CRUZAR HISTÓRIAS
I OFICINAS LUSO-AFRO-BR ASILEIR AS
COORD.
LUÍS ALBERTO MARQUES ALVES
GASPAR M ARTINS PEREIR A
Título: Cruzar Histórias: I Oficinas Luso-Afro-Brasileiras
Organização: Luís Alberto Marques Alves | Gaspar Martins Pereira
Design das Publicações CITCEM: Helena Lobo Design | www.hldesign.pt
Paginação desta edição: by Scala | Graphic Performance
Fotografia de capa: by Scala (a partir da Bússola Marítima de Francisco António Gallo,
Porto, Museu do ISEP, Coleção de Física)
Edição: CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória”
Via Panorâmica, S/n | 4150-564 Porto | citcem@letras.up.pt
ISBN: 978-989-8351-73-9
DOI: 10.21747/9789898351739/alv2017
Trabalho cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) através do
COMPETE 2020 – Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI)
e por fundos nacionais através da FCT, no âmbito do projeto POCI-01-0145-FEDER-007460.
CRUZAR
HISTÓRIAS
I OFICINAS
LUSO-AFRO-BR ASILEIR AS
COORD.
LUÍS ALBERTO MARQUES ALVES
GASPAR MARTINS PEREIRA
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Luis Alberto Marques Alves
Gaspar Martins Pereira
I. TRAPICHES E TRAPICHEIROS NA DINÂMICA
PORTUÁRIA DA SALVADOR COLONIAL
Maria das Graças de Andrade Leal
II. HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO HISTÓRICA:
ALGUMAS IDEIAS SOBRE A PRODUÇÃO NA FLUP
Cláudia Pinto Ribeiro
III: HISTÓRIA, MEMÓRIA E PATRIMÔNIOS LUSO-AFRO-BRASILEIROS
Sara Oliveira Farias
IV. REDES ATLÂNTICAS DE TRABALHO NO PORTO
DO RIO DE JANEIRO OITOCENTISTA
Maria Cecília Velasco e Cruz
V. CINEMA E HISTÓRIA: PERSPETIVAS E CAMINHOS
Pedro Alves
V.
CINEMA
E HISTÓRIA:
PERSPETIVAS E
CAMINHOS
CINEMA E HISTÓRIA:
PERSPETIVAS E CAMINHOS
PEDRO ALVES*
Uma ciência que não investiga os sentimentos serve para quê?
Serve para tudo aquilo que não é sentimento.
Serve, pois, o homem?
Serve toda a parte do homem que não é sentimento.
Gonçalo M. Tavares1
Vivemos numa realidade complexa, plural e desafiante. O real, entendido não apenas
como mundo exterior – fora de nós mesmos – mas também como mundo interior,
próprio de cada um de nós, precisa de vários mecanismos e dispositivos de entendimento
e experimentação para poder ser compreendido de uma forma completa. No fundo,
precisa da articulação de várias “versões-do-mundo” (um termo de Nelson Goodman)
para podermos entendê-lo na sua totalidade ou, melhor dizendo, na ambição de o
compreendermos de uma forma o mais completa possível, uma vez que a referida totalidade constitui mais uma utopia e um horizonte do que um percurso concretizável.
Vários campos se colocam à disposição do conhecimento humano para este propósito tão fundamental. Por um lado, o âmbito científico, nas suas múltiplas variantes de
análise e estudo da realidade que vão desde um caráter mais físico, natural e matemático
até um outro de índole mais social e humana. Falando de ciência, falamos sobretudo da
procura de uma intervenção racional, calculável, observável e abstrata sobre a realidade,
produzindo uma quantidade infindável de conhecimentos que nos permite o estabelecimento de um conjunto de verdades e de factos que orientam os mais variados pontos de
vista e entendimentos sobre o real, facilmente partilhados e aceites pela sua justificação
através de elementos visíveis e objetivos.
No entanto, este tipo de aproximação e de produção de conhecimento sobre a
realidade deixa de lado outros aspetos não-observáveis e de caráter mais subjetivo que,
ainda assim, também são parte essencial e participante na definição do real humano:
aspetos como a sensibilidade, a imaginação, a metáfora, a expressão estética ou, mais primordial até, as diferenças necessárias na cosmovisão de cada indivíduo e de cada cultura.
* Docente convidado da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa. Investigador do CITCEM-FLUP.
Email: pmalves@porto.ucp.pt
1 TAVARES, 2006: 18.
76
ABRIR SUMÁRIO
Nesse sentido,não podemos apenas ter em conta as ciências como mecanismos exclusivos de produção de conteúdos, de reflexões e de expressões da realidade. Paralelamente,
e num sentido complementar, temos de considerar também as artes como formas de
pensar, sentir e experimentar o real, dentro da necessária relação estabelecida entre
autores e recetores a partir das obras que materializam determinados pontos de vista
e representações subjetivas da realidade.
Entre as várias artes criadas e desenvolvidas pelo ser humano, o Cinema é uma das
mais completas e complexas formas artísticas existentes. Completa no sentido em que
permite conciliar o uso de diferentes signos e códigos próprios de outras artes: o espaço
da Arquitetura, o som e o tempo da Música, a sensação de volumetria da Escultura, a
representação do Teatro, o movimento da Dança, ou a imagem da Fotografia e da Pintura.
A sétima arte, definida por Riccioto Canudo no seu Manifesto das Sete Artes, de 1914,
como «arte total», significa assim não apenas uma nova variável artística em comparação
com outras artes, mas em certo sentido o culminar de várias tipologias de expressão
artística, conciliadas de forma significativa e original numa nova forma de expressão e
comunicação. A imagem, o som, a palavra e o movimento cinematográficos são condição
sine-qua-non para a impressão de realidade promovida pelos seus autores e experimentada
pelos seus recetores, produzindo diferentes formas de aproximação à realidade que, no seu
conjunto, estabelecem um conjunto de oportunidades e caminhos para o conhecimento.
Em primeiro lugar, podemos olhar para o Cinema como um convite à criação de
mundos. Um Cinema, claro está, que normalmente se define pelo seu caráter narrativo. A
ideia de criação surge, desde logo, pela capacidade de utilizar a configuração narrativa como
forma de organizar diferentes informações, figuras e acontecimentos, originando sentidos
e significados pela estruturação atribuída aos componentes narrativos. Se a realidade é um
campo infindável de dados, ainda por cima naturalmente desorganizados, o Cinema – tal
como a Ciência – procura estabelecer ordem, direção, sentido e significação, conduzindo
a apresentação e compreensão de determinada história e determinado mundo no sentido
de proporcionar o entendimento daquilo que é representado no seu texto audiovisual.
Por outro lado, o Cinema convida à criação de mundos pelo alargamento dos
horizontes da realidade. Além de poder indagar componentes existentes no mundo
real, como no caso do documentário, pode tomar a realidade como referente para a
extensão dos seus limites, ou seja, através da ficção. A ficção permite simular figuras,
acontecimentos, contextos e temporalidades no sentido de alargar as possibilidades de
existência e de direções para a própria realidade. Permite atribuir formas e materialidade
a componentes não-existentes, imaginados ou simulados, com maior ou menor referência à realidade que os inspira e integra metaforicamente. Nesse sentido, o real não
surge como limitação, mas apenas como base de referência, propiciador dos referentes
necessários a qualquer história de ficção para permitir a emersão e compreensão de
significados de utilidade e relevância vital.
77
ABRIR SUMÁRIO
Os mundos imaginados e simulados da ficção são, portanto, uma importante oportunidade proporcionada pelo Cinema para projetar caraterísticas, estados e situações aos
quais a realidade não pode nem consegue oferecer resposta. Quer como proposta de um
autor quer como experiência de um conjunto de espectadores, a ficção cinematográfica
permite incorporar condições vitais por cumprir no seio das narrativas criadas: permite
projetar desejos, ambições, frustrações e identificações com elementos que excedem
e alargam os horizontes reais, com elementos que nos permitem solucionar tensões
explícitas ou latentes da realidade através da vivência ficcional de mundos que referem
a realidade de forma significativa.
Finalmente, a ficção é sinónimo da possibilidade de contactar com o que é distante,
estranho ou até mesmo impossível. Significa, por isso mesmo, uma oportunidade para
compreender personalidades, identidades e comportamentos individuais e culturais
que não nos são familiares. Permite aproximar gerações, perspetivas e sociedades através
da representação dos seus modelos e da oportunidade de contactarmos com eles através
de narrativas que os colocam em ação e em percurso narrativo. É propiciadora, nesse
sentido, da capacidade de empatia e do entendimento sobre o que escapa aos contextos
mais imediatos e próximos da nossa realidade, significando com isso e também o
alargamento dos nossos horizontes cognitivos, afetivos e empíricos, na forma como
compreendemos, sentimos e atuamos sobre o real.
Em segundo lugar, e em certa medida relacionado com o que referimos anteriormente,
o Cinema estabelece um convite à reflexão sobre mundos. Reflexão não apenas sobre
a realidade per se, mas também sobre as versões e perspetivas diferentes e subjetivas
sobre o real, estabelecidas por autores fílmicos e reconfiguradas, interpretativamente,
pelos espectadores das suas obras. Contactar com um filme significa, por um lado, a
oportunidade de refletir sobre o seu autor, sobre a sua idiossincrasia, sobre a sua personalidade e sobre o seu estilo. Encontrar, no fundo, os motivos e as motivações para que este
configure uma narrativa de determinada forma, não apenas ao nível do seu conteúdo,
mas também do seu discurso. Vivenciar um filme é receber uma forma do olhar, do
pensar e do sentir do seu autor, contactar com uma perspetiva (documental ou ficcional)
sobre a realidade que se oferece aos recetores como campo para interpretações, procuras
de sentido e criação de significados subjetivos.
Por outro lado, não é apenas o autor que se manifesta em cada filme, mas ao mesmo tempo a sua cultura, o seu tempo e o seu contexto. Nenhum realizador é imune
ao diálogo mantido com as particularidades do seu contexto coletivo, pelo que cada
filme evidencia pistas para compreendermos os modos pelos quais um autor entende
a sua cultura e o seu tempo e é por eles marcado. Pode evidenciar, como defende Esther Gispert2, determinadas formas de pensar e sentir de uma determinada sociedade,
2
GISPERT, 2009: 130.
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ABRIR SUMÁRIO
quando o seu autor se inclui num conjunto que o excede na sua identidade particular
e o condiciona no tipo de aferições realizadas sobre a realidade. Além do mais, o estudo
de determinado filme no que diz respeito às implicações socioculturais explícitas ou
implícitas pode conduzir-nos não apenas na direção dos seus autores, como também de
uma análise da própria receção de um filme em determinada época. As condicionantes
políticas, culturais, sociais, económicas ou religiosas de cada cultura ou época poderão
ser importantes para encaminhar os públicos para diferentes experiências e conclusões,
denotando com isso o incontornável posicionamento do Cinema como mecanismo
coletivo e cultural, além de artístico.
Nesse sentido, a reflexão proporcionada pelo Cinema direciona-se inegavelmente
para o campo da realidade, representando-a quer na sua composição efetiva (pelo documentário, por exemplo) quer nas diferentes formas de a entender ou reconfigurar. No
campo da ficção, os mundos apresentam-se como metáforas da realidade, entendidas
como substituições ou deslocações significativas dos termos reais para os âmbitos da
simulação e da imaginação. Além do mais, utilizar a ficção como modo de analisar e
estudar a realidade pode permitir distanciar as consequências e as implicações do filme
sobre elementos do nosso mundo, ou seja, afetando a realidade apenas pelo seu lado
abstrato e metafórico e não comprometendo diretamente elementos específicos e reais.
Por isso mesmo, o Cinema apresenta um inegável potencial de averiguação, representação e reflexão sobre a realidade, implicado não apenas na comunicação e expressão
autoral de determinadas perspetivas metafóricas e universos referentes ao nosso mundo,
mas também na vivência significativa dos mesmos por parte dos espectadores, que neles e
através deles conquistam oportunidades de analisar as condições e os estados da sua vida
individual e coletiva. Por outro lado, e enquanto arte, o Cinema permite o estabelecimento
de experiências que remetem para um entendimento alargado do real, combinando quer a
expressão quer a reflexão sobre elementos não apenas cognitivos e racionais, mas também
sensíveis, emocionais e empíricos. Compreende-se, então, as vantagens de ter em conta a
utilização do Cinema enquanto expressão artística da realidade e forma de compreender
e analisar diferentes etapas e temporalidades humanas. É aqui que entra em equação a
possível relação da sétima arte com disciplinas e áreas do conhecimento como a História.
Se a História procura estabelecer narrativas causais, plausíveis e justificadas sobre a
evolução do ser humano e sobre os acontecimentos, figuras e contextos que marcaram
o seu percurso ao longo do tempo, o Cinema encontra facilmente uma relevância no
sentido da comunicação e da análise de momentos e personalidades históricas. Por um
lado, o próprio surgimento do Cinema acontece, historicamente, de forma ativa, pela
captação de fragmentos da realidade com propósitos de registo e de contribuição para
avanços científicos. Por outro lado, o caminho e desenvolvimento paralelo de Cinema e
da História levou, em alguns casos, as representações fílmicas da realidade condicionadas
pelas intenções de determinados agentes políticos ou culturais, servindo quer como
79
ABRIR SUMÁRIO
meio de propaganda quer como arma de contrapoder e denúncia. O próprio Cinema
acabou por se tornar numa das formas de contornar a falta de liberdade de expressão em
várias sociedades repressivas, potenciando a significação implícita e simbólica como
modo de contornar possíveis censuras.
Nesse sentido, observarmos e estudarmos, hoje, filmes cuja significação se encontra não
apenas nos elementos representados, mas também no que nos revelam de fundamental dos
seus autores e dos contextos e épocas em que estes se inserem, é um exemplo de como o
Cinema pode propor, no presente, uma forma de analisarmos épocas, contextos e autores
distantes. Os filmes como documentos históricos surgem, portanto, como representação
de determinadas formas de ser, pensar, sentir e atuar, e também como significantes ao nível
dos universos, das figuras e das ações representadas narrativamente.
Por outro lado, o Cinema pode intervir no espaço da História como disciplina do
conhecimento do passado, não apenas pelo recurso a obras produzidas nas épocas
estudadas, mas também nas reconstruções ficcionais que o presente efetua sobre o
passado. Filmes como Gladiador ou Capitães de Abril, a título de exemplo, reconstituem
figuras e ambientes históricos a partir da atualidade. Neles, o Cinema recupera o passado,
atualiza-o, torna-o presente e passível de ser experimentado e vivido pelos espectadores.
Permite atribuir formas a elementos que já não existem (cenários, figuras, ações, acontecimentos, contextos, etc.), reavivando-os através de simulações ficcionais, dispostas mesmo
à frente dos nossos olhos. E também o documentário pode participar nesta capacidade
de atualizar o passado através das representações fílmicas presentes, lançando olhares
e perspetivas sobre registos, personalidades e momentos históricos a partir da contemporaneidade reflexiva de determinado autor e, sempre que necessário, da incorporação
de reconstituições ficcionadas que auxiliam a narrativa da realidade representada.
Entendendo assim o Cinema na sua capacidade de representar significativamente realidades históricas (quer a partir do passado, quer a partir do presente), podemos avançar para
um entendimento do Cinema como um convite ao conhecimento de mundos da História.
Devemos começar, necessariamente, pela importância de sermos capazes de experimentar e interpretar criticamente qualquer filme. E isto, quer se trate de documentários ou
de ficções: a modo de exemplo, um documentário de Leni Riefenstahl poderá ser mais
traiçoeiro do que uma ficção neorrealista de Vittorio De Sica, no que diz respeito à aferição da “verdade” ou “fidelidade” de determinada representação da realidade. Um filme
nunca é transparente a não ser sobre a incontornável falta de transparência de qualquer
opinião ou visão sobre o real. Documentários e ficções são ambos construções expressivas de autores particulares, sob determinadas perspetivas. Cabe ao espectador e, mais
importante, ao investigador, professor ou aluno, saber como interpretar cada representação
fílmica do real e dela obter as conclusões relevantes e pertinentes para um conhecimento
justificado das épocas e dos contextos a que as obras se referem.
80
ABRIR SUMÁRIO
Neste sentido, qualquer possibilidade didática a partir do Cinema e centrada no
conhecimento histórico deve começar pelo ajuizamento correto não apenas do representado, mas – uma vez mais – tendo em atenção o contexto de produção e a perspetiva
inerente ao tipo de representação realizada. Toda e qualquer utilização do Cinema – ou
de qualquer fonte histórica – como fonte ou objeto de análise e estudo deve responder
à necessidade da crítica e do ajuizamento racional das informações veiculadas, no
sentido da construção de entendimentos e conhecimentos válidos, adequados e propensos para uma correta assimilação ou incorporação vital dos dados apresentados. Uma
das razões mais vincadas para esta necessidade é a de que nenhum autor é capaz de
completa imparcialidade ou de produzir uma obra que ilustre uma verdade universal
e abrangente: todo o discurso, fílmico ou histórico, propõe sempre uma perspetiva
parcial, sujeita ela também à parcialidade interpretativa dos leitores ou espectadores.
Tal como defende Robert Rosenstone3, não existe uma verdade transversal e universal,
uma vez que tanto nos livros como no ecrã, as verdades estabelecidas estão sujeitas à
interpretação dos factos realizada pelos seus autores. Acrescenta Rosenstone4 que tanto
os livros didáticos como os filmes partilham caraterísticas da não-realidade ou da ficção,
compondo-se ambos de conjuntos de convenções utilizadas pelos autores na construção
de um caminho narrativo para os dados abordados. Por isso, Marc Ferro5 denuncia
uma falsa objetividade atribuída aos historiadores, argumentando que também eles
produzem perspetivas marcadas por condicionantes e ideologias contextuais, políticas,
culturais ou sociais, entre outras.
Além das semelhanças perspetivistas e pluralistas entre Cinema e História, Gispert6
defende ainda que o Cinema permite um acesso e uma configuração de informações
mais próxima daquela a que nos habituámos na realidade, ou seja, um conjunto de
informações e situações onde distinguimos simultaneamente componentes de vários
âmbitos (sociais, políticos, culturais, etc.) em vez de os compartimentarmos de modo
artificial e racional (dentro, por exemplo, de blocos temáticos). Esta configuração e
estruturação, produzida dentro dos cânones e das convenções narrativas, contribui para
a construção de relatos que chegam aos espectadores segundo moldes de grande influência
não apenas cognitiva e racional, mas igualmente emocional e empírica, cobrindo assim
mais campos do entendimento, da sensibilidade e da própria experiência humana. A isto
podemos acrescentar a forte impressão de realidade produzida também pela utilização
de signos visuais e sonoros além dos verbais, o que acarreta necessariamente uma
influência mais marcada da experiência fílmica na perceção e no comportamento dos
espectadores durante e após a projeção do filme.
3
4
5
6
ROSENSTONE, 2001: 51.
ROSENSTONE, 2001: 14.
FERRO, 2010.
GISPERT, 2009: 137-138.
81
ABRIR SUMÁRIO
O Cinema pode representar, assim, um convite ao conhecimento de mundos, não
apenas exteriores, mas também interiores. Através das equivalências narrativas e das
aproximações no que diz respeito à representação da realidade, o Cinema denota um
elevado potencial enquanto instrumento no âmbito da investigação científica e da
Educação Histórica. No contexto do trabalho realizado dentro do CITCEM por alguns
dos seus investigadores, apresentaremos de seguida dois exemplos relevantes no âmbito
das oportunidades e aplicações didáticas do Cinema.
Em primeiro lugar, e num espectro mais abrangente, a minha tese de doutoramento7
indagou e obteve resultados prometedores sobre as potenciais e as efetivas influências do
Cinema no contexto informal da aprendizagem humana. A análise dos hábitos e das
contribuições vitais identificadas por mais de 800 espectadores fílmicos procedentes de
Portugal e Espanha permitiu concluir que mais de 75% dos inquiridos reconhece algum tipo
de aprendizagem informal através dos filmes que consome ou experimenta, em âmbitos
tão variados como conhecimento e cultura geral, valores, emoções e empatia, posturas e
comportamentos, ou proximidade com elementos distantes ou inexistentes. Esses resultados contribuíram, no nosso entender, para demonstrar a relevância de considerar o Cinema
como metodologia útil aos propósitos de uma didática quer informal,quer formal.
Uma outra investigação, de 2013, foi realizada pelo investigador Tiago Reigada, no
âmbito do seu doutoramento realizado na Faculdade de Letras da Universidade do
Porto e cujos resultados deram já origem a um livro. Neste trabalho, intitulado Ensinar
com a Sétima Arte: o espaço do cinema na Didática da História, o investigador estudou
de forma mais específica as aplicações didáticas do Cinema no campo da História,
utilizando como case-study a exploração do filme O Caso Farwell em várias turmas do
9º ano de 3 escolas diferentes. Comparações entre turmas de caráter idêntico e entre
a utilização ou não-utilização do filme como parte da metodologia de ensino do tema
da Guerra Fria demonstrou melhores resultados no caso da utilização do Cinema do
que nas turmas onde a sétima arte não foi explorada como recurso de abordagem ao
tema. Investigações consequentes, não apenas o CITCEM mas na própria Faculdade de
Letras, têm aproveitado as bases lançadas pelo estudo de Tiago Reigada para confirmar
e desenvolver as suas conclusões no âmbito da viabilidade e pertinência de explorar
filmes como fonte de análise, estudo e discussão de matérias históricas.
Por outro lado, e ainda dentro do trabalho desenvolvido pelo CITCEM no campo das
ligações entre Cinema e Educação, destaca-se também um projeto iniciado em 2012 entre
o Centro e a Associação Científica ICONO14, de Espanha, intitulado “Cinema, Didática e
Cultura”. Reunindo 12 investigadores-base (6 de cada país) e integrando outros mediante
cada projeto realizado, o grupo de investigação procura trabalhar a indagação teórica e
prática das relações entre Cinema e Educação, onde se insere necessariamente o inter7
ALVES, 2015.
82
ABRIR SUMÁRIO
câmbio didático entre Cinema e História, tão querido e pertinente nas investigações
de vários dos nossos membros. Além de vários seminários, publicações e comunicações apresentadas no espírito do tema estudado, apontamos dois dos outputs do grupo
que nos parecem mais pertinentes até à data.
Em primeiro lugar, a publicação do livro Aprender del Cine: narrativa y didáctica, em
2014, que reuniu textos de vários investigadores que participam no grupo de investigação
«Cinema, Didática e Cultura», numa lógica de análise transversal e vertical das relações
entre Cinema, Educação e História. Um primeiro conjunto de capítulos estabelece as
condições e as caraterísticas da composição fílmica e da receção cinematográfica (textos
de Francisco García García, Mario Rajas ou Pedro Alves). Um quarto trabalho, de Álvaro
Pérez García y Daniel Muñoz Ruiz, estabelece algumas das premissas fundamentais
para a aplicação e exploração didática do Cinema, antes de Luís Alberto Alves e Cláudia
Ribeiro delinearem uma contextualização deste uso didático do Cinema no Ensino da
História e Tiago Reigada apresentar os resultados da sua investigação doutoral sobre o
uso específico do filme O Caso Farwell no estudo do tema da Guerra Fria em diferentes
turmas de 9º ano. Este livro marcou o culminar de uma primeira parte do percurso
proposto pelo grupo de investigação, lançando as bases do caminho desejado para o
estabelecimento de uma investigação consistente, a nível epistemológico e empírico,
das relações entre Cinema e Educação e com ênfase específico na disciplina de História.
Em segundo lugar, é particularmente relevante o envolvimento de alguns dos investigadores deste projeto e do CITCEM na iniciativa do Plano Nacional de Cinema, programa
das Secretarias de Estado da Cultura e da Educação, coordenado pela Direção-Geral
da Educação, em articulação próxima com representantes do Instituto do Cinema e do
Audiovisual (ICA) e da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Fruto da necessidade
do programa em garantir toda a formação a Norte do Mondego, a produção de materiais científicos e formativos e o apoio a eventos relacionados com o projeto, o CITCEM
é, desde o ano letivo 2014-2015, um parceiro importante na implementação nacional do
Plano Nacional de Cinema. Abrangendo não apenas a disciplina de História, mas todas
as áreas de estudo e uma comunidade escolar alargada (que cresce de ano para ano), o
Plano Nacional de Cinema tem permitido aos nossos investigadores, por um lado, implementar algumas das ideias desenvolvidas e exploradas nas investigações prévias; por
outro lado, desenvolver uma consciência muito atual e real sobre as condições e as atividades escolares no âmbito da literacia fílmica, fruto do contacto com professores que
procuramos acompanhar não apenas nas formações que providenciamos, mas também
nas atividades consequentes para as quais somos, frequentemente, convidados a intervir.
Em modo de conclusão, podemos afirmar sem grandes dúvidas ou equívocos que faz
todo o sentido, hoje, considerarmos uma linha de investigação entre Cinema, Educação
e História como parte importante do desenvolvimento cognitivo, emocional, social,
cultural e pessoal dos nossos alunos. Não apenas deles, mas de todos nós. Num mundo
83
ABRIR SUMÁRIO
e numa realidade cada vez mais fragmentada, veloz, fugaz, efémera e superficial, o
Cinema pode ser uma ferramenta útil para trabalharmos as referências do passado
como bases do presente, para analisarmos a realidade passada, presente e futura através
da sua representação pela sétima arte. Por outro lado, e desde um ponto de vista de
exploração didática do Cinema, o que se pretende é uma melhoria não apenas da atenção
e da motivação dos alunos de hoje, mas também do pensamento crítico, da apreciação
estética e da capacidade empática dos indivíduos de amanhã e depois. A formação
histórica dá-nos as bases para compreendermos o presente à luz do passado e o Cinema
dá-nos os reflexos para entendermos a realidade na luz do ecrã. O potencial de exploração
didática e histórica do Cinema assume uma importância inegável no desenvolvimento
de perspetivas teóricas, afetivas e empíricas sobre o real, no sentido de um futuro mais
salutar e de uma narrativa vital que nos proporcione os horizontes à medida dos nossos
desejos e ambições.
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ABRIR SUMÁRIO
BIBLIOGRAFIA
ALVES, L.; GARCÍA GARCÍA, F.; ALVES, P., coord. (2014) — Aprender del cine: narrativa y didáctica.
Madrid: ICONO14/CITCEM.
ALVES, P. (2015) — La ficción ‘realizada’: implicaciones y transferencias entre ficción y realidad en la
pragmática del cine narrativo. Facultad de Ciencias de la Información da Universidad Complutense
de Madrid (Tese de doutoramento).
FERRO, M. (2010) — Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra.
GISPERT, E. (2009) — Cine, ficción y educación. Barcelona: Laertes Ediciones.
REIGADA, T. (2013) — Ensinar com a sétima arte: o espaço do Cinema na Didática da História. Faculdade
de Letras da Universidade do Porto (Tese de doutoramento).
ROSENSTONE, R. (2010) — A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra.
TAVARES, G. M. (2006) — Breves Notas sobre a Ciência. Lisboa: Relógio D’Água.
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