discussões realizadas no Grupo de Trabalho Interministerial.
Contato direto com a relatora.
Reunião com a relatora do projeto e definição das estratégias de atuação conjunta.
CSSF/CD
CSSF/CD
CSSF/CD
Participação nas audiências públicas, nos Estados, e articulação com redes locais para garantir a presença dos movimentos
nas audiências.
Participação no grupo de apoio e assessoria ao trabalho da relatora e atuação conjunta na redação do parecer.
Apoio na organização de Seminário e participação de representantes do Consórcio como palestrantes.
Tramitação CSSF/CD
CFT/CD
CFT/CD
CCJ/CD
CCJ/CD
CCJ/SF
CCJ/SF
CCJ/SF
Participação em reunião com a ministra da SPM, juntamente com demais integrantes do grupo de apoio e assessoria da
relatora, para tratar do Substitutivo da CSSF.
Participação nas reuniões da Comissão.
Negociação com a relatora sobre conteúdo do parecer.
Uso de contato pessoal para negociação com o presidente da Comissão sobre pontos divergentes do projeto.
Contato direto com assessor parlamentar da bancada do PT.
Contato direto com a relatora.
Participação no grupo de apoio ao trabalho da relatora e atuação conjunta na redação do parecer sobre o projeto.
Articulação local, junto ao movimento de mulheres, para pressionar parlamentar que discordava de alguns pontos do projeto.
Fonte: Elaboração própria
123
Quadro 10: Tramitação dos artigos ao longo do processo legislativo (art. 14 e 41 da LMP)
Anteprojeto do Consórcio de
ONGs (38 artigos)
PL 4.559/2004 (47 artigos)
Autor: Executivo
Substitutivo da CSSF/CD
(55 artigos)
Substitutivo da CCJC/ CD
(48 artigos)
Art. 29: O processo, julgamento e
execução das causas civis e
criminais em que esteja
caracterizada a violência doméstica
ou familiar contra a mulher descrita
no art. 3º desta lei será de
competência exclusiva do Juízo
Único. Parágrafo Único: Os
Estados e o Distrito Federal
poderão criar Varas
Especializadas de Violência
Doméstica Contra a Mulher, com
competência civil e penal.
Art. 38: A União, no Distrito Federal e
Territórios e os Estados poderão
criar Varas e Juizados Especiais
de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, com competência
cível e criminal, cabendo ao Poder
Judiciário dispor sobre sua estrutura.
Parágrafo único: Enquanto não
estruturadas as Varas e os
Juizados mencionados no caput, os
crimes relativos à violência doméstica
e familiar contra as mulheres
continuarão a ser julgados nas
Varas Cíveis e Criminais e nos
Juizados Especiais Cíveis e
Criminais, com observância do
previsto nesta Lei e na legislação
processual pertinente.
Art. 14: Os Estados e o Distrito
Federal criarão Juizados de
Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher para conhecer e
decidir as ações cíveis e penais
previstas nesta Lei, cabendo ao
Poder Judiciário estabelecer sua
proporcionalidade por demanda e
número de habitantes, dotá-los de
infraestrutura, dispor sobre o
atendimento, inclusive em plantões.
Parágrafo Único: Os atos
processuais poderão realizar-se em
horário noturno, conforme
dispuserem as normas de
organização judiciária.
Art. 14: Os Juizados de
Violência Doméstica Contra
Mulher, com competência Cível
e Criminal, órgão da Justiça
Ordinária, poderão ser criados
pela União, no Distrito Federal e
nos Territórios, e pelos Estados,
para, processo, julgamento e
execução, nas causas de sua
competência. Parágrafo Único:
Os atos processuais poderão
realizar-se em horário noturno,
conforme dispuserem as normas
de organização judiciária.
Art. 14: Os Juizados de
Violência Doméstica Contra
Mulher, com competência
cível e criminal, órgãos da
Justiça Ordinária, poderão ser
criados pela União, no Distrito
Federal e nos Territórios, e
pelos Estados para processo,
julgamento e execução nas
causas de sua competência.
Parágrafo único: Os atos
processuais poderão realizarse em horário noturno,
conforme dispuserem as
normas de organização
judiciária.
Art. 14: Os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a
Mulher, órgãos da Justiça ordinária
com competência cível e criminal,
poderão ser criados pela União, no
Distrito Federal e nos territórios, e
pelos Estados, para o processo, o
julgamento e a execução das causas
decorrentes da prática de violência
doméstica e familiar contra a
mulher. Parágrafo único: os atos
processuais poderão realizar-se em
horário noturno, conforme dispuserem
as normas de organização judiciária.
Art. 33: Aos crimes contra a mulher
praticados em situação de violência
doméstica ou familiar, na forma
prevista no art. 3º desta Lei, não se
aplica a Lei nº 9.099/1995.
Parágrafo único: A ação penal
relativa aos crimes de lesões
corporais leves e lesões corporais
culposas dependem de
representação da vítima ou de seu
representante legal.
Art. 29: Ao processo, julgamento e
execução dos crimes de competência
dos Juizados Especiais Criminais em
que esteja caracterizada violência
doméstica e familiar contra a mulher,
aplica-se a Lei nº 9.099, de 26 de
setembro de 1995, no que não
conflitar com o estabelecido nesta
Lei.
Art. 48: Nos crimes praticados com
violência doméstica e familiar contra
a mulher, independente da pena
prevista, não se aplica a Lei
9.099/95.
Art. 42: Nos crimes praticados
com violência doméstica e familiar
contra a mulher, independente da
pena prevista, não se aplica a Lei
9.099/95.
Art. 42: Nos crimes praticados
com violência doméstica e
familiar contra a mulher,
independentemente da pena
prevista, não se aplica a Lei
nº 9.099, de 26 de setembro
de 1995.
Art. 41: Aos crimes praticados com
violência doméstica e familiar contra a
mulher, independentemente da pena
prevista, não se aplica a Lei nº 9.099,
de 26 de setembro de 1995.
Fonte: Elaboração própria
Plenário da Câmara
artigos)
(48
Lei Maria da Penha (46 artigos)
124
No Quadro 9, verificamos que no momento pré-tramitação o Consórcio se
engajou, principalmente, na produção do conteúdo do anteprojeto; no contato direto com
representantes do Executivo e Legislativo; na parceria com a SPM; e na discussão do
conteúdo do projeto, conduzida pelo Executivo no GTI.
No momento da tramitação do projeto, o grupo se engajou no contato com
representantes do Executivo e Legislativo; na participação em audiências públicas e
seminários; na atuação conjunta, com as relatoras, para elaboração do parecer do projeto; na
negociação com parlamentares resistentes ao projeto; e no contato com movimentos locais
para o desenvolvimento de ações articuladas, com o intuito de pressionar parlamentares
resistentes ao projeto. Destacamos que a maior parte dos repertórios mobilizados pelo grupo
se concentrou na CSSF da Câmara dos Deputados.
No quadro 10 verificamos que, desde o anteprojeto elaborado pelo Consórcio, já
estavam previstas duas reivindicações importantes para o grupo. A primeira delas, a criação
do Juízo Único, com competência cível e penal (art. 29). A segunda seria a proibição da
aplicação da Lei 9.099/95, nos casos de violência doméstica contra a mulher (art.33).
Igualmente, ao observar a lei promulgada, constatamos que os conteúdos substantivos de
ambos os textos estão na Lei Maria da Penha, ainda que, com algumas modificações. Para
exemplificar, nas tabelas abaixo apresentamos a comparação entre a versão desses artigos
apresentada pelo Anteprojeto, elaborada pelo Consórcio, e a lei promulgada.
Quadro 11: Comparativo entre os textos do Anteprojeto do Consórcio e a lei
promulgada (art.29/art.14)
Anteprojeto do Consórcio
LMP (promulgada)
Art. 29: O processo, julgamento e execução das
causas civis e criminais em que esteja
caracterizada a violência doméstica ou familiar
contra a mulher descrita no art. 3º desta lei será
de competência exclusiva do Juízo Único.
Parágrafo Único. Os Estados e o Distrito
Federal poderão criar Varas Especializadas
de Violência Doméstica Contra a Mulher, com
competência civil e penal.
Art. 14: Os Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça
Ordinária com competência cível e criminal,
poderão ser criados pela União, no Distrito
Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o
processo, o julgamento e a execução das causas
decorrentes da prática de violência doméstica
e familiar contra a mulher.
Fonte: Elaboração própria
125
Embora aparentem ter diferenças entre si, os textos acima reproduzem uma
reivindicação do Consórcio que data desde 2003. No anteprojeto entregue à SPM em 2004, o
grupo registrou essa demanda no artigo 29. Trata-se da já mencionada demanda pela criação
de um Juízo Único os casos de violência doméstica contra as mulheres.
É importante notar que, tradicionalmente, as esferas cíveis e criminais eram
tratadas separadamente pelo Poder Judiciário brasileiro (Romeiro, 2009). Os Juizados
Especiais Cíveis são voltados para questões relacionadas ao patrimônio, enquanto os Juizados
Especiais Criminais se destinam às questões criminais. O Consórcio defendeu a unificação,
em um mesmo juízo, de matérias de ordem civil e penal. Essa medida era indispensável à
eficácia social da lei considerando que a violência doméstica contra a mulher não se restringe
à violência física, mas inclui outras formas de violência, como a patrimonial por exemplo. Em
suma, o juiz não poderia se restringir apenas ao julgamento das questões penais.
Alinhada a essa demanda, a lei promulgada prevê a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal. A
variação entre o texto do Anteprojeto e o texto promulgado está nos entes responsáveis pela
criação desses juizados. No anteprojeto, os entes eram os Estados e o Distrito Federal,
alterados para a União e os Estados na lei promulgada. Outra variação está na nomenclatura
desses Juizados. No anteprojeto, eram chamados de Varas Especializadas de Violência
Doméstica Contra a Mulher e na lei promulgada são designados Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Com relação à proibição expressa da aplicação da Lei 9.099/95, nos casos de
violência doméstica contra a mulher, verificamos no quadro 10 que o anteprojeto do
Consórcio já tratava dessa questão no artigo 33. A própria proposta apresentada pelo grupo à
SPM explicitava que o anteprojeto
busca afastar a aplicação do procedimento disciplinado pela Lei 9.099/1995, onde se
prevê, dentre outros mecanismos legais impróprios para coibir a violência doméstica
contra as mulheres, a transação penal como causa extintiva da punibilidade, o que
tem garantido a mais ampla impunidade aos agressores109.
Na mesma direção, o artigo 41 da lei promulgada mantém os crimes de violência
doméstica contra a mulher excluídos da Lei 9.099/95. Para exemplificar, apresentamos na
tabela abaixo a comparação entre a versão apresentada pelo Anteprojeto, elaborada pelo
Consórcio, e a lei promulgada.
109
Extraído da justificativa do Anteprojeto (Anexo 4).
126
Quadro 12: Comparativo entre os textos do Anteprojeto do Consórcio e a lei
promulgada (art.33/art.41)
Anteprojeto do Consórcio
LMP (promulgada)
Art. 33: Aos crimes contra a mulher praticados em
situação de violência doméstica ou familiar, na
forma prevista no art. 3º desta Lei, não se aplica a
Lei nº 9.099/1995. Parágrafo único: A ação penal
relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões
corporais culposas dependem de representação da
vítima ou de seu representante legal.
Art. 41: Aos crimes praticados com violência
doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se
aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de
1995.
Fonte: Elaboração própria
Uma variação entre o texto do Anteprojeto (art.33) e o texto promulgado (art.41)
está no parágrafo único, contido apenas no texto produzido pelo Consórcio. Para além dessa
variação entre os dois textos, é interessante notar as mudanças realizadas entre as Comissões,
ao longo da tramitação, conforme quadro 10. Após a proposta de não aplicação da Lei
9.099/95, feita pelo Consórcio, o Executivo apresentou um texto contrário na tentativa de
manter os crimes de violência doméstica contra a mulher sob a égide da Lei 9.099/95.
Posteriormente, o texto foi novamente alterado na CSSF, tornando-se a redação final da lei
promulgada com pequenas alterações. Esse seria um indicativo da força da CSSF ao longo do
respectivo processo legislativo.
Em suma, considerando a importância dos artigos 29 e 33 (Quadro 10) para o
Consórcio, ao observar a lei promulgada, constatamos que em termos substantivos ambos os
textos estão previstos na Lei Maria da Penha, ainda que com algumas modificações. Vale
relembrar que, num primeiro momento, o Executivo (PL 4.559/04) alterou pontos essenciais
defendidos pelo Consórcio, seja ao manter o julgamento dos crimes de violência doméstica
nos Juizados Especiais Criminais, ainda que temporariamente, seja ao determinar que a Lei
9.099/95 continuasse sendo aplicada nesses casos, ainda que com algumas adaptações. Apesar
dessas tentativas, muito influenciadas pelo próprio lobby dos representantes dos Juizados
Especiais Criminais (Fonaje), a tramitação na CSSF mostrou-se favorável às posições do
Consórcio, desfazendo essas alterações propostas no projeto do Executivo. O Substitutivo da
relatora nessa comissão defendeu a não aplicabilidade da Lei 9.099/95, nos casos de violência
doméstica contra a mulher, e determinou que esses casos fossem julgados nas Varas
Criminais que acumulariam competências cíveis, além das criminais, enquanto não fossem
criados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher. Essas alterações
127
foram, posteriormente, acatadas pelo Executivo que reconheceu no Substitutivo da CSSF um
texto mais adequado à realidade do problema.
O Consórcio atuou em peso junto à relatora da CSSF, participando inclusive da
redação do seu parecer. Além disso, a própria relatora reconheceu o papel do grupo ao afirmar
que, sem a contribuição do Consórcio, conquistas importantes não teriam se efetivado como,
por exemplo, a não aplicabilidade da Lei 9.099/95 (Entrevista 6). Na mesma direção,
argumenta Nunes (2012) ao reconhecer que consta no texto da Lei Maria da Penha a maioria
das reivindicações feitas pelo Consórcio:
Consta do texto da Lei nº 11.340, de 2006, a maioria das reivindicações feitas pelo
Consórcio de ONGs ao longo do processo de elaboração e discussão do Projeto, a
exemplo da definição da violência doméstica contra a mulher como uma questão de
gênero (Art. 5º); a declaração de que essa violência constitui uma violação dos
direitos humanos das mulheres em oposição à concepção anterior de delito de menor
potencial ofensivo (Art. 6º), o afastamento da Lei nº 9.099/95 desses casos (Art. 41);
as medidas de assistência e prevenção, entre essas as medidas protetivas de urgência
(Art. 22); e a determinação para a criação de Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, com competência mista, cível e criminal (Art. 33).
(Nunes, 2012, p.76)
À guisa de conclusão, constatamos que o Consórcio atuou nos processos
decisórios que ocorreram dentro das Comissões em, pelo menos, dois momentos chave: 1) na
formulação do parecer das relatoras e 2) na definição do posicionamento da Comissão. Essa
atuação se deu com intuito de promover ou manter algumas mudanças realizadas no texto da
lei ao longo da tramitação. No âmbito mais geral, os resultados da pesquisa indicam que a
atuação do grupo incidiu na fase de formação da agenda e na definição do conteúdo da lei.
Para aprofundar esses resultados gerais, seguiremos, no próximo capítulo, o
modelo proposto por Amenta et al (2010). Os autores recomendam que os pesquisadores
avaliem o impacto dos movimentos sociais sobre o Legislativo dividindo o momento da
criação de determinada lei em quatro processos: a) formação da agenda; b) conteúdo
legislativo; c) votação e d) implementação.
Para uma argumentação convincente sobre a incidência de um movimento social
na produção da política é preciso demonstrar que o ator social impactou um ou mais dos
pontos a seguir: planos e agendas de líderes políticos; o conteúdo das propostas elaboradas
por representantes do Executivo ou Legislativo; os votos de representantes-chave para a
aprovação da lei; e a velocidade ou a natureza da implementação do projeto aprovado
(Amenta et al, 2010). Desse modo, faremos uma discussão sobre os dois processos, já
mencionados, em que reconhecemos a atuação do Consórcio, no caso da Lei Maria da Penha:
formação da agenda e produção do conteúdo legislativo. A partir disso, buscaremos inserir os
128
resultados encontrados numa discussão mais ampla sobre movimentos sociais e a produção de
políticas públicas no Legislativo Federal.
***
Procuramos realizar, nesse capítulo, a reconstrução empírica da atuação do
Consórcio de ONGs no caso da Lei Maria da Penha.
É importante ressaltar que além dos repertórios mobilizados pelo grupo dentro do
Congresso, houve também um repertório fora da arena legislativa que integrava uma
estratégia combinada com o que acontecia no Legislativo federal. Dessa forma, enquadramos
esse caso na categoria “campanha” (Tilly, 2010), por se tratar de organizações de movimento
social que apresentam demandas coletivas a determinadas autoridades, mobilizando diversas
ações políticas de forma combinada, os denominados repertórios. Essa definição pode abarcar
a criação de coalizões para finalidades específicas, comícios, vigílias, panfletagem, reuniões
públicas, lobby, dentre outras ações.
Para relatar os repertórios mobilizados pelo grupo no Congresso nos baseamos na
lógica legislativa e, para tanto, seguimos os passos do projeto de lei na sua tramitação em
cada comissão, tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado Federal. Como King,
Cornwall e Dahlin (2005), consideramos que a lógica legislativa condiciona a influência dos
atores sociais em cada fase do processo. Para aprovar um projeto de lei, é necessário ser bemsucedido em várias fases, pois o processo legislativo é fragmentado em múltiplos estágios
decisórios, ou seja, não se trata de um jogo de rodada única. Nesse sentido, acompanhar a
atuação de uma organização de movimento social na arena legislativa implica em entender o
aspecto processual do funcionamento do Legislativo.
É interessante notar que o Consórcio atuou muito como um agente informacional
(Santos et al, 2016a) ao longo de todo o processo, subsidiando figuras chaves do Executivo e
Legislativo com insumos técnicos, na defesa de suas posições e dos pontos que eram, em sua
visão, essenciais para a lei. Adicionalmente, para que essa função informacional fosse
potencializada, o contato próximo com figuras chave, como relatores, presidente das
comissões, parlamentares da bancada feminina, assessores parlamentares e burocratas da
SPM era essencial. A Secretaria Especial de Política para as Mulheres, composta de muitas
burocratas vinculadas ao movimento feminista, tinha uma boa articulação com a bancada
feminina do Congresso e com as organizações do movimento (Brasil, 2006; Pinheiro, 2010;
129
2015). Havia intenção política em levar o tema adiante (Romeiro, 2007; 2009) e a SPM foi
receptiva, dando andamento ao anteprojeto de lei apresentado pelo Consórcio.
Precisamos levar em conta, também, que se trata de um grupo que conhecia as
regras do jogo em que estava atuando, ou seja, no geral o funcionamento do processo
legislativo era algo conhecido para as representantes do Consórcio. Certamente, algumas
organizações tinham uma atuação mais voltada para a incidência política no Legislativo do
que outras. Ainda assim, é notável uma racionalidade por trás das estratégias mobilizadas
pelo grupo, que pressupõe um conhecimento acumulado sobre a atuação no Congresso.
Por fim, nosso objetivo com esse capítulo foi desvendar os mecanismos pelos
quais o Consórcio afetou a produção da Lei Maria da Penha, com foco no processo decisório,
que ocorreu no Legislativo federal. No capítulo seguinte, exploraremos os resultados mais
gerais da pesquisa, com destaque para a sua dimensão institucional.
130
Capítulo 3: Explorando as interações entre movimentos sociais e instituições políticas no
caso da Lei Maria da Penha
No capítulo anterior, fizemos a reconstrução empírica da atuação do Consórcio de
ONGs no caso da Lei Maria da Penha. Nos baseamos na lógica legislativa, acompanhando a
tramitação do projeto em cada comissão, e observando a atuação do Consórcio nesse
processo. Nosso maior foco estava voltado aos repertórios mobilizados pelo Consórcio no
processo legislativo - ou seja, nas variáveis relativas à dimensão do movimento social.
Para argumentar sobre a incidência de um movimento social na arena legislativa,
além de observar as variáveis relativas à dimensão dos atores sociais, é necessário atentar
também para as variáveis relativas à dimensão do Legislativo, principalmente porque nesse
caso, a interação entre o Consórcio e os atores políticos aconteceu num contexto institucional,
condicionado por regras próprias da arena legislativa.
A partir da inserção das variáveis institucionais, analisaremos nesse capítulo os
efeitos da atuação do Consórcio sobre a produção da política no Legislativo federal,
mobilizando as literaturas de grupos de interesse (Mancuso, 2007), estudos legislativos
(Freitas, 2016; Junqueira 2016), políticas públicas (Kingdon, 1995) e a produção voltada para
as consequências da ação dos movimentos sociais sobre as políticas (Amenta et al, 2010;
Dowbor et al, 2016). Com base nessa matriz explicativa, apresentamos os resultados da
atuação do Consórcio sobre o processo de formação da agenda (agenda setting) e sobre a
produção do conteúdo legislativo da Lei Maria da Penha.
3.1 Movimentos sociais e a produção de políticas públicas no Legislativo Federal
Pensando na relação entre atores sociais e estatais na produção de políticas
públicas, Marques (2013) nos oferece um panorama histórico de como essa relação tem sido
pensada na Ciência Política. Segundo o autor, a partir dos anos 1970, a análise de processos
de produção de políticas demonstrou fartamente que, com muita frequência, as políticas não
eram geradas por decisores isolados entre si e de outros atores sociais. As políticas são o
produto de interações complexas entre diversos atores, internos e externos ao Estado, e é
importante que as pesquisas incorporem cada vez mais os atores e contextos envolvidos,
assim como suas crenças e relações. Faria (2013) observa também que, na subárea de estudos
de Análise de Políticas Públicas, ONGs e grupos de interesse têm se tornado produtores de
conhecimento acerca das políticas públicas.
131
No mesmo sentido, Capella e Brasil (2014) apontam que para analisar uma
política pública não basta observar a organização pública formalmente responsável por sua
formulação, implementação ou avaliação. Para compreendê-la, observar as estruturas
organizacionais envolvidas na sua execução é importante, mas isso não explica o complexo
processo que a produziu. O mesmo ocorre se observamos apenas o comportamento dos atores
no Poder Executivo ou Legislativo relacionados à determinada política.
A literatura no campo de políticas públicas tem privilegiado a análise de
subunidades do sistema político para analisar uma política. Essas subunidades têm recebido
tratamentos teóricos diferenciados, ao longo das últimas décadas, sendo, de forma geral,
denominados como subsistemas (policy subsystems). Como explicam Capella e Brasil (2014):
Em tais subsistemas, as políticas são produzidas em um ambiente composto por
diversas instituições e atores, geralmente reunidos em grupos mais ou menos coesos,
que acabam se especializando e direcionando seus esforços para algumas questões
específicas em relação a uma política. Tal entendimento tem permitido o
desenvolvimento de uma extensa bibliografia em torno desses subsistemas, suas
características, composição e impacto na produção de políticas públicas (Capella e
Brasil, 2014, p. 69).
O conceito de subsistema de políticas é objeto de intensa discussão teórica,
principalmente quando justaposto a conceitos relacionados, como o de comunidades de
políticas (policy communities), redes de políticas públicas (policy networks) e redes temáticas
(issue networks). Para os autores, tais conceitos podem contribuir significativamente para as
análises sobre os processos de participação política, que envolvem uma pluralidade de atores
(movimentos sociais, grupos de pressão, partidos) num contexto de expansão das formas e
canais de participação política.
No âmbito do Legislativo federal, o grande número de audiências públicas,
seminários e outras reuniões de debates abertas à participação da sociedade, na Câmara dos
Deputados, evidencia a participação de rede de políticas públicas110 que operam nos processos
decisórios no âmbito do Parlamento (Araújo, Testa e Silva, 2015). A interação dos
parlamentares com organizações governamentais e não governamentais, técnicos e outros
atores, associados a diferentes redes de políticas públicas, ocorrem nessas reuniões públicas e
também em encontros informais.
Para Araújo, Testa e Silva (2015), muitas agendas que tramitam paralelamente no
Congresso são impulsionadas e ganham força quando setores da sociedade se organizam e
110
As redes são compostas de atores heterogêneos e interdependentes que se relacionam e atuam em um mesmo
subsistema de políticas públicas.
132
buscam parcerias com as frentes parlamentares e as bancadas. Em detrimento da visão
oriunda dos estudos sobre o presidencialismo de coalizão, que valorizam a força dos líderes
partidários, os autores sugerem que novas pesquisas no campo dos estudos legislativos deem
mais atenção às frentes e bancadas temáticas como elos importantes com redes de políticas
públicas. Para os autores, as redes de políticas públicas operam nos processos decisórios, no
âmbito do Parlamento, em esquemas que vão além de uma visão tradicional de lobbying, por
meio de pressão em favor do atendimento de demandas pré-estabelecidas.
Nesse contexto, se a interação dos atores sociais com atores políticos nos
processos de produção de políticas públicas é uma realidade, a literatura interessada em
compreender as consequências da ação dos movimentos sociais, sobre as políticas, defrontase com diversos desafios metodológicos. Mencionamos, nesse sentido, os desafios referentes
à dificuldade de se atribuir ao movimento determinado resultado na política, ou seja, o
problema de se aferir efeito causal (Tatagiba e Teixeira, 2016). Na tentativa de explicar esses
processos, como apontam Tatagiba e Teixeira (2016), observamos a utilização de uma
produção acadêmica, predominantemente anglo-saxônica, que trata da questão se utilizando
dos casos empíricos próprios dos seus contextos.
Na mesma direção, Dowbor et al (2016) apresentam proposições metodológicas
para analisar os efeitos de movimentos sociais na produção de políticas públicas. Elas
propõem que esses efeitos sejam mensurados “a partir das combinações causais entre as
variáveis constituintes de dimensões do movimento social e do Estado” (Dowbor et al, 2016,
p.4-5). As pesquisadoras argumentam que os movimentos que almejam mudanças em
determinada política pública, formulam suas demandas em torno das instituições relativas a
essa política. Por isso, para entender os efeitos dos atores sociais sobre as políticas, além de
observar as variáveis relativas à dimensão do movimento social, é necessário descrever as
instituições do Estado visadas pela ação do movimento. Por fim, as autoras advogam que “a
combinação causal entre as dimensões do movimento social e do Estado condiciona os
resultados (outcome) dos movimentos sociais na produção de políticas públicas, em face de
processos de interação socioestatal” (Ibidem, p. 21).
No caso da pesquisa que apresentamos, os repertórios de ação mobilizados pelo
Consórcio correspondem às variáveis relativas à dimensão do movimento social. Nos
próximos tópicos trataremos da dinâmica e do funcionamento do Legislativo federal
brasileiro, com destaque para as Comissões Parlamentares. Dessa forma, poderemos
visualizar as dimensões do movimento social e do Estado de forma combinada.
133
3.2 O que se passa no Legislativo Federal? A dimensão institucional
As evidências empíricas apresentadas pelas pesquisas realizadas por Figueiredo e
Limongi (1999) negaram o diagnóstico dominante na literatura, até aquele momento, de que o
Brasil vivia uma crise de governabilidade por conta do conflito entre um Executivo
institucionalmente frágil e um Legislativo integrado por partidos carentes de disciplina. Como
os autores apontam a maioria dos analistas não percebeu a ampliação dos poderes legislativos
do Executivo, previstos na Constituição Federal de 1988. Da mesma forma, a ampliação se
deu nos regimentos internos das Casas Legislativas, através dos recursos disponíveis aos
líderes partidários para comandar suas bancadas.
A Constituição assegura ao Executivo a prerrogativa exclusiva de iniciar
legislação nas áreas de política orçamentária, fiscal e administrativa. Além do poder de iniciar
legislação em determinados temas, é possível:
pedir urgência para as leis que apresenta, garantindo-lhes prioridade na definição da
pauta dos trabalhos legislativos; possui, ainda, autoridade delegada de decreto e,
mais importante, autoridade para editar decretos com força de lei e vigência
imediata, as medidas provisórias (Figueiredo e Limongi, 2012, p. 10).
Diante desse cenário, as pesquisas revelaram que o Executivo é bem-sucedido na
arena legislativa, ou seja, suas propostas são raramente derrotadas. Existe uma
preponderância do Executivo na produção legislativa, cujo efeito se evidencia por suas altas
taxas de sucesso e dominância na produção das leis (Figueiredo e Limongi, 1999). Essa
preponderância é obtida através do apoio partidário construído por meio da formação de uma
coalizão de governo (Figueiredo e Limongi, 2012). Adicionalmente, o presidente concentra
poderes de agenda no interior do Congresso por meio dos líderes partidários.
Segundo Freitas (2016), a coalizão governamental é composta pelos partidos
cujos filiados ocupem formalmente ministérios, participando efetivamente do governo. Além
disso, essa coalizão pressupõe um acordo intrapartidário entre o líder do partido, que recebeu
uma pasta ministerial, e os membros desse partido. Desse modo, a promessa de apoio
legislativo não se limita aos líderes partidários, mas abrange toda a bancada dos partidos.
Como explica a autora, a formação de coalizões aumenta o número de cadeiras que o
Executivo controla no Legislativo, indicando que os atores percebem a necessidade de
coordenar suas ações para conseguir o que almejam:
Coalizões são formadas por razões pragmáticas e óbvias: aumentar as chances de
aprovar projetos ou uma agenda no Legislativo. São, portanto, e por si só, um forte
indicativo de que há uma preocupação com a aprovação de políticas (Freitas, 2016,
p. 31).
134
Disso, poderia se concluir que as maiorias são formadas para garantir pura e
simplesmente a aprovação da agenda do Executivo. Assim, o Legislativo e, principalmente, a
coalizão governista teriam a função de meros carimbadores dos projetos de iniciativa do
Executivo, ou seja, tais propostas passariam incólumes pelo Congresso, não sendo
substancialmente alteradas. Mas será que o que é aprovado é idêntico ao que foi inicialmente
enviado pelo Executivo111? Para responder a essa pergunta, é necessário comparar o texto que
foi apresentado ao texto promulgado e reconhecer as transformações feitas, ao longo da
tramitação, nas matérias introduzidas pelo Executivo. Essa pesquisa112 foi realizada por
Freitas (2016), cujos achados indicam que - das leis propostas e promulgadas pelo Executivo,
a contribuição média do Legislativo ao texto final é de 36%, ao passo que o Executivo
contribui com cerca de 64% do texto legal. Ou seja, a participação do Legislativo na feitura
das leis está longe de ser pequena ou desprezível, embora a literatura especializada pouco
reconheça essa atuação.
A pesquisa aponta também que quando se trata dos projetos de lei de iniciativa do
Executivo, as contribuições do Legislativo ocorrem, em sua maioria, no interior das
Comissões Parlamentares, ao invés do plenário; na Câmara dos Deputados, comparativamente
ao Senado e são realizadas, principalmente, pelo relator da matéria. Segundo Freitas (2016),
as comissões são, portanto, o espaço de deliberação dos projetos. Através de um intenso
trabalho de negociação, chega-se ao consenso em torno do conteúdo das proposições tendo o
relator um papel central nesse processo.
É importante ressaltar que para alterar as proposições, tanto nas comissões,
quanto no plenário, é necessária a construção de maiorias. Por isso, cada alteração feita ao
longo da tramitação só será de fato incluída no texto da lei se houver concordância entre o
Executivo e a maioria do parlamento. Nesse sentido, “coalizões majoritárias tendem a
dominar o processo de formatação das políticas” (Freitas, 2016, p. 97). A pesquisadora
verifica que o processo de alterações é coordenado pela coalizão no interior do Legislativo. O
relator, normalmente um membro do partido da coalizão, representa esse papel de
111
Essas ponderações são baseadas nas argumentações feitas por Argelina Figueiredo e Fernando Limongi no
prefácio sobre o livro de Freitas (2016, p. 7-8).
112
O universo de análise da autora foram os projetos de iniciativa do Executivo que sofreram algum tipo de
veto, parcial ou total. Esse critério foi escolhido por entender que são essas as matérias mais conflituosas ou as
únicas nas quais o conflito entre Executivo e Legislativo é explicito e mensurável. O período inclui as matérias,
com origem no Executivo, que foram apresentadas e aprovadas entre 01/01/1995 (início do governo Fernando
Henrique Cardoso) e 31/12/2010 (final do governo Lula). Delimitados esses parâmetros, a amostra totalizou 179
projetos. Isso representa cerca de 15% do total de projetos enviados pelo Executivo ao Legislativo, no período
delimitado. As espécies normativas incluídas nesse universo são: os projetos de lei ordinária (PLs), projetos de
lei complementar (PLPs) e as medidas provisórias (MPVs).
135
coordenador de preferências. Em muitos dos projetos analisados pela autora, um único relator
fez todas as alterações. Ainda que todos os relatores tenham as mesmas prerrogativas para
alterar as propostas, existe uma espécie de relator principal da proposta:
Cada projeto passa por inúmeras comissões na Câmara e no Senado e todos os
relatores nessa cadeia têm as mesmas prerrogativas no tocante a alterações. Mas o
relator que tem a primazia será o responsável pelo projeto e coordenará o processo
de alterações. A questão que deve ser ressaltada aqui é que não trata-se tanto de
ocupar ou não a relatoria, mas sim do relator principal da proposta ter o primeiro
movimento no tocante às alterações (Freitas, 2016, p. 83).
A autora explica esse processo alegando uma coordenação feita pelos partidos e a
maioria a respeito das alterações realizadas no texto. Não por acaso, os projetos do Executivo
tendem a ser distribuídos para relatores de partidos membros da coalizão (Freitas, 2016).
No caso das alterações nos textos ocorrerem majoritariamente na Câmara dos
Deputados, a autora supõe que os conflitos entre as preferências dos partidos tenham sido
resolvidos nessa casa legislativa, deixando pouco para ser alterado no Senado. Mas ela
ressalta que essa suposição só faz sentido no âmbito da relação entre os partidos que fazem
ponte no interior e entre as Casas Legislativas.
Em resumo, os achados de Freitas (2016) mostraram que se é inegável o elemento
centralizador do processo decisório brasileiro (Figueiredo e Limongi, 1999), tal elemento não
deve ser visto como obstáculo “à capacidade do Legislativo de alterar as propostas que
partem do Poder Executivo” (Freitas, 2016, p. 110). Ademais, nenhum dos poderes de agenda
do Executivo garante que ele prescinda de uma maioria no Legislativo para aprovar seus
projetos. Daí a necessidade, já observada, de se formar uma coalizão. Em conclusão, “a
agenda do Executivo, não é a agenda do Presidente, mas sim a agenda da coalizão” (Ibidem,
p. 111).
Seguindo a mesma linha de Freitas (2016), a pesquisa113 de Junqueira (2016)
aponta que a coalizão controla amplamente o processo de alteração dos projetos nas
comissões, sendo que 86% das alterações empreendidas por relatores foram propostas por
membros da coalizão do governo, contra apenas 14% de relatores da oposição. Além disso,
93% das modificações empreendidas por parlamentares da coalizão ocorreram nas comissões,
sendo 7% em plenário. Já a oposição altera majoritariamente em plenário. Para a autora, “o
relator da coalizão possui vantagem em relação ao oposicionista porque conta com uma
maioria, fazendo das alterações um meio de sedimentar esta maioria” (Junqueira, 2016, p.19).
113
O universo de análise da pesquisa inclui todas as modificações aprovadas nos projetos de iniciativa do
Executivo, que sofreram veto presidencial, assim como de todas as Propostas de Emenda à Constituição
aprovadas, pelo menos na primeira Casa Legislativa responsável por analisar a matéria, entre 1995 e 2010
136
A autora relembra que o Congresso é regido pelo princípio majoritário, ou seja, pela formação
de maiorias, por isso quando o status da coalizão for minoritário, ela deve buscar o apoio da
oposição, caso não possua o número de votos necessários para a aprovação da proposta. De
qualquer forma, é no interior das comissões que ocorrem os acordos necessários para a
consolidação de uma maioria (Junqueira, 2016).
Partindo dessas observações, o caso que nos interessa é de um projeto de lei de
iniciativa do Executivo e assinado pela Ministra Nilcéa Freire, na época filiada ao PT. As
relatoras do projeto pertenciam, em parte, ao partido do governo (PT) e da coalizão (PC-B),
mas também da oposição (PSDB). Apresentamos esses dados na tabela abaixo.
Quadro 13: Relação das relatoras do PL 4.559/04 e PLC 37/06 e sua posição na coalizão
do governo
Período de
Tramitação
16/12/2004
24/08/2005
30/08/2005
23/11/2005
24/11/2005
13/12/2005
3/04/2006
24/05/2006
Instância
Relatora
Posição na Coalizão
Comissão de Seguridade
Social e Família – CD
Comissão de Finanças e
Tributação – CD
Comissão de Constituição e
Justiça e Cidadania – CD
Comissão de Constituição e
Justiça – SD
Deputada Jandira Feghali
(PC-B-RJ)
Deputada Yeda Crusius
(PSDB-RS)
Deputada Iriny Lopes
(PT-SP)
Senadora Lúcia Vânia
(PSDB-GO)
PC-B pertencia a coalizão
do governo
PSDB não pertencia a
coalizão do governo
Partido do governo
PSDB não pertencia
coalizão do governo
Fonte: Elaboração própria
De acordo com os achados apontados no capítulo anterior, tudo indica que a
deputada Jandira Feghali (PC-B-RJ) foi a relatora que mais fez alterações no projeto e que
coordenou o processo de alterações do texto no interior do Legislativo, enquanto
representante do partido da coalizão majoritária114. Os indícios115 que sustentam tal suspeita
são: a intensa participação tanto da SPM quanto dos demais relatores na tramitação do projeto
na CSSF, indicando algum tipo de articulação em torno do texto, e a própria participação da
deputada Jandira Feghali nos processos decisórios relativos a CCJC-CD116 e a CCJ-SD117. Na
visão de Sarmento (2013), uma das mais importantes personagens na arena legislativa para
114
Ao longo de todo período em que o projeto tramitou, a porcentagem de cadeiras da coalizão do governo era
majoritária, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal. Essa informação pode ser confirmada
através dos dados apresentados por Freitas (2016, p. 148-9).
115 Essa hipótese precisaria ser confirmada através da metodologia mobilizada por Freitas (2016).
116 Ver item 2.4.3 do capítulo 2.
117 Ver item 2.4.4 do capítulo 2.
a
137
aprovação da lei foi a deputada. No entanto, além da sua atuação, destaca-se também o
volume das alterações feitas pela relatora da CCJC-CD, deputada Iriny Lopes (PT-SP). Já as
alterações propostas pelas relatoras da CFT-CD e da CCJ-SF parecem ter sido menores e
pouco significativas.
Considerando a importância das comissões no processo legislativo federal e a
intensa atuação do Consórcio nesses colegiados, exploraremos um pouco mais as discussões
em torno do papel delas no tópico seguinte.
3.2.1 O papel das Comissões118 no processo legislativo federal
Na atual organização da Câmara dos Deputados temos vinte e cinco comissões
permanentes e, no Senado Federal, são treze comissões. Elas possuem papel institucional
estratégico dentro do processo legislativo: podem iniciar legislação, emendar projetos,
emitem parecer sobre proposições; convocam audiências públicas e reúnem informação
técnica para avaliar os projetos de forma embasada (Freitas, 2016; Junqueira, 2016). Nesses
colegiados, os parlamentares dispõem de mais tempo para discutir os assuntos referentes à
temática de cada projeto, por isso as comissões se constituem também em espaços nos quais
se recebem manifestações de especialistas e da sociedade civil. Sua composição é
estabelecida pelas lideranças partidárias e não há compromisso quanto à estabilidade dos seus
integrantes, ou seja, parlamentares podem ser transferidos para outras comissões a qualquer
momento, se for do interesse dos líderes partidários (Junqueira, 2016).
As proposições são distribuídas às comissões de mérito cuja matéria estiver
relacionada, por determinação da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Além da
comissão de mérito, a proposição deve ser apreciada pela Comissão de Finanças e Tributação,
para exame dos aspectos financeiros e orçamentários públicos, quando for o caso (art. 53, II,
RICD), e pela Comissão de Constituição e Justiça, para o exame dos aspectos jurídicos
relativos a constitucionalidade da proposição (art. 53, III, RICD).
Nas comissões, o relator é o parlamentar designado para apresentar parecer sobre
matéria de competência do colegiado. A escolha dos relatores é atribuição do presidente da
comissão (art. 41, VI, RICD), cujas demais funções119 incluem representar o colegiado,
conduzir os trabalhos e reuniões e resolver questões regimentais, ocorridas no âmbito da
comissão.
118
119
Nosso enfoque aqui é para as Comissões Parlamentares da Câmara dos Deputados.
A lista completa de funções está no art.41, RICD.
138
Com base em um parecer, cabe ao relator sugerir a rejeição ou aprovação da
matéria, além de acatar ou rejeitar emendas ao projeto, apresentadas por outros parlamentares.
Na elaboração do parecer, o relator tem liberdade para emendar ou mesmo alterar o projeto
original. Se o seu parecer é aprovado pelo plenário da comissão, em todos os seus termos,
transforma-se no parecer do colegiado. Se ao parecer forem sugeridas alterações, com as
quais o relator concorde, é atribuído um prazo até a reunião seguinte para a redação do novo
texto (art. 57, XI, RICD). Se o voto do relator não for adotado pela comissão, a redação do
parecer vencedor será feita pelo relator substituto (art.57, XII, RICD). Para Santos e Almeida
(2005), além das funções regimentais pré-determinadas, o relator encarna a figura do agente
informacional da comissão, cuja atribuição consiste na coleta e divulgação de informação
sobre as consequências da proposta de política pública a ser analisada.
No que tange às comissões, Junqueira (2016) indica o sistema de comissões
brasileiro como peça chave do processo decisório. Ela retoma os achados da pesquisa de
Freitas (2016), destacando a relevância da participação dos parlamentares na produção legal
dos projetos, que se concretiza no interior das comissões parlamentares por meio das
alterações empreendidas por membros da coalizão. A autora advoga, em resumo, que as
comissões servem à produção de informação sobre os projetos em discussão e à ação
partidária.
Considerando os pontos levantados, verificamos que no caso do Consórcio a
interação com a arena legislativa se deu pelo ponto de acesso estratégico, com maiores
chances de sucesso do ponto de vista institucional. Atuar ao longo da tramitação, dentro das
comissões e próximo das relatoras, mostrou-se um ótimo meio de levar suas demandas para o
plano legislativo.
Ainda assim, é interessante notar que no âmbito dos estudos legislativos, sabe-se
muito pouco sobre a atuação dos atores sociais no parlamento (Santos, 2014; Santos et al,
2016b). A literatura que estuda a ação dos grupos de interesse no Congresso não explora a
atuação dos movimentos sociais nessa arena. Como já destacamos no capítulo 1, os achados
da pesquisa de Santos (2014) sugerem que os movimentos sociais teriam uma atuação
esporádica na arena legislativa, principalmente, considerando os custos envolvidos na atuação
de lobby. Apesar disso, o autor conclui que as estratégias de atuação das organizações de
movimentos sociais no parlamento carecem de melhores explicações e devem ser foco de
estudos mais aprofundados. Mas será que a atuação dos atores sociais difere muito, em termos
estratégicos, da atuação dos chamados grupos de interesse?
139
Pesquisas recentes sobre a atuação dos grupos de interesse na arena legislativa
indicam que as principais atividades desempenhadas pelos lobistas são o contato direto com
parlamentares, o trabalho nas comissões (acompanhamento de reuniões, participação em
audiências públicas e contato com assessoria técnica), a construção de coalizões com outros
grupos de pressão e a atuação junto à consultoria legislativa (Santos et al, 2016b)120. Em
relação à percepção dos entrevistados sobre o grau de eficiência dos repertórios mobilizados
destacam-se: a atuação junto a atores-chave no processo legislativo (presidente da comissão e
relator); a apresentação de sugestões legislativas (proposições e emendas); o contato com
parlamentares em situações diversas (visitas, encontros informais e eventos sociais); e o uso
da mídia e de técnicas de grassroots lobbying (manifestações públicas, campanhas de envio
de e-mails e cartas). Adicionalmente, as comissões foram unanimemente apontadas pelos
grupos como arenas parlamentares estratégicas, bem como o reconhecimento dos líderes de
governo, presidentes de comissão e relatores como atores-chave do processo legislativo.
Mediante achados recentes de pesquisa, Santos et al (2016a) apontam também que
os grupos de interesse não empenhariam esforços para atuar na arena legislativa se não
houvesse espaço no parlamento para a defesa de uma agenda favorável ou para barrar
proposições que contrariem seus interesses. Os autores recuperam a abordagem informacional
aplicada por Santos e Almeida (2011 apud Santos et al, 2016a) para indicar que as comissões
são responsáveis por produzir e disseminar informações para que os atores políticos tomem
decisões a respeito da proposição a ser avaliada. Nesse sentido, os grupos de interesse
funcionariam como agentes informacionais, ou seja, teriam a função de interlocutores dos
parlamentares e partidos nas suas funções de legislar, fornecendo informações para instruir o
processo de tomada de decisão, a partir do seu conhecimento especializado sobre os assuntos
relativos ao grupo.
Em suma, ao compararmos os achados aqui expostos (Freitas, 2016; Junqueira,
2016; Santos et al, 2016a, 2016b) e os apontamentos que fizemos sobre a atuação do
Consórcio na arena legislativa, no capítulo anterior, verificamos alguns pontos de
convergência. Primeiramente, Freitas (2016) constata que o Legislativo, de fato, realiza
mudanças nos projetos de lei apresentados pelo Executivo. Tais mudanças são realizadas,
120
Esses achados foram baseados num survey realizado por Santos et al (2016b). Os entrevistados foram
extraídos do cadastro dos grupos de interesse atuantes na Câmara dos Deputados, mantido pela Primeira
Secretaria da Câmara dos Deputados, no biênio 2011-2012. Ao todo, 179 organizações tinham representantes
credenciados junto à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Das organizações contatadas, 65 participaram
efetivamente da pesquisa. Do total de 4 organizações que pertenciam a categoria Sociedade Civil e ONGs,
apenas 1 respondeu à pesquisa. As demais organizações são ligadas ao âmbito das empresas, dos trabalhadores e
do setor público.
140
principalmente, no interior das Comissões Parlamentares na Câmara dos Deputados e são de
autoria dos relatores da matéria. Santos et al (2016b) apontam que, da perspectiva dos grupos
de interesse, as comissões são arenas parlamentares estratégicas, bem como os líderes de
governo, presidentes de comissão e relatores são vistos como atores-chave do processo
legislativo. Já os achados apresentados no capítulo 2, indicam que o Consórcio de ONGs atua,
primordialmente, no interior das comissões e em contato com os relatores da matéria. É
interessante notar também que tanto os grupos de interesse quanto o Consórcio apresentam
sugestões legislativas (proposições e emendas) aos atores políticos.
A partir dessas considerações, passamos ao desenvolvimento dos dois últimos
tópicos. Buscamos até aqui examinar os aspectos do Estado que importam para atuação do
Consórcio no caso da Lei Maria da Penha, quais sejam: i) o funcionamento do Legislativo
federal brasileiro; ii) o papel das comissões no processo legislativo federal. Com base nesse
insumo, discutiremos os dois processos, em nível macro, que reconhecemos a atuação do
Consórcio no caso: na formação da agenda e na produção do conteúdo legislativo.
3.3 A atuação do Consórcio na formação da agenda
Para alguns autores, é na fase de formação da agenda que os movimentos têm
maiores chances de influência no processo político (Andrews e Edwards, 2004). Por meio de
manifestações, campanhas educativas e lobbying, as organizações chamam atenção para o
tema, criam conscientização e trazem o senso da urgência em torno da reivindicação
pretendida. Outros pesquisadores alegam que “influenciar a agenda política importa para
alcançar ganhos legislativos ou que inserir a sua questão na agenda política aumenta a
probabilidade de obter benefícios coletivos” (Amenta et al, 2010 apud Dowbor et al, 2016,
p.7). Desse modo, no caso que nos interessa aqui, mobilizaremos alguns conceitos de
Kingdon (1995) sobre o processo de formação da agenda para entender como se deu a atuação
do Consórcio nessa fase. Primeiramente, descreveremos como o grupo colaborou para que a
ideia de uma legislação específica, sobre violência doméstica contra a mulher, ganhasse a
atenção dos altos escalões governamentais. Depois, analisaremos a atuação do Consórcio
trazendo alguns conceitos do autor que nos ajudem na reflexão da atuação do grupo nessa fase
pré-decisória.
141
A inserção do tema na agenda
Nada avança nessa temática sem o movimento. Os partidos fazem todo um discurso,
mas não contam muito essas pautas, né? Então nem sempre, mesmo um partido
como o PT que é o mais coeso ideologicamente, nem mesmo o PT não acompanha
essas pautas, só quem acompanha é o deputado da área. E os outros então... né? [...]
elas dialogavam com as deputadas, faziam demandas. Então eu acho que o papel
delas é socialmente político, entendeu? [...] porque a pauta foi elas que construíram.
(Entrevista 7, realizada em 20/05/2016)
O que nos possibilita estar aqui hoje foi o método do trabalho. Esse trabalho não se
inicia em abril de 2004 e é muito importante fazer esse registro. Esse trabalho se
inicia muito antes. É através da luta de centenas de mulheres brasileiras que vem
pavimentando um caminho para que possamos chegar até aqui.
Mas
especificamente no tocante a essa questão do projeto, esse trabalho se inicia dois
anos antes, esse trabalho se inicia através da elaboração de uma minuta de
anteprojeto. É através do Consórcio de ONGs que trabalham com a temática da
violência. Esse conjunto de organizações, através do contato e da interlocução com a
bancada feminina, naquele momento, elaborou uma minuta de anteprojeto que
trouxe a Secretaria no início de 2004, e a partir daí instalamos o GTI121.
Como já apontado no capítulo anterior, o tema da violência contra as mulheres
entrou na agenda pública, no Brasil, a partir da repercussão na imprensa dos assassinatos de
mulheres de classe média por seus maridos (Sorj e Monteiro, 1985 apud Moraes e Sorj,
2009b). No entanto, essa discussão foi pautada pelo debate em torno da defesa da vida das
mulheres e na visão do agressor como desviante, passional e doente (Moraes e Sorj, 2009b).
Assim, a violência não foi compreendida como um comportamento inscrito no campo das
relações desiguais de gênero, mas como um evento excepcional da relação entre homem e
mulher (Moraes e Sorj, 2009b). Nesse sentido, coube ao movimento feminista o papel de
converter conflitos privados em problemas públicos, ao desnudar o ambiente familiar como
território da reprodução de padrões desiguais entre homens e mulheres. Outra função exercida
pelo movimento foi inserir a discussão sobre os crimes de violência doméstica contra a
mulher no âmbito da violação de direitos humanos.
A atuação do movimento feminista, em torno dessa agenda, ocorreu desde as
campanhas sobre os casos absolvidos pelo Tribunal do Júri, em que réus confessos alegavam
que o assassinato das mulheres era justificado pela tese da legítima defesa da honra (Pinto,
2003). A aceitabilidade dessas teses, por parte do Poder Judiciário, revelou o machismo
impregnado nessas estruturas e as manifestações do movimento feminista colaboraram para
que esse argumento perdesse a eficácia no decorrer dos anos (Debert, Lima e Ferreira, 2008).
121
Fala da Ministra da SPM, Nilcéa Freire, no Seminário Violência Contra a Mulher: Um Ponto Final, realizado
para debater o PL nº 4559, de 2004, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher. Ocorrido em 16 de agosto de 2005. Disponível em: <goo.gl/pnQVWC>. Acesso em 10 jun. 2016.
142
Ao longo do tempo, o Estado respondeu algumas das demandas feministas que se
relacionam com a temática através da criação dos Conselhos Estaduais da Condição
Feminina, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), Delegacias de Defesa da
Mulher e a criação das agências estatais, com destaque para a Secretaria Especial de Política
para as Mulheres (SPM). No entanto, em 2001, um acontecimento importante tornou pública
a necessidade de o governo repensar a forma como a violência doméstica estava sendo tratada
pelo Estado (Sarmento, 2013). A decisão da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos
(CIDH) favorável ao recurso das ativistas que denunciaram um caso de violência doméstica,
ocorrido no Brasil, impulsionou uma mobilização nacional sobre o tema (Maciel, 2011).
Santos (2010) aponta que o governo Fernando Henrique Cardoso ignorou as
comunicações remetidas pela CIDH, a respeito do caso, ocorrendo o mesmo durante o
primeiro ano do mandato do governo Lula. Em 2003, o Comitê da Convenção Sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw) recomendou ao
governo brasileiro a elaboração de uma legislação sobre violência doméstica (Santos, 2010).
Diante deste cenário e com a criação da SPM, em 2003, a situação pareceu
favorável à ação do Consórcio. Para Santos (2010), a criação da agência permitiu a
possibilidade de alianças entre governo e as ONGs feministas. Pinheiro (2015) observa
também que por meio da SPM houve a inserção de ativistas no governo, através da ocupação
de cargos na burocracia estatal. Segundo a autora, pelo fato delas estarem num governo que
compartilhava, de alguma forma, dos projetos defendidos pelas feministas na sociedade civil,
foram possíveis avanços na agenda de alguns temas como a violência, por exemplo.
Dessa forma, com a percepção política de que havia um clima favorável
(Entrevistas 1 e 2), o Consórcio compartilhou sua visão sobre o problema e apontou
alternativas, encontrando interlocutores tanto na arena legislativa quanto no Executivo. A
base da argumentação do grupo sobre o problema incluiu: a) a crítica à legislação vigente (Lei
9.099/95), por meio de dados e estatísticas; b) argumentos jurídicos que refletem o conflito
legislativo, que já mencionamos no capítulo anterior122; c) a necessidade de se regulamentar o
parágrafo 8º, do artigo 226, da Constituição Federal123; d) as recomendações do Comitê
Cedaw, de 2003, para que o Brasil elaborasse uma legislação sobre violência doméstica; e)
122
Trata-se do conflito legislativo entre a Lei 9.099/95 e uma série de instrumentos internacionais, ratificados
pelo Brasil, que consideram a violência contra a mulher uma violação de direitos humanos, ou seja, um crime de
grande gravidade, ao contrário da denominação crime de menor potencial ofensivo, atribuída por aquela
legislação.
123 Esse parágrafo, escrito por orientação do movimento de mulheres, reconhece que o Estado assegurará a
assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no
âmbito de suas relações (Barsted, 2007).
143
enquadramento da questão cultural relativo à aceitação da violência contra a mulher,
principalmente, quando cometida por alguém do seu círculo afetivo.
Junto ao diagnóstico do problema, o Consórcio soube articular a solução em
forma de um anteprojeto de lei, o que foi possível por se tratar de um grupo de advogadas,
representantes de ONGs atuantes na temática, com bagagem histórica no movimento
feminista, e, uma parte delas, conhecedoras do funcionamento do Legislativo (Entrevistas
1,2,3,4,5). Vale relembrar que esse grupo já vinha discutindo os limites da Lei 9.099/95 e as
possibilidades de alternativas, oficialmente, desde 2001.
Mediante o exposto, a incidência do Consórcio na formação da agenda sobre o
tema ocorreu em dois momentos, conforme apresentamos na tabela abaixo.
Quadro 14: Repertórios de formação de agenda mobilizados pelo Consórcio
Instância
Câmara dos Deputados:
Seminário sobre
Violência Doméstica
SPM/GTI
Principais
Interlocutores
Bancada feminista
Repertório de ação (agenda)
Ministra Nilcéa
Freire, burocratas
da SPM e
participantes do
GTI
Após realização de Convênio entre SPM e
CFEMEA, as organizações apresentam
Anteprojeto de lei sobre violência doméstica e
familiar contra a mulher à ministra. O
anteprojeto é o documento base da discussão
do GTI, em que elas também participam,
pautando o debate.
Representantes da CEPIA e CLADEM
enquadram o problema e apresentam minuta de
anteprojeto aos parlamentares.
Fonte: Elaboração própria
É importante dizer que a participação do grupo tanto no seminário da Câmara,
quanto no GTI depende de um convite por parte dos atores políticos, o que denota o
reconhecimento de que o Consórcio integra uma comunidade de políticas (policy
communities) sobre o tema. O próprio convênio realizado entre SPM e Cfemea (Anexo 3)
também corrobora para esse entendimento, uma vez que a agência estatal fez repasse de
recursos financeiros para uma das organizações integrantes do Consórcio, com o objetivo
principal de que essas se dedicassem a produzir o anteprojeto de lei sobre violência doméstica
e familiar contra a mulher. Tal anteprojeto, como já destacamos, foi usado como subsídio para
as discussões ocorridas no GTI.
144
Desse modo, quando a agenda chega ao Congresso como o PL 4.559/04, ela já
havia sido construída com base no que o grupo havia pautado tanto no Legislativo, quanto no
Executivo. Os principais termos da discussão foram trazidos pelo Consórcio e giravam em
torno, principalmente, da não aplicação da Lei 9.099/95 e da criação dos Juizados de
Violência Doméstica com competência cível e criminal. Sobre o primeiro ponto, a ministra
afirma que o principal conflito ocorrido no GTI foi sobre a referida lei (ver item 2.3.2 do
capítulo anterior).
Nesse sentido, o Consórcio atuou junto aos planos e agendas dos atores políticos
(Amenta et al, 2010), chamando atenção das autoridades para o tema, tornando-se fonte de
informação e produzindo conteúdo legislativo. Na própria exposição de motivos124,
apresentada pela ministra da SPM, junto ao PL 4.559/04, observamos o reconhecimento do
grupo no processo, trazendo a questão ao governo, como mostramos no tópico 1.2.5. Essa
informação foi reforçada pela ministra da SPM (Freire, 2005) e no próprio relatório
institucional da agência estatal (Brasil, 2006).
Por fim, é importante relembrar dois pontos. Primeiro, que ainda que a SPM tenha
incorporado no projeto grande parte do texto elaborado pelo Consórcio (Calazans e Cortes,
2011), houve algumas derrotas do grupo em pontos importantes, como já apontamos no
capítulo anterior. Segundo, que ao optar por alguns pontos que favoreciam o lobby do Fórum
Nacional de Juizados Especiais (Fonaje), a ministra Nilcéa Freire fez um movimento no
sentido de levar a discussão para o Legislativo, sinalizando para o Consórcio que as
discussões sobre as divergências poderiam ser feitas naquela arena (Barsted, 2007).
3.3.1. Mobilizando alguns conceitos sobre o processo de formação da agenda (agendasetting)
O processo pelo qual as ideias competem para ganhar a atenção da mídia, da
opinião pública e dos altos escalões governamentais é denominado de formação da agenda ou
agenda-setting (Capella, 2006). Por isso, nosso interesse por essa análise é inspirado nas
perguntas que John Kingdon busca responder em seu livro Agendas, Alternatives e Public
Policies que, de acordo com Capella (2006) seriam: por que alguns problemas se tornam
importantes para um governo? Como uma ideia se insere no conjunto de preocupações dos
formuladores de políticas, transformando-se em uma política pública?
124
Disponível em: <goo.gl/phqJdb>. Acesso em 5 out. 2016.
145
O conceito de agenda governamental, para Kingdon (1995), é definido como a
lista de temas ou problemas que são alvo, em dado momento, de séria atenção tanto da parte
das autoridades governamentais como de pessoas de fora do governo, mas estreitamente
associadas às autoridades. O autor inclui também uma distinção importante entre a agenda do
governo e a agenda de decisões, que seria “a lista de assuntos dentro da agenda do governo
encaminhados para deliberação” (Kingdon, 1995, p. 222). Uma política pública só tem início,
portanto, se o tema em debate evolui da agenda do governo para a agenda de decisões.
Sobre o processo de estabelecimento de agenda, Kingdon (1995) defende que esse
costuma vir associado ao reconhecimento de um problema importante. Uma vez que um
problema seja definido como urgente, certos tipos de abordagem são favorecidos e algumas
alternativas são enfatizadas, enquanto outras desaparecem.
A formulação de políticas públicas acontece através de um conjunto de processos,
incluindo pelo menos: 1) o estabelecimento de uma agenda; 2) a especificação das
alternativas a partir das quais as escolhas são feitas; 3) uma escolha final entre estas
alternativas específicas, por meio da votação no Legislativo ou decisão presidencial;
e 4) a implementação desta decisão. (Kingdon, 1995, p. 221)
Outro fator importante para que algo se torne prioritário na agenda de decisões é o
alinhamento de três elementos destacados pelo autor, quais sejam: os fluxos dos problemas
(problems), das soluções ou alternativas (policies) e das políticas (politics). No entanto, esse
alinhamento apresenta algumas limitações, quando ocorre de forma parcial.
[...] conexões parciais tem menos chances de ganhar prioridade dentro de uma
agenda de decisões. Por exemplo, os problemas que chegam as agendas de decisões
sem propostas de soluções, não tem as mesmas chances de serem deliberadas do que
aqueles que incluem propostas de soluções. E propostas sem apoio político tem
menos probabilidade de serem decididas do que aquelas que tem esse apoio.
(Ibidem, p. 234-5).
Quando em uma dada circunstância, os três fluxos convergem, ou seja, um
problema é reconhecido, uma solução está disponível e as condições políticas são favoráveis,
a questão relativa a esse processo chega à agenda. Entretanto, as circunstâncias que
possibilitam essa convergência são, majoritariamente, influenciadas pelo fluxo de problemas
e pelo fluxo político (Capella, 2006). Por isso, uma oportunidade para mudança surge quando
um problema consegue atrair atenção do governo ou quando mudanças são introduzidas na
dinâmica política. Tratando de diferenciar os fluxos, a autora esclarece que o fluxo da política
(politics) tem suas próprias dinâmicas e regras, pois as coalizões são construídas a partir de
um processo de barganha e negociação política, diferente do fluxo de soluções ou alternativas
(policy), em que o consenso é construído com base na persuasão e difusão das ideias.
146
Aplicando esses conceitos no caso aqui analisado, consideramos que a
repercussão contínua do caso Maria da Penha, em um dado momento, atraiu atenção do
governo. Inicialmente, a decisão da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH),
em 2001, não surtiu efeito imediato, mas a recomendação do Comitê Cedaw, em 2003, aliada
à mobilização por parte do movimento (Maciel, 2011) evidenciaram o problema. O governo
reconhecia a pressão do movimento feminista sobre o tema da violência contra a mulher
durante as últimas décadas, para que o Estado assumisse o seu papel no enfrentamento dessa
questão (Brasil, 2006) e a própria criação da agência estatal, comprometida com a igualdade
de gênero, refletia essa preocupação. Por isso, quando ocorreu a criação da SPM em 2003, se
abriu uma janela de oportunidade (Kingdon, 2003 apud Capella, 2006) para a atuação do
Consórcio. Diante dessa oportunidade, o Consórcio enquadrou o problema e apresentou uma
solução, difundindo suas ideias nas arenas institucionais, enquanto parte da comunidade de
políticas (policy communities).
Em suma, nos termos de Kingdon (2003 apud Capella, 2006) o Consórcio
conseguiu capturar a atenção dos atores políticos completando com sucesso os pré-requisitos
que fazem com que determinada condição seja vista como um problema e ascenda para a
agenda de decisões. No entanto, é importante diferenciar um ponto com relação a esse modelo
explicativo, pois na nossa visão não se trata apenas de aproveitar a janela de oportunidade,
nos termos de Kingdon, mas também de uma adaptação das estratégias e repertórios do
Consórcio às condições institucionais (Dowbor et al, 2016) relativas ao processo de formação
da agenda tanto no Executivo, quanto no Legislativo.
No próximo tópico, abordaremos a atuação do Consórcio sobre a produção do
conteúdo legislativo da Lei Maria da Penha.
3.4 A atuação do Consórcio sobre o conteúdo legislativo da Lei Maria da Penha
A gente fez muito foi trabalho de bastidor, e é isso que funciona às vezes, há
momentos que você tem que fazer o trabalho do holofote, ir para as audiências, ir
para os seminários, ir como expositora, mas uma coisa que a gente aprende também
é o trabalho dos bastidores. E o trabalho dos bastidores é um trabalho que tem
determinadas características em qualquer país. Quem tem acesso? Quem tem acesso
ao deputado? Quem tem acesso ao relator? Quem tem acesso a isso, quem tem
acesso aquilo? Infelizmente não é todo mundo que tem acesso, então você usa do
seu capital político, do seu capital intelectual, do seu reconhecimento, do seu capital
de classe social, enfim, você usa de vários capitais para que você possa realmente
nesse trabalho de bastidor estar ali sussurrando junto aquele que vai, enfim, defender
a questão lá na frente (Entrevista 1, realizada em 15/02/2016).
Para alguns pesquisadores, os movimentos sociais, bem como os grupos de
interesse, têm pouco efeito sobre a adoção de políticas, além dos estágios iniciais do processo,
147
quando ajudam a formular as questões, chamar atenção para um tema, elaborar propostas
legislativas e pautar a agenda (Bauer, Pool e Dexter, 1967; Milbrath, 1963; Scott e Htun,
1965; Kingdon, 1984 apud Soule e King, 2006).
Na mesma linha, Meyer (2003) aponta que os pesquisadores de políticas públicas,
geralmente, reconhecem os movimentos sociais como fatores políticos exógenos ao longo do
processo político, cujos efeitos são limitados à formação da agenda (agenda-setting), à
interpretação de problemas sociais e às alternativas de políticas. No entanto, raramente as
análises vão além disso, ou abordam os mecanismos pelos quais os movimentos afetam o
processo político.
Nesse sentido, as análises sobre como grupos de interesse e organizações de
movimentos sociais afetam a política pública precisam considerar, de que modo a influência é
exercida nas instituições políticas (Andrews, 2001; Hansen, 1991, Krehbiel, 1991 apud
Burstein e Hirsh, 2007). Por esse motivo, algumas perguntas que pesquisadores têm buscado
responder são:
•
•
Quais são as necessidades mais importantes dos parlamentares, enquanto eles
examinam questões legislativas?
Como as organizações podem influenciá-los atendendo essas necessidades?
Burstein e Hirsh (2007) respondem que uma das necessidades dos parlamentares é
a obtenção de informação. Os autores esclarecem que parlamentares trabalham em um
ambiente complexo e são pressionados a agir, ou não agir, sobre uma série de questões
sabendo que suas ações podem ter consequências importantes. Por isso, para tomar decisões,
buscam constantemente por informação (Hansen, 1991, Krehbiel, 1991; Rucht, 1999 apud
Burstein e Hirsh, 2007). De acordo com os autores, os três principais tipos de informações
que interessam aos atores políticos são relativos: i) à importância do problema que eles são
chamados a deliberar; ii) à eficácia da solução proposta, ou seja, o provável impacto da
política pública na solução do problema e iii) ao provável impacto do seu posicionamento,
sobre a questão, em seu eleitorado.
A partir disso, Burstein e Hirsh (2007) reconhecem que uma fonte importante de
informação no Congresso americano são as audiências, que ocorrem no sistema de comissões.
Mediante essa constatação, os autores realizaram uma pesquisa inédita, focada
especificamente sobre os participantes das audiências, os conteúdos de seus depoimentos e o
tipo de informação que eles fornecem aos parlamentares. Assim, os pesquisadores buscaram
148
analisar o conteúdo das falas dos participantes nas audiências, tendo em vista os três tipos de
informações que, em tese, mais interessariam aos atores políticos.
A questão empírica que a pesquisa pretendeu responder foi se essas
participações/testemunhos nas audiências afetavam a probabilidade de que propostas
legislativas fossem aprovadas. Dentre os resultados encontrados, os autores destacam que as
informações oferecidas por apoiadores125, de determinada proposta, aumentam a
probabilidade da sua aprovação, quando a informação fornecida pelo participante diz respeito
à eficácia da solução, em outras palavras, quando a informação trata do provável impacto da
política pública em pauta na solução do problema. Os autores especulam que é essa
informação que interessa aos atores políticos quando uma audiência é convocada. Outras
informações relativas, por exemplo, à importância do problema, não têm impacto nesse caso.
Por fim, Burstein e Hirsh (2007) concluem que é preciso investigar as variadas formas pelas
quais os parlamentares adquirem informação, entretanto, além dessa questão são muitos os
fatores que influenciam a ação no Congresso.
Partindo de premissas semelhantes, Zampieri (2013) vai além e considera a
informação como o principal insumo para a concretização das ações dos grupos de pressão
nas comissões parlamentares do Legislativo brasileiro. Em seu trabalho, o autor buscou
responder à pergunta: em que momentos acontecem às ações de influência produzidas, pelos
grupos de pressão, nas comissões? Em resposta, o autor reconhece que as ações podem ser
estabelecidas em três processos decisórios: na definição do relator da proposição; na
formulação do parecer do relator e na definição do posicionamento da comissão.
No momento da definição do relator, Zampieri (2013) verifica que as ações
possíveis são restritas ao convencimento dos atores políticos, com o objetivo de influenciar o
presidente da comissão, na indicação do deputado (a) cujas ideias se alinhem com as do grupo
de pressão. Durante a formulação do parecer, as ações são realizadas com mais facilidade
pelos grupos. Eles têm a oportunidade de apresentar seu posicionamento ao relator “sob a
forma de petições, memoriais ou pareceres que são empregados junto aos deputados federais,
na tentativa de adequar o texto da proposição aos interesses defendidos” (Aragão, 1994 apud
Zampieri, 2013, p. 133). No momento do posicionamento da comissão, a ação do partido terá
maior influência. Por isso, os grupos de pressão atuam no sentido de convencer os membros
125
Pelos dados da amostra apresentada pelos autores, não nos parece constar organizações de movimentos
sociais. Os dados indicam que 44% dos participantes das audiências representam organizações de interesse
privado, enquanto que o restante (38%) se concentra em atores ligados ao próprio setor público (governo local,
estadual, membros do Congresso, etc.) e os demais (18%) são especialistas/técnicos ou pessoas relatando
experiências pessoais, relevantes sobre o tema.
149
da comissão a votar pela aprovação ou rejeição do parecer do relator, a depender de como
seus interesses se adequam ou não ao texto.
A partir dessas pesquisas, apresentaremos reflexões sobre o caso do Consórcio.
Até aqui, apontamos que o grupo pautou a agenda e produziu conteúdo legislativo que serviu
de insumo para o PL 4.559/04. No entanto, para afirmarmos que a atuação do Consórcio
incidiu sobre o conteúdo da Lei Maria da Penha, temos alguns desafios pela frente. Primeiro,
precisamos definir o que isso significa exatamente e, depois, em que momento isso ocorreu.
Em parte, isso já foi explicado no capítulo anterior, pois a atuação do Consórcio sobre o
conteúdo legislativo se deu no interior das comissões e em interação com atores políticos em
pelo menos dois momentos: na formulação do parecer do projeto e no posicionamento da
comissão. Tal atuação resultou na incorporação de pontos defendidos pelo Consórcio no texto
da lei promulgada. Destacamos que esses pontos já constavam no texto elaborado pelo grupo
desde o Anteprojeto de lei, entregue a SPM, antes mesmo da tramitação do projeto ter início.
Sobre o caso, Barsted (2011) defende que além de ter redigido o anteprojeto, o Consórcio
atuou decisivamente no processo legislativo que culminou com a sanção da Lei Maria da
Penha. Nunes (2012) vai além e reconhece no texto da lei promulgada a maioria das
demandas feitas pelo grupo, ao longo do processo de formulação da política. No entanto, ao
endossar esses apontamentos, emerge uma questão: como garantir que esse resultado,
favorável ao grupo, não seja apenas produto da coincidência de preferências entre o
Consórcio e os atores políticos, envolvidos na formulação e aprovação da política126?
Uma questão problemática, como observa Mancuso (2007), é que toda decisão
política é resultado de um processo em que estão envolvidos vários fatores, que interagem de
forma complexa, por isso existe uma grande dificuldade de produzir evidências sólidas, que
justifiquem a afirmação de que uma decisão política é causada pela influência de um
determinado ator ou grupo de atores. No caso das decisões tomadas no Legislativo, esse
quadro se torna ainda mais complexo, pois estamos tratando de decisões coletivas que
acontecem em várias rodadas. Ao tratar da atuação política do empresariado no processo de
produção legislativa federal, Mancuso (2007) trouxe reflexões sobre a possibilidade de
mensuração da influência dos grupos de interesse no Legislativo. Segundo o autor, os
indicadores possíveis para se medir a influência de determinado grupo, no processo decisório,
costumam ser restritos aos indicadores baseados em impressões (dos próprios atores
126
Tal ponderação é baseada na argumentação feita por Maria Hermínia Tavares em sua apresentação ao livro
de Mancuso (2007, p. 18), na qual afirma: “Porque não há como distinguir a decisão que é resultado da
influência de um grupo de pressão daquela que é resultado da coincidência de orientações e de preferência entre
os que pressionam e os que decidem”.
150
envolvidos no processo) e nos indicadores baseados em resultados (na observação sobre o que
foi decidido, em comparação com as preferências iniciais dos grupos). Analisando a tipologia
de indicadores apresentada por Mancuso (2007) e aplicando ao nosso caso, temos os dois
tipos de indicadores possíveis, conforme demonstramos na tabela abaixo.
Quadro 15: Indicadores de influência política no caso do Consórcio
Indicadores
Limitações do indicador
Avaliação dos atores
sociais
- O ator pode ser incapaz de demonstrar que a decisão seria diferente, se a ação
não tivesse ocorrido.
Baseado em impressões das - O ator pode superestimar ou subestimar a influência que exerce (Furlong, 1997;
integrantes do Consórcio.
Domhoff, 2002 apud Mancuso, 2007).
- Problemas metodológicos envolvidos na comparação de diferentes
perspectivas, pois atores diferentes podem seguir critérios de avaliação distintos
(March, 1985 apud Mancuso, 2007).
Avaliação dos atores
políticos
Baseado em impressões
dos representantes do
Legislativo federal.
- O tomador da decisão pode ter dificuldade para discernir a importância dos
fatores na própria formulação da sua decisão (Milbrath, 1969 apud Mancuso,
2007).
- O tomador de decisão pode subestimar ou superestimar a influência exercida
pelo ator.
- Problemas metodológicos envolvidos na comparação de diferentes
perspectivas.
Resultado do processo
decisório
- O pesquisador pode ser incapaz de demostrar que a ação do ator é a causa da
decisão política.
Baseado no comparativo
entre: a) conteúdo do
Anteprojeto de Lei,
elaborado pelo Consórcio;
b) resultados deliberados
nas Comissões
Parlamentares; c) a Lei
Maria da Penha
promulgada.
- A relutância dos atores sociais e políticos em descrever detalhadamente suas
negociações, torna difícil reconstruir a ação política (Epstein, 1990 apud
Mancuso, 2007).
Fonte: Adaptada de Mancuso (2007, p.135)
De qualquer forma, ainda que nossa argumentação sobre a influência do
Consórcio se pautasse nesses indicadores, nenhum deles seria preciso o suficiente para
resolver o problema da causalidade, ou seja, de garantir que resultados na Lei Maria da Penha
151
sejam atribuíveis ao grupo. Como apontam Santos et al (2016b), a produção acadêmica
voltada para a ação dos grupos de interesse parece não ter acumulado conhecimento suficiente
que permita maior clareza sobre o grau de efetividade da influência exercida pelos grupos.
Para fugir desse dilema, Mancuso (2007) adotou o conceito de sucesso, ao invés
de influência, para avaliar em que medida as proposições legislativas mais relevantes para a
indústria foram decididas em correspondência aos interesses deste segmento de classe. O
conceito de sucesso “consiste na convergência entre o teor de uma decisão e a posição da
indústria sobre o texto final do projeto submetido aquela decisão” (Mancuso, 2007, p. 104).
Nesses casos, vitórias importantes ocorrem “quando normas jurídicas apoiadas pelo setor são
aprovadas” (Ibidem, p. 107), entretanto, isso não implica em dizer que os sucessos ocorreram
por influência do empresariado
No nosso caso, argumentaremos que houve sucesso (Mancuso, 2007), no sentido
da convergência entre o teor do texto final da Lei Maria da Penha e o conteúdo legislativo
defendido e produzido pelo grupo, em ao menos dois pontos chave, conforme indicamos no
capítulo anterior (ver item 2.6). Esse resultado se explica, em parte, pela atuação do
Consórcio sobre o conteúdo das propostas elaboradas por representantes do Legislativo
(Amenta et al, 2010) ao longo do processo. O grupo participou ativamente da formulação dos
pareceres das comissões através, principalmente, da produção de informação junto aos
relatores, atuando como um agente informacional (Santos et al, 2016a). Para ilustrar,
apresentamos abaixo um quadro em que relacionamos a atuação do grupo em cada comissão e
o principal resultado alcançado, do ponto de vista das demandas do grupo.
152
Quadro 16: Resultados do processo decisório, por Comissão Parlamentar, relacionados a atuação do Consórcio
Instância/interlocutor Momento da
atuação do
Consórcio
CSSF/CD – deputada
Jandira Feghali –
PCdoB/RJ (relatora)
Formulação do
parecer da
relatora
Repertórios mobilizados pelo Consórcio
•
•
•
•
•
CFT/CD – deputada
Yeda Crusius –
PSDB/RS (relatora)
Formulação do
parecer da
relatora
CCJC/CD – deputado
Antonio Biscaia –
PT/RJ (presidente da
Comissão)
Posicionamento
da Comissão
CCJ/SF – senadora
Lúcia Vânia –
PSDB/GO (relatora)
Formulação do
parecer da
relatora
Fonte: Elaboração própria
•
•
•
•
•
•
Principais resultados deliberados nas Comissões
Definição conjunta, com a relatora, sobre as estratégias de atuação •
ao longo da tramitação do projeto.
Participação nas audiências públicas, nos Estados, e articulação •
com redes locais para garantir a presença dos movimentos, nas
audiências.
Participação no grupo de apoio e assessoria, ao trabalho da relatora,
e atuação conjunta na redação do parecer.
Apoio na organização de Seminário e participação de
representantes do Consórcio, como palestrantes.
Participação em reunião, com a ministra da SPM, juntamente com
demais integrantes do grupo de apoio e assessoria, para definir o
conteúdo final do parecer.
Participação nas reuniões da Comissão.
•
Negociação, com a relatora, sobre conteúdo do parecer.
Uso de contato pessoal para negociação com o presidente da
Comissão sobre pontos divergentes do projeto.
Contato direto com assessor parlamentar, da bancada do Partido dos
Trabalhadores (PT), que também negociou com os deputados
resistentes sobre alguns pontos do projeto.
Participação no grupo de apoio, ao trabalho da relatora, e atuação
conjunta na redação do parecer sobre o projeto.
Articulação local, junto ao movimento de mulheres, para pressionar
parlamentar (senador Demóstenes Torres) que discordava de alguns
pontos do projeto.
•
•
•
Afasta-se a aplicação da Lei 9.099/95 dos casos de
violência doméstica.
É mantida a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e os julgamentos dos crimes de violência
doméstica contra a mulher são direcionados às Varas
Criminais. Essas varas acumulam competências
cíveis, além das criminais, para julgar os casos
enquanto não fossem criados os Juizados.
Alterações pouco significativas no texto do projeto.
Mantém a exclusão da Lei 9.099/95 (havia
resistência).
Mantém a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e a solução temporária de que seus
julgamentos sejam feitos nas Varas Criminais. (havia
resistência).
Alterações pouco significativas no texto do projeto
(apenas emendas de redação, para corrigir vícios no
texto)
153
A interpretação do quadro acima foi feita no capítulo anterior (item 2.6), quando
avaliamos os repertórios mobilizados pelo Consórcio, desde a pré-tramitação até a aprovação
do projeto de lei. Destacamos, novamente, que esse quadro indica que o Consórcio atuou em
peso junto à relatora da CSSF. A própria deputada Jandira Feghali reconhece o papel do
grupo ao afirmar que, sem a sua contribuição, conquistas importantes não teriam se efetivado
na lei promulgada como, por exemplo, a não aplicabilidade da Lei 9.099/95 (Entrevista 6).
A tramitação nas demais comissões manteve as alterações realizadas ao longo do
processo legislativo, favoráveis ao Consórcio, em relação aos dois pontos principais já
mencionados (item 2.6). Nesse sentido, reconhecemos que consta no texto da lei promulgada
parte importante das reivindicações feitas pelo Consórcio ao longo da produção da política.
Um desafio, como já citamos, é saber que variáveis explicam esse resultado. A atuação do
Consórcio nos pareceu uma condição necessária para que determinados pontos fossem
incluídos no texto final da lei. No entanto, o apoio da SPM e a articulação dessa agência com
a bancada feminina, também integram os fatores que explicam esse resultado positivo para o
grupo.
É importante lembrar que um projeto de lei não é aprovado sem o apoio da
maioria e do Executivo, ou seja, para as alterações realizadas ao longo do processo legislativo
constarem na lei foi necessário obter esse apoio. Como aponta Freitas (2016), a coalizão com
status majoritário tem mais chances de ser bem-sucedida nas modificações propostas, por
isso, o fato da relatora principal da matéria ter se engajado no seu resultado, em articulação
com a SPM, certamente contribuiu para o resultado final. Em suma, estamos tratando aqui de
um processo no qual diferentes causas operam simultaneamente, relativas tanto à dimensão
dos movimentos sociais quanto à do Estado. No âmbito da atuação dos atores sociais, esse
caso nos parece indicar que a ação desses atores produz efeitos importantes sobre a produção
de políticas públicas no Legislativo federal.
***
Nesse capítulo buscamos incorporar as configurações institucionais do Legislativo
na análise do caso. Com isso em vista, trouxemos reflexões sobre: i) o funcionamento do
Legislativo federal brasileiro e ii) o papel das comissões no processo legislativo federal. A
partir disso, pudemos observar a importância dessas dimensões ao pesquisar a atuação de
atores sociais na arena legislativa. Em outras palavras, trata-se da tarefa analítica de
“descrever partes do Estado diretamente relacionadas às demandas e ações dos atores
coletivos” (Dowbor et al, 2016, p. 21). Por fim, como sugerem as autoras, explicar os efeitos
154
dos movimentos nas políticas públicas, a partir de combinações causais entre os repertórios
mobilizados pelos atores e as respectivas variáveis institucionais, nos parece uma boa solução
para não restringirmos as explicações apenas à dimensão do movimento social.
155
Considerações Finais
O principal esforço desse trabalho foi no sentido de descrever um processo cujo
percurso foi observado ao longo da tramitação do projeto que deu origem à Lei Maria da
Penha. Trata-se de um caso que envolveu a atuação de um Consórcio de ONGs feministas,
juntamente com acadêmicas e juristas, que se articulou em 2001 com o objetivo de produzir
uma solução legislativa para o problema da violência doméstica contra as mulheres. Ao
elaborar um anteprojeto de lei, o Consórcio se concentrou em defender suas ideias junto aos
atores políticos, para inserir o tema na agenda e garantir que o projeto de lei proposto ao
Congresso pelo Executivo, se alinhasse ao conteúdo legislativo que o grupo havia produzido.
O Consórcio atuou desde a proposição, até a aprovação da Lei Maria da Penha, mobilizando
uma série de repertórios voltados para a influência no Congresso Nacional nesse caso
específico. Os achados da pesquisa indicam que o Consórcio atuou, primordialmente, no
interior das Comissões Parlamentares, pelas quais o projeto tramitou, e em contato com as
relatoras da matéria. O grupo participou ativamente da formulação dos pareceres das
Comissões através, principalmente, da produção de informação junto as relatoras, atuando
como um agente informacional (Santos et al, 2016a). Além disso, o Consórcio atuou no
momento de definição do posicionamento das Comissões Parlamentares, no sentido de
neutralizar posições contrárias aos pontos do projeto que eram inegociáveis para o grupo.
É importante relembrar que para alterar os projetos de lei, tanto nas comissões,
quanto no plenário, é necessária a construção de maiorias parlamentares. Por isso, cada
alteração feita ao longo da tramitação só pode de fato ser incluída no texto da lei se houver
concordância entre o Executivo e a maioria do parlamento (Freitas, 2016). A pesquisadora
aponta também que o processo de alterações é coordenado pela coalizão no interior do
Legislativo e o relator, normalmente um membro do partido da coalizão, representa esse papel
de coordenador de preferências. Daí a importância da atuação do Consórcio nesses espaços e
em contato com atores políticos.
Desse modo, essa pesquisa observou a produção de uma política pública na arena
legislativa com foco no processo decisório. Esse percurso incluiu uma combinação de
variáveis relativas à atuação do movimento social (repertórios), bem como as variáveis
institucionais, relativas ao funcionamento do Legislativo. Sendo assim, para entender os
efeitos políticos do Consórcio de ONGs feministas sobre a Lei Maria da Penha, foi necessário
observar as dimensões relativas ao movimento social, bem como ao Estado, pois elas operam,
156
simultaneamente, condicionando os resultados da ação dos movimentos sobre a produção de
políticas públicas.
Nesse sentido, consideramos importante retomar alguns pontos tratados ao longo
dos capítulos anteriores, a partir da nossa pergunta de pesquisa. Dado o estágio incipiente da
agenda de pesquisa sobre movimentos sociais e Legislativo no Brasil, refletido na escassa
produção bibliográfica sobre o tema, desenvolvemos um trabalho de caráter exploratório.
Nosso trabalho está centrado, portanto, numa única pergunta de pesquisa: Como se deu a
atuação de um Consórcio de ONGs feministas, no Legislativo federal, desde a proposição até
a aprovação da Lei Maria da Penha? A partir dessa pergunta, nosso foco foi investigar os
efeitos da atuação do grupo sobre a produção da política.
No primeiro capítulo, constatamos que tanto no âmbito dos estudos legislativos,
quanto na literatura de movimentos sociais, sabe-se muito pouco sobre a atuação dos atores
sociais no parlamento (Abers, Serafim e Tatagiba, 2014; Santos, 2014). No entanto, alguns
casos empíricos trazem achados que devem ser destacados. Pelo menos desde a Constituinte,
movimentos sociais têm atuado no Legislativo federal com o objetivo de levar suas demandas
ao Congresso (Lin, 2010; Brandão, 2011; Dowbor, 2012; Abers, Serafim e Tatagiba, 2014).
Com a criação dos mecanismos de participação popular na arena legislativa, previstos tanto na
Constituição Federal quanto nos Regimentos Internos das Casas Legislativas, os movimentos
são reconhecidos como atores que também atuam através desses dispositivos buscando
efetivar suas reivindicações junto ao Estado (Paz, 1996; Lin, 2010; Coelho, 2013). Para além
dos canais de acesso formais que permitem a participação de atores sociais no processo
legislativo, os movimentos também acessam os canais de acesso informais como, por
exemplo, a sugestão de emendas e o trabalho de lobby exercido junto aos relatores (Carvalho
e Taglialegna, 2006). No âmbito do movimento feminista, os achados são anteriores à
Constituinte, localizados na chamada “primeira onda” (Matos, 2014) que se estende da virada
do século XIX para o século XX, até 1932. Já nesse período, encontramos o movimento
sufragista, liderado por Bertha Lutz, mobilizando repertórios voltados para a atuação no
Congresso, pelo direito ao voto feminino no Brasil (Alves, 1980; Hahner, 2003; Saffioti,
2013). Levando isso em conta, a literatura que pretende se aprofundar na interação entre
movimento feminista e o Legislativo federal terá que incorporar o conhecimento já produzido,
que indica que as feministas estão ativas e atuantes na arena legislativa.
No capítulo 2, ao reconstruir empiricamente a atuação do Consórcio de ONGs
feministas no caso da Lei Maria da Penha, vemos que essas organizações atuam por dentro da
arena legislativa, mas também através de repertórios como manifestações e mobilizações.
157
Trata-se de uma estratégia combinada de repertórios para incrementar as pressões sobre o
processo legislativo, configurando-se no que denominamos de “campanha” (Tilly, 2010). Para
relatar os repertórios mobilizados pelo Consórcio na arena legislativa, nos baseamos na lógica
do processo legislativo (King, Cornwall e Dahlin, 2005) por entender que estamos tratando de
uma instituição cujo funcionamento é processual e fragmentado em múltiplos processos
decisórios. A partir dessa premissa, encontramos os atores sociais mobilizando uma série de
repertórios com o intuito de incidir sobre a formação da agenda política, bem como sobre a
produção do conteúdo legislativo da lei.
No terceiro capítulo, acrescentamos às variáveis do movimento social (repertórios
de ação) a dimensão institucional relativa ao funcionamento do Legislativo federal. Segundo
Dowbor et al (2016), os movimentos que almejam mudanças em determinada política pública,
formulam suas demandas em torno das instituições relativas a essa política. Por isso, para
entender os efeitos dos atores sociais sobre as políticas, além de observar as variáveis relativas
à dimensão do movimento social, é necessário descrever as instituições do Estado visadas
pela ação do movimento. Assim sendo, examinamos os aspectos do Legislativo federal que
consideramos relevantes para a atuação do Consórcio nessa arena e, ao fazer isso, nos
deparamos com o problema da atribuição causal, pois quando os movimentos interagem com
o Estado na produção de uma política pública, é difícil atribuir à ação dos atores sociais
determinado resultado na política pública. No caso do Legislativo, isso é ainda mais complexo
porque as decisões políticas são resultado de um processo em que vários fatores interagem
simultaneamente. Nesse caso, adotamos a saída proposta por Mancuso (2007) que nos permite
reconhecer que o Consórcio foi bem-sucedido na produção da política, pelo fato da lei
promulgada convergir com os principais pontos produzidos e defendidos pelo grupo, desde
antes da tramitação do projeto, no Congresso. Além disso, por se tratar de um processo no
qual diferentes causas operam simultaneamente, reconhecemos a importância da combinação
causal de variáveis relativas tanto à dimensão dos movimentos sociais quanto à do Estado
para o resultado final do caso (Dowbor et al, 2016). Em termos do efeito da atuação do
Consórcio sobre a Lei Maria da Penha, essa atuação nos pareceu uma condição necessária
para que determinados pontos fossem incluídos no texto final da lei, o que nos leva a afirmar
que a ação desses atores produziu efeitos importantes sobre a produção dessa política pública
no Legislativo federal.
Por fim, gostaríamos de finalizar com algumas ponderações e questionamentos.
As organizações do Consórcio, em sua maioria, se moldaram para atuar na arena legislativa
desde sua fundação e suas integrantes tem um histórico ligado ao movimento, mas também ao
158
Estado, por meio da sua atuação no CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher) e do
trabalho na Constituinte. Elas mobilizaram recursos e repertórios para atuar nesse caso, o que
inclui desde seu conhecimento técnico sobre o tema da violência doméstica contra a mulher e
as regras do Legislativo, até contatos pessoais com atores políticos. Dessa forma, uma questão
que esse tema nos suscita é: que organizações, dentro do movimento, têm esses recursos
disponíveis para atuar na arena legislativa? Outra questão é relacionada com o tema da
violência doméstica contra a mulher. Em 2004 essa agenda chega ao Congresso, com grandes
chances de ser aprovada no Legislativo, vinte anos depois das primeiras manifestações do
movimento feminista. No entanto, essa é apenas uma das pautas do movimento, outras
questões relativas por exemplo, aos direitos reprodutivos, não parecem ter avançado da
mesma forma que a questão da violência doméstica. Isso nos leva a questionar - qual a real
permeabilidade do Estado aos temas da agenda feminista? Será que existiria uma
permeabilidade seletiva, por parte do Estado, aos aspectos mais “digeríveis” dos discursos e
agendas feministas (Alvarez, 1998 apud Santos, 2010)? Essas perguntas poderão ser objeto de
interesse de pesquisas futuras.
159
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169
ANEXOS
1. Relação das entrevistas
2. Roteiro de Entrevistas
3. Relatório de Trabalho do Convênio realizado entre Cfemea e SPM (Período: 10/12/2003 a
10/11/2004)
4. Anteprojeto elaborado pelo Consórcio (março/2004)
5. Ata da Reunião da CCJ/SD, de 24/05/2006, em que se debateu o PLC 37/2006
170
Anexo 1: Relação das Entrevistas
Nome
Entrevista 1 (representante
do Consórcio)
Entrevista 2 (representante
do Consórcio)
Entrevista 3 (representante
do Consórcio
Entrevista 4 (representante
do Consórcio)
Entrevista 5 (representante
do Consórcio)
Entrevista 6 (representante
do Legislativo Federal) –
Deputada Jandira Feghali
Entrevista 7 (representante
do Legislativo Federal –
assessor parlamentar)
Data
15/02/2016
Local
Rio de Janeiro – RJ
3/03/2016
Porto Alegre -RS
17/03/2016
Brasília – DF
17/03/2016
Brasília – DF
18/03/2016
Brasília – DF
3/05/2016
Roteiro enviado e respondido
por email
20/05/2016
Brasília – DF
171
Anexo 2: Roteiro de Entrevistas
I) Roteiro de Entrevista (Representante do Consórcio de ONGs)
1. Que organização você representava no Consórcio [de organizações que escreveu o
anteprojeto da lei Maria da Penha]?
2. Quando e como a sua organização se juntou ao consórcio?
3. Qual era o objetivo do consórcio?
4. Qual foi o seu envolvimento?
5. Por que essas organizações e não outras? O que você acha que explica que a
mobilização tenha se dado através de vocês e não por outras organizações e redes?
6. Como foi o processo de elaboração do anteprojeto de lei?
7. Qual era a interlocução do Consórcio com o movimento feminista, ao longo do
processo de escrita do anteprojeto e da tramitação?
8. Como a sua trajetória pessoal se encontra (ou não) com a trajetória das parlamentares
envolvidas na tramitação da lei? Você já as conhecia ou teve contato com algumas
delas antes desse processo? E com suas/seus assessores?
9. A mesma pergunta relacionada ao Executivo e a Secretaria Especial de Política para as
Mulheres. Você já conhecia ou teve contato anterior com a ministra da SPM? E com
suas/seus assessores?
Sobre a atuação no Grupo de Trabalho Interministerial e no Legislativo
10. Vocês apresentaram a “minuta de anteprojeto” que hoje conhecemos como Lei Maria
da Penha, na Câmara dos Deputados, no dia 11/11/2003 num Seminário de Violência
Doméstica [requerido pela deputada Iriny Lopes (PT-ES) e promovido pela Comissão
de Segurança Pública]. Como se deu essa oportunidade?
11. Por que se decidiu a apresentação do projeto pelo Executivo?
12. Vocês participaram do Grupo de Trabalho Interministerial, coordenado pela Secretaria
Especial de Política para as Mulheres, para discutir o projeto. Como foi essa
participação?
13. Como se deu o processo de escolha das relatoras do projeto, nas Comissões, ao longo
da tramitação? Como era a relação com as relatoras?
172
14. Como foi a participação de vocês na CSSF/CD?
15. Como você avalia o processo de tramitação da lei no Legislativo federal? Houveram
resistências, conflitos partidários?
16. Que deputados (as) eram contra o projeto?
17. Que fatores, você considera, que explicam a aprovação da Lei Maria da Penha?
II) Roteiro de Entrevista (Representante do Legislativo Federal - Deputada)
1. Como você relaciona a sua trajetória parlamentar com o tema do combate à violência
contra a mulher de que trata o PL 4.559/04, que hoje conhecemos como Lei Maria da
Penha?
2. Por que você foi escolhida para ser uma das relatoras desse projeto de lei?
3. Em termos de políticas públicas, voltadas para as mulheres, como você avalia os
governos federais que tivemos nos últimos anos (até a aprovação da Lei Maria da
Penha)?
4. Como você avalia a contribuição do Consórcio de ONGs (e suas representantes), ao
longo de todo o processo da Lei Maria da Penha?
5. Como você avalia a relação de proximidade da sociedade civil organizada
(movimentos sociais e ONGs) com o legislativo?
6. Na Comissão de Seguridade Social, você constitui um grupo de apoio e assessoria que
revisou o projeto que veio do Executivo e, ao final, apresentou um substitutivo.
Perguntas: a) Quem foram as pessoas que participaram desse grupo de apoio? b)
Como foi a participação desse grupo?
7. As representantes do Consórcio estiveram presentes nas audiências públicas realizadas
nos estados? Se sim, em que medida se deu essa participação?
8. Que deputados (as) e/ou senadores (as) eram contrários ao projeto? Como eles agiam
para dificultar a tramitação?
9. Quem eram seus aliados/as, nesse processo, dentro do legislativo?
10. Como você avalia o processo de tramitação da Lei Maria da Penha, em termos do
tempo de duração, resistências e conflitos partidários?
11. Por que você acha que em outros momentos não foi possível aprovar leis sobre essa
temática, a despeito das tentativas?
12. Que fatores você considera que explicam a aprovação da Lei Maria da Penha?
173
III) Roteiro de Entrevista (Representante do Legislativo Federal – Assessor
Parlamentar)
1. Você pode falar um pouco da sua trajetória e de como foi seu envolvimento no
processo de construção da Lei Maria da Penha.
2. Como foi o processo de escolha das relatoras em cada Comissão?
3. Como era a relação das relatoras com as representantes do Consórcio?
4. No geral, como se dá a contribuição dos movimentos sociais no processo legislativo?
Em que fases do processo eles costumam contribuir e de que forma?
5. Como você avalia a relação de proximidade da sociedade civil organizada
(movimentos sociais e ONGs) com o legislativo?
6. Como você avalia a atuação da bancada feminina no caso da Lei Maria da Penha?
7. Como você avalia a contribuição do Consórcio de ONGs (e suas representantes) ao
longo de todo o processo da Lei Maria da Penha?
8. Que tipo de insumos o Consórcio trouxe as parlamentares e ao debate, ao longo da
tramitação da lei, na(s) Comissão(ões) que você acompanhava?
9. Algumas comissões são mais permeáveis que outras a participações de movimentos?
10. Como você avalia as mudanças realizadas no projeto, ao longo da sua tramitação?
11. Como se deu a atuação do Executivo no decorrer no processo legislativo?
12. Como você avalia o processo de tramitação da Lei Maria da Penha, em termos do
tempo de duração, resistências e conflitos partidários?
13. Quem foram os principais aliados/as, nesse processo, dentro do legislativo?
14. Que deputados (as) e/ou senadores (as) eram contrários ao projeto? Como eles agiam
para dificultar a tramitação?
15. Como você avalia o voto em separado do deputado Antonio Biscaia, na CCJC/CD?
16. Por que você acha que em outros momentos não foi possível aprovar leis sobre essa
temática, a despeito das tentativas?
17. Como foi a discussão do projeto no Plenário da Câmara?
18. Como você avalia os efeitos da relação entre Executivo-Legislativo, em relação a
tramitação e aprovação da lei na Câmara?
19. Que peso você atribui as relações Executivo-Legislativo na aprovação dessa lei?
20. Que fatores, você considera, que explicam a aprovação da Lei Maria da Penha?
174
Anexo 3: Relatório de Trabalho do Convênio realizado entre Cfemea e SPM
175
176
177
178
179
180
181
182
183
184
185
186
Anexo 4: Anteprojeto elaborado pelo Consórcio (março/2004)
VERSÃO ENTREGUE PELAS ONGS DE MULHERES À SECRETARIA NACIONAL
DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES – 03-04-04
ANTEPROJETO DE LEI SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
E FAMILIAR CONTRA A MULHER
APRESENTAÇÃO
As Organizações Não Governamentais ADVOCACI, AGENDE, CEPIA, CFEMEA,
IPÊ/CLADEM e THEMIS, juntamente com especialistas, formaram um consórcio que vem
trabalhando na construção de uma lei nacional que contemple todas as especificidades da
violência doméstica e familiar contra a mulher.
O Consórcio iniciou seus trabalhos há dois anos e, neste espaço de tempo, realizou um
importante processo de discussão e estudos voltados para as peculiaridades do contexto
brasileiro no que se refere à violência de gênero. Esta iniciativa nasceu da indignação com a
pouca visibilidade que o problema possui no país e com a resposta inadequada que o sistema
jurídico vigente vem dando à questão.
A elaboração deste anteprojeto de lei para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e
familiar contra a mulher busca responder à urgente necessidade de apresentar uma resposta a
esse grave problema social e ao profundo desejo de alcançarmos uma sociedade igualitária,
justa e sem violência. Além disso, busca uma concordância com medidas expressas em
convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Belém do Pará, 1994), a
Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher
(Convenção da Mulher, de1979), a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher
(Beijing, 1995) e vários outros instrumentos de Direitos Humanos, patrocinados pela
Organização das Nações Unidas.
187
Também não pode ser deixado de ser citado o trabalho realizado pela Organização
Panamericana de Saúde em agosto de 2003, onde são apresentados os componentes
fundamentais para leis e políticas sobre violência de gênero, em particular sobre a violência
doméstica/intrafamiliar.
O processo desencadeado por este consórcio de entidades e de feministas, aproveitou as
comemorações do Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher de 2003, e
apresentou um esboço da minuta do Anteprojeto, ao Congresso Nacional e à Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres.
Atualmente, contando com os auspícios da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres –
SPM, o Consórcio chega a um consenso mínimo concluindo a etapa de elaboração da minuta
do Anteprojeto e vê no 8 de março, marco temporal das lutas das mulheres pela sua cidadania,
a oportunidade de apresenta-lo à SPM, por entender que o Poder Executivo possui a
competência para monitorar sua trajetória final até o Congresso Nacional, onde deverá se
transformar em um Projeto de Lei.
O Consórcio e as feministas integrantes deste bloco interessado na efetivação de uma
legislação que realmente atenda as necessidades das mulheres que sofrem violência doméstica
e familiar sabe que o trabalho está apenas em seu início. Reconhece também que, questões
serão suscitadas, em especial no meio jurídico ou acadêmico, entretanto, está certo de que este
trabalho propõe inovações legislativas que seguem a linha de um direito moderno, inclusive
ao articular os juízos cíveis e criminais para dar conta da complexidade das questões sociais,
em especial da violência doméstica.
Todo este trabalho só será realmente factível se contar também com a colaboração das/dos
parlamentares, em especial da Bancada Feminina do Congresso Nacional, do movimento de
mulheres organizadas e da sociedade brasileira, por ocasião do amplo debate que se propõe,
como parte do projeto estabelecido.
GRUPO DE TRABALHO – Entidades e Representantes
ADVOCACI - Rosana Alcântara
AGENDE – Elizabeth Garcez
188
CEPIA – Leila Linhares Barsted
CFEMEA – Iáris Ramalho Cortês, Giane Boselli e Myllena Matos
IPÊ/CLADEM – Silvia Pimentel, Juliana Belloque e Valéria Pandjiarjian
THEMIS – Carmen Campos e Rubia Abs da Cruz
Outras demais Especialistas: Ela Wiecko, Ester Kosoviski, Leilah Borges da Costa, Rosane
Reis Lavigne, Simone Diniz e Wania Pasinato Izumino. Colaborou também na finalização
desta proposta os advogados Adilson Barbosa e Salo de Carvalho.
Brasília, 01 de março de 2004.
ANTEPROJETO DE LEI
Cria mecanismos para coibir a violência contra a mulher
no
âmbito
das
implementando
relações
a
domésticas
Convenção
e
familiares,
Interamericana
para
prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e
regulamenta
parcialmente o § 8º do artigo
226 da Constituição Federal.
TÍTULO I
PARTE GERAL
CAPÍTULO I
Das Disposições Preliminares
Art. 1º. Esta lei estabelece a Política Nacional de Enfrentamento à Violência
Doméstica e Familiar contra a mulher, criando mecanismos para a sua prevenção, punição e
erradicação, bem como mecanismos de assistência às vítimas.
CAPÍTULO II
Dos Princípios e Diretrizes
189
Art. 2°. A Política Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher tem como objetivo garantir os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, assegurando-lhe todas as oportunidades e facilidades para preservação de sua
segurança, dignidade e liberdade, fundamentado nos seguintes princípios e diretrizes:
I.
Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente
pelo homem e pela mulher;
II.
a violência doméstica e familiar contra a mulher é uma violação de direitos
humanos e limita o exercício de direitos fundamentais, não podendo ser
considerado crime de menor potencial ofensivo;
III.
a violência doméstica e familiar contra a mulher é uma violência de gênero,
ocorrendo na família e nos relacionamentos interpessoais, que permeia todos os
setores da sociedade, independente de classe, raça ou grupo étnico, renda,
cultura, nível educacional, idade ou religião e afeta negativamente suas próprias
bases;
IV. o exercício pleno dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais das
mulheres depende de uma vida sem violência;
V.
o estabelecimento de procedimentos justos e eficazes, Juízo oportuno,
econômico e célere;
VI. o acesso à justiça com assistência ampla, integral e gratuita, incluindo a
assistência psicológica e social;
VII. o atendimento prioritário nos serviços públicos de saúde, justiça e segurança e de
forma interdisciplinar;
VIII. a destinação obrigatória e suficiente de recursos públicos nas áreas relacionadas
com a prevenção, punição e erradicação da violência doméstica e familiar contra
a mulher;
IX. garantia de acesso gratuito e imediato aos serviços de saúde, bem como a
medicamentos que minimizem os efeitos da violência sofrida, sobretudo a
violência sexual;
X.
garantia de recebimento imediato de proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias;
XI. proteção especial às vítimas, familiares e testemunhas, na forma da lei.
CAPÍTULO III
Das Definições
190
Art. 3°. Para efeitos dessa Lei entende-se como violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer conduta:
I – baseada na discriminação de gênero que cause morte, lesão, constrangimento,
limitação da autodeterminação, sofrimento físico, sexual, moral, psicológico, limitação
social, política ou econômica, bem como dano e perda patrimonial;
II – ocorrida no âmbito da unidade doméstica ou da família, ou em qualquer outra
relação interpessoal em que o agressor conviva, tenha convivido ou não no mesmo
domicílio ou residência da vítima.
Art. 4º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher:
I.
FÍSICA: qualquer conduta que ofenda a integridade física da mulher;
II.
PSICOLÓGICA: qualquer conduta que vise degradar ou controlar as ações,
comportamentos, crenças e decisões da mulher, mediante ameaça direta ou
indireta, humilhação, manipulação, isolamento ou outro meio que cause prejuízo
à saúde psicológica, à autodeterminação e ao desenvolvimento pessoal;
III.
SEXUAL: qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, manter ou
participar de relação sexual com uso da força, chantagem, suborno, manipulação,
ameaça direta ou indireta ou qualquer outro meio que anule ou limite a sua
vontade pessoal;
IV. PATRIMONIAL: qualquer conduta que configure perda, subtração, destruição
parcial ou total ou retenção de objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores, direitos ou recursos econômicos da mulher e os
destinados a satisfazer suas necessidades;
V.
MORAL: qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria à honra
ou reputação da mulher.
CAPÍTULO IV
Dos Direitos
191
Art.5º - Toda mulher idosa, adulta, adolescente e menina tem direito a viver
livre de violência, nos espaços público e privado.
Art. 6º - Toda mulher tem direito ao reconhecimento, fruição, exercício e
proteção de todos os direitos humanos e liberdades consagradas nos instrumentos legais
nacionais e nos internacionais incorporados ao direito interno, que abrangem, entre
outros:
I.
direito à igual proteção perante a lei e da lei, de forma a viver livre de qualquer
discriminação;
II.
direito a que se respeite sua vida;
III.
direito a que se respeite sua integridade física, psicológica, sexual e moral;
IV. direito à liberdade e à segurança pessoal;
V.
direito a não ser submetida à tortura;
VI. direito a que se respeite a dignidade inerente à sua pessoa e a que se proteja sua
família;
VII. direito a procedimento célere perante autoridade competente que garanta
proteção contra atos que violem seus direitos.
CAPÍTULO V
Da Prevenção
Disposições Gerais
Art. 7º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder
Público, em especial, prevenir a ocorrência de ameaça ou lesão que violem os direitos das
mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares.
Art. 8º As obrigações previstas nesta Lei não excluem outras decorrentes dos
princípios por ela adotados.
192
Art. 9º A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade
da pessoa física ou jurídica, nos termos desta Lei.
Seção I
Da Política de Prevenção
Art. 10º É política permanente do Estado, a prevenção, punição e erradicação de
toda forma de violência doméstica e familiar contra a mulher, devendo desenvolver, para este
propósito, as seguintes ações e programas:
I.
Criar, implementar e monitorar, no campo das políticas públicas do Estado, um
Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, que comprometa e integre os diversos âmbitos do Poder Público –
Executivo, Legislativo e Judiciário – em níveis federal, estadual e municipal;
II.
Implementar redes de serviços interinstitucionais que articulem a atuação
governamental e não-governamental em áreas como segurança pública, justiça,
saúde, educação, assistência social, habitação, entre outras, com o fim de garantir
atenção integral, multidisciplinar e intersetorial às mulheres vítimas de violência
doméstica e familiar;
III.
Promover programas formais e não formais em todos os níveis educacionais, que
contenham o ensino de valores éticos, do irrestrito respeito à dignidade da pessoa
humana, dos direitos das mulheres, das adolescentes e das meninas em
conformidade com a Constituição Federal, as legislações específicas e os
Instrumentos Internacionais incorporados pelo Brasil, a fim de erradicar
preconceitos e outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou
superioridade de qualquer dos sexos ou nos papéis estereotipados para o homem
e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar;
IV. Incluir nos currículos escolares, em todos os níveis, conteúdos sobre os direitos
humanos, a equidade de gênero e a violência doméstica e familiar;
V.
Incentivar estudos, pesquisas e coleta de estatísticas e outras informações
relevantes concernentes às causas, conseqüências e freqüência da violência
doméstica e familiar contra a mulher;
VI. Manter em número suficiente Delegacias Especializadas no Atendimento às
Mulheres, Casas Abrigo e instituições de atendimento psicossocial e jurídico
para acolhimento de vítimas de violência doméstica e familiar e melhorar as
193
condições de funcionamento daquelas unidades já existentes, garantindo os
recursos materiais e humanos necessários;
VII. Promover o atendimento psicosocial para homens e mulheres envolvidos em
situação de violência doméstica e familiar;
VIII. Prover capacitação permanente de membros do Poder Judiciário, do Ministério
Público e das Defensorias Públicas, bem como dos/as policiais e profissionais da
saúde, educação e assistência social, para o enfrentamento da violência
doméstica e familiar contra a mulher;
IX. Empreender campanhas de educação e de prevenção da violência doméstica e
familiar contra a mulher para difusão da presente lei e de todos os instrumentos
de proteção aos direitos humanos;
X.
Celebrar convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos, entre a
União, os Estados, o Distrito Federal e Municípios para promoção de parceria
entre si ou com entidades não governamentais, objetivando a realização de
programas que visem erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher.
XI. Organizar instrumentos e meios de verificação unificados nacionalmente, para
sistematização de dados sobre violência doméstica e familiar contra a mulher.
§ 1º. As autoridades policiais e judiciais deverão elaborar e divulgar amplamente,
Relatório Anual de Violência Doméstica, para fins de estudos estatísticos e planejamento de
políticas públicas.
§ 2º. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres deve acompanhar o
Relatório Anual de Monitoramento e Avaliação da aplicação da presente lei.
TÍTULO II
PARTE ESPECIAL
CAPÍTULO I
Das Medidas de Proteção e Prevenção
Seção I
Disposições Gerais
194
Art. 11. As medidas de proteção e prevenção são aplicáveis sempre que os direitos
reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I. por ação ou omissão de pessoas físicas ou entidades da sociedade civil ou do
Estado;
II. por ação, omissão ou abuso nos termos do artigo 3º desta Lei.
Art. 12. As medidas previstas neste Capítulo poderão ser aplicadas isoladas ou
cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia.
Art. 13. As medidas de proteção e prevenção poderão ser aplicadas de ofício pelo
Juiz, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado.
Art. 14. O pedido de aplicação de quaisquer das medidas de proteção ou
prevenção pode ser incidental, em ações de natureza civil ou penal, ou consistir em pedido
principal de ação autônoma, com natureza satisfativa.
Art. 15. Na aplicação e execução das medidas de proteção, o Estado considerará
especialmente a situação de vulnerabilidade a que a vítima possa estar submetida em razão,
entre outras, de sua condição étnico-racial ou sócio-econômica, de refugiadas, deslocadas ou
migrantes, de seu estado de gravidez, bem como de sua idade ou orientação sexual.
Art. 16. Além das medidas de proteção e prevenção descritas nesta lei, ouvidos os
profissionais especializados, o Juiz poderá tomar outras medidas necessárias à proteção da
vítima e de seus familiares.
Seção II
Das medidas de prevenção
Art. 17. São medidas de prevenção aplicáveis à pessoa envolvida em situação de
violência doméstica e familiar, desde que consinta:
I.
Encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
II.
Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento
psicológico ou psiquiátrico;
III.
Encaminhamento a grupos de apoio;
195
IV. Requisição para tratamento de saúde em regime ambulatorial, hospitalar ou
domiciliar.
Seção III
Das Medidas de Proteção à Vítima
Art. 18. Verificada qualquer das formas de violência previstas nesta Lei, o juiz da
Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher poderá determinar,
liminarmente, por prazo determinado, e sem prejuízo do disposto na legislação civil, penal e
processual em vigor, as seguintes medidas contra a pessoa autora da agressão:
I. afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima;
II. proibição de portar armas;
III. abstenção da prática de determinadas condutas, dentre as quais:
a) importunar a vítima aproximando-se dela ou utilizar qualquer meio de
comunicação, incluindo contato telefônico, correspondência ou correio eletrônico;
b) perseguir, intimidar, ou ameaçar a vítima e seus familiares;
IV. proibição de freqüentar determinados lugares que o juiz entenda conveniente para
preservar a segurança da vítima.
V. restrição, sujeita à regulamentação posterior, de visitas aos dependentes menores.
Parágrafo Único - O juiz poderá requisitar a qualquer momento auxílio policial para
cumprimento da medida estabelecida.
Art.19. Caberá ao juiz determinar liminarmente as seguintes medidas de
proteção de bens:
I. Reintegração de domicílio em favor da vítima;
II. Restituição de bens;
III. Restituição de gastos e reparação dos danos ocasionados à vítima;
IV. Proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e
aluguel de propriedade em comum.
196
Parágrafo Único - Em caso de descumprimento das medidas de proteção
previstas nos artigos 18 e 19 o infrator estará sujeito às penas dos artigos 330 e 359 do
Código Penal.
CAPÍTULO II
Do Atendimento
Das Disposições Gerais
Art. 20. A assistência social às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar será
prestada, de forma articulada, emergencial ou não, conforme os princípios e diretrizes
previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Plano Nacional de Direitos Humanos, no
Sistema Único de Saúde e demais normas pertinentes.
Art. 21. No atendimento das vítimas de violência doméstica e familiar, sem
prejuízo de outras garantias, as autoridades e servidores públicos deverão, sob pena de
responsabilidade, garantir o cumprimento do disposto no art. 14 desta lei.
Art. 22. A mulher vítima de violência doméstica e familiar será atendida,
preferencialmente, por equipe multidisciplinar capacitada para lhe proporcionar atendimento
integral.
Secção I
Do atendimento pela autoridade policial
Art. 23. Sem prejuízo da prisão em flagrante, a autoridade policial, ao tomar
conhecimento de qualquer crime contra a mulher decorrente da relação doméstica ou familiar,
lavrará Termo Circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juízo Único ou ao Juiz da
Vara Especializada de Violência Doméstica Contra a Mulher, com o nome do autor do fato e
da vítima, providenciando-se requisições dos exames periciais necessários.
§ 1º - Havendo necessidade de verificações mais aprofundadas a autoridade
policial determinará a instauração de inquérito.
197
§ 2º - O atendimento médico-hospitalar da vítima, quando necessário, terá prioridade
sobre os demais encaminhamentos.
Art. 24. O Termo Circunstanciado é um instrumento lavrado pela autoridade
policial e deverá obrigatoriamente conter o registro de todos os fatos ocorridos, com a
descrição detalhada das violações dispostas nesta Lei.
Parágrafo único. O Termo Circunstanciado deverá ser registrado mesmo se a vítima
não possuir endereço e dados completos da pessoa autora da agressão, devendo a autoridade
policial diligenciar para a obtenção dos mesmos.
Art. 25. A polícia deverá se deslocar imediatamente até o local de ocorrência da
violência quando a notícia indicar que:
I. a violência é iminente ou está em andamento.
II. a violência tenha acabado de ocorrer.
III. as medidas de proteção aplicadas estão na iminência de serem violadas.
Art. 26.
A autoridade policial deverá representar à autoridade judicial sobre as
medidas de proteção à vítima previstas nesta Lei.
Art. 27. A polícia deverá atuar imediatamente mesmo quando o noticiante não for
a vítima, devendo ainda:
I.
Informar a vítima sobre a importância de se preservar as provas e evidências do
fato;
II.
providenciar transporte para a vítima até o hospital ou o posto médico mais
próximo quando necessário;
III.
providenciar transporte para a vítima e seus filhos em risco de vida ou
dependentes para local seguro ou abrigo, se for o caso;
IV. assegurar a retirada dos pertences pessoais da vítima;
V.
comunicar à vítima o horário e local de atendimento pela Vara Especializada,
caso não seja possível ou recomendável o atendimento imediato da vítima;
VI. informar a vítima sobre os direitos que esta lei lhe confere e sobre os serviços
públicos e privados disponíveis;
198
VII. providenciar, quando for o caso, segurança para a vítima de violência doméstica
ou familiar.
Art. 28. É vedado proceder a intimação ou a notificação da pessoa autora da agressão
por intermédio da vítima.
CAPÍTULO III
Do Processo e Julgamento
Seção I
Da Competência e do Procedimento
Art. 29. O processo, julgamento e execução das causas civis e criminais em que
esteja caracterizada a violência doméstica ou familiar contra a mulher descrita no art. 3º desta
lei será de competência exclusiva do Juízo Único.
Parágrafo Único. Os Estados e o Distrito Federal poderão criar Varas
Especializadas de Violência Doméstica Contra a Mulher, com competência civil e penal.
Art. 30. Nos crimes dolosos contra a vida, após a decisão de pronúncia proferida pelo
Juízo Único ou pelo Juiz da Vara Especializada de Violência Doméstica, o processo será
encaminhado ao Tribunal do Júri.
Art. 31. O Juízo Único ou Juiz da Vara Especializada de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, recebendo a petição, o auto de prisão em flagrante, o termo
circunstanciado ou
a denúncia imputando prática de violência doméstica e familiar,
designará, de imediato, audiência preliminar para avaliar o caso e adotar as medidas de
proteção previstas nesta lei que se mostrarem adequadas ao caso, bem como determinará a
realização dos exames periciais necessários.
Parágrafo único – Em caso de urgência o juiz poderá adotar as referidas medidas
independentemente da audiência preliminar.
Seção II
Do Processo Civil
199
Art. 32. Ressalvado o procedimento previsto nesta Lei, aplica-se nas causas
pertinentes, o Código de Processo Civil e legislação complementar.
Seção III
Do Processo Penal
Art. 33. Aos crimes contra a mulher praticados em situação de violência
doméstica ou familiar, na forma prevista no art. 3º desta Lei, não se aplica a Lei n.
9.099/1995.
Parágrafo único: A ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e
lesões corporais culposas dependem de representação da vítima ou de seu representante legal.
Seção IV
Do Ministério Público
Art. 34. Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, compete ao
Ministério Público:
I.
requisitar força policial, bem como a colaboração dos serviços públicos de
saúde, educacionais e de assistência social, para o desempenho de suas
atribuições.
II.
exercer a fiscalização dos estabelecimentos públicos
e particulares de
atendimento à mulher de que trata esta Lei, adotando de pronto as medidas
administrativas ou judiciais necessárias à remoção de irregularidades porventura
verificadas.
Art. 35. Nos processos e procedimentos em que não for parte, será obrigatória,
sob pena de nulidade, a atuação do Ministério Público na defesa dos direitos e interesses de
que trata esta Lei.
§ 1º. Nas hipóteses descritas no caput deste artigo, o Ministério Público terá vista
dos autos depois das partes, podendo juntar documentos, requerer diligências e produção de
outras provas, bem como de interpor os recursos cabíveis.
§ 2º. A intimação do Ministério Público será sempre pessoal.
200
Seção IV
Da Defensoria Pública
Art. 36. É garantido a toda mulher vítima de violência doméstica e familiar o
acesso aos serviços da Defensoria Pública, mediante um atendimento específico e
humanizado nas Varas Especializadas e Delegacias de Polícia.
Parágrafo único – Será prestada assistência judiciária gratuita aos que dela
necessitarem, através de defensor público ou advogado encarregado.
Das Disposições Finais
Art. 37. Os processos em curso relacionados à violência doméstica e familiar contra as
mulheres devem ser imediatamente encaminhados à Vara Especializada de Violência
Doméstica contra as Mulheres, cessando a competência da Vara de origem.
Art. 38 – Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICATIVA
Apenas recentemente, a violência de gênero no âmbito doméstico deixou de ser invisível aos
olhos do mundo. As relações e o espaço intrafamiliares foram historicamente interpretados
como restritos e privados, o que proporcionou a complacência e a impunidade para com a
violência praticada nesse âmbito. Criou-se um senso-comum, apoiado na ideia de que “em
briga entre marido e mulher não se mete a colher”, acreditando-se que aquilo que ocorre entre
familiares não é de responsabilidade de terceiros e não ameaça a ordem social. Nesse sentido,
foi necessário desencadear-se um verdadeiro processo de tomada de consciência social sobre
a gravidade da violência de gênero e sobre o seu grande obstáculo para a convivência
democrática entre homens e mulheres para que providências fossem tomadas. Esse processo
de construção e institucionalização desse tipo de violência como um problema social teve
início, no final da década de 1970, com a mobilização do movimento feminista, um dos
principais instrumentos de luta nessa questão.
201
O movimento de mulheres brasileiras vem investindo em ações contra a violência doméstica e
em campanhas relacionadas à inadequação dos procedimentos policiais e jurídicos há mais de
20 anos. Na década de 1980, no bojo do processo de redemocratização do país, foram criados
os Conselhos Estaduais e Municipais da Mulher, culminando com a institucionalização do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher em 1985. Durante toda esta década o CNDM
levou a discussão da violência às altas esferas do poder, uma vez que seu combate foi
identificado como luta prioritária. Nas discussões da Assembléia Nacional Constituinte,
responsável pela elaboração da Constituição de 1988, o CNDN, junto com o movimento de
mulheres, trabalhou de forma árdua, conquistando a garantia constitucional de igualdade entre
os sexos e a inclusão do parágrafo 8º no artigo 226, dispositivo em que o Estado se
compromete a assegurar a assistência à família e a criar mecanismos para coibir a violência no
âmbito de suas relações. Em 1985 também foram criadas as delegacias especializadas no
atendimento às vítimas de violência, uma importante ação de política pública de combate e
sensibilização em relação ao problema. Em 1992, a Câmara do Deputados constituiu uma
Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a questão da violência contra a
mulher, Comissão esta que contou com o incentivo e apoio do CNDM e do movimento de
mulheres. O relatório produzido por esta Comissão constatou a grave situação da violência no
Brasil e apresentou proposta de projeto de lei para coibir este tipo de violência.
Mesmo com estes avanços, a violência doméstica continua recorrente e expressiva e o
trabalho dos organismos públicos, incluindo as áreas policial, jurídica e de saúde, continuam
inadequados. Na década de 1980 o IBGE realizou uma pesquisa nacional sobre justiça e
vitimização, englobando os índices da violência contra a mulher. Os dados indicavam as
mulheres como as maiores vítimas de violência cometida em casa. Das agressões que as
mulheres disseram ter sofrido, 63% ocorreram no lar.
Em 1998, o Banco Interamericano de Desenvolvimento divulgou que o risco de uma mulher
ser agredida em sua própria casa pelo pai de seus filhos, ex-marido ou atual companheiro é
nove vezes maior que sofrer algum ataque violento na rua ou no local de trabalho. Estatísticas
mais recentes, divulgadas pela Fundação Perseu Abramo, mostram que a responsabilidade do
marido ou parceiro como principal agressor varia entre 53% e 70% das ocorrências de
violência contra a mulher. Outros agressores comuns são o ex-marido, o ex-companheiro e o
ex-namorado que, somados ao marido ou parceiro, constituem sólida maioria em todos os
casos. De acordo com as projeções nacionais da pesquisa, constatou-se que 2,1 milhões de
mulheres são espancadas por ano no país, totalizando um espancamento a cada 15 segundos.
202
Grandes preocupações em relação aos mecanismos policiais e jurídicos permanecem,
principalmente, pelo fato da violência doméstica e familiar contra as mulheres estar inserida
em um contexto peculiar, em que o ato violento é, na maioria das vezes, mais uma expressão
de poder do que de força física. Trata-se de um tipo específico de agressão que,
independentemente de raça ou classe social, está intrinsecamente relacionada com a
desigualdade histórico-cultural instituída entre homens e mulheres. A violência entre os sexos
no contexto familiar traz a característica da habitualidade e da relação hierarquizada,
constituindo-se numa escalada de alto potencial lesivo à integridade física e psicológica das
mulheres. Diferentemente da violência urbana, a violência doméstica e familiar incide sempre
sobre as mesmas vítimas, de forma rotinizada. Essas características são extremamente
relevantes, com conseqüências específicas, que tornam este tipo de violência diferenciada.
Com a implantação dos Juizados Especiais Criminais, a partir da Lei 9.099 de 1995, a
preocupação do movimento de mulheres e de toda a sociedade cresceu consideravelmente. Ao
seguir as tendências contemporâneas de desburocratização da justiça penal buscou-se a
implementação de um processo criminal com mecanismos rápidos e econômicos, de modo a
suplantar a morosidade no julgamento de crimes considerados menos graves e desafogar a
justiça criminal, que passou a julgar apenas os delitos considerados mais graves. No entanto,
quando o legislador passa a classificar alguns crimes como “hediondos” e outros como de
“menor potencial ofensivo”, acaba aplicando um juízo de valor inadequado a determinados
conflitos sociais.
A Lei 9.099/95 expressou a clara ideia de que os crimes com pena máxima igual ou inferior a
um ano possuem uma perspectiva concreta de lesão ou ofensa menos significativa. No
entanto, dentre esses crimes, estão a lesão corporal leve, a ameaça e a injúria, os delitos mais
cometidos nas infrações de ordem doméstica. Tais conflitos ficaram, então, incluídos na
categoria de “menor potencial ofensivo”, adquirindo um status de lesão menos significativa,
mesmo possuindo uma escalada perigosa, passível de atingir o homicídio. Tal caracterização
nos crimes de violência doméstica contraria o artigo 61 do Código Penal, que, dispondo de
agravantes genéricas, definem a violência praticada no âmbito de relações de parentesco, de
coabitação e de intimidade como mais grave que aquela praticada por estranho. Há que se
considerar a maior gravidade do crime quando o agente priva da intimidade da vítima e valese de demonstrações poder que ainda marcam as relações entre os sexos em nossa sociedade,
diminuindo ou anulando a capacidade de reação da vítima.
203
Esse tipo de categorização dos conflitos baseado unicamente na pena descartou a
possibilidade de uma análise crítica voltada à origem e ao contexto em que o crime foi
cometido, tarefa ainda não assimilada pela justiça criminal brasileira. Ao fixar um tratamento
penal linear e homogêneo a situações conflituosas de diferentes naturezas e intensidades a
justiça acabou banalizando a violência doméstica contra a mulher, principalmente por aplicar
sanções e medidas inócuas a este conflito, situadas no âmbito do pagamento de cestas básicas
e da suspensão condicional do processo.
Com base neste atual cenário brasileiro e com fulcro nas recomendações ao relatório
brasileiro, do Comitê da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher – Convenção da Mulher, que em sua 29ª Sessão realizada em
2003, faz referência expressa à Recomendação nº 19 daquele Comitê, que trata da violência
contra a mulher, requereu ao Brasil a elaboração de uma legislação sobre violência doméstica,
nos seguintes termos:
112. Sem deixar de reconhecer os esforços realizados para fazer frente à violência
contra a mulher, entre eles a implantação de Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher (DEAMS) e as Casas Abrigo para mulheres, o Comitê expressa
preocupação pela persistente violência contra mulheres e meninas, a violência
doméstica e a violência sexual, a indulgência com que são punidos os autores desses
atos de violência e a ausência de uma lei específica sobre violência doméstica. O
Comitê também expressa preocupação pelo fato de que a violência contra a mulher,
incluídas a violência doméstica e a violência sexual, não seja abordada em grau
suficiente devido à falta de informações e de dados.
113. O Comitê recomenda ao Estado-Parte adotar todas as medidas necessárias para
combater a violência contra a mulher de conformidade com a Recomendação Geral
N°19 do Comitê de prevenir a violência, punir os agressores e prestar serviços às
vítimas. O Comitê recomenda que o Estado-Parte adote sem demora uma lei sobre a
violência doméstica e tome medidas práticas para acompanhar de perto e monitorar a
aplicação de uma lei desse tipo e avaliar sua eficácia. O Comitê solicita ao EstadoParte que proporcione informação gerais e dados sobre a violência contra a mulher
em seu próximo relatório periódico.
Outro marco considerável é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, que torna inadiável o
204
enfrentamento da questão como uma medida de proteção, acima de tudo, aos direitos
humanos. Ao ratificar, em 1994, a Convenção de Belém do Pará, o Brasil se comprometeu a:
Incorporar na sua legislação interna, normas penais, civis, administrativas e de outra
natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a
mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis
(art. 7, alínea c);
Adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir,
intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou
ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade (art. 7, alínea
d);
Estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada à
violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso
a tais processos (art. 7, alínea f).
Cientes de que este problema social não deve ser combatido por meio da intensificação de
punibilidade dos perpetradores da violência, mas sim pelo combate à impunidade e pela
introdução na legislação de mecanismos de proteção para as mulheres, que possam provê-las
de efetivas alternativas cíveis e criminais para se romper o ciclo da violência, é que este
Consórcio Feminista apresenta a presente minuta de anteprojeto de lei federal.
Trata-se de uma proposta que busca afastar a aplicação do procedimento disciplinado pela Lei
9.099/1995, onde se prevê, dentre outros mecanismos legais impróprios para coibir a
violência doméstica contra as mulheres, a transação penal como causa extintiva da
punibilidade, o que tem garantido a mais ampla impunidade aos agressores.
Mantém-se a exigência de representação da vítima nos crimes de lesão corporal leve e
culposa, bem como se determina a realização de audiência preliminar voltada, principalmente,
à adoção judicial das Medidas de Proteção à Vítima que se façam adequadas no caso concreto
para que, ao longo do processo penal, a mesma não sofra novas agressões e limitações ao
exercício de seus direitos fundamentais.
É elencado rol não exaustivo de Medidas de Proteção às vítimas da violência, cuja
aplicabilidade poderá ser determinada liminarmente pela autoridade judiciária competente,
seja em processo de natureza cível ou criminal.
205
Visando garantir o pleno acesso à justiça das mulheres vítimas de violência doméstica, que
normalmente deixam de procurar a tutela jurisdicional em razão da ineficiência da mesma e
da inadequação das medidas jurisdicionais, resultado de decisões que não levam em
consideração as especificidades da violência praticada no âmbito doméstico, o anteprojeto de
lei propõe a criação de Juízo Único e Varas Especializadas de Violência Doméstica e Familiar
contra as Mulheres nos Estados e no Distrito Federal. Trata-se de medida absolutamente
indispensável à eficácia social da lei, tendo em vista a complexidade da questão e a
necessidade de reunir em um mesmo juízo matéria de ordem civil e penal. Só a especialização
de juízes e dos demais funcionários da justiça, que deverão ser adequadamente capacitados,
proporcionará o eficaz tratamento das vítimas pelo sistema de justiça.
O anteprojeto inova por sua amplitude, adotando uma Política de Prevenção dirigida ao Poder
Público e à sociedade, com políticas capazes de promover mudanças culturais para a
superação da desigualdade entre homens e mulheres.
A proposta legislativa visa a alteração significativa dos valores sociais de naturalização do
conflito de natureza doméstica, presentes em toda a sociedade e, notadamente, entre os
operadores do Direito. Por isso é que o anteprojeto apresenta conceitos em seu corpo e faz-se,
por vezes, um pouco repetitivo, pretendendo ser um instrumento de câmbio político, jurídico e
cultural.
O fio condutor da interpretação e aplicação de todos os preceitos desta lei é a conceituação de
violência doméstica e familiar contra a mulher de seu artigo 3º.
Por fim, reconhecendo que a presente minuta é um documento preliminar e que ainda será
aperfeiçoada nas discussões legislativas, estamos divulgando-a também junto ao movimento
de mulheres e a toda sociedade civil, que ainda não tiveram pleno conhecimento da mesma,
para que também participem das discussões e encaminhem sugestões. Nosso desejo é de que
este trabalho se transforme em um instrumento democrático, contendo a participação de toda
a sociedade civil.
Brasília, 01 de março de 2004.
GRUPO DE TRABALHO – Entidades e Representantes
ADVOCACI – Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos - Rosana Alcântara e Beatriz
Galli
AGENDE – Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento - Elizabeth Garcez
206
IPÊ/CLADEM – Instituto para Promoção da Equidade/Comitê Latino Americano de
Defesa dos Direitos da Mulher - Silvia Pimentel, Juliana Belloque e Valéria Pandjiarjian
CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Ação e Informação - Leila Linhares Barsted
CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria – Iáris Ramalho Cortês, Giane
Boselli e Myllena Matos
THEMIS – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero - Carmen Campos
Demais juristas e especialistas – Ela Wiecko de Castilho (Membro do Ministério Público
Federal e Professora de Direito Penal da Universidade de Brasília.) , Ester Kosovski
(Professora de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Leilah Borges da
Costa (Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros), Rosane Reis Lavigne (Membro da
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro), Simone Diniz (médica e membro do
Coletivo Feminista e Casa Eliana de Grammon) e Wania Pasinato Izumino (socióloga e
pesquisadora do NEV), Salo Carvalho (advogado – RS).
O grupo também contou, na fase de elaboração final do anteprojeto, com o auxílio do
Assessor Parlamentar da Câmara dos Deputados e advogado Adilson
207
Anexo 5: Ata da Reunião da CCJ/SD, de 24/05/2006, em que se debateu o PLC 37/2006
SENADO FEDERAL
COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA
Ata da 14ª Reunião Ordinária, da 4ª Sessão Legislativa Ordinária, da 52ª Legislatura,
realizada em 24 de maio de 2006, Quarta-feira, às 10 horas minutos, na Sala de Reuniões
da CCJ, nº 3, da Ala Senador Alexandre Costa.
Às dez horas e trinta e oito minutos, do dia vinte e quatro de maio de dois mil e seis, na sala
de reuniões da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, Ala Senador Alexandre Costa,
número três, sob a Presidência do Senhor Senador Antonio Carlos Magalhães, com a presença
dos Senadores César Borges, Demóstenes Torres, José Jorge, João Batista Motta, Alvaro
Dias, Arthur Virgílio, Juvêncio da Fonseca, Eduardo Suplicy, Magno Malta, Antonio Carlos
Valadares, Ramez Tebet, Ney Suassuna, José Maranhão, Romero Jucá, Pedro Simon,
Jefferson Péres, Romeu Tuma, José Agripino, Tasso Jereissati, Eduardo Azeredo, Leonel
Pavan, Sibá Machado, Marcelo Crivella, Sérgio Cabral e das Senadoras Ideli Salvatti, Serys
Slhessarenko e Lúcia Vânia reúne-se a presente Comissão. Deixam de comparecer os
Senadores Edison Lobão, Aloizio Mercadante, Fernando Bezerra e Amir Lando. Registra-se a
presença do 1º Vice-presidente do Senado Federal Senador Tião Viana. Havendo número
regimental, o Senhor Presidente declara aberta a Reunião propondo a dispensa da leitura da
Ata da Reunião anterior, que é dada por aprovada.
Passa-se à apreciação da Pauta: ITEM 18) PROJETO DE LEI DA CÂMARA Nº 37, DE
2006 (PL. nº 4.559, de 2004, na Câmara dos Deputados) - NÃO TERMINATIVO – “Cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º
do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção para a Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção de Belém do Pará; dispõe sobre a criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera os Decretos-Lei nºs
3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal e 2.848, de 7 de dezembro de
1940 - Código Penal, e a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984; e dá outras providências”.
Autoria: Presidente da República. Relatoria: Senadora Lúcia Vânia. Parecer: Pela aprovação
do Projeto com as alterações redacionais devidas, nos termos do texto consolidado que
apresenta. Resultado: Aprovado o Parecer favorável ao Projeto com as alterações redacionais,
208
nos termos do texto consolidado. A Comissão aprova o Requerimento nº 8, de 2006-CCJ, de
urgência para a Matéria. REQUERIMENTOS APRECIADOS: 1) REQUERIMENTO Nº 8,
DE 2006–CCJ, “Nos termos do Artigo 336, inciso II, combinado com o Artigo 338, inciso IV,
do Regimento Interno do Senado Federal, requeiro urgência para o Projeto de Lei da Câmara
nº 37, de 2006”. Autoria: Senadora Serys Slhessarenko. Resultado: Aprovado. E, para constar,
eu, Gildete Leite de Melo, Secretária da Comissão, lavrei a presente Ata, que após lida e
aprovada, será assinada pelo Senhor Presidente e publicada no Diário do Senado Federal,
juntamente com a íntegra do registro da estenotipia informatizada.
Senador ANTONIO CARLOS MAGALHÃES
Presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
14ª REUNIÃO ORDINÁRIA DA COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO, JUSTIÇA E
CIDADANIA, DA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA ORDINÁRIA, DA 52ª LEGISLATURA,
REALIZADA NO DIA 24 DE MAIO DE 2006 ÀS 10 HORAS E 38 MINUTOS.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Com a palavra, a Relatora.
SENADORA LÚCIA VÂNIA (PSDB-GO): "O Projeto de Lei da Câmara nº 37, de
2006, do Poder Executivo, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher. Dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
Contra a Mulher, altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
Penal e dá outras providências".
O Projeto é fruto de um longo processo que teve início em 2002, com a formação de
um consórcio de ONGs para a elaboração de uma lei de violência doméstica. Em novembro
de 2003, a primeira versão foi apresentada à Bancada Feminina no Congresso Nacional e à
Secretaria Especial de Políticas Para Mulheres.
Em de 2004, o Poder Executivo instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial para
elaborar Proposta de Medida Legislativa e outros instrumentos para coibir a violência
doméstica contra a mulher, de acordo com o Decreto 5030, de 31 de março de 2004.
Em novembro de 2004, o Projeto de lei foi encaminhado ao Congresso Nacional.
209
Em março de 2006, o Projeto foi aprovado na Câmara e encaminhado ao Senado
Federal. Ele teve Parecer favorável na Comissão de Seguridade Social da Câmara, que foi
relatado pela Deputada Jandira Feghali e aprovado por unanimidade.
Ele foi aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação pela Deputada Yeda
Crusius, também aprovado por unanimidade. Aprovado na Comissão de Constituição e Justiça
e Cidadania pela Deputada Iriny Lopes, com substitutivo, também aprovado por unanimidade.
Foram realizadas Audiências Públicas nas Assembleias Legislativas do Rio Grande do
Sul, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de São Paulo, Rio Grande do Norte, do Espírito
Santo, da Bahia, do Acre e de Goiás. Foi promovido seminário “Violência Contra a Mulher:
um Ponto Final", realizado em Brasília.
Esse Projeto de lei trata de uma demanda contundente das mulheres de todo o País
captada a partir das Audiências Públicas promovidas e traduzidas na proposta que veio da
Câmara.
Nos quase 11 anos de criação do JECRIM, a violência doméstica tem sido relegada a
uma briga de marido e mulher, onde ninguém mete a colher. Sem diagnóstico social que
reprima o impacto negativo sobre a estabilidade do núcleo familiar e, principalmente, sobre o
processo de formação de caráter, de cidadania e educacional dos filhos e sobre a sociedade
como um todo.
90% das ações processadas no JECRIM que envolvem violência doméstica são
arquivadas, o que revela uma realidade de impunidade e perpetuação do problema no âmbito
familiar. Os JECRIMs têm uma imagem social atrelada a crimes de pequeno potencial
ofensivo em razão do que dispõe a lei que o criou.
Análise: De acordo com o Art. 101, dos incisos I e II, alínea "d", do Regimento
Interno do Senado Federal, cumpre à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania alternar
sobre a constitucionalidade, a juridicidade, a regimentalidade e o mérito do Projeto de lei em
exame.
Em termos materiais, cumpre afirmar que a disposição do PLC nº 37, de 2006,
realmente concorre para a concretização do dever do Estado de prestar assistência à família na
pessoa de cada um dos seus integrantes e de criar mecanismos para coibir a violência no
âmbito das relações familiares, conforme apregoa o § 9 do Art. 226 da Lei Maior.
210
Concorre, ainda, para a efetivação dos compromissos assumidos pelo Brasil, ao tornarse parte da Convenção InterAmericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a
mulher, Convenção de Belém do Pára, norma internacional integrada à legislação pátria, pelo
Decreto Legislativo nº 107, de 31 de agosto de 1995, e pelo Decreto nº 1973, de 1º de agosto
de 96.
Do ponto de vista da constitucionalidade formal, a proposta versa sobre matéria
inserida no âmbito de competência privada da União, nos termos do inciso I, Art. 22, da
Constituição e não afronta o Princípio da Reserva de Iniciativa.
Ademais, materializa-se na espécie legislativa adequada, projetando-se como Lei
Ordinária.
Não
obstante,
muitos
dos
seus
dispositivos
apresentam
imperfeições
constitucionais, jurídicas e redacionais, que comprometem o alcance dos objetivos declarados,
minando a eficácia concreta da futura lei.
Essas imperfeições foram sanadas e os dispositivos em que aparecem foram redigidos
com mais clareza, precisão e ordem lógica, em observância aos ditames da técnica legislativa,
preconizados na Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre a
elaboração, redação e consolidação das leis.
Sr. Presidente, peço permissão à Comissão para resumir a leitura deste relatório, tendo
em vista a sua extensão e o fato de que ele já foi distribuído aos Srs. Senadores.
O voto: Diante do exposto, o voto é pela aprovação do PLC nº 37 de 2006 com as
alterações redacionais devidas, nos termos do texto consolidado que apresento em seguida,
como faculta o § 6º, Art. 33, do Regimento Interno do Senado Federal.
Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, o texto consolidado que apresentamos é
resultado de uma série de ajustes de redação com o único objetivo de aperfeiçoar a técnica
legislativa do Projeto e de eliminar qualquer vício de injuridicidade e constitucionalidade, o
que conseguimos com a simples modificação da redação.
Quero, nessa oportunidade, agradecer o Senador Demóstenes Torres, que nos auxiliou
nessa discussão, a Senadora Serys Slhessarenko, que também participou ativamente da
discussão. Os Assessores do Senador Pedro Simon, Assessor do Senador César Borges e
outros Senadores que participaram ativamente.
Agradecer à Secretaria Nacional da Mulher, agradecer com os seus Assessores.
Agradecer o SECRIA, que também esteve conosco em todos os momentos. Enfim, todos os
211
movimentos de mulheres que, na verdade, são os grandes responsáveis pelo sucesso desse
Projeto.
SENADOR DEMOSTENES TORRES (PFL-GO): Para discutir, Sr. Presidente.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Com a palavra, Senador Demóstenes Torres.
SENADOR DEMOSTENES TORRES (PFL-GO): Sr. Presidente, eu quero
parabenizar a Senadora Lúcia Vânia por ter conseguido, primeiro, atender a uma grande
reivindicação das mulheres brasileiras, criando quase que um novo estatuto em que muitos
direitos são assegurados.
Assegura-se a punição com prisão em flagrante - acaba aquela história de cesta-básica
quando mulher apanha - há possibilidade de prisão em flagrante. Então, é uma possibilidade
grande de diminuição da violência doméstica.
O Projeto veio da Câmara um verdadeiro monstrengo e a Senadora conseguiu limpar o
texto, eliminar as inconstitucionalidades, como ela bem disse, corrigir as ilegalidades. E
conseguiu fazer com que possa ser aprovado sem a necessidade de retorno para a Câmara.
Há alguns itens que eu discordo, mas que eu não vou pedir vista em homenagem à
Senadora Lúcia Vânia, à Senadora Serys Slhessarenko e às mulheres do Brasil, porque elas
querem essa aprovação. Acham que isso vai dar resultado. E nada melhor do que duas
mulheres que têm esse trabalho longo adiante disso para que possam fazer algo em favor das
mulheres.
Eu questiono especificamente a criação desses Juizados, as juízas e juízes que eu
conversei no Brasil todo acham que hoje, como nós transformamos tudo em seleto... Então,
nós já temos Juizado da Infância e Juventude, Juizado do Idoso, Juizado, agora, de Violência
Doméstica, que vai sobrar um número de homens sãos e sadios para serem julgados com
prioridade. Como nós transformamos tudo em exceção, quem vai ter o privilégio vai ser o
homem.
Mas a Senadora Lúcia Vânia, ela, ao contrário, ela acha que isso vai favorecer, é uma
questão até de... É uma ação afirmativa nesse momento. Eu respeito o seu posicionamento.
Vou esquecer a minha vivência na Justiça, entendendo que isso pode resolver.
212
Outros pontos que também eu questionaria seria o fato da Ação de Alimentos ser
julgada nesse momento. É que não são criados os Juizados para serem julgados pelo Juizado
Penal e não pelo Civil, mas são questões menores.
Em decorrência disso, eu quero realçar o trabalho que foi feito, parabenizar por esse
trabalho. Dizer que foi um trabalho hercúleo, porque não é fácil. Não foi fácil corrigir o que
veio da Câmara não, veio um monstrengaço, mas a Senadora Lúcia Vânia, com a vivência que
tem, com o conhecimento que tem, com o espírito público que ela tem muito mais do que
muitos outros. Certamente, tudo isso foi utilizado para fazer esse Projeto em favor da mulher
brasileira.
Eu voto a favor e aplaudo a iniciativa da Senadora.
SENADORA SERYS SLHESSARENKO (PT-MT): Para discutir.
SENADORA LÚCIA VÂNIA (PSDB-GO): Eu queria só responder ao Senador
Demóstenes um instantinho. Senador Demóstenes, em primeiro lugar, eu queria agradecer.
Primeiro, dizer que se o Projeto foi aprimorado, V.Exª. teve uma participação ativa
nesse trabalho. E quero dizer que o fato de insistirmos na criação dos juizados, eles se devem,
principalmente, de que esse assunto versa, principalmente, sobre a questão do
comportamento, do preconceito e, principalmente, da visão cultural que se tem dessa questão
de violência contra a mulher.
Então, eu acredito que V.Exª. entendeu perfeitamente o assunto e, inclusive, colaborou
enormemente para o sucesso.
Muito obrigada.
[soa a campainha]
SENADORA SERYS SLHESSARENKO (PT-MT): Para discutir, Presidente.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Com a palavra a Senadora Serys, para contraditar.
[risos]
SENADORA SERYS SLHESSARENKO (PT-MT): Para quê, Presidente?
Contraditar, de jeito nenhum. Não.
Saudar a Senadora Lúcia Vânia r discordar só um pouquinho do Senador Demóstenes,
quando ele fala no monstrengo, até porque esse Projeto ele foi construído pelo movimento de
213
mulheres, vamos dizer, pela participação das organizações as mais variadas de mulheres do
País, pela Secretaria Nacional da Mulher etc. Na Câmara, ele foi extremamente produzido,
discutido.
Eu concordo, Senador, que ele pode ter vindo como monstrengo em termos de
redação, mas a essência de conteúdo ele já veio totalmente, aliás, a Senadora já manteve na
íntegra. Só fez correções de redação que, realmente, problema redacional estava perigoso.
Aí eu concordo o monstrengo da redação.
SENADOR DEMOSTENES TORRES (PFL-GO): Eu acho que ela alterou uns
60%.
SENADORA SERYS SLHESSARENKO (PT-MT): De redação. Eu estou falando
não alterou de essência, até porque não vai voltar para lá. Mas foi muito importante, foi
determinante a participação da Senadora, do Senador Demóstenes Torres que, aliás, a gente já
vinha discutindo há muito tempo, não é, Senador? O tempo que esse Projeto ainda estava na
Câmara a gente já discutia, já conversava sobre isso.
O Senador Antônio Carlos eu tenho certeza, Sr. Presidente, que é um dos Projetos
mais importantes para a mulher brasileira. Eu não tenho nenhuma dúvida com relação a isso.
É um momento decisivo, histórico para a mulher nesse País. E para os homens solidários,
fraternos, generosos, que são contra a violência doméstica. Eu diria que é uma homenagem a
eles também, porque eles são nossos parceiros de pensamento e de defesa dos nossos
interesses.
Tão logo seja votado, eu gostaria de pedir, de fazer o requerimento de urgência para a
votação.
Muito obrigada, Presidente. Parabéns à nossa Senadora, que relatou com a maior
firmeza e determinação e a todos que participaram de uma forma ou de outra tanto na Câmara
quanto as entidades do País organizadas com relação à questão da mulher e ao Senado da
República.
Obrigada.
SENADOR ROMEU TUMA (PFL-SP): Presidente.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Agradeço a minha parte.
214
SENADOR ROMEU TUMA (PFL-SP): Presidente.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Senadora Ideli.
SENADOR ROMEU TUMA (PFL-SP): Também, se possível.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Primeiro as senhoras. Senadora Ideli, posteriormente-SENADORA IDELI SALVATTI (PT-SC): Sr. Presidente, eu queria, em primeiro
lugar, registrar, porque duas vezes eu fiz o protesto aqui por não ter sido citada pelo Senador
Demóstenes, entende? Me senti discriminada aqui, Senador. Me senti. Porque esta-SENADOR DEMOSTENES TORRES (PFL-GO): Por uma questão de Justiça,
V.Exª. participou e debateu. Inclusive, estivemos reunidos na última semana. Desculpe,
V.Exª. teve uma participação importantíssima.
SENADORA IDELI SALVATTI (PT-SC): Mas dizer que apenas para nós todos os
que estão debatendo as questões gravíssimas de segurança pública, nesse momento, sabem da
importância do lar, sabem da importância da família.
E a violência doméstica ela é indiscutivelmente, um dos principais elementos de
desagregação dos lares. No lar aonde a mulher sofre violência sistemática é um lar que tem
muita dificuldade de poder prover educação e equilíbrio para as crianças.
Portanto, a votação desse Projeto, além dele vir de todo um processo de debate que a
Secretaria Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres, tendo à frente, atualmente, a nossa
Ministra Nicéia Freire, que assina a justificativa.
Quando o Projeto foi encaminhado para o Presidente da República, no dia 16 de
novembro de 2004, a nossa Ministra Nicéia Freire, elencava todo o arrazoado e a forma
extremamente, democraticamente como foram construídas as propostas que foram incluídas
no Projeto, resgatando essa luta histórica que é do movimento das mulheres contra a
violência, que já produziu políticas públicas extremamente significativas, como as Delegacias
Especializadas para atendimento às mulheres, como às Casas de Abrigo, como uma série de
mudanças na legislação que nós já tivemos capacidade de produzir.
Portanto, ao estarmos hoje aqui, votando, aprovando o Projeto de origem do Executivo
que sofreu modificações na Câmara. E aqui as modificações, eu entendo o trabalho
215
significativo feito pela Relatora, a Senadora Lúcia Vânia, mas também as mudanças foram
feitas de tal forma que nós não precisamos fazer com que o Projeto retorne à Câmara.
Portanto, aquilo que a Senadora Serys falou também tem procedência, ou seja, foram
feitas modificações e aprimoramento na redação, no entendimento, mas não na essência.
Porque a essência do Projeto ele foi, exatamente, produzido pelo acúmulo histórico da luta
das mulheres contra a violência doméstica, que agora se consolidariam nesta nova legislação.
Portanto, o nosso voto favorável, parabenizando, toda a luta das mulheres.
Parabenizando a nossa Ministra Nicéia Freire, por ter consolidado e obtido o envio pelo
Presidente Lula para o Congresso. E parabenizando a nossa Relatora, por ter dado um jeito só jeito de mulher, viu, Senadora Lúcia Vânia? - Que consegue fazer as modificações
adequadas sem que a essência seja modificada, de tal forma que nós possamos votar sem
precisar retornar à Câmara.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Com a palavra, Senador Tuma.
SENADOR ROMEU TUMA (PFL-SP): Sr. Presidente, Srs. e Srªs. Senadoras, eu
também, Ministra Lúcia Vânia, eu prefiro chamá-la de Ministra, porque assim a conheci.
Eu faço uma homenagem à nossa Ministra, pela vivência que teve na área social e a
evolução do acompanhamento de todas as fases. À Senadora Serys, que tem tido uma
liderança muito grande em defesa das nossas mulheres. À nossa rainha Ideli, hoje ela pediu
para ser chamada de rainha.
SENADORA IDELI SALVATTI (PT-SC): Porque queriam me colocar no lugar de
um rei deposto. Eu, pelo menos...
SENADOR ROMEU TUMA (PFL-SP): Então, a nossa saudação às mulheres.
Mas Senadora Lúcia, eu gostei aqui do Art. 11, porque eu fui um dos participantes do
Conselho de Polícia Civil de São Paulo que criamos a Delegacia da Mulher, foi a primeira do
Brasil. E hoje tem uma Deputada Estadual que foi a primeira Delegada.
E começou a se trabalhar contra essa violência em família, contra a mulher. E aqui ela
tem um elenco de responsabilidade da autoridade policial para já dar início a uma assistência
à vítima da violência familiar. Porque vai, toma nota, abre o inquérito, devolve a mulher para
casa. Ela ou apanha mais ou ela é morta.
216
Então, senão houver esta segurança de que ela pode procurar a autoridade e vai ter
uma cobertura, para que ela não sofra mais nenhum tipo de agressão, cairia no vazio. Eu acho
que a Senadora foi cautelosa. Fez um belo trabalho.
Eu vou mandar esse trabalho da senhora para duas faculdades, porque eu acho
importante que os jovens na área de Direito possam estudar.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Aprendam a não bater nas mulheres.
SENADOR DEMOSTENES TORRES (PFL-GO): E mais. E mais, se tiver homem
que apanha da mulher-SENADOR ALVARO DIAS (PSDB-PR): Presidente.
SENADOR DEMOSTENES TORRES (PFL-GO): A Senadora deixou aberto para
que-SENADOR ALVARO DIAS (PSDB-PR): A palavra, Sr. Presidente.
SENADOR DEMOSTENES TORRES (PFL-GO): As mulheres também sejam
punidas.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Com a palavra, Senador José Maranhão e posteriormente Ney Suassuna.
SENADOR JOSÉ MARANHÃO (PMDB-PB): O Senador Ney Suassuna está me
pedindo aqui antecedência no aparte, porque vai sair logo em seguida. Eu falo em seguida.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
A Paraíba se entende.
[risos]
SENADOR NEY SUASSUNA (PMDB-PB): Nobre Presidente, Srªs. e Srs
Senadores, é exatamente para apoiar não só apoiar o Parecer, mas para louvar as mulheres.
Apesar de que a Senadora Serys tem sido um pouquinho exagerada.
Outro dia desses estava aqui a Presidenta do Chile e ela disse: "Sra. Presidente, aqui
neste País, 52% são mulheres, o restante são filhos". E eu indaguei: “E os maridos?” Mas ela
não considera mais os maridos, que os maridos são descartados.
SENADORA SERYS SLHESSARENKO (PT-MT): Os maridos são filhos também.
217
SENADOR NEY SUASSUNA (PMDB-PB): Terminam sendo filhos também.
SENADOR ROMEU TUMA (PFL-SP): A mulher trata a gente como filho.
SENADOR NEY SUASSUNA (PMDB-PB): A mulher e as filhas terminam até
mandando na gente.
Mas eu queria louvar o Parecer e dizer que realmente é de Justiça e, por isso, viva as
mulheres.
SENADOR JOSÉ MARANHÃO (PMDB-PB): A palavra, Sr. Presidente.
Sr. Presidente, Srs. Senadores, Srªs. Senadoras, especialmente Srªs. Senadoras. Eu
quero felicitar as mulheres, que hoje estão de parabéns por mais essa conquista, por mais esse
trabalho. E não foi fácil, todos nós sabemos.
Mas eu queria, também, dar aqui um testemunho da minha experiência, porque no meu
Governo, quando Governador na Paraíba, criei a Delegacia das Mulheres. Criei a delegacia e
instalei em todos as cidades pólos do Estado da Paraíba.
Esse registro que eu queria fazer aqui, em homenagem a todas às Senadores e todas às
mulheres brasileiras.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Em votação-SENADORA LÚCIA VÂNIA (PSDB-GO): Sr. Presidente, só para agradecer a
V.Exª.
Eu gostaria de dizer, Sr. Presidente, da minha alegria em poder relatar esse Projeto. E
agradecer a deferência de confiar em mim um Projeto de tamanha responsabilidade. Mas eu
conheço a sensibilidade de V.Exª., o interesse público que V.Exª. tem manifestado aqui nessa
Casa e especialmente nessa Comissão.
E é importante que V.Exª. tenha colocado em votação hoje juntamente com esse
conjunto de ações que são feitas para a segurança pública, porque eu tenho certeza que esse
Projeto virá ajudar as famílias brasileiras.
O meu abraço, o meu carinho e, acima de tudo, o meu muito obrigada pela confiança.
SR. PRESIDENTE SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES (PFL-BA):
Muito obrigado.
218
Em votação. Os Srs. Senadores que aprovam queiram conservar-se como se
encontram. Aprovado.
Em votação o requerimento de urgência da Senadora Serys Slhessarenko para o
processo. Os Srs. Senhores que aprovam queiram conservar como se encontram. Aprovado.
As matérias ficam adiadas para outra sessão. Declaro encerrada.
Sessão encerrada às 13h21.